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Série PalavrAção Pesquisa e Vulnerabilidades editora Sustentável Solange T. de Lima Guimarães Claudia Cristina Ferreira Carvalho Luiz Augusto Passos José Marín (Organizadores) Prefácio de Boaventura de Souza Santos Das epistemologias da rua à política da rua RuAção Vol. 1

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Movimentos sociais

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Page 1: eBook RuAcao

Série PalavrAção

Pesquisa e Vulnerabilidades

Sustentável

editora

editora

Sustentável

Solange T. de Lima Guimarães Claudia Cristina Ferreira Carvalho

Luiz Augusto PassosJosé Marín(Organizadores)

Prefácio de Boaventura de Souza Santos

Das epistemologias da rua à política da rua

RuAçãoVol. 1

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Ministério da EducaçãoUniversidade Federal de Mato Grosso

Reitora

Maria Lúcia Cavalli Neder

Vice-Reitor

João Carlos de Souza Maia

Coordenadora da EdUFMT

Lúcia Helena Vendrúsculo Possari

Conselho Editorial

Presidente

Lúcia Helena Vendrúsculo Possari (IL)

Membros

Ademar de Lima Carvalho (UFMT Rondonópolis)Antônio Dinis Ferreira (ESAC – IPC – Portugal)

Ana Carrilho Romero (FEF)Andréa Ferraz Fernandez (IL)

Eduardo Beraldo de Morais (FAET)Giuvano Ebling Brondani (ICET)

Janaina Januário da Silva (FAMEVZ)Lucyomar França Neto (Discente – FD)

Maria Cristina Theobaldo (ICHS)María Eugenia Borsani (CEAPEDI – Argentina)

Maria Santíssima de Lima (Técnica – SECOMM)Maria Thereza de Oliveira Azevedo (IL)

Marina Atanaka dos Santos (ISC)Marliton Rocha Barreto (UFMT – Sinop)

Maurício Godoy (IF)Michèle Sato (IE)

Roberto Apolonio (FAET)Solange Maria Bonaldo (UFMT – Sinop)

Yuji Gushiken (IL)

UFMT

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Sustentável

editora

editora

SustentávelCuiabá-MT

2014

Solange T. de Lima Guimarães Claudia Cristina Ferreira Carvalho

Luiz Augusto PassosJosé Marín(Organizadores)

Das epistemologias da rua à política da rua

RuAção

Série PalavrAção

Pesquisa e Vulnerabilidades

Vol. 1

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Ficha técnica

Editor: Téo de Miranda (Ed. Sustentável)Revisão textual e normalização: Dionéia da Silva TrindadeSupervisão Técnica: Janaina Januário da Silva (EdUFMT)Projeto gráfico, editoração e finalização: Téo de Miranda (Ed. Sustentável)Capa: Téo de Miranda e Laércio Miranda, a partir da escultura de Jonas Correa, em homenagem aos meninos assassinados no beco do Candeeiro, em Cuiabá Poemas: Manoel de Barros (Parte II) e João Bosco (Parte V)Pinturas em Tela: Télio Fernandes Arte de Rua: Babu 78Fotos: Laércio Miranda

Copyright © Solange T. de Lima Guimarães, Claudia Cristina Ferreira Carvalho, Luiz Augusto Passos, José Marín, 2014.A reprodução não-autorizada desta publicação, por qualquer meio, seja total ou parcial, constitui violação da Lei nº 9.610/98.A EdUFMT segue o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa em vigor no Brasil desde 2009. A aceitação das alterações textuais e de normalização bibliográfica sugeridas pelo revisor é uma decisão do autor/organizador.

Apoio

R894 RuAção: das epistemologias da rua à política da rua. / Organizado por Solange T. de Lima Guimarães, Claudia Cristina Ferreira Carvalho, Luiz Augusto Passos, José Marín. Cuiabá-MT: EdUFMT, Editora Sustentável, 2014.

Série PalavrAção – pesquisa e vulnerabilidades – v.1

ISBN 978-85-67770-02-4 (Ed. Sustentável) 978-85-327-0550-1 (EdUFMT) ISBN

1.Sociologia. 2.Epistemologias da Rua. 3.Política da Rua. I.Guimarães, S.T. II.Carvalho, C.C.F. III.Passos, L.A. IV.Marín, J. V.Título.

CDU 316

Coordenação e PesquisAção

SEJUDH/MT Secretaria Estadual de

Justiça e Direitos Humanos de Mato Grosso

PPGE Programa de Pós-Graduação

em Educação Mestrado e Doutorado

GEMPOGrupo de Estudos

Educação & Merleau-Ponty

CRDH Centro de Referência dos Direitos

Humanos de Mato Grosso

UFMT

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Agradecimentos do projeto RuAçãoNão será possível agradecer a todos e todas dos quais essa obra é espelho,

o quanto ela conseguiu expressar. Ela tem sua lindura própria, também os limites de cada um de nós. Ela é maior que sonhávamos. A generosidade de tantos se fez palavra, com toda a ambiguidade e limite próprios do espaço, tempo e presente que este texto anuncia. Anúncio e denúncia. Permitiu que deixássemos ecoar em nós os clamores dos expropriados e enfraquecidos. Isso que foi importante a elas, eles e nós, mas não capaz de abrir caminhos face à tortuosidade das veredas. A situação de injustiça programada, de diminuição administrada, de exclusão e imolação das pessoas é um ato que clama uma ação organizada e expressiva, na construção de espaços de afirmação de cada um de nós. Que brote o clamor necessário para mobilizar pessoas, sobretudo as mais feridas em sua humanidade, deslocadas da emancipação, que precisa brotar em ação junto aos oprimidos. Agradecemos todo o respeito e colaboração dos governos federal, através da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República e da Secretaria de Justiça e Direitos Humanos do Estado de Mato Grosso (SEJUDH/MT), que contribuíram ativamente em todas as fases do projeto, desde sua organização, através do Centro de Referência dos Direitos Humanos de Mato Grosso (CRDH/MT) executor do Convênio no 758731/2011/SDH/PR, coordenado por Claudia Cristina Carvalho, sem a qual esta pesquisa inexistiria. As instâncias e serviços públicos do Estado que possuem serviços aos moradores de rua e catadores forneceram-nos material específico. Para além de nossa admiração, salientamos o acompanhamento de toda a equipe do Centro de Referência dos Direitos Humanos de Mato Grosso, gente dedicada, colaboradores atentos à preparação da obra: a querida Vera Cruz da Silva, a Antônio Candido Neto, a Jéssica Célia Pina Barbosa, a Valmir de Oliveira Cavalheri, Hudson Ribeiro, Karolline Rodrigues de Oliveira, a Gilberto dos Santos Riquilme, a Thiago Rodrigues Lopes, a Jonathas da Silva Costa, a Marieta da Silva, a Thiago Rodrigues Resende do Vale, a Gislaine Silva Tada, nosso abraço fraterno. Também agradecemos à professora livre docente Maria de Lourdes Bandeira De Lamônica Freire e à professora Drª Artemis Augusta Torres; à Magnífica Reitora Maria Lúcia Cavalli Neder e ao Vice-Reitor João Carlos de Souza Maia, os quais fizeram todas as gestões, também aquelas da outorga do Título de Doctor Honoris Causa ao Professor Dr. Boaventura de Souza Santos – a quem também homenageamos em nossa pesquisa e que, fazendo parte de nossa casa, nos honra com o Prefácio deste livro. À Karina V. Alves

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Coordenadora do CNDDH. Agradecemos ao Chefe do Instituto de Educação Silas Borges Monteiro a ajuda primordial do Programa de Pós-Graduação em Educação na pessoa de sua coordenadora Márcia Ferreira, e à equipe de auxílio diuturno: Rute, Luiza, Marisa, Josiane, Marcos, Leticia. À Judith Guimarães Cardoso, então coordenadora da Pedagogia. Agradecemos à UNISELVA através de Cristiano Maciel e Sandra Maria Coelho Martins, Elaine Adélia Forte Daltro Maia e Lucia Andréa Viegas Valin, no batidão cuidadoso do dia a dia. Agradecemos, ainda, pelo carinho de Maira Barros. E fazemos um agradecimento especial à Equipe de Comunicação da UFMT na pessoa do Professor Benedito Diélcio Moreira e sua equipe competentíssima. À nossa equipe quase infinita do Grupo de Pesquisa: Claudia Cristina Ferreira Carvalho, Suely Dulce Castilho, Maria Anunciação P. de Barros Neta, Edson Benedito Rondon Filho, Clarindo Alves de Castro, Maria Aparecida Rezende, Celso Luiz Prudente, Beleni Salete Grando, Saulo Rodrigues, Carla Izabela Bonzanini, Cristiano Apolucena Cabral, Professor José Tarcísio Grunennvaldt, Viviane Massavi, Itamar Camaragibe Lisboa Assumpção, Mara Cristina Tondin, Vilma Aparecida de Pinho, Fernanda Machado, Eliete Borges Lopes, Arlete Márcia de Pinho, Tereza Ramalho de Azevedo Cunha, Fábio Santos de Andrade, Aloir Paccini, Neuza França da Silva, Lucileide Domingos de Queiroz, Adma Cristhina Salles de Oliveira, Janaína Lúcia Rodrigues, Gil Passos de Mattos, Regina Silva, Michèle Jaber da Silva, Waldinéia Antunes de Alcântara Ferreira, Lisanil da Conceição Patrocínio Pereira, Lori Hack de Jesus e Roberto Tadeu Curvo. Aos nossos consultores, assessores e inspiradores: Fabio Di Clemente, Bartomeo Meliá, Michèle Tomoko Sato, Castor Bartolomé Ruiz, José Marin, Solange Lima Guimarães, Vitória Helena Cunha Espósito, Jovino Pizzi, Adão José Peixoto, Creusa Capalbo. Guilherme Romanelli, Maria Stela Santos Graciani, João Clemente de Souza Neto, João Jandir Zanotelli. Uma homenagem à Editora da UFMT, na pessoa de Lúcia Helena Vendrúsculo Possari e de Janaína da Silva; editor e artista gráfico Téo de Miranda, pela edição do livro; Laércio Miranda, pelas fotografias; e à arte de Babu 78; e de Jonas Corrêa – escultura do “massacre do beco do Candeeiro” – e a Matheus Aurélio e Samantha.

Aos moradores e moradoras de rua, aqueles que se comunicaram muito e pouco, aqueles e aquelas com quem só houve troca de olhares, pelo que nos ensinaram e nos responsabilizam, esta PalavrAção é de valor inestimável.

Luiz Augusto PassosClaudia Cristina Carvalho

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Sumário

Apresentação ...................................................................11

Boaventura de SOUZA SANTOS

Ese polvo atesorado ........................................................13

Introdução .......................................................................15

Solange T. de Lima GUIMARÃES Claudia Cristina FERREIRA CARVALHO Luiz Augusto PASSOS José MARÍN

PARTE I Territórios e espaços da população na/da rua ......................25

A percepção dos moradores de rua com o corpo próprio em estar no/ao mundo .................................27Lucileide D. QUEIROZ Luiz Augusto PASSOS

Em busca de uma cartografia da população de rua ...................45Gil Passos de MATTOS

Solange T. de Lima GUIMARÃES

Da situaçao de rua na Cuiabá dos delírios urbanos: antes e depois da Copa do Mundo FIFA 2014 ........................57Edson Benedito RONDON FILHO

Se essa rua fosse minha: arte de sobreviver nas ruas de mulheres e travestis em situação de meretrício .........................77Claudia Cristina Ferreira CARVALHO

Luiz Augusto PASSOS

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PARTE II A população que resiste, sonha e trabalha na rua .....103

Ruação – nos sentidos merleaupontyanos dos cuidadores ......................................105Fernanda de Arruda MACHADO Itamar Camaragibe Lisboa ASSUMPÇÃO

Consultório de rua do SUS de Cuiabá: descortinando os olhares sobre as pessoas em situação de rua ..... 129Viviane da Silva MASSAVI Mara Cristina TONDIN

Jovens negros e negras em situação de rua em Cuiabá: um estudo das experiências em direitos humanos...................147Vilma Aparecida de PINHO Beleni Salete GRANDO Arlete Márcia de PINHO

Possibilidades de diálogos dos profissionais de Educação Física em relação aos velhos-sujeitos de rua .......................................163José Tarcísio GRUNENNVALDT Carla Izabela BONZANINI

Reflexões sobre a criança, o adolescente e a rua ........................................................181Fábio Santos de ANDRADE

Por uma Epistemologia que toque a carne ............................201Jandir João ZANOTELLI

PARTE III Enviesamento do olhar: diversidade e fenomenologia ....215

As situações de vida de moradores/as de rua e seu espaço: angústias e superações ......................................................217Cristiano Apolucena CABRAL

Existem indígenas nos espaços da rua? O (in)visível da invisibilidade ............................................233Maria Aparecida REZENDE

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Tecendo a rede: movimentos... trançados... nós, entre nós e conosco mesmos ...253Waldinéia Antunes de Alcântara FERREIRA

Lisanil da Conceição Patrocínio PEREIRA

Lori Hack de JESUS

Pedagogia das ruas, pronúncias da cidade .............................267Tereza Ramalho de Azevedo CUNHA

PARTE IV Perspectivas críticas, (des)colonialidades e educação .....285

La exclusión de los gitanos en el contexto europeo contemporáneo: un desafío para la democracia, confrontada a políticas públicas excluyentes ................................................287José MARÍN

Ciganos: resiliência por entre paisagens, lugares e territorialidades ....317Solange T. de Lima GUIMARÃES

Apontamentos para uma compreensão da população em situação de rua ................................................351João Clemente de SOUZA NETO

PARTE V Memória e balanço do trajeto .....................................367

Memórias merleau-freireanas e perspectivas de trajetórias ........369Solange T. de Lima GUIMARÃES Claudia Cristina FERREIRA CARVALHO Luiz Augusto PASSOS José MARÍN

Organizadores/Autores .................................................378

Prefaciador ....................................................................380

Autores ..........................................................................381

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RuAção: Das epistemologias da rua à política da rua

Apresentação

Boaventura de SOUZA SANTOS

Da epistemologias da rua à política da rua

Apresento-vos um livro arriscado. Apesar de escrito a muitas mãos, quase todas escrevem apoiadas pela mão de Merleau-Ponty e Paulo Freire, o que confere ao livro uma coerência surpreendente. A ordem da razão cartesiana é submetida à ordem e desordem da vida e da experiência. E no umbral dessa experiência estão os corpos por onde passam os sentidos cruzados das interações e das intersubjetividades de modo a deixarem de fazer sentido as distinções burocráticas do conhecimento eurocêntrico moderno, sejam elas entre sujeito e objeto, entre corpo e alma, entre sentir e pensar. A subversão é grande e é justo perguntar: ficará à porta do livro? Corpos-feitos-palavra e palavras-feitas-corpo e tudo num mundo bem terreno, sem nostalgia de aléns. Mas num aquém de diferenças gritantes que saltam por cima da cumplicidade e da solidariedade. A diferença-mãe está na desigualdade entre os corpos e suas palavras. Corpos agasalhados, bem-alimentados, bem-sucedidos na vida, e corpos nus e precários a partilhar o lar da rua, vivendo na sombra da ausência e da morte, muitas vezes ausentes até à morte, seu único momento de presença. Palavras abundantes, bem-escritas e eruditas, bem vestidas de papel escrito e impresso, e com os ornamentos recomendados a que chamamos notas de rodapé; e palavras desgraçadas e desgarradas, silenciosas, ora monossilábicas, ora eloquentíssimas, mas nunca bem compostas, sempre reverentes e sempre táticas para que da reverência resulte alguma moeda. Corpos que falam e escutam para poder saber, e corpos que sabem para poder falar e não ter de escutar. Palavras-do-encontro que têm parentes bem posicionados nas bibliotecas, e palavras sem eira nem beira, para quem cada encontro é apenas um desencontro menor. Corpos-que-têm-outros-encontros-obviamente-mais-importantes, e corpos-que-têm-outros-encontros-obviamente-mais-perigosos. Palavras-que-constroem-espelhos, e palavras-que-são-espelhos.

A pungência deste livro, seu risco bem-assumido, reside em espetar nos olhos do leitor os limites do trabalho acadêmico ao ponto de quase o cegar. A luz que resta ao leitor é para sair do livro e ir

SumárioS

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12 • Apresentação

RuAção: Das epistemologias da rua à política da rua

juntar-se à luta por uma sociedade com corpos e palavras ainda mais diversos, mas muito menos desiguais.

Apresento-vos um livro cúmplice. Percorri-o como quem volta a lugar familiar. Ainda que com outros letreiros nas ruas e nas praças. Os meus letreiros traduzem-se tão facilmente nos que leio aqui que quase não merecem menção. Mas, à cautela, aqui vão alguns. Para mim, o fundamental é identificar a linha abissal que cria exclusões radicais. Vinda do colonialismo, essa linha persiste hoje como nunca. Quem está do outro lado da linha é produzido como não existente. Tem de ser invisível porque não existe em nenhuma forma humana ou digna de existir. Por causa da linha abissal, na nossa sociedade, não há humanidade sem desumanidade. Quem vive do lado de lá da linha abissal vive numa situação de fascismo social, a sociedade-civil-incivil. Não é vítima de nenhum estado de exceção porque, desde os tempos coloniais, sempre existiram duas normalidades, cada uma com as suas exceções, uma para valer do lado de cá da linha (nós) e outra para valer do lado de lá da linha (eles e elas como paisagem que, não sendo produtiva, é um embaraço para os nossos turistas desportivos ou outros e deve por isso ser removida).

A tradução é desarmantemente fácil. Este livro faz uma sociologia das ausências para, sobre ela, construir uma sociologia das emergências. A dignidade das pessoas da rua e na rua é a fonte onde vão ganhar alento aqueles e aquelas que também fizerem da rua seu lar para protestar e lutar coletivamente por uma sociedade onde haja lar para todos e todas, tanto na rua como em casa.

Apresento-vos um livro urgente. Carrega consigo a urgência da denúncia de uma sociedade que desperdiça vida e dignidade humanas como se fossem restos de um banquete fatalmente satisfeito de si. Fá-lo de uma maneira brilhante e, por vezes, empolgada, construído por investigadores e investigadoras conscientes como poucos da sua responsabilidade social, dispostos a dar as mãos, contra tudo e contra todas, por cima da linha abissal.

Madison, 24 de novembro de 2014.

SumárioS

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RuAção: Das epistemologias da rua à política da rua

Ese polvo atesoradoY donde no les quieran recibir

salgan de ese pueblo y sacúdanse el polvo de los pies.

Lucas, 9:5

No sacudiré el polvo de los pies no, no sacudiré un solo átomo de ese polvo cuando salga de esa ciudad de ese mi pueblo. Sacudir de mi entraña no podría, aunque quisiera tanto camino andado, tanto suelo consagrado por la danza y el canto. Y ese polvo de palabras que me envolvía y se hacía con mi sudor piel mía, más mía que mi piel. Ese polvo de palabras son ya los huesos de mi alma, las sílabas de mi carne – polvo respirado con la neblina que en la mañana heredó el sueño y dio cuerpo al canto amanecido –. Polvo de la mañana indeciso, polvo de silencio al mediodía, polvo atardecido en el vuelo. sin rumbo de un pájaro que naufraga en el cielo, Polvo de rocío, poco palabras caídas del alto cedro – canoa para mi último viaje –polen de muchas flores, miel de mi gargantahimno

con las partículas del universo mío en una palabra todo el canto, en un árbol todo el monte,todo el camino en un paso,en una gota de agua todo el río, en un ala abierta todo el aire,y en un solo adióstodo lo que tú eras para mí, yo para ti.No quieran que sacudaun solo granode ese polvo.Cómo haría sin esa harinael pan de cada día,cómo haría el caminosin esa arena,sin los átomos de esa luz,cómo haría mi día.Me lo llevo todo– llenos los pieslos cabellos encanecidoslos pulmones repletos, –así corno lleguéestando todavía de caminoyendo de casa en casadando un poco de paza quien quisiera dármela.De la tierra expulsado.perdí la tierra de mis piespero me llevo esede polvo atesorado.

Bartomeu Melià, S. J.4-6 de mayo de 1976.

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RuAção: Das epistemologias da rua à política da rua

Introdução

Solange T. de Lima GUIMARÃES Claudia Cristina FERREIRA CARVALHO

Luiz Augusto PASSOS José MARÍN

Cada um dá ao outro a hospitalidade essencial, no melhor de si; cada um reconhece o outro e dele

recebe esse mesmo reconhecimento, sem o qual a existência humana é impossível. Porque o homem,

reduzido a si próprio, é muito menos que ele mesmo; enquanto que, na luz do acolhimento, se lhe oferece a

possibilidade de uma expansão ilimitada.

Georges Gusdorf, A Fala, p. 58

RuAção: Das epistemologias da rua à Política da rua é o primeiro volume de uma série nominada PalavrAção: pesquisa e vulnerabilidades. Ele integra o conjunto de pesquisas do Grupo de Pesquisa Movimentos Sociais e Educação (GPMSE) e do Grupo de Estudos EducAção em Merleau-Ponty (GEMPO), vinculados ao Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE) – Mestrado e Doutorado – do Instituto de Educação (IE) da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Esta pesquisa, proposta pela Secretaria Estadual de Justiça e Direitos Humanos, advém do Centro de Referência dos Direitos Humanos de Mato Grosso referido à Secretaria Nacional de Direitos Humanos vinculada ao Gabinete da Presidência da República no Brasil, órgão financiador.

O Centro de Referência em Direitos Humanos, como proponente da pesquisa, é uma unidade da Secretaria de Estado de Direitos Humanos de Mato Grosso, criado pelo Decreto nº 1.094/2011. Dentre suas finalidades, propõe-se: ser um espaço de promoção, defesa, garantia e ampliação dos direitos de grupos e pessoas em condição de vulnerabilidade social, nas quais se incluem as populações em situação de rua; além de ser um espaço dialógico de articulação política dos movimentos sociais, de produção e difusão de conhecimentos relativos aos direitos humanos e à dimensão política dos cidadãos.

SumárioS

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16 • Introdução

RuAção: Das epistemologias da rua à política da rua

Cumprindo uma das suas atribuições, RuAção conjuga Educação Popular freireana e orientação teórico-metodológica à descrição densa de Clifford Geertz com a Fenomenologia e a Ontologia de Maurice Merleau-Ponty, na pretensão de que a palavra-mundo se torne a Palavra das vozes dos grupos e pessoas marginalizadas, excluídas e realize, desta forma, desejos, necessidades das percepções dos sujeitos, divisando invisibilidades no conjunto da sociedade capitalista.

Seguindo estas veredas, este volume tem cara própria. Intenta uma fenomenologia amazônica, regional e local para melhor contribuir com as experiências singulares e locais, condição de expressão melhor de nós, em vista da universalização democrática de ciências e saberes comuns. Busca também empreender uma tarefa interminável, levar à pesquisa acadêmica rigorosa – a melhor possível –, uma fenomenologia que respeite as causas de Merleau-Ponty e Paulo Freire. Eles se conheceram empolgados, durante aulas em Paris, de sorte que Freire declarou: “[...] sou dialético fenomenológico!” (TORRES, 1998, p. 82).

A perspectiva freireana se volta à nossa filiação às epistemologias do Sul e à tradução de Boaventura de Souza Santos como ponto de partida, metodologia e horizonte. Relaciona-se essa perspectiva com: Di Clemente; De Lamonica Freire; Karina V. Alves, Castor Ruiz; Joaquim Severino; A. Firenze; Cecília Alves; C. Capalbo; M. Eliete Santiago; J. Pizzi; Vitória Espósito; Joel Martins; Graciani; M. Tristão; Marques Pereira; Brandão; F. A. C. Dantas; Toschi; G. Semeraro; Graciani; S. Ruiz; Peixoto; G. Romanelli; J. Zanotelli; M. Sato; A. M. Lisboa; A. Casali; D. Streck; Zitkoski; T. Adams, nas trilhas de Merleau-Ponty, Paulo Freire e Agamben; W. Benjamin; J. Marín; Paco Buey; De Certeau; e Hannah Arendt, que nos permitiu um enfoque que realça dimensões frequentemente invisíveis e silenciadas, na ótica descuidada da interpretação deste fenômeno dramático, o da negação da dignidade – sempre indescartável – de quem nasce com pele humana, semelhante a nós.

Transversalizamos a leitura de Merleau-Ponty pelo olhar de Fabio Di Clemente, para ver pelo avesso. Entendemos a Fenomenologia da vida e do cotidiano de populações em condição de vulnerabilidade, na perspectiva de que esta construção dos saberes, expressa nas epistemologias do Sul, possa promover, a partir das lutas, um

SumárioS

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Introdução • 17

RuAção: Das epistemologias da rua à política da rua

poliálogo pluriverso (SOUZA SANTOS1), que nasce da experiência sensível e sentiente (MERLEAU-PONTY, 20122) como identidades universais-particulares-e-singulares enredadas, como poderíamos expressar contemporaneamente.

À luz desses teóricos, elaboramos um diagnóstico compreensivo-interpretativo do panorama das violências sofridas por pessoas e grupos pesquisados, geradas pela forma de exploração econômica, expropriação do direito a ter direito, negação ao direito de ir e vir na rua, que é um espaço público de todos os cidadãos e cidadãs, garantido pelo Constituição Brasileira, o que suscitou o delineamento de uma cartografia das exclusões provocadas por processos neocolonialistas e homogeneizadores, postas a reboque pelas agências imperialistas do capitalismo, cuja arbitrariedade gera o esfacelamento do Estado de Bem-estar Social. Formulam novas expressões de estigma e apartheid social que, como “vida de gado”, sacramentizam o arcabouço jurídico-político da perversidade do Estado de Exceção para determinadas parcelas desta sociedade desigual. Em Agamben, o Estado de Exceção é a conformação legal daquilo que não pode ter forma legal, e aparece como uma nova configuração do totalitarismo nazifascista.

Nas palavras de ALVES3 (2004, p. 13):

O totalitarismo pode ser definido como a instauração, por meio do estado de exceção, de uma guerra civil legal que permite a eliminação física não só dos adversários políticos, mas também de categorias inteiras de cidadãos que, por qualquer razão, pareçam não integráveis ao sistema político.

A um só tempo, nega-se aos moradores(as) e trabalhadores(as) em condição de rua sua pertença ao nosso mesmo mundo, quando

1 SOUZA SANTOS, Boaventura; MENESES, Maria Paula; NUNES, J. Arriscado. Conhecimento e transformação social: por uma ecologia de saberes. Disponível em: <http://www.corteidh.or.cr/tablas/r27234.pdf >. Acesso em: 20 nov. 2014.

2 MERLEAU-PONTY, Maurice. O visível e o invisível. São Paulo: Perspectiva, 2012.

3 ALVES, Wanderlan da Silva. Limites e intersecções do estético com o político no filme Janela Indiscreta, de Alfred Hitchcock, e no conto “Sessão das quatro”, de Roberto Drummond. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea. [s.l.], n. 39, p. 151-180, 2012. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1590/S2316-40182012000100009>. Acesso em: 20. nov. 2014.

SumárioS

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18 • Introdução

RuAção: Das epistemologias da rua à política da rua

universais, bem como se negam suas formas diferenciadas e criativas, afirmando sua humanidade própria, tratados como párias. Cabe a eles o direito imprescritível de habitarem os espaços públicos das ruas calçadas e marquises, com a proteção do Estado e de políticas públicas imprescindíveis à sua condição; mas cabe a eles, sobretudo, o direito de reivindicarem para eles o que nós reivindicamos para nós, como princípio universal da reciprocidade de Karl Otto APEL4.

Por isso, nossa pesquisa não se restringe e não se restringirá aos espaços universitários ou geográficos, porque nossos mestres da rua são cidadãos do mundo! As coisas que carregam são suas propriedades e não podem ser tomadas e destruídas; quem o fizer, comete crime. Despimo-nos do vício do olhar distanciado, objetivizante e dominado por padrões de naturalização, na qual a história é lida como um conjunto de estruturas naturalizadas num tempo em que cada lugar tem sua ‘coisa’ (DA MATTA, 2000)5.

Durante todo o percurso de laboração do projeto do livro RUAÇÃO, aspiramos obter e elaborar uma cosmovisão (mundividência) que sustentasse a filosofia implícita das pessoas em condição de rua, tanto as que vivem na rua quanto aquelas que vivem da rua, dado que, na tradição gramsciniana, todas as pessoas sustentam um universo de sentidos que orientam o seu agir – todos somos intelectuais, de forma pessoal e compartilhada; negociamos não só formas de sustentação racional, mas discursivas e simbólicas. Em Gramsci, isso implica uma sensibilidade do conhecimento do corpo, que em muito supera o saber intelectual6.

Tratamos, portanto, de nos identificar com eles, suas necessidades, seus desejos e, como eles e a partir deles, sonharemos com produzir relações que se voltem a outra ordem socioeconômica e política que não os reduza, a eles(as) e a nós, a meros recursos humanos, ou a uso estratégico de manobras econômico-políticas que transforme a ‘sofrença’ dos vulneráveis e empobrecidos em acumulação de capital.

4 DUTRA, Delamar José Volpato. Apel versus Habermas: como dissolver a ética discursiva para salvaguardá-la juridicamente. Kriterion, [s.l.], v. 51, n. 121, p. 103-116, 2010. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1590/S0100-512X2010000100005>. Acesso em: 20. nov. 2014.

5 DA MATTA, Roberto. Relativizando: uma introdução à Antropologia Social. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.

6 Disponível em: <http://www.espacoacademico.com.br/013/13andrioli.htm>. Acesso em: 18 nov. 2014.

SumárioS

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Introdução • 19

RuAção: Das epistemologias da rua à política da rua

Nunca foi tão importante a profecia viva que se faça PalavrAção, da pedagogia dos oprimidos, a partir das ruas. Ocupemos a cidade. Deitemos nela a ternura e a emancipação. Nela, passem a existir apenas chicha e biju, temperados pelo suor da dança e alegria do canto.

A cidade que temos é reorganizada para a produtividade de pessoas subservientes a um poder expropriante e monádico. Encontrar humanidades livres provoca o que há em nós de mais ‘ídico7’, nossa brutalidade irracional. Exterminamos pessoas muito mais porque elas espelham a nossa própria servidão e a vergonha pelo prazer da nossa loucura de poder, sob a penhora da liberdade.

O poder hoje vigente é crítico com toda a diferença, mas “come e cospe”, sem pejo, do prato das teologias que lhe sirvam. Walter Benjamin8 dizia que “[...] o capitalismo é, realmente, uma religião, e a mais feroz, implacável e irracional religião que jamais existiu, porque não conhece nem redenção nem trégua”. Os excluídos, por suspensão sistemática deles ao estado de direito, serão sempre considerados culpados de sua própria imolação nos altares do Capital (DUSSEL9, 2002).

Todo abandono e recusa da participação social e política ampla destes setores não é somente por desconhecimento, ignorância ou interdição de nossa parte pelos quais lhes atribuímos uma diferença ontológica, culpável a eles. É mais que isso. É o ato proativo de revolta, revolta camusiana10, emancipatória, que, denunciando e espelhando a nós, nos aponte a vida vazia que vivemos, a qual se rege por normalizações, reprodução do existente, consumo exacerbado, falta de tempo para viver, amor sem amor – regidos que somos por uma cultura homogeneizadora, normalizadora, castradora, de concorrência ao extermínio, que se sustenta da civilizatória alternativa infantil: eu ou o outro!, que nos cega e mata.

7 Refere-se à instância denominada Id, concebida no modelo estratigráfico do Primeiro Freud, contraposta a outras duas, Ego e Super Ego. O Id seria antirracional e cruel em seus desejos e ações.

8 AGAMBEN, G. Entrevista. Disponível em: <http://www.ihu.unisinos.br/noticias/512966-giorgio-agamben>. Acesso em: 18 nov. 2014.

9 DUSSEL, Enrique.  Ética da libertação:  na idade da globalização e da exclusão.  2. ed. Petrópolis RJ: Vozes, 2002.

10 Refere-se a Albert Camus.

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Vingamo-nos das trincheiras formadas pelos pobres, indígenas, esfomeados, doentes, adictos, que espelham nosso silêncio na legitimação do extermínio deles. Esta população em condição de vulnerabilidade formou trincheiras para sua defesa. Foi a resposta à expropriação histórica, imposta pelos massacres e pela redução missionária. Com zelo laicocientífico, continuamos a sacrificar gente nos altares desta civilização sórdida.

Acendemos velas para os déspotas iluminados que mantêm a barbárie, por meio dos sacrifícios tecnológicos e sangrentos destinados a operações de ‘limpeza’ e ‘higienização’. TER, PODER e VALER, centralidades da vida de qualquer pessoa, são conspurcados pelo capitalismo indecente e politicamente covarde que perverteu o TER necessário, em acumulação inútil; transformou o PODER necessário às pessoas em prepotência e o VALER imprescindível em prevalência contra os enfraquecidos.

Não haverá sobreviventes quando, dia a dia, a vida de uma só pessoa for contingenciada. Há, contudo, um caminho esperançoso: a emancipação e a autonomia solidária “[...] pela prática do ensinar-aprender” compartilhando nossa “[...] experiência total, diretiva, política, ideológica, gnosiológica, pedagógica, estética e ética, em que a boniteza deve achar-se de mãos dadas com a decência e a seriedade”, como bem nos alerta Paulo Freire (2010, p. 13) em sua Pedagogia da Autonomia11.

Na pesquisa, estas populações mostraram-se, analogicamente, como ‘cacos’ de vidros estilhaçados que sinalizam a doença e a maldade de todos e todas (MESTERS, 197712), em especial os que sustentam esta degradação, quer por reiterar o “uso” de pessoas sem seu consentimento, quer pela indiferença, quer pelas formas punitivas, de massacre ou destinação a apartheids, quer pela promoção da miséria, ou ainda pelo uso da pseudorrecuperação como forma de despojá-las de seus desejos e necessidades básicas, entre estas a que lhes é mais cara, a liberdade.

Reconhecemos, também, que as pessoas dotadas de sentidos

11 FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 2010.

12 MESTER, Carlos. Seis dias nos porões da humanidade. Petrópolis: Vozes, 1977.

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Introdução • 21

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singulares reinventam outras possibilidades, explodindo a bitola de um controle que se pretende linear e eficaz. Reinventam uma vivência como marca ontológica do ser humano, que é a de sempre (re)criarem a si mesmas e o seu entorno. E, mesmo que uma sociedade inteira insista em reduzi-las à inumanidade, lutam e não toleram ser despojadas nem mesmo do seu despojamento e do restrito espaço de escolha de sua condição humana.

O humano não poderá prescindir de uma relação arqueológica e ontológica com as coisas, aquele ninhal da criaturidade caro a Merleau-Ponty, no qual tudo e todas as coisas e pessoas, a ordem humana e a não humana na carne do tempo, na carne do espaço e na carne de sexualidade, se comunicam. Esta relação ontológica e primal precisa nos devolver à comunhão de nossas origens comuns.

É preciso voltar a certa condição mística, cara a Humberto Maturana e a Teilhard de Chardin, contemporaneamente ao centenário místico Arturo Paoli, que continua propondo que a reconciliação das pessoas entre si só é possível pela sua reconciliação com as coisas, animais, árvores, pássaros, dinheiro, mercadoria, sem o que não poderão continuar sendo... Thomas Merton afirma esta mesma perspectiva de que sem interculturalidade não poderemos existir: sem o oriente, o ocidente não será!

Reportamo-nos à absoluta necessidade de superar todo isolamento possível de polos de contradição e, portanto, é preciso compreendê-los na sua ambiguidade e tensividade irresolvível. Só por truque racionalista é possível dissociá-los. A separação absoluta dos polos de contradição expressos por dentro-fora, substância-acidente, geral-particular, universal-singular são díades, cujo isolamento absoluto de uma só delas tira o próprio sentido de sua existência. Por exemplo, quando falamos sobre o lado de fora de uma garrafa, este conceito só faz sentido na existência presumível de um lado de dentro, e vice-versa. Elas só seriam plausíveis como expressão resultante da tensão estabelecida no polo oposto. A existência delas sem contradição afirmaria sua condição de entes de razão, só pensáveis, mas não existentes. E sua afirmação apenas como seres, enquanto pensados, lhes tira a aderência direta à vida vivida, sempre na contingência e na incompletude. A ordem da vida não se sujeita a operações

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esterilizadas, atemporais e destemporalizadas. Polos dialéticos na filosofia clássica contrapõem pensamento à extensão, corpo ao espírito, natureza à cultura, necessidade à liberdade, causa ao efeito, substância à forma, exterior ao interior, eu ao outro, situando-se no que se poderia chamar de dispositivo de uma metafísica da crueldade.

Estas polaridades, se não se excluem no campo da diferença, não são vazias; também não são a mesma coisa. Heracliteanamente, são a um só tempo essa e aquela, isso e aquilo, e portanto em devir ou porvir permanente, sem termo. Coisa alguma se faz igual, na ordem da inerência ou da autopoiésis. Contudo, dimensão alguma sobrevive senão em RELAÇÃO. “No começo era a Relação!” – de BUBER – vale isso para todas as questões da filosofia. Há outro segredo, o limite epistemológico que não permite saberes terminais. Há um mistério no mundo. A tese será que o desaparecimento completo da população de rua de nossa cidade, é também o desaparecimento dela e de todos nós que a habitamos.

A chave interpretativa maior deste trabalho retorna às pesquisas da década de setenta: o oprimido como chave de leitura, compreensão e razão da luta por emancipação: o desaparecimento dos outros e das outras das ruas de nossa cidade será também a nossa aniquilação pessoal e coletiva. É preciso refazer de modo radical nossas interpretações e visão de mundo que forjaram uma cultura antropocêntrica. Merleau-Ponty investiu contra certo humanismo que teve sua supremacia em Hegel e que se apresentou em algumas correntes do marxismo.

Esta perspectiva, proposta em nossas pesquisas, traz esperança. Tenta cruzar olhares. Ouvir os testemunhos das vítimas. Como nos veem. Quais seus sentidos e o que pode ajudá-los a “esperançar”? Trouxe por isso esperanças, pois exigiu certo entortamento13 do nosso próprio olhar, viciado por uma prepotência civilizatória de tradição indoeuropeia, que nós próprios alentamos e constituímos, a qual se alojou na nossa visão, impedindo-nos de vê-los, cada um deles e delas, como outro Eu de NÓS.

13 Clifford Geertz menciona tentar enviesar nosso olhar na direção do olhar dos outros, dos nativos, para tentar ver, em parte, o que ele enxergam (GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1989.

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RuAção: Das epistemologias da rua à política da rua

Nunca foi tão importante a profecia viva que se faz PalavrAção e se traduz em podermos viver juntos na solidariedade e na festa, felizes com a diferença, e a possibilidade de fazer das nossas vidas, o sentido da vida dos outros. Fazermos o sentido da nossas vida pela convivialidade como meio e como fim.

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O Apanhador de Desperdício

Uso a palavra para compor meus silêncios.Não gosto das palavrasfatigadas de informar.

Dou mais respeitoàs que vivem de barriga no chão

tipo água, pedra, sapo.

Entendo bem o sotaque das águas.Dou respeito às coisas desimportantes

e aos seres desimportantes.Prezo insetos mais que aviões.

Prezo a velocidadedas tartarugas mais que a dos mísseis.Tenho em mim esse atraso de nascença.

Eu fui aparelhadopara gostar de passarinhos.

Tenho abundância de ser feliz por isso.Meu quintal é maior do que o mundo.

Sou um apanhador de desperdícios:Amo os restos

como as boas moscas.

Queria que a minha voz tivesse um formato de canto.Porque eu não sou da informática:

Eu sou da invencionática.

Só uso a palavra para compor meus silêncios.

– Manoel de Barros –

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PARTE ITerritórios e espaços da

população na/da rua

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A percepção dos moradores de rua com o corpo próprio em estar no/ao mundo

Lucileide D. QUEIROZ Luiz Augusto PASSOS

É possível compreender a percepção dos moradores de rua para com seu corpo próprio, como forma de apresentar-se ao mundo, como palavra comunicativa?

O corpo próprio, modo como o corpo é feito e se faz por nós, em uma autotecedura que se traduz na busca pelo prazer da comunicação, jeito encontrado para, exprimir-se como criaturidade com sintaxe completamente singular em uma alegoria compartilhada e universal. Aparecer é ser no mundo. E, não existe para a fenomenologia merleaupontyana qualquer dúvida que o aparecer é já o ser expresso em sua ambiguidade. Estar no mundo com base no pensamento do filósofo francês Merleau-Ponty é imiscuir-se em uma grande teia de vida, conectado a tudo e a todos, publicizando este anúncio a um só tempo singular, comum e genérico, de nossa emergência a um mundo que nos precede.

Este autor traz o corpo como fundamental na percepção de uma troca com o “meio”, evidencia a força de uma intencionalidade solitária, em dicções existenciais. A fenomenologia não acredita que o pensar, ou os pensamentos precedam os agires, a fala produz o pensamento e só ela. Não acredita em pessoas como uma mente que pensa e um corpo que obedece; menos ainda em uma subsidiariedade corpo coisificado por um espírito autônomo e soberano. Somente a linguagem corporal permite conhecer um pensar parido no esforço da dicção1.

Todo contrário. Uma criancinha apreende o mundo e o capta, e de certa forma o lambe e devora, como força equilibradora de

1 De sorte que o corpo jamais será uma máquina, destituída de sua densidade e de sua interioridade indiscriminável, inclusive na relação necessária contida mesmo em Aristóteles da inexistência de uma matéria prima jamais alijada de sua forma substancial, superando, ainda que em teoria, o dualismo cartesiano que se aprofunda ainda mais na filosofia moderna por um certo paralelismo kantiano em que os reinos – da necessidade (material) e liberdade (humana) – possuam soberania absoluta em sua existência e determinações.

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28 • PARTE I - Territórios e espaços da população na/de rua

RuAção: Das epistemologias da rua à política da rua

um corpo ávido de tudo experimentar. O pensamento só entende parcialmente a si próprio quando o aparelho fonador, o esforço de expirar, expressar, o movimento da língua, a emoção na garganta e, por consequência, o corpo inteiro parturizam a palavra cujo interior, em contexto maior de experimentação sensível, ao mesmo tempo, expressa e vela. Só poderemos ser compreendidos numa interlocução com todos os sentidos, vivências, com a pulsação acelerada do coração, os olhos em chamas sensíveis e, não raramente, reveladoras. Não é o pensado que se diz com o corpo e a língua; é, antes mesmo, um fluxo desequilibrador e em devir que busca o equilíbrio em conceitos que nos ensinam a nós mesmos quem mesmo fomos, quem estamos sendo agora, e quiçá o que poderemos vir a ser daqui a pouco. Só o vivido na parição de sua fabricação pode ser dito e expresso, reconhecendo, ademais, que há uma autonomia diretiva desde os processos de fazimento do corpo, inseparáveis de uma busca biótica por viver e estabelecer relações estéticas, afetivas, cuidadosas com todas as coisas, nas quais a cultura também conosco modela. Não existe um “objeto sociológico”, diz Merleau-Ponty (2001, p. 257). Não existe o objeto longínquo, soberano sem nós, para nós. Nenhuma cultura é reificada, ‘exterior’. Ela sequer existe como ente coisificado2. Compomos possibilidades ativas, conformando, na medida do desejo e dos impulsos, elementos que conformam biosimbolicamente o nexo de tudo com uma realidade, mutante, inquieta, autopoiética, polissêmica e inesgotável. Não existirá, contudo, um antropocentrismo. Ninguém é nada fora da relação! Sob certo ponto de vista, os outros e as coisas e seu mundo nos precedem. Somos um milagre do dom.

2 É isso que Merleau-Ponty chamava de endo-ontologia, isto é, a impossibilidade de se elaborar uma ontologia desde o exterior. “Não existe mundo sociológico, o ser transita no todo. Não há um exterior hegeliano. Não há um fora que não se refira também a um dentro, movimento revulsivo entre a carne, o estofo meu e do mundo. E todas as coisas escondem um olhar do mundo e a carne das coisas me toma como delas, e eu me deixo tomar sendo delas.” Toda apreensão do mundo se dá no corpo próprio, e se estende a toda carne (PASSOS, 2013). Lembra ainda Carbone (2010): “Uma ontologia que não se pode elaborar senão do interior do horizonte do ser no qual os entes se encontram colocados”.

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A percepção dos moradores de rua com o corpo próprio em estar no/ao mundo • 29

RuAção: Das epistemologias da rua à política da rua

É na complexidade de identidades misteriosas que o corpo, a cultura e o meio se tornam artefatos em criação. Nem a cultura para esta pessoa, nem esta pessoa para a cultura, exprime o que se passa de maneira adequada. A cultura adquire, na vivência imediata, potencialidades de criação para as quais não existem caminhos; nem existiam como veredas, antes que a relação as parisse.

Esse é o caminho desta investigação. Realizamos entrevistas com moradores de rua do município de Cuiabá, os quais foram ouvidos em seus sentimentos com os nossos, suas emoções com as nossas, seus sonhos com os nossos, suas aflições com as nossas, e assim por diante. Isso sequer é uma escolha: isso é a condição! Tais falas foram registradas em caderno de campo, digitadas e analisadas a partir das vivências “corpo”, “percepção”, “mundo” e “carnalidade do ser” – que tem em nós os ecos universais de toda a carne.

Quanto à organização da pesquisa, neste recorte específico, cada pessoa entrevistada foi identificada com letras maiúsculas, para manter o nome dos entrevistados em sigilo, de acordo com a solicitação dos mesmos. Havia, contudo, liberdade aos pesquisadores e pesquisadoras para melhor expressarem, de forma criativa, essa dimensão ética.

Pudemos observar as seguintes vivências que selecionamos de longas falas. O entrevistado CLO dizia que sua vida mudou radicalmente, e que saiu “do luxo ao lixo”. Antes de ir morar na rua ganhava muito dinheiro, com produtos de cosméticos, mas acha que o dinheiro subiu à cabeça, achando chique, bem alimentado, mas já era, conforme sua expressão, “maconheiro de plantão. Frequentava baladas, mas você acha que o dinheiro não vai acabar”.

Hoje, ele afirma que “minha vida está um sobe e desce; sempre que eu recaio, fico na rua”. Afirma ter passado por mais de 30 internações e em nenhuma chegou a concluir o tratamento.

Dada sua experiência como morador de rua, contraditoriamente, percebe que, de um lado, “a rua não é tão ruim, ela julga pela cara”. Se ele está vestido de forma social, vai perto do shopping e não se identifica como morador de rua, então pede ajuda das pessoas para combustível, diz que seu carro parou; as pessoas ajudam. De outro, afirma que “a rua é a pior coisa, a droga faz você esquecer que está na rua”.

Então, conclui: “Provando da rua, você percebe: coitado do

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morador de rua; ele não é uma má pessoa, só que ele perdeu o controle, nunca vi um morador de rua sem vício”. O entrevistado RAF discorda desta percepção de que todo morador de rua tem vício. Diz que conhece moradores de rua os quais não têm vícios e estão na rua porque optaram por morar nela.

O morador de rua CLO diz que não teve atitudes ‘de cuidar’ para consigo, foi entregando-se ao vício cada vez mais; e nem para com o outro, seus clientes, com os quais realizava sua atividade profissional; e nem também para com sua mãe e sua esposa, que o apoiavam nos tratamentos de reabilitação. Hoje não mais, uma vez que ele não concluiu “nenhum tratamento, sempre fugindo das internações”.

Conta-nos que, no início de suas internações, sua família deu muito apoio, principalmente a mãe, mas ele não ficava até o termino das internações demandadas pelas instituições. “Com o tempo, sua família não foi mais acreditando nele; não é que sua família não se importasse, mas é que eles vão deixando de acreditar”, provavelmente fugindo do sofrimento reiterado que adquiria um sentido inútil, por não realizar as condições necessárias que se contrapusessem às angústias do não consumo, e um certo internamento, ele mesmo punitivo.

Buscando compreender tais olhares, eles mesmos confirmadores da jaula inquebrantável da dependência, os moradores e moradoras em condição de rua, Merleau-Ponty – que se nutre com as informações da Biologia, Neurociências, Psicanálise, Antropologia – menciona que a realidade está também vinculada aos nossos olhos que geram padrões que conversam com a cultura “por dentro” e “por fora” num emaranhado também constituinte e constituidor que, em grande parte, gera e cria a realidade, que também dependerá do ângulo do qual partimos; nossos sentidos – apesar de tudo – não nos enganam ,como queria Descartes, sequer se afastam de nós.

Por outro, nosso olhares, também, não retratam o mundo em totalidade, mas conversam e trocam possibilidades de relações que fazem o mundo e nos fazem. Nesse caso, ao olhar o mundo, a partir somente da sua realidade e estendendo-o aos demais, o morador de rua CLO não retrata toda a realidade presente nas relações de parturição de um mundo que não é, está sendo. Por outro, ele traz, na perspectiva do olhar dele, um mundo também real do ponto de vista de sua experiência corporal, do lugar no qual se encontra, e sob o impacto da própria relação conosco, pesquisadores e pesquisadoras.

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RuAção: Das epistemologias da rua à política da rua

Olhava os outros moradores a partir de si próprio, enriquecido este olhar pelo estranhamento, RAF aduz. Ele parece olhar os demais em sua singularidade e pluralidade, e reconhece que há situação em que os moradores na rua ‘optam’ ou são compulsoriamente abandonados, e precisam morar nas ruas, por condição de poder retornar à sua casa, à sua família, à sua origem. Mas também descobrem nela uma solidariedade, um carinho, uma ajuda que não encontraram então entre os seus e, a partir de sua condição, podem ser cuidados e, de certa forma, protegidos e amados por si próprios incondicionalmente. Ao morar nela, conseguem conjugar a dependência, seus “vícios” compreendidos como necessidades para poder viver em condição de tolerância, ainda que possa existir uma ambivalência, que não se limita ao querer morar na rua, mas se acresce do desejo de uma socialidade que lá está, de uma cultura do respeito à individualidade, que agrega, ainda, o desejo de poder estar e querer morar na rua.

Atualmente, o entrevistado CLO diz acreditar que a pessoa tem que cuidar de si, ter responsabilidade. Como exemplo, busca compreender sua vida e diz o seguinte: “Eu não entendo, quando a minha vida se organiza, estou estabilizado no amor, no trabalho, [pausa] há recaída” , dando a entender que é talvez porque se afastou de Deus ou porque o medicamento o atrapalha.

Eis aqui uma intencionalidade que dirige a pessoa em busca do reconhecimento de que a pessoa se apresenta por seu corpo, não como uma exterioridade, ou uma casca – ele é esse corpo. É ele que lhe dá a condição de pensar, que sequer passa por uma operação puramente espiritual ou mental. Não me conheço sem minha fala. Não há cultura sem linguagem, e linguagem alguma se separa da natureza. Em Merleau-Ponty, trata-se de um quiasma, pelo qual não há duas coisas, mas uma só, que se expressa em diferentes dimensões do mesmo, como por uma deiscência, uma fenda, uma bifurcação.

Como cada pessoa é única, mas convive em uma cultura que deseja socializar um só padrão, ela gera, por assim dizer, um estratagema imaginário de que o diverso não é captado senão pelo que traz de comum. É bem provável que se abram os portões das intimidades, esfacelem-se os cânones do interdito e do proibido e as pessoas se encontrem nuas no seu desejo de poderem se ler pela diferença que escapa à cultura.

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A cultura é, antes de tudo, um cultivo de padrões de nivelamento, de aprendizagem de dispositivos desejáveis que, impostos, diminuem a complexidade do que é, em cada pessoa, singular – essa maneira doida e impertinente de fazer aparecer o interditado. Trata-se de se expor aos desejos proibidos, às necessidades interditadas, aos sentimentos proibidos, e à busca de viver as relações no mundo do sensível, mais do que no mundo do dever ser – esta constante relação para consigo, com o outro e com o mundo, sem se renunciar como expressão de valor. Uma pessoa que busca compreender-se, encontrar-se, decifrar as marcas que seu corpo apresenta diante do mundo, um mundo ambivalente, que também se apresenta à pessoa, de incompletudes, ambos – ele/a e o mundo. Uma pessoa existencial, de intencionalidade, espiritualidade, carnal, que dialoga com as coisas e coloca sentido nelas, ressignificando-as e querendo mais como expressividade selvagem, ao longo de sua vida.

Para Merleau-Ponty, o corpo não se circunscreve, como se costuma compreender, ao aspecto biológico. Abarca outras dimensões da vida – biopsíquica, cultural, imaginária, artística, afetiva, espiritual – de forma indissociável, portanto um corpo feito de um emaranhado de percepções, sentidos nômades, através do incontido movimento de busca, individual e coletiva, que tanto pode abrir ou fechar ‘realidades’ ou ações à pessoa, que está no mundo e com o mundo, com as coisas, com os outros eus, ao mesmo tempo em um mundo ela também, que a precede, e que sequer se conforma a ser sempre o mesmo.

Nessa configuração, Merleau-Ponty (2009, p. 86) indaga:

[...] a questão é saber se nossa vida, em última análise, se passa entre um nada absolutamente individual e absolutamente universal por trás de nós, e um ser absolutamente individual e um absolutamente universal diante de nós, com a tarefa para nós incompreensível e impossível de devolver ao Ser, sob forma de pensamentos e ações, tudo o que dele tomamos, isto é, tudo o que somos – ou de toda a relação minha com o Ser até na visão, até na fala, não é uma relação carnal, com a carne do mundo, onde o ser ‘puro’, só transparece no horizonte [...].

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Nesse caso, um sujeito que busca o sentido de sua existência, correlacionando-o com sua experiência de vida, pessoal e coletiva, mas não finita, concluída, pois a incompletude está sempre lhe batendo à porta. Como diz o autor (1948, p. 50), “nesta situação ambígua [...] não conseguimos encontrar repouso absoluto”.

Cada pessoa carrega em si sinais de existência – medos, sonhos, esperanças, sofrimentos, conflitos –, dada sua experiência de vida no e com o mundo. Para Merleau-Ponty (1948, p. 08), “nossa dignidade é nos entregarmos à inteligência, que será o único elemento a nos revelar a verdade do mundo”. Inteligência compreendida como um intuslegere, isso é, entrar dentro para ler sob outra perspectiva que aquela do sobrevoo.

Como exemplo, ainda, desse sobe-e-desce, o morador de rua RAF diz também não entender: “É só eu envolver com uma mulher e discutir, eu recaio”. Então, “fumar é um subterfúgio”.

Segundo o pensamento merleaupontyano, somos seres encarnados e obrigados a nos movimentar sobre a Terra. Assim, o homem não é um espírito e um corpo, mas um espírito-com-um-corpo, que só alcança a verdade das coisas porque seu corpo está como que encravado nelas.

O Ser é o que exige de nós criação para que dele tenhamos experiência, porque entre a realidade dada como um fato, instituída, e a essência secreta que a sustenta por dentro há o momento instituinte, no qual o Ser vem a ser. [...] filosofia e arte, juntas, não são fabricações arbitrárias no universo da cultura, mas contato com o Ser justamente enquanto criações (MERLEAU-PONTY, 2009, p. 166).

Nesse sentido, a busca da Fenomenologia é mostrar uma plataforma universal entre nossa condição humana universal e as dimensões que nos aproximam. Também é impossível negar que o mais universal em cada um de nós é que todos somos diferentes.

Não há uma cesura entre o preconceito pueril de que só existe o perverso, de um lado, e só existe o bem, do outro. Esta “higienização ética” só é obtida pela identificação de um lugar do lixo, que exonera o feio e o violento em um lado isolado. Isso provocou a grande luta epistemológica da Fenomenologia.

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RuAção: Das epistemologias da rua à política da rua

O professor Fabio Di Clemente (2010) afirma:

Trabalhando sobre o retorno husserliano ao ‘mundo da vida’ (Lebenswelt), ele pensa o ‘aparecimento’ da vida e do mundo (natural, social, histórico) sem nenhum resíduo dualista e reducionista. A esse resguardo, podemos falar de um ‘secreto natal’ que a natureza exibe, qual ‘solo’ (Boden) da vida, ‘englobante’ de circularidades dialéticas. Em virtude dessa Natureza, os animais chamados de máquina, até os seres humanos, estabelecem uma relação ‘em duplo sentido’ (Fundierung) entre fundante e fundado, de descendência husserliana; relação que implica não apenas o fato de conjugar a instância do todo com as partes, da unidade com a diferença, do universal com o particular, da imanência com a transcendência, e das outras correlatas, mas, ultimamente, a necessidade de saber fazer tudo isso sem pressupor princípios do exterior e do interior de um determinado fenômeno, sem justapor ‘movimentos contraditórios’, sem, enfim, fazer uso de ‘diplopias’ reflexionantes. O fato é que se trata de saber conjugar tudo isso sem poder estacionar num lado ou noutro da relação. Dessa maneira, a filosofia é reconduzida à ordem da ‘interrogação’, não da solução ‘lógica’ de um dado problema. A partir disso, acredito, ramifica-se a ‘atualidade’ de Merleau-Ponty.

Nunca foi tão importante a luta de todos e todas em todas as direções e âmbitos. Não basta indignação ética, é preciso muito mais. Política de intervenção, de geração de políticas públicas afirmativas de Estado, e não de governos. Reforma Política necessária, que controle os perigos de um capitalismo que contemporaneamente emerge e dá braços ao nazifascismo, no que tange ao extermínio dos diferentes.

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RuAção: Das epistemologias da rua à política da rua

A percepção dos moradores de rua sobre estar no mundo

Segundo Merleau-Ponty, há sempre uma troca entre homem e mundo, e esta vai se transformando ao longo da vida de cada pessoa que olha, sente, relaciona-se, age e ressignifica estar num mundo enigmático e inacabado; um sujeito de incompletude que vê este mundo e não o apreende em sua totalidade.

O autor é profundo em sua experiência ao falar sobre a “carnalidade do Ser”; no entanto, não se delonga. A cada palavra evocada, é como se o corpo se perdesse em sua própria carne, ou o mundo em si mesmo. Ou talvez porque a “carnalidade do Ser” exista e/ou ocorra de maneira tão sutil que pode passar despercebida às pessoas, afinal a carne é um elemento do Ser, exige tanto do visível quanto do invisível.

Como exemplo, a linguagem, isto é, a fala, ao se pronunciar se estende e, ainda, prolonga-se no invisível com seus desdobramentos: significados, semântica, etc. Há também o olhar, que não se limita apenas ao que vê, mas ao que comunica, dialoga, expressa realidades, comunga compreensão mútua, etc. Há, daí, um “entrelaçamento e solidariedade” entre o mundo visível e invisível.

Para o autor, o mundo, como se nos apresenta a princípio, nos parece não ser difícil de ser compreendido, mas, quando passamos a indagá-lo, saber quem somos, quem é este nós, este outro, o mundo passa a se nos apresentar de maneira inconclusa, e os nossos sentidos, que antes pareciam dar conta das coisas ao nosso redor, passam agora a não ser mais capazes de apreendê-lo em sua totalidade, ao contrário, nossos sentidos nos enganam, podendo nos iludir, mas, ainda assim, só em parte. O que aparece é ainda o que é. Não há absoluta dissociação entre o SER e a APARÊNCIA, do ponto de vista da Fenomenologia.

O morador de rua CLO, atualmente, lança a seguinte indagação a si mesmo e ao outro, seja o psiquiatra ou as entrevistadoras, ambos como extensão de si mesmos: “Fica aqui a minha pergunta: o que é o meu vazio? O que é o meu vazio? Se eu estou muito bem, o que é esse vazio? Eu coloco para o psiquiatra. Ele não me responde!”.

O sujeito está, ao mesmo tempo, dentro e fora de si, em uma desproteção, que foi tematizada por muitos filósofos. Um ser encarnado que busca perceber sua vida além do que está imposto, mas não determinado, do que está em parte condicionado

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socialmente, do que é vivido, que, de certa maneira, revela horizontes que, aos nossos passos, recuam sempre. Ou, em outras palavras: o homem é o ser finito numa infinitude e, ao mesmo tempo, uma infinitude no ser finito. Este vazio pode ser aqui compreendido como extensão de si mesmo, a busca dos seus sonhos, o desejo de retomar uma vida anteriormente vivida e que agora se encontra num “sobe e desce”, de ir além de como se encontra atualmente no mundo, de desejar novas respostas, ações e sentimentos ainda não revelados, mas que o corpo almeja (ou o Ser revela) uma dimensão a mais de sua existência no/com o, desvelando-se à própria pessoa.

Podemos dizer que este vazio convoca a pessoa, exige dela a criação para que dela e/ou com ela tenha experiência, ou, como destaca Merleau-Ponty, é sendo que vivemos o ser e não apenas sonhando, pensando, para depois reconhecer que existe.

Teilhard de Chardin, citado por Arnould (2009, p. 7), destaca:

[...] é preciso, sem dúvida, sair do discurso que só pensa no que seria preciso FAZER; é absolutamente necessário interrogar-se sobre o que nós queremos SER. Isso não é fácil, pois não é algo que se regula a golpes de plano econômico, nem mesmo de grandes slogans, do estilo desenvolvimento sustentável etc. E nós temos tal pavor de nos interrogar sobre a fisionomia que gostaríamos de dar à humanidade de amanhã! Preferimos permanecer onde estamos persuadidos de que todos os problemas se resolverão, que tudo voltará a ser como antes... [...].

Os moradores de rua pesquisados noz dizem que são constantemente exigidos a agir com o mundo, tanto no que concerne aos seus desejos pessoais – encontrar respostas às interrogações, formular novas indagações – quanto à nova experiência no corpo em relação ao mundo que, ao que parece, ora estão separados, ora interligados. Isso requer reinventar ações, reaprender a olhar o mundo, em uma nova dimensão. Para o autor (ibid.), não “há coisas acima de nós, mas, sim, sob nós, e corpo sente o mundo ao sentir-se”.

Conhecimento e percepção nunca se fecham, mas se aproximam, complementam-se de outra maneira. Pode-se dizer que a apreensão

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do mundo nunca se dá de forma absoluta e fechada, mas está sempre aberta a novas visões. Ele considera também que ilusão e desilusão são possibilidades humanas.

Coloca em evidência fatores norteadores da percepção, além da linguagem e o intelecto, os sentimentos, a emoção e a cultura. Como diz Chauí (2004), baseando-se em Merleau-Ponty, esta “fecundidade que passa, mas não cessa, é o parto interminável do Ser Bruto e do Espírito Selvagem”.

Estes moradores de rua entrevistados dizem não compreender por que as pessoas não acreditam neles quando pedem dinheiro para alimentação, ou por estarem em re-adaptação, portanto precisando de ajuda. Ao contrário, como diz o morador CLO, quando mente que o dinheiro que pede é para o combustível do carro, elas doam, embora ele acredite que tal ajuda, é claro, se deva ao fato de ele estar bem apresentado/vestido socialmente, ou, noutras palavras, “sou mais um cara social de preto”. Segundo ele, “a rua julga pela cara”.

Para Merleau-Ponty (1948, 54.), “a ambiguidade e a incompletude estão inscritas na própria textura de nossa vida coletiva e não somente nas obras dos intelectuais”. Ele enfatiza que há uma operacionalidade que permite o entrelaçamento do espaço com o tempo vivido pela pessoa e os significados que atribui a isso.

A experiência destes moradores de rua demonstra que, no cotidiano, é comum buscar se protegerem da própria polícia, quando a esta caberia protegê-los; e, em contradição, ela os submete a uma maior violência.

No que se refere à polícia, o morador de rua RAF diz ter, hoje, encontrado maneiras para que esta não roube seu dinheiro, que ganhou com o trabalho, como cuidar de carro. Segundo ele, quando a polícia o pega fumando, bate e toma, por vezes, seu dinheiro, justificando que foi roubado. Daí, questiona tal morador que são várias notas – pois é de cada carro lavado, polido engraxado – e mostra que não foi uma nota roubada. Pela enorme diferença entre elas, e não uma nota só, não dá para eles, os policiais, verem que não houve roubo? Hoje, afirma ter aprendido uma maneira de guardar o dinheiro, a qual aí a polícia não acessa.

Os moradores de rua denunciam a precariedade dos serviços públicos de saúde a eles destinados. Eles buscam o Centro de

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Referência dos Direitos Humanos como parceiro para suas lutas contra a violência institucional, que lhes nega atendimentos, internamentos e mesmo cuidados, pelo fato de não terem endereço público. Além disso, os serviços, quando existem, já são conduzidos com preconceito. Indigitam a falta do governo em oferecer-lhes atendimento adequado em face do desmonte dos serviços de saúde, educação, proporcionado baixa autoestima, perda da imunidade, contração de doenças infectocontagiosas. Há pessoas que têm cuidado dos moradores das ruas, ou, por percebê-los, dão-lhes alguma ajuda.

Há falta de cuidados com a saúde quando estes moradores procuram os serviços nos centros de reabilitação e não encontram o necessário atendimento. Segundo pessoas que convivem, periodicamente, com o centro de reabilitação, é fundamental que as vagas estejam disponíveis quando eles tomam a iniciativa para o tratamento, o que geralmente não acontece.

Eles dizem querer sair dessa vida, do vício, por isso procuram o CAPEs a fim de encontrar vagas para o tratamento, porém são muito difíceis. De acordo com CLO que, vindo do Paraná e que já passou por vários outros Estados, como São Paulo e Espírito Santo, Mato Grosso é um lugar “muito atrasado” em políticas públicas. “O Estado não dá acolhimento para você ficar resguardado para esperar vaga”.

Segundo estes moradores de rua, há ausência também do governo por não oportunizar um lugar onde possam tomar banho. RAF afirma não gostar de estar sujo, assim como reconhece que as pessoas também não gostam de pessoas quem andam sujas. Como diz, “quando você anda sujo, as pessoas correm, elas se afastam, as pessoas ficam com muito medo”. Diz que, no centro da cidade de Cuiabá, há um lugar em que dão roupas, só que apenas uma peça de cada. Ele afirma que, na rua, sofre muita humilhação e sofrimento; as pessoas são muito ruins.

Quando pedem alimentação, por um lado, há aqueles donos de restaurante que dizem a eles para esperar o final do expediente para ganharem a alimentação, mas, por outro lado, há aqueles que lhes oferecem somente arroz, aí eles comem arroz puro.

RAF diz também estar cansado de ouvir: “Você é um rapaz jovem, bonito, vai trabalhar!”. Afirma que a maioria dos moradores

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de rua é educada para chegar nas pessoas; não roubam, “quem roubam são os noiados”.

Outro aspecto contraditório que nos relatam é que, nos albergues, há drogas. Como fecham cedo, cerca de 20:00 h, caso algum morador de rua queira dar vinte reais para algumas pessoas, elas intermediam a entrada deles. Além disso, quanto às doações de alimentos, os melhores ficam para os funcionários, como frutas, Danone, uva, pera, pêssego, etc.

O italiano Giorgio Agamben (2013) destaca que a pessoa desprotegida pelo Estado de Direito e pela política da cidade está suscetível à violência e sem nenhum amparo, como se qualquer outra pessoa pudesse lhe causar danos sem sofrer nenhuma impunidade. Ou, como designa Walter Benjamin (http://migre.me/oo7AL), são “vidas nuas, banidas”.

No entanto, diz Giorgio Agamben, citado por Ruiz (2013, p. 33): “o homo sacer não só mostra a fragilidade da vida humana, abandonada pelo direito, mas também, e mais importante, revela a existência de uma vontade soberana capaz de suspender a ordem e o direito”.

Estes moradores acreditam que não somente as pessoas deveriam mudar suas atitudes para com eles, mas também o governo, garantindo-lhes espaço nas políticas públicas para suas vidas e seu viver, tanto no que se refere ao respeito à humanidade de cada pessoa e o direito de cada um quanto a proporcionar-lhes segurança, saúde e educação que precisam, uma alimentação adequada às necessidades, sobretudo, dos que se acham enfermos, e também a previdência social, direito de qualquer ser humano. Um viver de acordo com a dignidade e a autonomia que cada pessoa necessita ter, no caso, aqui, os moradores de rua. De seres invisíveis, que passem a ter visibilidade para a sociedade, no mundo e com o mundo.

À guisa de conclusão

Ao buscar compreender a percepção dos moradores de rua com o corpo e estar no mundo percebemos que constantes angústias, aflições, sonhos perpassam na vida deles. Tornou-nos também visível a ‘invisibilidade’ que sofrem nessa sociedade excludente, violenta, que apresenta obstáculos à convivência com o diferente.

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Como exemplo, os moradores de rua desta pesquisa relataram-nos que vivem desprotegidos e em contínuas ameaças de violência, às vezes pelo cidadão comum, outras por aqueles que, sob o Estado de Direito, deveriam oferecer-lhes proteção. Como diz Walter Benjamin (Ibidem), são vidas nuas, banidas. Ou, como destaca o italiano Giorgio Agamben (2013), a pessoa desprotegida pelo Estado de Direito e pela política da cidade está suscetível à violência e sem nenhum amparo, com se qualquer outra pessoa pudesse lhe causar danos sem sofrer nenhuma ação da lei.

É o que acontece com os moradores de rua de Cuiabá, que estão à mercê dos espaços instituídos, que impõem ações de violência, como atitudes agressivas à dignidade humana, sendo que deveriam cuidar deles, protegê-los, no entanto são os que mais lhes impõem ações coercitivas, muitas vezes com grau dobrado de opressão.

Podemos dizer que este trabalho nos revela ainda que a relação do morador de rua com o corpo e com o mundo exige uma atitude que vai para além do cotidiano, de seu olhar e sentir o mundo. É necessário, contudo, reaprender a olhar este mundo e reconhecer a corporeidade comunicativa, sensível e reflexiva como parte dele. O destrato de quem quer que seja implicará em uma escalada cada vez maior de violência e extermínio de todos e todas. É preciso muito carinho para com aqueles que não suportam a violência diuturna de um processo civilizatório maldoso e perverso.

É preciso compreender que sempre existirão dimensões tensivas entre seres humanos, que precisarão continuamente ajustar formas criativas de estimular o diálogo, a cortesia, a compreensão, a reconciliação e a capacidade de garantir, de maneira adequada, um certo equilíbrio na tensividade.

Além disso, há a necessidade de se estabelecerem normas criativas, não calcinadas e exteriores, mas capazes de serem dadas à luz dentro de processos vivos, mutantes e imprevisíveis. Qualquer escolha terá que acolher a sua flexibilidade e atualização às questões novas, antes inexistentes; e também que permita tolerância, diálogo, pois, de certa forma, o ser humano, como aliás todas as formas de vida, é um fim em si mesmo na convivialidade com os outros. Sua existência é a existência possível de todos, tudo e todas. Sua contingência, mortificação e aniquilação será o desaparecimento de todos, tudo e todas. Os moradores e moradoras e trabalhadores,

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trabalhadoras, catadores e catadoras sabem que é dentro dessa ambiguidade que realizarão suas ações com o mundo e consigo mesmos, e darão continuidade ao seu viver. Há sempre uma troca com o mundo e com os outros, mesmo aqueles que não querem sair da rua, mas querem apoio do governo através de instituições, ONGs, movimentos, pastorais, igrejas e organizações e ações populares que os ajudam na luta por espaços que os auxiliem a se libertar do vício, a ter um lugar para higienização, alimentação, uma vida com respeito e direitos, apenas mantendo um modo de vida diferente.

É preciso permitir o acesso ao acompanhamento daquelas pessoas que solicitam ajuda. Uma vigilância social que não instaure processos de criminalização inóquos e iníquos, erigidos em nome de uma divisão falsa entre santos, de um lado, e infiéis, do outro. Todos e todas, sem exceção, somos, uns(umas) e outros(as), as duas coisas. Com o agravante: quanto mais poder, dinheiro e propriedades, as pessoas, pela cultura autoritária que temos, são as que oferecem risco maior à sociedade como um todo, pois justificam a acumulação que gera o que falta para tantos outros e outras. Poderiam estas pessoas, ao contrário, usar o poder para promover uma maior solidariedade, mas, neste sistema, isso são migalhas e não a tendência. É preciso jamais justificar maldades e perversidades com seres humanos, com a Terra e seus habitantes, pois a destruição da vida é o caminho da destrutividade e da morte.

Referências

ARNOULD, Jacques. Teilhard e a descoberta da noção de Cristo cósmico. Revista do Instituto Humanitas Unisinos. IHU ON-LINE, [s.l.], a. 9, p. 304, 17 ago. 2009.

CARBONE, Mauro. Uma obra em debate com o cartesianismo. Revista do Instituto Humanitas Unisinos. IHU ON-LINE, [s.l.], 2010. Disponível em: <http://migre.me/fdago>. Acesso em: 10 dez. 2014.

CHAUÍ, Marilena. Merleau-Ponty: a obra fecunda. Martins Fontes: São Paulo, 2004. Disponível em: <http://revistacult.uol.com.br/home/2010/03/merleau-ponty-a-obra-fecunda>. Acesso em: 10 nov. 2014.

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DI CLEMENTE, Fabio. Corpo e conhecimento. Disponível em: <http://migre.me/fdIXM>. Acesso em 23 jun. 2013.

_____. Um convite à radicalidade. Disponível em: <http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_content&view=article&id=4158&secao=378>. Acesso em: 10 dez. 2014. (Texto de 2010.)

DUPOND, Pascal. Vocabulário de Merleau-Ponty. São Paulo: Editora WMF/Martins Fontes, 2010. (Coleção Vocabulário dos Filósofos.)

MERLEAU-PONTY, Maurice. Conversas – 1948. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

_____. O visível e o invisível. São Paulo: Perspectiva, 2009. (Debates Filosofia.)

PASSOS, Luiz A. Um autor em diálogo com o mundo contemporâneo. Revista do Instituto Humanitas Unisinos. IHU ON-LINE. Merleau-Ponty. Um pensamento emaranhado no corpo. [s.l.], a. 11, p. 378, 31 out. 2011. Disponível em: <www.unisinos.br/ihu>. Acesso em: 10 nov. 2014.

_____. O corpo, carne e ser em Merleau-Ponty: a relação indissociável das coisas com o mundo, com tudo e todos. In: CONGRESSO DE FENOMENOLOGIA DA REGIÃO CENTRO-OESTE, 5., Goiânia-GO, 2013. Anais... Goiânia-GO: UFG, 2013. p. 1-5. Disponível em: <https://anaiscongressofenomenologia.fe.ufg.br/up/306/o/Luizpassos.pdf>. Acesso em: 09 dez. 2014.

ROCHA, Maria Alice de Castro. O corpo, um “santuário” em relação com o outro. Revista do Instituto Humanitas Unisinos. IHU ON-LINE. Merleau-Ponty. Um pensamento emaranhado no corpo. [s.l.], a. 11, p. 378, 31 out. 2011. Disponível em: <www.unisinos.br/ihu>. Acesso em: 10 nov. 2014.

RUIZ, Castor Bartolomé. Homo sacer. O poder soberano e a vida nua. Cadernos IHU em formação,[s.l.], a. 9, n. 45, 2013.

SANTOS, Boaventura de Souza. Pela mão de Alice. O social e o político na pós-modernidade. 14. ed. São Paulo: Cortez, 2013.

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RuAção: Das epistemologias da rua à política da rua

_____. O direito dos oprimidos: sociologia da crítica do direito. Parte 1. São Paulo: Cortez, 2014.

TODOROV, Tzvetan. A vida em comum. Ensaio de Antropologia Geral. São Paulo: Papirus, 1996. (Coleção Travessia do Século.)

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Em busca de uma cartografia da população de rua

Gil Passos de MATTOS

Solange T. de Lima GUIMARÃES

Introdução

Nesse capitulo vamos tratar de cartografia, numa perspectiva de seu uso a partir de uma posição crítica, de cunho social. Como afirma Paulo Freire (1989, p. 13): “o importante é saber por quem estamos fazendo”. Tomamos uma posição voltada para os menos favorecidos da sociedade, ou seja, para os oprimidos e/ou em situação de vulnerabilidade social. A Cartografia pode desempenhar em prol dessas pessoas, grupos ou comunidades um papel fundamental no delineamento das territorialidades materiais e imateriais determinadas, em justaposições, como ocorre, a exemplo, no caso de populações tradicionais, entre outras, considerando as demarcações de seus territórios, dadas suas especificidades socioculturais, permitindo leituras mais complexas e reflexões mais adequadas às realidades vivenciadas. Esse é um dos objetivos traçados desde o início do projeto RuAção, de que essa pesquisa em curso, possa vir, eventualmente, servir como subsídio para a elaboração de políticas públicas de caráter sociocultural e econômico, bem como de segurança social, direitos e dignidade, voltadas aos grupos de populações considerados expostos a conjuntos de circunstâncias que determinam condições de riscos e vulnerabilidades sociais, de modo que contribuam para a melhoria da qualidade de vida destas pessoas que vivem da ou em condição de rua em seu cotidiano.

Neste sentido, partimos de uma visão da Cartografia que não somente nos proporcione uma maneira diferenciada de ver/perceber o mundo e suas imagens, de acordo com as multifuncionalidades e pluriatividades de suas paisagens, de modo que, seja compreendida como uma “Cartografia Social” (PAULSTON; LIEBMAN, 1994), que nos conduza a um diálogo visual, como uma maneira de comunicar as formas como vemos e compreendemos as transformações e as mudanças sociais em desenvolvimento no mundo que nos rodeia.

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Entendemos o espaço como algo indissociável das pessoas, o espaço exterior a nós, como um ente em si, sem nós, como ambiente exterior, é só uma percepção errônea que a modernidade criou em nossa cabeça com a droga do conceitualismo ocidental que tirou nossa relação com o mundo. Tudo é relação não espaço que não seja humano. Nessa perspectiva o território nunca será um ente fora do afetivo, simbólico, uterino, materno, será relação até o fim para que exista como vida.

Uma forma de representação dos territórios, assim como dos espaços geográficos e suas realidades, são os mapas, utilizados desde a Antiguidade como importantes instrumentos de análise e interpretação da paisagem, tendo em vista que “muitas geografias são compreendidas após o estudo dos mapas” (HEIDRICH, 2011). Os mapas também podem servir “como forma de afirmar direitos territoriais” (ALMEIDA apud VIANNA, 2008, p. 6), como no exemplo do Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia (PNCSA), coordenado por Alfredo Wagner de Almeida, contou com a participação de corpo técnico-científico, representantes de sindicatos, associações, movimentos sociais e cooperativas, sendo considerando como uma significativa experiência de mapeamento social, participativo e dialógico sobre realidades socioculturais distintas e territorializadas, refletindo a historicidade e conflitos e problemas das diversas comunidades.

No que tange aos processos interativos entre a ciência e a socie-dade, mais particularmente, as comunidades locais, Vianna (2008) destaca os relacionamentos desiguais estabelecidos entre pesquisa-dores e os membros destas, partindo de discussões sobre a cons-trução dos mapas e as indicações dos moradores. Estes indicadores resultantes, identificados a partir de uma elaboração coletiva e par-ticipativa representam suas visões de mundo, percepções e inter-pretações das realidades concernente à região, como espaço vivido (FREMONT,1980; GUIMARÃES, 2007), permitindo mediante suas leituras, na ótica de Passini (1994), um aprendizado sobre os problemas dos espaços e, simultaneamente, conseguir pensar as pos-síveis transformações para estes mesmos espaços.

Ao analisarmos os mapas cartográficos tradicionais, em associação aos mapas construídos e elaborados sob uma dimensão dialógica, mesclando as informações técnico-científicas às imagéticas das diferentes comunidades, nos deparamos com materiais de relevantes significados para análises das territorialidades paisagísticas, de modo que tanto os

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processos referentes à cognição e à percepção sejam considerados no que diz respeito às experiências vivenciadas e suas várias representações. Na visão de Wood (1978), uma Cartografia da Realidade dimensionada pelas experiências humanas, pelas realidades percebidas em suas objetividades e subjetividades, aspectos tangíveis e intangíveis, mas nem por isso, não pertinentes aos aspectos das paisagens reais em suas materialidades e concretudes. (GUIMARÃES, 2007).

Visões da Cartografia Social

As perspectivas de mapeamento com características sociais são relativamente recentes e segundo Crampton (2008, p. 85), “nos últimos anos, a cartografia tem escapado ao controle das poderosas elites que exerceram a dominação sobre ela por várias centenas de anos”. Tradicionalmente, os mapas foram utilizados como instrumentos de poderes político-econômicos, militares, marcados pelas ações de atores hegemônicos, como destaca Lacoste (1973, p. 1):

O mapa, talvez a referência central da geografia, é, e tem sido, fundamentalmente um instrumento de poder. Um mapa é uma abstração da realidade concreta que foi desenhado e motivado por preocupações práticas (políticas e militares); é um modo de representar o espaço que facilita sua dominação e seu controle. Mapear... é servir aos interesses práticos da máquina estatal.

Ao analisar alguns trabalhos nesta linha de estudos, logo, podemos perceber o caráter duplo que os mapas têm, ou que pelo menos apresentaram historicamente: ora utilizados no sentido da dominação, ora como uma ferramenta de libertação, mas com certeza, em ambos os casos, utilizados como uma ferramenta de poder.

No final do século XX, a atividade de mapeamento sofreu os efeitos de mudanças técnicas relativas à captura, tratamento e apresentação de dados com referência geográfica definida, que permitiu tanto a expansão do seu campo de ação, como do universo de sujeitos envolvidos no processo de mapeamento. A disseminação social dos mapas decorrente do advento das geotecnologias na produção cartográfica tem sido entendida como portadora de

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múltiplos efeitos, desde a multiplicação democratizante das formas de interpretar o mundo, até o acirramento dos mecanismos autoritários de controle. Fox et al. (2008) defendem a hipótese de que as tecnologias de informação espacial ultrapassam a fronteira de sua utilidade, e tornar-se-ão praticamente imperativas, podendo gerar efeitos paradoxais ou “de revanche”. Neste caso, “os atores locais podem escolher estrategicamente adotar ou rejeitar as atividades e tecnologias do mapeamento, ou podem ser constrangidos pelas relações políticas, econômicas e sociais mais amplas a não agir diferentemente” (FOX et al., 2008, p. 76).

Fox et al. (2008) destacam o fato de que em um Workshop, realizado em 2003 na Tailândia, sobre Tecnologias da Informação Espacial (TIEs), os participantes consideram as TIEs uteis para vários propósitos. “As comunidades podem planejar melhor a gestão de seus recursos, acompanhar a implementação de projetos de desenvolvimento e resolver conflitos por recursos no interior de suas comunidades”. Podem ainda, atenuar conflitos no interior de comunidades, revelando esse caráter duo dos TIEs:

Um dos efeitos paradoxais das TIEs é que os esforços de mapeamento iniciados para resolver conflitos entre comunidades locais e agências governamentais freqüentemente resultam num crescimento do conflito entre povoados e no interior dos povoados. À medida em que as fronteiras permanecem fluidas e flexíveis, definidas apenas na imagem mental da paisagem de cada pessoa, os conflitos entre interesses em competição podem ser minimizados. Uma vez que as fronteiras são mapeadas, entretanto, as imagens conflitantes da realidade não podem ser mais desconsideradas e devem ser tratadas (East-West Center Workshop on Spatial Information Technology (SIT) in Community-Base Mapping, Chiang Mai, Tailândia, 23 - 27 Junho de 2003 apud Fox et al, 2008, p. 79)

Os mapeamentos reestruturam o controle sobre o conhecimento a respeito dos recursos locais (FOX et al., 2008), sendo que os mapas dão aos membros das comunidades maiores conhecimentos sobre

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os seus recursos. Para os participantes do workshop as iniciativas de mapeamento comunitário também beneficiaram efetivamente governos locais, fornecendo-lhes informação gratuitamente. Fox et al. (2008, p. 78) relata que “Em Sarawak, um tribunal reconheceu os mapas comunitários como documentos legais na sustentação de demandas por terra. Em resposta, o Estado Sarawak criou uma lei tornando ilegal o mapeamento comunitário sem a assistência de um cartógrafo certificado.”

Embora os mapas, como afirma Crampton (2008, p. 78), sejam ativos, “eles constroem ativamente o conhecimento, exercem poder e podem ser poderosos meios para promover a transformação social”, porém, a maioria da população nunca utilizou um mapa. E nos casos de utilização, quando utiliza, na maior parte dos casos na fase escolar, usa-o de maneira meramente descritiva e não reflexiva e/ou crítica. Esta análise também é compartilhada por Jacques Lévy (2008, p. 154):

A imensa maioria de nossos contemporâneos nunca utilizou um mapa, mesmo considerando um quadro de práticas que poderiam, podemos pensar, serem significativamente facilitadas por esta utilização: mobilidades, escolha de localizações, apropriação de redes e de territórios. O mapa é hoje, ao mesmo tempo, supervalorizado e largamente ignorado. O mundo do mapa continua a ser um domínio à parte que traz uma série de efeitos específicos de linguagem, muito além de sua mensagem explícita.

Acredita-se que essa realidade vem mudando, ainda que de maneira lenta. Pois com a “disciplinarização, surgiu a crítica e a contestação, cujo alvo foi à própria abordagem científica, ou como um meio de promover formas de compreender o mapeamento, excluídas pela abordagem científica” (CRAMPTON, 2008, p. 95). Lévy (2008, p. 166) nos apresenta ainda uma questão muito pertinente a essa discussão: “Seremos capazes de produzir mapas ao mesmo tempo legíveis, utilizáveis e pertinentes para representar os espaços complexos do mundo contemporâneo?”, elucidando que “depende em parte do estatuto futuro da cartografia, simples técnica de transcrição ou verdadeira ferramenta para a reflexão”.

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Mapas como instrumentos de reflexão: comunidades e representações

Revelando os quilombos no Sul

Um exemplo que podemos citar a respeito dos mapas como instrumentos de reflexão, foi o mapeamento “Revelando os quilombos no Sul”, elaborado pelo Centro de Apoio ao Pequeno Agricultor, onde foram mapeados os quilombos da região sul do estado do Rio Grande do Sul (RS). “A criação do mapa temático das comunidades quilombolas muda a auto percepção de toda uma região que começa a enxergar sua história e realidade de maneira mais realista e inclusiva” CAPA, 2010, p. 5).

Em participação recente no projeto “O Pampa Negro: Arqueologia da Escravidão na Região Meridional do Rio Grande do Sul (1780-1888)”, coordenado pelo arqueólogo Prof. Dr. Lucio Menezes Ferreira, do Departamento de Antropologia e Arqueologia da Universidade Federal de Pelotas, nos foi proporcionada a oportunidade de buscar por meio de mapas a compreensão das espacialidades da vida escrava, correlacionadas às atividades saladeiras, nas antigas charqueadas de Pelotas.

Nos trabalhos arqueológicos são múltiplas as aplicações dos Sistemas de Informação Geográficas (SIGs), tendo em vista que podem ser utilizados tanto no planejamento dos trabalhos de campo, como suporte para a tomada de decisão na escolha de sítios de interesse arqueológico, principalmente quando utilizadas técnicas de sensoriamento remoto, com o uso de imagens de satélite e de radar. Neste contexto, as aplicações mais recorrentes dos SIGs são nos trabalhos de espacialização e catalogação de materiais arqueológicos, processos que podem ser potencializados com eficácia quando utilizadas as ferramentas de consulta espacial e de atributos, podendo servir como uma ferramenta de auxílio no reconhecimento de antigos e atuais padrões de assentamentos. No caso desse projeto, os conhecimentos cartográficos foram aplicados à Arqueologia, mapeando os fluxos da escravatura no âmbito de todo o Brasil e de outros materiais em toda a região do Atlântico, auxiliando no processo de reconstrução histórica regional.

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Territórios negros na região central e na região das antigas charqueadas do Rio Grande do Sul: fluxos de memórias e

fronteiras étnicas em uma perspectiva comparativa

Outro projeto em curso no qual participamos e onde também utilizamos a cartografia numa perspectiva social, foi o projeto “Territórios negros na região central e na região das antigas charqueadas do RS: fluxos de memórias e fronteiras étnicas em uma perspectiva comparativa”, vinculado ao subprojeto “Elaboração de relatórios antropológicos de caracterização histórica, geográfica, econômica e sociocultural nas comunidades remanescentes de quilombos de Fazenda Cachoeira, Moçambique e Monjolo”, coordenado pela antropóloga Profa. Dra. Rosane Rubert, do Departamento de Antropologia e Arqueologia da UFPEL. Como o próprio nome sugere, trata da elaboração de um Relatório Técnico para Identificação e Delimitação (RTID) de terras para comunidades tradicionais quilombolas.

O trabalho nessas comunidades foi desenvolvido sob uma abordagem etnográfica, no âmbito da observação e pesquisa participante. Nessa pesquisa foram identificados os lugares apontados pelas próprias comunidades como relevantes, tanto para a história do quilombo, como para o presente, com a indicação de locais de uso tradicional quilombola, a exemplo de áreas de coleta, de caça, cercados (que é como são chamadas as áreas de plantio). Também se buscou evidenciar marcos territoriais de valor simbólico e funcional na paisagem, tais como os cerros, elevações de terreno de destacada visibilidade paisagística, que em geral serviam e ainda servem como mirantes, possibilitando visadas amplas das áreas de entorno. Ainda foram mapeadas grutas, como é o caso da chamada “Casa de Pedra”, na comunidade quilombola “Fazenda Cachoeira”, em Piratini (RS), lugar onde são realizados festas e encontros da comunidade, além de contar com várias histórias envolvendo casos fantasmagóricos e tesouros, por exemplo. Além do histórico de área original de quilombos, pode ser apontada como esconderijo em tempo de antigas guerras que ocorreram na região, como a Revolução Farroupilha. Também foram mapeadas antigas taperas, cemitérios e etc., ou seja, áreas específicas que evidenciam a presença dessas comunidades de negros desde há muito tempo na região meridional do Rio Grande do Sul. Destacamos, que estes fatos até alguns anos atrás eram poucos abordados pela historiografia rio-grandense.

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Projeto RuAção

Assim como nos trabalhos realizados nos quilombos anteriormente, os trabalhos desenvolvidos no âmbito do Projeto RuAção, também possuem um viés marcadamente social, voltado para segmentos de população oprimidos por diferentes circunstâncias espaciotemporais, que apresentam condições consideradas como riscos, perigos e vulnerabilidades sociais ou quando trazem mais de um aspecto, além destes, representando então, uma combinação complexa de variáveis socioambientais específicas.

A participação no Projeto RuAção, ainda que tenha ocorrido à distância, sem contato direto com o grupo pesquisado, se deu no âmbito da elaboração do banco de dados cartográficos, por meio da confecção dos mapas mediante a utilização de SIGs. Para tanto, foram utilizados dois programas, o Google Earth Pro 7.0.3.8542 e o Spring 5.1.8. Com o programa Google Earth foi realizado o georreferenciamento dos casos de entrevistas com as pessoas que vivem da rua e ou se encontram em situação de rua nas cidades de Cuiabá e Várzea Grande. A partir do programa Spring foi organizada a base com as malhas digitais respectivas às ruas, hidrografia, bairros, áreas urbanas, municípios do Mato Grosso, entre outras malhas digitais necessárias para a confecção dos mapas. As fontes desses dados vetoriais foram do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), do Serviço Geológico do Brasil (CPRM) e da Secretaria de Urbanismo de Cuiabá.

Inicialmente foram confeccionados oitos mapas para o projeto RuAção, dos quais destacamos o mapa temático dos casos de vulnerabilidades socioambientais em Cuiabá e Várzea Grande. Nesse produto cartográfico foram mapeados todos os casos de entrevistas realizadas no RuAção, por classes temáticas, sendo registrado um total de vinte e sete classes temáticas de pessoas que vivem da rua ou em situação de rua, abrangendo as mais diversas situações: andarilhos, moradores de rua, usuários de droga, pessoas que tiram seu sustento nas ruas como é o caso de cuidadores de carro, vendedores ambulantes, prostituição e outras diferentes classes, tanto aquelas isoladas como em classes compostas, a exemplo de um morador de rua que é usuário de drogas e flanelinha (profissional da rua que trabalha cuidando e ou lavando carros).

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RuAção: Das epistemologias da rua à política da rua

Consideramos que existem diferentes níveis a serem alcançados para a realização de uma cartografia que considere o espaço vivido dos oprimidos, bem como suas territorialidades. Destacamos três: o primeiro trata de um trabalho de cunho social, voltado para os menos favorecidos da sociedade; o segundo nível seria de realizar uma cartografia capaz de representar os aspectos simbólicos destas comunidades; já em um terceiro nível, seria relativo a uma cartografia construída pelos próprios grupos.

Na pesquisa mencionada sobre a elaboração dos RTIDs das comunidades remanescentes de quilombos, se conseguiu atingir o primeiro e segundo nível, visto que a pesquisa também apresentou um cunho social e conseguiu representar os aspectos de relevância simbólica para os próprios grupos em estudo. Já na pesquisa RuAção até o momento, foi atingido o primeiro nível, mas se acredita que com a sistematização das entrevistas e uso do programa NVivo 101, seja possível atingir o nível de entendimento dos indicadores significativos para este grupo. E, a partir deste ponto, conseguir expressar cartograficamente o que significa viver da rua e ou na rua, pois as pessoas que estão nessa condição é que são realmente capazes de revelar suas realidades, seus valores, desejos, necessidades, expectativas e sonhos.

Na perspectiva da Cartografia Social, destaca-se um exemplo de trabalho que teria atingido esse terceiro nível, que é o projeto coordenado pelos pesquisadores Alfredo Vagner de Almeida (NCSA-CESTU/UEA) e Rosa Acevedo Marin ((UNAMAZ-NAEA-UFPA) – “Projeto Nova Cartografia Social dos Povos e Comunidades Tradicionais do Brasil (PNCSA) – realizado com comunidades tradicionais de distintas regiões do país, onde as próprias comunidades construíram seus mapas (auto cartografia), representando um experiência de mapeamento social, participativo, integrando estratégias de autoafirmação social e resolução de conflitos e problemas, ao mapear não somente seus movimentos sociais, mas também suas territorialidades específicas.(PNCSA, 2014).

1 NVIVO 10 Educational FULL, programa que realiza cruzamentos de mídias, textos, falas, imagens, jornais num único ambiente, representando forma de sistematização, nós, entrecruzamentos de informações e simulação comparativa de ênfases, e importância, por recorrência. O Programa que temos Licenciado pela QRS International, cuja versão é para uso exclusivo de instituições de ensino devidamente registradas no MEC/INEP. 

Inserir mapas antes das considerações (ebook)

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54 • PARTE I - Territórios e espaços da população na/de rua

RuAção: Das epistemologias da rua à política da rua

Considerações finais

O objetivo da Cartografia Social visa um mapeamento que contribua para uma sociedade mais justa, identificando territórios que se entrecruzam imbricadamente e, segundo Acselrad e Coli (2008, p. 31), “as superposições de domínios, as denominadas invasões e os intrusamentos materializam interesses divergentes, manifestos em cada situação concreta, e explicitam a luta por uma definição legítima capaz de fazer valer suas pretensões”. Os mapas como forma de representações de nossas percepções das mudanças sociais sobre os espaços em que nos situamos, devem levar a uma compreensão sobre os sistemas sociais vigentes, trazendo os diálogos visuais entre os diferentes sujeitos, tanto do ponto de vista individual como coletivo, ao converter-se potencialmente em um estilo discursivo e útil, demonstrando atributos e capacidades, o desenvolvimento e as percepções pessoais e culturais que operam no meio social. (PAULSTON; LIEBMAN, 1994).

Mais além ainda, para nós latino-americanos, temos que buscar uma prática técnico, científica e filosófica descolonizadoras, propiciando a integração dos saberes tradicionais, populares, com o conhecimento e as informações técnico-científicas, no caso, as tecnologias da informação espacial, como instrumentos promissores para o desenvolvimento de uma cartografia mais ética e comprometida com as realidades socioculturais, econômicas e ambientais vividas pelos diferentes segmentos das sociedades, estejam localizadas em áreas urbanas, rurais, periféricas etc., tendo em vista as diretrizes de uma “Cartografia da Realidade” (WOOD, 1978) e/ou uma “Cartografia Social” (PAULSTON; LIEBMAN, 1994). Nas palavras de Buoro (2002, 49) “saber produzir imagens verbais e visuais plenas de significação, descrições reveladoras de um envolvimento direto e concreto com a realidade [são] relatos que jamais poderiam ser produzidos por leitores de olhares rápidos e descompromissados”.

Neste sentido, a valorização dos saberes das comunidades tradicionais torna-se imprescindível para a compreensão das paisagens naturais e/ou culturais, colaborando para o desenvolvimento de redes de intercâmbios e aprendizados a respeito das circunstâncias ambientais e temporais experienciadas, que leve à diminuição das discrepâncias verificadas entre os mapas e os processos de cognição (MUEHRCKE

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(1978). Estes mapeamentos, por sua vez, devem contribuir para melhores condições que proporcionem um desenvolvimento territorial sustentável garantindo a adaptação e resiliência dos seus sistemas socioecológicos, o equilíbrio de suas multifuncionalidades sob um olhar holístico (NAVEH, 2001), de modo que haja efetivamente uma cooperação proativa em relação à proteção do meio ambiente e de todas as suas formas de vida, considerando-se tanto as dimensões da biosfera quanto da psicosfera, ao considerarmos a Terra e como um organismo vivo.

ReferênciasACSELRAD, Henri; COLI, Luis Régis. Disputas territoriais e disputas cartográficas. In: ACSELRAD, Henri (Org.). Cartografias sociais e território. Rio de Janeiro: Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional-UFRJ, 2008. p. 13-44. ALMEIDA, Alfredo Wagner Berna de. Projeto Nova Cartografia Social dos Povos e Comunidades Tradicionais do Brasil. Brasília, 2007. (Fascículo 5 – Ribeirinhos e Quilombolas, ex-moradores do Parque Nacional do Jaú, Nova Airão, Amazonas.) Disponível em: <http://novacartografiasocial.com/?wpdmact=proces s&did=OTQuaG90bGluaw>. Acesso em: 28 nov. 2014.BUORO, Anamélia Bueno. Olhos que pintam. A leitura da imagem e o ensino da arte. São Paulo: EDUC/FAPESP/Cortez, 2002.CAPA – CENTRO DE APOIO AO PEQUENO AGRICULTOR. Revelando os Quilombos de Sul. Pelotas: Centro de Apoio ao Pequeno Agricultor, 2010.CRAMPTON, Jeremy W.; KRYGIER, John. Uma introdução à cartografia crítica. In: ACSELRAD, Henri (Org.). Cartografias sociais e território. Rio de Janeiro: Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional-UFRJ, 2008. p. 85-112. FOX, Jeferson; et al. O poder de mapear efeitos paradoxais das tecnologias de informação espacial. In: ACSELRAD, Henri (Org.). Cartografias sociais e território. Rio de Janeiro: Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional-UFRJ, 2008. p. 71-84.FREIRE, Paulo. Educadores de rua: uma abordagem crítica. Alternativas de atendimento aos meninos de rua. Bogotá: UNICEF/Gente Nueva, 1989.FRÉMONT, A. A região, espaço vivido. Coimbra-Portugal: Almedina, 1980.

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RuAção: Das epistemologias da rua à política da rua

GUIMARÃES, S. T. de L. Paisagens: aprendizados mediante experiências. Um ensaio sobre interpretação e valoração da paisagem. Rio Claro-SP, 2007. Tese (livre-docência) – Instituto de Geociências e Ciências Exatas, Universidade Estadual Paulista.

HEIDRICH, Álvaro. Compreender território para discutir desenvolvimento. Pelotas, 2011. (Palestra apresentada na Semana Acadêmica do curso de Geografia UFPEL.) (mimeo.)

LACOSTE, Yves. A geografia – isso serve, em primeiro lugar, para fazer a guerra. 2. ed. Campinas: Papirus, 1989.

LEVY, Jacques. Uma virada cartográfica? In: ACSELRAD, Henri (Org.). Cartografias sociais e território. Rio de Janeiro: Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional-UFRJ, 2008. p. 153-168.

MUEHRCKE, Phillip. Functional map use. Journal of Geography, [s.l.], v. 77, p. 254-262, 1978.

NAVEH, Z. Ten major premises for a holistic conception of multifunctional landscapes. Landscape and Urban Planning, n. 57, p. 269-284, 2001. Disponível em:<http://tx.technion.ac.il/~znaveh/files/Landscape%20Ecology%20Theory%20and%20Global%20Applications/Ten%20major%20premises%20for%20a%20holistic%20conception%20of%20multifunctional%20landscapes.pdf>. Acesso em: 29 nov. 2014.

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PASSINI, Elza Yasuko. Alfabetização cartográfica e o livro didático: uma análise crítica. Belo Horizonte: Lê, 1994.

PAULSTON, Rolland; LIEBMAN, Martin. The promise of critical social cartography. Portal Educacional das Américas, [s.l.], a. 3, n. 119, 1994. (Coleção: La Educación.) Disponível em: <http://www.educoas.org/portal/bdigital/ contenido/laeduca/laeduca_119/articulo4/index.aspx?culture=pt>. Acesso em: 24 nov. 2014.

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Da situação de rua na Cuiabá dos delírios urbanos: antes e depois da

Copa do Mundo FIFA 2014

Edson Benedito RONDON FILHO

Esta narrativa pode soar como uma ode fenomenológica de um cuiabano à situação de sua cidade natal – inalada, incrustada, cheirada, ouvida e deglutida em clarificadas e obscuras nuances de campo reproduzido em diário baseado na etnografia urbana de Magnani (2002, p. 11-29), onde a composição da ‘música urbana’ cuiabana teve sua partitura construída com categorias aplicáveis à temática da esquizofrenia do urbano no estranho ato de estranhar ou de se conformar com o percebido na mancha histórica1 da urbe, indelevelmente aposta no coração da América do Sul2 –, mas é de grande importância para a compreensão do vivido pelos sujeitos em situação de rua observados e considerados híbridos no projeto humanidade/natureza como parte integrante que são da cidade de Cuiabá e marcados pelo projeto da Copa do Mundo de Futebol, organizada pela Federação Internacional de Futebol (FIFA).

O estranhamento ao aparentemente conhecido antes do projeto Copa do Mundo FIFA 2014

Curiosidades pelas respostas das realidades multifacetárias do contexto urbano e de rua permeiam as mentes de muitos pesquisadores que se propõem mergulhar no concreto das cidades ante as múltiplas possibilidades do ato de conhecer ou de desconhecer. Esse mergulho é potencializado pelos variados meios de acesso aos conhecimentos disponíveis na aldeia global, na tentativa de descobrir possibilidades que tangenciam tanto a objetividade quanto a subjetividade, no dilema reinante entre a ação e a estrutura.

1 Mancha Histórica porque os casarões coloniais, da época do Brasil Colonial, marcam os limites do Centro Histórico de Cuiabá.

2 Cuiabá é o centro geodésico da América do Sul.

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Não raras vezes, situações percebidas do cotidiano, às quais não temos respostas imediatas e satisfatórias, e também situações “invisíveis” nos proporcionam reflexões e nos impulsionam às buscas pelas respostas pretendidas. Um dos meios para se tentar o alcance de tal intento se dá através da realização de pesquisa, dentro, é claro, das restrições que naturalmente se apresentam às compreensões do campo e interlocução com os sujeitos envolvidos.

O esquema mental, fugindo, é claro, do projeto cartesiano, deve se transformar em algo realizável e conversível em concretude, propiciando um duplo entre o desbanalizar e o retour do conhecimento.

A inspiração deste trabalho teve como veio de nascença o projeto desenvolvido pelo Grupo de Pesquisa em Movimentos Sociais e Educação (GPMSE) do Instituto de Educação (IE) da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), cuja coordenação restou à cotutela do professor Luiz Augusto Passos. Cotutela porque a liberdade da pesquisa, pelos pesquisadores, marcou o projeto do início ao seu termo e o roteiro para o vislumbre do urbano “tchapecruz”3.

A delimitação do espaço percorrido e observado por este pesquisador se deu com base nas cartografias originadas dos dados coletados junto ao Centro de Referência Direitos Humanos da Secretaria de Justiça e Direitos Humanos do Estado de Mato Grosso (SEJUDH-MT), onde se percebem os “pedaços” ou “manchas” de concentração dos diversos coletivos da população em situação de rua.

O ponto de irradiação do percurso realizado várias vezes, em diversos dias, foi a Igreja de São Benedito da Paróquia do Rosário, localizada na avenida Coronel Escolástico, próximo ao Morro da Luz e da antiga ‘Lavra do Sutil’, início do pulsar da Vila de Nosso Senhor

3 “Tchapecruz” é expressão cuiabana que representa aquele(a) que é nativo(a) de Cuiabá. Exemplo: “Sou cuiabano de tchapecruz”.

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Bom Jesus de Cuiabá4 nos longínquos anos de 17195. O caminhar cruzou a avenida Tenente Coronel Duarte (Prainha) e adentrou na rua Voluntários da Pátria, ‘quebrando’ na Galdino Pimentel até a Cândido Mariano, onde subi o beco até a praça Alencastro desaguando na avenida Getúlio Vargas, com coroamento da caminhada na praça da República após vista das ruas próximas à Igreja Matriz, ao Palácio da Instrução, aos Correios e ao Museu Histórico de Mato Grosso.

Das inúmeras vezes que caminhei e observei pelo percurso planejado, destacarei dois campos considerados emblemáticos, sendo um antes da realização dos jogos da Copa do Mundo e outro depois do evento esportivo mencionado. Lembro que a narrativa, em que pese a delimitação de sua temporalidade, é correlacionada e até mesmo contaminada com as impressões advindas das outras vezes em que o percurso foi realizado, mas não pode ser desconsiderada.

Conforme descrito no parágrafo anterior, por volta das 19 horas do dia 18 de fevereiro de 2014, estava em frente à Igreja de São Benedito para início do trabalho de campo, segundo orienta Cicourel (1965). O local não poderia ter sido mais providencial. Na minha frente o símbolo religioso de Cuiabá, edificado por escravos na época do Brasil colônia, com sua arquitetura deslumbrante, aberta para a realização da missa, onde os fiéis devotos do padroeiro São Benedito enchiam as instalações da Igreja. Alguns em estado de êxtase (transe), estimulados pela fé ao santo protetor, aparentavam estar ‘fora de si’ em uma fervorosidade tamanha, inefável às palavras, possível de imaginação e percepção somente às testemunhas presentes. Lembramos Park (1987, p. 26) ao afirmar que “[...] a cidade é um estado de espírito, um corpo de costumes e tradições e dos sentimentos e atitudes organizados, inerentes a esses costumes e transmitidos por essa tradição”.

4 Segundo a Súmula de informações do município de Cuiabá, a origem de seu nome vem de “[...] * IKUIAPÁ. - IKUIA - flecha-arpão. - PÁ - lugar (lugar da flecha-arpão ). Designação: - de uma localidade onde se pesca com flecha-arpão. - de uma localidade onde antigamente os bororos (etnia indígena) costumavam pescar com flecha-arpão correspondente à foz do IKUIÉBO, córrego da Prainha, afluente da esquerda do rio Cuiabá, na cidade homônima. Julgamos que o nome da capital de Mato Grosso, Cuiabá, justamente edificada nas duas margens do córrego da Prainha, não seja outra coisa que a corrupção e sonorização de Ikuiapá” (IPDU/PDI, jan. 2000).

5 Cuiabá tem como marco de sua história a fundação do Arraial da Forquilha, em 1719. As lavras do Sutil foram descobertas em 1722, nas proximidades do morro do Rosário, onde foi edificada a Igreja de São Benedito.

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À frente da Igreja, as imagens de São Benedito e de Nossa Senhora do Rosário estavam iluminadas com dezenas de velas acesas por pagadores de promessas e fiéis, o que entorpecia o ar com o cheiro de parafina misturado ao de ‘churrasquinhos’ e da fumaça carbônica expelida pelos veículos passantes nas avenidas Coronel Escolástico e Tenente Coronel Duarte. Outro cheiro marcante, tangente ao ocre, era aquele que advinha dos fiéis que estavam no interior do templo: cheiro humano de trabalhador, forte e profundo; de alguém que saiu cedo para a lida e que, até àquela hora da noite, não tinha ainda visto ‘água’; mesmo assim, não podia deixar de cumprir sua ‘devoção obrigatória’ com São Benedito.

A devoção observada era praticada majoritariamente por mulheres, enquanto seus companheiros ficavam aguardando o término da missa em um barzinho localizado atrás da igreja, misturando-se a taxistas, sentados em banquinhos de madeira na calçada do estabelecimento. O visual é nostálgico, um antigo ‘bolicho’ onde os fregueses, na totalidade do sexo masculino, conversam no aguardo das mães, tias, esposas, filhas e primas devotas. Ressalvo meu pesar pela impossibilidade de captar o teor das conversas; seria muito interessante ‘bisbilhotar’ aquele pedaço6, mas não tínhamos o “passaporte” e o meu desiderato era outro, ou seja, observar quem estava na situação de rua.

Do ponto de vista ‘das estátuas’, o visual próximo às escadarias da Igreja de São Benedito é deslumbrante. Passa a sensação de que os santos estão a guardar a cidade e esta segue seu caminho, barulhenta, iluminada pelos faróis – dos carros e do trânsito –, com destaque à luminosidade imponente da mesquita mulçumana localizada no topo do Morro da Luz, também avistada do local. O ato de conviver lado a lado, bem pertinho, muçulmanos e afrodescendentes católicos em seus espaços de adoração, expressando-se harmoniosamente e sem interferências beligerantes de suas crenças, nos leva a refletir sobre a violência religiosa tão comum em alguns cantões de nossa Terra, mas, ao mesmo tempo, nos tira a atenção daqueles que estão ‘invisíveis’.

6 Segundo Magnani (1996, p. 32), “[...] quando o espaço – ou segmento dele – assim demarcado torna-se ponto de referência para distinguir determinado grupo de frequentadores como pertencentes a uma rede de relações, recebe o nome de pedaço”.

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O auditivo profano foi percebido à porta da Igreja do Rosário e creio que funciona como uma provocação ao sagrado, lembrando que existem almas a serem salvas. Dentro da Igreja, música sacra moderna; na porta, som de música sertaneja vindo de um ‘botequim’ localizado na avenida Tenente Coronel Duarte, atrás de uma outra igreja (Senhor dos Passos), e no início do ‘beco do Candeeiro’, palco de chacina de adolescentes algum tempo atrás7. É como se a tentação estivesse bem ali, às portas do templo, provocando os fiéis a pecar no fragmentar dos sons, só esperando o encantamento acontecer pelo chamado de Baco8. Esse bar funciona como um pórtico, pois o beco do Candeeiro, à noite, não oferece passaporte a todos que pretendam por lá transitar. A passagem para o mundo do ‘candeeiro’ passa pelo bar; ali se dá a aceitação na interação e autorização dos atores que fazem parte daquela paisagem.

No beco, pedras de ‘crack’ e pasta base estalavam misturando-se à fumaça dos cigarros das prostitutas, cafetões e bêbados, constituindo-se em região moral de concentração desse tipo de atividades desenvolvidas pelos grupos citados (PARK, apud BECKER, 1996, p. 182).

Interessante que, há alguns anos, a movimentação desses atores no bar do pórtico do beco do Candeeiro não era tão marcante, devido à existência de uma câmera de monitoramento instalada no cruzamento das avenidas Tenente Coronel Escolástico e Tenente Coronel Duarte com a rua Voluntários da Pátria. Ao ser danificado o big brother, tais sujeitos se revigoraram e foram resgatados da obscuridade. Atores outrora marginalizados e invisibilizados pelo ‘dedo-duro’ saíram do beco e se expuseram em uma das vias arteriais mais movimentadas da capital de Mato Grosso. ‘Chaminés humanas’, ‘mariposas’ e seus comerciantes enfim puderam mostrar quem manda no pedaço, como se despertassem, após o uso de‘crack’, do sistema de vigilância

7 A chacina do “beco do Candeeiro”, como ficou conhecida a tragédia que marcou Cuiabá, no dia 10 de julho de 1998, resultou na morte de três adolescentes assassinados a ‘sangue frio’ no local citado. Disponível em:<http://www.expressomt.com.br/matogrosso/pm-reu-da-chacina-do-beco-do-candeeiro-deve-ir-a-juri-em-cuiaba-113237.html>; e <http://www.reporternews.com.br/noticia/401543/dezesseis_anos_apos_%93chacina%94_pm_sera_julgado>. Acesso em: 20 set. 2014.

8 Deus do vinho e da fertilidade para os romanos. Representa a vida dissoluta.

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de um sono casular, podendo, enfim, viver o modo blasé de ser9 (SIMMEL, 1987), nos seus vícios comercializados (PARK, 1987) e afronta direta à moral conservadora cuiabana. Mesmo após o conserto do equipamento de monitoramento visual, o pedaço continuou dominado pelos seus viventes e dependentes.

Seguindo a Voluntários da Pátria, a suntuosidade dos casarios deixados pelos portugueses embasbaca quem nunca se deixou aperceber os detalhes minimamente trabalhados em tais edificações. O Museu da Imagem e do Som de Cuiabá (MISC), instalado em um casarão nessa mesma rua, é um ponto do circuito artístico cuiabano, lembrando que por lá também aconteciam reuniões festivas urderground. Mais uma vez, o profano insulta o sagrado, pois defronte ao MISC se localiza a Igreja Nosso Senhor dos Passos10, cujas missas são frequentadas por beatas. É o paralisar do tempo naquele templo contraposto à contemporaneidade e cosmopolismo do pedaço. Poderíamos dizer que há, sim, uma sobreposição de papéis, pois durante o dia o local é frequentado por um tipo de público que o usa, principalmente, para o comércio e à noite é ocupado por outro que o tem como refúgio – no caso do calçadão da Sete de Setembro – ou como ponto de encontro alternativo cultural11 – no caso do MISC – e até para consumo de drogas – nos pontos obscuros do calçadão. É a apropriação do pedaço por vários grupos com interesses distintos.

9 “Vida em competição desregrada ao prazer”, com agitação dos nervos “[...] até seu ponto de mais forte reatividade por um tempo tão longo que eles finalmente cessam completamente de reagir” (SIMMEL, 1987, p. 16).

10 Segundo Negrão e Morales (2008, p. 36), “[...] diz a história (ou seria lenda?) contada por um certo Joaquim Ferreira Moutinho, em 1869, que ‘a Igreja do Nosso Senhor dos Passos teria sido construída por um português chamado José Manuel’. Após sofrer um ataque de catalepsia, José Manuel foi considerado morto e sepultado”.“Por ter conseguido escapar do seu sepulcro com vida, o homem, para agradecer, passou a angariar fundos para construção de uma capela em homenagem ao Senhor dos Passos. Assim nasce a Igreja bicentenária”, conta Joaquim em seus escritos. A outra versão, mais aceita, é a de Eduardo Etzel. Em seu livro O Barroco no Brasil, citando o padre Wanir Delfino César – cujo corpo foi sepultado sob a torre – ele relata: “Na segunda metade do século XVIII os devotos de Nosso Senhor dos Passos resolveram buscar uma imagem para ser venerada na Matriz, visto que as prescrições reais não permitiam a construção de uma capela própria. No entanto, depois que veio a imagem, os mesmos devotos não ficaram satisfeitos e aos poucos foram construindo a Capela do Nosso Senhor dos Passos [...]”.

11 O lazer aqui poderia ser muito bem deslocado de categoria nativa para categoria compreensiva (MAGNANI, 1996, p. 31-32).

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Ao caminhar pelo calçadão da Sete de Setembro, rumo ao calçadão da Galdino Pimentel, percebi, em uma viela sem iluminação, um grupo de aproximadamente seis pessoas consumindo drogas. O cheiro era de “marijuana”, mas ouvia-se, também, o estalar das pedras. O sentimento de não pertencimento me conduziu a uma aceleração dos passos. A pouca iluminação conferia uma robustez ao meu medo daqueles “donos do pedaço”, afinal não havia me apresentado e não tinha passaporte, o que me tornou “invasor”. A “invasão” desautorizada é prática corriqueira da polícia naquele pedaço. Batidas (de mãos e cassetetes) e conduções dos “desviantes” são constantes. A simples presença naquele pedaço é um risco. Risco aos “nativos”, pela rotulação imposta por empreendedores morais. E risco aos “invasores”, por serem considerados uma ameaça às atividades dos “nativos”.

No calçadão da Galdino Pimentel foi percebido o uso dessa via como atalho para pessoas que se deslocam aos pontos de ônibus localizados na avenida Tenente Coronel Duarte. Os passos dos transeuntes, sempre acelerados e largos, deixavam a dúvida se a pressa se dava pelo medo do local ou pela ansiedade de retornar para casa, após uma jornada de trabalho ou escolar. Ponto de destaque é um hotel, pequeno, de arquitetura e detalhes peculiares, que resgata o glamour da antiga ‘rua de Baixo’.

Subindo um pequeno trecho calçado da Cândido Mariano (semelhante a um beco), deparamo-nos com um bar, provavelmente pertencente a um fluminense ou cuiabano fanático por times fluminenses, pois escancaradas à vista de qualquer um estavam duas bandeiras, uma do Botafogo e outra do Flamengo. O público era eminentemente masculino, que tinha na cerveja a companhia para a música ali tocada.

Na praça Alencastro, fui recepcionado por um odor proveniente, possivelmente, do mijo e da boca-de-lobo localizada na esquina da Cândido Mariano com a Pedro Celestino. O calor intenso de Cuiabá potencializa os odores e chega a causar indisposição nos transeuntes que passam pelo local. Sobrepostos na praça, vários pedaços se entrelaçam, em uma diversidade de atores que espanta. Meninos, pré-adolescentes e adolescentes, jogam futebol com minitraves confeccionadas em metal, o que indica uma continuidade nessa prática desportiva naquele local, talvez pelo fato de residirem nos edifícios circunvizinhos e inexistir áreas para a prática de esportes, restando como opção a praça. Também

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estudantes adolescentes, trajando uniformes de suas escolas, se reúnem no coreto e proseiam por horas a fio.

Um grupo de jovens do sexo masculino em situações bem íntimas chamava a atenção de senhoras que passavam pelo local. Como corolas e guardiãs da moral da cidade, cochichavam, expressando ar de espanto dirigido às relações homoafetivas visualizadas. Mas a cidade está longe dessas restrições, como bem lembrado por Simmel (1987, p. 20) em suas palavras que afirmam a liberdade do homem metropolitano, “[...] em um sentido espiritualizado e refinado, em contraste com a pequenez e preconceitos que atrofiam o homem de cidade pequena”.

Ainda, várias pessoas que vivem na rua estavam deitadas no coreto da praça e ali proseavam. Pedaços de papelões indicavam o seu uso como cobertores, apesar da previsão de elevada temperatura para aquela noite.

Àquela altura, a empolgação acabou por sugestionar uma mudança no itinerário previamente pensado, desviando-me para uma visita à antiga residência dos Governadores do Estado, localizada na rua Barão de Melgaço12. Ao subir a rua paralela à prefeitura, sede do Poder instituído do município localizada na praça Alencastro, encontrei um casal de moradores de rua. Os dois falavam em alto tom e pareciam discutir. Ele estava com um “corotinho”13 de cachaça em uma das mãos e com a outra gesticulava e tentava afastar sua companheira. O quadro indicava um conflito instaurado pelo desejo do álcool. Ela, ávida por sorver a bebida; ele, resistente em dividir o pouco que lhe restara. Desse quadro, percebi a indiferença do casal para com os transeuntes da mesma forma

12 A Residência Oficial dos Governadores de Mato Grosso foi construída entre os anos de 1939 e 1941, no Governo do Interventor Júlio Müller. Foi a primeira construção das Obras Oficiais do Governo Vargas. Getúlio Vargas foi o primeiro presidente brasileiro a visitar o Estado e, também, o primeiro hóspede ilustre da casa. Durante 45 anos, a residência abrigou 14 dirigentes do Estado de Mato Grosso e seus familiares, sendo desativada como residência oficial em 1986. A última reforma/restauro, em 2000, devolveu à residência as características do projeto original. Foi também palco de grandes decisões políticas e governamentais. Construção: 1941. Estilo: Arquitetura típica do Estado Novo. Ocupação Atual: Banco de Desenvolvimento de Mato Grosso/MT Fomento. Tombamento: Portaria nº 53/83 D.O. 09/01/1941. Situação Atual: ótimo estado de conservação. Antiga Residência dos Governadores, localizada na Av. Barão de Melgaço atrás do prédio da prefeitura de Cuiabá. Disponível em: <http://www.cultura.mt.gov.br/TNX/galerias_indice.php>. Acesso em: 9 out. 2008.

13 “Corotinho” é a forma como se denominam pequenos volumes em plástico ou vidro com cachaça.

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que destes para com aquele. A marca na relação entre quem está na rua e quem não está é justamente essa, a indiferença. O quadro se apresenta e todos ignoram como se não existisse – é a invisibilidade da carne humana, doente e sedenta pelo álcool, no caso observado por aqueles que se acham dotados de muitas preocupações “mais importantes”.

Desci a Barão de Melgaço e ‘dobrei’ a Getúlio Vargas, avenida de considerável movimento e retornei novamente à praça Alencastro após passar em frente ao Cine Teatro Cuiabá. No ponto de ônibus da praça, observei muitas senhoras e estudantes aguardando ansiosamente pelo transporte coletivo. De maneira indiferente de uns para com os outros, comportavam-se negativamente à presença do próximo não tão próximo. A reserva extremada estava clarificada naquele quadro (SIMMEL, 1987). Disse ‘ansiosamente’ porque algumas dessas pessoas, a todo instante, ficavam olhando seus relógios, demonstrando ansiedade. Ajustando meu foco naquele quadro percebi que a impaciência decorria do fato de haver nas proximidades um morador de rua que ali dormia, balbuciando palavras incompreendidas, não sei se em sonho ou em pesadelo.

Atravessei a Getúlio Vargas e contornei a Matriz14 que, naquela hora (21h30min), já estava fechada, melhor dizendo, trancada, com seus portões impedindo qualquer um que quisesse se aproximar de seu alpendre. Lembrei que “sem-teto” faziam o uso do alpendre da Igreja para abrigo do relento e talvez isto tenha sido o motivo de se levantar o portão como barreira. Com a instalação dos portões da Igreja Matriz, aos “sem-teto” restaram, como opção de cama, os bancos da praça da República.

Em seguida, fiquei apreciando a arquitetura do Palácio da

14 Segundo o disponível em <http://www.diariodecuiaba.com.br/detalhe.php?cod=47486&edicao=9916 &anterior=1>, a Igreja Matriz “[...] foi construída, no longínquo ano de 1722 [...]. Quem primeiro teve a iniciativa de levantá-la foi o bandeirante paulista, e então capitão-mor do Arraial de Cuiabá, Jacintho Barbosa Lopes. A primeira igreja foi um rancho de pau-a-pique levantado próximo às minas de ouro da Prainha. Somente em 1723 foi fundada a Freguesia de Cuiabá, posto que era o costume, nas novas terras descobertas, levantar primeiro a igreja matriz e só depois, e em volta dela, se constroem os outros poderes, as sedes da administração, as casas dos ricos ou privilegiados. Em 1739, a igreja ganhou paredes de taipa-socada e, de 1775 até 1928, sobreviveu com as paredes sólidas e os ares barrocos que até ontem resistiram muito antes de virar poeira”. Em 26 de setembro de 1968, ela foi demolida para a construção da atual matriz (IGREJA HAVIA PASSADO POR DIVERSAS REFORMAS, 2014).

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Instrução15 e mais uma vez resolvi alterar o roteiro, descendo até a Isaac Póvoas pelo calçadão da Antônio Maria. Destaco a nova roupagem do centro antigo de Cuiabá com o processo de revitalização, que funcionou como uma higienização, onde atores ‘donos do pedaço’ foram invisibilizados em detrimento de tal política.

Da Isaac Póvoas fui até a praça Maria Taquara16 e ali observei uma verdadeira ‘torre de babel’ com representantes de diversos grupos de referência, em uma mistura difícil de descrever. Mototaxistas, garis, estudantes, trabalhadores e algumas pessoas embriagadas, em um ponto considerado restrito e defronte à Igreja do Bom Despacho, opondo, mais uma vez, o profano ao sagrado.

Todo o percurso pode ser considerado uma mancha comercial (durante o dia), pois é a prática que domina majoritariamente esse espaço geográfico. Muitos pedaços estão ali marcados, inclusive de maneira sobreposta. Ainda, existem na mancha pontos de circuitos culturais (por exemplo, o MISC) e religiosos (Igrejas) e os pórticos de passagem para áreas não permitidas. A população em situação de

15 O Palácio da Instrução foi “[...] construído em estilo neoclássico no ano de 1913, o prédio tem grande valor histórico e arquitetônico. Edificado em alvenaria e pedra-canga, levou três anos para ser concluído. [...] Durante 57 anos funcionaram as escolas: Normal, Pedro Celestino, Liceu Cuiabano, entre outras. Abrigou ainda diversas instituições culturais. Pelo Palácio passaram nomes da política e literatura regional como: Lenine Póvoas, Dunga Rodrigues, D. Maria de Arruda Müller, e tantas outras celebridades históricas. O Palácio da Instrução foi tombado para integrar o Patrimônio Histórico Artístico e Cultural, através da Portaria nº 03/1983 da Fundação Cultural de Mato Grosso. [...] Com projeto do Engenheiro João da Costa Marques e firma Magalhães & Melo teve início a obra. Porém, no governo Costa Marques (1911 a 1915), o projeto sofreu alteração. O prédio foi edificado em alvenaria e pedra-canga, em estilo neoclássico. Construído em terreno isolado, a fachada principal voltada para a praça da República com área coberta de 1.286 metros quadrados, sendo o terreno todo de 4.757 metros quadrados, a fachada principal com 54 metros e a fachada lateral com 27 metros. Pé direito de 13 metros de altura, levando-se ao centro um frontão a 16 metros com o Brasão da República e a data de sua construção 1913. O local possuía 27 salas destinadas às necessidades escolares, quatro gabinetes sanitários, toaletes, vestíbulo e um vasto e espaçoso salão. No centro do edifício, como que o dividindo em partes iguais, encontra-se o Salão Nobre, e o acesso ao andar superior é feito por uma ampla escadaria. As janelas com duas folhas de almofadas e duas de vidro, ao todo 88, com detalhe especial: os vidros foram fabricados na Bélgica, e traziam gravados o Brasão de Armas de Mato Grosso. (Dados históricos fornecidos pelo livro História do ensino em Mato Grosso, de Marcílio Humberto, e Revista do Arquivo Público de Mato Grosso)”. Disponível em: <http://www.diariodecuiaba.com.br/detalhe.php?cod=150982&edicao =10701&anterior=1>. Acesso em: 20 set. 2014.

16 Maria Taquara é personagem do folclore cuiabano. Mulher simples, lavadeira, inovou em seu tempo ao usar calças, vestimenta tipicamente masculina na época. Sua estátua foi construída pelo artista plástico Aroldo Tenuta e pesa 450 quilos, com 4,20 metros de altura, trabalhada em ferro.

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rua também integra esses espaços nos seus mais variados coletivos, que variam em conformidade com a temporalidade do dia, mas é “invisível”, rotulada, discriminada, oprimida, ignorada, etc. Muitas vezes vista como “caso de polícia”, a rotulação que lhe sobra é de escória, marginais, bandidos, drogados, desocupados, perturbados mentais etc., em uma perversidade sem métrica, reproduzida estruturalmente, inclusive, por aqueles que deveriam compreender e ver a situação dessas pessoas com olhos mais humanos.

Essa descrição é uma breve ideia de como foi transitar pelo campo naquela noite de fevereiro de 2014 e, para marcar a mudança na paisagem, apresentarei, de maneira comparada, o quadro descritivo do espaço percorrido, levando em conta o lapso temporal de apenas alguns meses que separaram a noite da descrição e o marco histórico-político da Copa do Mundo, uma vez que Cuiabá foi selecionada como uma das doze sub-sedes brasileiras. Isto considerando, contextualizarei, primeiramente, o evento futebolístico em referência.

Cuiabá e os jogos da Copa do Mundo de Futebol

O Brasil tem sua identidade nacional marcada pelo Carnaval e pelo futebol. Imiscui-se nessa paixão um misto de diversão e controle político, capsulado no “sapatinho” e na “pátria de chuteiras”. No Carnaval, ocorre a suspensão da moralidade cotidiana. Há máscaras para os papéis assumidos nesse período de euforia e diversão (DA MATTA, 1997). No futebol, ocorre a difusão da ideia de vitória, de resiliência, de sucesso e, sobretudo, da potência Brasil, celeiro de craques.

Entretanto, o mapa do futebol mundial se reconfigurou e o Brasil que nunca desceu do 4º lugar do ranking mundial, hoje, ocupa o 6º lugar. Há um componente político e capitalista muito forte que, inclusive, conduziu a candidatura brasileira à copa de 2014. O processo foi deveras concorrido, com disputa em primeira fase, no ano de 2003, entre Argentina, Brasil e Colômbia, candidatos apresentados pela Confederação Sul-Americana de Futebol (CONMEBOL). Importante frisar que a FIFA imprimiu um rodízio entre as federações, possibilitando a realização da Copa do Mundo de maneira alternada nos continentes componentes do globo terrestre. Ou seja, a Copa de 2014 já tinha seu lócus definido, a América do Sul. Em 2007, foi anunciado o Brasil como único candidato e bastava o país atender as exigências da FIFA para se consolidar como sede de maneira oficial.

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Ao reboque da escolha do Brasil veio uma disputa interna pela definição das cidades sedes que receberiam os jogos do torneio. No Centro-Oeste, candidataram-se todos os Estados mais o Distrito Federal, marcando-se nessa disputa a exacerbação da rivalidade regional entre Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, fruto da raiz comum entre os dois Estados. A seleção do Distrito Federal, com Brasília como capital do Brasil e subsede, inviabilizou a candidatura de Goiânia. A outra vaga, após um processo tenso, foi direcionada para Cuiabá. Slogans como “chupa essa manga” ganharam a pauta das manifestações em comemoração à vitória no processo seletivo, inflando o ego cuiabano que viu na Copa do Mundo a redenção para os problemas urbanos de Cuiabá.

A direção da organização do evento prometeu colocar em prática projetos engavetados há décadas e referentes à arquitetura urbana da cidade. O modal de transporte escolhido, Veículo Leve sobre Trilhos (VLT), também foi acompanhado de inúmeras rusgas políticas e judiciais. Ao final, definiu-se pelo “padrão FIFA” de “organização e execução”, mesmo com a resistência da oposição, que denunciou o uso político do projeto ante a exiguidade do tempo, o que inviabilizaria a concretização daquilo que foi planejado.

Viadutos, trincheiras, avenidas, pontes, passagens, ‘revitalizações’, arena Pantanal, Fanfest e investimentos comerciais foram alguns dos ganhos anunciados como solução para os problemas estruturais da cidade, que teria mobilidade urbana e qualidade de vida. Com estes sonhos vendidos, a população aderiu ao projeto e apoiou a iniciativa do governo. Dessa paisagem de concreto, pouco ou quase nada se falou daqueles que nela estavam. A população em situação de rua foi extirpada não só desse projeto, mas também dos seus espaços de ocupação.

Das vezes que percorri o trajeto descrito em passo anterior, e com a missão específica de descrever o observado, a cidade estava um verdadeiro caos, com suas artérias expostas. O verde foi retirado das avenidas principais para a construção do VLT e, digo mais, Cuiabá não mais faz jus ao título de “cidade verde”. Buracos e mais buracos, desvios, trânsito insuportável, a sensação de que a temperatura está mais alta que o habitual (talvez pela ausência das árvores para amenizar tal sensação), mesmo sendo o ano de 2014 atípico devido às chuvas constantes até quase o final de maio. Obras interditadas, outras embargadas e refeitas por falhas na execução do projeto foram as manchetes que se repetiram na mídia local. O cúmulo do absurdo, a título de exemplo,

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aconteceu com o viaduto de acesso à UFMT que teve falhas visíveis a olho nu, denunciadas por um estudante do curso de Engenharia em contrassenso ao megaprojeto elaborado pelos responsáveis técnicos17. Em muitas avenidas a “grama foi pintada de verde” literalmente18, pois, para encobrir o atraso na execução das obras, o governo ‘colocou’ grama para esconder os buracos deixados pelas empreiteiras.

Enfim, chegou a Copa do Mundo e o que houve de interferência na paisagem anteriormente descrita?

É nessa perspectiva que passo doravante a descrever minhas impressões.

Retrato pós-projeto Copa do Mundo FIFA 2014

Esse segundo marco temporal e espacial também foi percorrido de maneira solitária e nos levou a situações limites, mas o desejo incontrolável da exploração nos impulsionou à realização do campo, que contou com as fortes referências anteriores para a percepção das alterações havidas.

Dessas impressões, escolhi as advindas do campo pesquisado, realizado em uma terça-feira, dia 15 de julho de 2014, mesmo horário (19 horas) do campo relatado em linhas atrás, após os jogos destinados a Cuiabá que contaram em sua resenha futebolística com quatro jogos realizados, sendo Chile e Austrália (13/06), Rússia e Coreia (17/06), Nigéria e Bósnia-Herzegóvina (21/06), e Japão e Colômbia (24/06).

Como da primeira vez, o percurso foi irradiado da Igreja de São Benedito da Paróquia do Rosário. O cheiro de parafina misturado ao de ‘churrasquinhos’ e da fumaça expelida pelos veículos permaneceram, mas o Beco do Candeeiro estava diferente. Ainda que a música profana do bar pórtico do beco persistisse em alto e bom tom, o pedaço estava vazio. Seus ocupantes anteriores desapareceram, ao menos naquela noite não os vi, o que me soou estranho. De fato, agora eles estavam verdadeiramente invisíveis como se fossem abduzidos em razão da

17 Disponível em: <http://g1.globo.com/mato-grosso/noticia/2013/06/governo-e-consorcio-admitem-erro-em-obra-de-viaduto-da-copa-em-cuiaba.html>; e <http://www.diariodecuiaba.com.br/detalhe.php?cod=434494>. Acesso em: 20 set. 2014.

18 Disponível em: <http://globoesporte.globo.com/mt/copa-do-mundo/noticia/2014/05/jeitinho-brasileiro-grama-e-plantada-em-area-onde-o-vlt-vai-passar-em-mt.html>. Acesso em: 20 set. 2014.

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higiene tão almejada pelo padrão FIFA de excelência. A região moral, antes existente, foi capsulada. O sistema é perverso e, para atender interesses maiores, aceita tudo, até mesmo esconder sua realidade como se tais pessoas fossem mazelas e não fruto das próprias condições e oportunidades ofertadas de maneira excludente pela estrutura.

Talvez o marco físico e simbólico desse quadro seja a inauguração da Companhia de Polícia Militar19, acontecida em 13 de março de 2014, como resultado de Parceria Público Privada (PPP), através da Câmara de Diretores Lojistas (CDL), Prefeitura Municipal e Governo do Estado. Essa iniciativa é parte do processo de higienização daquele pedaço com o intuito de controlar as prostitutas e usuários de drogas, e proporcionar maior “segurança aos transeuntes”.

Ao seguir para a rua Voluntários da Pátria, percebi novamente a ausência dos sujeitos anteriormente viventes naquele espaço e a sun-tuosidade dos casarios de outrora exalava agora um ar fantasmagórico. Por sua vez, a Igreja Nosso Senhor dos Passos me lembrava mais uma catacumba sem ninguém para marcar aquele pedaço.

Rumo ao calçadão da Galdino Pimentel, visualizei, na viela, um grupo de três pessoas agachadas enrolando o ‘baseado’, ou seja, por mais que se queira ‘higienizar’ a rua, ela sempre nos surpreende como se nos falasse: “Eu não tenho dono ou dona, sou de todos e de todas!”. No calçadão, o mesmo frenesi marcado pelos passos acelerados dos transeuntes ansiosos pelo retorno às suas casas.

Na praça Alencastro, reminiscências da Copa – uma semana depois do vexame do jogo do Brasil contra a Alemanha – marcavam um quadro com algumas pessoas trajando camisetas da seleção canarinho e de outros times que atuaram na Copa do Mundo. Naquele ambiente, estabeleci contato com moradores de rua que me apresentaram notícia impactante. Segundo um informante morador de rua, o Centro POP de Cuiabá, que se localizava na rua Pedro Celestino, próximo à praça Alencastro, foi fechado. Indícios dão conta de que o ato de fechamento se deu por reivindicação do setor comerciário cuiabano, que via na aglomeração das pessoas em situação de rua, naquele ponto de apoio, um ‘perigo’ aos anseios capitalistas. A simples presença deles naquele

19 Disponível em: <http://midianews.com.br/conteudo.php?sid=3&cid=191614>. Acesso em: 20 set. 2014.

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ponto gerava medo e afugentava a clientela. Ou seja, rotulação imposta, diferença convertida em desvio, e a fórmula potencialmente mortal consumada. Retirem-se os desviantes. E assim foi feito, começando pelo fechamento do ponto de apoio a esses marginalizados.

Desse relato, veio-me uma ilação tangente a uma possibilidade de exclusão entre os pedaços percebidos, uma vez que os representantes da mancha comercial e sua autoconsideração como donos do pedaço se articularam politicamente para desativar ponto de apoio dos coletivos da população em situação de rua, por mim considerados, também, donos do pedaço, mas inferiorizados nessa relação de poder.

Na rua Barão de Melgaço, bem como na avenida Getúlio Vargas, observamos a ausência das pessoas em situação de rua. Na praça da República, localizada em frente à Matriz, alguns hippies ofertavam seu artesanato para os poucos transeuntes daquele dia. O portão da Igreja, tal qual na última vez, estava fechado.

Ao descer o calçadão da Antônio Maria rumo à avenida Isaac Póvoas o mesmo vazio, com poucas pessoas transitando sob os olhares do corpo de vigilantes responsável pela guarda dos estabelecimentos comerciais no período noturno.

O quadro retratado anteriormente, no que toca à praça Maria Taquara, parece que foi congelado, pois encontramos a mesma ‘torre de babel’ com a presença de mototaxistas, ébrios, pedintes, trabalhadores, mulheres, adolescentes, idosos e outros coletivos concentrados nas proximidades dos pontos de ônibus ali existentes. Esta ambiência/topoi reporta-me a Cunha (2009), pesquisadora que investigou o fenômeno trabalhadores de rua, quando pondera que a rua, um dos principais espaços públicos, não é meramente um lugar de passagem e circulação, é também o lugar do encontro, do movimento, da mistura como teatro espontâneo.

Logo, esse teatro espontâneo denota lugar de ocorrência dos mais diversificados fenômenos, e neles incluem-se os educativos. Neste contexto, a rua configura-se como lugar de educação não formal e informal, emprestando as palavras de Gohn (2006, p. 29), segundo a qual, nesses processos, “[...] o grande educador é o ‘outro’, aquele com quem interagimos ou nos integramos”.

Essas situações relacionais remetem aos ensinamentos de Paulo Freire (1986, p. 35) quando, em sua obra Educação como prática da liberdade, expressa que “não há educação fora

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das sociedades humanas e não há homem no vazio”. No pensar desse autor, a partir das relações do homem com a realidade, decorrentes de estar com ela e de estar nela, pelos atos de criação, recriação e decisão, vai dinamizando o seu mundo. Vai dominando a realidade. Vai humanizando-a e, em meio a estas ações, vai acrescentando algo de que ele é o seu próprio fazedor. Vai temporalizando os espaços geográficos, fazendo culturas. E é também o jogo dessas relações do homem com o mundo e do homem com os homens, desafiando e respondendo ao desafio, alternando e criando, que não permite a imobilidade. É, pois, neste movimento relacional que vivem e convivem nossos invisíveis protagonistas, moradores de rua, que aqui e ali, lá e acolá, migram de “pedaços” a “pedaços” e, com suas vivências e experiências, resistem às ameaças capitalistas, vão se mobilizando e produzindo seus saberes, valores e referenciais.

Alicerçado nos fenômenos percebidos, tenho, do observado, que a área percorrida ainda pode ser considerada uma mancha comercial com pontos de circuitos culturais e religiosos, mas os pontos de concentração de muitos coletivos formados por pessoas em situação de rua, ao menos nesse dia do campo, não foram identificados, o que nos leva à afirmação de um processo de higienização da área central, mesmo que somente no período de realização da Copa do Mundo. Os indícios mais fortes dessa afirmação são o fechamento do Centro POP, localizado na Rua Pedro Celestino, e a criação da Companhia de Polícia Militar no beco do Candeeiro.

Considerações finais

O percurso empreendido, como fonte de observação para este artigo, é marcado por inúmeras construções que rememoram ao século XVIII, tombadas pelo patrimônio histórico, contrapondo ao movimento frenético do urbano que invadiu aquele espaço, criando um paradoxo entre o que representa o passado e o futuro, presentes na vivência temporal dos cuiabanos de nascença ou por adoção, impactando diretamente a população em situação de rua, invisibilizada nesse processo traumático implementado por conta do projeto “Copa do Mundo” e seu padrão FIFA de qualidade.

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Pela orientação fenomenológica, buscamos perceber a paisagem e a realidade dos sujeitos observados. O novo e o velho, o jovem e o idoso, o trabalhador e o ocioso, a prostituta e as beatas, meninos de rua e estudantes, ébrios e errantes, convivendo lado a lado; experiência possível no urbano, especificamente na rua, e no seu modo blasé, estranhado depois das bases metodológicas apresentadas.

O sagrado e o profano materializados nos monumentos, prédios, ruas, calçadões e becos contrapõem as pessoas cujas relações são marcadas por maniqueísmo, rótulos e estigmas e ainda despersonificam aqueles que são desprovidos de bens materiais e se encontram em situação de vulnerabilidade, como é o caso da população em situação de rua.

A situação de Cuiabá não difere de outros locais, contando com significações multifacetárias nas relações estabelecidas com a população em situação de rua. Há uma rejeição e um sentimento de medo contra alguns coletivos, como é o caso dos dependentes de drogas e dos perturbados mentais.

A rua, paradoxalmente, ao mesmo tempo em que nomeia, é também espaço de vivências simbólicas, identitárias e materiais (GREGORI, 2000, p. 101) que devem ser compreendidas, reconhecidas e respeitadas dentro das pluralidades possíveis. A solução da problemática passa por inúmeras estratégias que devem procurar estabelecer redes de ação e atendimento entre os diversos níveis de governo e Poderes, bem como a sociedade civil organizada.

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antes e depois da Copa do Mundo Fifa 2014 • 75

RuAção: Das epistemologias da rua à política da rua

PARK, Robert E. A cidade: sugestões para a investigação do comportamento humano no meio urbano. In: VELHO, Otávio (Org.). O fenômeno urbano. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1987. p. 26-67.

SIMMEL, Georg. A metrópole e a vida mental. In: VELHO, Otávio (Org.). O fenômeno urbano. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1987. p. 11-25.

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Se essa rua fosse minha: arte de sobreviver nas ruas de mulheres

e travestis em situação de meretrício

Claudia Cristina Ferreira CARVALHO

Luiz Augusto PASSOS

Se essa rua, se essa rua fosse minhaEu mandava, eu mandava ladrilhar

Com pedrinhas, com pedrinhas de brilhantePara o meu, para o meu amor passar

Cantiga popular

O presente estudo de abordagem fenomenológica merleau-pontyana, em diálogo com Paulo Freire, Souza Santos, Geertz e Agamben, compõe uma das dimensões do projeto de pesquisa RuAção, vinculado ao Grupo de Estudo e Pesquisa Movimentos Sociais  e Educação – GPMSE/GEMPO/UFMT, cuja temática se circunscreve à condição de vulnerabilidade social, brutalidades e violações sistemáticas dos direitos humanos que ferem a dignidade das trabalhadoras do sexo em situação de rua.

O projeto RuAção propõe uma abordagem singular, adotando as orientações teórico-metodológicas do filósofo francês Maurice Merleau-Ponty no desejo de tornar visíveis as invisibilidades, trabalhando as informações dentro da sociologia das ausências, das vidas desperdiçadas, reivindicando uma efetividade do olhar na direção dos desejos destas trabalhadoras de rua (SANTOS, 2004).

Entre os múltiplos coletivos que povoam o universo da rua, há um olhar não apenas geral, mas prenhe de singularidade, a partir do corpo próprio. Olhar datado, que pronuncia os sentidos que emergem e conduzem as percepções das mulheres e travestis que vivem da rua enquanto profissionais do sexo.

A perspectiva de Clifford Geertz supõe enviesar nossos olhos na direção daquilo que veem, por sobre os ombros daqueles que tentamos compreender. Adotar a ótica desta população, no limite, de poder tentar enxergar não como nativos, que jamais seremos, mas como forasteiros interessados no mundo dos sentidos de seu mirar. A pesquisa fenomenológica busca compreender outras perspectivas

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que ajudem melhor a traduzir, no sentido de Boaventura Santos, um poliálogo com muitos. Incluiremos contribuições dos advindas dos Estudos Culturais, dos Estudos Feministas e da Teoria Queer, para a construção das noções de gênero, sexualidade e transexualidades. Compreenderemos gênero como uma categoria sócio-histórica-política-cultural que se assenta em um sistema de relações de poder que inclui sexo/sexualidade, ainda que estes não sejam determinados biologicamente, nem condicionados mutuamente, mas são construídos pelas experiências que perpassam o corpo senciente e sensível. O termo emerge de conceitos circulantes e normativos que interpretam polissemicamente símbolos culturais de expressão e comunicação, que promovem o sentimento de masculinidade e feminilidade (LOURO, 2011). Essa cosmovisão cultural se expressa jurídica e discursivamente, impondo definições de modos de ser e estar no mundo, proporcionando uma linha divisória de inclusão/exclusão.

A presente pesquisa quer descortinar alguns recortes, dos muitos modos de ser e viver de pessoas em situação de prostituição. A etimologia do vocábulo provém do latim prostituere: “colocar adiante”; “à frente”; “expor aos olhos”1. É curioso, entretanto, que a palavra “pessoa”, na semântica que lhe dá Emmanuel Mounier, significaria “afrontar”, inspirada no vocábulo prosopon – no sentido de se destacar, como elemento de relação proativa de um sujeito que não perde sua condição singular, mas a enriquece na troca com outro, que em parte espelha sua universalidade, e torna a relação constituidora de um “nós” com lastro de identidades, sem mesmização das diferenças. O primeiro conceito e o segundo possuem uma mesma reverberação semântica.

Em face da ambiguidade exacerbada da cultura da violência dos setores dominantes, do Estado e do capitalismo utilizarem estas pessoas como mercadorias, no intuito de arrancar-lhes o coração e a dignidade, elas não são susceptíveis de introjetarem, sem resistência, o estigma que lhes é dirigido. É sua resiliência e resistência, que acaba sendo utilizadas como legitimação de espancamentos e prisões arbitrárias.

1 Disponível em: <http://origemdapalavra.com.br/site/palavras/prostituição/>.

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RuAção: Das epistemologias da rua à política da rua

As atividades ligadas ao meretrício, outrora, se constituíam, antes da civilização indoeuropeia, como ato sagrado e político. Na contemporaneidade, são punidas por formas culturais mobilizadas na destruição cruel das vítimas. As narrativas das pessoas que auxiliaram na compreensão do microcosmo do universo constitutivo da fetichização do corpo feminino acerca das pessoas que “batalham programas nas pistas”2 nos possibilitaram perceber as vulnerabilidades e violações aos Direitos Humanos a que são, reiteradamente – mulheres e travestis –, vítimas invisíveis e caladas, por estarem na condição de animalidade3, cujos testemunhos não lhes inocentam.

Em grande parte, na atualidade, o sentido construído da comercialização dos corpos femininos para fins sexuais carrega como signo os efeitos da globalização econômica, da má distribuição dos bens sociais, culturais e econômicos, cujos efeitos são percebidos na reprodução, em escala mundial, do neocolonialismo, das desigualdades sociais e, principalmente, da falta de acesso às garantias sociais de uma grande parcela da população.

Rua como espaço de alteridade feminina

Vale ressaltar que o fenômeno da prostituição no Brasil tem suas raízes no colonialismo, período em que a presença feminina foi notada nas ruas, especialmente a africana. Na África Central, berço da civilização mundial há dois milhões de anos, nas sociedades de coleta e caça, a mulher era considerada um ser sagrado por ligar-se à ideia de vida, fertilidade. São sociedades matriciais aquelas da correlação de

2 Termo utilizado pelas travestis em condição de prostituição, para designar a gíria das ruas como espaço de trabalho.

3 Há sentidos muito diferenciados de animalidade. Agamben situa a diferença entre o conceito grego zoé e bios, sendo o primeiro correspondente à vida nua, ou a suspensão da condição humana que lhe exclui do Estado de Direito, e se torna vida matável, e aquele que o fizer não comete dolo. Fica reduzido à condição de coisa. O Bios diz respeito à vida num sentido de plenitude também do ponto de vista político, de sorte que o introduz na condição humana. Merleau-Ponty, contudo, discute a animalidade como a contraposição necessária ao antropocentrismo e a perda do retorno à vida selvagem, de inteireza, na qual há uma aprendizagem do corpo, base, inclusive, para o acesso ao mundo epistêmico e científico, que é um saber segundo. A animalidade supõe a indissociação entre natureza e cultura (RUIZ, 2013).

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Obras de Télio Fernandes

Fotos: Laércio Miranda

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todos com tudo no fluxo da vida, em que a cooperação era necessária solidariedade, sem coerção. Não incluía a transmissão de poder nem herança, por isso a liberdade sexual era maior, quase não existia a guerra e, não conhecendo a participação masculina na fecundidade, criam que a mulher ficava grávida dos Deuses, daí a sua natureza divina, desvinculada da sexualidade. O feminino e o masculino coordenavam o mundo juntos.

Já nas sociedades patriarcais, o gênero e a sexualidade são dimensões estruturantes da sociedade, particularmente marcados por relações de dominação, subordinação, hierarquização, nos quais o feminino é sempre inferiorizado, embora assuma contornos específicos em diferentes tempos e espaços.

Em sua origem brasileira, a prostituição parece ter sido adotada como uma atividade complementar ao comércio de ambulantes4, e o tabuleiro, por sua vez, servia de disfarce para a prostituição plena, com a qual as escravas cumpriam suas obrigações com seus senhores: “[...] a prostituição era uma espécie de expressão tipicamente feminina da pobreza e miséria social, sendo que a vadiagem e a criminalidade representavam seu contraponto masculino” (FIGUEIREDO, 2011, p. 155).

Nascida da crueldade do escravismo, a prostituição carregaria por séculos uma quádrupla exploração: sexual, econômica, simbólica e política. E, por outro lado, o fenômeno da disseminação das vendas em locais proibidos confundia-se com a presença feminina, que concorria para o mesmo fim, através das meretrizes. As medidas fiscalizadoras cresciam entrelaçadas, na mesma proporção, ao crescimento expressivo deste espaço de participação feminina, que, ao revés da situação, nascida da exploração, tornou-se um espaço político de autonomia e emancipação das mulheres negras, mulatas e pobres.

[...] o governador conde de Galveias expulsaria do arraial do Tijuco as mulheres ‘de vida dissoluta e escandalosa’, visto que costumavam transitar pelas

4 As chamadas negras tabuleiras dedicavam-se ao mercado ambulante de produtos de gêneros a varejo, principalmente de doces, bolos, alféloa, frutos, melaço, hortaliças, queijos, leite, mariscos, alho, pomada, polvilhos, hóstias, ombreias, mexas, agulhas, alfinetes, fatos velhos e usados. Neste cenário, muitas escravas que se dedicavam ao pequeno comércio, pressionadas pela obrigatoriedade que possuíam de pagar uma determinada quantia acertada com seu proprietário, entregavam-se à prostituição.

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ruas e igrejas transportadas por escravos em cadeiras e serpentinas, trajando ‘vestidos ricos e pomposos, e totalmente alheios e impróprios de suas condições’, o que era suficiente aos olhos do governador para se ‘reputar como contágio dos povos e estragos dos bons costumes’” (FERNANDO, 2011, p. 156).

Ao observarmos as narrativas históricas, é premente afirmarmos que as mulheres, especialmente negras, mulatas e mestiças, adotaram o espaço público das ruas como lugar de trabalho, já que a circulação neles era uma prerrogativa masculina. Assumiram uma posição e condição autônoma de luta e resistência como estratégia de subverter o colonialismo imposto pela coroa portuguesa, tanto do ponto de vista das relações econômicas quanto das liberdades democráticas em contextos escravistas.

Os efeitos da prostituição eram percebidos em sua fase desagregadora sobre a estrutura social, econômica e familiar, uma vez que as mulheres meretrizes participavam nos conflitos pessoais dos que circulavam em torno da prostituição, servindo muitas vezes como mediadoras nas lutas de resistências ao regime colonial escravista. Comumente, ocultavam nos prostíbulos negros fugidos, negros salteadores dos quilombos, e contrabando de pedras preciosas como ouro e diamante furtados pelos escravos. As questões públicas eram com elas partilhadas, através das quais possuíam o poder do conhecimento da face verdadeira daquela sociedade, que simulava uma ordem cínica.

Nesses espaços de sociabilidade crescidos às margens do tratado mercantil, fugas de escravos e aquisição de gêneros para o abastecimento dos quilombos eram práticas recorrentes. “O ambiente em que circulavam as prostitutas e seus clientes era marcado por todo tipo de trocas [...] prostíbulos eram locais em que também se bebia, dançava, batucava e festejava” (FERNANDO, 2011, p. 160).

A prostituição praticada pelas inúmeras negras alforras, também deporia contra o regime escravista, funcionou como uma verdadeira fábrica de produção de mestiços livres. De tal sorte que, a mestiçagem nascida da prostituição, ao acentuar a precariedade da ordem social, com eventuais crianças enjeitadas nas ruas e calçadas, estimulava o crescimento da insatisfação dos grupos empobrecidos. “Sem os laços verticais da relação senhor-escravo, os libertos, prontos a afirmarem

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sua condição, eventualmente mergulhavam no caminho da rebelião e do protesto [...]” (FERNANDO, 2011, p. 165).

A pobreza, a miséria e a desumanização fizeram a prática da prostituição invadir o cotidiano familiar, mudando em certa dose a cartografia colonial; o seu crescimento acentuou o controle das autoridades, as punições e as prisões dessas mulheres.

Se o binômio miséria e exclusão do mercado de trabalho transforma o cotidiano da sobrevivência das mulheres num verdadeiro inferno, oferece também enorme capacidade de luta e resistência naquela sociedade (ibid., p. 163).

A rua era espaço de emancipação em uma sociedade patriarcal, escravista e peada.

É preciso superar, em relação à prostituição na e/da rua, a visão de degradação, estigmatização presente nos discursos jurídicos, policiais e higienistas, para, no avesso das “sombras” do instituinte, reconhecer as dimensões de potência, resistência e luta forjadas ao longo dos séculos pelas “meretrizes5”, “damas da noite” e “putas”. As mulheres, em situação de meretrício, faziam o que queriam ou o que era demandado, negociando ativamente espaços de poder que, de outra maneira, seria impossível vivenciarem, dada a ausência a elas atribuída de autoridade social. Raça, gênero, trabalho pago e não pago, domesticidade e resistência se entrecruzam e dão testemunho da força social das mulheres da colônia ao império, especialmente aquelas de origem africana.

Se, no passado, a rua cativa foi ocupada como um importante marco no processo (des)colonizador, intimamente libertador do corpo feminino em espaços públicos, a prostituição na contemporaneidade demarca uma certa memória, como se fora ‘escalpo’, tendo em vista

5 Termo que deriva de merenda tvem, sem alterações, do latim  merenda, “coisas que são merecidas, ganhos”, do verbo merere, “merecer, ser digno de, cobrar, ganhar, ter lucro”. Dessa palavra merere vieram muitas outras, como merecimento, “aquilo que alguém tem para ser digno de louvor”. Meretriz é outra derivada: designa uma moça que presta determinados serviços e que vem de merere pela conotação de “lucrar”. Meretriz é tomada no estudo com o sentido das mulheres dignas de louvor, que merecidamente recebem lucro pelo seu trabalho. Disponível em: <http://origemdapalavra.com.br/site/palavras/meretriz/>.

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as dimensões políticas, sociais e culturais de territorialidade-base6 da cartografia urbana, que as excluiria e as levaria para os espaços da periferia das cidades. Contudo, elas tomam o centro das cidades e o coração das praças.

Tanto é fato que, durante o período que antecedeu os jogos da Copa do Mundo FIFA 2014, na cidade subsede de Cuiabá, no município de Várzea Grande, observamos a desterritorialização das profissionais do sexo por parte das autoridades, que investiram uma verdadeira ‘caça às bruxas’ em locais históricos de prostituição. Muitos “pontos” foram fechados, prostitutas retiradas dos seus locus por excelência de trabalho, onde vivem da comercialização do corpo para fins sexuais. Desafiando, contudo, os processos de exoneração do que se considerava lixo, inclusive sob o fechamento do CENTRO-POP7, a três quadras da Catedral metropolitana e do Centro Histórico de Cuiabá foi constituído um posto avançado, na noite, de moradores e moradoras de rua, demarcando controle do território.

Houve um processo perverso de assepsia social. As poucas mulheres que permaneceram “clandestinamente” nos pontos recusaram-se a falar com os pesquisadores. As que aceitaram contribuir foram aquelas cujos locais concentravam-se nas zonas periféricas da cidade, longe do olhar da FIFA. Ação totalmente arbitrária, dado que o espaço de uma cidade é público e não particular; que a liberdade de ir e vir de qualquer cidadão é ponto de honra dos Direitos Humanos e da Constituição Brasileira, e ademais, a prostituição no Brasil é reconhecida, desde 2002, pelo Código de Ocupações Brasileiro – CBO 5198-05 – do Ministério do Trabalho. É importante frisar que este Código é o documento normatizador do reconhecimento, da nomeação, da codificação, dos títulos e conteúdos das ocupações do mercado de trabalho, no qual se reconhece a rua como local por excelência de trabalho das profissionais do sexo. Daí a importância atribuída por muitos militantes do movimento social tanto de mulheres quanto de travestis profissionais do sexo à luta pelo reconhecimento legal da relação de trabalho estabelecida para fins sexuais.

6 Territorialidade compreendida do ponto de vista fronteiríssimo, os modos segundo o qual um grupo particular é separado dos outros por determinada correlação de forças que os separam, a luz das teorizações de Philippe Poutignat e Jocelyne Streiff-Fenart (1998).

7 Centro de Referência de atendimento à População em situação de Rua (POP).

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Então a gente se organizou, foi intuição de organizar politicamente e a nossa maior luta é por identidade; já temos uma ocupação, estamos Classificados no Código de Ocupação Brasileiro do Ministério do Trabalho, isso é uma conquista de 12 anos. Queremos a legalização porque, veja bem, se a prostituição for legalizada, nós vamos ter crianças e meninas e adolescentes em situação de exploração sexual, porque eu não chamei prostitutas femininas, eu chamo sim de exploração sexual, porque a sociedade mundial ainda não tem um entendimento que migração é migração, tráfico de seres humanos é tráfico de seres humanos, prostituição é prostituição e exploração sexual é exploração sexual de crianças e adolescentes. Então, prostituição é uma mulher adulta que está lá, ou por autonomia, ou então porque é atraente, ou porque quer estar lá8.

Lility9, nossa amiga travesti, foi quem lutou, foi a primeira profissional do sexo travesti registrada no Brasil, porque, desde 2004, o Ministério do Trabalho reconheceu a profissional do sexo. Só que eles criaram, mas não deram código, o código. Quando você vai ao INSS, você tem que dizer assim: ‘Olha, eu quero contribuir nesta categoria profissional’. Então lá não tinha, o que tinha era autônomo, mas não tinha a profissional do sexo. Aí, ela levou o pedido pro Centro de Referência LGBT, a assistente social de lá trabalhou junto com Lility pra que o INSS reconhecesse o código pra fazer o registro. Daí, desde então, a gente tentou levar, nos encontros aqui do zero, lá para Rondonópolis, para que as meninas começassem a se registrar10.

8 Lourdes, mulher em situação de prostituição.

9 É relevante assinalarmos a importância de Lility como representante, em âmbito nacional, da rede de Articulação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), na condição de presidente da Associação Mato-grossense de Travestis (ASTRA-MT), e também a forma violenta com que foi agredida diversas vezes na rua, em seu ambiente de trabalho. A última agressão sofrida quase a levou à morte por espancamento depois de denunciar, junto a setores de investigação, a rede de extorsão policial, cafetinagem envolvendo travestis em área de prostituição no município de Várzea Grande.

10 Luana, transexual feminina em situação de prostituição.

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RuAção: Das epistemologias da rua à política da rua

A nosso ver, há nos espaços da rua uma ideia de comunidade da prostituição, um estar junto que se articula em rede, um tribalismo, uma pertença identitária, mantidos na persistência de um ethos11 de grupo, unido por laços de afetividade, solidariedade partilhada. São grupos sociais, meretrizes, travestis12, que teimosamente lutam há séculos pelo direito autônomo de controle do próprio corpo, num contexto do crescimento urbano-industrial que se acirra cada vez mais.

Identidades de gênero, glamour e purpurinas: singularidades e diferenças de mulheres e

travestis na profissão do sexo

Durante a pesquisa de campo, ao indagarmos as profissionais do sexo os motivos que as levaram às ruas, há um processo anterior, motivado principalmente por violências, seguido de fatores sociais e econômicos. E, no caso das travestis femininas em que a dimensão identitária de gênero e sexualidade destoa da normativa vigente, o preconceito e a discriminação homofóbica, além de fatores econômicos, são os grandes motivos da sua inserção e permanência nas ruas.

Eu tenho problema familiar, minha mãe é religiosa e não aceita meu lado gay, minha opção sexual, muito menos o meu vício com a droga, entendeu? Ah! Hoje em dia, faço programas e sou um viciado.Acho que o Brasil, o mundo é muito preconceituoso, porque tem pessoas que olham pra mim com maus olhos, tipo entrar em determinados lugares. Às vezes, você vai procurar outro trabalho, leva currículo, só de você já chegar no estabelecimento pra pedir emprego, as pessoas já te olham diferente, você já vê o ‘Não’ de cara, entendeu? É melhor você se prostituir. Melhor, não é o caso; muitos tentam fazer o correto, mas as portas se fecham13.

11 Ethos tem o sentido de uma atenção obediencial, direção espontânea ditada pelo corpo sensível e reflexivo e atenção à realidade tal qual se manifesta nos desejos dela (PASSOS, 2008).

12 Conforme os estudos queer, compreendemos a transexualidade como identidade de gênero, oposta ao sexo (genitália) que se ostenta anatomicamente, no nascimento. A construção da identidade de gênero, em si e para si, das pessoas transexuais implica mudanças corporais tanto do “feminino travesti” quanto do “masculino travesti”. O corpo é sempre visto como uma interpretação social, então o sexo não pode ser independente do gênero (SCHOT, 1988).

13 Michely, transexual feminina em situação de prostituição.

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Obra de Télio Fernandes

Foto: Laércio Miranda

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Já para as mulheres, dentro da instituição família, aparece fortemente a violência doméstica, manifestada, sobretudo, na prática dos estupros parentais, abusos sexuais e outras violências:

Já sofri várias violências: fui estuprada pelo meu padrasto; daí eu fugi e fui morar na rua. A violência começa dentro de casa e é por isso que às vezes algumas mulheres terminam na prostituição, na rua, né? 14.

Há várias formas de violência. Às vezes, as pessoas deixam de contar sua verdadeira história. Uma prostituta que mora comigo já sofreu várias violências; foi estuprada dentro de casa. A violência começa dentro de casa e é por isso que, às vezes, algumas mulheres terminam indo pro cabaré, pra rua. Porque a violência primária ela começa em casa, na família, com o irmão, com o padrasto, né? Falo isso porque acredito que isso vai ajudar milhões de outras mulheres. A gente vai cobrar da justiça casos que acontecem que não têm solução15.

Deixa eu te dizer uma coisa: a violência ela está muito presente; ainda tem a violência de pegar uma menina, trazer do interior e levar para sua casa dizendo que vai botar pra estudar. Depois, a menina sofre abusos, violência sexual, e vem pra prostituição. Já no meu caso [...], fui vítima de violência sexual dentro da família16.

Assim, em virtude das violências sofridas, ao irem trabalhar nas ruas, mulheres e travestis ficam expostas a outros níveis de violências difusas como balas perdidas, roubos, agravos à saúde, violência na relação comercial entre prostitutas e clientes, cafetinagem velada por parte de donos de bares próximos aos “pontos” de trabalho. Essas pessoas são, sobretudo, sobreviventes. Assassinatos, espancamentos e síndrome do pânico estão muito presentes em suas vidas, com dificuldades de acesso às políticas de saúde. É preciso reafirmar que

14 Lourdes, mulher em situação de prostituição.

15 Jesus, mulher em situação de prostituição.

16 Cinderela , mulher em situação de prostituição, de 54 anos de idade, em suas narrativas, demonstrou a força da luta pela sobrevivência. Desde o estupro aos 10 anos de idade por um parente, sofreu sucessivas violências: morou na rua, exploração sexual, tráfico de pessoas para fins sexuais – rota Suriname.

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este ciclo de violência que imagina poder destituir a condição de humanidade destas pessoas jamais poderá fazê-lo, porque a dignidade humana não é um adereço exterior às pessoas, mas é inerente à sua vida em pele de gente. Há uma animosidade que marca, na carnalidade do sujeito, as diversas formas de opressão sofrida. O sofrimento, por vezes, tem uma dor muito maior, é saber-se expropriado simbolicamente e de fato de sua identidade, por negação dela.

As diversas formas de extermínio, aniquilamento do outro, são agravadas pelas condições de trabalho que exercem, e são traduzidas em experiência de nadificação, pela exigência do uso do corpo ao gosto do cliente, de modo que sua objetificação não estabeleça nenhum limite pessoal, inclusive aceitar espancamentos, agressões, exposição absoluta do objeto como tal e inclusive poder ser morto. Torna-se mais grave se há envolvimento afetivo e sexual com os “clientes” pela despossessão de si próprio e pela exposição à indecente e vergonhosa ‘soberania’ de um outro-mesmo. A ausência de privacidade de quem expõe o corpo na rua, devassado e voltado para fora, no sentido de responder às demandas que se resguardam no poder da força e do domínio, de maneira ilimitada, é o arregaçamento de dimensões íntimas, subjetivas, identitárias na forma mais avançada do comprometimento da autonomia.

Foucault, em Vigiar e Punir (1987) analisa os dispositivos que reorganizam o funcionamento das redes de vigilância dos procedimentos disciplinares que operam como reorganização das estruturas da “microfísica do poder”, dentre as quais a educação como produtora de uma rede de vigilância. Michel de Certeau (1990), em A Reinvenção do Cotidiano, mostra, contudo, que, ainda que a educação ponha em evidência o sistema de “repressão”, por trás dos bastidores, tecnologias mudas determinam curtos-circuitos nos engessamentos institucionais; as pessoas dotadas de sentidos singulares reinventam outras possibilidades, explodindo a bitola de um controle que se pretende linear e eficaz. Reinventar uma vivência é recriar, do mesmo, outra coisa, como marca ontológica do ser humano que é a criação. Certeau (1990, p. 41) se separa de Foucault: “Se é verdade que, por toda a parte, se estenda e se processe a rede de ‘vigilância’ mais urgente, é descobrir como é que uma sociedade inteira não se reduz a ela”.

Enfim, existem processos invisíveis, maneiras de fazer uma multiplicidade de táticas articuladas no cotidiano que reorganizam a ordenação sócio-político-cultural desse sistema. Contraposições

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à ordem estabelecida são permanentemente recriadas. São formas de ser, sentir e perceber que se tornam “bricoladoras” dos grupos/indivíduos, agora presos – apenas nominalmente – nas todo-poderosas redes de vigilância e proteção. A tentativa de compor uma ordem com significação não divergente, e que possa sempre proteger um lado contra o outro, é de uma ineficiência extraordinária, posto que aos aumentos de efetivos, tecnologias, informações e sigilos, o nível da ordem sonhada e anunciada não se efetiva e não se efetivará. As pessoas jamais serão objetos de outras pessoas. Como potência subterrânea17 nas vivências das ruas, mulheres e travestis reinventam as formas de opressão sofridas em experiências de alteridade, na medida em que fazem das ruas um palco de “glamour” da exposição do corpo.

Merleau-Ponty (1971) compreende que vivemos nossos corpos na experiência direta do mundo expressa por interesses e valores. O corpo não é um elemento desinteressado e desapaixonado da vida, do mundo. Somos humanos na medida em que fazemos nosso corpo pela incorporação do mundo vivido, que se expressa na comunicação.

A percepção das mulheres e travestis profissionais do sexo enquanto corpo sensível e senciente se cria pela vivência da sexualidade e da identidade de gênero18. Vai nesta direção, atentando para a singularidade que o caracteriza:

Ser travesti pra mim, bom, é silicone, é atitude, cabelo, peitão, saltão, né? A partir, claro, do momento em que você sai da sua casa pra prostituição como um trabalho. Isso é ser travesti: peitão, bundão, cabelão, saltão. Mulher não pode, pode travesti, né? Travesti é vontade de mudança e coragem de encarar a sociedade. Porque, depois que você muda tudo no seu corpo, põe sua cara pra bater, porque, em qualquer lugar que você vai com um peito, você é barrado. Já se você não tiver um peito, quanto menos aparência

17 Termo utilizado por Michel Maffesoli (2006) para reconhecer a força do instituinte presente nas formas de subversão da ordem dominante.

18 Tomamos como referência a compreensão da identidade sexual como o conjunto de características que diferenciam cada pessoa das demais e que se expressam através das preferências sexuais, sentimentos ou atitudes em relação ao sexo. Já a identidade de gênero se associa às noções e conceitos normativos de interpretações dos símbolos culturais; é definidor de papéis sociais atribuídos à masculinidade e à feminilidade expressas nas doutrinas religiosas, educativas, científicas, políticas e jurídicas (LOURO, 2013).

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RuAção: Das epistemologias da rua à política da rua

feminina, você é bem aceita, tem que mostrar também que travesti não é um bicho de sete cabeças. Travesti é igual a todo mundo, entendeu, cada um tem sua opção, cada um assume sua vida como quer19.

A construção da identidade de gênero das pessoas transexuais, em si e para si, implica mudanças corporais tanto do “feminino travesti” quanto do “masculino travesti”20. O corpo é sempre visto como uma interpretação e expressão social; então, o sexo não pode ser independente do “gênero” (SCHOT, 1988, p. 2).

Para as mulheres, a vivência corpórea na rua é também uma intersubjetivação dialógica entre a dimensão identitária de gênero construída discursiva, cultural e politicamente como identidade profissional:

Prostituição é uma mulher adulta que está lá na rua ou por autonomia, ou porque quer, ou então porque é atraente estar lá. É consciente, ela é uma mulher prostituta, isso é prostituição. Agora, uma menina que é induzida a ter relação sexual, por exemplo, com um senhor de idade, pois quem usa mais essas meninas são os mais idosos... Depois, a sociedade diz que essas meninas são prostitutas. Elas são vítimas de violência. Prostituta sou eu, consciente politicamente, não estou fazendo mais porque o mercado não é favorável 21.

Do ponto de vista fenomenológico, o corpo feminino na rua se torna exterioridade, a um só tempo “eu” e “meu”, no qual mulheres e travestis apreendem a exterioridade do mundo da rua numa interioridade singular, simultaneamente ao conjunto do mundo vivido, o que corresponde à interioridade de uma exterioridade que é o próprio mundo vivido.

No entrelaçamento dessas dimensões, Schot (1998, p. 2) confere ao termo ‘gênero’ esta luz:

[...] a organização social da diferença sexual [...] é o conhecimento que estabelece significados

19 Mislene, transexual feminina em condição de prostituição.

20 No caso da presente pesquisa, os participantes são apenas as travestis femininas.

21 Cinderela, mulher em situação de prostituição.

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para diferenças corporais [...]. Não podemos ser as diferenças sexuais a não ser como uma função de nosso conhecimento sobre o corpo. Esse conhecimento não é puro e não pode ser isolado de contextos discursivos.

Mas é também pelo corpo, carregado de ambiguidades das identidades de gênero, que se subverte a ordem instituída socialmente de normalidade que concebe o gênero como a ligação do sexo à genitália, e não uma construção particular do sujeito ligado às dimensões culturais, sociais, políticas, jurídicas, portanto a percepção de si que envolve a observação do gênero feminino como algo que tem um significado ligado aos usos que lhes dão como sentido da vida.

Estado de exceção: sexualidades e violências

O estado de exceção tende cada vez mais a sustentar um paradigma de governos dominantes da política contemporânea. A esse respeito, a afirmativa que se segue confirma os modos como mulheres e travestis são tratadas pelo aparato do Estado, formas que se aproximam dos dispositivos contemporâneos de totalitarismo.

Agamben (2004) afirma que o totalitarismo moderno, em certa medida, pode ser definido como a instauração, por meio do estado de exceção, de uma guerra civil legal, que permite a eliminação física não só dos adversários políticos, mas também de categorias inteiras de cidadãos que, por qualquer razão, são invisíveis para o sistema político. Nesta direção, a precarização das condições de sobrevivência, a dificuldade de criação e fortalecimento das redes de proteção, defesa e garantia dos direitos das profissionais do sexo, bem como de seus direitos humanos, reforçam não só a permanência delas nas ruas como as condições de insalubridade nas relações de trabalho estabelecidas na comercialização do corpo para fins sexuais.

Eu tô na rua como prostituta, porque tô sem emprego. Só a minha filha que trabalha, né, eu tô desempregada. Por isso que eu tô aqui, senão eu não estaria aqui. Tenho que pagar aluguel, comer, beber, manter meu sustento22.

22 Marlene – mulher em condição de prostituição.

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O primeiro direito a gente já tem, né, que é pagar o INSS, IPTU, né? Mas não é todos que aderem, foi uma conquista, vamos se dizer, né, no Brasil inteiro. As únicas travestis que não têm documento é de Cuiabá, porque no Brasil inteiro todas têm documento, e as cuiabanas não têm. Poucas cuiabanas que têm documentos23.

[...] quando a gente necessita de um serviço público, a gente não procura por medo de ser maltratado no serviço público. Nos lugares que já fui não tenho que reclamar, não. No último lugar foi lá, nesse ganha tempo, né? Ver esse negócio da profissão, mas, nos outros lugar não, eu já fui preparada para abrir a boca. Que vê: muitas travestis têm um vício, né, a droga... A droga é o que mais acaba com o travesti, e acaba o babado a droga e a doença HIV/AIDS, mas a doença é com o tempo e a droga já acaba mais rápido, destrói mais rápido. Se você não procurar um psiquiatra, um psicólogo pra te orientar... Porque parar você não vai. A psicóloga e a psiquiatra, a gente não consegue atendimento do pessoal do CAPS 24.

As falas acima expressam a necessidade de humanização nas relações com as profissionais do sexo que povoam as ruas. Trata-se de pessoas humanas com direitos primordiais que se encontram em condições, muitas vezes, advindas das circunstâncias impostas pela cultura e, por vezes, agravado pelas ações do Estado. A lógica determinada pelo capital se conecta à expropriação de direitos, e restringe oportunidades e condições estruturais que acometem grande parte da população em vulnerabilidade programada pelo sistema.

Heteronormatividade25 e patriarcalismo aparecem como elementos legitimadores da desumanidade que se manifesta na forma

23 Luana – transexual feminina em condição de prostituição.

24 Verônica – transexual feminina em condição de prostituição.

25 Compreendemos a heteronormatividade como o conjunto de prescrições que fundamenta processos sociais de regulação e controle, até mesmo aqueles que não se relacionam com pessoas do sexo oposto. O objetivo é formar todos para serem heterossexuais ou organizarem suas vidas a partir do modelo supostamente coerente, superior e “natural” da heterossexualidade (BUTHER, 2003).

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de expropriação da condição humana de travestis e mulheres para reduzi-las à ideia de homo sacer, no sentido agambenziano; isto é, a suspensão do estado de direito promovido por autoridades subsidiárias, destinando grande parte da sociedade à condição de poder ser matável. Ao serem questionadas a respeito dos seus direitos, mulheres e travestis acentuam os modos como a violência é institucionalizada a partir da negação de direitos. Um destes âmbitos foi aquele da violência policial, de ordinário ativa contra essas profissionais.

[...] Há negações de direitos, quando a gente está na rua [...] nós estamos supervulneráveis, tem usuários de drogas que passam lá e nos assaltam, pessoas passam de carro jogam ovo, tomate, pedra, caixa de cerveja seca, aquelas cervejas que vêm bebendo no carro e jogam [...] Eu já foi agredida na rua, por preconceito, por ser travesti, por tá na rua trabalhando, porque veado tem que morrer, somos ameaçadas o tempo todo, e a polícia nem dá atenção pra isso26.

Direitos Humanos é o nosso direito, né? É um direito negado do ser humano; quantos morreram na rua, assassinados, no chão? E tenho certeza que nenhum está preso. Umas travestis foram assassinadas, na maioria dos casos não acham quem fez, não acharam quem as matou. A travesti virou um descaso, a gente está vulnerável27.

A violência policial, a corrupção, a ineficiência na prevenção à violência, o pagamento de propinas a policiais como forma de manter a segurança, e a “autorização” do ponto de prostituição ainda são práticas recorrentes.

Já aconteceu de estar dentro do carro com a pessoa, não estar fazendo nada até o momento, e o carro da viatura passar e o policial militar nos abordar, e diz que vai levar a gente para a delegacia, que vamos prestar um BO28. Daí, ao chegar próximo à delegacia, ele parou a viatura, veio um outro policial, e disse:

26 Michele – transexual feminina em condição de prostituição.

27 Chaquirá – transexual feminina em condição de prostituição.

28 Boletim de Ocorrência.

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— Ah! Vamos logo acertar isso, vamos acertar isso. Pediu um X valor em dinheiro pra mim; um X valor pro rapaz, entendeu? — aí, eu falei:— Mas como assim? Dá dinheiro?— Ah, você ganhou folha, veado? — respondi:— Ah, veado não, veado está no mato, veado é animal; eu sou ser humano! Me respeita que eu te respeito. Não é porque você está com uma farda que você vai me desrespeitar. Porque não lhe interessa o que eu ganho...Eles queriam dinheiro. Então, eu disse:— Se tiver que ir para a delegacia, vamos todo mundo. - não estava roubando, nem matando29.

Ah! Tem um caso de uma amiga na casa dela, claro que não sei se ela era usuária, como eu tô dizendo, pode ter sido verdade né, pode ter feito alguma coisa de errado, furtado alguma coisa, sei que invadiram a casa dela, a ROTAM, bateram, deram paulada no abdômen dela, na cabeça dela, coronhada, chute, essas coisas30.

A polícia precisa melhorar e muito, muito mesmo, principalmente na questão da abordagem, Não sabem como falar o palavreado melhor de falar com uma mulher. ‘Essa é puta, tá na rua fazendo o quê? Tá se prostituindo? Tá vendendo o corpo?’ Elas são profissionais do sexo sim, mas não precisam ser chamadas em termos pejorativos. Eles deviam melhorar a formação deles ao abordarem as mulheres31.

É preciso considerar que as pessoas que fazem isso, no caso o agente de segurança pública, são vítimas da dependência. Isso não é uma pura e simples perversidade, trata-se de um processo civilizatório da cultura deste Estado no qual o aparato policial militar é colocado como dispositivo de controle, legalização do processo que busca manter o estado de direito, com suspensão dele para os não incluídos por ele mesmo, de sorte a se transformar, para estas pessoas, em estado de exceção permanente. Asseguram, dessa

29 Luana – transexual feminina em condição de prostituição.

30 Inês, mulher em condição de prostituição.

31 Cinderela, mulher em condição de prostituição.

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forma, a exploração, expropriação, exclusão ao acesso a tudo o que poderá engrandecer e promover as pessoas, como acesso à cultura, aos bens imprescindíveis à vida e à felicidade, à saúde, segurança, previdência, justiça, impedindo que a rua se torne o local, por excelência, onde essas violências são naturalizadas, sobretudo durante o período noturno, ou nos lugares da cidade onde não existam serviços necessários à segurança, iluminação, água, etc.

Hannah Arendt (2013) afirma que o ápice da dominação totalitarista baseada no terror é alcançado quando o Estado policial inicia a devoração de suas crias, quando o executante de ontem torna-se vítima de hoje. A violência aparece onde o poder está em risco. Portanto, a violência da polícia não é só uma ação isolada de um ou outro agente de segurança, sequer uma questão de ordem exclusivamente militar, mas sim de ausência de governabilidade democrática que se abra a todos e a todas, sem discriminação. Trata-se fundamentalmente do modo como a instituição, em toda a sua estrutura, vê e percebe o poder simbólico, esse poder invisível que só pode se dar com a cumplicidade daqueles que o exercem32. Há uma cultura vigente que cobra intervenções de difícil definição. O que existe é a ambiguidade da substância dos direitos humanos, pois a eles recorrem grupos inconciliáveis, todos com direitos. Ora, em uma sociedade de pessoas divididas, acaba que o poder de polícia fica esgarçado e sob pressões dos proprietários mais ricos, que se assenhoreiam do poder político.

(In)conclusões: Educação em Direitos Humanos – possibilidades reais

A nosso ver, existem pontos de confluência/singularidades entre mulheres e travestis profissionais do sexo, mas de fato o que as aproxima é a questão da noção da norma/invisibilidade, as relações de poder e a naturalização do estado permanente de exclusão, manifestada principalmente na ausência de políticas públicas voltadas

32 Apoiamos a compreensão da violência policial, embasada na concepção do poder simbólico teorizado por Pierre Bourdieu (1989), assim ao dar reforço à sua própria força, os agentes policiais contribuem para a domesticação dos dominados, hierarquizações das relações entre grupos subordinados e dominantes.

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a essas populações. Por último, há uma suspensão do testemunho destas vítimas e a execução silenciosa delas, ainda mais perversa do que qualquer outra execução. A violência é ainda maior pela covardia do risco que estas pessoas estão vivendo. Elas, talvez como ninguém, podem dizer sobre o fracasso do Estado do Capital e seus aparatos de ressocialização e repressão.

Existe um saber prático que reforça os estereótipos, os estigmas de violência contra as populações em situação de rua. E, em se tratado da discriminação institucional para com essas populações, há uma vigilância maior. Neste sentido, a participação social e a educação em direitos humanos aparecem com possibilidades de visibilidade das narrativas dos oprimidos na perspectiva da emancipação social concreta.

É premente o fortalecimento das redes de proteção, defesa e garantia dos direitos das profissionais do sexo e dos direitos humanos, tendo em vista as condições de insalubridade nas relações de trabalho estabelecidas na comercialização do corpo para fins sexuais.

Portanto, é preciso melhorar a articulação das redes de atenção à saúde, à assistência social, à educação, à cultura e ao lazer com a Segurança Pública, de modo que se amplie o leque de demandas sociais, bandeiras que o movimento LGBT – Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e de Mulheres Profissionais do Sexo – tem levantado. Não há, e é notável, pelas transexuais ou mulheres que sentem a insegurança e a arbitrariedade do ponto de vista geral – seja do Estado, seja do que se chamaria sociedade –, a dispensa simplificadora do Estado ou mesmo de uma força pública em direção ao cuidado. O que apontam é a existência de uma arbitrariedade que se dá, sob o manto deste mesmo cuidado, às avessas de todas as normas do direito e da democracia, acobertando uma ação mórbida de nível sádico no trato dos cidadãos.

A rua como local de trabalho, por excelência, e por conquista das travestis e mulheres, carece de atenção do poder público. É necessário que se reconheçam esses espaços como lócus de sociabilidade de expressão democrática.

Se essa rua fosse minha, eu decretaria o direito de todos e todas, sem qualquer discriminação, poderem ir, vir, trabalhar e ficar...

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RuAção: Das epistemologias da rua à política da rua

Referências

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BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005.

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_____. O saber local: novos ensaios em antropologia interpretativa. Petrópolis: Vozes, 1997.

GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Rio de Janeiro: LTC, 2008.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Porto Alegre: DP&A, 2006.

LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pós-estruturalista. 12. ed. Petrópolis: Vozes, 1997.

MAFFESOLI, Michel. O tempo das tribos. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006.

MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1971.

_____. O visível e o invisível. São Paulo: Perspectiva, 2012.

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RuAção: Das epistemologias da rua à política da rua

MISKOLCI, Richard. A teoria Queer e a Sociologia: o desafio de uma analítica da normalização. Revista Sociologias, Porto Alegre-RS, a. 11, n. 21, p. 150-182, jan./jun. 2009.

PASSOS, Luiz Augusto. Filosofia para educadores. O pensar para quem quer educação. v. 1. 1. ed. Cuiabá: EdUFMT, 2008.

RAGO, Margareth. Os prazeres da noite: prostituição e códigos da sexualidade feminina em São Paulo (1890-1930). São Paulo: Paz e Terra, 2008.

RUIZ, Castor B. Giorgio Agamben, genealogia teológica da economia e do governo. Cadernos IHU em Formação, São Leopoldo-RS, a. 9, n. 45, p. 26-30, 2013. Disponível em: <http://www.ihu.unisinos.br/images/stories/cadernos/formacao/45_cadernosihuemformacao.pdf>. Acesso em: 17 nov. 2014.

SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências. In: SANTOS, Boaventura de Sousa (Org.). Conhecimento prudente para uma vida decente: ‘um discurso sobre as ciências’ revisitado. São Paulo: Cortez, 2004. p. 17-59.

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SCOTT, Joana W. Usos e abusos do gênero. Disponível em: <http://revistas.pucsp.br/index.php/revph/article/view/15018>. Acesso em: 10 nov. 2014.

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Ruação – nos sentidos merleaupontyanos dos cuidadores

Fernanda de Arruda MACHADO

Itamar Camaragibe Lisboa ASSUMPÇÃO

O projeto RuAção nos convida a compreender os sentidos que moviam as pessoas em condição de vulnerabilidade que vivem da/na rua em diferentes dimensões nas quais emprestar nosso ouvido, entrar em comunhão com os olhos e o coração do outro(a) a partir do nosso corpo sensível e reflexivo é fundamental. Neste trabalho, ouvimos os cuidadores. Com metodologia e vocabulário fenomenológico merleaupontyano e em consonância com as construções de Paulo Freire, analisamos compreensivamente os fenômenos que aos poucos se revelavam em interlocução com as pessoas e nossos próprios corpos, reconhecendo as objetivas-intersubjetividades desveladas ou ocultas que nos permitiram compreender, em parte, seus depoimentos. Não temos qualquer pretensão de superar outras pesquisas, mas sublinhamos aspectos de uma totalidade por vezes invisibilizada por preceitos metodológicos clássicos, que comporão quem sabe um texto que revele a ambiguidade que é nossa companheira de estrada. Desde o início, Paulo Sérgio do Carmo explicita no seu livro Merleau-Ponty: Uma Introdução  (EDUC, 2011) que Sartre e Merleau-Ponty ouviam de pessoas que lhes eram próximas, sem que eles mesmos se conhecessem até então, que havia outro filósofo que fazia esforços na mesma direção. Buscavam debater as coisas da vida cotidiana com a mesma dignidade de tratamento que a filosofia dava às questões epistêmicas, axiológicas e praxiológicas. Levaram alguns anos para se encontrarem e saber um do outro, e da comunhão de buscas na mesma direção: a vida do dia a dia.

Portanto, vale a vida! A ela queremos escutar. Relembramos que toda a filosofia de Merleau-Ponty inspirou-se no último Husserl e, na preocupação com o mundo da vida, utilizou todas as fontes mais importantes e clássicas para mostrar algumas trilhas desta possibilidade. Ambos os filósofos empreenderam este caminho cheio de dificuldades e complexidade, mas a filosofia deles entrou em âmbitos pantanosos, em que se focava a filosofia mesma, a fenomenologia, a ontologia construída

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por eles, com dificuldades de ela tomar como centro os acontecimentos da vida cotidiana. De maneira especial, Merleau-Ponty. Procuram-se autores que usem Merleau-Ponty para ler a vida, e as pessoas continuam a ler e discutir a Filosofia de Merleau-Ponty, e não a Vida. Sua filosofia gerou um conjunto de princípios teóricos-metodológicos para orientar a leitura do mundo, de como ver, ouvir, escutar, sentir, compreender e interpretar a vida com os pés nas praças, nas ruas, nas feiras, nos cinemas, nas escolas, nas aldeias, sem perder o foco de ouvir as coisas e as pessoas e o mundo nos seus deslimites. Tantas vezes disse que era importante reaprender a ver o mundo. RuAção é o projeto que começa, em Cuiabá, desde os primeiros passos, nesta direção. Começou, exatamente, pela Professora Livre Docente Maria de Lourdes Bandeira De Lamônica Freire, e continuou na tradição de casar Merleau-Ponty com Clifford Geertz em Interpretação das Culturas (1979), de maneira especial, porque ambos buscam a densidade descritiva que permite, ainda sempre na ambiguidade, captar o olhar e a fala do outro sobre os ombros, com os olhos enviesados. Os dois sabem que a fala é muito mais do que uma “representação”; ela toca as coisas mesmas, sem deixar o mistério e o fundo de silêncio que recortam as palavras, porque há um mistério no mundo, um olhar interpretativo e polissêmico, de obra aberta, em tudo e todos e todas.

Nessa caminhada não estamos sós e, por isso, não poderia deixar de apontar Marilena Chauí, Antonio Severino, Creuza Capalbo, Sérgio do Carmo e Muniz Rezende, que empreenderam essa via muito antes de nós. Não estamos sozinhos, e queremos apostar nas trilhas acenadas por Merleau-Ponty, simplificadamente, enxergar a vida pelo avesso, mais perto do seu pulsar e menos das ideias sobre ela.

A pesquisa tem sentidos e mais sentidos, como diria Muniz Rezende na Concepção da Fenomenológica da Educação (1999), apresentando perspectivas para uma pesquisa na/da Educação. Ela possuiria três momentos, que corresponderiam aos sentidos da palavra ‘sentido’ (ibid.).

O primeiro trata da existência dos fenômenos e da consciência perceptiva. Capacidade de constatar a realidade que, para Freire, consiste em denunciar as falsas consciências, iniciando pela ideologia. “Tudo o que sei a respeito do mundo, mesmo pela ciência, eu o sei a partir de uma visão minha ou de uma experiência de mundo sem a qual os símbolos da ciência não significariam nada” (MERLEAU-PONTY, 1992, p. 2).

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RuAção: Das epistemologias da rua à política da rua

O segundo sentido retrata a aprendizagem significativa, o aprender a pensar e a construir conhecimento por meio das percepções, manifestações, compreensões, interpretações de que o sentido jamais esgota outras possibilidades de significação; processo de crítica ao conhecimento por meio do estabelecimento de relações significativas articuladas e referenciadas com a estrutura1.

O terceiro sentido da palavra ‘sentido’ refere-se à orientação, rumo que se constrói em detrimento ao posicionamento dos sujeitos diante da realidade. É a prática do reconhecimento e exercício da liberdade de fazer escolhas no interior da história. O que se apresenta é a consciência dos sujeitos2, sua percepção e interação, na dialética histórica, que faz com as coisas, objetos, produtos, sujeitos, produtores, onde se incluem os conflitos subjetivos da liberdade e todos os desafios advindos dela.

Qual é o nosso objetivo neste trabalho?Envolvidos com as possibilidades de diálogos promovidos a

partir das orientações fenomenológicas de Merleau-Ponty, iniciamos nossas gravações com os cuidadores de pessoas em situação de rua que conhecemos, imediatamente entrevistando, a partir da primeira

1 Merleau-Ponty (2006), em Estrutura do Comportamento, introduz o “regime de pensamento”, “um caminho fora da correlação sujeito-objeto”. A estrutura se mostra quando as propriedades de um sistema se modificam, mas conservam entre elas a mesma relação. No conceito de estrutura está o interesse de fazer o real de idealidade: a vida, “um pedaço de extensão”, se põe “a exprimir alguma coisa e a manifestar fora um ser interior” para uma consciência que recolhe essa expressão e essa manifestação: “o que designamos pelo nome de vida já era a consciência da vida”. SER, APARECER e PENSAR coincidem, mas não perdem suas ipseidades próprias, isto é, uma essência que só se expressa na RELAÇÃO. A estrutura não é um fundamento, por si própria. Nem sequer um conceito preciso, universal de representação, sem ambiguidade. Ela é, no sentido merleaupontyano, o que se apresenta num determinado espaço e tempo de coincidência evidenciada por pessoas humanas acerca das suas relações mutantes sobre o mundo, si mesmas, as coisas e os outros. Existe apenas com entes de razão, que não têm um sentido como uma existência a ser fixa e com significação universal (anotação para este trabalho do Prof. Luiz A. Passos).

2 O que percebemos como sujeito é a pessoa, só existente em relação a outro ser, ente ou coisa que se contrapõe quer a uma generalidade, quer a uma subjetividade “terminal”. Sequer começa em si; é precedida pela relação imediata com o mundo, outros, outras e as coisas. Quer ter também o sentido que lhe é dado pela feitura dela a partir de si, como autopoiese, sempre implicado seu corpo próprio. Não existe sujeito sem referência ao seu aparecer em espaço, tempo e sexualidade. Não é, pois, uma coisa, como sugere Merleau-Ponty, mas uma expressão do múltiplo no um, parstotalis, e a generalidade é, pois, interna à individualidade (Cf. Pascal Dupont: Vocabulário de Merleau-Ponty, 2010, p. 21). (Anotação para este trabalho do Prof. Luiz A. Passos.)

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pessoa, uma pessoa por ela indicada. Havia interrogações acerca das atividades desenvolvidas com pessoas que as buscavam. Eram jovens, adultos e também idosos, mulheres que buscavam pessoas para ouvi-las e, por vezes, orientá-las. Havia nos cuidadores o desejo de que o acolhimento, diálogo, reconhecimento e carinho pudessem contribuir com o que fosse melhor para a vida delas. O diálogo proporcionou isso, na medida em que não nos colocávamos nem como sabedores nem salvadores delas.

No intuito de promover um diálogo de densidade de informações para a análise compreensiva, foi construído um roteiro de entrevista, importante, mas que se mostrou mais uma ajuda à nossa insegurança do que adequado às entrevistas que desejávamos, em que as pessoas pudessem comparecer elas mesmas. O formato se desenvolveu como uma pesquisa aberta, por vezes com algumas dimensões da chamada pesquisa em profundidade. O mais importante é que não tinha caminhos predefinidos e congelados. Entendida como “uma das mais comuns e poderosas maneiras que utilizamos para tentar compreender nossa condição humana” (FONTANA e FREY, 1994, p. 361), a técnica qualitativa com questões abertas visavam cativar os entrevistados através do desejo que manifestavam de contar suas experiências.

Na condição de pessoas inquiridoras, garantimos as autorias dos entrevistados, citando seus nomes, questionando quanto tempo trabalhavam com as pessoas em situação de rua, e também quais as suas respectivas formações. Assim, optamos por adotar um codinome simbólico que as identificasse na transcrição das entrevistas.

Quadro 1. Nomes das pessoas entrevistadas e codinome simbólico.

Abelardo Nando – Cuidador de Abelhas – 20 anos – Engenheiro Agrônomo

Noêmia Maris – Doçura das Águas – 13 anos – Pedagoga

Beatriz Fernandes – Traz Felicidade – 3 anos – Psicóloga

Augusto Ciço – Sagrado – 15 anos – Estudante de Pedagogia

Raquel Silva – Pacífica – 2,5 anos – Assistente Social

Almira Cristina – Compreensiva – 3 anos – Psicóloga

Marcela Lisboa – Guerreira – 2 anos – Pedagoga

Fonte: Dados de campo, set. 2014.

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RuAção: Das epistemologias da rua à política da rua

As entrevistas foram feitas em lugares diversos: salas de atendimento e de aula, lugares de trabalho, conforme acordado com o entrevistado, sendo priorizado o melhor lugar para ele, seu espaço, considerado como sua zona de conforto. Sem tempo determinado, a entrevista seguiu a formalidade exigida pela necessidade de rigorosidade científica e pelo código de ética, mas se fez em forma de um diálogo de sentidos.

Iniciamos perguntando o nome do entrevistado, pedindo sua autorização (assinada para fins éticos e acadêmicos de pesquisa) para gravá-la e usá-la; perguntamos há quanto tempo trabalhava com pessoas em situação de rua; se o trabalho era voluntário ou com vínculo empregatício; qual o sentido que o levou a trabalhar com pessoas em situação de rua; e fizemos um convite para que nos contasse suas experiências.

Os relatos, em sua maioria, já trazem as respostas das perguntas do roteiro, a saber: qual o sentido das pessoas em situação de rua na sua vida? O que leva as pessoas para a rua ou o que percebe que elas buscam na rua? O que precisamos para atender melhor essas pessoas? Como podemos dar voz às pessoas em situação de rua? E qual recado que deixa neste contexto? E pedimos mais detalhes quando percebemos ser interessante o depoimento e/ou necessária maior intensidade ou densidade nas respostas.

É importante tecer algumas considerações antes de nos atermos à análise compreensiva e às interpretações dos sentidos. Nossas reflexões sabem da impossibilidade de esgotar possibilidades interpretativas. Registramos algumas compreensões, dimensões relacionadas, percepções dentro de um contexto: passado, presente e porvir. E o pedacinho que apresentamos, na vida vivida, tem uma realidade indivisível. Adquire, em um contexto maior, sentidos tantos, que se pode (re)presentá-los e tratá-los apenas em segmento, recorte, consequência ou sintoma.

Atendendo ao primeiro sentido, referimo-nos ao cuidador, ocupação que integra a Classificação Brasileira de Ocupações (CBO) sob o código 5162, aquele que

cuida a partir dos objetivos estabelecidos por instituições especializadas ou responsáveis diretos, zelando pelo bem-estar, saúde, alimentação, higiene pessoal, educação, cultura, recreação e lazer da pessoa assistida.

O cuidador, portanto, é uma pessoa da família ou da comunidade que cuida de outra pessoa de qualquer idade, que necessite de cuidados,

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com ou sem remuneração. Cuidar ultrapassa o acompanhamento das atividades diárias dos necessitados.

Nos relatos das entrevistas, as tarefas realizadas pelos cuidadores são semelhantes ao que preconiza o Guia do Cuidador, do Ministério da Saúde (2008), tais como: escutar, estar atento e ser solidário com a pessoa cuidada, ajudar nos cuidados de higiene, estimular e ajudar na alimentação e outras situações que se fizerem necessárias para a melhoria da qualidade de vida e recuperação da saúde desta pessoa.

O cuidar é a emoção central para a nossa existência como ser humano [...] é a emoção que funda o social e não se esgotou, ele está aí. Se não estivesse aí, não haveria dinâmica social e não estaríamos na aceitação do outro (MATURANA, 2001, p. 105-113).

Compreender as dimensões que envolvem as pessoas em situação de rua mostra-nos conexões mais amplas. “Desrespeitando os fracos, enganando os incautos, ofendendo a vida, explorando os outros, discriminando o índio, o negro, a mulher, não estarei ajudando meus filhos a serem sérios, justos e amorosos da vida e dos outros” (FREIRE, 2000, p. 67), – sentidos e tramas com o viés de educação.

Na nossa análise compreensiva, o processo de “ser cuidador” se dá em contextos diversos, resultado específico da vida de cada um, sendo: convite de outras pessoas, resultado da profissão que escolheu, sensibilidade ao olhar essas pessoas, conquista de um cargo público e a própria experiência de viver na rua. Não existe uma relação aparente com o contexto histórico, como se percebem e seu papel social ou espiritual (aptidão ou missão), mas essas dimensões também se fazem presentes.

Nesse contexto, destacam-se questões importantes à concrescência, onde os sentidos, sentimentos e situações do se fazer se consolidam, solidificam-se em testemunhos que são percebidos e descritos em um contínuo que constrói outro, um quiasma3.

3 Merleau-Ponty retrata o termo ‘quiasma’ no contexto de não identidade, não indiferença, mas a identidade na diferença, a composição da unidade na oposição, elementos que só o são sendo o outro. O quiasma é “o dentro e o fora articulados um ao outro”, outrossim “diferença dos idênticos”, sendo “o outro lado do outro”, onde as relações são ao mesmo tempo tecidas comigo e com o outro.

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Retratamos o quiasma como novo que não é novo; não é só presente, passado, ou desvinculado do futuro. Percebemos o cuidar com esperança, sentimento de quem faz um bem maior, de pertencimento a algo maior do que está fazendo. Para Merleau-Ponty, é o “ser bruto”, “ser selvagem”, “mescla do mundo e de nós [...] imbricação de tudo sobre tudo, ser de promiscuidade” (op. cit., p. 136-287), ser poroso que se envolve.

A construção que se percebe remete ao sentido de quem se educa, constrói-se na percepção de si mesmo com o outro – dimensões desveladas quando a pergunta volta-se ao sentido, quando se dá voz ao Ser.

Sentimento de olhar para aquelas pessoas na rua e querer propor para elas um lugar para descanso, um lugar que pudesse ter alguém que pudesse conversar, pudesse cortar cabelo, fazer a barba, tomar um banho. Então o sonho no princípio era esse: poder oferecer uma refeição, que pudesse tirar seus documentos, sua carteira de identidade e poder ser identificada e não ser tão anônima [...]. Então nós queríamos que elas sentissem que tinha alguém que se importava com elas (NOÊMIA).

Observa-se que esta ocupação não é de cuidar só da saúde; é um cuidar como quem recupera, educa, acalenta, alimenta os sentidos e a autoestima, sendo referência para diversas dimensões, que também abrangem a violência, entendida como ato que causa dano ou intimidação moral a outra pessoa ou ser vivo de forma intencional, identificada no anonimato e descaso citado acima.

No caso de Mato Grosso, segundo o Centro Nacional de Defesa de Direitos Humanos da População em Situação de Rua e Catadores de Materiais Recicláveis, no período de 2011 até 09 de outubro de 2014, houve 49 casos registrados, sendo 67 violações assim distribuídas: 49,3%, violência física; 20,9%, negligências; 14,9%, violência institucional; 9,0%, violência psicológica; 3,0%, descriminação; 1,5%, abusos financeiro, econômico e patrimonial; e 1,5%, tortura.

A violência parece-nos muito maior do que os dados apresentados, até porque muitas não são denunciadas. Ao contrário, na entrevista, a violência sofrida pelas pessoas em situação de rua foi denunciada por todos os cuidadores, em diversas dimensões, contextos e relações. Por

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exemplo, enquanto indiferença: “a pessoa já se sente violentada em seus direitos. A indiferença é a pior das violências. Alguém não te enxergar, alguém passar perto de você e sentir medo...” (NOÊMIA).

A violência se estende e se amplia nas relações. Freire (1980, p. 60) nos relata que: “quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é ser o opressor”, e isso se reproduz na relação com a mulher:

A mulher como propriedade, só por que eles estão na rua, isso não some, fica mais evidente. Elas têm dono, todas têm; às vezes, são vários. Elas se colocam nessa posição para se proteger; uma mulher sem parceiro é passível de qualquer coisa, logo que chegam e se aproximam de alguém (RAQUEL).

A violência causada pelos policiais não é denunciada por todos, mas existe. Vai da forma de abordar à extorsão e tortura. Lembramos que o oculto é parte e o silêncio é uma forma de expressão. Em respeito à percepção do silêncio forçado, não citamos esta fonte: “A violência policial é muito grande. A polícia não conversa, a polícia bate. Quando a polícia quer informação, quer o dinheiro deles, eles apanham”.

Os depoimentos, como a vida, trazem nuances, matizes que se misturam aos temas: “Às vezes, a violência é entre elas, ou quem convive com elas, parte de policiais, que às vezes tratam as pessoas como criminosos sem serem criminosos” (RAQUEL).

A violência entre eles é abordada por quase todos os cuidadores: “É assim que eles se impõem, de um grupo contra o outro ou entre eles; a violência é presente; eles não dialogam, eles não têm muita paciência, então eles te mostram quem que te manda, na porrada mesmo” (RAQUEL).

O que se pode observar nas falas é a denúncia da reprodução de violência. Segundo Freire (1980, p. 46),

Os oprimidos se identificam com os opressores [...] refletido na violência contra o corpo do outro como ser físico, pensante, atuante, se manifesta em ações que o reproduzem nas relações sociais, já que o oprimido carrega em si a consciência do opressor.

Muito mais do que a agressão física, a violência mostra-se nas relações entre oprimido/oprimido e oprimido/opressor; traz a negação do outro corpo consciente, expandindo-se. A violência inicia, também, nas relações entre os que acham que sabem e que julgam os demais

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como destituídos de conhecimento. Relações que mostram que possuem uma falsa concepção de seres humanos; “reduzidos a meras coisas [...] não se pode esperar que provoquem o desenvolvimento do que Eric Fromm chama de biofilia, mas o desenvolvimento de seu contrário, a necrofilia” (FREIRE, 2000, p. 67).

“Eles se matam uns aos outros [...] a bebida descontrola [...] Mesmo aqueles que convivem com eles, muitas vezes são agredidos, chegam até a tirar a vida do outro” (ABELARDO). A violência entre eles pode ser provocada por diferentes circunstâncias, como a posse de um espaço, como forma de garantia das regras por eles construídas, estimuladas por diferentes fatores e principalmente agravadas pelo consumo de bebidas alcoólicas, não diferente do todo o restante da sociedade. A bebida, droga lícita, é porta para outras situações inconvenientes, como crimes, violências e morte.

As relações são múltiplas e variadas, mas o consumo de álcool é, no mínimo, um importante facilitador das situações de violência. Não faltam evidências científicas de sua participação nos homicídios, suicídios, violência doméstica, crimes sexuais, atropelamentos e acidentes envolvendo alcoolizados [...] Estatísticas internacionais apontam que, em cerca de 15% a 66% de todos os homicídios e agressões sérias, o agressor, vítima, ou ambos tinham ingerido bebidas alcoólicas (LARANJEIRA, DUALIBI e PINSKI, 2005, p. 176).

Este dado não é específico da população em situação de rua, o que desmistifica que o que acontece nas ruas é diferente do que o que acontece na sociedade. A atitude de estar na rua é compreendida como um ato de rebeldia, autonomia, grito de quem não aceita as condições sofridas e rompe com elas, fazendo da sua forma de vida uma denúncia de que estamos construindo nossas relações e a sociedade equivocadamente.

Qualquer que seja a filosofia que se professe, mesmo a teológica, uma sociedade não é o templo dos valores-ídolos que figuram no frontão de seus monumentos ou nos textos de sua constituição, ela vale o que nela valem as relações do homem com o homem (MERLEAU-PONTY, 2010, p. 186).

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Nas tramas dos sentidos, as falsas percepções são desmistificadas, como as que se referem ao que leva as pessoas à rua:

[...] em alguns casos, as pessoas vão para rua porque querem usar drogas, mas a grande maioria dos casos, quando falo a grande maioria é noventa por cento dessas pessoas, vão para a rua por outra funções, por outra situação; são rompimentos familiares graves, são rompimentos amorosos graves, é a violência doméstica, é a violência sexual, é o abuso de adolescentes em todo esse desarranjo, naquilo que já é a própria vida da pessoa, e ela vai para a rua quando aquilo que é o lar, que seria a família, que seria o lugar de segurança daquela pessoa, já não tem mais, e aí ela rompe com tudo isso, ela rompe com um sistema muito maior, que é esse sistema de que eu preciso trabalhar, eu preciso ser feliz o tempo todo, eu preciso me vestir dessa ou daquela forma; aí ele rompe com tudo isso e ele vai para a rua, constitui um novo jeito de ser e o jeito de ser dele é aquele, e lá ele vai construir novos laços afetivos, novas famílias, e é assim que ele vai se constituir ali; então a droga é consequência dessa vivência de rua. Muitos casos e não a consequência de rua o problema das drogas (ALMIRA).

Buscam o “para si, ser ele longe do que o oprime, da dor, porque se decepcionaram com a família, com o relacionamento, porque queriam ser livres... Eu tinha tudo, mas... Alguns não deram conta de continuar na família” (NOÊMIA). Por um tempo, não se enquadram na situação em que viviam. Não que rejeitassem sua família.

É uma situação que não querem para ninguém, porque, uma vez que tá ali, o retorno para sua família, para o social, é difícil. Você perde sua parte, dignidade, moral, higiene, amor, afeto, você perde essas qualidades, é difícil falar sobre isso. Você não toma banho. Você não lembra de parente, de filho, de pai, de mãe. Aquele é seu mundo, parece que você vive como nômade; aquela situação, aquela é sua convivência, ali é seu mundo, como se fosse sua família, mas não tem nada de família, é uma situação de risco. Situação de saúde pública, as pessoas estão doentes, precisam ser tratadas, curadas... É complicado, é muito difícil (AUGUSTO).

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Para além do olhar da violência, da exclusão, da dominação do outro, da eliminação, no outro estão também as possibilidades contrárias, pois é o outro quem me acolhe, me dá segurança, me dá esperança de existir. “Quando nós estávamos, eles se sentiam protegidos, que a polícia não ia bater em ninguém, desacatar, então, quando chegávamos, eles se aproximavam” (RAQUEL).

Protegidos ou não, eles alimentam as condições inversas da violência: “[...] são pessoas que são solidárias umas com as outras, dão lição de solidariedade, de companheirismo; porque uma é machucada, a outra socorre; carregam, partilham seus bens, que são roupas que ganham, dão lição de solidariedade entre elas” (RAQUEL).

Observa-se aqui que “a outra extremidade invisível do eixo que nos fixa às coisas e as ideias”, outrossim, só existe enquanto infraestrutura, e esta está no sentido de “compreender o que faz que o sair de si seja em si e vice-versa”. Simultaneamente em que está em “para si”, está “para outrem”; são o outro lado um do outro. Rompe com as estruturas do mundo, mas, ao mesmo tempo, as ressignifica, atentando às suas necessidades imediatas (MERLEAU-PONTY, 1971, p. 129-317).

E isso que eles vivem, eles vivem para eles, isso não quer dizer que eles excluem as outras pessoas, pelo contrário, a partir do momento que eles vivem para eles, eles também conseguem auxiliar o outro. E trazer isso para minha vida foi muito importante, e só com o passar dos dias... Foi difícil, no início era duro mesmo, até o final do projeto era outra pessoa que estava saindo... (RAQUEL).

“O homem, como um ser histórico, inserido num permanente movimento de procura, faz e refaz o seu saber” (FREIRE, 1981, p. 47) – saber que se constrói ao ser sujeito,

A liberdade, que é uma conquista, e não uma doação, exige permanente busca. Busca permanente que só existe no ato responsável de quem a faz. Ninguém tem liberdade para ser livre: pelo contrário, luta por ela precisamente porque não a tem. Ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho, as pessoas se libertam em comunhão (FREIRE, 1980, p. 35).

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Da mesma forma que Freire retrata a busca de liberdade, percebemos a solidariedade com relação à violência. Aqui, fica bem claro como estar “para si” se está “para o outro” e isso transforma, transcende, faz uma dinâmica do envolver o outro em si, mas construir ou dar sentido é viver, sentir, aprender e libertar-se, o que pode ser compreendido nos depoimentos dos cuidadores ao se referirem à experiência com essa população:

Isso transformou a relação que eu tenho com as outras coisas que eu tenho na minha vida. Porque nós temos medo disso, do que eles vivem, porque eles não têm essas amarras que nós temos. [...] Eles não estão nem aí, não se importam com isso, e isso trouxe uma reflexão muito grande para minha vida, de achar que a gente vive mais para o outro do que para a gente (RAQUEL).

Descrever não dá conta da realidade. Entendemos que o todo é sempre maior que a soma das partes. Como aqui, a análise compreensível não dá conta das dimensões envolvidas, que não se acabam: “Onde quer que haja mulheres e homens, há sempre o que fazer, há sempre o que ensinar, há sempre o que aprender” (FREIRE, 2002, p. 94). “E aí eu comecei a me dar por conta de todas essas histórias, são histórias riquíssimas que marcaram minha capacidade de escuta do outro, de me fazer psicóloga; acho que me fiz psicóloga diferente depois disso” (ALMIRA).

Aprendizagem demanda respeito:

Eu só consigo fazer com que essa pessoa, qualquer pessoa, faça uma escolha diferente na vida ou opte por modos de vida diferentes, na medida, ou na condição primeira de aceitação daquilo que ele escolhe naquele primeiro momento, porque às vezes o que ele escolhe naquele primeiro momento é o que é suportável para a vida dele (ALMIRA).

Eu aprendi muito, eu aprendi muita coisa nesse período de lá para cá sobre o ser humano, principalmente em relação de como ver, sentir, ver a pessoas para além das condições, como ver o ser humano no meio dessa confusão toda; porque a gente olha para as pessoas e vê as condições delas.

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As pessoas em condições de rua estão em condições de desumanidade, elas estão sem... E aí você ouvir essas pessoas é captar os seres humanos atrás disso... (BEATRIZ).

A transformação não é apenas no perceber o outro, como olhar ou como se relacionar com ele, mas uma construção de si mesmo, desmistificando sentidos.

Foi extremamente transformador na minha vida [...] eu me tornei outra pessoa, eu aprendi muito que a ideia preconcebida que a pessoa tem dessa população é uma ideia preconcebida, fortalecida por uma sociedade que tem todo esse caráter de exclusão que é sustentado pelo nosso próprio modelo de vida, nesse modelo do capital, consumo, produção, e que essa população não se inclui ou não quer se incluir. E precisa ser respeitada quando não quer também [...] então eu mudei muito também (ALMIRA).

Observa-se que o transformar, a participação e o envolvimento desvelam a complexidade, o contexto maior:

O fato de me perceber no mundo com o mundo e com os outros me põe numa posição em face do mundo que não é de quem nada tem a ver com ele. Afinal, minha presença no mundo não é a de quem a ele se adapta, mas a de quem nele se insere. É a posição de quem luta para não ser apenas objeto, mas sujeito também da história (FREIRE, 1996, p. 54).

E assim interagimos e fazemos a cultura e a sociedade: “O projeto cresceu com eles, eles nos auxiliando, nos mostrando que não é bem assim” (RAQUEL).

No processo onde se promove ser sujeito, a transformação é parte da dinâmica:

No início, essa casa era passagem de pessoal morador de rua; iam para lá, passavam lá uns dias para descansar da rua e voltavam. Depois que foi ganhando característica de comunidade, de projeto de tratamento terapêutico (BEATRIZ).

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As relações envolvem o fazer para o outro enquanto parte de algo maior, de forma institucionalizada. São compreendidas também como uma questão religiosa, que é diferente da espiritualidade. NOÊMIA denuncia o uso desta como meio de apropriação e dominação: “Tem um grupo que exige coisas, que, para ser gente, tem de converter seu coração, para ser respeitado. Viver na rua é estar em situação de pecado. [...] Só a religião é que vai salvar as pessoas”.

Totalidade de horizonte que não é síntese [...] [para que] a natureza em nós tenha alguma relação com a Natureza fora de nós, é necessário até mesmo que a natureza fora de nós nos seja desvelada pela natureza que nós somos. O que buscamos é o nexus [...] Bergson: seja qual for nossa natureza do mundo e do Ser, nós lhe pertencemos. Pela natureza em nós podemos conhecer a natureza e reciprocamente é de nós que falam os seres vivos e o próprio espaço, trata-se de captar no exterior os raios que convergem para o foco do Ser. Não se trata mais de ordenar as nossas razões, mas de ver como tudo isso se mantém junto (MERLEAU-PONTY, 1984, p. 197).

O que queremos anunciar é que, quando se faz esta transcendência, essa união, esse convívio, envolvimento com o outro, isso traz novos sentidos, que podem advir da própria observação do cuidado: “A questão do Cuidado, da pessoa tão deficiente que, mesmo em condição de rua, ela olha para o outro, enxerga o outro na mesma condição e partilha o que ela tem” (RAQUEL). É procurar melhorar para dar o melhor para o outro: “Eu sei que tem homeopatia para parar de beber e quantos que o problema é apenas a bebida? E o que custa? [...] eu estou fazendo o curso para levar mais uma ferramenta para que eu possa ajudar, mais um recurso” (ABELARDO).

Sentido profundo mesmo eu acredito que veio da espiritualidade de algo que hoje eu não sei se saberia dizer, para você, o que que é. Que é uma coisa que transcende até o meu próprio entendimento e uma coisa que vem além de qualquer compreensão humana, alegria, eu não sei, é algo que eu não saberia dizer, porque nem eu sei definir, de dar conta de que vai além de toda satisfação humana (NOÊMIA).

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A transcendência4 se dá quando o que teria de sentido, de explicação, já não pode ser feito, pois as palavras e as referências que antes eram consideradas, até como incômodo, já não fazem mais sentido, pois o sentido é de ser com o outro, como que uma comunhão de sentidos: “Então chegou o momento de eles já não se importarem mais, porque isso já não nos importava mais, isso não importava, porque a gente estava ali” (RAQUEL).

Apesar de não ser uma questão do roteiro, os entrevistados desvelam algumas considerações do que necessitam para trabalhar com essa população, como:

a) Forma de perceber esta pessoa: “Você tem de pensar que são pessoas de bem que precisam de ajuda, seja ela como for” (AUGUSTO);

b) Construção do vínculo de confiança: “No início não foi fácil, a aproximação não foi fácil, porque o trabalho com essa população, no início, eles ficam bem desconfiados, mas você trabalha com confiança” (RAQUEL).

[...] Nós tínhamos a preocupação de não nos colocarmos como alguém melhor ou superior que eles, mas nós saímos das academias pensando que somos melhores; porque nós temos uma graduação, um título ou diploma nós somos melhores. Nós sabemos que eles precisam de nós. E isso tudo foi pro chão, pois não sabíamos nada, não sabíamos nem como nos aproximar deles, como conversar com eles, sem julgar, sem sempre em uma conversa tentar tirar eles de lá, não se preocupando com o que eles realmente queriam... (RAQUEL).

“A verdade não habita o ‘homem interior’ ou, antes, não há homem interior; o homem está no mundo e é no mundo que ele se conhece”. (MERLEAU-PONTY, 1992, p. 5). O sentido nos desvela que há um mundo a conhecer que é constituído de forma transcendental pelo sujeito. Compreende-se que há na educação o sentido de educar os

4 Para Merleau-Ponty (1994, p. 178-491), a transcendência designa o caráter dimensional, em polos correlativos: polo subjetivo é “o movimento pela qual ela se joga numa coisa e no mundo, [...] ou na direção de outro [...] ek-stase, orientado ou polarizado para aquilo que ele não é [...] o movimento pelo qual a existência toma novamente para si e transforma uma situação de fato”; o polo da objetividade designa a opacidade e a realidade das coisas, retraimento delas diretamente dos esboços concordantes que se dão; “é a identidade na diferença” (ibid., p. 279).

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sentidos para aprender a ouvir, ver, cheirar, degustar, sentir e lidar com a imaginação e os sentimentos. A sociedade está em estado de doença, de limitação, construindo situações, relações e pessoas que, quando desprovidas destas sensibilidades, constroem outros sentidos ou não sentem, mas, se sentem, são sob os sentidos e representações construídas. Estas, por vezes, são obstáculos à percepção da realidade e, portanto, da aprendizagem e da própria educação destes sentidos. A alienação se dá quando os indivíduos, grupos, sociedade e as classes sociais vivem e utilizam o sentido de suas vidas sem percebê-los efetivamente.

Observa-se que as pessoas que são cuidadoras constroem esses sentidos, essas percepções nas relações com as pessoas em situação de rua.

Esse programa tinha pessoas [...] houve mudanças nas nossas vidas; deste grupo, nasceram profissionais [...] Eles têm outro ritmo, então que respeite esse ritmo, mas, quando eles precisam, têm esse espaço para fazer sua própria higiene, sua comida, a questão mínima humana que tinha que ter. Mas principalmente tem que ouvir (BEATRIZ).

Acho que tem que ouvir, acho que a principal coisa que tem que usar com os moradores de rua é ouvir, ouvir quais são suas demandas, as suas demandas não são as mesmas nossas, então quais são as necessidades, as questões básicas, de condição de humanidade? Eu acho que tem coisa que a gente, olhando de fora, a gente já vê: precisam de condição de humanidade, precisam ter direito a comer, a tomar banho, quando eles quiserem, claro [...] (BEATRIZ).

c) Outras necessidades apresentadas que podem ser atendidas:

Pegar a certidão de nascimento para arrumar um emprego, para a polícia não bater [...] recurso, estrutura [...] Colaborar, envolver, promover não garante que a pessoa vá fazer o que nós consideramos o mais adequado [...] Mas já criaram problemas lá também... (ABELARDO).

d) Aquilo que devem obedecer e/ou a que se adequar:O Ser, como o porvir, são como que um querer mais, um ponto mais

complexo, portanto é mais significativo e participativo aonde se quer ir, em movimento, mesmo enquanto identidade, cultura e percepção. Para

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tal demanda, exercício e treino do ser no perceber, transcender-se, sair da individualidade e, no meio, fazer-se, estender-se, dar-se a interagir na continuidade, ressignificar valores e relações no existir e conviver.

Nas falas dos cuidadores, observam-se já as deixas, referências a serem consideradas ao tratar da construção de políticas públicas para pessoas em situações de rua. “Vejo que deve existir um ato de humanidade” (NOÊMIA). Sentidos como instrumento de percepção e como agentes catalizadores da concrescência, entre as pessoas em situação de rua e as demais dimensões.

Para Merleau-Ponty (2004, p. 16), o indivisível se dá em contínuo movimento de desdobramento, onde as experiências do meu corpo e do corpo do outro, dois lados do mesmo ser, abarcam a alteridade radical sem destruir a identidade de cada qual. Quem vê não se esgota em sua propriedade de ver, mas inclui a condição de alguém “imerso no visível através de seu corpo”, “ao mesmo tempo, vidente e visível”, paradoxalmente capaz de olhar e se olhar (ibid., p. 17).

A emoção toma conta, a gente já vem com ela. Eles também têm uma ligação comigo [...] percebo essas pessoas como meus irmãos [...] eles não têm nada [...], mas o pouco que eu faço eu recebo em troca [...] e isso cria um vínculo (ABELARDO).

Desvela-se uma espiritualidade, consideração com o que transcende, a animalidade, a relação, a carnalidade, para Merleau-Ponty a experiência intersubjetiva do nosso coopertencimento, ser indivisível, que tem plenitude e serenidade apresentadas em forma de fluidez de nossas relações de reversibilidade no contexto de homeostase fundamental.

Para Rezende (1999), “a aprendizagem só se completa na capacidade de ensinar e na proporção entre uma e outra”. E isso é feito por intermédio da linguagem que, para Merleau-Ponty (1971, p. 159-160), é “como a nervura, traz a folha de dentro, do fundo de sua carne, as ideias são a textura da experiência: seu estilo, mundo inicialmente, proferido em seguida”. Ou como Freire (1980, p. 90): “Não é no silêncio que os homens se fazem, mas na palavra, no trabalho, na ação-reflexão”.

A inteligência leva à linguagem; por meio desta, o ser humano significa, já que aprendizagens da língua e das linguagens possibilitam estabelecer várias relações significativas possíveis, não apenas de

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contradição, mas de contrariedade. Exemplo de alteridade radical, a linguagem é uma possibilidade de encontro das diferentes dimensões abordadas e de sentido.

Enquanto porvir, uma proposição do que percebemos ter sentidos é dar sentidos. As nossas problemáticas voltaram-se para o que apreendemos, o que é importante promover nas relações, inclusive de ensino-aprendizagem, entendendo que o cuidado envolve muito mais do que só cuidar; compreender em consonância com as percepções apresentadas pelos cuidadores.

Como podemos promover tais situações dentro das nossas estruturas atuais de relações? Como nos retrata Freire (2000, p. 33),

Se, na verdade, não estou no mundo para simplesmente a ele me adaptar, mas para transformá-lo; se não é possível mudá-lo sem um certo sonho ou projeto de mundo, devo usar toda possibilidade que tenha para não apenas falar de minha utopia, mas participar de práticas com ela coerentes.

Nosso sonho vem ao encontro do outro, aos direitos humanos, à transcendência, então dar sentido a esta pesquisa é promover a escuta dos sentidos dos cuidadores, que pedem pela escuta e cuidados com a população de rua, e que isso não se limite a retirá-los da rua, “porque, sempre que as pessoas se aproximam da população de rua, é na intenção de tirar essas pessoas da rua, e geralmente ir de forma compulsória, incisiva, às vezes até violenta” (ALMIRA). Nesse contexto, é importante entender que a rua é uma opção que deve ser respeitada: “Ele não queria nem saber de voltar, ficou na praça, o sr. Pedrinho, ele sentia falta dos amigos... Seu Pedrinho escolheu o que quis, ele sabia o que estava fazendo. Na autonomia, o que eu posso fazer é respeitar” (BEATRIZ).

Apresenta-se a consciência dos sujeitos, sua percepção e interação na dialética histórica que faz nas relações, onde se incluem os conflitos subjetivos da liberdade e todos os desafios advindos dessa escolha. A condição de situação de rua é compreendida por nós como busca de sentido, de romper, abandonar as construções anteriores para novas construções: “[...] o ato de conhecer ilumina a ação que é fonte de conhecer” (FREIRE, apud BECKER, 1997, p. 104).

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Já no exercício de ouvir e dar voz, percebe-se a necessidade de

um lugar para a pessoa tomar o banho, fazer sua higiene pessoal, que tenha terapia individualizada, pois não adianta fazer terapia de grupo com essas pessoas, porque a grande maioria delas volta para a rua [...] não estabelece o vínculo, não vão se expor [...] É uma questão de sobrevivência, tem de ter um jeito para se defender (BEATRIZ).

Cada morador de rua é uma unidade, um ser único como nós, que tem vontade própria, que tem necessidades, não tem necessidades únicas para morador de rua. Cada morador de rua é um ser humano, precisa escutá-los, e precisam ser ouvidos (ALMIRA).

As pessoas em situação de rua construíram seus movimentos, mesmo em condições precárias, indignas; excluídos e violentados mostraram, sob os olhos de seus cuidadores, que interagem, ensinam.

Essas vítimas denunciam a falta de humanismo na qual estamos construindo nossa sociedade. As pessoas em situação de rua apresentam-se aos seus cuidadores como construtores e necessitados de novas aprendizagens, relações, espaço, cuidado e sensibilidades; por serem diferentes, são excluídos, ou ainda se excluem pela ruptura que fazem ou fizeram, onde desvelam que não se adaptam à homogeneização capitalista de produção, onde sentimentos, cuidados não contam:

[...] essas coisas que para nós que é... Sem isso a gente não vive, não é a mesma coisa para quem está em situação de rua. Não está com a mesma necessidade, a cabeça está em outras coisas, a cabeça está passando por outras situações, as relações são outras (BEATRIZ).

Tal pesquisa demanda que se aprofundem reverberações de sentidos que se comunicam na relação e na experiência de nossas humanidades. Existem na vivência profunda da nossa própria humanidade, eco com todas as outras humanidades, que nos permitem tocar, com a ponta dos dedos, a experiência de todo outro ser, mesmo sendo ele diverso de nós. Talvez por isso Carl Rogers (2003), na sua obra Tornar-se Pessoa, dizia que aquilo que é o mais pessoal é também o mais universal. Ou um poeta, cujo nome não nos recordamos, afirmou: “nada do mundo me é estranho!”.

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De forma que todas as pessoas cuidadoras enfatizaram os sentidos do SENTIDO que emergia ao olhar, escutar, tocar e emocionar-se. Onde a transcendência – compreendida no RuAção, menos do que um saltar por cima, para fora, sobrevoar coisas, era buscá-la no íntimo, no movimento de mergulho, no movimento de abaixar-se, de comungar com a terra. Uma transcendência em direção ao despojamento e a comunhão como o similar a do poeta mato-grossense Manoel de Barros, em direção a tudo que era ‘desprezível’. Era sempre lembrado em nosso grupo uma passagem de Filipenses, do apóstolo Paulo, que dizia mais ou menos o seguinte “Jesus não achou que deveria manter a sua condição de Deus, esvaziou-se de si mesmo...”. A palavra esvaziar-se, segundo o professor Passos, é Kenosis – significa aniquilar-se para transcender-se, e chegar ao objetivo de Jesus, no texto do Filipenses: “fazendo-se homem em tudo, menos no pecado...” (FILIPENSES, 2, 5-11). O professor comentou que dizer “fazendo-se homem em tudo, menos no pecado...” era o óbvio! O pecado não é humano, e na desumanização, na “desgentificação” de que falava Paulo Freire – e que aparece em sua obra póstuma, de 2001, Pedagogia da Indignação: Cartas Pedagógicas e Outros Escritos –, fica definitivamente marcado o conceito do que é educação para ele: GENTIFICAÇÃO!

É necessário, nesta direção, saber que, se o Estado não pode tudo, na área de educação merleau-freireana, cabe-lhe um papel fundamental e imprescritível: aquele de ouvir a comunidade educativa dos habitantes deste país e construir políticas públicas na direção das suas necessidades e desejos, estudando, propondo, consultando, orientando, avaliando e (re)construindo políticas públicas nas quais prevaleça o interesse de todos e todas.

O serviço a todos e todas terá que enfatizar e priorizar a condição de precariedade e vulnerabilidade dos setores mais prejudicados, sobretudo no que tange a poder viver com saúde, liberdade, felicidade, segurança e apoio. Disponibilizar espaços que abriguem sem gerar temor, insegurança, sem expropriar, com acolhimento e carinho; que impulsionem recorrer à violência; que gerem apoio à escuta, atendimento daqueles que se encontram na necessidade de se recuperar das drogas, álcool, sem jamais fazer disso uma forma de desprezo, violência, intimidade e agressão que firam a condição humana de direito a ter direitos, em qualquer condição na qual esteja. Ao mesmo tempo, deve supervisionar os serviços ativos, pois todos sabemos,

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pelos jornais e noticiários, que há, entre estes, aqueles que usam as instituições como forma de exploração, violência e castigo. Esta é, sim, a tarefa de todos os aparatos do Estado: não permitir abusos daqueles que já estão em condição permanente de abuso público.

Deve-se também cuidar para que não se reduzam as intenções de sempre pensar a emancipação a partir das formas da Economia em curso. Há muito mais sociedade para além do Mercado e do Estado (MAUSS, 2003).

Não se poderá, via pesquisas atuais, compreender inteiramente que estamos em campo novo, de uma cultura antiga que revive das cinzas, e contribuir para repensar a convivência humana com um grau de sustentabilidade ambiental infinitamente menos abusivo do que aquelas que se baseiam no consumismo, no economicismo e na utilidade dos seres humanos para o mercado.

As considerações, dimensões e ressignificações desta pesquisa não estão esgotadas. Inconclusiva como a vida é, ela deverá continuar sua peregrinação, buscando enfatizar possibilidades que se anunciam à compreensão das tessituras feitas e algumas ainda ocultas, que só foram possíveis de se vislumbrar com a Fenomenologia. Trata-se de perceber e nominar sentidos vivos e de criar sentidos, de tecer, de fazer parte da teia, mas, neste mesmo ato, o desafio é construir múltiplas relações com tantos fios e cores, sem ter ainda contemplado a obra pelo seu lado direito, mas apenas no reverso, no avesso. É preciso compreender que esse avesso é também ele o avesso da carne, da carnalidade, que não possui apenas dois lados, mas dimensões de fenômenos que aqui procuramos apresentar dentro dos sentidos, mas que os transcendem no seu próprio ato de Ser.

É preciso desmistificar a violência imprevisível, que só depois que faz vítimas é que se conhecem suas articulações. Há a necessidade de o Estado garantir os direitos das pessoas em situação de rua dentro das suas prerrogativas de existência e relações, entendendo-a como um processo inacabável. Há muitos casos de passagem de (re)construção da identidade do Ser, onde é de extrema importância o diálogo, o cuidado como possibilidade de garantir a sua dignidade e preservar as suas potencialidades.

É preciso entender que esta situação de rua é a de quem quer liberdade, mas que, para concretizá-la, o sujeito precisará das razões de um sentido, em uma sociedade que destrói os sentidos por atacado.

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Os sentidos carecem de ser propositivos. Fazer-se, relacionar-se, ser, cidadania e esperança não são produtos desta sociedade, desta civilização.

Os desafios percebidos advêm da percepção de mundo enquanto carnalidade5, universalidade, onde as coisas então conectadas constroem concrescências e quiasmas. Trabalhar nas dimensões do(s) sentido(s) foi considerar e oportunizar outras possibilidades de diálogos, implicando o desejo do direito negado.

Mais que assistir e educar, o cuidar mostrou-se como deixar-nos invadir pelo(as) outro(as) e permitir-lhes enunciar a palavra e a expressão de si, reencontrando o direito de viver o sentido dos sentidos ocultos e silenciados. O cuidar das pessoas em situação de rua possibilita a transcendência, já que cuidar é educar, e quem educa aprende, quem aprende educa, educa os sentidos e propicia o convívio com os outros excluídos, rejeitados e invisíveis.

Na perspectiva de nossa própria humanização, promover o diálogo é torná-los megafones, expressões das subjetividades despercebidas em algumas relações, instituídas ou não, que estabelecemos. Promover condições dignas de Ser, sujeito de sua história no espaço que escolheu, ou construir espaço ou não espaço, coletivo ou desagregado, com sentido e significado, presente aberto, expressão de sentido acerca da existência.

Referências

BECKER, F. Da ação à operação: o caminho da aprendizagem; J. Piaget e P. Freire. 2. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 1997.

BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Paulo Freire, o menino que lia o mundo: uma história de pessoas, de letras e de palavras. 1. ed. São Paulo: Editora UNESP, 2005.

BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Guia prático do cuidador. Brasília-DF, 2008.

5 Nota do Professor Passos, de 23/11/2014: A carnalidade em Merleau-Ponty refere-se não à “carne do corpo”. Essa sempre aparecerá como “corpo próprio” e sempre com o sentido de um corpo único construído pelas próprias pessoas a partir de sua busca de prazer, sentido; e as pessoas a fazem também na interação com a cultura, relações, etc. Carnalidade é a relação da condição de criaturidade de todas as coisas. Na tradição hebraica, a ideia da carne aparece com este sentido: o “Deus de toda a carne” inclui os não humanos, os humanos, árvores, pedras. etc. A carnalidade em Merleau-Ponty tem essa semântica, o ser que se expressa em todos os outros seres, sem exceção de nada, nem ninguém.

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_____. Ministério do Trabalho e Emprego. Classificação brasileira de ocupações. Portaria nº 397, de 9 de outubro de 2002. Lex: coletânea de legislação. Disponível em: < http://www.mtecbo.gov.br/cbosite/pages/legislacao.jsf>. Acesso em: 10 nov. 2014.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980.

_____. Educação como pratica da liberdade. 15. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984.

_____. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à pratica educativa. 6. ed. São Paulo : Paz e Terra, 1996.

_____. Pedagogia da indignação: cartas pedagógicas e outros escritos. São Paulo: Editora UNESP, 2000.

GOVERNO FEDERAL. Política nacional para a inclusão social da população em situação de rua para consulta pública. Brasília-DF, 2008. Disponível em: <http://www.mds.gov.br/backup/arquivos/versao_da_pnpr_para_consulta_publica.pdf>. Acesso em: 10 nov. 2014.

LARANJEIRA, R.; DUAILIBI, S.; PINSKY, I. Álcool e violência: a psiquiatria e a saúde pública. Revista Brasileira de Psiquiatria, [s.l.], 27(3), p. 176-177, 2005.

MATURANA, H. Cognição, ciência e vida cotidiana. Belo Horizonte: UFMG, 2001.

MERLEAU-PONTY, M. O visível e invisível. Tradução de O visível e o invisível. 3 ed. Tradução de José Artur Gianotti e Armando Nora d’Oliveira. S. Paulo: Perspectiva, 1992.

_____. L’oeuvres. Paris-França: Gallimard, 2010.

REZENDE, A. M. de. Concepção fenomenológica da Educação. São Paulo: Cortez/Autores Associados, 1990. (Coleção Polêmicas do Nosso Tempo. v. 38.) 

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Consultório de rua do SUS de Cuiabá: descortinando os olhares sobre as

pessoas em situação de rua

Viviane da Silva MASSAVI Mara Cristina TONDIN

Quando conhecemos o projeto RuaAção, de muitas formas o precedemos. Acompanhávamos e realizávamos o Projeto Consultório de Rua, como equipe organizadora e que o acompanhava a partir da orientação existencial da Psicologia e de Paulo Freire.

O texto que compusemos para este livro bebe na fonte do vivido, durante nossa vida toda, como opção nesta direção, de apoio às pessoas em condição de sofrimento, perseguição, e com risco de morte, de sorte que os resultados aqui apresentados vêm do nosso corpo molhado de história1 com esta população.

O recorte, neste caso, era o de identificar como pessoas em situação de rua compreendem a si mesmas e percebem o mundo que as rodeia, na intenção de provocar uma reflexão acerca da imagem construída socialmente em relação a elas, considerando que a exclusão e a invisibilidade vivenciada por esta população é amparada por mecanismos de poder e opressão que, ao longo dos anos, vêm sendo edificados em nossa sociedade.

Para isso, adotamos como direção a abordagem fenomenológica merleaupontyana e as proposições de Paulo Freire, as quais favoreceram a compreensão dos significados que estas pessoas possuem em relação a si mesmas como Seres no mundo, e que com ele se relacionam e interagem. Para estas observações e análises, resgatamos as experiências do projeto Consultório de Rua do SUS de Cuiabá, onde, para além dos atendimentos em saúde, a proposta foi se configurando como uma referência para estas pessoas.

Assim, dentre tantas histórias e situações vivenciadas, é possível compreender que a percepção que cada um tem de si mesmo e de

1 Paulo Freire: “O teu corpo veio molhado, como o de qualquer exilado, do contexto de origem, molhado da história, da cultura do teu contexto. Molhado dos sonhos que nele tinhas, das tuas opções de luta, de teu compromisso com as classes trabalhadoras. Molhado de tuas expectativas, da idealização do próprio contexto”. Em “Pedagogia da Pergunta”, 1985, p. 6.

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suas escolhas de vida está permeada de grandes fissuras afetivas e potencializada por uma sociedade que produz graves desigualdades sociais, que não consegue aceitar aqueles que não veem possibilidades, não desejam e não se sentem mais capazes de se submeter a um sistema excludente, onde o ter se sobrepõe ao ser.

Este trabalho foi construído como parte do Projeto de Extensão e Pesquisa intitulado “População em Situação de Vulnerabilidade Vivendo na Rua”, desenvolvido pelo Grupo de Pesquisa em Movimentos Sociais e Educação (GPMSE), sob a coordenação do Professor Doutor Luiz Augusto Passos, carinhosamente conhecido por Projeto RuAção.

A proposta busca realizar um resgate fenomenológico das ações do Consultório de Rua do SUS de Cuiabá, fazendo uma reflexão acerca da vivência dessas pessoas com o objetivo de desvelar os significados e percepções dos olhares da população com relação aos moradores e moradoras de rua, e como esses olhares repercutiram na existência destas pessoas.

Aos poucos, as vivências da equipe mediaram o descortinamento de histórias de vida, não na posição de apenas ouvintes e observadores, mas completamente inundados e presentes em tempo real, sentindo cada gesto, cada palavra, cada olhar como expressão de vida que se dava no espaço de rua. Uma relação intensa e de ressignificação de existência para ambos, profissionais de saúde e pessoas em situação de rua.

Para as ações do Consultório de Rua do SUS de Cuiabá, a abordagem pautada na Redução de Danos2 foi fundamental, considerando que esta é a diretriz principal das políticas públicas de saúde. Foi, então, adotada como estratégia para o cuidado e direção nas ações deste projeto.

O presente artigo trará um recorte histórico deste projeto, que teve suas atividades encerradas em março de 2013, mas ainda urge que sejam contadas e lembradas, pois marcou a vida de muitos atores desta história: profissionais de saúde e população de rua.

2 Estratégias que se busca não no corte drástico da dependência, nem em processos de interrupção de práticas das quais as pessoas não poderão manter a cessação imediata de suas demandas, mas buscar-se-á formas menos danosas, ao corpo e à dimensão psíquica nele inseparavelmente presente.

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Consultório de Rua do SUS

Frente ao cenário do consumo de substâncias psicoativas em nosso país, principalmente álcool e crack, de maneira cada vez mais precoce, seguido de um significativo aumento de pessoas em situação de rua e em vulnerabilidade, o Ministério da Saúde lançou, em 2009, pela Portaria n° 1.190, o Plano Emergencial de Ampliação do Acesso ao Tratamento e Prevenção em Álcool e Outras Drogas (PEAD), que tem como diretrizes gerais o direito ao tratamento, a redução da lacuna assistencial, o enfrentamento do estigma, a qualificação das redes de atenção, a adoção de estratégias de redução de danos e o reconhecimento dos determinantes sociais de vulnerabilidade e riscos (BRASIL, 2010).

Com vistas a pouca demanda de acesso aos serviços da rede de saúde e sociais por parte da população usuária de drogas em situação de rua, o Ministério da Saúde levanta a necessidade de intervenções biopsicossociais efetivas, urgentes e integradas in loco, no espaço de rua (ibid.).

As abordagens realizadas nos locais onde se concentram pessoas em situação de rua possibilitam ações educativas de prevenção e promoção da saúde e de cuidados básicos clínicos, além da aproximação desta população e, quando necessário e de forma integrada, acompanhadas de outros serviços de saúde e assistência social. Seu principal objetivo é oferecer esta intervenção e cuidados no próprio espaço de rua, preservando o respeito ao contexto sociocultural da população.

Segundo a Portaria GM nº 1.059/2005, os Consultórios de Rua constituem um dispositivo público, componentes da rede de atenção substitutiva em saúde mental, oferecendo às pessoas em situação de rua ações de promoção, prevenção e cuidados primários no espaço de rua, alinhados às políticas de saúde do Sistema Único de Saúde (SUS).

Segundo Teixeira (2002), esta busca de alternativas visa construir algo para o alcance e a aproximação dos objetivos na universalidade, integralidade e equidade no que tange à saúde dos indivíduos e grupos. Ademais, visa também manter iniciativas educacionais, como reflexões críticas dos processos e resultados de implementações de inovações gerenciais, organizativas e operacionais em saúde por compatibilizá-las com a ação direta, para além das unidades de saúde. Atividades que extrapolem os muros institucionalizados, articulando

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ações em educação e saúde na prevenção de riscos e agravos pelo uso indevido de drogas ou a minoração do seu uso. Na esteira destas novas formas de atuação e resultados positivos alcançados pela experiência do Consultório de Rua da cidade de Salvador e também de nossa vivência, desde 2009, no Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas – CAPS AD – Adolescer, da Secretária Municipal de Saúde, que oferecia atenção integral a crianças e adolescentes até 18 anos, no qual atuávamos como técnicas, surgiu então a intenção de instituir estes cuidados também no município de Cuiabá.

Desta forma, em setembro de 2010, foi aprovado pelo Ministério da Saúde o projeto Consultório de Rua do SUS de Cuiabá. A partir desta data, iniciaram-se as ações para efetivar o serviço. Com muita dedicação, o projeto “Adolescer na Rua” foi inaugurado em 19 de novembro de 2011, ou seja, um ano e dois meses depois de sua aprovação, em decorrência dos processos administrativos e jurídicos da Secretaria Municipal de Saúde.

O Consultório de Rua de Cuiabá iniciou, desta forma, suas atividades em campo, junto à população de rua, depois do mapeamento da cidade e definição das regiões estratégicas de atuação, considerando o número significativo de pessoas em situação de rua em uso/abuso de álcool e outras drogas na região dos bairros Porto e Alvorada, nas proximidades da Rodoviária.

Um dos critérios observados para a decisão das áreas escolhidas foi a conotação de pessoas em situação de rua, mais especificamente os que moravam nestas regiões. Um levantamento realizado pela Secretaria de Assistência e Desenvolvimento Social do município também auxiliou na obtenção de informações sobre os locais de maior necessidade de intervenções do Consultório de Rua. E é importante compreender que, em geral, são negros ou pardos3.

Outro determinante para a escolha das áreas foi regiões que contemplavam uma rede de apoio próxima, com o objetivo de articulação com outros serviços de saúde e com a rede intersetorial, uma vez que prevíamos comorbidades associadas4 ao consumo

3 Informação disponível em: <http://www.mudamais.com/ruas-e-redes/cada-duas-horas-sete-jovens-negros-sao-assassinados-no-brasil>.

4 Várias doenças intercorrentes, juntas, na mesma pessoa.

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abusivo de drogas e às próprias condições precárias a que são submetidas as pessoas em situação de rua. Portanto, o Consultório de Rua, isoladamente, seria incipiente para uma atenção que fosse ao encontro das necessidades desta população.

Antes de iniciar as atividades, após a definição das áreas de atua-ção, fez-se necessária a abertura de campo. Este momento exigia uma abordagem inicial nestas áreas, com o objetivo de identificar possíveis lideranças locais na comunidade e no próprio grupo de rua, assim como em comércios e segurança pública que trabalhavam nestas regiões, a fim de apresentar os profissionais e a proposta do Consultório de Rua.

Assim, a abertura de campo se apresentou como uma aproximação, de maneira a não impor a presença do Consultório de Rua e sua equipe, mas a fim de oferecer este serviço não invadindo o espaço onde se inscreve a existência destas pessoas. Sentíamos estes becos, pontes, calçadas, terrenos baldios como suas moradias; percebíamos que, para estarmos nestes espaços e realizarmos uma experiência significativa, necessariamente precisávamos do consentimento e aprovação destas pessoas que fazem da rua sua “casa”.

Muitas foram as inquietações frente às expectativas da equipe em como fazer, como acolher e ser acolhida. Gradativamente, elas foram se diluindo, à medida que vivenciávamos um “fazer com”, um “estar com” estas pessoas, e isso já constituía uma aproximação daquilo que outrora fora idealizado e planejado. Contentamo-nos, a princípio, com esta aproximação.

Embora tivéssemos planejado e organizado uma forma de atuação, percebemos que não haveria um “jeito certo”, conforme previsto. A experiência mostrou que, para além de conhecimento teórico e técnico, a vivência enquanto “um outro” neste espaço era o que possibilitava um encontro terapêutico. Era um despir-se dos valores e práticas de cuidados em saúde padronizados, para estar aceitando positivamente, de maneira incondicional, este outro que se mostra e se esconde em sentimentos de invisibilidade (ROGERS, 1961).

As práticas de cuidado com a saúde extrapolavam os protocolos, uma vez que precisávamos “estar com” e “sentir com” as pessoas em situação de rua, as drogas e mundo circundante, colocando-nos em espaços jamais esperados. Nestes encontros, experienciamos um cuidado, uma escuta sensível, um processo de ensinar e aprender com as pessoas em situação de rua.

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O Consultório de Rua do SUS de Cuiabá ofereceu atendimentos de novembro de 2011 a março de 2013, atuando em horários noturnos, tendo realizado mais de mil e trezentos atendimentos na rua, constituindo um serviço com grande potencial articulador e de garantia dos direitos das pessoas em situação de rua.

Equipe multiprofissional

Para a estrutura de funcionamento, o Consultório de Rua necessitava de uma equipe com formação multiprofissional em saúde mental, atenção básica e assistência social, e principalmente conhecimentos e disponibilidade interna para atuar na perspectiva de redução de danos. A equipe se constituiu com profissionais provenientes de várias disciplinas, para uma atenção que atendesse aos mais variados problemas decorrentes do uso de substâncias psicoativas e da própria vulnerabilidade e riscos a que estão expostos as pessoas em situação de rua.

Segundo o Ministério da Saúde, pela Portaria nº 3.088, de 23 de dezembro de 2011, a atenção integral a usuários de álcool e outras drogas deve ser constituída por equipe multiprofissional responsável por um conjunto de ações de saúde, de âmbito individual e coletivo, que abrange a promoção e a proteção da saúde, a prevenção de agravos, o diagnóstico, o tratamento, a reabilitação, a redução de danos e a manutenção da saúde com o objetivo de desenvolver a atenção de maneira integral, que impacte na situação de saúde e autonomia das pessoas e nos determinantes e condicionantes de saúde na coletividade (BRASIL, 2011).

Para atender as necessidades de integração intersetorial entre as políticas públicas de saúde e as demais políticas públicas, visando melhorar a capacidade de resposta às demandas e necessidades de saúde inerentes à população em situação de rua, ficaram definidas, pela Portaria nº 122, de janeiro de 2012, as equipes de Consultório de Rua de caráter multiprofissional que lidam com os diferentes problemas e necessidades desta população.

A integração entre os saberes e a interação dos profissionais se tornou ponto chave para a realização do trabalho, dadas as suas características, que impõem à equipe uma comunicação sutil, mas objetiva, nas decisões que precisam ser tomadas no “aqui e

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agora”, convocando-a para atuar na interface dos mais variados campos disciplinares em busca de efetividade no enfrentamento dos problemas.

Pela complexidade e especificação do serviço de Consultório de Rua, a equipe evidentemente precisou ser atentamente selecionada e preparada, conforme as diretrizes ministeriais e as peculiaridades do serviço, pois são profissionais que se submetem a realizar serviços nestes espaços e, principalmente, que têm habilidade e empatia para com estas ações, minadas de toda forma de riscos e vulnerabilidades.

Estes profissionais representam todo o aparato clínico essencial para essa prática. Muito mais que conhecimento técnico, trata-se de um jeito de ser que processe a intervenção, no modo de acolhimento, que crie vínculos, rompa com valores preconceituosos, exercite a criatividade e, principalmente, uma escuta humana e ética.

Assim, a equipe inicial foi constituída por uma coordenadora, uma assistente social, uma psicóloga, uma enfermeira, um redutor de danos e um motorista. Juntos, atendiam, discutiam e traçavam as formas de atuação e encaminhamento dos casos.

Pessoas incorporadas com a proposta de atenção humanizada representavam o corpo vivo e sensível que mobilizava as ações do Consultório de Rua. Percorrer um caminho de atuação em equipe frente a uma realidade tão complexa exigia dos profissionais um olhar solidário e apoio técnico-teórico dos demais saberes, na interface com os diversos campos disciplinares, permitindo formas de cuidar que muitas vezes ultrapassavam os conhecimentos específicos de suas formações, mas que encontravam no companheiro de trabalho este referencial.

Houve a preocupação com o ser humano como corpo sujeito, uma vez que a vida concreta é sempre encarnada e não haveria forma ou jeito de fazer conforme o pensamento, pois percebemos que este não correspondia à experiência sensível.

Para Merleau-Ponty (2006), o corpo (corpo vivido)5 é a essência do sujeito, através do qual se constrói e se torna mundo

5 Anotação do Professor Luiz A Passos: “E este conceito será o fundamento mesmo da Filosofia de Merleau-Ponty expresso em sua tese intitulada Fenomenologia da Percepção mantendo-o, inclusive, em suas últimas obras, em especial: Signos”.

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individual, inserido no mundo dado, em uma situação de tempo e espaço circunstancial que contribui para a constituição da sua subjetividade e expressividade.

Assim, aqueles seres humanos não eram a soma das suas partes, pois, desde sua origem, já constituíam uma totalidade, desenvolvida ao longo da história. Eles são sujeitos da sua expressão no mundo, comunicam-se com ele, com o próprio corpo e com os outros. Portanto, a equipe sentia que necessitava ser com eles, ao invés de estar ao lado deles, desconstruindo a ideia de neutralidade e separação entre corpo e mente (MERLEAU-PONTY, 2006).

Outro aspecto importante na equipe diz respeito à postura solidária de integração de saberes como parte fundante dos profissionais do Consultório de Rua de Cuiabá, que comungava do mesmo desejo de fazer as coisas acontecerem, avançarem sempre para um atendimento humanizado, que respeitasse os direitos e as escolhas das pessoas. Percebíamos junto que, enquanto estávamos na rua atendendo pessoas, saíamos de nosso lugar de profissionais ou pesquisadores para vivenciar aquela realidade, e com eles sentir, sorrir, chorar, ajudar, indignar-nos, ensinar e aprender muito. Esta nos parece a maior formação possível para um profissional: estar lá na rua, onde as vivências acontecem – uma experiência inscrita na pele, na carne e no construto desta relação.

Para Merleau-Ponty, nesta mesma obra, a ciência é empírica, fundamentada na experiência humana e esta é sempre a de seres humanos envolvidos com o mundo, pois nele vivem e habitam. Assim, as experiências de todo ser humano são experiências do mundo e é o mundo que oferece sentido a elas. O ser humano é um ser mundo.

Neste sentido, quando saímos de nosso lugar para vivenciarmos coisas junto com as pessoas em situação de rua, sentimos o mundo humano como um encontro de convivência com nosso semelhante e, de fato, estabelecemos um vínculo de confiança com estas pessoas, sentimos que se fazia necessário compartilhar a experiência de mundo com elas, em espaços jamais imaginados como possíveis de estarmos e muito mais: provocar reflexões e intervenções em educação e saúde nestes espaços repletos de sofrimento e exclusões de todas as formas, mas também locais de vivenciar os seres ressignificando suas próprias histórias e percepções de si.

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Redução de danos como prática libertadora

Nossas inquietações perpassavam em como acolher, olhar, sentir o sofrimento do outro sem viver/estar na rua com estas pessoas, e para isso a vivência da Redução de Danos (RD) foi a possibilidade de estarmos com as pessoas em situação de rua, de maneira congruente e empática. Acolher é a capacidade de aceitar as diferentes formas de ser e estar no mundo. Quando se está ali na rua, sem a “proteção” física de muros e paredes, quando “ser” um profissional da saúde não se mostra suficiente para tocar o outro, parece-nos necessário buscar dentro de cada um estratégias que extrapolem o “beabá” de um atendimento. Referimo-nos a pessoas fragilizadas, excluídas e autoexcluidas de um sistema brutalmente, onde o ter se sobrepõe ao ser, onde o maior “pecado” destas pessoas configura-se em conseguir se desligar desse sistema.

A RD, como estratégia de saúde pública no Brasil relativamente nova, iniciou em 1989, no município de Santos-SP, quando os altos índices de transmissão de HIV estavam relacionados ao uso indevido de drogas injetáveis (MESQUITA, 1991). Foi então adotada como estraté-gia para o enfrentamento ao aumento do número de pessoas infectadas.

A Redução de danos se tornava uma alternativa contrária àquelas que baseavam o tratamento somente na abstinência. Com isso, ao longo dos anos, suas ações foram sendo ampliadas na oferta em intervenções de saúde, diversificando suas demandas para além dos usuários de drogas, atuando também na promoção e prevenção aos agravos de doenças infectocontagiosas. Baseado nos resultados positivos da estratégia, no ano de 2003, a RD passou a ser a principal diretriz norteadora da Política do Ministério da Saúde para a atenção integral aos usuários de álcool e outras drogas, e da Política de Saúde Mental.

Assumir a estratégia de RD nos coloca em uma posição contrária à chamada “guerra às drogas”, que identifica o abuso de drogas como algo maligno e que, por isso, precisa ser combatido. Isso justifica inclusive as ações violentas contra os usuários e principalmente contra a população em situação de rua.

O Consultório de Rua do SUS teve como diretriz principal esta estratégia, sendo possível vivenciar, sentir na carne a importância da RD. Mas o que exatamente diferencia essa ação das demais? A empatia, ou seja, o cuidado, a forma de acolher e de olhar o outro se vendo nele, pautados pelo respeito à liberdade de escolha, compartilhamento das

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responsabilidades no seu atendimento e, acima de tudo, pela garantia aos seus direitos como seres humanos.

Os moradores e moradoras em situação de rua sofrem pela falta de direitos básicos em saúde e a RD amplia o acesso a essa população, fortalece sua autoestima e lhe garante a obtenção de insumos de prevenção, construindo vínculos, relações de confiança, tudo isso sentindo o amor nos olhos, nas palavras, nas escutas e nas atitudes.

A RD possui um grande potencial de ser uma prática libertadora, pois atua com vistas a proporcionar que o sujeito seja protagonista de sua própria história e promova a construção de caminhos diferentes e possíveis. A relação construída é horizontal, baseada no diálogo franco e aberto, por isso podemos afirmar, com toda a certeza, que o melhor atendimento como redutora de danos foi no dia em que nos sentamos no chão para conversar com um grupo de moradores de rua. A partir daquela noite, não houve mais a diferenciação: eles estavam em mim como eu estava neles. Para Freire (1980, p. 64), “[...] o educador já não é o que apenas educa, mas o que, enquanto educa, é educado, em diálogo com o educando que, ao ser educado, também educa”.

O redutor e a redutora de danos possuem um instrumento poderoso em suas mãos, a possibilidade de troca diária de conhecimentos através do diálogo com as pessoas em situação de rua. Um redutor se faz na rua; sua graduação é ali mesmo no espaço da rua, no corpo-a-corpo. É muito mais que um mero entregador de preservativos; significa estar naquele local, com aquelas pessoas, de coração aberto para um acolhimento incondicional e, junto com cada um, construir uma ética do cuidado.

Não existe uma maleta pronta com as ações de RD; cada passo é edificado junto, por isso o potencial desta prática é imensurável, uma vez que números são incipientes para dizer acerca destas relações de vínculo que foram construídas. Se existe uma receita de como fazer, com certeza, é a entrega de uma alma que escuta outra alma – é escutando que aprendemos a falar com eles.

Neste sentido, argumenta Freire (1998, p. 127):

Se, na verdade, o sonho que nos anima é democrático e solidário, não é falando aos outros, de cima pra baixo, sobretudo, como se fôssemos os portadores da verdade a ser transmitida aos demais, que aprendemos a escutar, mas é escutando

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que aprendemos a falar com eles. Somente quem escuta paciente e criticamente o outro fala com ele, mesmo que, em certas condições, precise falar a ele.

A prática cotidiana da RD pode promover um campo fecundo para reflexões políticas e sociais, feita de forma individual ou coletiva a partir do autocuidado e autoestima, meditar para além do que está posto. Assim, fomos percebendo que a RD apresenta uma possibilidade de questionar-se e questionar aos outros nos porquês daquela condição de vida, da falta de acesso aos serviços públicos e da violência diária pela simples razão de estarem vivendo nas ruas. Freire (1970, p. 17) nos ajuda a compreender a importância da libertação dos oprimidos a partir deles mesmos:

Quem, melhor que os oprimidos, se encontrará preparado para entender o significado terrível de uma sociedade opressora? Quem sentirá, melhor que eles, os efeitos da opressão? Quem, mais que eles, para ir compreendendo a necessidade da libertação? Libertação a que não chegarão pelo acaso, mas pela práxis de sua busca: pelo conhecimento e reconhecimento da necessidade de lutar por ela. Luta que, pela finalidade que lhe derem os oprimidos, será um ato de amor, com o qual se oporão ao desamor contido na violência dos opressores, até mesmo quando esta se revista da falsa generosidade referida.

No Consultório de Rua do SUS de Cuiabá, podemos vivenciar momentos de extrema importância e significados, mostrando como a RD pode auxiliar no cotidiano das pessoas que vivem em situação de rua. Vamos exemplificar com a história de uma paciente da região da Rodoviária, mulher de 43 anos, que vamos chamar de “Rosa”, preservando sua real identidade. O desabrochar deste caso foi algo marcante para toda a equipe. Ela sobrevivia da prostituição. No início dos atendimentos, encontrava-se sempre com precária higienização, descalça, quase não parava para conversar e sempre nos procurava para tomar água e comer um lanche. Aos poucos, ela foi se aproximando da equipe e nós dela; passou gradativamente a se autocuidar e a cuidar dos outros moradores de rua. Buscava pelo serviço e nos direcionava outras pessoas que estavam nesta mesma condição. Ela se tornou,

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mesmo não se dando por conta a princípio, numa redutora de danos. É assim que a RD potencializa a capacidade interna de cada sujeito, no cotidiano, priorizando o respeito e o direcionamento que cada um escolhe para dar à sua própria vida.

Vivendo nas ruas de Cuiabá

Facilmente, quem andar pela região do Porto, Centro ou Rodoviária de Cuiabá, pode perceber que nestes locais há um grande movimento de pessoas em situação de rua. Há possibilidade inclusive de visualizar formas diferenciadas de edificar um “lar”. Ao olhar este cenário, talvez, a maioria das pessoas não o entenda e até se questione sobre a razão de alguém escolher viver na rua, na praça, embaixo do viaduto, embaixo da ponte ou na beira do rio Cuiabá.

Nos atendimentos realizados pelo CR, com muita frequência, ouvíamos desta população que o frio, a chuva, a fome e a violência eram difíceis de suportar, mas já estavam adaptados a estas adversidades, compreendiam que isso fazia parte da vida na rua, porém o olhar direcionado a eles daqueles que por ali passavam, isso sim, machucava, deixava cicatrizes na alma que jamais eram esquecidas. Certa vez, um homem, ao falar da rua, nos disse: “Sabe o que mais é difícil aqui na rua? É o preconceito, o jeito que as pessoas nos olham, como lixo... Isso é o que mata”. Para Graciani (1997), o repúdio social que caracteriza o estereótipo e o estigma que se direciona a esta população de excluídos fora da norma fortalece a imagem pejorativa de todas as formas, culpando-os pela própria condição de inferioridade e incapacidade.

Cada um possui uma história, muitas regadas à violência doméstica, estupro, desemprego ou baixas condições a fim de garantir o sustento familiar, drogadição, alcoolismo, distanciamento familiar, doenças mentais, rupturas afetivas. Porém, existe algo em comum: essa população está inundada por injustiças, condição gerada por um sistema que produz exclusão, pobreza e segregação. Para muitos, a rua é a única possibilidade de sobrevivência, de buscar um sentimento de pertencimento: “Aqui é o meu lugar, o meu chão”. Sendo assim, eles e elas são produtos da sociedade que os gerou, para quem não possui projeto de vida algum, no sentido de crescimento humano (GRACIANI, 1997, p. 101).

Essa população experimenta diariamente todo grau de miséria, fome, abandono e muitas outras condições aliadas à necessidade

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de enfrentar “um leão por dia” em busca de sua sobrevivência. Por outro lado, essas pessoas experimentam nas ruas olhares carregados de preconceito, estigmas que interligam a sua condição de pobreza à marginalidade, culpando-os por sua condição. Deste modo, são privados de qualquer convívio social, saúde, educação e esperança, o que os coloca em uma situação de total abandono e limita as suas chances de fé em si próprios, nos outros e no mundo, causando profundo sentimento de inferioridade.

As pessoas em situação de rua encontram-se em maior vulnerabilidade, uma vez que rompem com as regras sociais. Este rompimento confere a negação de sua existência social. Ou o que se usa, contemporaneamente, um ser negado, um não alguém, pois os que não consomem significativamente no mercado não existem. Na concepção social capitalista, eles perderam o direito de serem vistos. Na verdade, embora haja um esforço para não serem vistos, não são invisíveis, pelo contrário, sua presença é incômoda, pois denuncia a ineficiência e as consequências da outra face do capitalismo.

Por outro lado, as políticas públicas e as ações do Estado, em se tratando de população de rua, são de cunho paternalista e reforçam atuações de um suposto tratamento tutelar, visto que se restringem à retirada dessas pessoas dos locais públicos. As ações ganham títulos significativos, mas o objetivo se restringe a esse fim, essencialmente higienista e de aniquilamento da sua autonomia: Bom Dia Cidadão; Operação Rosa dos Ventos; Mãos Amigas; Porto da Paz, Operação Ágape I e II, etc.

Esta prática seletiva de criminalização [...] rotula o indivíduo e o aloca em uma categoria de pessoas propensas às abordagens, aos ‘encaminhamentos’, aos abusos, às violações de direitos e à prisão. Essas operações em andamento são demonstrativas da execução de um projeto de Estado fortemente calcado no controle e na repressão, sob a vestimenta do social, na construção de populações vulneráveis, de risco e delinquentes – mas não cidadãs (JORNAL LE MONDE DIPLOMATIQUE BRASIL, 2012, p. 12-13).

Em Cuiabá, o único serviço estatal existente, que inclusive foi fechado durante a Copa do Mundo por estar localizado no Centro

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Histórico da capital, é o Centro de Referência Especializado de Assistência Social para População de Rua (CREAS pop), que representa a porta de entrada para os Albergues, porém não funciona nos finais de semana e feriados. Na saúde, visualizamos alguma tentativa, mesmo que tímida, para retomar as atividades do Consultório de Rua, no entanto ainda não existe nada de concreto, lembrando que ele, frequentemente, sofria pressão dos gestores e população em geral para que “resolvesse” a questão, isto é, para que participasse das ações de retirada destas pessoas dos locais públicos, desconsiderando que estes espaços públicos também lhes pertencem.

Nas ruas, encontramos pessoas que foram recolhidas em todas essas operações. Já haviam sido “internadas” em diversas Comunidades Terapêuticas, inclusive compulsoriamente, mas de lá saíram e ainda hoje estão em condição de rua. Acostumados com o não respeito aos seus direitos, eles e elas já não resistem, não possuem força para isso; a violação dos direitos é rotina na vida de cada um deles. Nestas operações, são rotulados de: bandido, delinquente, drogado, noiado, maloqueiro, bêbado e muitos são expulsos da capital, quando não possuem familiares residindo no Estado.

Em uma noite de atendimento na região do Porto, procurou-nos um senhor que aparentava ter mais de 50 anos; vamos chamá-lo de “Beta”. Assim como o peixe, ele escolheu o isolamento e pouco se integrava com os demais do grupo. Disse-nos que estava morando na beira do rio, mas que os policiais queimaram sua cabana e tudo o que ele tinha. Naquele momento, estava improvisando com alguns cobertores o local para dormir. Era comum ouvirmos histórias de violência policial, inclusive essas pessoas nos procuravam em busca de um curativo. Na verdade, o Sr. “Beta” tinha 42 anos, mas os problemas de saúde e as condições de vida fizeram com que aparentasse muito mais.

A sua sobrevivência se dava através dos materiais que ele catava nas ruas e vendia. Em algumas oportunidades, ajudava motoristas a sair e entrar em estacionamentos; em troca, conseguia algumas moedas. Nunca se envolvia em brigas, tinha uma vida resguardada dos demais, falava pouco, mas chegou a dizer que estava na rua por causa de desilusões amorosas. Não era raro encontrarmos

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homens com essa mesma história. O Sr. “Beta” sofria com um tipo de Hepatite e, devido à falta de documentação, não conseguia tratamento. Além disso, precisava manter uma alimentação especial devido ao problema de diabetes, condição essa quase impossível para alguém que vive “na” e “da” rua.

Como os casos citados, cada pessoa em situação de rua exigia cuidados e acompanhamentos próprios de suas necessidades. Sentimos que estes corpos que sofrem o mal-estar da exclusão, lesados que são em seus direitos, enfraquecidos fisicamente, sofrendo a dor confundida com os poucos e rápidos momentos de alívio gerados pelo uso da droga, explicitavam a necessidade de cuidados que se inscrevem no corpo, manifestados na agitação, inquietação, braços que se deslocam sem direção, pernas que conduzem para lugar algum, num movimento frenético com o mundo circundante: “Nosso próprio corpo está no mundo como o coração no organismo; ele mantém continuamente em vida o espetáculo visível, e o anima e o nutre interiormente, forma com ele sistema” (MERLEAU-PONTY, 1971, p. 210).

Partindo do próprio corpo, conforme sugere Merleau-Ponty, é possível desvendar todas as dimensões do ser. Este possui um poder exploratório que se surpreende com o que vivencia no mundo. O ser é um corpo falante que concretiza seu pensamento por meio das palavras; é percepção e pensamento, pois é um corpo sensível, hábil para ir além de si mesmo em direção ao mundo; é um corpo falante, que mostra em si as marcas da exclusão (MERLEAU-PONTY, 2006).

Os aparatos estatais criaram obstáculos que dificultaram ao extremo o trabalho com essa população, portanto, para a equipe do Consultório de Rua, a criação de estratégias para resolver questões mínimas era um exercício diário. Um simples atendimento esbarrava na burocracia, pela falta de documentos. O ser humano é constantemente colocado como inferior frente à questão de contabilizar para conseguir recursos.

Pouco é divulgado com relação à violência contra essa população. A exclusão é tamanha que nem mesmo sua morte é divulgada ou mesmo ocultada. Os moradores de rua estão expostos a qualquer tipo de violência, por serem desprovidos de direitos. Suas vozes não são ouvidas e, quando são, rapidamente são esquecidas.

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Considerações finais

Resgatar a história do Consultório de Rua do SUS de Cuiabá foi um agradável retorno a um tempo que, podemos afirmar, transformou nossas vidas e provocou transformações no outro em situação de rua, porém desperta sentimentos de tristeza ao descortinarmos a perpetuação de posturas rígidas e excludentes de nossos gestores em relação a esta população, permitindo ou mesmo criando vários obstáculos que definitivamente causaram o fechamento do Consultório de Rua do SUS de Cuiabá, desde março de 2013. Se o motivo deste encerramento tivesse sido o seu insucesso, seria menos doloroso. No entanto, ele encerrou exatamente pelo contrário, porque estava funcionando, porque estávamos colhendo frutos, não materiais, mas humanos – as pessoas estavam sendo tratadas com dignidade, respeito e amor. Até mesmo os moradores estranharam e desconfiaram no início, pois não estavam mais acostumados a serem ouvidos como pessoas com direitos.

Em uma visita a Cuiabá, uma representante do Ministério da Saúde afirmou, em uma reunião, que os profissionais que atendem na perspectiva da RD e em serviços como o CR eram facilmente discriminadas entre os demais profissionais. Assim como a população de rua, eles também são esquecidos, deixados à deriva e suas opiniões desconsideradas. Este foi exatamente o sentimento que nossa equipe vivenciou, de exclusão, diante dos gestores da época.

No entanto, isso nunca nos paralisou, pelo contrário, era o que nos motivava. Quando falavam daquela população, também estavam falando de nós. A RD foi o caminho escolhido e nos tornamos redutores juntos. Na Pedagogia do Oprimido, Freire (2005, p. 29) afirma: “Ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho: os homens se libertam em comunhão”. E assim nós fizemos e vislumbramos também pessoas em situação de rua se tornando redutores de danos.

Essa população estigmatizada e discriminada, que diariamente é castigada e culpabilizada pela própria miséria que precisa enfrentar cotidianamente, revelou-nos nesse período em que tivemos o prazer de estar com eles, através do Consultório de Rua do SUS, que existe um potencial favorável à mudança, na medida em nós, como um todo, pudermos olhar e vivenciar um mundo diferente, onde os oprimidos poderão ser ouvidos, onde as políticas públicas possam ser construídas para e com eles.

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Para a equipe do Consultório de Rua, o mundo verdadeiramente humano é aquele que diz respeito ao encontro e convivência da pessoa com os seus semelhantes. Nesse sentido, os casos apresentados expressam a importância de aceitarmos e acolhermos estas pessoas, já tão comprometidas em todas as dimensões de sua vida pelo abandono, violência e processos de exclusão, afastando-se cada vez mais de projetos futuros. Este parece ser um dos resultados mais importantes deste estudo: constatarmos que o Consultório de Rua constitui uma possibilidade de garantir os direitos e o respeito às pessoas em situação de rua, descontruindo a imagem de não merecedores e invisíveis, conforme suas declarações: “Nós só temos vocês, ninguém olha para nós, vocês são os anjos da noite” (Morador de Rua – Porto).

Aprendi que não é porque moro na rua que preciso estar sempre suja, sou uma pessoa. Olha, Deus vai recompensar vocês, quando chegarem no céu, quando morrerem, Ele vai lembrar do que fizeram por nós (Morador de Rua – Porto).

Estas e tantas outras declarações desta população atendida revelam que sempre se percebeu como invisível ou como a parte avessa da sociedade, mas que, ao ser aceita de maneira incondicional, respeitada em seus direitos, acolhida com afeto, retoma seu próprio lugar no mundo, seu olhar de si para si mesma, apontando para um crescimento e autovalorização. Para Rogers (1961), quando a pessoa é aceita de maneira positiva, incondicional, ela mesma passa a aceitar-se e a ressignificar sua existência.

Referências

FREIRE, Paulo. Conscientização: teoria e prática da libertação. São Paulo: Cortez e Moraes, 1980.

_____. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. 15. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2000.

_____. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005.

GRACIANI, Maria Stela Santos. Pedagogia social de rua: análise e sistematização de uma experiência vivida. São Paulo: Cortez/Instituto Paulo Freire, 1997.

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MERLEAU-PONTY, M. Ciências do homem e fenomenologia. São Paulo: Saraiva, 1973.

_____. Fenomenologia da percepção. [tradução Carlos Alberto Ribeiro de Moura] 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

MINISTÉRIO DA SAÚDE. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Álcool e redução de danos: uma abordagem inovadora para países em transição. Brasília, 2004.

_____. Plano emergencial de ampliação do acesso ao tratamento e prevenção em álcool e outras drogas no Sistema Único de Saúde – SUS (PEAD 2009-2010). Brasília, 2009.

_____. Define as diretrizes de organização e funcionamento das equipes de Consultório na Rua. Brasília, 2011.

ROGERS, C. R. Tornar-se pessoa. São Paulo: Martins, 1961.

TEIXEIRA, A.; MATSUDA, F. Feios, sujos e malvados. Jornal Le Monde Diplomatique Brasil, [s.l.], p. 12-13, mar. 2012.

TEIXEIRA, C. F. Promoção e vigilância da saúde no contexto da regionalização da assistência à saúde no SUS. Caderno de Saúde Pública, Rio de Janeiro, n. 18, 2002. (Suplemento.)

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Jovens negros e negras em situação de rua em Cuiabá: um estudo das experiências em direitos humanos

Vilma Aparecida de PINHO Beleni Salete GRANDO

Arlete Márcia de PINHO

Como resultado de uma pesquisa acerca de jovens negros e negras em situação de rua, escolhemos dois entrevistados que respondiam às questões de outros e outras. Na rua, na luta pela sobrevivência, expõem queixas, demandas, sonhos e perspectivas de pensarem suas vidas por outros parâmetros. Trazemos as vozes de jovens negros e negras em situação de rua, um nela sobrevivendo, outro falando dos sentidos com que nela chegou e por que dela hoje saiu. As histórias são os dados que nos dão visibilidade neste texto do sentido de viver sem consciência de si, e como esta consciência ganha sentido quando ocorre o acolhimento. O corpo orgânico domina as suas outras dimensões – afetiva, social, intelectual, espiritual – e, pelo cuidado de si, as outras dimensões da carne vão sendo integradas à sua consciência no mundo.

Em diálogo, através das experiências de jovens negros e negras em situação de rua e as experiências coletivas de tratamento na comunidade terapêutica para dependentes químicos, discutiremos neste artigo os modos de vida, os desejos, as necessidades, também a raça como categoria social, e as políticas neoliberais nas condições de vida que emanam das experiências. Não se trata de desatamento de nós falsos, pois o que interessa são os sentidos atribuídos pelos sujeitos às experiências vividas no cotidiano.

Nossa primeira experiência na pesquisa de campo foi propiciada por Edvaldo, jovem negro em situação de rua que fez sua narrativa com tranquilidade e respeito. Também trazemos um diálogo mais delongado com Rosenildo, que nos auxilia na compreensão do processo de consciência de si e deste corpo que é. Ele nos fala de suas experiências – na rua e nas instituições, nas construções do ser reconhecido e que quer se reconhecer –que pesam sobre os dilemas atuais, cuja estrutura social não se limita aos espaços familiares, mas implicam significativamente no reconhecimento de si no mundo.

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Os espaços pesquisados por nós são comunidades terapêuticas que desenvolvem a terapia com base na filosofia dos preceitos dos Alcoólicos Anônimos (AA)1. Nas comunidades pesquisadas, havia 20 internados masculinos e 18 mulheres, majoritariamente jovens (e adultos) do interior do Estado de Mato Grosso. Trabalhamos com orientações teóricas e metodológicas da pesquisa qualitativa com entrevistas, conversas e observação. Fizemos gravação de áudio e depois transcrevemos os dados.

Elementos iniciais: o corpo e a sociedade para o negro

A prisão de um jovem em situação de rua dependente químico se dá diretamente no corpo. É o corpo que demanda constantemente a reposição dos elementos amortizadores da dor de viver. A dor sentida não se dá no corpo substancial (carne física), mas no imaterial, no espírito; é o corpo do sentido, em sua materialidade carnal. Observamos corpos com ferimentos sangrentos, aparentemente sem relevância, pois a dor percebida era na ausência de alegria, na necessidade de um sorriso, resultante da discriminação.

As políticas neoliberais ampliam o nível de injustiças sociais e interferem nos sintomas relativos ao trabalho e dignidade humana, mas a diferença como subalternidade constitui um sintoma das crises

1 Os Doze Passos dos Alcoólicos Anônimos do Brasil são: Passo Um: Admitimos que éramos impotentes perante o álcool – que tínhamos perdido o domínio sobre nossas vidas. Passo Dois: Viemos a acreditar que um Poder Superior a nós mesmos poderia devolver-nos a sanidade. Passo Três: Decidimos entregar nossa vontade e nossa vida ao cuidado de Deus, na forma em que O concebíamos. Passo Quatro: Fizemos minucioso e destemido inventário moral de nós mesmos. Passo Cinco: Admitimos, perante o Deus, perante nós mesmos e perante outro ser humano, a natureza exata de nossas falhas. Passo Seis: Prontificamo-nos inteiramente a deixar que Deus removesse todos esses defeitos de caráter. Passo Sete: Humildemente, rogamos a Ele que nos livrasse de nossas imperfeições. Passo Oito: Fizemos uma relação de todas as pessoas que tínhamos prejudicado e nos dispusemos a reparar os danos a elas causados. Passo Nove: Fizemos reparações diretas aos danos causados a tais pessoas, sempre que possível, salvo quando fazê-lo significasse prejudicá-las ou a outrem. Passo Dez: Continuamos fazendo o inventário pessoal e, quando estávamos errados, nós o admitíamos prontamente. Passo Onze: Procuramos, através da prece e da meditação, melhorar nosso contato consciente com Deus, na forma em que O concebíamos, rogando apenas o conhecimento de Sua vontade em relação a nós e forças para realizar essa vontade. Passo Doze: Tendo experimentado um despertar espiritual, por meio destes Passos, procuramos transmitir esta mensagem aos outros alcoólicos e praticar estes princípios em todas as nossas atividades (BEZERRA, 2010).

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existenciais dos sujeitos que se veem sem possibilidades de resolver por si os transtornos de ordem moral e política que as violências simbólicas engendram na vida.

Edvaldo, corpo jovem, negro e muito magro. Usuário de crack, maconha e bebidas alcoólicas, busca a sobrevivência como cuidador de carros nas proximidades dos bancos da capital. Às vezes, tem contato com a família. Aliás, com uma única irmã com quem se dá bem, pois com os pais não há entendimentos. A irmã, que “gosta de mim”, como afirma, o procura pelas ruas. O jovem vive em um “beco” da cidade, onde nos encontramos:

Vilma: Quais são seus desejos? O que você mais gostaria na sua vida?Edvaldo: Primeiramente, eu queria ser uma pessoa feliz, como todo mundo. Eu sinto discriminado como cidadão, eu não gosto mais do meu pai nem da minha mãe, na minha casa sou traste, um lixo! Se eu tenho algum problema na vida [...] ele [o pai] deixa minha vida, ficam trancando minha vida, deixa minha vida!É, agora no momento é. As pessoas que andam comigo, nunca desfiz de ninguém, me ajudam, tudo, mas é difícil.Vilma: O que é mais difícil?Edvaldo: Difícil é a discriminação. Desde pequeno, sinto discriminado pelo meu pai e minha mãe, dentro de casa e na rua também, tem certas pessoas que não servem pra mim.Vilma: Como é pra você estar na rua? Edvaldo: Difícil! Já acostumei ficar ali jogando bola com a gurizada, fumando uma maconha, entendeu? Se eu arrumo um amigo eles tomam de lugar [não aceitam] se arrumar uma namorada, o mundo vai acabar pro pessoal. Tá difícil pra mim, minha senhora, tá difícil, tenho medo!Vilma: Você gostaria de ter outro jeito de viver?Edvaldo: Se eu gostaria de mudar completamente minha vida? Claro que queria. Queria ser uma pessoa feliz como todo mundo, né? Ter os direitos que todo cidadão tem, que meus primos têm, que meus irmãos têm, mas pra conviver com eles não dá mais.Não posso dizer pra senhora [...] eu gostaria de estar em casa, mas na rua aprendi muitas coisas, tive muita liberdade, existem muitas pessoas boas na rua, por isso eu vivo na rua.

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Eu não tenho direito de nada. Quem me ajuda é o pessoal na rua e minha irmã, a Jane. (Entrevista com Edvaldo, à época, morador de rua que trabalhava como cuidador de carros, agosto de 2014).

As palavras de Edvaldo falam por si. Não precisamos repetir seus dizeres que representam, ao mesmo tempo, sofrimento e força, resistência contra um mundo de exclusão2. Parece insignificante, mas o respeito à diferença, aos modos de vida, à escolha é fundamental. Mas, de toda forma, o dilema está presente. Ser morador de rua traz experiências de solidariedade; é desse local que se amealham alimentos, proteções e afetividades. Razões para viver. Mas ter outros sentidos na vida na qual teria seus direitos garantidos como “o dos primos”, principalmente o de ser feliz, é o ideal almejado. Porém, na casa (da família), esses sentidos não se constroem, porque as percepções o reificam em um referencial que não se incorpora a ele, mas a um modelo outro. Daí, ele é “traste, lixo!”. Nessa condição não se vive, o corpo não tolera tanta violência, entra em sofrimento. Os amigos da rua se tornam as redes imprescindíveis de apoio. As ruas da cidade representam esse lugar de poder ser, mas a vida se torna também atravessada pela insegurança, violência. A vulnerabilidade é uma constante, sempre presente, a qualquer momento pode-se sofrer uma hostilidade.

A união é preciso, principalmente para se proteger da polícia – PM, instituição que lhe veio à memória como a mais violenta, fora a discriminação das pessoas que se dizem “gente”, que passam sem se dar conta de que ali há um ser humano. A violência policial se insere em uma concepção de política pública que guarda uma íntima relação com a concepção eugênica de organização social, na qual os mais fracos, os vulneráveis, são os incômodos do local público, o qual ocupam com restrições e exposições que evidenciam os limites deste

2 Recorremos ao sentido de exclusão expresso por José Marin, em e-mail no dia 12/10/2014, quando dialogava com Luiz Augusto Passos e Beleni Grando sobre sua contribuição para o Projeto de Pesquisa RuAção (2014), no qual este texto se insere. Para Marin (2014), exclusão é uma categoria: “[...] que regresa con el lenguaje político y con los medios de comunicación, que también hablan demagógicamente, de inclusión. Esta problemática está de regreso a nivel planetario y en los países europeos, hoy sumidos en una profunda crisis económica, social, cultural, de futuro y de identidad. […] Ser excluido representa ser privado del reconocimiento, que es el que sustenta la identidad y la dignidad humana […]”.

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público. Eles, os corpos jovens produzidos na rua, não são alvos de uma política social que se fundamenta nos direitos humanos.

O racismo da sociedade brasileira é estrutural no sentido de seu ponto de partida e de seus mecanismos de continuidade via discriminação racial; o depoimento de Edvaldo apresenta, de maneira esgarçada, a produção social da miséria humana, que tanto tem suas razões no modo como a sociedade foi estruturada (Brasil na escravidão de negros e indígenas) como no modo em que se processa a administração e distribuição de riquezas na humanidade.

As expressões do racismo se manifestam na objetividade de condição material precária de vida, fato que viola os direitos fundamentais de proteção, saúde e educação. Não é demais relembrar que a perversidade do racismo é explicitada pelos estudos mais recentes sobre trabalho, rendimentos, escolaridade e raça ou cor.

Pinho (2010), fundamentada em Medeiros (2004), afirma que, em todas as categorias de trabalho estudadas, os negros possuem rendimento médio significativamente inferior ao dos brancos, ainda que desempenhem semelhante função, com igual grau de escolaridade. É a categoria ‘ocupações de nível superior, empresários e administradores’ que apresenta o maior diferencial quanto ao rendimento médio, com os pretos e pardos auferindo somente 36,9% e 49, 6%, respectivamente, do rendimento médio dos brancos. É importante salientarmos que a qualificação educacional tem um retorno desigual para brancos e negros inseridos na força de trabalho. Este diferencial é crescente e se acentua à medida que aumenta o nível de escolaridade da força de trabalho.

Os brancos detêm proporcionalmente maior parcela do rendimento, independentemente das categorias ocupacionais em que estejam. Mesmo na categoria dos trabalhadores manuais rurais, onde os brancos representam uma parcela da força de trabalho inferior à dos negros, a proporção de rendimento que é alocada para os brancos é superior. Isto significa dizer que 48,3% dos trabalhadores manuais rurais são brancos e ficam com 57,0% do rendimento gerado pela força de trabalho deste grupo.

A cor da pele e os traços fenotípicos estão associados à probabilidade de se encontrarem indivíduos que representam a mais drástica situação de pobreza: a privação de condição básica para a sobrevivência. “A quantidade de negros que vive em domicílios e recebe ¼ do salário

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mínimo per capita é duas vezes maior que a de brancos na mesma situação” (PINHO, 2010, p. 81).

O impacto do racismo nas condições de vida é uma das facetas de sua revelação quando se trata de populações negras. Mas com isto não queremos subestimar o valor dos propósitos da globalização hegemônica na versão do capitalismo neoliberal, como nos ensina Boaventura de Souza Santos sobre seu poder de nocividade, perversidade de expropriações culturais e desvalorização da vida. Nas palavras do autor (2010, p. 438), a globalização é

[...] o processo pelo qual determinada condição ou entidade local estende a sua influência a todo o globo e, ao fazê-lo, desenvolve a capacidade de designar como local outra condição social ou entidade rival. A globalização hegemônica decorre de dois processos que se complementam: 1- O localismo globalizado: é o processo pelo qual determinado fenômeno, entidade, condição ou conceito local é globalizado com sucesso. Neste processo de produção de globalização o que se globaliza é o vencedor de uma luta pela apropriação ou valorização de recursos, pelo reconhecimento hegemônico de uma dada diferença cultural, racial, sexual, étnica, religiosa ou regional, ou pela imposição de uma determinada (des)ordem internacional; a resposta a essa condição de globalização é a desintegração, marginalização, desestruturação e reformulação sob a forma de inclusão marginalizada. Trata-se do globalismo localizado, ou seja: 2- Consiste no impacto específico nas condições locais das práticas e imperativos transnacionais que emergem dos localismos globalizados. Esse processo inclui destruição da natureza e disponibilidade das riquezas históricas, religiosas, artesanato e ‘reservas naturais’ como objeto do turismo global; o enfraquecimento e destruição da agricultura de subsistência; eliminação do comércio tradicional.

Outra questão que vamos enfatizar, porque diz respeito aos processos de violação de direitos humanos, é o impacto do racismo na subjetividade do negro. A violência racista faz o sujeito criar uma

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consciência do corpo como objeto de inferioridade. Costa (1983, p. 6) afirma: “Ao ter consciência do racismo, o psiquismo é marcado com o selo da perseguição pelo corpo próprio”.

Fruto de nossa observação: a jovem negra mãe de um recém-nascido, em depressão pós-parto, sofre de um profundo desamor, abandonada pelo companheiro; sente-se como nula, sem existência. É o corpo jovem e negro marcado pela dor do abandono. Ocorre com essa jovem, dentre outras complexas questões, o que acontece com a maioria dos negros brasileiros: o conflito psíquico decorrente da incompatibilidade entre a realidade corporal e os enunciados sobre a identidade mediada pelos signos culturais.

A violência racista está presente na narrativa de Edvaldo e na observação que fizemos da jovem negra, ou seja, ser negro em situação de adversidade, sem valor simbólico e concreto de cidadania, levam essas pessoas ao sofrimento e à vulnerabilidade social. Nesse sentido, o racismo e a globalização neoliberal são orientações que antes lesam povos e grupos dos direitos humanos, tanto pelos seus impactos materiais como simbólicos. As consequências humanas desse processo resultam nas sábias palavras de Marin3 (2014) a respeito do direito humano não positivado.

Há, nesse contexto, o que Boaventura Souza Santos (2010) vai chamar de dialética entre Estado e Sociedade civil, na qual ambas as instituições se amalgamam formando um cartel que visa à proteção de interesses, em detrimento de projetos coletivos e realmente efetivos na garantia de direitos. Essa política é estéril, não promove mudanças e empoderamento dos oprimidos, mas a desesperança, a violência.

A violação dos direitos humanos se apresenta na continuidade da vida dos sujeitos que se veem alijados dos direitos básicos como alimentação, moradia, trabalho; não há uma relação de causa e efeito na atuação das casas terapêuticas, mas de direcionamento dos sintomas que advêm de uma complexidade de subjetividades que causam dor, sofrimento. Haveria uma política de direitos humanos para suplantar as mazelas políticas do neoliberalismo?

3 Texto que expressa o diálogo com Luiz Augusto Passos e Beleni Grando, via e-mail, como colaborador do Projeto RuAção, em 12 de outubro de 2014.

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As comunidades terapêuticas: as experiências com direitos humanos

O significado das comunidades terapêuticas se aproxima da organização de resistência às opressões crescentes da globalização excludente. Fazem-se orientações para novas formas de viver, de poder viver. O método envolve autorreflexão. Podemos dizer, em termos merleaupontyanos, que se trata de uma consciência de si profundamente conectada com o mundo dos viventes (seres humanos) e seres da natureza, que se expressa na carnalidade que a tudo transpassa. São modos de acionar, com consciência de si, as manobras do inconsciente, pois como recalque criam lacunas no domínio do comportamento próprio.

Na instituição que visitamos, conversamos com um jovem que já lutou contra conflitos e dependência química. Atualmente, trabalha na comunidade terapêutica e traz a rotina e os sentidos que significam um processo de formação:

Todos os trabalhos aqui a gente chama de laborterapia e, durante o período que ele passar aqui, ele vai passar em todas as atividades do Centro [referindo-se à instituição], vai passar pela horta, pela limpeza da casa, no refeitório, na roça; cada semana ele vai estar em uma atividade diferente e com uma pessoa diferente. A intenção é colocar o mais novo com o mais velho, que aí já passa as informações pra ele. O saber e a experiência do mais velho ajuda o jovem. É a questão dele saber que faz parte de uma comunidade que tá um ajudando o outro (agosto de 2014).

Parece que faz parte do processo de tratamento a integralidade dos sujeitos pelo sentido de pertencimento, de sentir-se em conexão com o outro que precisa de ajuda. Intervenções externas podem atrapalhar. É um momento de estar consigo, de pensar o contexto social e as forças externas que o fazem “não retornar de um aniversário”, ou seja, instiga à compreensão dos desvios da atividade planejada e as causas de ser uma pessoa conduzida ao invés de ser uma condutora de seus atos.

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Porque não existe: ‘Ah, não sei por que eu vim, por que eu recaí...’. Ele não sabe identificar nele quando é que tá no processo de recaída; quando o pensamento dele muda para fazer isso, ele tá sendo conduzido ao invés de conduzir. Nosso tratamento consiste nisso: a mudança de comportamento, a mudança de tratamento, aí envolve o autoconhecimento (agosto de 2014).

No relato, o entrevistado evidencia o trabalho de autodeterminação, ou seja, a capacidade de reconhecer as fragilidades e de reformulá-las a partir da reflexão que visa à mudança de atitudes em face dos conflitos. O sujeito da transformação, pela consciência de si, reconstrói o caminho para compreender a si próprio, como diz na narrativa:

Aí vai mudando a mentalidade dele; isso é uma coisa que se estende pro resto da vida. Alguns têm dificuldade de arrumar sua cama, tem aqueles que têm família, mas muitos eram moradores de rua, não tinham nem cama. Então, pra muita gente, faz diferença, tipo lavar um prato [...]. Então é toda essa questão (agosto de 2014).

O uso de substâncias químicas não é a causa dos problemas que a pessoa enfrenta; é o remédio, uma necessidade de controle de um problema outro, estimulado no contexto sociocultural por processos que liquidam na pessoa o poder de resolvê-lo. O corpo, na sua dimensão orgânica e simbólica, é construído desde antes de o indivíduo nascer, mas, à medida que se insere na sociedade mais ampla, começa a investir, no e pelo corpo, valores que expressam e estruturam seu modo de vida.

Os conflitos internos sobre quem somos e como os outros nos reconhecem, no corpo, cujo gênero não está ajustado aos padrões sociais dominantes, envolvem dimensões complexas que a pessoa nem sempre está em condições de enfrentar para se colocar com autonomia na sociedade. São situações complexas tratadas como fatos corriqueiros; cabe à pessoa controlar e manter a norma vigente na aparência, no entanto descobrir-se LGBT – lésbica, gay, bissexual, transexual – e não saber como lidar com as reações de discriminação mobilizam no jovem e na jovem afetivamente o desejo de se desconectar da realidade de sofrimento e rejeição do corpo.

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O uso de substâncias tóxicas lícitas e ilícitas para controlar ou desviar a atenção de si próprios passa a ser um remédio para o enfrentamento dos conflitos criados pelas expectativas sociais não correspondidas. O jovem que na instituição trabalha compreende as pessoas em tratamento e relata as histórias que ouve:

São histórias assim: filho que não é filho do pai, só da mãe, comportamento bissexual, homossexual, usando droga pra manter relação com o sexo oposto, porque a mãe e o pai não pode nem sonhar, porque vai excluir ele; pessoa casada que pratica sexo com pessoas do mesmo sexo quando estão drogadas, porque assim têm coragem, [outras por sofrerem] abuso sexual [...] (agosto de 2014).

Na instituição, ele nos apresenta a rotina com atividades simples que implicam em fazer algo para o outro e dele receber. O trabalho, que denominam método terapêutico, se constitui numa rotina com costumes de horários de dormir, acordar, trabalhar nos afazeres diários, que implicam no cuidar de si. O objetivo é levar os jovens e as jovens a pensarem sobre si e suas atitudes no grupo, em decisão compartilhada que desencadeia compromissos mútuos.

As conversas são diárias e busca-se, acima de tudo, construir valores como cidadania, responsabilidade e compartilhamento. Retornam às demandas do corpo orgânico, a relação com a natureza e suas possibilidades de nela encontrar respostas para o cuidar de si; possibilitam elementos que contribuem para a consciência de si; uma relação corpórea muito próxima consigo, a fim de compreender-se.

A gente tem um cronograma: levanta às 6h30 da manhã, aí meia hora pro café da manhã, aí a hora da espiritualidade: nós não temos nenhum vínculo religioso, mas achamos importante isso. É o momento que eles se reúnem, oram, leem um trecho da Bíblia. Cada dia é dia de um ler, toca alguns louvores. A partir desse momento, eles têm 2 horas de limpeza. Às 12 horas, tem o intervalo de 2 horas para almoço e descanso. Volta às 14 horas e vai até às 17:00, aí estão livres pro lazer, jogar bola, academia, dominó, dama. Três vezes por semana, eles têm atividade à noite, geralmente segunda, terça e quinta. Na segunda de noite, tem a pastoral da sobriedade, eles

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dão um auxílio pra nós; terças e quintas-feiras, temos reuniões. Os finais de semana é mais tranquilo, tem só uma reunião pelo sábado e a espiritualidade (agosto de 2014).

A pessoa humana tem o direito à dignidade, fato primordial dos Direitos Humanos. Entretanto, o Estado não disponibiliza serviços de saúde que atendam as necessidades dessa população. Nesse sentido, os grupos de autoajuda têm constituído um importante espaço de reversão da situação de dependência, embora ela não esteja disponibilizada como política publica, pois as famílias geralmente recorrem à justiça para garantir a manutenção de seus membros em tratamento.

As subjetividades marcantes e consideradas opressoras começam desde a infância. As crianças se sentem discriminadas, em solidão, rejeitadas. Disse o jovem que não era um problema com os pais, era com ele, um sentimento em relação ao mundo, que não sabia dizer de onde vinha. Já Edvaldo diz que foi discriminado na família e na escola por ser negro, por ser o diferente.

As histórias se misturam na minha história. Meu comportamento na infância já não era normal, a maneira de pensar já era diferente. Não que eu fui abandonado, a minha família me educou bem, me deu afeto, carinho, amor, mas eu não sentia isso, a maneira com que eu lidava com a situação já não era a maneira correta, que é o que nós falamos em questão de comportamento. Pra você ter uma ideia, até os 18 anos, eu tinha bebido poucas vezes: a primeira vez que eu bebi, eu já fiquei bêbado, já era o sinal que tinha alguma coisa de errado, né? E eu iniciei o uso de cocaína com 26 anos, isso convivendo no meio de usuários; eu sempre convivi no meio de usuários e nunca gostei de usar, nunca tive vontade em usar.

Eu fui pego na mentira; falava que tinha usado, mas nunca tinha usado. Eu queria sentir que fazia parte de algo, de alguém; como eu tinha esse sentimento que me fazia sentir terrível, eu queria sentir que fazia parte, e a tribo que eu queria fazer parte usava droga. Eu dizia que usava e não queria mais usar, aí um dia eu usei e não parei mais.

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Então as armadilhas são criadas [...] eu tinha uma família estruturada, mãe, pai, meus irmãos, ninguém usava droga. Uma família disfuncional contribui, mas a minha não era assim, quem era assim era eu... E aí eu comecei; usava os finais de semana, um dia ou outro. No meu primeiro relacionamento, acabei me relacionando com uma pessoa que também usava, ficamos uns anos, depois nos separamos. Foi só progredindo, de cocaína eu fui pro crack, que foi a minha degradação maior, até chegar ao estágio de dormir na rua, sem propósito de vida nenhum, de não conseguir mais sobreviver sem o uso, e quando você tá preso, amarrado pelo uso, por mais que você converse, vou dar um sentido diferente, é difícil!

É uma prisão, é uma coisa insuportável! Aí, ah, não para, porque não quer...

Veja, o que retardou o meu tratamento foi eu achar que não precisava de ajuda. A falta de informação. Hoje em dia está mais comum, mas há 5 anos atrás, quando eu me tratei, não tinha tanta informação, perdia-se muito tempo. A família tentando resolver o problema, leva pra cá, leva pra lá! Eu me tratei numa comunidade terapêutica. Quando eu cheguei, as pessoas falavam pra mim: ‘eu entendo o que que você tá sentindo!’ Aquilo pra mim foi tudo (agosto de 2014).

Podemos afirmar que as comunidades terapêuticas são importantes no processo de tratamento de dependentes químicos, pois criam a oportunidade de falarem e serem ouvidos sobre os seus sofrimentos, angústias e necessidades. O espaço acolhe, dando o sentido de si a partir de um estado de lucidez que haviam encontrado por um mecanismo de fuga, via uso de entorpecentes.

Destacamos, no entanto, que não há uma política pública que possibilite a intersetorialização de serviços de saúde, pois conceitos vinculados a uma disciplina do ponto de vista epistêmico jamais faz ponto entre instâncias como educação, segurança e trabalho, etc., visto que as expectativas são formuladas a partir de si e das relações no interior das Comunidades, já que não há um processo de monitoramento nas famílias e com os jovens regressos. A responsabilidade da Comunidade Terapêutica termina no momento que os pacientes recebem “alta” para retornarem aos seus locais de moradia.

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Dessa maneira, o jovem ou a jovem possivelmente se verá em situação de fragilidade humana, uma vez que as condições objetivas para se afirmarem como cidadão(ã) praticamente inexiste ao retornar à sociedade. Nesse sentido, a compreensão de si no mundo conquistado no interior das comunidades poderá perder seu valor transformador ao se depararem, nas localidades de moradia, com as redes sociais que muito provavelmente estarão fragilizadas. Segundo Lima e Braga (2012), caberia ao Centro de Referência Psicossocial (CAPS) fazer uma rede operante desses indivíduos literalmente excluídos da sociedade. Nesse caso, é necessário formar agentes para consolidar ações comunitárias eficazes com o objetivo de criar uma rede cidadã que elabore possibilidades e expectativas de vida com sentidos de dignidade.

Rosenildo narrou, por pensar que não precisava de ajuda e por falta de informação, que sua família demorou muito para encontrar um tratamento adequado. Mas há outras barreiras objetivas e subjetivas que desfavorecem o processo de tratamento. Dentre elas, podemos reafirmar a falta de informação já dita, e a falta de disponibilidade nos municípios das redes de saúde que atuam com esse objetivo. Essa carência impõe às pessoas a locomoção até a capital, Cuiabá, para terem acesso ao tratamento. A distância é uma dificuldade, principalmente para as mulheres que deixam filhos e companheiros no interior. Mas não só. É preciso recursos financeiros para pagar o tratamento, pois as comunidades, especialmente essas que chegaram ao nosso alcance para investigação, são locais privados, e isso leva as famílias a mover processos judiciais a fim de garantir o direito a elas. O tratamento inclui remédios e manutenção das necessidades pessoais, e essa estrutura não está ao alcance de todos.

A barreira mais citada foi a de não querer deixar o prazer do uso, fato que leva mulheres e homens em tratamento a tentar fugir do local. Mas houve outras, como o medo do estigma de ser visto como dependente; medo de perder emprego; mulheres com medo de represálias do companheiro; não ter com quem deixar os filhos. O distanciamento entre paciente/atendimento de saúde retrata o papel reduzido do Estado nas políticas de saúde.

Há que se discutir as diretrizes referente às sensibilidades, ou seja, referentes ao corpo, pois os modos de vida impostos pela sociedade moderna refletem um modelo de corpo (enquanto macho ocidental:

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o homem) fragmentado e subsume o corpo e a pessoa da mulher. Se, na Idade Média, o corpo era um microcosmo no macrocosmo, fazia parte da natureza e as experiências humanas se faziam na verdade do corpo em inter-relação consigo e com outro, na modernidade, estimulados por uma inspiração de individualização, a fragmentação dos sujeitos leva à solidão extrema pelo silenciamento de si que se dá pela repressão de sensibilidades verdadeiras. Vivemos em um mundo de teatralização da vida, na qual desempenhamos papéis, sempre mantendo aparências socialmente aceitas. Perdemos ironicamente a sensibilidade com as tragédias humanas, como a indiferença que se expressa ao vermos nos noticiários jovens negros e negras sendo torturados pela polícia, mas somos intolerantes com o barulho que a boca faz ao mastigar o alimento (RODRIGUES, 1999).

Entre o interior e o exterior há o limite do corpo, mas esse limite não permite mais o contato com medo de contaminação física e social; há quem deseja viver em uma cápsula protetora, longe da vida cotidiana, tamanha é a necessidade que criaram em nós de ficarmos sós. Há uma obcecação pela higiene que reflete o nosso interior pelos óculos escuros, porque as pessoas não se olham nos olhos, mas pelo vidro do carro, que protege do calor e do exterior.

Nossas sensibilidades mudaram e, sobretudo, não conseguimos vivenciar o amor. Talvez os pais não perceberam a solidão da criança, que se percebera diferente: “era eu o problema”, mas como era seu modo de sentir amor, alguém perguntou isso? Nessa sociedade em que o corpo resiste, ainda que seja como meio de produção e objeto de consumo, houve tempo e espaço de encontro humanizador entre esses jovens negros e negras que vivem em situação de rua e/ou em tratamento de dependência química? Não há um corpo que viva separado de si. O corpo vivo é carne encarnado no mundo que não é privado, não é apenas marca e identidade social. Não é indicador de um personagem. Não é mascara. É, diz Rodrigues (1999, p. 191),

[...] exatamente onde o homem transborda de si, onde recusa a inércia e os confortos que o tornam passivo e dócil. Esse corpo é, de maneira paradoxal, onde ele se funde, se dissolve e se constitui. O ser humano deste corpo não configura um mundo interior, fechado, no qual deva penetrar para se encontrar a si mesmo ou, antes, para se descobrir. O

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ser humano deste corpo é extrovertido. Ele é muito mais superfície que profundidade. Especialmente, é o lugar em que estas se revertem reciprocamente. Sua consciência (de si ou qualquer outra) está sempre ancorada no exterior [...].

Face ao trabalho desenvolvido nas comunidades terapêuticas, é interessante frisar que o processo de individualização, contra a qual eles lutam e que constitui a nós todos, existe no âmbito de uma tendência histórica de fragmentar tudo, na qual o indivíduo é obrigado a aplicar a si próprio a experiência separada da sensibilidade, pois há a separação entre corpo e alma.

As experiências são revelações de processos de resistência contra a hegemonia dos valores de uma sociedade que desintegra e individualiza as pessoas. Fruto, ademais, das sensibilidades desconstruídas por um processo de limpeza, objetalização do corpo, subjetivação da indiferença. Com o sentido de encontro consigo por meio de experiências corporais, artísticas e religiosas. Nas comunidades, prevalece, contudo, a atenção aos direitos humanos de pessoas cujas vivências são marcadas pela violência.

Considerações finais

Reconhecemos a necessidade e a importância da família no apoio aos projetos de vida de modo geral, pois não fazemos apologia a um psicologismo da questão social e política. Antes, queremos enfatizar que nessas trajetórias de vida há o impacto da sociedade mais ampla, que – ao mesmo tempo em que desencadeia um processo de desumanização pela economia de mercado de consumo, pelo aumento da produção e precarização do trabalho, pelo aumento da desigualdade entre povos, na estigmatização da diferença – possibilita o acesso às substâncias químicas. Estamos com isto afirmando que é necessária também uma mudança na sociedade mais ampla para que se efetivem oportunidades reais de sonhos e vida digna.

Nesse sentido, o desenvolvimento de ações comunitárias baseadas nos Direitos Humanos poderia compor uma política de garantia de direitos fundamentais à vida que, ao ver de Santos (2010), significa a organização dos oprimidos contra a opressão crescente que se dá em escala global. As organizações que lutam contra o sofrimento humano

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se ligam ao movimento negro, movimento e associações indígenas, ecológicas e de desenvolvimento sustentável.

Significa que as organizações devem reivindicar, junto com uma política cultural, uma política econômica e de direitos humanos, pois a ênfase na cultura leva rapidamente à folclorização do local. Esse sentido de “folclore” liga a cultura não à tradição e à organização que compreende o povo, mas a uma reificação do corpo a um parasitismo colonial sem chance de desenvolvimento, porque, na lógica da razão utilitarista, existe para ser colonizado.

A cidadania a todas e todos provavelmente será possível em uma política cultural coexistente com uma política social e econômica, baseada nos direitos humanos, definindo-os não a partir de princípios teórico-metodológicos, mas a partir da vida.

Referências

BEZERRA, J. A. Doze Passos: elementos terapêutico para codependência. Salvador-BA, 2010. Monografia (Pós-graduação em Terapia Transpessoal), Instituto Superior de Ciências da Saúde.

COSTA, J. F. Da cor ao corpo: a violência do racismo. In: SOUZA, N. S. (Org.). Tornar-se negro. Rio de Janeiro: Graal, 1983. p. 03-18.

LIMA, H. P.; BRAGA, V. A. B. Grupo de autoajuda como modalidade de tratamento para pessoas em dependência de álcool. Texto e Contexto Enfermagem, Florianópolis, p. 887-895, out./dez. 2012.

MARIN, J. Observações e metodologia do Projeto Ruação, 2014. Disponível em: <http://projetorua.gempo.com.br/?author=2>. Acesso em: 12 out. 2014.

MEDEIROS, C. A. Na lei e na raça: Legislação e relações raciais, Brasil – Estados Unidos. Rio de Janeiro: DP&A, 2004.

PINHO, V. A. Jovens negros em processo de “ressocialização”: trajetórias de vida e escolarização. Niterói-RJ, 2010. Tese (Doutorado), Programa de Pós-Graduação em Educação – UFF.

RODRIGUES, J. C. O corpo na história. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1999.

SANTOS, B. S. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. São Paulo: Cortez, 2010.

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Possibilidades de diálogos dos profissionais de Educação Física em

relação aos velhos-sujeitos de rua

José Tarcísio GRUNENNVALDT Carla Izabela BONZANINI

Primeiras palavras...

Os estudos evidenciam que o envelhecimento humano está associado a fenômenos biológicos configurando-se em meio às determinações sociais e culturais, podendo incorporar ao longo do tempo variações decorrentes de interpretações de diferentes culturas (HAVEREN, 1999, apud CERQUEIRA et al., 2011). Portanto, não se trata de algo situado no aqui e agora, pois o fenômeno do envelhecimento não se reduz puramente a um estágio da intensificação do presente em seus aspectos físicos do sujeito-velho.

A velhice só pode e, somente só, poderá ser compreendida a partir de uma análise processual. Por isso, envelhecer é um fenômeno natural, complexo, com muitas dimensões, o qual se configura na sua construção no tempo, no espaço – que na rua é lugar de velhos – e, principalmente, no corpo-sujeito deixando “marcas” de perdas e aquisições individuais e coletivas. Com efeito, a velhice como a última etapa do processo vital humano não se manifesta como uma ruptura com a vida precedente, mas como parte integrante do processo que se inicia na infância, juventude e maturidade, que podem ser vividas de diversas maneiras (BOBBIO, 1996).

Pelo olhar asseverado de Beauvoir (1990), só haverá uma alternativa: morrer prematuramente, ou envelhecer e vivenciar a velhice. E aí nos perguntamos: mas será isso tudo pouco? Algumas inquietações nos instigaram a pensar a velhice em situação de rua ou de praças na relação direta com a sociedade capitalista. É o caso da divisão social dos benefícios dentro da lógica do capitalismo em que pessoas se estabelecem em seus lugares de moradia e outras vivem em situação de rua, mas que o conjunto da população faz uma espécie de “ouvidos moucos” para tal situação, como uma naturalização estranha do social.

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Nosso objetivo maior intenta, para além das explicações dos gerontológos que, “separados do seu objeto de saber – os velhos –, buscam apreendê-lo, conhecer os seus males e propor soluções para a sua vida” (HADDAD, 1986, p. 40), dar visibilidade à condição existencial do sujeito-velho como problemática para a formação profissional em Educação Física. Também objetivamos refletir, dialogar e propor uma agenda de organização dos conhecimentos em favor de uma Educação Física para e com o sujeito-velho do mundo e no mundo.

As condições para o surgimento de uma proposta educativa compreensiva, portanto não generalizante sobre a questão do sujeito-velho, será possível somente com a opção por uma metodologia do estudo que contemple a observação nas ruas e praças, junto às rotas de movimentação dos sujeitos configuradores desses lugares. Asseveramos tal postura, porque isso poderá corroborar e confirmar a perversidade da produção de conceitos sobre o fenômeno do envelhecimento a partir do olhar exclusivo dos “salões acadêmicos”.

Quebrar a conspiração do silêncio sobre o envelhecimento humano não é uma tarefa fácil quando o conhecimento sobre o assunto se faz apenas entre o diálogo acadêmico e o ditame de uma sociedade que privilegia estágios e não processos, pois entendemos ser uma proposta para um futuro muito distante – a imagem do velho-sujeito que enxergamos e afeta o outro. “Assim, pode-se compreender que a sociedade consiga impedir-nos de ver nos velhos nossos semelhantes” (BEAUVOIR, 1990, p. 12). Uma estranha invisibilidade do Outro-em-nós.

Nessa mesma sociedade capitalista industrial, os imperativos da produção não consideram homens os sujeitos velhos. Evidenciamos tal afirmação ao observarmos que, em geral, a velhice não tem uma fase evidente e definida. Para todas as outras fases da vida, há um ritual de passagem que promove o sujeito. Ao contrário, no ritual de passagem para a velhice, encontramos indícios que anunciam a proximidade do sujeito da morte, muitas vezes, mesmo estando vivo.

Pretendemos uma investidura para além das explicações que separam o objeto do saber do seu sujeito, dessa maneira dando visibilidade à condição existencial do velho-sujeito como problemática para a formação profissional em Educação Física.

Para tanto, nosso olhar metodológico encaminhou-se para “o visível e o invisível”, “o olho e o espírito”, “o sentido e o não sentido”, “as

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Possibilidades de diálogos dos profissionais de educação física em relação aos velhos-sujeitos de rua • 165

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aventuras e a dialética”, “a existência e a significação”, “a vida e a metáfora” (REZENDE, 1990). Nossas leituras foram se delineando a partir de uma aproximação descritiva entre os pressupostos fenomenológicos da percepção e da existência de Merleau-Ponty – Antônio Muniz de Rezende – André Dartigues, as teorias do processo de envelhecimento humano dos autores Norbert Elias – Norberto Bobbio – Simone de Beauvoir – Guita Grin Debert – Eneida Haddad – Maria Cecília Minayo e Ecléa Bosi, compreensão de diálogo em Paulo Freire, de sociedade em Zygmunt Bauman, e formação em Educação Física – Silvino Santin e Eleonor Kunz.

A partir desse enfoque, percebemos ser necessário atentar-nos para um olhar sensível que consiga “[...] aliar sentimento às análises teóricas, coisa que a universidade teima em se negar a fazer” (BUARQUE, 2003, p. 7-10).

Com efeito, não podemos consentir mais a discussão sobre envelhecimento humano sem a participação verdadeira do velho-sujeito como protagonista dessa discussão; do contrário, todas as ações pensadas e realizadas para este sujeito podem advir de um caráter controlador de um grupo social ou de uma determinada faixa etária da população. Isso evidenciaria a prática do pensar para o outro e não com o outro (FREIRE, 2014).

Teófilo de Queiroz Jr. (1996), ao escrever o prefácio do livro A Ideologia da Velhice, de Eneida Haddad, questionou-se: “Será que o velho, nesta ou naquela outra situação, não teria o que dizer a respeito de sua própria situação em favor de seu próprio atendimento?”.

Devemos deixar os velhos e seu mundo de vida fundirem a utilização com a fruição, a exaltarem os aspectos emocionais e intelectuais para sua condição de “seres-sujeitos”, mais que isso: seres-sujeitos no mundo e do mundo. Farão isso os velhos moradores e moradoras em condição de rua?

O que falam sobre a velhice?

O tema envelhecimento humano provoca alguns questionamentos: por que ficamos velhos? Por que a duração do tempo de vida é diferente entre as espécies e até mesmo entre seres de uma mesma espécie?

O envelhecimento não é um processo estagnado, mas é o resultado e o prolongamento de outros processos já experimentados antes,

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uma mudança sucessiva: “Um processo progressivo de mudança desfavorável, geralmente ligado à passagem do tempo, tornando-se aparente depois da maturidade e desembocando invariavelmente na morte” (BEAUVOIR, 1990, p. 17).

Poderíamos então relacionar o envelhecimento a um lento processo de morte? Beauvoir explica que não, pois estar vivo significa mudar; logo, mudar é lei na vida do ser humano. “Um tal paradoxo desconhece a essencial verdade da vida; esta é um sistema instável no qual, a cada instante, o equilíbrio se perde e se reconquista [...]” (ibid., p. 17). Estar inerte nessa fluência da vida é sinônimo de morte. Acrescentaríamos aqui que ser colocado em inércia nesse processo também é sinônimo de morte.

A medicina atual considera o envelhecimento como um processo inerente ao processo de vida assim como é o nascimento, o crescimento, a reprodução e a morte (ibid.).

Para Bobbio (1997), a fase do envelhecimento humano em questão, a velhice, em momento algum esteve separada do restante da vida de um indivíduo; pelo contrário, é a continuidade da infância, adolescência, juventude e maturidade. “De todos os fenômenos contemporâneos, o menos contestável [...] e talvez o de consequências mais pesadas é o envelhecimento da população” (BEAUVOIR, 1990, p. 271).

Tão prontamente, indagamo-nos novamente: se o envelhecimento é um processo natural e inerente ao processo de vida, por que envelhecer se tornou um caminho estigmatizado de segregação dos sujeitos?

De acordo com Minayo e Coimbra (2002), o envelhecimento é um processo único. Experimentar a velhice é experimentar a diversidade da transformação dos corpos em sua subjetividade, relacionando esta experimentação à história de cada sujeito e às particularidades nas quais estão inseridos, como classe social, gênero e etnia.

Nesse sentido, evidenciamos ser o envelhecimento humano um processo de ordem cultural, consequentemente fenomenológico.

Envelhecer, na maioria das vezes, é um processo entendido como um desvio das normas sociais. Para os outros – grupos considerados de idade normal –, colocar-se no lugar e viver experiências do grupo dos sujeitos velhos é uma tarefa árdua, haja vista a “falta de experimentação da velhice” e sentimento de superioridade e poder dos sujeitos jovens em relação aos sujeitos velhos. “A sensação ‘talvez eu fique velho um dia’ pode estar inteiramente ausente” (ELIAS, 2001, p. 82).

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Dessa maneira, “entendamo-nos, a marginalização dos velhos em uma época em que a marcha da história está cada vez mais acelerada é um dado de fato que é impossível de ignorar” (BOBBIO, 1997, p. 20). Toda sociedade “[...] tende a viver, a sobreviver, exalta o vigor e a fecundidade ligados à juventude; teme o desgaste e a esterilidade da velhice (BEAUVOIR, 1990, p. 52).

O movimento de decadência da vitalidade relacionado ao envelhecimento resulta em uma mudança de status onde o indivíduo transmissor do saber – o sábio, o modelo, o mestre em diferentes funções – deixa de existir ou, simplesmente, não serve mais para a sociedade contemporânea, pois o indivíduo que possui valor é o que produz por meio do trabalho. Isso pode ser inteiramente verdadeiro se o trabalho for concebido em modos de produção capitalista, de valor para o mercado?

O aumento da população de sujeitos velhos poderia sugerir uma associação com a melhora da qualidade de vida e do bem-estar social, no entanto “[...] o conjunto de representações sobre a etapa final da vida humana é organizado segundo as determinações básicas do modo capitalista de produção” (HADDAD, 1986, p. 16). Dessa forma, a ideia de perda de valor é reforçada na seguinte situação: “Como no interior de certas famílias, aproveita-se dele o braço servil, mas não o conselho [...]” (BOSI, 1994, p. 79).

[...] a velhice é elemento fundamental à reprodução das relações capitalistas na medida em que a produção de ideias, valores, princípios e doutrinas, o conjunto de representações sobre a etapa final da vida humana é organizado segundo as determinações básicas do modo capitalista de produção. As sociedades capitalistas, transformando as pessoas em mercadorias, condenam o trabalhador à degradação durante toda a trajetória da sua vida (HADDAD, 1986, p. 16).

Muitas são as teorias sobre o envelhecimento humano, encaradas pelos legisladores e moralistas de maneira contraditória à visão dos poetas. O certo é que “os ideólogos forjam concepções da velhice de acordo com os interesses de sua classe. [...] como os poetas são mais espontâneos, são mais sinceros” (BEAUVOIR, 1990, p. 109).

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A visão biologista do ser-sujeito apropriou-se dos saberes sobre envelhecimento assim como o aumento da população envelhecida serviu como “[...] objeto de adestramento político e moral [...]” (HADDAD, 1986, p. 18) de toda uma sociedade, fazendo com que as produções sobre envelhecimento humano fossem ideológicas.

Sendo o envelhecimento humano um processo complexo, evidenciamos que ele é também fenomenológico, pois a fenomenologia como método busca a compreensão e o nosso relacionamento com a plenitude do sentido, com a certeza de que nunca o encontrará de maneira homogênea (REZENDE, 1990).

O conhecimento médico sobre a velhice, ou seja, o discurso biologista sobre o envelhecimento humano tem sido transmitido em nossa sociedade através de todos os meios de informações, estando presente inclusive no discurso dos legisladores do Estado. Este mesmo conhecimento trata também de outros aspectos de ordem sociocultural: “[...] refere-se às questões relativas à patologia da velhice, ao processo de envelhecimento, e, finalmente, ao aumento da duração de vida humana [...]” (HADDAD, 1986, p. 23).

Este enfoque das ciências biológicas traz em seu bojo a função de evitar que o envelhecimento como fenômeno fisiológico se transforme em envelhecimento como sinônimo de doença. Acreditamos que algumas dessas informações biologistas sejam importantes e necessárias, uma vez que estão associadas e articuladas com os aspectos sociais e culturais do sujeito envelhecendo em questão. Lembremo-nos: não se separam biologia, psique e interioridade humana em Merleau-Ponty!

Outro discurso recorrente da academia é o que faz do velho um sujeito “empalhado” em sua época de juventude. Quando falamos em linda velhice, devemos entender que o homem encontrou em si a beleza moral e física, não que seu vigor físico de jovem tenha se mantido intacto. “Nenhum homem que vive muito tempo escapa à velhice; é um fenômeno inelutável e irreversível” (BEAUVOIR, 1990, p. 46).

Ao observarmos o conteúdo dos trabalhos publicados, percebemos a geriatria e a gerontologia como as principais áreas detentoras da velhice ideologizada. O produto do conhecimento evidenciado pelos teóricos da velhice – as ideias prontas – procura nos fazer aceitar “que a realidade vivida pelo homem no final de sua vida poderá ser

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alterada com a ação da “ciência”, das instituições sociais, do Estado e do próprio idoso” (HADDAD, 1986, p. 33). Isso não passa de uma criação ideológica da ciência apropriada pela burguesia, ou seja, um instrumento de dominação, o qual requer projetos para e em nome desta etapa da vida humana. Assim, desconhecem em sua totalidade “o processo de surgimento da problemática da velhice” (ibid., p. 34).

A ordem é homogeneizar o envelhecimento humano por meio de um trabalho de orientação para a educação de uma velhice positiva e saudável. Esta ação implica em formar, educar e ordenar indivíduos saudáveis ao seu máximo para que estes sejam autossuficientes o maior tempo possível em sua última fase de vida. Ou ainda, inseri-los como consumidores em um Mercado feito de respostas às suas debilidades, fraquezas, doenças e morte.

Indagamo-nos acerca do tema: por que e como educar um indivíduo para sua velhice?

O mundo real, mundo da práxis humana e produtor da velhice trágica, é ocultado por meio dos discursos ideológicos sobre a velhice, os quais seguem determinados a afirmar que os homens precisam aprender a envelhecer. Um falar para os velhos! (FREIRE, 2014).

Propor a educação como alternativa para a solução da velhice trágica é ocultar a realidade histórico-social; é tomar como verdadeira ‘a ideia’ de que a pedagogia da velhice encerra em si mesma uma saída para a ‘questão da velhice’, possibilitando aos homens condições para viverem, através do processo de ressocialização, da inculcação das normas geriátricas relativas à aprendizagem da arte de saber envelhecer, uma existência diferente daquela que é produzida socialmente (HADDAD, 1986, p. 36).

Verificamos uma contradição entre o discurso biológico do saber envelhecer e as razões de ser, pois a velhice busca sua essência no social e no cultural, não apenas no campo da biologia. Quando os técnicos monopolizam o conhecimento e o saber sobre a velhice, os velhos – sujeitos do fenômeno do envelhecimento – passam de sujeitos a objetos deste saber, “perdendo as suas particularidades enquanto ser histórico” (ibid., p. 37).

Nesse sentido, observamos o sujeito velho ser tratado em pesquisas acadêmicas como coisas descaracterizadas e fragmentadas. Os

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resultados destas pesquisas, produzidas pelos intelectuais do discurso positivista sobre a velhice, expressam o ideal das relações sociais, políticas e materiais dominantes. “Os teóricos da velhice não fazem dos idosos o terreno da “sua” ciência, para a “sua” ciência e pela “sua” ciência [...]” (ibid., p. 40), pois,

[...] a ciência é um exercício de conhecimento e reconhecimento do próprio homem; não se faz ciência para que as abelhas se entendam melhor, senão para os homens, e mesmo quando esse percurso passa por um momento em que é necessário que as abelhas se entendam melhor, esse é somente um momento: o sujeito e o objeto da ciência é o homem. E cabe, pois, aos cientistas recuperarem essa dimensão humanista e humanitária da ciência (OLIVEIRA, apud HADDAD, 1986, p. 41).

Segundo os textos encontrados, hoje, o que a universidade oferece é uma perspectiva de educação que procura vigiar o processo de envelhecimento humano. São discursos dominantes, mas não despretensiosos, ligados à dominação e, com um sentido messiânico, “[...] através da ação conjunta dos ‘esclarecidos’, pretende anular a discriminação, a tragédia da velhice, contando com as trilhas da educação libertadora” (HADDAD, 1986, p. 39).

Envelhecimento humano: aproximações com uma concepção dialógica e uma teoria do movimento

Em geral, as instituições – sobretudo as educacionais e, dentre elas, mais precisamente, as que formam profissionais para atuarem sobre/com o ser humano em movimento (corpo-movimento) – não podem perder de vista a dimensão do fenômeno contemporâneo do envelhecimento populacional.

Falamos de um olhar que não se reduz meramente ao velho-sujeito caracterizado em sua condição de senhor ou senhora com mais de 60 anos de idade que apresentam um quadro característico de involução biológica, no que toca à redução de suas funções morfológicas, funcionais e de limitação da capacidade de movimentos. Estamos nos referindo a uma visão prospectiva do ser humano que, de criança-jovem-adulto-velho, precisa ser visto sob uma perspectiva

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geracional, de relação, que é o que sustenta nosso estar sendo, tendo em vista que, nessas várias fotografias (paisagens) da vida (corte longitudinal), as pessoas devem ser percebidas de modo a reconhecê-las como o outro semelhante e, dado a inseparabilidade nem mesmo à suposta superioridade do discurso da previsibilidade em favor da segmentação e especialização da racionalidade da ciência moderna, conceder-lhes o que demandamos como direito, o reconhecimento da humanidade universal de todos e todas concretizada num corpo reflexivo único (MERLEAU-PONTY, 1999).

Investir na educação com o olhar sobre o envelhecimento como processo, para além das questões pontuais do sujeito velho, no aqui e agora, da percepção científica (diminuição da massa muscular, coordenação, flexibilidade e potência sexual), talvez seja uma das questões que mereça cuidadosa atenção nos cursos que formam os profissionais da Educação Física.

Pensamos assim, pois, quando se faz referência ao envelhecimento humano, temos a convicção da necessidade de tratar a questão da distensão do viver, levando em conta a inseparabilidade entre movimentar-se e perceber, e quais as consequências dessa relação para um conceito de pedagogia dialógica do movimento humano que ouça e atente aos sujeitos se percebendo envelhecidos. Certamente, aqui se deve dar margem a um entendimento pouco valorizado no mundo científico-acadêmico. Falamos de autoconhecimento e conhecimento de si, e das possibilidades de sua valorização pelos profissionais de Educação Física ao levarem em conta toda a história de vida e de conhecimento que o velho-sujeito produziu ao longo de sua existência. Uma aprendizagem adquirida no corpo: conhecer o modus operandi sob qual se formou o profissional de Educação Física para intervir junto às pessoas idosas para então destacar que “conhecimento de si” e “autoconhecimento” não constam da lógica operatória que postula ter e ver no conhecimento científico a autoridade de intervir sobre as pessoas.

Nesse ínterim, conceitos como intuição, percepção, sensibilidade e sentimento, que não fazem parte do universo científico moderno, talvez possam ser instigantes e nos ajudar a criar condições de diálogo com sujeitos envelhecidos e, então, olhar para o envelhecimento com mais acuidade.

Mas temos de nos perguntar: como a ciência trata ou tratou esse corpo envelhecido? A esse corpo envelhecido, é dada a prerrogativa

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de se servir de um sujeito, ou é mais sensato e universal atribuir-lhe a alcunha de objeto de pesquisa? Sem levantar as questões que consideram que há sentido na vida das pessoas, independentemente de qual é a sua condição, não poderemos avançar e propor uma relação mais dialogada entre sujeitos que pesquisam e sujeitos-velhos que insistem em viver com autonomia.

A educação se materializa por um itinerário de intervenções que começa desde a mais tenra idade. Inicialmente com a família, complementa-se na escola e ao longo da vida. Portanto, isso implica em uma postura educativa que contemple o diálogo intergeracional, a tolerância e, principalmente, o sujeito se conhecer, para saber ser no futuro.

Nesse sentido, precisa-se investir em ações educativas capazes de construir/transmitir um capital cultural de conhecimento sobre o ser humano como sujeito que, ao longo do ciclo vital, passa por diversos estágios que denotam também algumas paisagens. As paisagens são imagens idiossincráticas, por vezes carregadas de determinações sociais, econômicas, frustrações afetivas, amorosas, profissionais e perdas de entes queridos que fazem com que as grandes generalizações já não se constituam um método mais realista para estudar os velhos-sujeitos da contemporaneidade.

Entendemos que só será possível insistir com as crianças em favor de um estilo de vida agradável se elas mesmas captassem que estar sendo criança é se colocar em prospectiva diante da possibilidade de realização de um adulto em sua plenitude.

Corpo e movimento: é possível olhar para essa relação no velho-sujeito como possibilidade?

Movimentar-se é a forma de ação original do ser humano, por meio da qual ele se remete ao

mundo, e na qual – como ação – constrói a si como sujeito e o mundo como sua contraface imaginária. Movimentar-se é, junto com o pensar e falar, entre outra ações, uma das múltiplas formas nas quais a

unidade primeva do ser humano se manifesta.

TRAMBOER, 1979, p. 16, apud TREBELS, 2003, p. 260

Se o movimentar-se é perceber, então se pode deduzir que o velho-sujeito percebe, é ator e não paciente. Na relação tradicional

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da pesquisa e da intervenção com idosos, isso em si já evidencia a superação da visão tradicional da mecânica do movimento humano.

Partindo da teoria mecânica para a teoria não mecânica do movimento humano, Trebels (2003) propôs um conceito dialógico de movimento. Nesse sentido, ele apresenta as duas visões que existem acerca do ser humano em movimento:

1. A dicotomização do ser humano em objeto do movimento (como tema de pesquisa);

2. Sujeito do movimento (como instância da ação intencional), que se toma como problema sobre o qual se deve mais detalhadamente refletir.

Assim, este autor destaca que, no cenário corrente do movimento, há a dificuldade de se colocar a unidade do ser que se move (movente). Se esta diferenciação acima delineada permanece, como se configura a relação do ser humano no mundo? Seria possível, então, evidenciar uma teoria não tecnológica e não totalmente científica de corpo-movimento de sujeitos-velhos mediada pelos conceitos de intuição, sensação, percepção e sentimento?

Trebels (2003), com base em Gordijn (1968), quer nos dizer como ocorre a relação entre uma pessoa e mundo ao utilizar a metáfora do diálogo que, de certo modo, delimita a especificidade da relação nossa com o mundo e o modo de acontecer da relação. Visto ser um diálogo, far-se-á por meio de um jogo com perguntas e respostas.

Nessa ação de movimento, o mundo e as coisas são questionados pelo sujeito/ator do movimento, ao mesmo tempo em que responde ao mundo com sua presença. Nesse sentido, movimentar-se significa e assume a condição de se relacionar intencionalmente com o mundo, como se o mundo fosse uma extensão do sujeito.

Intencionalidade, para a fenomenologia, não significa apenas o movimento do ser humano na direção de um objeto, mas também um movimento pré-consciente e pré-racional, tal como pode ser observado em organismos biológicos: um sinal de vitalidade. Neste sentido, pode-se falar em um fluxo de intencionalidade no movimento humano, do mundo para o ator do movimento e vice-versa. O mundo seguro das coisas das definições físicas perde sua identidade e passividade no ato de se movimentar. Esta é uma consequência de considerarmos o conceito de movimento dialógico (TREBELS, 2003, p. 260).

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Com efeito, aquele que se movimenta participa de uma experiência de significado motriz (GORDIJN, apud TEBELS, 2003, p. 260). Esse conceito abarca os significados subjetivos (intencionais) e objetivos (percebidos no mundo), mas que se relacionam organicamente. Assim, o significado motriz não se resume apenas à produção dos sentidos, tampouco é o resultado de qualidades intrínsecas ao objeto experienciado pelo sujeito; ao mesmo tempo, é uma inter-relação e mútua determinação de ambas as perspectivas. Ambas permanecem em ligação coincidente.

A orientação mais comum na área do exercício físico e da saúde para a terceira idade se configura com rotinas e baterias de testes que já estão padronizadas para os sujeitos em suas faixas etárias. Realizadas as baterias de testes e verificados os resultados, os sujeitos serão submetidos aos exercícios para adquirirem a melhoria e cuidarem da manutenção de seu quadro morfológico e funcional, bem como o desempenho nos mais variados testes que auferem as capacidades motoras.

Quando se perspectiva com a metáfora-diálogo, a ferramenta de o homem se relacionar com o mundo, é inevitável a dimensão que o movimento humano assume na relação, tendo em vista que ela só pode ser realizada com intencionalidade e movimento. Isso permite que pensadores como Gordijn, citado por Trebels (2003), proponham a mediação pedagógica entre os sujeitos das ações motoras pela intenção de movimento.

Tomaremos de empréstimo a proposição de Gordijn, apud Trebels, 2003, p. 261, da relação entre professor e aluno, e que a ação não deva ser colocada como algo a ser seguida, mas “propõe a mediação pedagógica pela intenção do movimento [...] como uma conversão em um significado motriz em cada forma específica de movimento”. Quando está em questão a apresentação de sequências de exercícios para velhos-sujeitos, deve-se oportunizar que “[...] o sentido do ensino nestas aulas está relacionado à transformação destes movimentos em novas formas que individualmente possam ser desenvolvidas” (ibid., p. 261).

Assim, algumas perguntas emergem: o uso do conceito dialógico de movimento permite possibilidades de compreensão do movimento humano para além das técnicas preconcebidas e deve-se ensiná-lo com compromisso pedagógico? Como podemos

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relacionar o conceito dialógico de movimento ao campo das ciências do esporte e da saúde? Em que prevalece o conceito estruturalista e mecanicista de movimento? O saber do corpo nunca está feito.

[...] pois, na experiência do outro, mais claramente (mas não diferentemente) do que na da palavra ou do mundo percebido, apreendo inevitavelmente meu corpo como uma espontaneidade que me ensina aquilo que não poderia saber, a não ser por ela. (MERLEAU-PONTY, 1991, p. 100).

Temos a convicção de que, devido à aridez das questões, não temos em nossas mãos os indicadores para as respostas. No entanto, nós nos sustentaremos em Tamboer (1985), apud Trebels (2003, p. 261), pelo fato de que o autor já analisou diferentes perspectivas científicas do ser humano e do corpo. Para tanto, lançou mão de diversas “metáforas relacionadas ao corpo humano, quais sejam: máquina, relógio, cárcere da alma, computador, entre outras”.

Visando aprofundar a elaboração das metáforas, desenvolveu uma tipologia de imagens de ser humano em que pretende superar a dicotomia sujeito/objeto. Para tanto, sugere-nos que existem:

a) Figurações do ser humano que são substanciais, quer dizer, que conceituam o ser humano ou seu corpo como entidade isolada, contida por um invólucro, a pele. Esta tipologia da imagem de corpo corresponde especialmente ao paradigma empírico-analítico de pesquisa.

b) Figurações do ser humano que são relacionais: o corpo não é uma entidade isolada, que pode estar ligada a outras, também isoladas, que lhe são externas. O ponto de partida é uma condição relacional inerente ao corpo, que se torna clara, por exemplo, no conceito de corpssubject, de Merleau Ponty. As reflexões de Weizsäcker, Christian e Buytendijk correspondem a esta condição relacional (TAMBOER, 1985, apud TREBELS, 2003, p. 262).

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É possível articular os conceitos de movimento substancial e movimento relacional sob a mútua

determinação na mediação pedagógica com velhos pela intenção do movimento no cotidiano?

Para o mundo científico que nos acorre com seus padrões de pesquisa e exigências, mais dados para com as inovações que as academias devem supostamente estar em consonância, não vai ser fácil propor o diálogo com sujeitos-velhos a partir de uma abordagem relacional, tendo em vista que esta visão se coloca na dimensão contrária de uma imagem dualista de ser humano.

Nas trilhas de Elias (1992), é possível continuar com sua reflexão sobre as vias pelas quais os valores heteronômicos restringiram o campo de visão dos estudiosos e contribuíram para estabelecer uma leitura de desprezo para com o idoso. Nesses termos, a velhice e seus sujeitos parecem ter sido ignorados como um objeto de reflexão acadêmica e de investigação, de modo análogo com que Elias (1992) se referia ao desporto.

Afirmamos isso pelo fato de o esporte ser considerado como algo que se encontra situado no lado que se avalia como negativo no complexo dicotômico do modo convencional aceito entre os fenômenos de trabalho e lazer, espírito e corpo, econômico e não econômico, seriedade e prazer, e, com mais impacto sobre nossa pesquisa, entre a capacidade do corpo para produzir e o corpo “improdutivo”.

Assim, sob um quadro que tendencialmente orienta o pensamento reducionista e dualista ocidental, os velhos são pouco propensos a serem produtivos e sem grande capacidade de gerar produtos, tendência irremediável que tem acometido as pesquisas no ambiente universitário.

Entretanto, o que nos parece razoável é que a abordagem relacional possibilita a compreensão de aproximação do ser corpóreo com o mundo e pode ser entendida como o reconhecimento da realização de significados do velho-sujeito. Para Tamboer (1985), apud Trebels (2003, p. 262), “a metáfora que corresponde à imagem do corpo relacional é a da rede no plano macro e a do diálogo neste plano”. Contudo, o que é perturbador é que também este olhar unificador permanece relativo.

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Este é o ponto que precisa ser analisado: como tal incidência pode se manifestar nos olhares sobre o velho-sujeito, pois esses ainda não se permitem fugir da leitura fragmentária e dicotômica das análises científicas das Ciências da Natureza sobre o ser humano.

Será isso resultante de uma opção de formação acadêmica, com suas investigações e intervenções com/sobre corpo e movimento? Um fenômeno que precisa ser investigado com mais cuidado é como isso vem sendo tratado nos cursos que formam profissionais que atuam diretamente com velhos-sujeitos, pois só a pesquisa detalhada com análise poderá nos apresentar alguns indicadores que mostrem se as mútuas determinações entre as manifestações substanciais e as relacionais configuram, de modo inseparável, o ser corpóreo no mundo.

Para Tamboer (1985), as duas expressões tipológicas são manifestações da diversidade na unidade – um conceito fundamental de Merleau-Ponty. Ambas se complementam e fundamentam uma relação ontológica, profundamente inseparável. Não se pode passar por cima, no entanto, do fato de que a imagem substancial se coloca, em princípio, na direção contrária de uma inter-relação com sua correspondente relacional (TREBELS, 2003, p. 262).

Em nossa pesquisa em curso, pretendemos verificar como esta complementaridade pode se tornar prática. Isso será provocativo na medida em que a exploração dos limites das disciplinas da Fisiologia e da Anatomia podem, de fato, dizer algo sobre o ser vivente. Assim, para Weizsäcker (1968), citado por Trebels (2003, p. 262), seria razoável que “estas disciplinas precisam, no entanto, ser entendidas em suas condições de possibilidade para o esclarecimento, e não como absolutas”.

Existem evidências de que, no esporte de rendimento, o treinador Frank Hensel articulou os conceitos de movimento substancial e relacional, na prova de 110 metros com barreiras. Para Trebels (2003, p. 263),

o que Hensel (1988) faz é uma articulação entre uma abordagem substantiva do movimento – que exige o controle do tempo e o uso de aparatos eletrônicos – e outra relacional, o que fortalece a

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tese da mútua determinação. Mas permanece a pergunta: seria ela universal?

No esporte de rendimento, a perspectiva de mútua determinação teve aceitação e legitimações, tendo em vista a sua singularidade, até pelo fato de que ocorre a necessidade de transposição de grandes limites. No entanto, em que medida poderíamos encontrar complementos mutuamente determinantes também para os movimentos que não estão no horizonte do esporte de rendimento?

Se quisermos pensar na utilização dessa mútua determinação para outras esferas que não as do esporte de rendimento, Tamboer (1994), citado por Trebels (2003), chama a atenção para uma forma de superação de fronteiras que pode ser significativa, que é das pequenas transposições de limites. No entanto, como as pequenas transposições de limites poderiam se tornar possibilidades de diálogo entre a ciência e o mundo de vida e de existência de velhos-sujeitos com sua capacidade vital e biológica em declínio?

Trebels (2003, p. 264) nos alenta, ao passo que nos instiga, ao sugerir que

[...] pessoas doentes, cujos organismos estão muito fracos, podem se valer, com grande importância, destas pequenas transposições. A superação destas pequenas fronteiras é muito importante, ainda que não suficiente para a construção plena do movimentar-se autônomo. Se considerarmos esta complementaridade, estão, então, colocadas, pelo menos, as possibilidades de generalização da mútua determinação entre as figurações relacional e substancial do movimento humano.

Verificar nos currículos de formação de profissionais de Educação Física as bases em que se fundamentavam as propostas de intervenções no âmbito da esfera da “terceira idade” nos parece um desafio a ser concretizado. Verificar neles com afinco em que medida as metáforas sobre ser humano e corpo tendem a ver o humano sob as imagens das figurações substanciais ou das figurações relacionais será nosso desafio.

Além disso, parece-nos oportuno, já que nos predispomos a olhar para o currículo no processo, desde a implantação da Educação Física com a Escola Nacional de Educação Física e Desportos (ENEFD) da

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Universidade do Brasil de 1939 até os dias atuais, investigar como e quando o humano velho começa a ter alguma atenção.

Por certo, um trabalho árduo, mas necessário e importante para compreendermos que as coisas nem sempre foram como elas se apresentam, no aqui e agora, ao nosso olhar.

Considerações finais

Com o aumento da expectativa de vida e, consequentemente, do número de pessoas velhas se dando em nível mundial, surge um novo quadro histórico na política assistencialista do Brasil para idosos. Se, por um lado, observamos por parte do Estado uma necessidade de adestramento do velho-sujeito intentando preservar o “corpo- capitalista” desse mesmo sujeito, por outro, verificamos a intencionalidade de apropriação e disputa dos conhecimentos produzidos sobre o envelhecimento humano dentro dos salões acadêmicos se dando contra esse sujeito, uma vez que as pesquisas realizadas produzem conhecimentos idealizados de acordo com interesses de uma pequena parcela da população.

O que encontramos nas pesquisas realizadas através de conversas com idosos foram situações de abandono extremo, perda da própria noção do corpo, amortecimento da acuidade, um caso de internamento onde restavam pele e osso; idosos em situação de sofrimento estênico, com gritos impressionantes advindos da condição de crise de abstenção, sob chuva, em beira de calçada. Esta condição exige outro conhecimento maior, o da sensibilidade, o caminho da intracorporalidade, da comunhão sensível intencionada, da busca de encontrar nestas pessoas os(as) outros(as) de nós. E a recusa de remover pessoas ao abrigo como se fossem lixo, para higienizar uma cultura suja e assassina. Necessário, ainda, como nunca, a formação para o impensável e inexprimível.

À medida que nossas leituras foram sendo realizadas, evidenciamos que a “ideologia da velhice”, citada por Haddad em 1986, demanda o conhecimento da “práxis da velhice” nos âmbitos: institucional de amparo e de educação-formação de profissionais intelectuais voltados para a noção técnica, política e ético-estética, juntas.

Nesse contexto, não nos limitamos à compreensão dos propósitos estéticos das representações sobre a velhice, mas, sim, a ressaltar a

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importância de possíveis diálogos entre a Educação Física e o fenômeno do envelhecimento humano para além da velhice estética, além de constatarmos, na literatura poética brasileira, a práxis da velhice de maneira privilegiada, centrada em pessoas, e pessoas injustamente oprimidas.

Referências

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Reflexões sobre a criança, o adolescente e a rua

Fábio Santos de ANDRADE

Enquanto pesquisador e educador social, tenho me deparado cotidianamente com adultos, crianças e adolescentes que utilizam os espaços públicos urbanos para desenvolverem suas táticas de sobrevivência. Assim, a rua tem se tornando um local de vivência para muitas pessoas que desenvolvem diversas atividades, lícitas ou ilícitas, e até dormem na mesma.

As crianças e adolescentes que ocupam esses espaços são comumente denominadas “meninos de rua”, termo que, segundo Gregori (2000, p. 227), surge no Brasil no fim da década de 1970, publicado em um livro de Rosa Maria Fischer Ferreira (1979), e que até os dias atuais é utilizado para caracterizar os que estão em situação de rua. No entanto, o que percebo é que o termo foi envolvido numa carga de preconceitos, identificando a criança e o adolescente pobre como um ser inferior, digno de pena e vítima de ações violentas por parte tanto do poder público quanto da sociedade.

O termo também passa a ideia de pertença. Por estarem na rua, pertencem e ela (daí a expressão “de rua”), tornando-se parte da rua, algo comum nos espaços públicos urbanos. Tendo em vista que a rua não gestou nenhuma dessas crianças, não há pertença. Há uma situação de violação de direitos, uma situação que pode ser revertida positivamente se forem efietivadas políticas públicas de qualidade e que visualizem essas crianças e adolescentes como possuidores de direitos, deveres e saberes. Por essa razão, neste texto, utilizo o termo “crianças e adolescentes em situação de rua” e não “meninos de rua”.

Mesmo com a vigência do Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA (BRASIL, 1990), muitas crianças e adolescentes ainda convivem com a privação dos seus diretos básicos, o que, muitas vezes, obriga a abandonar as atividades referentes à sua faixa etária e encarar a condição de adulto responsável pela sobrevivência pessoal e/ou familiar. Vejo aqui a existência de uma situação de negação de direitos e é essa negação que vai influenciar o surgimento de táticas de sobrevivência e de combate à miséria e que encontram campo de ação,

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na maioria das vezes, no espaço público urbano, o que possibilita que a quantidade de crianças e adolescentes em situação de rua aumente gradativamente e que sejam percebidas facilmente nos espaços públicos. Portanto, não foi uma escolha livre, a situação de trabalho, mas imposta em contradição com os dispositivos constitucionais, incorrendo em crime, essa condição.

Ressalto que esse aumento é, na maioria dos casos, o reflexo do desemprego crescente em nosso país, que atinge, sobretudo, a população de remuneração baixíssima ou condição de miserabilidade, e que a sobrevivência das crianças e adolescentes em situação de rua, e, muitas vezes, a de seus familiares, está diretamente ligada às táticas de sobrevivência por eles praticadas. Gregori (2000) denomina essas táticas de sobrevivência como “viração”1, ou seja, o ato de conquistar recursos para a sobrevivência. Segundo a autora (2000, p. 31), a “viração” não pode ser simplesmente traduzida como o ato de sobreviver, pois, há nela uma “tentativa de manipular recursos simbólicos e ‘identificatórios’ para dialogar, comunicar e se posicionar, o que implica a adoção de várias posições de forma não excludente”.

A criança e o adolescente transitam entre a infância e a fase adulta, comportando-se como “menor”, “marginal”, “trombadinha”, “avião”, “carente”, “sobrevivente”, “coitadinho” etc. Em algumas cidades do Brasil a “viração” é chamada de “manguear”, ou seja, uma tática que envolve a aquisição de bens via mendicância ou furto. No furto, há uma simetria na elaboração do plano de ação, e na mendicância, uma operação dos recursos da linguagem, tendo em vista que eles sabem o que o cidadão comum quer ouvir e, assim, criam a figura do “menino de rua”, com suas cracterísticas que envolvem fala e performance corporal.

Para Pais (2003), as táticas de sobrevivência são chamadas “desenrascaço” (tida neste contexto como sinônimo de mangueamento ou viração) e configuram-se como meio de ocupação do espaço público urbano pelos jovens em busca de recursos e

[...] correspondem a processos nos quais os jovens colocam em jogo sua pluralidade de estratégias que expressam a sua capacidade de gerar formas próprias de ganhar dinheiro ou de ganhar a vida, como

1 Em Cuiabá, “correria”.

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eles dizem expressivamente, ainda que em terreno de marginalidade, substancializando culturas de aleatoriedade e de improvisação (PAIS, 2003, p. 17).

Essa ocupação do espaço público urbano não se dá de forma aleatória, as crianças e adolescentes se concentram ou circulam por áreas que ofereçam dinheiro, abrigo, diversão e segurança. Com base nos pensamentos de Gregori e Pais, pude compreender que essas crianças e adolescentes possuem um saber único, fruto da labuta diária e aprimorada por meio das atividades que desenvolvem como táticas de sobrevivência.

Normalmente essas táticas de sobrevivência (“viração”, “manguea-mento” ou “desenrascaço” e em Cuiabá se chama ainda de “correria” ou “caçá jeito”) exigem uma convivência grupal entre os usuários do espaço urbano, o que possibilita a otimização do seu tempo e promove a efi-cácia da ação executada por eles. Tendo como base a criação de grupos, essas crianças e adolescentes podem ser compreendidos em dois: 1) os que perderam os vínculos familiares, tomando a rua como moradia; 2) os que mantêm vínculo com a família, indo à rua desenvolver ativida-des, a fim de contribuírem com a renda familiar ou de a gerarem. São diversas as atividades desenvolvidas por esses dois grupos – trabalho, mendicância, furto, brincadeiras, uso de drogas etc. Assim, para eles, a rua se torna um lugar de dinâmicas variadas.

No cotidiano da rua a vida grupal é suleada2 pelas regras e códigos morais e éticos que atuam como princípios de convivência; em contraponto, a vida em sociedade pressupõe a limitação da liberdade individual, pois, a partir do momento em que o indivíduo vive em grupo, os seus desejos e princípios se tornam coletivos e ele passa, assim, a conviver sob normas de conduta que o condicionam a agir moderadamente. Entretanto, muitas regras e códigos que deveriam proporcionar uma melhor convivência, dependem, para a sua execução, da posse de bens materiais e culturais por parte desse indivíduo. Para a população pobre, principalmente as crianças e adolescentes, seguir essas regras e códigos é, muitas vezes, condenar-se à morte devido à falta de garantia de condições básicas de sobrevivência por parte

2 Sendo fiéis a Paulo Freire que recusa balisar a vida pelo norte, que é o sentido da palabra nortear.

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do Estado. Isso faz com que esse grupo crie novos códigos e regras, levando em consideração as necessidades da vida cotidiana.

O Estado, que deveria garantir as condições básicas para sobrevivência e igualdade social da população, não cumpre seu papel, criando uma separação entre discurso e prática. Tal situação me remete ao penamento de Hannah Arendt (2004, p. 212), onde ela afirma que “o poder só é efetivado quando a palavra e o ato não se divorciam, quando as palavras não são vazias e os atos não são brutais”. O que se vê na rua é o distanciamento entre palavra e ato nas ações do governo e isso possibilita que novas táticas de sobrevivência surjam no cotidiano das crianças e adolescentes em situação de rua, criando um “mundo” paralelo e invisível.

Assim, um Estado paralelo se ergue dentro das paredes invisíveis da rua, o que se configura, como afirma Foucault (2005, p. 30), como uma nova forma de poder local, considerado como periférico ou molecular e que ainda, apesar de se constituir sob a batuta do Estado, não foi absorvido pelo Estado. A circulação das crianças e adolescentes em situação de rua “[...] guarda uma certa demarcação de territorialidade: há um circuito claro, formado por pontos em uma localidade, na qual se desdobra o seu cotidiano” (GREGORI, 2000, p. 103).

As táticas de sobrevivência também exigem das crianças e adolescentes planejamento e execução que culminem na obtenção de bens materiais, inserindo-os no mercado de compras e possibilitando seu enquadramento no sistema capitalista, comportando-se como consumidores, abandonando, em seu “mundo” e com seus pares, o rótulo de pobre, marginal. Ter dinheiro, para a criança e o adolescente em situação de rua, é um meio de inserção no “mundo” do respeito e da valorização.

Colocando os dois pés na rua

Pensar a rua a partir do olhar dos que dela e nela sobrevivem sempre foi um desafio para mim. Falar sobre a rua necessariamente me leva a refletir sobre um espaço comum, criado para a prática da sociabilidade. Assim, a rua deve ser entendida como espaços públicos urbanos de uso coletivo, onde o diverso se encontra e se transforma.

Tendo a rua como parte da cidade, refletir sobre esta é compreender a estrutura da primeira. Certeau (2011), ao refletir sobre a estrutura das cidades, compreende que estas buscam, a partir de sua composição

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arquitetônica e urbanística, criar um sujeito universal e anônimo. Nelas pessoas circulam pelas vias urbanas com objetivos distintos: vão ao trabalho, vão às compras, fazem atividades físicas etc. Na rotina de caminhar pelas ruas os retratos das cenas urbanas se tornam paisagens, vistas por suas suprficialidades e não por suas subjetividades.

As ruas também são ocupadas por pessoas que as utilizam para sobreviver: são vendedores, ladrões, mendigos, artistas e outras. Dentre essas pessoas estão as crianças e adolescentes em situação de rua que são encontradas roubando, mendigando, usando drogas, fazendo apresentações artísticas nas principais vias urbanas ou dormindo sob qualquer cobertura que lhes ofereça proteção. Estar na rua e ser abordado por uma criança mal vestida que pede dinheiro, comida ou dorme sobre papelões e coberta com o que possue não é inusual. Cenas como essa se tornaram um retrato comum, normalidade.

No entanto, se olharmos atentamente essas imagens e conseguirmos levar nossa imaginação para além da normalidade que estabelecemos, podemos ver crianças e adolescentes em suas ‘essências’, não apenas as que estão em situação de rua, mas todas com direitos estabelecidos pela legislação. É essa nova forma de olhar que me provoca a questionar sobre quem realmente são essas crianças e adolescentes; como realmente sobrevivem; como estabelecem suas relações de sociabilidade e, principalmente, como nos compreendem. Num jogo de espelhos, da mesma forma que as visualizamos, somos visualizados. Essa observação é a importante arma que possuem para criar suas táticas de sobrevivência e desenvolve-las nos espaços da rua.

A rua só presta se você souber cair nela, se souber lutar, viver, como por exemplo, quando eu caí na rua eu não tinha amizade, eu não conhecia ninguém. Agora a gente é unido assim, se eu consigo uma coisa todo mundo vai comer. Se um tem um dinheiro assim, eles compra um negócio pra todo mundo. Se come e fica de marra a gente não deixa, todo mundo é irmãozinho (LEITE, 1998, p. 168).

Esse comentário, extraí de uma entrevista feita por Lígia Costa Leite com um adolescente de 15 anos de idade que se encontrava nas ruas da cidade do Rio de Janeiro, no final da década de 1990, ele nos permite compreender as características peculiares ao cotidiano da rua, na qual destaca-se o acolhimento grupal aos novos frequentadores, a liberdade

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diretamente ligada à solidariedade, os códigos morais que conduzem à sobrevivência e principalmente a relação familiar instituída no grupo. São essas características que permitem a visualização dessas crianças e adolescentes como “invencíveis” e como seres que são dotados de uma sabedoria construida e consituída a partir de sua vivência na rua. É essa sabedoria que motiva esta pesquisa e poderá ser desvendada por meio da compreensão de suas táticas de sobrevivência.

A rua enquanto espaço de habitação e de sobrevivência por parte da população pobre torna-se um espaço amplo e complexo de pesquisa. Assim, vejo como de fundamental importância a compreensão dos con-ceitos de liberdade e poder predominantes na rua, considerando poder, neste contexto, enquanto prática de sociabilidade. Para Saquet (2010, p. 32), “o poder é produzido nas relações, em cada instante; não é uma ins-tituição, mas um nome que se dá a uma situação complexa da vida em sociedade”. Poder, nesse contexto, está diretamente ligado ao espaço de sobrevivência, a rua, e deve se manifestar com o objetivo de dominar o território. Assim, a rua pode ser dividida em territórios invisíveis ao tran-seunte comum, mas visíveis aos que estão em situação de rua.

Nesses territórios há códigos que seus usuários entendem e respeitam criando regras de convivência. Nesse contexto, é possível definir convivência a partir do pensamento de Certeau (2009, p. 49), quando afirma que “a convivência é o gerenciamento simbólico da face pública de cada um de nós desde que nos achamos na rua”. Aos mais fortes torna-se comum a liderança representada muitas vezes pela dominação. Destaco que a existência de um território na rua esta diretamente ligada às relações de poder que se estabelecem e são também essas relações, importantes para manutenção do território, que provocam a elaboração, reelaboração e execução das táticas de sobrevivência instituídas por eles, mas também instituintes, para situações específicas e mutantes.

Quando abordo as táticas de sobrevivência, tento compreendê-las a partir do espaço onde elas se desenvolvem, a rua. Tendo a rua como um espaço adverso e imprevisível, sobreviver se torna uma meta diária, redefinida a cada passo. Fatores climáticos como calor, frio; fatores políticos como segurança pública e limpeza dos espaços públicos urbanos; fatores religiosos como a caridade e fatores sociais como o preconceito e a violência tornam-se facilitadores e desafiadores para os que estão em situação de rua.

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Assim, sobreviver significa criar táticas que dialoguem com os diversos fatores. Sobreviver significa ter, significa possuir instrumentos de luta contra inimigos visíveis e as táticas são uma forma de exercer, como diz Certeau (2011), uma vitória do lugar sobre o tempo. Na rua impera a ausência de políticas sociais que se encontram com práticas que transferem os problemas para um “não-lugar”, um território sem significados, o que remete para a questão da desresponsabilização do papel do Estado.

Marc Augé (2012), ao abordar a definição de “não-lugar” trata do oposto ao lar, ao espaço familiar, ao espaço personalizado. O não-lugar é representado pelos espaços públicos de rápida circulação, como as ruas, marcado pela relação entre o indivíduo e os símbolos da supermodernidade. “O espaço do não-lugar não cria identidade singular nem relação, mas solidão e similitude” (AUGÉ, 2012, p. 95).

Os que estão em situação de rua, vistos socialmente como “inferiores” devem tirar partido de forças que lhes são estranhas para sobreviver e potencializar as táticas de sobrevivência. Assim, “[...] pelo fato de seu não-lugar, a tática depende de tempo, vigiando para ‘captar no voo’ possibilidades de ganho” (CERTEAU, 2011, p. 46). Não há uma rotina onde as táticas se desenvolvem, elas devem se adaptar às metamorfoses do tempo e do espaço. Ainda tomando como base o pensamento de Certeau (2011), a tática se aproveita da “ocasião” para conseguir resultados positivos.

Certeau ainda contribui com essa discussão ao afirmar que as táticas estão diretamente ligadas à retórica, usada comumente pelos que estão em situação de rua nas abordagens.

Nada de surpreendente, pois, de um lado, ela descreve os “rodeios” de que uma língua pode ser simultaneamente o lugar do objeto e, de outro, essas manifestações são relativas às ocasiões e às maneiras de mudar (seduzir, persuadir, utilizar) o querer do outro (o destinatário). (CERTEAU, 2011, p. 47).

Não só as crianças e adolescentes, mas também todos os adultos que utilizam o espaço da rua para ganhar a vida sempre foram rotulados pela classe média brasileira como vagabundos, marginais, bandidos etc., considerando que estes não se encontram inseridos no mundo

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do trabalho (entendendo trabalho como sinônimo de emprego). O trabalho sempre foi visto como produção vinculada ao emprego formalizado, os trabalhos oriundos de outros vínculos eram vistos como não trabalho. Nesse contexto observo crianças e adolescentes inseridas em atividades de trabalho impróprias à sua condição de desenvolvimento físico e mental, mesmo com a vigência do Estatuto da Criança e do Adolescente e com as ações dos movimentos de luta contra a exploração do trabalho infantil.

Convivemos também como ações do Estado que objetivam erradicar o trabalho infantil, o que representa um avanço no cuidado com a criança e o adolescente pós ECA. Nos primeiros anos da década de 1990, vários agentes sociais, públicos e privados, unidos contra as formas perversas de violência contra crianças e adolescentes, criaram espaços e situações para o debate, a conscientização e a mobilização da sociedade em torno do fim do trabalho infantil.

A vida em grupo

Para Mill (1991), as regras e códigos morais e éticos são princípios que suleiam a convivência do grupo e a vida em sociedade pressupõe a limitação da liberdade individual, pois a partir do momento em que o indivíduo vive em grupo, os seus desejos e princípios tornam-se coletivos, passa, assim, a conviver sob normas de conduta que o condicionam a agir moderadamente. No entanto, muitas regras e códigos, que deveriam conduzir a convivência harmoniosa dependem, para sua execução, da posse de bens materiais e culturais. Para a população pobre, seguir essas exigências é, muitas vezes, condenar-se à morte por falta de garantia de condições básicas de sobrevivência por parte do Estado. Isso faz com que esse grupo crie novos códigos e regras levando em consideração a sua vida cotidiana.

Mill (1991, p. 118) também fala sobre o papel da educação na for-mação e no condicionamento do indivíduo, sendo ela responsável por educar gradativamente a sociedade, convencendo, persuadindo e cons-trangendo-a a respeito das virtudes que um indivíduo, em um ambiente de convivência coletiva deve ter. Talvez pelo fato de poucas crianças e adolescentes em situação de rua terem frequentado minimamente a esco-la, esse doutrinamento não lhes afete com tanta intensidade e o respeito a algumas virtudes morais lhes pareça insignificante. No entanto, isso não

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significa que eles não respeitam as virtudes singulares ao seu grupo. Talvez sua única divergência com os pensamentos de Mill seja o não respeito aos códigos e normas impostas pelo Estado. Trata-se de reconhecimento de quem é, para eles, o inimigo central e nuclear.

Não posso desconsiderar o poder de aprendizagem e criatividade dessas crianças e adolescentes em situação de rua, pois, visualizo suas táticas de sobrevivência e sua relação com os códigos da moralidade estipulados pelo Estado. Eles conhecem códigos e normas fornecidos pelo Estado, mas só os respeitam quando lhe fornecem algum benefício. Não há nenhum relativismo, ao contrario, partem do presssuposto que deveria ser óbvio, o estado serve para promover a vida e a justiça. Considero ainda que algumas táticas de sobrevivência tais como a mendicância e o roubo apenas demonstram o poder das crianças e adolescentes sobre o espaço da rua. A mendicância por sua vez tem como objetivo despertar a caridade da população, a utilização adequada da dramaturgia resulta na comoção do público e na recompensa material, o que demonstra o poder de persuasão desses jovens. No entanto, o roubo, quando bem planejado e executado, demonstra a superioridade do executor tanto sobre aquele que detém melhor condição financeira, quanto sobre o Estado na medida em que consegue driblar seus mecanismos de segurança.

Neste contexto, o Estado põe em prática seu poder de polícia, que por meio da violência vai instaurar o que Arendt (1989) denominou como “estado policial de vigilância”, na tentativa de coibir as táticas de sobrevivência. Segundo a autora (1989, p. 24), “o poder jamais é propriedade de um indivíduo: pertence a ele, a um grupo e existe apenas enquanto o grupo se mantiver unido”. No entanto, há na rua uma anulação de direitos e a imposição do poder do Estado. Esse poder pode ser demonstrado tanto pela violência quanto pelas políticas compensatórias. Por outro lado, as crianças e adolescentes colocam em prática seu poder, superando obstáculos e criando novas táticas para resistir ao Estado. E tem havido um poder mais perigoso, o paramilitar, seja de milícias, promovido por comerciantes que pagam “vigias”3 sem controle de Estado.

3 http://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2014/11/22/limpeza-de-sem-teto-custa-r-100mes.htm

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Cabe também destacar que as táticas de sobrevivência configuram-se como a existência de um poder paralelo ao do Estado; e o fato de manterem esse poder, além de desafiarem o Estado, possibilita a reflexão sobre as novas formas de organização das comunidades periféricas. Cabe destacar que foram as organizações sociais periféricas que provocaram a necessidade de se analisar, detalhadamente, as formas de poder desenvolvidas nos seus grupos. Tal forma de poder outrora se encontrava à margem das análises políticas sociais, tendo em vista que o poder sempre fora analisado e validado era o emanado do Estado. No caso das organizações sociais, suas lutas cotidianas tinham sempre que se debater nas malhas mais finas da rede dessa relação de poder com o Estado, o que, na maioria das vezes, finalizava com a aceitação das imposições deste, que regulamenta os conceitos de verdade e as normas políticas. Assim, o Estado domina pelos códigos que ele mesmo cria e estabelece que qualquer outro código, para ser validado como verdade, deve passar pela análise e aprovação dos seus mecanismos.

É a partir das novas configurações de poder e da necessidade que as camadas periféricas têm de implantar outra agenda de ações a ser cumprida pelo Estado que surgem as novas estratégias que objetivavam controlar e monitorar o poder popular. O Estado apenas busca nas reivindicações populares as condições para manter seu poder de controle. Assim, sustentará sempre o cumprimento do seu estatuto da verdade e buscará outras formas de dominação e exploração. Em contrapartida, a população em situação de rua continuará sempre exercendo seu poder. Enquanto a manutenção da pobreza for interessante para o Estado capitalista, haverá grupos que a aceitarão e outros que não.

Ao analisar profundamente a situação das crianças e adolescentes em situação de rua verifico que suas táticas de sobrevivência são apenas reflexos das ações do Estado. Manter um poder paralelo além de desafiar a polícia estatal traz uma reflexão sobre as novas formas de organização das comunidades periféricas bem relatadas na obra Microfísica do poder, escrita por Foucault (2005).

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Reflexões sobre o roubo

Considerar roubo como trabalho seria buscar o significado do trabalho no aparente não trabalho (BLASS, 2006). Sendo assim, é possível visualizar as atividades antes conceituadas como vagabundagem ou banditismo enquanto trabalho, mesmo que sejam ilícitas ou que desafiem a ordem estabelecida pelo Estado.

Quando abordo as táticas de sobrevivência desenvolvidas e executadas pelas crianças e adolescentes em situação de rua enquanto trabalho, considero essas duas táticas enquanto trabalhos lícitos e ilícitos, sem desprezar sua importância para manutenção da vida de tais crianças e adolescentes.

Tais táticas caminham em total oposição já que uma desperta pena e a outra ódio. Nota-se que oscilações são comuns e constantes no cotidiano das crianças e adolescentes em situação de rua como nos afirma Gregori (2000, p. 30):

Do ponto de vista das imagens dos meninos de rua, encontramos oscilações e conflito: são tomados ora como “pequenas monstruosidades sociais”, “bandidos em potencial” – em versões em que sua periculosidade já está definida como algo inato ou, se não inato, como resultado de uma miséria social e moral que dificulta a busca de soluções –, ora “verdadeiros carentes”, nas versões que os representam como a ilustração mais cabal do abandono, dos desmandos e da desigualdade social.

Pais (2003), ao analisar o cotidiano dos jovens portugueses, já visualizava as mudanças que ocorriam no âmbito do trabalho. Jovens sem emprego eram obrigados a buscar táticas para sobreviverem, pois para eles, o vínculo a uma atividade de trabalho era condição para viver plenamente a vida. Assim os jovens portugues assumiam nas ruas as figuras dos “ganchos, tachos e biscates”.

Crianças e adolescentes em situação de rua do Brasil podem ser comparadas aos ganchos portugueses, sendo que estes eram os principais trabalhadores ilícitos descritos por Pais. A mesma criança e/ou adolescente assume vários papéis: “pobrezinho”, “carente”, “marginal”, “trabalhador”, podendo o mesmo indivíduo ser considerado em termos portugueses: gancho, tacho ou biscate.

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As táticas de roubo têm que ser reelaboradas cotidianamente na tentativa de driblar a repressão do Estado. Esse trabalho garante muito mais que a sobrevivência das crianças e adolescentes, garante seu reconhecimento como sujeitos produtivos da sociedade para a qual o trabalho é algo extremamente valorizado. O seu sucesso no roubo lhes garante o reconhecimento grupal, a fama e a condição de adquirir os bens materiais, tão bem comercializados pelo mercado capitalista. Nesse caso, afirmo, utilizando Stuart Mill (1991, p. 122), que o indivíduo deve sempre se preocupar com sua imagem, tornando-se exemplo de cumprimento das regras de convivência (mesmo que singulares e divergentes das do Estado) e com isso tornar-se digno de respeito e um exemplo a ser seguido. Mesmo em um contexto de ilegalidade, a comunidade cria seus “heróis”, recebe esse título aquele que consegue vencer o inimigo comum, muitas vezes representado pelo Estado.

De maneira performática D. Helder Camara no primeira celebração da Missa dos Quilombos, textos de D. Pedro Casaldáliga e Pedro Tierra, música de Milton Nascimento, em gravação ao vivo do disco deste nome, D. Helder, no final da celebração, emocionado dá um critério ético fundante e normativo. Dizia ele: “Se uma criança com fome toma uma correntinha de ouro para trocar por alimento, é preciso saber que, quando a situação é extrema, tudo se torna comum!”

Tanto o roubo quanto as demais atividades desenvolvidas são táticas de sobrevivência que exigem das crianças e adolescentes planejamento e execução que enquadram os jovens no mercado capitalista. Portanto, tomando algumas palavras de Marx (1981, p. 113), compreendo que estes são “[...] trabalhadores independentes e capitalistas de si mesmo, adquirindo capital e tornando-se consumidores”. Crianças e os adolescentes em situação de rua no mercado capitalista são inseridos nos sistema, comportando-se como consumidores. De outro, os valores de troca dos resultados, pelo risco que corre a criança, como o menino Joilson de Jesus, na Praça da Sé de São Paulo, assassiando a chutes por um proucrador da Justiça – nunca são proporcionais aqueles valores de mercado, de sorte que, quem reabsorve o risco do trabalho desta criança são os compradores, neste caso da correntinha, ourivesarias, lojas, e estes, utilizam das “bençãos” da legalidade do mercado.

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As histórias contadas

A principio, devo compreender a criança e o adolescente que estão em situação de rua enquanto sujeitos formados em espaços ímpares, diferentes dos que comumente elegemos como educativos. Entre as várias atividades desenvolvidas pelas crianças e adolescentes em situação de rua está a abordagem que fazem às pessoas que transitam pelas vias públicas e que representam uma percentagem considerável na captação de recursos que possibilitam a sua sobrevivência e/ou de suas respectivas famílias. Essas abordagens, reconhecidas como táticas de sobrevivência, podem ser compreendidas comumente como mendicância.

Para que a captação de recursos aconteça, é necessário a elaboração de táticas que possam sensibilizar o público-alvo. É nesse contexto que se insere a figura do narrador capaz de introduzir o público em um enredo que mistura ficção e realidade, e que, devido à sua capacidade de articulação, acaba apresentando-se como a mais pura verdade. Aqui a fala se configura como um importante instrumento de articulação social, onde se intensifica a necessidade de uma comunicação baseada em uma linguagem bem articulada e argumentativa.

A rua, com sua diversidade, torna-se um cenário inspirador para o narrador. Os espaços físicos: ruas, praças, lojas, viadutos; seus frequentadores: policiais, educadores, comerciantes, benfeitores e comunidade em geral exigem que os narradores examinem minuciosamente cada detalhe para evitar erros no momento das abordagens. A abordagem tem que ser perfeita para que o objetivo, a sensibilização, seja alcançado.

Não quero, de forma alguma, analisar essas táticas desenvolvidas pelas crianças e adolescentes enquanto artimanhas de violação de direitos ou como atos infracionais, mesmo que sejam, mas sim trazer à tona sua capacidade de conseguir explorar a rua demonstrando serem possuidores de uma inteligência que os diferencia das demais crianças e adolescentes na mesma faixa etária. Isso mostra sua capacidade de desenvolvimento cognitivo, independente de uma influência escolar, e sua capacidade de assimilar com facilidade questões que envolvam sua sobrevivência e a de seu grupo e que, normalmente, uma criança ou um adolescente que não estão em situação de rua levariam muito mais tempo para assimilar. Não existe qualquer dúvida de que a

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inteligência imprescindível e criativa é daquelas crianças e adolescentes que elaboram soluções para a vida.

Benjamim (1994, p. 201) afirma que “[...] o conselho tecido na substância viva da existência tem um nome: sabedoria. A arte de narrar está definhando porque a sabedoria – o lado épico da verdade – está em extinção”. A partir desta citação, começo a compreender a sabedoria das crianças e adolescentes e sua capacidade de articular artisticamente as palavras e criar histórias que podem sensibilizar e encantar seu público-alvo. As histórias por elas tecidas encantam, emocionam, comovem. Não há apenas uma narração simples, há a incorporação teatral do personagem da história. É importante compreender, que não se trata de mentira, se trata de um discurso político, com finalidades específicas em vista da sobrevivência, e portanto com densidade ética. O erro de julgar isso como mentira é muito menos inteligente e ingênuo, de não compreender as relações entre mediação da criação e os fins bons alcançados por esta mesma arte.

Crianças e adolescentes mendigam valendo-se da sensibilidade das pessoas, narram histórias plausíveis, tenda a emocioná-las. A mais comum é a utilização de um texto escrito que normalmente traz em seu conteúdo as figuras de um pai desempregado, morto ou doente, uma mãe que tem muitos filhos, um irmão que tem sérios problemas de saúde, o que justifica a mendicância e que possibilitará a compra de remédios para o irmão doente e de comida para subsistência da família. É uma incógnita o surgimento do texto original, não se sabe quem, onde e nem quando o primeiro texto foi elaborado, mas o que se sabe é que essa tática se alastrou rapidamente por todo o país seguindo um modelo de globalização de táticas de sobrevivência.

Normalmente, as crianças e adolescentes apresentavam textos semelhantes que se modificavam apenas pela experiência pessoal de cada um que é inserida no contexto. Ao contar sua história, a criança ou o adolescente estabelece um diálogo com o ouvinte, conseguindo inserir todos os questionamentos no contexto da história narrada sem entrar em contradição. Talvez essa experiência esteja diretamente ligada ao pensamento de Benjamin (1994, p. 201), quando ele afirma que “[...] o narrador retira da experiência o que ele conta: sua própria experiência ou a relatada pelos outros. E incorpora as coisas narradas à experiência dos seus ouvintes”. As crianças e adolescentes em situação

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de rua levam às pessoas abordadas histórias que possam sensibilizar, que possam transportar o ouvinte a um mundo fictício onde impera a comoção e com isso retirar deles bens materiais como dinheiro e alimentos.

É possível afirmar que essa tática esteja presente no cotidiano das crianças e adolescentes em situação de rua em todo o Brasil. Por exemplo, em viagem no ano de 2013, recebi um panfleto distribuído num ônibus urbano da cidade de São Paulo, contendo o seguinte texto:

Senhores, estou implorando uma ajuda a vocês. Meu pai faleceu, minha mãe está desempregada e tem que ficar em casa cuidando de meus sete irmãos. Meu irmão mais novo está doente e precisamos de dinheiro para comprar remédios e comida. Por favor nos ajude. Aceito qualquer tipo de ajuda que não for fazer falta a vocês. Que Deus lhe abençoe!

Esse é um conteúdo semelhante aos contidos nos textos distribuídos em várias cidades do Brasil: desemprego, doença, família composta por um modelo tradicional (pais e filhos) e apelo que visa a sensibilizar as pessoas sobre os problemas sociais e por meio da religiosidade.

Percebo que essa tática de sobrevivência, que envolve articulação entre fala e escrita, se alastrou rapidamente pelo cotidiano da rua, potencializando novos discursos. O envolvimento dos que estão em situação de rua com o texto é tão intensa que se confunde o fictício com sua história de vida, o que torna impossível, a curto prazo, distinguir o que é verdade ou mentira, devido à forma artística com que são apresentadas, pois as falas possuem, como foi destacado anteriormente, o dom da dramaturgia, sensibilizando o ouvinte e envolvendo-o como coadjuvante de um espetáculo. Ao ser envolvido na narrativa, esse transeunte passa a retransmitir a história contada pelos primeiros inserindo nela as imagens criadas por sua mente. Neste ponto, destaco outro aspecto das histórias contadas, o campo óptico.

As imagens criadas por nossa mente no momento em que a história é narrada exercem uma grande influência na recontagem da mesma, pois serão inseridas nela um novo texto extraído das imagens criadas pela mente, assimiladas a outras imagens que foram capturadas durante a vida. Dessa forma, a mesma história contada por crianças e

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adolescentes em situação de rua terá um impacto diferente a partir da leitura de cada ouvinte.

Torna-se fácil para as crianças e adolescentes que estão nas ruas contar tais histórias, pois as mesmas não são difíceis de serem inseridas em seu cotidiano. Ao narrarem o texto fictício, imediatamente é traçado um paralelo com o contexto social onde os mesmos estão inseridos. Tal capacidade de articulação torna essas crianças e adolescentes excelentes “contadores de histórias”.

Assim sendo, destaco que a compreensão das histórias contadas pelas crianças e adolescentes em situação de rua se torna envolvente pala riqueza de argumentos e pela articulação das palavras; no entanto, torna-se difícil, em uma simples observação, caracterizá-las como “verdade” ou “mentira”. Tal conclusão só seria possível após um estudo lento e minucioso que envolve a construção de vínculo de confiança entre observador e observado.

Reflexões finais

Observo que mesmo com a implementação do ECA, a prática de táticas de sobrevivência continua frequente, impulsionando, a cada dia, a ida de crianças e adolescentes às ruas, ocupando os espaços públicos, desenvolvendo atividades variadas. Essas práticas presentes nos espaços públicos urbanos, tornaram-se frequentes desde que os princípios capitalistas neoliberais passaram a orientar a política econômica brasileira, impulsionando o aumento da pobreza do povo brasileiro, aprofundando a desigualdade.

No cotidiano de crianças e adolescentes pobres há o encolhimento de seus direitos, característico à “era da indeterminação” descrita por Francisco de Oliveira (2003). As crianças e adolescentes, por sua vez, colocam em prática suas táticas de sobrevivência criando resistências às políticas governamentais e às ações assistencialistas ou violentas das ruas.

É importante destacar que o cotidiano da rua exerce grande influência na vida das crianças e adolescentes, o que faz com que muitas famílias pobres da periferia não consigam mantê-los em seus bairros, que não oferecem espaços de lazer adequados ou qualquer outro atrativo; tampouco em suas casas, em decorrência, principalmente, da violência familiar. Na rua, consegue-se dinheiro fácil, comida farta,

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sexo, drogas e uma liberdade incomparável. Assim, torna-se quase impossível que uma criança ou adolescente em situação de rua que criou fortes vínculos com a rua adapte-se às normas institucionais (mesmo com seus atrativos educacionais), às escolares, à rotina pobre do seu bairro, ou queira permanecer em famílias onde impera a violência.

Tentar retirar as crianças e adolescentes da rua e inseri-los em instituições sem que estejam prontas para atendê-los representa mais uma limpeza dos espaços públicos urbanos do que uma ação educativa e de garantia de direitos. Para melhor entendermos a realidade em que vivem as crianças e adolescentes em situação, Graciani (2005, p. 279), ao compreender o cotidiano das crianças e adolescentes em situação de rua na cidade de São Paulo, afirma que “[...] crianças vivendo nas ruas são a manifestação mais explícita de incompetência da sociedade brasileira em promover o desenvolvimento econômico, a distribuição de renda, a igualdade de oportunidades, as políticas públicas de direitos humanos”.

Quando conseguirmos ver a rua pelo olhar dos que nela estão poderemos pensar em ações sociais que realmente os ajudem as crianças e adolescentes em situação de rua a reconstruirem seus projetos de vida positivamente. Para as crianças e adolescentes, o estar na rua é reflexo de sua condição cultural, social e econômica, o que me faz compreender que trabalhar com esse público significa trabalhar com sua história e seus espaços de sociabilidade. A criança e adolescente não devem ser vistos como um problema social e sim como resultado da inexistência de políticas públicas ou da existência de políticas de má qualidade.

Referências

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AUGÉ, Marc. Não lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade. 9. ed. Campinas-SP: Papirus, 2012.

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BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.

BLASS, Leila. Ato de trabalhar: imagens e representações. São Paulo: AnaBlume, 2006.

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FERREIRA, Rosa Maria Fisher. Meninos de rua: valores e expectativas de menores marginalizados em São Paulo. São Paulo: Comissão Justiça e Paz/CEDEC, 1979.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 2005.

GIDDENS, Anthony. As consequências da modernidade. São Paulo: Editora UNESP, 1991.

GRACIANI, Maria Stela Santos. Pedagogia Social de Rua. 5. ed. São Paulo: Cortez/Instituto Paulo Freire, 2005.

GREGORI, Maria Filomena. Viração: experiências de meninos nas ruas. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

LEITE, Lígia Costa. A razão dos invencíveis: meninos de rua: o rompimento da ordem (1554-1994). Rio de janeiro: Editora UFRJ/IPUB, 1998.

_____. Meninos de rua: a infância excluída no Brasil. São Paulo: Atual, 2001.

MARX, Karl. O capital. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1981.

MILL, John Stuart. Sobre a liberdade. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1991.

OLIVEIRA, Francisco de. Crítica à razão dualista – o ornitorrinco. São Paulo: Boitempo, 2003.

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PAIS, José Machado. Ganchos, tachos e biscates: jovens, trabalho e futuro. Porto-Portugal: Ambar, 2003.

SAQUET, Marcos Aurelio. Abordagens e concepções de território. 2. ed. São Paulo: Expressão Popular, 2010.

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Por uma Epistemologia que toque a carne

Jandir João ZANOTELLI

Quem são os homens, mulheres, jovens e crianças que vivem na rua, em condição de rua? Como sabê-los? O saber que sobre eles teve e tem a Academia parece ser insuficiente, deficiente, impotente. A episteme, elaborada desde o pensamento e civilização grega indo-europeia, renascida e maturada na Modernidade e criticada depois dela, não consegue dar conta da exclusão em que vivem as pessoas em condição de rua. Deixar que elas falem a partir de uma episteme da alteridade parece o caminho: as epistemologias do Sul (SANTOS; MENESES, 2010).

Merleau-Ponty, Paulo Freire, Levinas e E. Dussel delineiam as possibilidades. Os homens e mulheres que vivem na rua dizem, desde si, desde a alteridade da exclusão, quem são e como é o mundo em que estamos. A pesquisa RuAção quer efetivar uma caminhada a partir do que o outro quer dizer – uma luz para a Epistemologia e para a Academia.

* * *

Há um homem na rua. Há uma criança na rua. Uma mulher vivendo na rua. Vivendo em condição de rua. Aos milhares.

“Não têm respeito por ninguém. Não têm normas. Não têm trabalho, nem casa, família. Estão sujos. Macilentos. Devem estar doentes. Transmitem doenças.Catam o lixo. Vivem do lixo. São o lixo da sociedade. São perigosos. Delinquentes. Suas ruas, seus lugares são perigosos. Esses vagabundos estorvam, ameaçam o bem-estar das pessoas de bem. São permanentemente um caso de polícia. Como livrar-se deles? São eles mesmos que se excluem do mercado e do convívio social. E pedem, reclamam, exigem esmolas, contribuições, sob ameaças. Como se lhes estivéssemos devendo algo. Nós que trabalhamos e suamos para sustentar com dignidade nossa família, o estudo de nossos filhos, a cultura, o lazer, apesar dos escorchantes impostos que o Estado nos extorque para dividi-los entre os mensalões e as políticas sociais para dar esmolas de bolsa família, bolsa escola, bolsa de moradia...” – eis o que pensam as “forças vivas” da sociedade.

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Mas o que será que os excluídos pensam sobre tudo isso? Sobre a sociedade, a família, a rua, a cidade, sobre si próprios? Nosso modo de compreensão, nossa Epistemologia serão capazes de abarcar a realidade deles? Por que não perguntar para eles?

A Academia, espaço máximo de organização e validação de todos os saberes do sistema vigente, estabeleceu, desde a Grécia, como base do sistema europeu de civilização, a pirâmide dos saberes (DUSSEL, 1986). Subordinação de uns aos outros e a superioridade dos saberes da elite contra os da plebe, dos detentores do poder (econômico, político, social, cultural e religioso) contra o dos trabalhadores, escravos, servos, ou simplesmente das minorias, dos excluídos.

O saber que encaminha, que conquista, expõe e garante a verdade não é o saber da sensibilidade1 nem o do fazer e do agir (o saber empírico, técnico ou ético do povo), mas o saber epistêmico da lógica2 dos primeiros princípios e causas, o saber dos filósofos. O saber é a episteme e a episteme é o saber: o que se justifica a si mesmo mediante duas premissas e as formas corretas de conclusão. Verdadeiro é o correto. E correto é o epistêmico. A sensibilidade, a intuição, a fé, a inter-relação com o outro, a afetividade da vida cotidiana não são caminhos para o saber, para a verdade.

Não é assim que pensavam as primeiras grandes civilizações da humanidade3. Elas elaboravam seu saber em forma de mito4. Nele, estava todo o saber. O saber sentir (aguçar o tato, o ouvido, a visão, o gosto, o olfato). O saber saber (da fé, do originário, do essencial, do imaginário). O saber político, econômico, social e cultural. No mito, estavam todas as dimensões do saber. E, na perspectiva de Mircea Eliade (1970), o mito é uma narração que os antepassados nos legaram sobre a origem de todas as coisas e que os deuses lhes revelaram. O mito diz que não há saber sem os outros (os antepassados). Que não há saber sem a inspiração (dos deuses). Que não há saber sem o acontecer histórico (que se narra, e não se explica ou conceitualiza). E o mito se

1 Cf. PLATÃO. El banquete, Fedon e Fedro, 1972.

2 Cf. ARISTÓTELES. Metafísica, Livro I, 1969, p. 980.

3 Cf. AUSTIN, Alfredo López. Hombre-Dios, religión y política en el mundo Náhuatl, 1973; e La educación de los antiguos Nahuas, 1985. E também Otília Meza, 1993; e Juan Miguel de Mora, 1968.

4 Cf. ELIADE, Mircea, 1960; 1964; e também Jesus Azcona (1993, p. 85).

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fortalece, ensina-se, presentifica-se pelo rito5. O rito faz acontecer o mito como compreensão, como epistemologia. Sua linguagem é a da parábola, do provérbio, da palavra que se proclama. Do exemplo que se pratica. A verdade última do saber fazer.

Depois destas civilizações pré-semitas, comunitárias, vieram as civilizações indo-europeias culminadas pela civilização grega – a da propriedade que se conquista por um ato violento de superioridade das armas (cavalo e ferro), do machismo, da racionalidade lógica que foge da crítica das civilizações comunitárias taxando-as como “míticas”, isto é, sem coerência, sem verdade, supersticiosas e baseadas apenas na sensibilidade e na banalidade do senso comum. O conhecimento válido é o do vencedor, o da elite, o do sábio filósofo. O poder se conquista pela violência6 e se valida pelo saber. Duas formas de vencer o outro: VENCE-se o outro pela espada e/ou se o conVENCE pela lógica, destruindo silogisticamente o argumento do contendor7. Duas formas de violência – a da espada e a da lógica – que, intrinsecamente vinculadas entre si, permitem galgar o poder da exclusão do vencido. Não se pode dizer qual a violência mais eficaz, se a da espada ou a simbólica8 do saber, que reproduz e garante a exclusão. Em todo caso, a episteme que coloniza e exclui é uma espada.

A racionalidade lógica como episteme grega se faz depois racionalidade matemático-experimental como “ciência” no Renascimento e na formatação do projeto europeu de colonização e da revolução industrial9. Nem a teologia, nem a metafísica, e muito menos o mito figuram como episteme que dê acesso à realidade. A mensuração matemática da experimentação dos fatos observáveis é a episteme10. O resto é ilusão, superstição, falsidade.

O século XX mostra a “crise das ciências europeias”, no dizer de Husserl, em 1939. Esta crise do positivismo científico que a Fenomenologia impôs caminhou pelas veredas da percepção,

5 Cf. Jesus Azcona (ibid.).

6 Cf. Giorgio Agamben. Homo sacer, estado de exceção, 2004.

7 DUSSEL, E. El humanismo helênico, 1968.

8 Cf. Pierre Bourdieu, op. cit., 2007.

9 DUSSEL, E. El humanismo de la Cristandad, 1974.

10 DESCARTES, R. Discurso do método, 1960.

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da intuição e da corporalidade11, até focar no Personalismo12 e na Fenomenologia da Outridade13 que situa o conhecimento na relação interpessoal de um eu e um tu, até demarcar o sentido do conhecimento como oriundo da relação de outridade.

Ora, a percepção do outro como outro é impossível no sistema epistêmico grego, renascentista ou do positivismo. Muito menos no racionalismo liberal, que pretendeu nominar a relação mais humana quando estivesse sob a bandeira e sob o signo de “liberdade, igualdade e fraternidade”. Isto porque o liberalismo e igualitarismo mascaram a exclusão como se ela não fosse um fenômeno deles decorrente14. A episteme que utilizam faz do excluído um acidente momentâneo, fruto da inépcia, imperícia, despreparo e preguiça do excluído. O excluído não tem voz nem vez para narrar, para dizer de sua situação. Porque não sabe, porque não é. Ele é apenas a negação do que deveria ser. Quem sabe o que ele é, porque é e como é, é a Academia. Esta fala, em nome do sistema, a verdade definitiva e real, mesmo que se disfarce em peregrina, em relativa e até participativa e democrática.

A voz do excluído, enquanto outro, carnalmente outro, seu brado contra a injustiça, seu clamor por justiça não encontra sintonia no ouvido do dominador e excludente15. É só dessintonia, cacofonia, ruído, desencontro.

Sirva de exemplo o caso de Felipe:Tardinha de sexta-feira. Véspera de Natal. Calor insuportável, que

tudo abafa e resseca. Vento nenhum. Bem acima dos 30 graus.Em frente à Universidade. Abri os vidros do carro. Recomendei

pressa à mulher. Fora retirar algum dinheiro no caixa eletrônico do Banco no saguão da Universidade.

Cansado, quase adormecia, quando alguém cutucou o meu braço:

11 Cf., em Merleau-Ponty (2009, p. 197-199), a percepção como atitude corpórea. A consciência intencional (de E. Husserl) é carnal. O conhecimento nasce e se faz sensível na corporeidade do homem, em seu corpo próprio (visível: Carne-Espírito) (ibid., p. 124-125). O corpo é um campo criador de sentidos. E a percepção acontece como relação (ibid., p. 229-232).

12 MOUNIER, Emmanuel. O personalismo, 1973.

13 Cf. Martin Bubber, Eu e tu (op. cit.) e E. Lévinas, Entre nós... (op. cit.).

14 Cf. FORRESTER, V. O horror econômico, 1997; e a fala do papa Francisco ao final de outubro de 2014.

15 Cf. DUSSEL, E.; AOEL, K. O. Ética del discurso x Ética de la liberación, 2004.

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— Tio, tio, tem um troquinho?Acordei. Era Felipe. Cinco anos de idade, mais ou menos. Talvez

mais no tempo. Talvez menos na carne mirrada que lhe recobria os ossos. Pé no chão. Um calçãozinho esfarrapado. Sem camisa. O rosto, as mãos, a barriga, as pernas sujas. Ranho escorrendo pelo nariz. Cabelinhos que nunca viram um pente. A magreza contrastava com a barriga, um pouco inchada: pensei em vermes. Ah! Quase esquecia: era negrinho.

Não sei onde aquele menino encontrava energia para saltar e manter tanto brilho nos olhos.

Não me lembro de tê-lo visto antes. Nem na porta da igreja. Nem nas sinaleiras. E muito menos em alguma escola.

Confesso que nunca vira antes símbolo tão concreto, em carne e osso, mais osso que carne, da exclusão social, da rua como espaço da liberação da exclusão.

O lampejo daquele olhar que faiscava inocência e clamor vital por justiça, ao encontrar-se com os meus, cansados, precisando de colírio, incitou-me a conversar com aquela criança. Afinal, não tinha mesmo nada para fazer!

— Mas me diga, como é mesmo o teu nome?E ele, num trejeito de surpresa e sem cerimônia:— Felipe!— Felipe, de quê?— Ué! Felipe!— E onde você mora?— Nas Doquinha!— E por que você me chamou de tio? Será mesmo que sou teu tio?— Não, é um jeito pra gente pedir.— E por que você veio pedir pra mim?— Ué! Porque você é rico!— E como você sabe que eu sou rico?— Porque você é gooordo, e tem um carro!— Ah! E o que você vai fazer com o dinheiro?— Vou levá pra minha mãe... Tá lá na esquina sentada.— E aquela criança que ela tem no colo, é teu irmão?— Não, é a filhinha da vizinha. A mãe pega emprestada pra vir

pedir no centro.

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— Ah!— E tu sabe, tio, que hoje de noite vai comê, lá em casa, um tio

meu que nunca foi preso?— É? E teu pai já foi preso?— Ich! O pai, a mãe, minhas duas irmãs também. Muitas vezes.— Mas por que eles foram presos?— Ué! Pra vergação!— Vergação? Mas o que é isto?— Ué! Quando tem um roubo... A polícia não sabe quem foi...

Prende as pessoas pra saber quem foi, pra descobrir o ladrão...— Ah, entendi! É para a averiguação?— É, é esse troço aí...— E se teu pai, tua mãe, tuas irmãs não são culpados?— Aí a polícia solta eles...Olhei para a falta de estranheza dele, para tamanha naturalidade

em se ver como excluído e provoquei:— Ah... E você sabe, Felipe, que eu nunca fui preso?— É?...— Nem meu pai, nem minha mãe, nem meus oito irmãos...

Nunca...— É?!Felipe me olhou espantado, um espanto que ia mais longe que

o chavão “quem é rico não vai preso”. O brilho daqueles olhinhos começou a se ofuscar e a tremer... Não tive coragem de continuar... Seria massacrante demais se Felipe soubesse de toda a verdade da exclusão ou de uma parte dela.

— Felipe, vou te dar dois troquinhos: esse é pra você comprar um sanduíche ali naquele barzinho. Esse outro é pra você levar pra mãe. Gostei de conversar contigo.

— É?...Minha esposa chegou... Suando de raiva porque a fila era longa e

o caixa eletrônico só liberou mil reais.— Pra comprar as coisas da janta, temos que dar cheques...A figura, os gestos, as palavras de Felipe latejavam em minhas

têmporas... Como entender o que ele era e o que ele disse?Confesso que estava, e fiquei ainda mais, cansado. Um cansaço

existencial, carnal (quem sabe Merleau-Ponty diria isso) pousou sobre meus ombros.

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Passara a semana toda lecionando Epistemologia das ciências sociais em confronto com a das ciências empírico-matemáticas, da Filosofia, da Teologia. À tardinha, esforcei-me em ensinar hermenêutica jurídica às turmas do Direito.

Iniciava com Platão e Aristóteles, do modo como eles organizavam e escalonavam os saberes, partindo do conhecimento sensorial até chegar ao ápice da Filosofia Primeira ou Metafísica, onde morava a verdade, em sua maior inteireza e validade. Passava pela Idade Média confrontando Agostinho e Tomás de Aquino em suas temáticas de Fé e Razão16. Passava pela Modernidade do “penso, logo sou” de Descartes, que procurava a certeza indubitável como critério de verdade. Depois Kant. Depois Hegel, onde a razão se basta a si própria. Depois o Empirismo. Depois o Positivismo de Comte e Spencer. Depois os críticos da Modernidade como Marx, Feuerbach e Foucault. E o existencialismo, desde Kierkegaard passando pela Fenomenologia de Husserl ao Ontologismo de Heidegger e Paul Ricoeur e Merleau-Ponty. E o personalismo de Buber... Até chegar à Alteridade de Levinas. E. Dussel. E tudo para encontrar um caminho que permitisse acessar a Verdade das coisas, que são aquilo que são. Para afastar o engodo, o engano, a ilusão e abrir a cortina do rosto do outro e da realidade tal qual ela é em sua apresentação.

E, depois de passar por tantos pensadores – alguns deles me ajudaram muito –, vinha a dificuldade de ver a realidade ao invés de pairar alienado no conceito universal daquilo que a realidade deveria ser para poder ser o que é... A dificuldade de superar o dualismo bisonho – de corpo e alma – que os colonizadores e opressores usaram castigando o corpo para salvar a alma, para justificar a exclusão em nome de Deus, em nome de valores pretensamente “espirituais” e fazendo do sofrimento (dos outros) o caminho da civilização e da salvação...

Mas agora, o Felipinho estava aí. Na minha frente. Como a explosão silenciosa de um clamor que, no mais profundo da injustiça, da negação da vida, da rua, pede, reclama, exige justiça.

Sem palavras, sem discursos, no silêncio de uma alma que assoma aos olhos, ele grita, ele pede, ele exige justiça.

No pedido afetuoso e tímido de “tio...” está o clamor: reconhece-me!... Dá-me de comer!... Dá-me de vestir!... De morar... De viver.

16 Cf. AGOSTINHO, S. Confissões, 1942; e AQUINO, Tomás de. Suma Teológica, Loyola, 2010.

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RuAção: Das epistemologias da rua à política da rua

E o pior! Muito pior para mim! Mesmo que ele peça “com modos”, “por favor...”, o que ele reclama não é um favor ou uma esmola ou um direito meramente jurídico. Ele clama pelo direito de viver e anuncia que, se eu não atender a esse apelo, eu perco, extravio a minha vida, a minha identidade, o meu direito de viver. Mais que nunca, Agostinho de Tagaste (354-430) tinha razão quando dizia: É mais caridade receber do que dar... Porque damos do que nos sobra... Mas aquele que recebe, recebe o que lhe falta. E guardar aquilo que nos sobra, diante da necessidade do outro, é um roubo...

E sem desculpas sociais, religiosas ou morais que pretendia utilizar para empanar meus olhos e esconder as mãos, Felipe está aí. Bem na minha frente... Olhar estendido, mão estendida... Chame-se a esta Rua Gonçalves Chaves ou da Catedral, chame-se a esta cidade Pelotas, Rio de Janeiro ou Cuiabá. Talvez Felipe tenha outro nome, outro sexo ou outra idade, outra cor ou outra magreza.

Diante da Universidade, a Academia, o templo máximo do saber e na qual eu labutava há tanto tempo, gastando dias, noites e madrugadas, eu me perguntava: será a Academia capaz de entender o Felipinho? O Felipe inteiro, em sua carnalidade óssea, magrinha, suja, cicatrizada em tantos vergões... Entender sem utilizar apenas mecanismos de fuga em chavões como:

— É um vagabundo... Filho de vagabundo prolífico... É um marginal... Como todo negro, como toda minoria, como todos os miseráveis, desempregados, são os únicos responsáveis por sua própria exclusão...

— Afinal, se nós somos pobres ou da classe média é porque lutamos, fizemos por quê...

— Ademais, essa gente (índio, negro, mulato) é perigosa. Suas mãos, seu olhar, seus lugares são perigosos... Seus lugares são de insegurança. De lixo. Do escuro. Do fedor em que se misturam mijo, merda e tuberculose... É preciso higienizá-los. Apartá-los como foi na África do Sul, como fez Hitler, ou como faziam os católicos na Bahia com os negros na senzala ou nos quadrados no fundo da Igreja. Ou como fazia Jerusalém com os leprosos relegados ao deserto... O ebola levará isto ao paroxismo...

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RuAção: Das epistemologias da rua à política da rua

E me perguntava: terá a Universidade uma Epistemologia capaz de reconhecer o Felipe? De reconhecer-se no Felipe? Quem ensinará à Universidade uma Epistemologia capaz disso?

Certamente, não o fará o helenismo, a Modernidade e sua crítica de direita ou de esquerda hegeliana, muito menos o positivismo, o existencialismo ou o ontologismo. Se a Universidade não consegue digerir e assimilar a perspectiva da alteridade desde Feuerbach, Buber, Lévinas, Dussel... Nem sabe como aproximar-se da visão de Merleau-Ponty e Paul Ricoeur... Como poderá ter o saber carnal e existencial do cuidado e da misericórdia?

Talvez com Merleau-Ponty, Paulo Freire e E. Dussel conseguiremos abrir os olhos e a alma para ver, ouvir e acolher o clamor das pessoas que vivem em circunstância de rua para recuperarmos nossa própria identidade e dignidade. Talvez, então, a Academia recupere sua raiz e o sentido econômico, social, político, cultural e transcendente de seu saber, de seu poder, de seu fazer e conviver.

O projeto RuAção tenta contribuir para esta Epistemologia necessária, para a ética e as práticas reclamadas pelo clamor de tantos Felipinhos. Para ouvir o clamor, é preciso estar perto, próximo, bem próximo daquele que quase não tem voz. Daquele cuja fala não coincide com nossa fala, nem na gramática, nem no sentido, nem na coerência. Para estar próximo, é preciso ter estômago, nariz, pele e coração sem ojeriza de pobre, de doente em todos os sentidos. É preciso acreditar na absoluta dignidade vital de todas as pessoas. É preciso dispor-se a acolher, a despojar-se dos preconceitos que formam em nós uma segunda pele. Acreditar que o essencial na vida é acolher e cuidar do outro, tanto mais quanto mais outro. Outro de nossa situação econômica, política, cultural, social. E cuidar do outro é a condição de possibilidade da vida humana, da vida em comunidade, da vida democrática. Conhecer o outro em sua outridade e não apenas na diferenciação que dele temos é a condição de todo o conhecimento. De toda a Epistemologia: Epistemologia das urgências, das emergências, que toque a carne negra, indígena, cigana, ibérica, de todos os povos do sul, que os redima de sua opressão causada por nós. Da Epistemologia da rua à política da rua! (SOUZA SANTOS, 2010).

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210 • PARTE II - A população que resiste, sonha e trabalha na rua

RuAção: Das epistemologias da rua à política da rua

Referências

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212 • PARTE II - A população que resiste, sonha e trabalha na rua

RuAção: Das epistemologias da rua à política da rua

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PARTE IIIEnviesamento do olhar:

diversidade e fenomenologia

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RuAção: Das epistemologias da rua à política da rua

As situações de vida de moradores/as de rua e seu espaço:

angústias e superações

Cristiano Apolucena CABRAL

Essa é uma pesquisa em Educação voltada a moradores e moradoras de rua, que pensa sua condição de vitimas e invisíveis em relação ao outro e à sociedade. Assim, essa educação é a arte de cada pessoa realizar o direito de se fazer quem é não o fará sem a RELAÇÃO primal com o mundo-outro/as-coisas. Suas vidas e experiências tecem as nossas. Ninguém sai ileso. Não há mundos paralelos, mas embrenhados. Por fim, este processo em educação é para ver o outro em sua situação no mundo e com o outro para libertá-lo.

As premissas existenciais vivenciadas por moradores/as de rua em Várzea Grande e Cuiabá para chegarem a tal condição são diversas: desemprego, briga com família, drogas, saídas de estado distante para busca de trabalhos por estas regiões, vinda do campo buscando melhor vida na cidade etc. E estas premissas, por vezes, condicionam suas novas experiências vivenciadas na nova condição espacial-temporal. Fazendo-os: aprofundar nos vícios entorpecentes, fazer trabalhos informais (ajudar com carregamentos de materiais, flanelinhas, em feiras, ‘catadores de latinhas’, papelão, garrafas pets etc.), valorizar ou não a vida comunitária na rua, comportamentos diferenciais com os não-moradores de rua.

Ao estar em condição de situação de rua a vida destes sujeitos sociais transforma-se substancialmente. O mundo vivenciado em seu espaço, os fazem compreender a si e aos outros de maneiras diferentes daquelas que antes compreendiam. A sociedade ao qual se estão situados tratam-nos de maneira profundamente não-humana, agressivamente; e, a ‘micro-sociedade’ a qual criaram é, agora, uma necessidade à sobrevivência física, fisiológica, emocional e cognitiva. É o suspiro da criatura oprimida. Não raro pessoas que afirmam que estão cheias da vida, se suicidam. Lacan menciona que o excesso mata, dificilmente a falta. Uma sociedade “cheia” de direitos pode estar à morte.

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218 • PARTE III - Enviesamento do olhar: diversidade e fenomenologia

RuAção: Das epistemologias da rua à política da rua

A ausência de direitos em sociedade ‘cheia’ de direitos: entre invisibilidades e perversidades

A partir das reflexões dos escritos de Giorgio Agamben, pode-se compreender a vida, as relações, a sobrevivência, os comportamentos dos sujeitos em situação de rua enquanto indivíduos e grupos sociais em um estado de exceção, ou seja, “a suspensão (total ou parcial) do ordenamento jurídico” (AGAMBEN, 2004, p. 39). O sujeito em situação de rua está excluído dos direitos sociais, econômicos, existenciais, políticos, mesmo que, paradoxalmente, esteja em posse ‘formal’ destes mesmos direitos.

É este mesmo estado de exceção que define, julga e decide sobre o que é normalidade e não normalidade, moral e imoral, valorizado e não valorizado, legal e ilegal, incluído e excluído, viver e não viver (morrendo ou, como sucedâneo, sobrevivendo).

E o/a morador/a de rua vive existencial e ontologicamente este estado de exceção. Não somente nesta condição presente, mas para grande maioria, por toda vida. Para Walter Benjamin (1994, p. 226), “a tradição dos oprimidos nos ensina que o ‘estado de exceção’ em que vivemos é na verdade a regra geral”. Nas conversas com moradores/as de rua Em Várzea Grande e Cuiabá as histórias estão carregadas de vidas sofridas, ausências de direitos, educação institucional (ou quase), salário que favorece mínimos de vida digna, com moradias precárias e alimentação com défice de nutrientes para uma vida sadia. Muitos já estavam vivenciando – no campo ou na cidade – esta opressão, antes, inclusive, de chegarem à situação de rua.

É na situação, contudo, de rua que os limites de uma vida condicionada pelo estado de exceção chega ao absoluto, em uma ‘democracia’. A vontade soberana que decreta o estado de exceção - dignificando uns e ‘indignificando’ outros – é a vontade soberana do Estado democrático brasileiro, é a vontade soberana do Capital que diz possibilitar a todos e todas as mesmas condições. A unificação destas duas soberanias é a estruturação de um “estado capitalista” o qual “irá, historicamente, utilizar duas formas de regime político: a ditadura burguesa aberta e a ditadura burguesa oculta, a democracia” (VIANA, 2003, p. 43). O poder soberano do Estado e do Capital governa a vida produtiva, os locais de morada, o estudo, o consumo e até (em parte) o desejo, emoção, sentimentos, medos, angústias, alegrias etc.

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As situações de vida de moradores/as de rua e seu espaço: angústias e superações • 219

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E o conceito que o Agamben (2009, p. 40) chama para este controle é o de ‘dispositivo’, o qual significa “qualquer coisa que tenha de algum modo a capacidade de capturar, orientar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes”. E a sociedade brasileira, ou especificamente, várzea-grandense e cuiabana está cheia destes dispositivos. São estes dispositivos que legitimarão o que não é legal e a ausência de direitos mesmo existindo formalmente. Serão estes dispositivos que legitimarão a condição de exceção dos/as moradores/as de rua.

Com os dispositivos, não se precisará mais a ação direta e diuturna do Estado e nem do Capital. A própria sociedade estará encarregada e vigilante para atualização da manutenção do estado de exceção. E assim, a sociedade do espetáculo1, consumo2 e produtividade3 - a um só tempo maravilha e mazelas - são alguns dos dispositivos aos quais a sociedade condiciona a relação, compreensão, ação para com os/as moradores/as de rua. Estes, não possuem mais a imagem ‘humana’ que esta sociedade impõe, não possuem o que é necessário para tornar-se ‘humano’ para esta sociedade e, por fim, não são explorados pela sua venda da força produtiva, fator essencial para a ideologia capitalista, que ‘dignifica o homem e mulher’. A situação perversa é a existência e tolerância da existência deles, como forma de exclusão entre parênteses, posto que eles não indignificam o sistema, por sua existência, por inexistirem factual e simbolicamente a este mundo, por não existirem de fato como gente.

Estes dispositivos possuem uma força sócio metabólica surpreendente, ao se perceber que se presentifica nos corpos não somente sujeitos em situação de rua, mas também nos corpos, concomitantemente. Amiúde, eles próprios se viam a partir destes dispositivos que os excluíam do ‘espetáculo social’. Eles próprios se desprezavam e diminuíam ou auto-desumanizavam como defesa na invisibilidade. Este é o poder dos dispositivos nos corpos.

1 Para Guy Debord (2003, p. 14), o “espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediatizada por imagens”.

2 A pessoa é o que a pessoa possui.

3 Fundamento para a reprodução do Capital.

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220 • PARTE III - Enviesamento do olhar: diversidade e fenomenologia

RuAção: Das epistemologias da rua à política da rua

O meu esquema corporal é o meio normal de conhecer os outros corpos e de estes conhecerem o meu corpo (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 352).

Para Merleau-Ponty, o corpo próprio é aquele que percebe o mundo, as pessoas e as coisas em sua volta, significando, sendo solicitado e, por fim, respondendo a este mundo-pessoas-coisas. Os(s) sentidos(s) solicitados pelo mundo ao qual o sujeito em condição de morador de rua são os da exceção. O corpo o percebe e assim o responde, contudo não de forma mecânica e causal, mas relativa e dialeticamente: “[...] a consciência só pode encontrar em sua experiência aquilo que ela mesma ali colocou” (MERLEAU-PONTY, 2011, p. 243).

É nessa intenção significativa, e, portanto preenche significados, que o corpo do/a morado/a de rua torna-se, na visão de Foucault, um corpo dócil4 aos dispositivos do Estado e do Capital: impondo limitações ao que fazer, como fazer e onde fazer. É muito pouco para Merleau-Ponty, pois nenhum sujeito se dobra à condição de passividade e docilidade. Os gestos, comportamentos, movimentos, relacionamentos são delimitados, mas estes sujeitos aprendem com o próprio corpo as estratégias capaz de garantir-lhes a sobrevivência, e nela apresentarem os sentidos de autodeterminação, liberdade, solidariedade, alegria, fruição, gostos, expressar necessidades e proposições de um ordenamento proativo, que provocam aqueles e aquelas que desejam deles que não tenham desejo, e que apenas se mantenham como vermes. Neste sentido suas vidas contraditam os limites sociais que só se solidificam por ausência de outros possíveis, como se fora as únicas possibilidades de se continuar vivo e feliz. Os moradores atentam contra o sistema, esfregando em nossa cara, de normalizados, que somente na aparência “tá tudo dominado”. Os ídolos do poder tem pés de barro. Os sujeitos em situação de rua em Várzea Grande e Cuiabá sentem que não podem tudo. Mas podem muito mais. Sentem que o olhar ‘dos de fora’ querem impedir a liberdade dos comportamentos, dos movimentos, dos gestos e dos relacionamentos. Como se fora possível!

4 “Foucault assim mostrou como, numa sociedade disciplinar, os dispositivos visam, através de uma série de práticas e de discursos, de saberes e de exercícios, à criação de corpos dóceis [...]” (AGAMBEN, 2009, p. 46).

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Nessa disciplina dos corpos pelos dispositivos do estado de exceção a angustia existencial abala o cotidiano destes moradores de rua, também os atiça. Os limites os sufocam, fazendo-os chorar, entristecer só em comunicar tal situação. É uma mistura de dor temperada e oxigenada pela e indignação. São pessoas!

Em uma sociedade do espetáculo e do consumo a relação não é entre pessoas, mas são entre imagens especulares, de mútua espelhamento, ninguém ai ileso. E assim, aqueles limites sufocantes são para que estes sujeitos não saiam ao espaço que lhes foi determinado, por isso são nômades. Se saírem, o espetáculo social estará ‘infectado’ por aquilo que nega ou tenta esconder. Este outro dispositivo – a absolutização da imagem – pode aprofundar mais a angustia existencial, mas por seu caráter especular, atinge a todos e todas, e a todas as coisas, e a condenação de um será em grande parte a condenação de todos.

Desesperar de si mesmo, querer, desesperado, libertar-se de si mesmo, essa é a fórmula de todo desespero (KIERKEGAARD, 2002, p. 25).

É na relação ambivalente de cada pessoa com o mundo-o-outro-a-coisa que esta relação intersubjetiva é efetivada. Estes dispositivos são interiorizados na espessura do corpo. Estes mesmos dispositivos já são conhecidos pelos sujeitos em situação de rua, mesmo que não-reflexivamente, mas sedimentados em seus corpos sensitivos/sensíveis que aprendem um conhecimento por iniciação e vivência, que supera toda a superior racionalidade.

É a questão da presença do que sente ao sensível e do sensível do que sente. Nesse caso, o advento da consciência é interpretado como surgimento da diferenciação do que sente e do sensível. Por outro lado, o Ser não é mais o resultado duma atividade da consciência [...] Merleau-Ponty coloca, então, a questão do pensamento ligado ao da subjetividade, isto é, o que aparece ao meu Eu é assumido por mim (CAPALBO, 2004, p. 60).

E por se perceberem, sentirem nessa condição a vergonha: de si, do espaço em que se vive, da comida ao qual se come, da roupa que se usa, do cheiro que se tem, da sujeira que se estende por todo o

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222 • PARTE III - Enviesamento do olhar: diversidade e fenomenologia

RuAção: Das epistemologias da rua à política da rua

corpo, que de certa forma se compreendem com tolerância de que também não são isso. Mas, não só. Como já afirmava Merleau-Ponty “[...] o corpo humano é simbolismo - não no sentido superficial – um termo representado de outro, ocupando o lugar de um outro, mas no sentido fundamental de: expressivo de um outro”(2006, p. 353). E estar consciente desta situação, acima relatada, faz com que o sujeito em condição de rua envergonha-se de si mesmo enquanto humano desprovido dos benefícios da sociedade, mas sabe doídamente que sua condição é uma condição do fracasso de toda uma civilização, e ostentam esse fracasso desavergonhadamente, para nos mostrar o que somos e para onde estamos indo.

Envergonhar-se significa: ser entregue a um inassumível. [...]. É como se nossa consciência desabasse e nos escapasse por todos os lados e, ao mesmo tempo, fosse convocada, por decreto irrecusável, a assistir, sem remédio, ao próprio desmantelamento, ao fato de já não ser meu todo o que me é absolutamente próprio. Na vergonha, o sujeito não tem o outro conteúdo senão a própria dessubjetivação, convertendo-se em testemunha do próprio desconcerto, da própria perda de si como sujeito. Esse duplo movimento, de subjetivação e dessubjetivação, é a vergonha (AGAMBEN, 2008, p. 110).

Na subjetivação dos dispositivos do estado de exceção desumaniza-se, dessubjetiva-se, e isso é a vergonha denunciada por Giorgio Agamben. Ao perceber que não se possui nada (ou quase nada) do que é útil à sociedade do espetáculo, consumo e produtividade e, concomitantemente, continuar dando valor ao que se impõe enquanto útil para esta, é a vergonha na subjetivação/dessubjetivação.

Os/as moradores/as de rua reconhecem que não participam do espetáculo social, talvez seja esta consciência que mais dói, que mais os machucam. Como seus comportamentos, gestos e palavras são significações opostas aos comportamentos, gestos e palavras daquela sociedade percebem o quanto estão à margem.

Meu olhar ‘sabe’ aquilo que significa tal mancha de luz em tal contexto, ele compreende a lógica da iluminação (MERLEAU-PONTY, 2011, p. 437).

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O corpo perceptivo destes sujeitos em situação de rua ‘sabe’ na ambiguidade o que esta sua que tal condição significa ao espetáculo social. Tem, assim, consciência de seu papel social para o reforço do Estado de direitos, aos quais lhe são obstruídos. E ao obstruir seus direitos, organizados por dispositivos, este/a morador/a de rua encontra-se ao extremo que Giorgio Agamben denunciou como ‘vida nua’. Ou uma “vida abandonada pelo direito” (RUIZ, 2012, p. 04).

A vida encarnada enquanto ‘vida nua’ é uma vida em sua fragilidade e vulnerabilidade exposta a todos. É a redução da vida humana a uma condição social em que qualquer violência (física, fatal, simbólica, emocional) feita a qualquer morador/a de rua não é levado a um julgamento nos mesmos moldes que quando é feito aos que estão no total acesso à sociedade do espetáculo, consumo e produtividade.

A ‘interpretação’ que dou de minhas sensações deve ser motivada, e ela só pode sê-lo pela própria estrutura dessas sensações, de forma que se pode dizer indiferentemente que não existem interpretações transcendentem, não existe juízo que não brote da própria configuração dos fenômenos [...] (MERLEAU-PONTY, 2011, p. 503).

Esta vida nua, diz ao que é colocado/a o/a morador/a de rua que esta vida sua é a “vida indigna de ser vivida” (AGAMBEN, 2102, p. 20). Uma vida matável sob a apatia e/ou permissividade social. Os/as moradores/as de rua sentem, percebem, tem consciência de sua vulnerabilidade à violência, consequência lógica da condição de estar desprovido de direitos. Torna-se, a partir desta condição, não só para aquela sociedade, mas, por vezes, para si mesmo um não-humano. Ou como chamou Agamben (2008, p. 80), “uma morte não morrida”.

A ausência real de direitos a qual efetiva na sua existência a partir da perspectiva do espetáculo social uma ‘vida indigna de ser vivida’ torna o sujeito em situação de rua um ser que precisa ser invisível à mesma sociedade. Tornando-se invisível ao direito torna-se invisível à sociedade. E tornando-se invisível a humanidade dos/as moradores/as de rua a crueldade tornou-se fácil: “foi o método de tornar invisível à própria humanidade das vítimas” (BAUMAN, 1998a, p. 46). As pessoas passantes nas ruas não percebem a fome, a dor, a angústia, a doença, a humilhação e, por fim, a ausência daquele/a morador/a de rua morto/a ou assassinado/a.

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Contudo, o ser de ‘vida nua’ só é invisível em relação à sua humanização, mas é visível enquanto - ‘possível’ - criminoso. Como há uma criminalização do pobre, do indígena, do cigano, do negro, o/a morador/a de rua que, amiúde, se encontra nas mesmas condições bárbaras, concomitantemente, é potencialmente criminalizado. As pessoas passantes na rua, nas praças os/as veem enquanto criminosos; e se direcionam aos mesmos com palavras criminalizantes:

Aquilo que queremos dizer não está a nossa frente, fora de qualquer palavra, como uma pura significação. É apenas o excesso daquilo que vivemos sobre o que já foi dito (MERLEAU-PONTY, 1991a, p. 88).

Novamente aqui, a importância dos dispositivos do poder soberano do Estado e do Capital sobre as percepções, comportamentos e cognições da sociedade. O que se vê e o que se ouve nos sujeitos de ‘vida nua’ o corpo já pronuncia e transborda: “os banidos são bandidos porque foram expulsos da ordem e sobre eles se decretou uma exclusão inclusiva que os tornou vida nua” (RUIZ, 2012, p. 6). O banido da ordem torna-se ameaça à propriedade privada, ao status quo da sociedade do consumo e do espetáculo, aos ‘bons costumes’ etc. Na pesquisa com pessoas que vivem da rua, trabalhadoras do sexo e travestis, o que mais irritava os passantes e os policiais era a exposição do corpo, por vezes muito aquém daquilo que viam nos programas de televisão, mas ali a desordem mostrava apenas uma ponta arregaçada e exposta das relações mantidas no escondimento e na hipocrisia. Somente por isso, era insustentável o aparecimento delas como revelação pública.

Assim a necessidade de higienização destes espaços: salvar o status quo. Por isso que periodicamente os/as moradores/as de rua são retirados/as de seus locais de ‘morada’. Durante a Copa do Mundo de 2014, essa postura do poder soberano foi terrível aos sujeitos de ‘vida nua’. Quase não mais os viam em ruas, praças, em baixo de árvores, marquises, terrenos e casas vazias. E enquanto isso tudo acontece, a sociedade ‘dá as costas’. Isso já afirmava Bauman (1998a, p. 227):

pessoas morais podem ser levadas a cometer atos imorais mesmo que saibam (ou acreditem) que os

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RuAção: Das epistemologias da rua à política da rua

atos são imorais – contanto que sejam convencidas de que os especialistas (pessoas que, por definição, sabem algo que elas não sabem) definiram suas ações como necessárias.

Assim, mesmo percebendo a higienização por comando da FIFA, executada por parte do Estado (polícia, assistentes sociais) ou do Capital (empresários de comércios, turismo, especuladores imobiliários) as pessoas não-moradoras de rua não se incomodam, e até mesmo, apoiam tais ações.

Nesta sociedade da ordem, do consumo, do espetáculo aqueles que são oprimidos/as, excluídos/as, marginalizados/as virarão, paradoxalmente, opressores/as; e aqueles/as que oprimem aparecerão como vítimas. A intenção significativa do sujeito que percebe cognitivamente os comportamentos, gestos, atitudes, movimentações dos sujeitos de ‘vida nua’ é a partir de uma perversidade profundamente desumana. Assim é a ‘vida nua’ de direitos dos sujeitos em situação de rua nas cidades de Várzea Grande e Cuiabá.

O espaço e a coletividade:

realidades de subversão à ‘vida nua’ de direitos

A relação de pessoas com o mundo, com outras pessoas e com as coisas do mundo é sempre uma relação de abertura. E abertura essa em contínua permanência e mudança à forma como acontece a relação para a mesma pessoa. A percepção de si transforma-se com a mudança da percepção que se tem do mundo-outro-coisas e, concomitantemente, a percepção do mundo-outros-coisas transformam-se com a mudança da percepção que se tem de si mesmo.

Assim, a vida cotidiana dos sujeitos em situação de rua não é somente, mesmo estando barbaramente presente na espessura do corpo, ‘vida nua’. Estes sujeitos carregam nesse mesmo corpo sedimentos de suas histórias - perceptiva, sensitiva/sensível, emotiva, cognitiva, prática - sentidos e comportamentos não negados ou limitados pela experiência de ‘vida nua’ em uma cultura de exceção. E estes sedimentos são vivenciados ao se organizarem em comunidade nos espaços públicos.

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O passado do homem é o seu passado que o acompanha no seu presente, e que age sob a forma invisível da latência, que não permanece encerrada em um deposito morto. O passado humano é como o outro que está em nós, que já imprimiu em nós seus traços, por caminhos ‘esquecidos’ que recobrem de poeira os traços que o indicam, que vêm ao encontro de nosso presente vivente como se fossem resistências que experimentamos e como se escapassem a nosso domínio ou que deveríamos ultrapassar (CAPALBO, 2004, p. 81).

É está experiência que chamar-se-á aqui de “segurança ontológica”, o qual significa “uma autonomia do controle corporal no âmbito de rotinas previsíveis” (GIDDENS, 2003, p. 58). A rotinização da relação perceptiva do corpo5 como ser-no-mundo-com-os-outro-e-coisas é o que constitui está ‘segurança ontológica’ em uma situação de ‘vida nua’. A previsibilidade constituída pela rotina no dia-a-dia funda a segurança e a confiança de que esta ‘vida indigna de ser vivida’ sobreviverá.

Estar no mesmo local (praça, rua, sob uma árvore ou marquise), convivendo com as mesmas pessoas, reconhecendo os passantes, mantendo seus objetos me posse, comendo e bebendo diariamente são condições do corpo perceptivo situado relevante à ‘segurança ontológica’ e consequentemente de subversão à condição primordial da ‘vida nua’: a desumanização das vítimas para as próprias vítimas.

O sujeito em situação de rua que está só, não estando em lugares públicos fixos está mais exposto à ‘vida nua’. E a sensação que o mesmo sujeito tem é de uma maior insegurança, medo, angústia e não confiança na sobrevivência no outro dia, por motivos de violência, fome, frio.

É o espaço público privatizado em coletivo que constitui no corpo a sensação de segurança. É na espacialidade de situação do sujeito encarnado em comunidade orientando-se a comportamentos humanizantes que a subversão à ‘vida indigna de ser vivida’ se efetua. Desta maneira, a relação espacial, do sujeito em situação de rua, e

5 “O corpo humano, portanto, é corpo que se move e isso quer dizer corpo que percebe – Aí está um dos sentidos do ‘esquema corporal’ humano” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 337).

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com os outros e coisas humanizados e dignificados neste espaço que o mesmo sujeito se reconhece, pois é neste espaço que se movimenta, dorme, come, conversa, sonha, tem esperanças e medos, ama, desespera, luta, sente frio e calor

A árvore não é uma impressão, um jogo de minha representação ou um valor emotivo. Ela se apresenta ‘em pessoa’ diante de mim e tem algo a ver comigo e, eu, se bem que de modo diferente, tenho algo a ver com ela.Que ninguém tente debilitar o sentido da relação: relação é reciprocidade (BUBER, s/d, p. 9).

A situação de rua de homens e mulheres em Várzea Grande e Cuiabá, sua ausência de direitos, sua ‘vida indigna de ser vivida’ solicita no ser inserido nesta realidade comportamentos, experiências, vivências, relações, significações de subversão à está condição de não-humano. A resposta é a construção espaço-temporal e significativa do ‘seu mundo’.

Sem o desenvolvimento de nossa capacidade de dar respostas, que realmente correspondam ao sentido da estrutura de um mundo concreto, continuamos correndo o risco de reproduzir o mesmo, sem perspectivas de chegarmos a um mundo outro porque melhor que o atual (REZENDE, 1990, p. 85).

E esta ‘construção’ é ordenar significamente o espaço para habitá-lo. E ao habitá-lo resignifica-se este espaço de passantes, de comercio, vazio em lugar de morada com todas as suas significações possíveis. Torna-se um lar. E os passantes são os estranhos a este lar, que até, por vezes, os mesmos passantes se sentem estranhos ao passar por estes ‘espaços públicos domesticados’. Resignifa-se o espaço, ordenando-o em lar, resignifica-se a si mesmo, subvertendo a ‘vida nua’ imposta pelo estado de exceção.

Ao tornar-se lar o espaço público, a sensação de ‘segurança ontológica’ institui-se nas relações intercorporais e, consequente-concomitantemente, nas relações intersubjetivas. Nesta segurança, não há mediações para acontecer o encontro. As condições sociais - da sociedade do espetáculo e do consumo, da aparência e do Ter - não

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são necessárias para o encontro do Outro tal como o outro é. Sem estas mediações, só se ‘vê’ o Outro.

A única maneira de assegurar meu acesso às próprias coisas seria purificar inteiramente a minha noção de subjetividade [...] (MERLEAU-PONTY, 2012, p. 59).

A própria ‘vida nua’ no estado de exceção ajudou nesse encontro: tudo lhe foi retirado, negado, limitado daquilo que é útil àquela sociedade. Sem as coisas e sentidos que dão ‘dignidade’ aos sujeitos do espetáculo social juntamente com a vivencia do outro no lar construído no espaço público o Outro é encontrado. Isto é a comunidade.

Compreendi, então, que sentido tem para um indivíduo, ser separado, por força de uma catástrofe, de um todo social, de uma sociedade com evidente valor para nós, de um Estado, de uma nação, ou, vale dizer, que sentido tem para uma multidão de indivíduos decompor-se em seus elementos constitutivos após uma catástrofe. E agora no caso do indivíduo em particular. Do estado de vínculo de evidente legalidade passa para a sua liberdade e isolamento individuais, experimentando grande angústia; procura agora o caminho, alguma via para o vínculo, para a comunidade, para o ‘não-abandonar-se-mais’ (BUBER, 1987, p. 104).

Na comunidade o sujeito em situação de rua subverte a condição imposta de ‘vida nua’. Na comunidade, o mesmo sujeito não se abandona mais em grandes angústias, medos, solidões, desterritorializações; e resolve outros problemas, em comunidade: fome, insegurança, sede, ausência de amar e ser amado, reconhecimento incondicionado, desprovido da violência física ou psicológica.

Na subversão, estes/as moradores/as de rua nas cidades de Várzea grande e Cuiabá não se veem, nem seu mundo e nem suas coisas com a percepção dos não-moradores, ou ao menos, não totalmente: maconheiro, ladrão, alcoólatra, fedorento, sujo, coisas que são lixo e descartáveis, lugares que são imundos, fedorentos e perigosos; não são as percepções dos sujeitos em situação de rua. Os/as outros/as moradores/as de rua são o Outro ao que se identifica e se completa

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no encontro, o espaço é o lar e as coisas são os instrumentos para sobrevivência e vivência. Nos movimentos dos corpos, as percepções transformam-se na subversão à ‘vida nua’: “as coisas que são ‘sujas’ num contexto podem tornar-se puras exatamente por serem colocadas num outro lugar – e vice versa. E aquilo que resignifica tem sabor de gratuidade, liberdade, carinho, autonomia. Sapatos magnificamente lustrados e brilhantes tornam-se sujos quando colocados na mesa de refeição” (BAUMAN, 1998b, p. 14).

Os sentidos sobre o mundo-outro-coisas são sentidos constituídos na ambuiguidade da experiência de uma sociedade que o excluí e de outra sociedade que o acolhe; de uma vivência situada que lhe nega dignidade com uma vivência situada que lhe afirma dignidade. Nessa ambiguidade, a intenção significativa se reconhece naquilo que humaniza, mais do que naquilo que desumaniza. Esta é a experiência subversiva destes moradores.

[...] a existência desvela, em face da liberdade uma figura do mundo totalmente nova, o mundo como promessa e ameaça para ela, o mundo que lhe arma ciladas, a seduz ou lhe cede, não mais o mundo uniforme dos objetos de ciência kantianos, mas uma paisagem de obstáculos e de caminhos, enfim o mundo que nós ‘existimos’ e não somente o teatro do nosso conhecimento e do nosso livre arbítrio (MERLEAU-PONTY, 1991, p. 171).

As amarras sociais instituídas pelos dispositivos do Estado e do Capital nos cotidianos dos sujeitos que vivem do espetáculo social não tem a mesma força na vida daqueles que vivem nesta ambiguidade do estado de exceção: comportamentos, gestos, aparência, necessidade de Ter; formas que se dialogam, comem, namoram, amam, riem, dormem, defecam, urinam; não são mais determinados pela superficialidade, futilidade e vazio de significados às comunidades de rua. Para alguns, o descaso moral e comportamental que a sociedade não-moradora de rua detesta é o que torna os/as moradores/as de rua livres.

Ser uma consciência, ou, antes, ser uma experiência, é comunicar interiormente com o mundo, com o corpo e com os outros, ser com eles em lugar de estar ao lado deles (MERLEAU-PONTY, 2011, p. 142).

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O grande argumento vivencial daqueles que escolhem antes a vida nas ruas ou o trabalho nelas, é que o experimentar o mundo não é experimentar um mundo, mas diversos. Assim, a consciência que se tem do mundo, não é uma consciência de um mundo uno, mas um mundo polivalente, um mundo em que a experiência só se dá na situação, que é ambígua. A experiência situada acarreta a uma consciência situada. Só se comunica no mundo, com o mundo e pelo mundo. Os sujeitos em situação de rua não fogem a esta experiência.

Constrói-se o sentido de si mesmo nestas condições existenciais: “o meu esquema corporal projeta-se nos outros e o introjeta, tem relações de ser com eles, procura a identificação, apresenta-se como indiviso com eles, deseja-os” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 36). Construindo um mundo, uma relação e significados aos quais se relacionam intersubjetivamente constrói-se uma consciência de si mesmo, uma consciência perceptiva de si mesmo que, necessariamente, não é a mesma consciência que ‘os de fora’ do espaço púbico privatizado coletivamente. A ‘vida nua’ fragiliza-se, deixando a criatura oprimida suspirar diante o mundo bárbaro.

Considerações finais

Os sujeitos em situação de rua, por nós pesquisados, em Várzea Grande e Cuiabá vivem em sua grande totalidade à mercê da própria ‘sorte’ nas ruas e árvores, beira rio, marquises, das duas cidades. Estão sob a violência do olhar, dos gestos, física, psicológica tanto dos transeuntes e da polícia, quanto dos próprios sujeitos na mesma situação.

A subversão acima exposta, ainda que, relevante, não é suficiente para estes sujeitos terem uma vida digna, necessitando, assim, de uma ação da sociedade organizada para por um fim ao estado de exceção do Estado e do Capital. Mas saindo da situação de rua para uma casa e com trabalho, continuará sendo oprimido. A expressão ativa é para Benjamin a condição do mesmo estado de exceção. Então, a mudança não deve ser local, pontual e particularizada aos homens e mulheres em situação de rua, mas tem que estender à sociedade, à economia, aos dispositivos simbólicos e à política. Só assim, as condições e dispositivos constituidores/instituidores destas realidades serão interditados de sua pretensa justiça e naturalidade. A pedagogia dos oprimidos é também a pedagogia da libertação de todos ou todas. Há esperanças.

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Referências

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_____. O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha (Homo sacer III). São Paulo: Boitempo, 2008.

_____. O que é contemporâneo? E outros ensaios. Santa Catarina: Argos, 2009.

_____. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua. Minas Gerais: UFMG, 2012.

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e holocausto. Rio Janeiro: Zahar, 1998a.

_____. O mal-estar da pós-modernidade. Rio Janeiro: Zahar, 1998b.

BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da história. In. BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994.

BUBER, Martin. Eu e tu. São Paulo: Morais, [19--].

_____. Sobre comunidade. São Paulo: Perspectiva, 1987.

CAPALBO, Creusa. A filosofia de Maurice Merleau-Ponty: historicidade e ontologia. Londrina: Edições Humanidades, 2004.

DEBORD, Guy. A sociedade dos espetáculos. (Texto de 2003.) Disponível em: <http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/socespetaculo.pdf>. Acesso em: 13 mar. 2013.

GIDDENS, Anthony. A constituição da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

KIERKEGAARD, Soren. O desespero humano. São Paulo: Martin Claret, 2002.

MERLEAU-PONTY, M. A linguagem indireta e as vozes do silêncio. Signos. São Paulo: Martins Fontes, 1991a.

_____. Por toda parte e em parte alguma. Signos. São Paulo: Martins Fontes, 1991b.

_____. A natureza. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

_____. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes, 2011.

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RuAção: Das epistemologias da rua à política da rua

_____. O visível e o invisível. São Paulo: Perspectiva, 2012.

REZENDE, Antônio M. Concepção fenomenológica da educação. São Paulo: Cortez, 1990.

RUIZ, Castor M. M. Bartolomé. A sacralidade da vida na exceção soberana, a testemunha e sua linguagem. (Re)leituras biopolíticas da obra de Giorgio Agamben. Cadernos IHU, São Leopoldo: Unisinos, a. 10, n. 39, mai. 2012.

VIANA, Nildo. Estado, democracia e cidadania: a dinâmica de política institucional no capitalismo. Rio Janeiro: Achiamé, 2003.

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Existem indígenas nos espaços da rua? O (in)visível da invisibilidade

Maria Aparecida REZENDE

Esses povos não só superaram a prova do período colonial, mas também os embates da assimilação e da

integração de tempos mais recentes.

Bartomeu Meliá, 1999, p. 11-12

O texto descreve uma possibilidade de encontrar indígenas em condições de vulnerabilidade vivendo na e da rua. A pesquisa é parte do “Projeto de População que vive na/da rua, em condição de vulnerabilidade, abrangendo a área da cidade de Cuiabá e Várzea Grande”. No percurso da investigação de campo, foi possível registrar momentos vivenciados de pessoas que vivem na e da rua.

Indígenas são invisíveis aos olhos da maioria das pessoas, e se moram na rua tornam-se transparentes nessa invisibilidade. Os procedimentos metodológicos seguem orientações inspiradas na fenomenologia de Merleau-Ponty e também na compreensão teórico-metodológica de Giorgio Agamben, Paulo Freire e Boaventura de Sousa Santos. A “pesquisa é aberta”, nela registra-se o que é percebido por meio das observações e das conversas informais com essas pessoas.

A metodologia merleau-pontyana permite a descrição dos espaços em busca de compreender essa vida vivida indignamente. A “pesquisa aberta”, de acordo com a filósofa Creusa Capalbo (2008), registra livremente as observações, registra uma vivência e experiência pessoal com maior autenticidade e espontaneidade, tal como o fenômeno mostra-se nele mesmo e por si mesmo. A finalidade da pesquisa aberta é registrar a experiência vivida, registrar tudo aquilo que for julgado significativo para as informações colhidas.

Essa experiência permitiu observar e dialogar com algumas pessoas que vivem na e da rua, antes e após a Copa do Mundo 2014, realizada também em Cuiabá. Nesse interstício temporal foi possível tecer diálogos com dois moradores de rua, que estavam esperando tratamento no CAPS - Centro de Atenção Psicossocial. Este, de acordo com o panfleto de sua divulgação, “[...] oferece assistência

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aberta a usuários de álcool e outras drogas e seus familiares”. Tem como objetivo “[...] acolher, tratar e encaminhar, quando necessário, os que precisam de atendimento de saúde no problema de álcool e outras drogas”. Esses dois jovens contaram suas histórias de vida acerca de como vieram a ocupar espaços da rua como morada.

Bastou um pouco de atenção para sentir e compreender os gestos e, as palavras eram proferidas assinalando o caráter corpóreo dessa dimensão vivida socialmente nos espaços da rua. A rua como possibilidades de outros aprendizados. O corpo revela gestos e sentidos interligados com o mundo no contexto das suas significações de vida nesse mundo, aprendidas da dor e da privação.

Foram também citadas as condições de vida que viveram e vivem os povos indígenas da América Latina e, especialmente, os povos brasileiros. Durante o período da colonização os povos indígenas padeceram com a prepotência dos colonizadores, e foram subjugados aos serviços dessas pessoas até o momento de resistência de algumas etnias que se embrenharam mata adentro, fugindo dos bárbaros portugueses que os perseguiam. E os problemas dos povos indígenas vão se modificando, mas tudo ligado à história com a memória de um passado que se mostra vivo no presente.

Os moradores de rua também estão nessa condição em face de um passado que se presentifica nas formas excludentes do capitalismo em sua revivescência, sobretudo nestas sociedades cujo presente é a reiteração das mesmas formas de tortura e privação. Um país como nosso, no qual até recentemente as empregadas domésticas eram tratadas com os mesmos requintes destinados às escravas negras ou brancas, continua vivo o sistema de marcar pessoas, como o que por ferro em brasa, para que não esqueçam sua condição de amaldiçoados, condição do homo sacer,1 de Agamben. Portanto, as dimensões históricas, sociológicas, filosóficas, antropológicas e culturais subsistem na temporalidade carnal que todos somos, se presentificando em nosso dia a dia e, sobremaneira, no cotidiano das pessoas que, de alguma forma, foram ou são estigmatizadas socialmente.

1 O filósofo Castor Ruiz (2013, p. 35), inspirado em Agamben, afirma que: O homo sacer é um conceito-limite do direito romano que delimita o limiar da ordem social e da vida humana. Nele transparece a correlação entre a sacralidade e a soberania.

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A questão indígena do Brasil Colônia e do Brasil atual

O tempo é um senhor tão bonito quanto à cara do meu filho, tempo, tempo, tempo, [...] compositor de

destinos, tambor de todos os ritmos.

Caetano Veloso, 19790

Os povos indígenas da América Latina conheceram as dores, os horrores e assistiram a morte de seu povo, da sua língua, da sua cultura e, isso, impunemente. Passaram pela ilusão, pela desilusão de ter acreditado nas pessoas que invadiram suas terras. Fizeram amizades com seus invasores que lhes roubaram não somente as vidas, mas suas dignidades, suas autoestimas, seus valores, seus conhecimentos medicinais, suas culinárias, usaram seus nomes em cidades, em pessoas no contraponto do significado destes mesmos nomes, e o que lhes deram em troca?

É triste falar do passado vivo no presente. O passado é um tempo interligado ao presente, pois ambos estão no mundo. Na compreensão de Merleau-Ponty (2006), a temporalidade aglutina o passado, presente e futuro que estão sempre juntos, consubstanciados entre si, sem fragmentações, exprimindo um emaranhado que colocamos nas coisas. Passos (2005, p. 131-149), interpretando Merleau-Ponty, assim designa o tempo:

O tempo é forma sensível (estética) transcendental, a priori - no sentido de que ele nos precede2. É como se ele estivesse postado antes de nós, antes de nossa perceptualização e apreensão do real. Não podemos nos colocar por detrás dos nossos próprios olhos e captar o tempo separado do mundo, como um antecedente. Eu só apreendo o tempo na atividade de pensar constituindo já ‘temporalmente’ os objetos pensados. O tempo é, na verdade, a condição de possibilidade de poder ter acesso e enxergar o mundo.

2 Ao tentar olhar o mundo, e quando imediatamente o vejo, ele foi por mim mesmo temporalizado para que pudesse ser visto.

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Esse tempo que é passado, mas atual porque é constitutivo da história étnica. Por meio dele percebemos o mundo de vivências dos povos indígenas, como se apresenta. Esse tempo merleau-pontyano pode ser compreendido também na letra da música “Oração ao tempo”, composição de Caetano Veloso (1979) quando pede ao tempo,

O tempo é um senhor tão bonito quanto à cara do meu filho, tempo, tempo, tempo, [...] compositor de destinos, tambor de todos os ritmos [...] por seres tão inventivo e pareceres contínuo, tempo, tempo, tempo, és um dos deuses o mais lindo, tempo, tempo, tempo.

O tempo entendido dessa forma é presente, pois a pessoa o vive, sofre, chora, sorri, perde a cultura, assiste o sangue derramado das pessoas amadas, vê seu território invadido, sendo tratado como apenas um pedaço de terra para criar bois, para plantar soja, para construir um viaduto, um prédio alto, enfim, o tempo é o “senhor de destinos” e é também “de pareceres contínuos”, pois está sempre mostrando a real vida e, isso não está descolado do passado tão presente na memória e na carnalidade do Ser.

O que mudou na vida dos povos indígenas? Onde estão os povos indígenas do Brasil? Espalhados pelos Estados, alguns com parte de seus territórios, outros com um mínimo de terra e outros sem nada, vivendo nas margens das rodovias brasileiras (BRs), nas aldeias muito próximas das cidades e, muitas vezes, pedindo coisas nas ruas, semelhantes a muitos moradores de rua, que, às vezes, alcoolizados pelo transtorno de suas vidas, pelas tristezas, afogam suas mágoas na bebida e dormem miseravelmente nas calçadas das ruas, ou mesmo nas margens das rodovias ou das BRs. Perdem o direito de viver e têm o seu direito suspenso. Essa violência tem sido uma constante no cotidiano dos povos indígenas brasileiros. Podemos citar o caso dos Guarani e Kaiowá, em Mato Grosso do Sul onde várias lideranças e professores foram assassinados, sendo que, para estes crimes praticados, seus responsáveis não receberam punição. Outro exemplo, é a violência na aldeia dos Munduruku em Mato Grosso; assistiu-se a polícia confrontando-se com os Munduruku. Cenas de terror. No dia 27 de março de 2013 helicóptero sobrevoando a aldeia Sawré Maybu

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e os policiais atirando sobre as águas do rio Tapajós. Sem contar com o terrorismo psicológico daquele avião ficar muito tempo sobrevoando a aldeia. Todas essas arbitrariedades ocorreram sem que a lei fosse cumprida. Referindo-se a ações desta natureza, e inspirado no filósofo Agamben, Castor Ruiz (2012, p. 19) assim interpreta:

Quando uma pessoa ou grupo populacional se torna uma ameaça para a ordem, o Estado utiliza-se da exceção jurídica para separar os direitos da cidadania da mera vida nua. Esta separação possibilita expulsar para fora do direito à vida que se pretende controlar na forma de exceção. Na exceção o direito suspenso torna a vida humana um homo sacer, exposto à fragilidade da violação sem que o direito possa ser invocado para protegê-lo.

É, então, esse estado de exceção que torna e tornarão os moradores de rua, sendo indígenas ou não, seres humanos que vão vivendo uma vida considerada ‘indigna’ de poder ser vivida. Tornam-se homo-sacer jogados pelo poder biopolítico e espoliados do direito de viver com dignidade. E o tempo, “o senhor de todos os destinos” não deu a estas pessoas o “destino” de ter um Estado que lhe propicie a condição humana. Esse é o Brasil, um país capitalista que, apesar de sua exploração na divisão internacional do trabalho, cria inúmeras tentativas de dar a tais pessoas pelo menos o direito de comer uma vez ao dia. Qual é o nome desse Estado? Se perguntar a alguém que mora na rua, que Estado é esse? Talvez não diga com as mesmas palavras, mas irá dizer que vive num país em que alguns têm o direito de alimentar-se muito bem, e várias vezes ao dia, e outras uma vez por dia ou nenhuma. Um país que as pessoas vão se corrompendo, uns por alimento, e outros pela fome e sede de ficarem mais ricos e poderosos.

O filósofo Merleau-Ponty (2006, p. 551-552, grifo nosso) faz apontamentos interessantes acerca do tempo. Esta relação do tempo com as coisas e com a humanidade acaba por se costurar na acumulação do tempo gasto na produção das coisas para se viver e sobreviver. “Ele [o tempo] nasce de minha relação com as coisas, do meu suor produzir a vida social com outros e outras, através das coisas. Nas próprias coisas, o porvir e o passado estão em uma espécie de preexistência e de sobrevivência eternas”. Nas esteiras desse pensamento é possível

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perceber que desde a época em que os territórios, lugares não apenas constituídos de espaço entretecido pelo tempo das relações simbólicas e históricas com ele, foram invadidos. Essas pessoas autóctones tornaram-se vulneráveis porque ninguém carece tanto do espaço e tempo como estes povos, que compreendem a vida como um fluxo ininterrupto de relações que não se separam deles e dos seus ancestrais. O próprio tempo atesta isso. O porvir e o passado, conforme adensa Merleau-Ponty, são elementos para essa relação que mostra um presente sombrio, de tristeza e de perdas territoriais acarretando com isso uma dormência nos aspectos culturais e da tradição de cada povo, e o tempo aberto que se apresenta como possível de ainda ser feito, na afinação com ele.

O que a sociedade ocidental pôde contribuir “com êxito”, para os povos indígenas, foi a disseminação do alcoolismo, da droga, a colaboração para a inserção da miséria e outros sentimentos e ações negativas que nada contribuem para uma boa qualidade de vida dessas pessoas. É preciso abrir uma ressalva. Não se pode negar a grande luta de alguns não indígenas em prol de todos os povos, em especial no Brasil. Mas são poucas as pessoas a se debruçarem sobre esta questão.

Uma educação rigorosa, amorosa e respeitosa é o que se pode encontrar, até os dias atuais, no seio da educação indígena. Mas hoje, os anciãos e anciãs lamentam e choram a dificuldade de se manter esta educação. O alcoolismo tem levado muitos povos a praticarem ações que são motivos de desgosto para a educação de cada povo, como o estupro, as brigas com armas ou sem armas, mas vive-se a violência e entra-se em choque com os princípios adotados pelas etnias brasileiras. E as presas mais fáceis são aqueles povos que foram desfibrados não apenas pelo extermínio, confinamento, roubo de seus territórios, mas também extermínio dos seus recursos, plantas, animais que lhes asseguram a comunhão deles com as pessoas. Contudo, ainda, os sistemas de crença, minados por algumas catequeses colonizadoras, também produziram um não sentido. Até porque os não indígenas, como veremos no texto de Enrique Dussel, abaixo, por defeito de posição no que se referisse aos indígenas, não conseguiram expressar verdades, mas mentiras, em suas falas, e promoverem extermínio interminável, inclusive nas formas contemporâneas. Não raro, elas, na prática, foram e continuam frequentemente sendo usadas de maneira cínica.

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Essa modernidade é traduzida, no pensar de Dussel (1993, p. 185-196, grifo nosso), por elementos configurativos do mito que a engendra. Observemos:

a) uma auto-compreensão de sua superioridade civilizatória, sustentando uma não-consciência do seu eurocentrismo; b) tal superioridade implicaria moralmente no desenvolvimento dos mais primitivos, rudes e bárbaros; c) a referência do caminho do processo educativo é aquele vivido na Europa - desenvolvimento linear - o que significa, adotar sem nenhuma consciência (Sic!) a ‘falácia desenvolvimentista’. d) dada a presumível e real oposição do bárbaro ao processo ‘civilizador’ dever-se-á exercer uma violência legítima, se necessária for, para derrubar as barreiras da modernização - essa era a legitimação da guerra justa colonial; e) esta dominação - diz Dussel - produz vítimas (de muitas variadas maneiras), violência que é interpretada como um ato inevitável, e com o sentido quase-ritual de sacrifício; o herói civilizador investe suas próprias vítimas do caráter de ser holocaustos de um sacrifício salvador (do colonizado, escravo africano, da mulher, da destruição ecológica da terra, etc.).

Nesse sentido, essa modernidade compreende que existe uma superioridade civilizatória e, quem não comungar desses “mandamentos eurocêntricos” são consideradas populações atrasadas à espera de uma “evolução cultural”. Esse desejo de legitimar esta dominação é um exemplo vivo que produz as violências citadas acima com dois povos indígenas. Os povos colonizados devem ser sacrificados a uma guerra justa colonial. Toda essa violência provocou mortes de todas as formas. Morte matável, morte de tristeza e, as pessoas começam a encontrar no álcool as suas dormências para não sentir o impacto da violação de direitos.

Essa doença social [o alcoolismo] é uma lástima que se espalhou por várias etnias, herança do colonialismo. Essa doença gerou outras como dependentes químicos que também foram parar nas ruas. Perderam o rumo de uma educação, voltada para a espiritualidade; para a reciprocidade; para o exemplo; para a preocupação do bem viver do Outro e da coletividade. O modo

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como esta educação vem trilhando é questionado pelas lideranças espirituais, em razão da mudança que vem sofrendo a partir do contato com os colonizadores.

O álcool e as drogas tornam as pessoas prisioneiras e atormentadas. As mentes não conseguem enxergar o mundo tal qual um membro étnico é capaz de ver e ler o mundo: mais aberto e sem estratificações de ciências e de conhecimentos. Mas é comum ver indígenas dependentes do álcool e isso traz para a família uma decepção, pois é contra os princípios educativos dos povos indígenas. Dependência química que, por sua vez, traz outra forma de vida, a indigna de ser vivida por tantos povos que perderam o direito dessa vivência cosmológica e cosmogônica.

Para saber se existem ou não indígenas na condição de moradores de rua, seguimos para diversos lugares das cidades de Cuiabá e Várzea Grande. A capital de Mato Grosso e a maior cidade depois dela, vizinha e separada somente pelo rio Cuiabá. Encontramos outras histórias, corpos vivos jogados às sombras de árvores nas praças públicas. Corpos próprios em locais proibidos, indesejados pelo sistema capitalista, que se mostram como um espetáculo, ora vidas famintas, ora vidas saciadas.

A pesquisa com o projeto RuAção

“A particularidade do homo sacer é que ele é incluído pela exclusão e excluído de forma inclusiva”.

(CASTOR RUIZ,2012).

Esta pesquisa “Projeto de Ruação” agrega diversos pesquisadores acerca dessa temática. Cada pesquisador e pesquisadora usa um recorte diferente. Esse registro tem duas intenções: a primeira é saber se existem indígenas na condição de morador ou moradora de rua; a segunda é a de descrever os espaços visitados, as angústias ouvidas dessas pessoas, seus desejos, suas dores, suas vivências e o observado naquele tempo-espaço.

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Chegar a um grupo de moradores de rua não é fácil! Um misto de medo da invasão de privacidade. Por questão ética e respeito a essas pessoas não citaremos o local dessa descrição. Chamaremos esse espaço de campo, local ocupado por algumas pessoas sem um teto. Geograficamente é um local muito movimentado por carros. Muito barulho! Mas a impressão é a de que, quando colocamos nossos pés para fazer as observações dessas vivências, todos os barulhos desaparecem. A vida, atropelada pela “ausência” de direitos, choca nossos olhos, causando revoltas e sentimento de indignação acerca das violências a que são submetidas estas pessoas, o que permite um mergulho nos aportes conceituais de Agamben e, assim, perceber que elas figuram os verdadeiros homo-sacer.3. Sobre este conceito, notemos:

[...] é a vida abandonada pelo direito. É o que Walter Benjamin denominou de pura vida nua. A particularidade do homo sacer é que ele é incluído pela exclusão e excluído de forma inclusiva. Esta figura paradoxal captura a vida humana pela exclusão ao mesmo tempo em que a inclui pelo abandono. É uma vida matável por estar fora do direito, mas por isso mesmo ela não pode ser condenada juridicamente. Está exposta à vulnerabilidade da violência por ser desprovida de qualquer direito, sendo que tal vulnerabilidade se deriva de um ato de direito que a excluiu. (RUIZ, 2012, p. 33).

De acordo com Ruiz, inspirado em Agamben, homo sacer é um conceito-limite do direito romano que delimita o limiar da ordem social e da vida humana. O campo visitado por nós, equipado por uma máquina fotográfica e sensibilidade para compreender o outro-de-mim (MERLEAU-PONTY, 2006), em relação a meu eu, numa dimensão de sua experiência vivida concretamente em seu contexto histórico-social e psicológico. Sentamos nos bancos e ficamos um tempo conversando entre nós, mas olhos atentos buscando ver com a lente dos nossos olhos um pouco daquilo que as pessoas viviam e sentiam morando naquele lugar.

3 Castor M. M. Bartolomé Ruiz. A sacralidade da vida na exceção soberana, a testemunha e sua linguagem. (Re)leituras biopolíticas da obra de Giorgio Agamben. Artigo apresentado pelos Cadernos IHU em sua 39ª edição, de 28 de maio de 2012.

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Mergulhamos no meio dos grupos. Dois idosos (aproximadamente entre 60 a 70 anos) pedindo auxílio para seus tratamentos. Duas pessoas, sendo um jovem e outro idoso, ambos acometidos pela doença “Tuberculose”,  doença  infecciosa causada por um microrganismo, conhecida cientificamente por Mycobacterium tuberculosis. Cenas que não são fictícias, mas que retratam o abandono de seres humanos. A exclusão social, a vida matável e legitimada pela violência de se ter qualquer direito, ou traduzido de modo Arendtiano: impossibilitados do direito de ter direitos.

Assistimos também a cenas de solidariedade. Um ancião tentava aconselhar o mais jovem para deixar de beber um pouco para fazer o tratamento. Alcoólatras, pedindo ajuda com medo de morrer. Voltamos a nos aproximar do grupo maior no qual a conversa girava em torno de diversos assuntos. A vida ali entregue à droga, ao alcoolismo (um corote de pinga bailava entre eles) e, o que é pior: ao abandono, os verdadeiros homo-sacer. Valia o que tinha dito um homem em estado de desespero: “eu me abandonei de mim...”

Nesse espaço vimos pessoas doentes, de toda natureza, idosos e mulheres. Duas mulheres, com transtornos psiquiátricos, que preferiram ficar com seus amigos invisíveis para nós. Dois homens mais jovens e pareciam saudáveis, mas um deles declarou-se alcoólatra e disse que estava vomitando verde. O outro companheiro logo diagnosticou: “é a cachaça que comeu seu fígado”. Ficamos muito tempo observando e respeitando suas particularidades. Quem quis conversar conosco veio se aproximando, outros ficavam de longe, com olhares de indagação e desconfiança.

O mais revelador disso tudo, mais do que as palavras, parafraseando Merleau-Ponty (2006), o silêncio é cheio de ruídos, as palavras estão lá, desejando ser externalizadas, mas, muitas vezes, são inúteis, pois não são ouvidas e, também, há receio e desconfiança para dizê-las. Neste silêncio ruidoso apelamos para a sensibilidade dos sentidos, que é mais do que o uso dos cinco sentidos, mas o sentimento de olhar para outro que é o outro de mim. As pessoas nos olhavam, ainda que se percebesse nelas o grau da embriaguês, também percebíamos as expressões de dor e do desencanto pela saúde pública. Reclamaram do atendimento de Saúde e do descaso ao atendimento a eles.

Boaventura de Sousa Santos (2014) descreve como o silêncio é negligenciado como objeto de investigação na sociedade ocidental,

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expondo essa compreensão em quatro razões, distribuídas ao longo das páginas de seu livro, as quais nos auxiliarão na interpretação do fenômeno percebido. Falando dessa relação entre o silêncio e a linguagem, de acordo com esse autor, “[...] o silêncio é uma realidade tão significativa e comunicativa como a própria linguagem.” (p. 132-134). Muitas pessoas no silêncio mostram seus sentimentos. Por isso é importante trazer as variadas razões que Boaventura descreve sobre a negligência do silêncio enquanto método de investigação. “O estudo sociológico do silêncio constitui uma ameaça não só as fronteiras científicas aceitas, mas também aos métodos científicos da investigação sociológica” (SANTOS, 2014, p. 132-134). No ocidente os estudos foram desenvolvidos por meio do comportamento da linguagem e o silêncio pode ser uma ameaça a essa investigação.

“Os cientistas sociais, sentem-se, mais à vontade quando especulam com palavras sobre palavras, de que quando especulam com palavras sobre o silêncio”. Isso porque compreende-se que é mais fácil de se controlar as palavras do que o silêncio. “Ainda não foi demonstrada a utilidade dos estudos sobre o silêncio, nem o será enquanto os ritmos linguagem/silêncio nas diferentes sociedades, não começarem a ser descodificados” (SANTOS, 2014, p. 132-134). A sociedade ocidental, como afirma Boaventura, discrimina a investigação usando um método como o silêncio. É só lembrar a música de Chico Buarque, Cálice, que se pode compreender o quanto o silêncio atordoa muita gente com as consciências cheias de culpa, e em sua maior parte o silêncio não é controlável.

Retomando a questão dos moradores de rua, visitados por nós, muitos falaram tão pouco, mas suas expressões mostravam as dores e seu abandono, pelo sistema que compõe esta sociedade, e pelo abandono do corpo próprio. Dois deles, já não poderíamos ver outra vez. Um foi internado e morreu, falava-se de pancreatite. O outro, idoso, morrera da tuberculose, cuja febre atestava seu tremor sob a árvore, o pé amarrado, em decorrência de ferimento. O mais novo, era indígena. É assim que a vida nua vai se colocando desnuda, evidenciando uma realidade dos oprimidos, abandonado e sem esperanças deixando o silêncio levar suas dores, suas frustrações a espera do fim da vida.

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Uma pequena história de vida: dois jovens na condição de moradores de rua

É um atentado à moral e aos bons costumes vigentes, certo inconveniente. Deixar este homem doente

perambular pelas ruas a cometer tais falcatruas [...] Não tô a fim de pôr em risco a minha condição.

(GONZAGUINHA, 1994).

Esta parte do texto é o registro do visto, do ouvido, do percebido e o descrever de sentimentos de dois jovens moradores de rua. Cada um com sua história. Mas ambos marcados pelas dores, pelas frustrações, pelas culpas, sufocados pela palavra não dita, mas que ainda têm esperança de se recuperar do mundo das drogas. Perguntamos a eles se queriam falar acerca de seus sentimentos sobre morar nas ruas. Ambos se prontificaram a dizer. E, o primeiro momento foi de silêncio. Identificamo-nos, nesta ocasião, como professoras pesquisadoras. Uma de nós, da Universidade Federal de Mato Grosso do Grupo de Pesquisa de Movimentos Sociais em Educação e a outra professora do Ensino Básico e membro do mesmo grupo. A metodologia adotada foi o diálogo livre, mediante pesquisa aberta numa compreensão merleau-pontyana. Não usamos instrumentos como gravadores ou filmadora a pedido deles, de quererem continuar anônimos. Mas usamos a sensibilidade de ouvir o Outro, fazendo anotações no caderno de campo. Os dois jovens, um de trinta anos e outro de vinte e três, insistentemente esperam por uma vaga para serem internados na Unidade III do Centro Integrado de Assistência Psicossoacial (CIAPS) Adauto Botelho, lugar de internato de pessoas do sexo masculino. Eles estavam, anteriormente, no CAPS.

O filósofo Merleau-Ponty (2004, p. 56) chama a atenção para uma questão de profunda reflexão: “[...] o que aprendemos de fato ao considerar o mundo da percepção? E que ele próprio responde: “Aprendemos que nesse mundo é impossível separar as coisas de sua maneira de aparecer”. Dessa forma os dois jovens, ao perceberem nossa presença, indagaram: “O que vocês querem de nós? Após a identificação das pesquisadoras e a exposição da intenção da pesquisa, fizeram uma nova pergunta? “Podemos falar sobre o que quisermos? “Pode ser história

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de nossas vidas”? Os dois questionamentos foram pronunciados pelo rapaz de trinta anos. Ele começou com uma frase: “do luxo ao lixo, essa é a minha vida” (conversa realizada em setembro de 2014).

Afirmou que foi estudante quase concluinte do curso de Administração de Empresas e que veio de uma família que tem posses. Quando foi para a universidade já era usuário de maconha. Começou como pequeno empresário com um sócio e o negócio prosperou. Passou a freqüentar as rodas dos jovens da alta sociedade e, assim, conheceu a cocaína. A partir daí sua vida virou um tormento, pois ele disse que não soube ter autocontrole como seu sócio que está muito rico. Ele foi decaindo. Sua esposa foi companheira e sua família o ajudou muito pagando clínicas caras de recuperação, mas ele não quis ficar em nenhuma. “A família foi cansando, professora. O destino é a Rua. Morar na rua é a pior coisa do mundo. É o inferno. Anota aí: quem mora na rua é usuário de drogas que a família se cansou!”. Seu colega o interrompe e diz:

Conheço pessoas na rua que vivem dela por gosto. Começou sem emprego e sem lugar para morar, pois não tinham como pagar aluguel. Após sofrerem as dificuldades da rua acostumaram-se e resolveram ficar. Na rua ele tem um lugar para comer, pelo menos uma refeição por dia, e tem lugar para trocar a roupa do corpo quando a que ele está usando estiver suja. Assim muitas pessoas vão se acomodando (conversa no mês de setembro de 2014).

O primeiro rapaz retoma sua história. Narra que tem pouco tempo na rua. A sua esposa pagava hotel para ele. Mas agora a família resolveu não pagar nada. Ele está vivendo na rua. Já trabalhou de picolezeiro nas ruas de Cuiabá. A família sempre o acolheu depois de um tempo convivendo com as drogas. Ele afirma que não tem porque sentir esse vazio, porque tem uma esposa maravilhosa e família linda que ele ama. Mas quando vê está nos braços das drogas. Diz que tudo isso piorou depois que conheceu o crack. Essa droga é a responsável por seu desespero. É a pior droga que já experimentou e agora não consegue deixá-la. “Que vazio é esse que me invade e toma conta de mim? Eu não sei”. Olhos lacrimejando e olhar perdido. O corpo próprio revelando os efeitos de uma noite sem dormir, fazendo usos do crack, como ele o mesmo revelou.

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Meu maior desejo agora é me internar e deixar a droga lá fora. Tenho medo de sair lá fora [aponta a rua], porque sei que vou me drogar a noite inteira e acabar com minha vida. O crack tira a dignidade da pessoa, professora. Ele deixa a pessoa parar de viver. Provando da rua, percebi que os moradores de rua não são más pessoas, ele vive (aqui) porque é dependente químico.

Continua na firme ideia de que todos os moradores de rua estão nela, porque são viciados em algum tipo de droga. Ele diz que a mãe mora em Mendonça, na Argentina, e a esposa em São Paulo. O pai, faz dois anos que ele não o vê. Perguntamos-lhe quais as alternativas de tratamento que já tinha realizado. Ele disse que, quase todas. Criticou os grupos como “Narcóticos Anônimos” e também “Alcoólicos Anônimos”. Disse, ainda, que estas alternativas, para quem chegou à miséria, em nada ajudam. Precisa de medidas drásticas como internação permanente.

Essa opinião é confirmada também pelo seu colega que, de vez em quando, interrompe para afirmar ou discordar de algo. Mais uma vez ele faz várias indagações, com desespero no olhar.

Muitas vezes fico no seio familiar e, por algum tempo, “limpo”, e depois a nova queda, então eu me pergunto: por que me drogo se sei que estou machucando quem amo e que elas vão se afastando de mim? Vem esse sentimento de culpa, de dor, de horror. Olho para trás e me vejo na lama. A droga faz você agir sem princípios, manipula a família, tudo em nome da droga. De novo, vem à culpa de quem está enganando. Todas as mentiras têm um fim: ter dinheiro para comprar drogas. O que fazer para sair desse mundo de inferno?

Ele repete que gostaria de arrumar um lugar para se internar, “nem que seja amarrado”. Afirma que o vício coloca, para fora da pessoa, toda a responsabilidade e dignidade de um ser humano. Conta que quando chega a crise de abstinência é terrível, e é quando a pessoa se entrega às mentiras e enganações desencadeando uma trama de manipulação das pessoas amadas. Mostra a sua tristeza, reafirmando o desejo de sair do mundo das drogas, e fala para o seu colega tomar a palavra e contar a sua história.

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O segundo rapaz (23 anos), que ficara ouvindo a história do seu colega, conta que começou usando maconha. E, um dia, uma pessoa o pediu que buscasse um simples pacote. Desempregado, ficou muito feliz em ter esta alternativa para conseguir um pouquinho de dinheiro. Mas, na verdade, não sabia o que continha naquele pacote. De acordo com sua narrativa, não sabia que o conteúdo daquele embrulho que transportava, de vez em quando, era pasta-base. Ele tinha experimentado muito cedo a maconha, mas não conhecia esse tipo de entorpecente.

Um dia, quando levava tal “mercadoria” ao seu destinatário, ainda no caminho, a polícia o prendeu como traficante. Ele explicou que não sabia o que continha naquele pacote. Mas ninguém acreditou em sua inocência. Foi condenado como traficante e, ao ser preso, sua família ficou envergonhada e o abandonou. Sentiu-se sozinho no mundo cruel da cadeia.

O traficante, ao contrário, deu-lhe cobertura durante o tempo em que passou na prisão. E quando saiu da cadeia, sem rumo, sem lugar para ficar e sem referência, o traficante lhe propôs trabalho de venda de drogas. Também ofereceu-lhe pasta-base, para experimentar, ocasionando, assim, um processo vicioso do qual nunca mais conseguiu se desvencilhar. Passou seis meses morando na rua. A família o levou para o sul do país. Ele procurou apoio na crença religiosa, tornou-se evangélico, mas não teve força para deixar de ser usuário da pasta-base. Ficou evangélico e, durante determinado tempo, conseguiu ficar sem usar qualquer tipo de droga. Tratou-se na casa de recuperação, no entanto recaiu de novo, retornando para morar nas ruas. Assegura que quer se tratar, mas infelizmente o CAPS afirma não ter vaga para internação. Tal como o seu colega, tem receio de ir dormir na rua porque sabe que vai usar drogas e, no dia seguinte, ficar mal e cheio de culpa.

Relatou que, morando na rua, ele cuidou de carro por muito tempo. Lavava os carros quando estavam estacionados. Mas a polícia não acredita, ou finge, que aquele dinheiro que eles juntam provém do trabalho. Narrou que o dinheiro que ganham, é oriundo do tráfico. Entretanto, os próprios traficantes lhes tomam tudo. Não adianta trabalhar se a própria polícia lhes toma o dinheiro adquirido com honestidade. Ninguém acredita em um usuário de drogas. Com tristeza, ele diz “a sociedade tem medo de nós”.

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Os dois contaram que estavam sentados na frente do CAPS e, uma senhora passou correndo na calçada abraçada com a bolsa. “Isso é muito triste para um usuário, pois aumenta sua culpa e ele se sente como se fosse um monstro da sociedade”. E que esta mesma sociedade é “medíocre” (SIC!), conta o primeiro rapaz. Disse que, sempre está vestido com roupa social, as pessoas não correm dele e se pede um dinheiro para colocar gasolina no carro, as pessoas não negam. Mas quando ele diz a verdade, “Por favor, estou com fome. Sou usuário de droga será que pode me dar um prato de comida ou um salgado? Chamam-me de vagabundo e dizem para eu ir trabalhar”.

A sociedade é formada por pessoas e cada pessoa tem sua história, seus sonhos, seus desejos, sua educação que lhe conferem outras formas significativas de perceber as coisas. Merleau-Ponty (2004, p. 24) ajuda-nos a entender essa relação hostil entre os seres humanos ao escrever que:

Nossa relação com as coisas não é uma relação distante, cada um fala ao nosso corpo e a nossa vida, elas estão revestidas de características humanas (dóceis, doces, hostis, resistentes) e, inversamente, vivem em nós como tantos emblemas das condutas que amamos ou detestamos. O homem está investido nas coisas e as coisas nele.

Vivemos em uma sociedade em que muitas pessoas estão revestidas de incompreensão, de desumanização, são resistentes para aceitar as relações que fogem das normas e do padrão. O cantor Gonzaguinha fez uma crítica a esse sistema em relação ao preconceito com pessoas doentes, seja meningite ou outra doença contagiosa, e também cabe a ressalva às pessoas indesejáveis pela sociedade como os moradores de rua, indígenas, drogados. Ele fez a música “Tá certo, doutor”.

É um atentado à moral e aos bons costumes vigentes, um certo inconveniente. Deixar este homem doenteperambular pelas ruas a cometer tais falcatruas [...] Seu caso deve ser anotado, o seu mal ser vigiado e lhe requer muita atenção. Pois traz perigo à nossa vida. Não dou amparo, nem guarida. Dou guaraná, com pesticida.

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Pra acalmar minha dormida. Não tô a fim de pôr em risco a minha condição.

Muitas pessoas pensam dessa maneira, foram ‘educadas’ para pensar o que é certo e o que é errado, de acordo com seu padrão de vida; a forma de ver e perceber o mundo. Uma educação sem compromisso com os direitos de viver. São os “emblemas das condutas” que as fazem olhar o mundo como se fosse delas somente e, as outras “coisas” são as pessoas que pensam diferente dessas condutas, por isso devem ser banidas desse mundo ideal para não atrapalhar a dormida e nem pôr em risco a sua vida.

O educador Paulo Freire se faz presente com seus escritos nessa discussão. Como superar essa contradição de opressores e oprimidos? Freire (1987, p. 30) mostra que:

A violência dos opressores, que os faz também desumanizados, não instaura uma outra vocação – a do ser menos. Como distorção do ser mais, o ser menos leva os oprimidos, cedo ou tarde, a lutar contra quem os fez menos. E esta luta somente tem sentido quando os oprimidos, ao buscarem recuperar sua humanidade, que é uma forma de criá-la, não se sentem idealistamente opressores, nem se tornam, de fato, opressores dos opressores, mas restauradores.

Na condição de oprimidos, indígenas e moradores de rua, sabem listar quais são seus maiores opressores e muitos se organizam para sair dessa opressão. O sentimento de ser menos faz com que muitos deles nos tornem invisíveis, nós enquanto pesquisadores, pois não sabem quais são seus amigos ou inimigos. A melhor forma que encontraram foi a de nos evitar, a de não nos ver, isolarem-se em seus espaços, dificultando a pesquisa no sentido de repassar informações verdadeiras. É preciso que se estabeleça uma relação confiável entre pesquisadores e pesquisados. Eles sentem a necessidade de conhecer o trabalho e os sentimentos do Outro. Então vem a grande indagação: será que essas pessoas são confiáveis? Diante das circunstâncias da opressão, ao longo dos tempos, as pessoas que estão na condição de oprimidos procuram formas de sair dessa “categoria” e um dos caminhos é a possibilidade de capacitar-se, fazer um curso que mostre essa diferença entre opressor e oprimido e as intencionalidades do opressor.

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Considerações finais

Seu caso deve ser anotado, o seu mal ser vigiado e lhe requer muita atenção [...] Deve ficar bem

isolado, em quarto bem fechado, sem portas ou janelas, pois pode ser contagiante, dieta

mais que rigorosa medicação bem adequada e muita observação. Música Tá certo doutor.

(GONZAGUINHA, 1994).

A rua como morada, poucas pessoas sabem e podem imaginar o que é, a não ser os próprios moradores. Nesse campo/espaço, outros saberes são construídos e uma nova relação se constitui com o Outro. A sociedade tem medo. Os moradores de rua têm medo da sociedade. Por que a sociedade vai tornando a vida em hipocrisia, um mundo de fantasias e os moradores de rua, os dependentes químicos são reais, nesse mundo/circo e talvez seja por isso que muitas pessoas pensam que eles devem ser banidos.

Conto uma história, mas diferente de pessoas que experimentaram e moram na rua. Cada pessoa tem sua história de vida. Ao narrar suas percepções, os dois rapazes mostraram seus sentimentos e deram seus pareceres sobre a relação do morador de rua e a sociedade envolvente. A dor está nos olhos brilhantes de uma lágrima quase caída, mas contida. A manifestação de todo o corpo ajuda a compreender essa história, mas senti-la é somente quem a padece.

Essas pessoas fazem suas refeições em algumas casas religiosas, em albergues, onde vão dormir. Ganham pão para o café da manhã. Mesmo com pouco alimento, vimos um gesto de solidariedade tão bonito de um dos velhos moradores de rua que ali estava. Ele dividia seu pão com os pombos. Com certeza ele sabe o que é passar fome.

As relações entre as pessoas vão tomando posições diferentes. Como é o caso de um senhor que estava naquele espaço conversando com as pessoas que vivem em condição de rua. Ele é morador daquele bairro, diz-se solitário, vai conversar com aquelas pessoas dizendo que já ganhou bem, mas hoje é aposentado por um salário mínimo o qual não dá para suprir suas necessidades.

É preciso mais compreensão entre as pessoas, pois segundo Merleau-Ponty (2006, p. 16), o “[...] compreender é reapoderar-se da intenção total”. É importante, nesse compreender, escutar estas

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pessoas, saber quais são seus sonhos, suas expectativas de vida, dar voz a elas para que se sintam capazes de dizer e de fazer algo. Sendo oprimidas, como debate Paulo Freire (1987), elas vão silenciando-se, pois a palavra proferida e aquelas outras formadas, mas não ditas, caíram no vácuo, pois são desvalorizadas.

Agamben afirma que as pessoas vão perdendo a dignidade humana, deixando de ser cidadãos e cidadãs, pois a elas são negados todos os direitos correlatos à vida.

O desafio, para nós, agora, é o que fazer com essas histórias. Foi importante conferir e dar vozes a essas pessoas que, mesmo presentes, estão invisíveis à sociedade vigente.

Assim como os moradores de rua, os povos indígenas também são indesejáveis, pois perturbam a ordem e são moradores de terras cultiváveis, objetos de desejo de muitos latifundiários. Muitos povos perderam suas terras, suas dignidades e perambulam pelas calçadas das cidades, sobrevivem em condições miseráveis, nas margens das rodovias, a espera do seu território que representa, para eles, a vida e o sonho de serem felizes e, terem de volta sua cultura, suas crenças, seus valores e seus princípios educacionais.

Assim, buscamos a compreensão dessas relações entre pessoas e outros animais que habitam um mesmo espaço. Conhecer um tempo que foge do conhecimento do tempo visto e assistido pela sociedade ocidental. Tivemos a intenção de compreender a relação do mundo entre humanos com as coisas, pois elas estão em nós e nós nelas. Para isso, alicerçamo-nos na comunhão e no diálogo com dois grandes filósofos: Agamben e Merleau-Ponty. Também os ensinamentos do educador Paulo Freire proporcionaram holofote para as análises, ao nos fazer perceber outras formas de viver as experiências e outra visão de mundo.

Referências

CAPALBO, Creusa. Fenomenologia das Ciências Humanas. Aparecida: Idéias & Letras, 2008.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 17. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

MERLEAU-PONTY, Maurice. Signos. 1. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1991.

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252 • PARTE III - Enviesamento do olhar: diversidade e fenomenologia

_____. Fenomenologia da percepção. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

_____. Conversas. São Paulo: Martins Fontes, 2004. (Série Tópicos.)

RUIZ, Bartolomé Castor M. M. A sacralidade da vida na exceção soberana, a testemunha e sua linguagem. (Re)leituras biopolíticas da obra de Giorgio Agamben. Cadernos IHU, São Leopoldo, a. 10, n. 39, mai. 2012. Disponível em: <http://www.ihu.unisinos.br/ images/stories/cadernos/ihu/039cadernosihu.pdf>. Acesso em: 22 out. 2014.

SANTOS, Boaventura de Sousa. O direito dos oprimidos. São Paulo: Cortez, 2014.

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Tecendo a rede: movimentos... trançados... nós, entre

nós e conosco mesmos

Waldinéia Antunes de Alcântara FERREIRA

Lisanil da Conceição Patrocínio PEREIRA

Lori Hack de JESUS

Primeiras palavras

Neste texto, apresentamos um diálogo escrito. Inserem-se nele experiências de aprendizagem e de encontros de rostos indianizados. Nesse sentido, a proposição do mesmo é a articulação entre questionamentos e apontamentos que foram sendo construídos sob nossos olhares, interpretações e sentimentos. E o fazemos por intermédio dos encontros efetivados no Projeto Interculturalizando talentos: articulações entre linguagens, História Étnico-Cultural e Educação Ambiental em escolas indígenas da terra indígena Apiaká-Kayabi.

Tais encontros se realizaram e se realizam no âmbito físico das aldeias e da Universidade do Estado de Mato Grosso (UNEMAT), campus de Juara, e de outros encontros que ocorreram conosco, entre nós, e conosco mesmo. Mencionar ‘conosco’ é dizer da coletividade das decisões dialogicizadas e dialetizadas nos conflitos, nos desejos, nas dificuldades e na realização de cada ação, ancoradas na pedagogia popular que nos ensina Paulo Freire (2005).

A dialética como realidade concreta de seres humanos desuma-nizados, atravessa o nosso ser no estar junto e na convivência porque nos encontramos no mesmo lugar, somos nós, ao mesmo tempo em que conosco, entre nós e conosco mesmo. Somos nós deixados de lado, invisibilizados, ameríndio na luta, nos conflitos e nas tensões... Mas, também somos nós que com ternura e companheirismo nos humanizamos, na aprendizagem com o Outro.

Entre nós, foram desenhados e formados os nós no entrelaçamento das vivências ocorridas conosco. Nós que se atam e desatam na flexibilidade dos movimentos criados e promovidos na efetivação do desejo pensado coletivamente, ou seja, conosco.

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Conosco mesmo, são os espaços profundos e íntimos dos nossos pensamentos reflexivos e autoavaliativos do que fazer; que se voltam e ocupam os espaços entre nós e conosco.

Assim, os diálogos que deste texto fazem parte não são diálogos quaisquer, mas empoderados de uma memória coletiva porque ressoa as vozes, os desejos e as ações do projeto ora desenvolvido por três povos indígenas do estado de Mato Grosso da Terra Indígena Apiaká Kayabi.

Movimentando os Nós

Os nós, por nós criados, podem ser afrouxados ou apertados quando somos parte do punho que sustenta a ação. Entretanto, quando os fios, a tecelagem e a armação de uma rede não nos pertencem, os nós são feitos de qualquer forma, sem seguir a técnica que os acomode e realmente os sustente. Eles podem desmanchar-se e nos fazer cair da rede. Portanto, tecer, fazer redes: produzir nós reúne um conjunto de aprendizagem que se sustenta no movimento.

A experiência vivenciada no projeto em questão, produz um movimento como o de uma linha que vai sendo trançada de um lado ao outro... São os movimentos feitos por dona Nilza (Apiaká), Lourdes e Catarina (ambas Kayabi) ao tecerem as suas redes, utilizando o fuso e uma armação de madeira adequada a este trabalho. Dona Catarina sabiamente nos mostra o algodão plantado – poucos pés que hoje estão nos arredores de sua casa –, a produção do fio e o trabalho da tecelagem em si. A Mãe Terra lhes fornece a fibra vegetal, mas são as pessoas que, ao tecer, imprimem as marcas identitárias que ultrapassam o trabalho em si. Há nesta ação um sentimento que se significa pela produção do objeto que não está nele, mas no como o mesmo é produzido, há intencionalidades...

[...] falar de intencionalidade ou subjetividade é, portanto, falar sobre um modo de explicar o comportamento segundo características internas do ser examinado que se direcionam essencialmente para certos objetos e pelas quais esses objetos tem um certo significado para tal ser (MATTHEWS, 2010, p. 75).

As cores das linhas... As mãos ágeis, apesar da idade, entrelaçam e com a ajuda da técnica aprendida pelos não indígenas na época das missões – como nos dizem – tecem... Mas, ao tecerem desenham

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a identidade nos desenhos que compõem a rede... O movimento é constante. Os nós são produzidos entrelaçando o cultural identitário e o aprendido que se misturam e convivem. Assim, os nós produzidos têm lugar selecionado e são feitos para melhor acomodar a rede feita no movimento de trançados; têm o lugar de acomodar, de sustentar. As produções desse entrelaçamento são nossas experiências, ou como assinala Matthews (2010, p. 28) as nossas e/ou “minhas experiências são experiências do mundo e é o mundo que dá sentido às experiências que tenho”. De outra forma, a produção dos nós, de nós são nossas experiências, constructo dos sentidos feitos no movimento.

Nessa tecelagem que não é apenas a da rede do tear das anciãs, mas da rede de comunicação, das sabedorias, da interculturalidade, há a reunião e a observância dos nós já trabalhados anteriormente, ou seja, nos encontros físicos e não físicos que a rede nos propicia com os encontros que ocorreram conosco, entre nós, e conosco mesmo. Fenômenos que não são rígidos; ações em movimento. Encontros que nos lançam no mundo... Corpos e coisas em relação, produção dos significantes e significados de estar juntos, tecendo e sendo tecido no mundo, no/com o corpo e com as coisas do mundo em relação, no coletivo e singularmente.

[...] a relação entre as coisas e meu corpo é decididamente singular: é ela a responsável de que, às vezes, eu permaneça na aparência, e outras, atinja as próprias coisas; ela produz o zumbir das aparências, é ainda ela quem o emudece e me lança em pleno mundo ( MERLEAU-PONTY, 2012, p. 20).

Muitas ações foram vivenciadas antes de se fazer o movimento com os nós. No caso das anciãs, a escolha da semente do algodão, o cuidado com a terra, a semeadura, o tempo de espera para a germinação... a colheita, a tecelagem...início da construção da rede que tem silêncio, habilidade, olhares de curiosos, apreciadores e aprendizes... estabelece-se uma comunicação, que não é apenas a do momento, mas, que pertence a gerações.

Os encontros e o estabelecimento de rede foram se constituindo no projeto, não como a rede das anciãs, mas como uma rede onde os fios somos nós conosco, entre nós e conosco mesmo, porque os movimentos são produzidos por nós em processos de interculturalidade e de fagocitação.

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Fenômenos e/ou conceitos que traduzem uma perspectiva teórica de encontros. Na fagocitação kushiana (KUSCH, 2000), há o encontro do mero estar indígena e do ser europeu. Significa pois, o mero estar na constituição da identidade e do dispor-se ao mundo como característica própria dos povos Ameríndios e indígenas. Este um conceito que abarca a ideia de complementaridade segundo a qual, estar engloba o ser construído no silêncio místico do dispor-se. O ser europeu está presente na perspectiva do capital e da construção da vida ilusória dos pátios dos objetos, nos problemas da vida diária. Na acepção de Kusch (2000), uma afanosidade, ou seja, característica do europeu cidadão que aqui chegou e se contrapôs ao mero estar autóctone dos povos ameríndios.

Logo, fagocitar-se ocorre nos encontros que colocam de frente a limpeza ‘acadêmica’, ‘europeia’ com o fedor do ‘popular’, dos índios, dos negros... O medo da ambiguidade... Sentimento que escolhe abafar-se no predomínio da razão, da ciência, da europeização. Sem uma percepção, o fagocitar-se traduz o movimento que se faz em ondas e se propaga no Cosmo, absorve-se, apercebe-se e constrói com o coração a sabedoria da América que sabe que não há nada puro.

Essa fagocitação não é consciente, não é planejada, ela ocorre pelo encontro, nas trocas materiais, porém, o centro da vida é a mística do próprio mero estar indígena, que com a inconstância da alma selvagem de Viveiros de Castro (2008) e em Kusch (2000) o fagocitar-se, presentifica-se na afrodescendência, no popular, no rosto ameríndio que vive e sobrevive das histórias que significam a vida em comunidade e das iras que o Cosmo produz.

La fagocitación no es consciente sino que opera más bien en la inconsciencia social, al margen de lo que oficialmente se piensa de la cultura y de la civilización. [...] Pero la fagocitación se da ante todo al margen del crecimiento material, en esa trampa que es la intimidad de cada uno. Indudablemente la adquisición de objetos, seguirá hasta el infinito, pero es evidente que nunca podrá convertirse en el móvil central de la vida. El objeto no es más que cantidad o cualidad, pero nunca algo sustancial. Más aún, vivir es estar firmemente aquí y eso se da al margen del objeto: el terreno de la comunidad, el fruto y la presencia de la ira. (KUSCH, 2000, p. 173-174).

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Assim, os encontros nos colocam de frente aos rostos que são como os nossos, mas que se foge de sê-los. É esse princípio fagocitante de encontros que projeta o jeito de estar ameríndio na sua exterioridade – antes ocupado no místico do silêncio – como forma de aceitabilidade do caos. Um caos visto como unidade orgânica da vida que mobiliza para o equilíbrio e para a totalidade. Nesta vivência se restitui o equilíbrio olhando para o coração, para dentro. Ou seja, é na afetividade e nas relações dialéticas internas que a sabedoria popular, indígena, afro, camponesa e as demais se afloram e fagocitam-se.

Nesta perspectiva, a relação do mero estar com a fagocitação é feita num movimento em que ambos, europeus e ameríndios fagocitam-se, mas o estar, é a inteireza e a maneira profícua de ordenação do mundo em detrimento do ser. Fagocitação, então, nesta simples interpretação que fazemos do pensamento kushiano, é o movimento que ocorre em diferentes tempos e espaços, como no espaço, no tempo e com as pessoas que participam direta e indiretamente do projeto em discussão. É a compreensão no sentido de que não é o europeu o superior e nem o é o ameríndio, mas, a força está no estar ameríndio em terras ameríndias, na ancestralidade e na sabedoria popular. É a aceitação compreensiva que no silêncio e no caos reorganizações ocorrem.

Nessas reorganizações, a dialética, os conflitos, as tensões, a raiva e a dialogicidade marcam as atitudes e, neste movimento, aprendemos a interculturalizar criticamente porque queremos a pedagogia decolonial, a latinidade.

No caos, no interior dos movimentos, utilizamos a dialética e as negociações como aprendizagem do desenho coletivo e dialógico das vivências dos projetos populares indígenas em meio a universidade. As definições iniciais foram sugeridas pela equipe propositora do projeto – professores/as da Universidade e as demais e mais significativas foram decididas pelos e com os povos indígenas Apiaká, Munduruku e Kayabi.

Com as negociações surgiram os projetos. Para nós e entre nós, momento reflexivo e intercultural. O silêncio da chegada (do povo indígena) foi rompido com outro silêncio – dos professores/funcionários e acadêmicos da universidade – porque as vozes que ecoavam, paulatinamente, acolhedoramente, em sons quase cantados e com pausas feitas com os olhos e com o peito eram do tronco Tupi. Definia-se o que, como, e para que fazer na língua materna. Assim, ora ouvíamos as negociações em Munduruku, ora em Kayabi e, em

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outros momentos, a língua portuguesa fazia a ponte e a efetivação das negociações do que fazer. E as decisões estavam pautadas no empoderamento cultural e da língua símbolo identitário de cada povo.

Nossas interpretações nos direcionam a uma avaliação de que houve uma vivência desconcertante à universidade, uma experiência fora dos seus planejamentos rígidos tomados pela ciência e pela razão. Tal experiência produziu uma variedade de sentimentos e atitudes que não são atitudes e sentimentos produzidos no agora, mas, no acordar em choque, no desatar de nós, que em meio aos fios vividos nos encontros, ou se arrebentaram ou fizeram movimentos de recriações inundadas em uma realidade em que os rostos ameríndios em olhares e vozes se encontram.

O movimento de negociações estabeleceu nós, entre nós, conosco e conosco mesmo, aglutinando universidade e povos indígenas em processos de negociação. Experimentamos nos encontros, o movimento de aprender a aprender, de também apreender e em meio a discussões e espaços de pequenos e grandes grupos. Tal movimento nos impulsionou a abrir-nos ao mundo de vivências e experimentações que nos completa na infinita incompletude humana. Sabiamente Merleau-Ponty (2011, p. 14) afirma que “o mundo não é aquilo que eu penso, mas aquilo que eu vivo; eu estou aberto ao mundo, comunico-me indubitavelmente com ele, mas não o possuo, ele é inesgotável”.

Nessa inesgotabilidade e entre a comunicação indubitável, diferentes formas comunicacionais, entre elas a presença dos olhares curiosos dos de dentro da universidade, a maioria não estava acostumada a esse contexto. Afinal de contas: o que significa tantos indígenas na academia, se estes não são nem acadêmicos/as, nem professores/as, nem funcionários/as enfim, não pertencem a este lugar?... Estava escrito nos rostos, nas perguntas, nas inquietações que foram oralizadas e redigidas. Estava em muitos olhares... E os sentíamos.

Os olhares a nós direcionados, ora carinhosos, ora de estranhamento e de incompreensões, eram gritos no silêncio, uma linguagem transparente do código da não aceitação, da releitura do selvagem ou da releitura do indígena romântico. Ou a desumanização racial da modernidade.1

1 Sobre desumanização racial da modernidade ler Maldonado-Torres (2007).

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Nessa perspectiva, o que está em jogo, é pensar nesses encontros como a possibilidade da realização da construção de uma educação popular que invade a universidade, a descoloniza e a altera, mexendo com os seus conceitos e atitudes, despertando-lhe para o caos e, efetivamente, o estranhamento que mobiliza para aproximações e distanciamentos da luta pela justiça social de povos injustiçados. Assim, o projeto interculturalizando talentos é utópico no sentido de, ao mesmo tempo, estar com as comunidades indígenas, mas também, sacudir a universidade para também ser o espaço da educação popular e de decolonialidade.

Precisamos desconstruir o pensamento colonial que além de aprisionar, inviabiliza e constrói uma sociologia alienada e silenciada. É necessário enveredarmos no caminho da sociologia da ausência, uma vez que “[...] trata-se de uma investigação que visa demonstrar que o que não existe é, na verdade, ativamente produzido como não existente, isto é, como uma alternativa não-credível ao que existe”. (SOUZA SANTOS, 2004, p. 786).

O lugar da Educação Popular é o lugar dos movimentos populares empreendidos por índios, camponeses, diferentes grupos sociais e estes se inserem no contexto clássico dos enfrentamentos do capital e nos enfrentamentos dos novos movimentos sociais acerca do reconhecimento identitário de diferentes grupos. Tem-se descoberto práticas de enfrentamentos à sociedade e ao pensamento hegemônico. “[...] a educação popular encontra um sentido renovador, para colocar os seus instrumentos de reflexão e capacitação de pessoas e grupos cuja ação tornada movimento é mais do que nunca o determinante de uma educação [...]” (BRANDÃO, 2002, p. 99). A educação Popular é o desencadeamento de lutas, que ocorrem de diferentes formas e em diferentes espaços, entre nós, conosco e, às vezes, conosco mesmo.

Conforme Zitkoski (2011), a Educação Popular volta-se à realidade do povo, trabalha com os fatos concretos da realidade, se realiza a partir do nível sociocultural, permite a identificação das diferenças e contradições sociais, sobretudo, acolhe saberes populares e, por meio do diálogo, organiza-se na luta e na construção de um projeto de transformação social.

Essa transformação social é possível também pelo assumir da sociologia das ausências, quando esta evidência as existências

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e dá voz ao silenciamento. Assim, “o objetivo da sociologia das ausências é transformar objetos impossíveis em possíveis e com base neles transformar as ausências em presenças” (SOUZA SANTOS, 2004, p. 786).

Nesse contexto, a Educação Popular e a sociologia da ausência pode ser desenvolvida em qualquer lugar, mas organizada e coordenada pelos seus intelectuais. Assim, o movimento de Educação Popular é uma pedagogia política, construída dentro dos processos interculturais críticos em constantes negociações, porque avança espaços sociais que vão além dos lugares dos grupos organizados.

No entender de Walsh (2009, p. 21), trata-se de uma pedagogia decolonial amparada na interculturalidade crítica, esta, ao invés de anular as cosmovisões populares, africanas, indígenas assentadas na dominação, nos preceitos da modernidade e da globalização, faz o movimento inverso, que aliás, “[...] não é funcional para o modelo social vigente, mas um sério questionador dele”. Portanto, pensa-se,

[...] na interculturalidade crítica como ferramenta pedagógica que questiona continuamente a racialização, subalternização, inferiorização e seus padrões de poder, visibiliza maneiras diferentes de ser, viver e saber e busca o desenvolvimento e criação de compreensões e condições que não só articulam e fazem dialogar as diferenças num marco de legitimidade, dignidade, igualdade, equidade, e respeito, mas que, -ao mesmo tempo- alentam a criação de modos ‘outros’ – de pensar, ser, estar, aprender, ensinar, sonhar e viver, que cruzam fronteiras. (WALSH, 2009, p. 25, grifo do autor).

Pode-se dizer que se juntam a fagocitação e a interculturalidade crítica, o que Canclini denomina de hibridização, ou seja, “[...] procesos socio-culturales en los que esctruturas o prácticas discretas, que existían en forma separada, se combinam par generar nuevas esctructuras, objetos y prácticas” (2010, p. 14). É nessa perspectiva que pensamos o projeto Interculturalizando talentos, um canal de surgimento de outros projetos, que conforme Ferreira (2014), entrelaçam diferentes aspectos socioculturais, relações que se encontram em pontos intersectivos, como o mítico e o tecnológico, o popular e o culto. Porém, é claro que na hibridização não permanece

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a ideia binária, mas o princípio da interculturalidade, a dinâmica social, a fusão entre os elementos que apresentavam e/ou apresentam conceitos díspares.

Compreendemos que é preciso coragem, amorosidade, humildade e dialogicidade para que os projetos atinjam os objetivos de serem decoloniais e de invadirem efetivamente a universidade, mexendo com a mesma, como nos ensina Paulo Freire (1996), na Pedagogia da Autonomia. E é assim, em meio à fagocitação, à interculturalidade crítica, à humildade, à dialogicidade, que vamos juntos ou não, movimentando e amarrando os nós, ou como forma de sustentação dos punhos das redes comunicacionais e vivenciais, ou como nós que se fecham em si mesmos e se distanciam da experiência coletiva e da experimentação do Outro.

Palavras finais

Nas palavras finais reiniciamos o texto, que não é apenas texto, mas tecido dos fios que formam as redes, de dona Lourdes, Catarina e Nilza. Redes que balançam com o vento, com a vida, com o tempo. E que balançam porque há movimento. Assim, tudo é movimento, de aproximar, de se distanciar. Ora a rede vem, ora a rede vai... no movimento, mexe com tudo e todos...

São movimentos internos da universidade e das aldeias, da educação popular que mesmo construída na rigidez universitária experimenta um jeito diferente de teimar e de na manha com tramas se constituírem aos poucos a invasão e a construção de uma pedagogia que é decolonial.

Uma rede que abarca os nós conosco, os entre nós e os nós conosco mesmo, nos lançando numa matriz de reconstrução e de uma experimentação de luta e de sentimentos tensos, conflituosos e desafiadores, lança-nos na arquitetura metamorfósica e dinâmica de nos colocar em frente, de frente e na frente de rostos como os nossos, marcados pela indianidade, latinidade e brasilidade à qual pertencemos.

Nas interculturalidades críticas, negociamos, e das negociações ponderaram-se algumas decisões, entre elas, a revitalização da língua materna do povo Apiaká; a construção do ABC Munduruku e a construção da casa tradicional do povo Kayabi, que são ações que estão em andamento, com os povos mobilizados, não apenas às

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comunidades a que pertencem, mas, procurando se fortalecer, inclusive, com outros processos de interculturalidade.

Há, portanto, uma mobilidade no sentido de mexer... Mexer com a universidade, com as comunidades indígenas, com acadêmicos atuais e egressos, com funcionários, com outros projetos da universidade, principalmente, os de extensão e cultura... Mexer, porque tira as pessoas dos seus lugares em dois sentidos, seus lugares físicos e seus lugares de pensamento, de questionar, de em interculturalidade contemplar outros rostos e culturas, que não utilizam o mesmo espelho. Uma interculturalidade ancorada em uma pedagogia decolonial, portanto crítica (WALSH, 2009).

O mexer deslocou pessoas de lugar com aproximações ou com distanciamentos, mas, o lugar de origem foi modificado. Princípio da fagocitação, porque o habitar do eu no outro e do outro em mim estabelece o mexido, que mexe, mobiliza e desloca por movimento o lugar de estar no mundo. Nessa perspectiva, o que ocorre é a hibridização, porque hibridizante, modificante, ainda que o objetivo seja fortalecer-se na cultura própria. O próprio é tão próprio, que com seus próprios instrumentos, ressignifica-se na sua realidade e nos contextos que são próprios.

Assim, interculturalizar e fagocitar passam a ser um movimento lido nas decisões, nas negociações e nas aprendizagens – da universidade e das aldeias – em meio a tantos conhecidos e desconhecidos, onde uns olham, outros falam, alguns sentem e assim... Mexe, mexe tudo. A rede mexe, movimenta... afasta... aproxima.

Estamos lendo o movimento desses projetos nas comunidades indígenas com interface na universidade, como sendo um “[...] pro-jeto (pro-jactum), o que está jogado à frente como utopia, que põem em movimento o processo”. (PASSOS, 2010, p. 188). É, portanto, o movimento utópico realizável, como nos diz Paulo Freire (2005). Um movimento produzido no próprio movimento, no silêncio, na interculturalidade crítica e nas aprendizagens de se fazer a pedagogia decolonial e/ou política.

Como bem pondera Ferreira (2014), uma pedagogia cosmo-antropológica que está nas escolas e que se estende nos projetos que tem os professores/as como colaboradores diretos dos mesmos, cosmo-antropológicos, porque de pertencimento das comunidades indígenas, ação dialética e dialógica de negociações,

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[...] dinâmica de desconstrução e reconstrução que ocorre num processo aberto e em movimento permanente, com diálogos interculturais e muitas vezes contraditórios. O movimento que significa essa construção é feito na esteira da alma inconstante, que se refaz, apropria, desfaz, dialoga e resiste no sentido do fenômeno da dialética e da permanência identitária do ser, ponto forte da resistência [...] (FERREIRA, 2014, p. 151).

Pedagogia feita no movimento dialetizador com o estar junto, em meio a tensões e conflitos... Em processos abertos, portanto, dialéticos, sem predominância de uma posição sobre outra... Com diálogo. Uma dialética freireana identificada nas interpretações de Zitkoski (2010) como fronteiriça entre a modernidade e a pós-modernidade porque critica o eurocentrismo que é a chave da colonialidade que sustenta as ideias da modernidade e se distancia da pós-modernidade conservadora porque a mesma busca justificar a todo custo a realidade do mundo na atualidade. Na dialética freireana o momento histórico é o novo e a possibilidade da recriação da existência humana em sociedade, neste tempo.

Compreendemos que as recriações ocorrem à medida que há a abertura da vida humana com o mundo, no coletivo e na subjetividade que é pessoal. Mas, sem dúvida alguma, é preciso que estejamos abertos a problematizar esse nosso mundo com o diálogo crítico transformador. Quando juntos... Quando a realidade concreta é vivida junto a rostos diferentes e rostos iguais aos nossos... Quando o olho que olhamos encontram as marcas do silêncio que comungamos... Quando a ternura invade e sabemos que é necessário resistir... Ouvimos... As palavras... O que não é dito, mas é sentido e nos reconhecemos e voltamos e/ou aprendemos ontologicamente que somos nós. Assim, a aprendizagem deste projeto e a integração com o projeto Ruação, financiado pela Secretaria Nacional dos Direitos Humanos nos fortalecem e apontam caminhos para o trabalho com os grupos em vulnerabilidade, nos empondera na busca por políticas públicas que estão em andamento, mas que às vezes, por desconhecimento não chegam às comunidades que delas tanto carecem.

Estar juntos, põem-nos em encontro, também nos descolonializam e nos lançam desafios para continuar tecendo a rede com movimentos... trançados... nós, entre nós e conosco mesmo.

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Finalizamos dizendo que este trabalho tem permitido o empoderamento da cultura indígena, ao mesmo tempo em que tem causado estranhamento no interior da universidade. Os estranhamentos têm despertado atitudes que estão no íntimo das pessoas e têm causado distanciamentos e aproximações, esta última atitude reflete na ação de uma educação popular, empoderada de sentidos desafiadores e fagocitantes.

Referências

BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Educação como cultura. Campinas: Mercado das Letras, 2002.

CANCLINI, Néstor García. Culturas híbridas: estratégias para entrar y salir de la modernidad. 3. ed. Buenos Aires-Argentina: Paidós, 2010.

FERREIRA, Waldinéia Antunes de Alcântara. Educação escolar indígena na terra indígena Apiaká-Kayabi – em Juara-MT: resistências e desafios. Porto Alegre, 2014. Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação, Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.

_____. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005.

KUSCH, Rodolfo. Obras completas. v. 2. Santa Fé-Argentina: Editorial Fundación Ross, 2000. (América Profunda y el piensamento indígena y popular en América.)

MALDONADO-TORRES, Nelson. Sobre la colonialidad del ser: contribuciones al desarrollo de un concepto. In: CASTRO-GOMEZ, Santiago; GROSFOGUEL, Ramóm (Eds.). Disponível em: <http://www.unsa.edu.ar/histocat/hamoderna/grosfoguelcastrogomez.pdf>.

MATTHEWS, Eric. Compreender Merleau-Ponty. Rio Janeiro: Vozes, 2010.

MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes, 2011.

_____. O visível e o invisível. São Paulo: Perspectiva, 2012.PASSOS, Luiz Augusto. Fenomenologia. In: STRECK, Danilo;

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REDIN, Euclides; ZITKOSKI, Jaime (Orgs.). Dicionário Paulo Freire. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2010.SOUZA SANTOS, Boaventura. Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências. In: SOUZA SANTOS, Boaventura (Org.). Conhecimento prudente para uma vida decente: ‘Um discurso sobre as ciências’ revisitado. São Paulo: Cortez, 2004.

VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo B. A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de Antropologia. São Paulo: Cosac & Naify, 2008. WALSH, Catherine. Interculturalidade crítica e pedagogia decolonial. In-surgir, re-existir e re-viver. In: CANDAU, Vera Maria (Org.). Educação intercultural na América Latina: entre concepções, tensões e propostas. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2009. p, 12-42. ZITKOSKI, Jaime José. Educação popular e movimentos sociais na América Latina: perspectivas no atual contexto. In: ZITKOSKI, Jaime José.; MORIGI, Valter (Orgs.). Educação popular e práticas emancipatórias: desafios contemporâneos. Porto Alegre: Companhia Rio-grandense de Artes, 2011. p. 122-139.

_____. Dialética. In: STRECK, Danilo; REDIN, Euclides; ZITKOSKI, Jaime (Orgs.). Dicionário Paulo Freire. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2010. p. 127-130.

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Pedagogia das Ruas, pronúncias da cidade

Tereza Ramalho de Azevedo CUNHA

A leitura do mundo é um que-fazer pedagógico indicotomizável do que-fazer político que envolve a organização dos grupos e das classes populares para

intervir na reinvenção da sociedade.

Paulo Freire

Visível e móvel, o meu corpo pertence ao número das coisas, é uma delas, está preso na textura do mundo, e a sua coesão é a de uma coisa. Mas, posto que vê e se

move, ele mantém as coisas em círculo a sua volta, elas são um seu anexo ou prolongamento, estão incrustadas em sua carne, fazem parte de sua definição plena, e o

mundo é feito do mesmo estofo do corpo.

Maurice Merleau-Ponty

Distantes das áreas de especulação do mercado imobiliário, afastadas de bairros elegantes onde pessoas adquirem artigos de alto custo ou desfrutam de dispendiosa e sofisticada gastronomia, tendo muitas vezes assinatura internacional; à margem da visibilidade promovida pelos recursos damultimídia e a comunicação massiva, justo no centro de Cuiabá, em logradouros que comportam casas e casarões de época, algumas delas com tombamento no Patrimônio Histórico, outras, no entanto, postam-se refletindo o inabitável, encontram-se as manifestações visuais a que também chamamos de textos visuais/verbais.

Tratados por procedimentos de pichações e grafitagem, entintados com spray à base de água ou de resinas sintéticas, os textos possuem grafias, ganhando formas com o preenchimento da cor que dão a estes o caráter pictórico. Exibindo protestos, denúncias, crimes, trazem a voz dos dominados;documentam o sofrimento dos conquistados, as ameaças às vítimas inocentes e aos excluídos do mercado; não raro, os textos ironizam os opressores.

Tendo como repertório figuras humanas, animais, plantas, frutas, são integrantes dos textos as máscaras indígenas, as figuras encapuzadas, objetos como armas, coquetéis explosivos e até mesmo ferramentas

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utilizadas na lavoura como a foice. Desse ‘miseenscene’, participam rostos, em maiores proporções que expressam a desconfiança, e se mostram molestados ante a poluição sonora, a desconstrução da cidade proporcionada em nome da demanda de obras exigidas por projetos nacionais e eventos mundiais.Imersos no silêncio e refletindo serenamente, outros rostos de proporções similares ali estão nessas composições pictóricas.

Instaladas à superfície de paredes, muros, portas, de construções feitas de lajedos, em espaços cujas demolições encontram-se inconcluídas, os textos manifestam pronúncias e o fazem sobre superfícies insólitas, às vezes úmidas e escorregadias.

É de se supor que, outras presençassomam-se à visualidade dos textos; poderíamos chamá-las de presenças texturais promovidas por elementos que já se encontravam nessas locações, antes mesmo de serem os suportes desses textos. A materialidade das paredes, os respiradores de porões, as portas que se apresentam com perdas de revestimento, em craqueletou, tendo partes quebradas, os muros pontuados de buracos em função da perda de emboços, vidraças quebradas, cadeados e outras ferragens corro-ídas pela ferrugem, com efeito, produzem vozes que se conjugam as que se encontram manifestas nesses textos visuais, a céu aberto.

Nos dias de sábado e domingo nos períodos, vespertino e noturno, as ruas do centro de Cuiabá em que se instalam as produções textuais, mostram-se acentuadamente desérticas. Não há presenças e rumores de adultos acompanhando crianças que brincam,é rarefeito o movimento deestabelecimentos comerciais. As formas arruinadas, o silêncio, a sensação de inércia são enunciadores de vozes inusitadas que participam desses acontecimentos como pronunciantes da cidade.

A constatação da existência de uma estética que nos causa susto,estonteamento, dando vez ao inesperado em função do que antes era invisível e inaudível: momentaneamente, os fenômenos mostram-se audíveis e visíveis, podendo ser percebidos como matéria prima da educação. Nesse horizonte, se faz necessário o uso de uma pedagogia que permita percepções e diálogosproblematizadores, passíveis de coexistência com o pó das ruas.

A educação pela percepção e pela apreensão de sentidos, podendo contemplar as manifestações visuais de rua, remete à participação do corpo humano enquanto estrutura sensível, de memória e portadora de sentido. Merleau-Ponty, em O Olho e o Espírito, advoga:

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É emprestando o seu corpo ao mundo que o pintor transmuta o mundo em pintura. Para compreender estas transubstanciações, é necessário reencontrar o corpo operante e atual, aquele que não é um pedaço de espaço, um feixe de funções, que é um entrançado de visão e movimento. (MERLEAU-PONTY, 1980, p. 19).

Para o fenomenólogo francês o estar no mundo, pode ser entendido pelo contato carnal do corpo humano com as coisas do mundo. O corpo humano está cercado e envolvido por elas, não estando de frente, de lado ou por trás, nem mesmo vendo-as a distância, num plano de topo. Portanto, as proposições merleau-pontyanas, acerca da atuação do corpo humano, diferem das visões estabelecidas pela dióptrica de Descartes mediante a atuação dos geômetras que viam o mundo a sobrevoo. Sabemos que, no período renascentista os geômetras eram artistas que se valiam do pensamento racional, fazendo o uso da matemática e da geometria nas construções arquitetônicas, escultóricas e pictóricas.

Paulo Freire

Algumas perguntas persistem sobre a autoria dos textos: Quem seriam os autores dessas produções e de suas assinaturas por vezes inelegíveis, incipientes e ausentes? Além dos grafiteiros já conhecidos na cidade de Cuiabá, seriam pintores artistas e não artistas, itinerantes de outras cidades? Trata-se de moradores e não moradores de rua? Qual o sentido de eleger as superfícies insólitas, por vezes cortantes, para a instauração de textos, de que são eles os sujeitos enunciadores? Qual a contribuição desses textos para a educação na sociedade?

Texto e contexto são conceitos de acentuada relevânciana obra de Paulo Freire. Ao percorrermos o dicionário que traz o seu nome, cujos verbetes são assinados por outros educadores brasileiros os quais comungam ideias acerca da educação libertária, deparamos com a descrição de E.M.F. Falkenbach (2008, p. 408-409, grifos da autora) sobre o sentidodesse binômio: a autora cita o pensamento de Paulo Freire e diz: “Para o autor, ‘o conhecimento se constitui nas relações homem-mundo, relações de transformação, e se aperfeiçoa

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na problematização crítica das relações’ (1992, p. 36)”. Em seu texto outras afirmações do autor são postas em discurso, acerca dos processos educativos, que se pretendem críticos, pois estes agregam textos e contextos. Notemos:

Vivem radicalmente o ato cognoscente quando evocam os sujeitos – educandos/educadores e educadores/educandos – não apenas a se darem conta de um objeto do conhecimento ‘no contexto real onde se dá’, mas a experimentarem uma inserção sobre ele, o que nos leva a criação-ação-transformação. (FALKENBACH, 2008, p. 409, grifos da autora).

A criação de textos no contexto das ruas de Cuiabá, com a complexidade de suas comunicações, proporciona experiências das quais participam educadores e educandos, diante de fenômenos inacabados, cujas leituras tornam inadiáveis a presença do corpo humano com suas possibilidades perceptuais de existência, linguagem e memória. Tudo indica que ocaminho do conhecimento identificado por Freire, em processos educativos críticos, não se esgota em um momento, em um tempo, em um sujeito. Quanto mais sujeitos cognoscentes adentram um objeto de conhecimento, mais conscientes se tornam de que há mais por conhecer. A problematização/reflexão que permite a inteligibilidade do objeto, por sujeitos,funda a comunicabilidade; forja espaços dialógicos que aproximam educador e educando, uma vez que, no ato cognoscitivo, estarão compartilhando presença no contexto que sustenta o objeto de conhecimento e relação com os signos linguísticos necessários para expressá-lo. É desde esses imbricamentos que Freire aponta a associação entre pensamento, linguagem, realidade (FALKENBACH,2008).

1.O que era desde o princípio, o que temos ouvido, o que temos visto com os nossos próprios olhos, o que contemplamos, e as nossas mãos apalparam, com respeito ao Verbo da vida.2.(e a vida se manifestou, e nós a temos visto, e dela damos testemunho, e vo-la anunciamos, a vida eterna, a qual estava com o Pai e nos foi manifestada.(A BÍBLIA SAGRADA. João, Prólogo, 1-2 Primeira Epístola).

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A epígrafe epistolar aponta a suposição de Freire ter encontrado um veio de inspiração nas Escrituras Sagradas, ao atentar para o “Verbo da vida”. Não obstante, ele lembra aos educadores do Brasil e de muitos países do mundo que, a palavra verdadeira é práxis progressista, ação mais reflexão. “Daí que dizer a palavra verdadeira seja transformar o mundo”(FREIRE, 2014a, p. 107).

Freire elucida no sentido de a existência porque humana, não pode ser muda, silenciosa, nem tampouco pode nutrir-se de falsas palavras, mas de palavras verdadeiras, com que os homens transformam o mundo. O mundo pronunciado, por sua vez, se volta problematizado aos sujeitos pronunciantes, a exigir delasnovo pronunciar (FREIRE, 2014a).

Nas páginas que se seguem, apresentamos análises descritivas de trêstextos, a saber: Memorial Justiça para Toni (Ilustração 1- Texto I), Rosto da Mocinha Afro-Ibero-Americana (Ilustração 2 - Texto II), O Barco de Papel (Ilustração 3 - Texto III).

Iniciamos a leitura e descrição do Texto I (Ilustração 1):

Ilustração 1–Memorial Justiça para Toni (Texto I)

Fonte: Arquivo pessoal da autora. Coordenação de registros fotográficos: a própria autora.

Foto: Ray Souza, out. 2014.

Artistas: Babu78 e A

marelo

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272 • PARTE III - Enviesamento do olhar: diversidade e fenomenologia

O painel “Justiça para Toni”, tendo o sentido de um painel memorial, situa-se no bairro Boa Esperança, na quase esquina da Rua 1, antiga Alziro Zahrur com a Avenida Fernando Corrêa da Costa. O texto proclama justiça ao discente da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), Toni Bernardo, de origem africana, da República da Guiné-Bissau (África Ocidental), morto num estabelecimento comercial nas proximidades desta mesma Instituição. Com respeito aos supostos autores do crime, existem versões imprecisas uma delas apresentando a participação de dois policiais à paisana e um empresário, que foram absolvidos no último júri, no primeiro semestre de 2014.

No percurso inicial de nossa descrição que contempla o texto com as assinaturas de Babu78 e Amarelo, observamos que ele deixa transparecer duas vozes enunciativas: proclama pedido de Justiça para Toni e aponta críticas à Copa do Mundo de Futebol, enquanto “megaevento” de caráter privado, onde o espaço urbano foi priorizado para fins mercadológicos e de especulação imobiliária, ocasionando a perda de pessoas, de espaços culturais, e a destruição de imaginários.

Apoiado no plano horizontal, o painel instala-se numa superfície de aproximadamente 6,50 cm de comprimento por 2,50 cm de altura; considerando a parte inicial à esquerda onde não há desenhos ou pinturas, aparece grafitada a frase “Justiça para Toni”. Comportando um espaço bem mais extenso, atuam duas figuras que exibem maior tamanho, elas agem, ora como antagonista, ora como protagonista, à maneira de charges e cartuns. As duas figuras de homens encapuzados entre presenças de nuvens negras de fumaça, empunham as suas armas, uma delas um brinquedo da infância. No percurso do painel, da esquerda para direita, percebemos que a figura da esquerda, vestindo a camisa da seleção brasileira de futebol, é vista até sua cintura, usando o capuz preto, com dois orifícios para os dois olhos e um para a boca; por essa cavidade, algo parecido com uma boca sorrindo francamente (faltando-lhe alguns dentes) tem nos lábios o batom. A figura inclina-se para a esquerda, está de frente para o espectador, seu braço esquerdo atravessa toda região do peitoral, exibindo evidentes exagerações em sua anatomia; empunha o coquetel explosivo do qual escapa a fumaça vermelha. Ao fundo

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é percebida uma figura de costas, que também usa a camisa da seleção brasileira, sendo seu corpo visto igualmente como os demais, à altura da cintura; no espaço referente às costas, encontra-se impresso em letras verdes “Toni -1”.

Ao observarmos a performance das duas figuras que atuam mais no centro do painel e que praticamente “roubam a cena”, arriscaríamos dizer que: a figura da esquerda parece reviver personagens que protagonizam histórias em quadrinhos, jogos eletrônicos, ao mesmo tempo ela se impõe como presença hiperboliforme e atemporal. As exagerações na cabeça acentuam-se nos braços, mãos e dedos. Na mão, a tatuagem de uma grande âncora aponta como flecha para a mesma direção que o dedo indicador indica.

A figura da direita mostra os dois olhos entre a abertura de panos que lhe cobrem a cabeça e a face, à maneira de guerrilheiros radicais islâmicos, oriundos de regiões desérticas. O uso dessa modalidade de proteção e ocultação da cabeça tem inspirado jovens em suas manifestações urbanas, político-sociais, nas Américas. Apresentando tons acinzentados mais claros, na pele e na veste, a figura parece emergir da fumaça negra; é vista até a cintura, erguendo o braço esquerdo. Eis que, segura firmemente a forquilha da atiradeira, cujos elásticos emparelham para o arremesso, descrevendo uma vigorosa diagonal: os dedos da mão direita da personagem apertam o suposto objeto de dimensões reduzidas para o mencionado arremesso. Considerando ainda a figura da direita, nota-se que ela foi construída com um desenho anatômico mais naturalista; seu autor, dando ênfase à tonalidade cinza nesse contexto cromático, acrescentou a massa de contorno verde ao redor de sua cabeça, parte da atiradeira e membro superior direito.

Ao mirarmos o fundo da composição em que, supostamente, encontra-se a representação em traços esquemáticosdeum complexo de edifícios e postes muito altos, percebemos que há elementos bem próximos a esta configuração; estes sugerem, de certa forma, quererem atingi-la ou dela cobrar algo intransferível ou imaterial. A mão que segura o coquetel explosivo, a fumaça vermelha que deleescapa, as nuvens de fumaça negra, a mão que segura a forquilha da atiradeira e o espaço entre a bifurcação da

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mesma,por meio do qual o objeto arremessado vai se projetar, formam uma espécie de cerco: todos os elementos visuais ali se amotinam com suas vozes e armas, cercando o suposto complexo imobiliário.

Todavia, na parede real tendo a pintura em amarelo, bastante desgastada, alguns elementos participam da cena: são cavidades, respiradores, orifícios para entrada do ar, ventilador embutido na parede. Curiosamente, a configuração desse ventilador, contribui para a presença do objeto arremessado pela atiradeira.

Seria oportuno mencionar que acima do painel, numa larga placa, são vistas as letras que compunham o nome do estabelecimento comercial que funcionava nesse imóvel. O nome era “Sol Nascente”. As impressões das letras quase que desfeitas,mas que permanecemnadiafanidade,assumem papéis actanciais, acrescentando significadosao texto e vozes enunciativas de renascimentos.

O bairro Boa Esperança caracteriza-se por ser residencial e abrigar, paralelamente, os espaços oficiais da Universidade Federal de Mato Grosso. A Universidade, com suas metas,desenvolve projetos entre instituições nacionais e internacionais. Na perspectiva do ensino, e considerando as éticas envidadas por governos petistas, são consideradas as ações intercambiais para o alunado procedente do Caribe, da África e de países latino-americanos, dentre outros. Exibindo um cenário próprio e localizado numa região em que o rio Coxipó do Ouro, o tangencia, compõe-se de diversos estabelecimentos comerciais, religiosos, de quartel de forças auxiliares, etc. Tais estabelecimentos e outros locais públicos são frequentados por todos os segmentos acadêmicos, assim como por moradores e funcionários que trabalham no bairro. O aluno africano Toni Bernardo, no transcurso de cinco anos aproximadamente, vivendo no Brasil, frequentava alguns dos estabelecimentos dessa região.

Passamos à leitura e descrições do Texto II, conforme se visualiza na Ilustração 2:

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Ilustração 2 – Rosto da Mocinha Afro-Ibero-americana (Texto II)

Fonte: Arquivo pessoal da autora. Coordenação de registros fotográficos: a própria autora. Foto: Ray Souza, out. 2014.

A excursão pedagógica, cognitiva, conforme a denominamos, presentemente, saiu do bairro Boa Esperança e segue com destino aAvenida Coronel Escolástico, no centro de Cuiabá: logo após a esquina dessa rua com a Prainha, paramos num ponto da curva, que inspira cuidados, posto que ali trafegam veículos em alta velocidade. Ao alcançarmos a calçada desse trecho da rua, observamos um conjunto de prédios que se apresenta em estado de abandono e avaria. Porém, nos muros e paredes que ainda restam, fixa-se um sequencial de textos visuais com temas diferenciados. Na verdade, localizamo-nos em frente ao Morro da Luz; o tempo dá sinais de chuva que está prestes a cair e arrefecer o calor. Este pequeno parque ambiental, com suas estreitas alamedas e arvoredos sombrios, se enche de luminescência ao receber o festival da chuva.

Após um breve exame dos textos que ali se davam a ver, deparamos com o rosto da mocinha afro-ibero-americana entre os lajedos de um muro de concreto. Nascido, provavelmente em terras brasileiras, eis que ele se manifesta num espaço dessemuro, constituído de lajedos

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na cor ocre-escuro. A pintura do rosto se instala em toda a altura do muro numa superfície equivalente à proporção de quatro lajedos na posição horizontal.Parecendoum espaço cuja largura é bastante restrita em relação à estatura desse rosto, nós o chamamos de janela/muro análoga ao de uma escotilhaquadrada. O rosto é desveladopor uma espécie de moldura feita pelos dedos das mãos da mocinha, que atingem a altura do maxilar superior. A tez da figura comporta valores cromáticos atribuídos aos terras, aqui, porém, trata-se de um terra de sienne natural. O contorno dos lábios, unhas,escleras, algumas notas no relevo nasal e nas pupilas estão em branco, o que produz um jogo agradável de valores neutros. Há uma figura de cachorro à esquerda,mais adiante, instalada em outros lajedos, exibindo valores cromáticos equivalentes.

A mocinha afrocom suas duas mãos postas sobre a face não parece sentir-se presa a um espaço tão estreito. As impressões de que ela está pensando são consistentes, e o seu pensamento parece ultrapassar esses espaços que poderiam ser agônicos, ao menos, nesse muro de concretas instalações e de prováveis evocações.Olhando fixamente o que se passa na rua, a exemplo das intempéries desta primavera, o texto nos induz a pensá-lo visualmente e entreolhar o seu interior.

Ao retomarmos os aspectos referentes ao muro de concreto,observamos que nessa janela-muro, os elementos partícipes da cena estão cercados de lajedos os quais passam a sensação de pressionar ambos os lados da figura, a ponto de considerarmos a sugestão visual de redução de espaço para rosto e mãos.Todavia, a despeito de ilusões visuais, as “pressões” feitas contra a figura pelos lajedos, evocam a atuação de forças opressoras decorrentes da mentalidade capitalista, do pensamento racista, da produção de valores socioculturais, completamente encobertas pelo outro.

No rosto livre da jovem afro-ibero-americana não se manifestam traços de molestamento, medo ou preocupação, sequer sentimentos proporcionados por atos de expulsão ou de exclusão, desse ou de outros lugares. No entanto, há nostalgias que nesta face se mostram indelevelmente, talvez resultantes de experiências passadas ou de tentativas de compreensão do mundo; nostalgias que perpassam os sonhos e se agregam aos projetos de vida. A mocinha afro-ibero-americana está olhando parafrente, silenciosa, parecendo guardar um sorriso dentro de si, permanecendo pensando. O sorriso secreto

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que a jovem negraimprime nesta tarde, parece estarnuma relação intertextual com os secretos rituais de amor pela terra e de esperança quilombolas, descritos por Castilho (2011) em sua bem cuidada obra sobre a Comunidade Negra Rural Mata-Cavalo:

A terra pode simbolizar bem econômico para alguns, mas, por exemplo, em Mata Cavalo, significa a vida, a liberdade, a sobrevivência, a história respeitada da ancestralidade, a felicidade, a morada dos deuses, um refúgio onde se pode esconder da violência e da exclusão da cidade. Onde se podem encontrar solidariedade, relações de parentesco e compadrio. Onde a humanidade se faz mais presente. Onde os pés gostam e se alegram em pisar, é uma terra que pode ser considerada ‘minha’, ainda que doa pelo fato de quem está nela não saber como pisá-la, e o que fazer dela. (CASTILHO, 2011, p. 23, grifo da autora).

Deixamos a jovem a olhar muito além do Morro da Luz; dessa maneira,seguimos com a inspiração de um sorriso oculto e do aroma da terra molhada pela chuva.

Seguidamente, o roteiro perceptível e descritivo-analítico continua em meio à exposição do Texto III (Ilustração 3):

Ilustração 3 – O Barco de Papel (Texto III)

Fonte: Arquivo pessoal da autora. Coordenação de registros fotográficos: a própria autora. Foto: Ray Souza, out. 2014

Artista: Babu 78

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A nossa excursão agora se detém diante de um texto feito sobre uma parede, na Rua Pedro Celestino.

Trata-se de uma cena pintada com forte neutralidade de cinzas. Um barco de papel em maior estatura navega sobre um pequeno mar que poderia ser um lago, numa forma de elipse; o autor parece ter pretendido construir um círculo em perspectiva, talvez,razoavelmente, para aproximar essa figuração à altura de nossos olhos. O barco está cercado de oito barbatanas dorsais, provavelmente de tubarões que, nadando abaixo do nível da água, em direções distintas, descrevem movimentos desencontrados, às vezes, umas de frente para as outras, como se os animais aquáticos cheios de fobia e voracidade, estivessem prestes a alcançar a presa.

Como dissemos, o autor concebe o mar numa forma elipsoide, e o faz como se essa configuração fosse mesa suspensa, afastada do res do chão da rua. A noite se instala numa ogiva alongada, muito negra, e a lua cheia ao alto e à direita da composição, se entinta num tom acinzentado.

A cena foi instalada numa superfície de parede externa, de um imóvel que apresenta evidentes indícios de avaria. Entretanto, não sabemos se foi ou não proposital a escolha topológica do artista, porquanto, a boca de uma tubulação se encontra aparente na parede real, e este se localiza abaixo e a extrema direita desse lago/mar.

Ao provocar a sensação de ameaça e de angústia, o texto lembra situ-ações conspiratórias e de perseguições tematizadas em filmes de suspense; com o mesmo clima de opressões, o texto recorre a atos de cruel violência, ocorridos nas noites das ruas de Cuiabá, em seu centro histórico, no final da década de 90, século XX. A memória de sonhos, cujo clima é demasia-damente aterrorizante não está descartada nas evocações deste texto.

No barco de papel não se avista nenhum navegante, a menos que ele ou eles estejam escondidos nessa embarcação feita de tecido vegetal. A memória de sonhos, pesadelos, filmes e acontecimentos da realidade, sobre os quais, na maioria das vezes, não encontramos uma lógica, e que, em se tratando de sonhos, deles nos aliviamos quando despertamos, podem encontrar na Charge de Babu78 formas de libertação. A charge intuicionante nos induz às vias de acesso, bem como a possíveis reversões de impasses... Ao lembrarmo-nos da boca da tubulação deflagrada na parede, poderia a água do lago/mar escoar por esse encanamento, promovendo o inesperado revertério da situação: imaginemos esses animais nadando e migrando para outras charges.

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A composição de Babu78 traz insinuações de um tipo de comunicação visual utilizado em editais. O “Memorial Justiça para Toni” apresenta tais componentes. Esse mesmo autor assina outras composições com as mesmas características, cujos títulos já se encontram catalogados em nossa pesquisa.

Caberiam algumas definições sobre a Charge e o Discurso Chargístico, tendo em vista que essa forma de comunicação visual foi encontrada em larga escala, nas coletas de nossa pesquisa.

Charge é um estilo de ilustração que tem como meta satirizar, por meio de uma caricatura. Tal estilo relata algum acontecimento real com um ou mais personagens envolvidos. A palavra é de origem francesa e significa carga, ou seja, exagera traços do caráter de alguém ou de algo para torná-lo burlesco.

Mais do que um simples desenho, a charge é uma crítica político-social mediante a qualo artista expressa graficamente sua visão sobre determinadas situações cotidianas através do humor e da sátira. Para entender uma charge, não é preciso ser necessariamente uma pessoa culta, basta estar a par do que acontece ao seu redor. A charge pode ter um alcance maior do que um editorial; por exemplo, a charge, como desenho crítico, é temida pelas pessoas com poder. Nesse sentido, quando se estabelece censura em algum país, a charge pode ser o primeiro alvo dos censores.

No discurso chargístico, as charges recorrem a variadas estratégias de discurso para produzir os efeitos cômicos e reflexivos a que se propõem. Na maioria dos casos, apenas alguns procedimentos são empregados em uma mesma produção, mas certos elementos mostram-se frequentes ou mesmo essenciais e, por vezes, aparecem juntos.

O elemento visual é característica presente em toda e qualquer charge. As codificações visuais proporcionam maior compreensão da crítica que o chargista pretende passar. É claro que, na maioria das vezes, às imagens se alia a linguagem verbal para enriquecer o discurso elaborado (MORETTI, 2013).

Se pensássemos numa personificação humana para o objeto e animais atuantes no texto, quem seria o barco e quem seriam os supostos tubarões?

Se acaso a água do mar/lago escoar completamente (via encanamento), a charge de Babu78 colocará ao alcance de quem passar na rua, um barco de papel para a navegação em outros mares.

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Pronúncias finais

A excursão pedagógica, realizada nas ruas da cidade de Cuiabá, permitiu-nos exercitar com razoável compreensão, o que os textos visuais dizem e como eles fazem para dizer o que dizem (BARROS, 1997). As apreensões que nem sempre se completaram, deixando lacunas em aberto, aproximaram-nos de um mundo inteiramente novo, de tombamentos históricos (e não históricos), de ruas anciãs e casas esquecidas. Mundo pronunciante de portas e janelas, muros e paredes, de estórias pintadas sobre si que, diante do olhar contemporâneo, deixa entrever outras produções de significados.

No decorrer de nossa excursão, que já contém leituras inacabadas, percebemos que o material examinado pode ser útil aos projetos de educação que envolvem políticas educacionais e atualização de currículos. Os textos visuais que suscitam problematizações podem colaborar como estratégias didáticas, mediante leituras de realidades, contextos e produção de epistemes.

A pedagogia proveniente das ruas – isenta de tradições, ensinou-nos que “a palavra verdadeira”, a práxis pode ser entendida “como educação descolonizadora e descolonial em que se respeite a outridade de cada um, para além da idolatria atribuída à autoridade das tradições, à autoridade do método, à autoridade do currículo.” (ZANOTELLI, 2014,p. 499).

Em outro contexto notamos que, as produções feitas por moradores e não moradores de rua, artistas e não artistas podem revelar suas identidades como pessoas visíveis na sociedade; mobilizar conexões sociais e formais entre instituições e indivíduos, empenhados no restabelecimento da dignidade humana com a justiça social (CASTILHO, 2011).

A contemplação do trabalho dos grafiteiros, cuja grafitagem é feita nos muros da cidade de Cuiabá, deu-nos perspectivas de juízos, de educação, de trabalhos coletivos e libertadores: Foram desmontados preconceitos sobre a atuação desses artistas, pelo fato de serem considerados invasivos, por se valerem de exagerações e chamar a atenção de elementos abstratos; por saturarem a grafitagem. Em contrapartida, reconhecemos que os grafiteiros criam condições criteriosas de trabalho e o elaboram mediante a seleção de espaços, valendo-se de horários que não prejudiquem a população; por

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outro lado, eles intervêm pictoricamente nos objetos e superfícies avariadas, dando-lhes outras significações; porém, fazem uso da espacialidade de muros e paredes de imóveis que, embora habitados, não são utilizados no dia-a-dia, tendo para esse fim a permissão dos proprietários ou locatários. Os grafiteiros abordam temas relacionados aos acontecimentos da realidade, ocorridos na própria cidade, contando estórias que precisamos memorizar, trazendo informações sobremodo importantes, incompatíveis com as ações televisivas globais, afeitas ao autoritarismo neoliberalista. Para contar tais estórias, autores como Babu78, Amarelo e DiD incorporam o discurso chargístico em suas obras, e o fazem em larga escala, e de maneira surpreendente, conforme as descrições já feitas no corpo deste ensaio. As manifestações concebidas pelos grafiteiros – na maioria das vezes – dotam-se de valor artístico; exibem o conhecimento do desenho de anatomia, da percepção composicional. Excepcionalmente artistas como Babu78, são convidados a integrar exposições coletivas em galerias e salões de arte; entretanto, a sua produção artística não está balizada pelo crivo mercadológico, sendo a tônica de seu trabalho, a ressignificação de espaços localizados na rua e ao ar livre, sem a intervenção dosmarchantdes tableaux. Os textos manifestos pelos grafiteiros não participam (e não aspiram participar) do mundo oficial vinculado a museus e galerias de arte, o que lhes confere a vocação dos espaços e da voz da rua.

Lembramos que, neste ensaio, são preliminares os contatos com o objeto de pesquisa eleito, os textos visuais manifestos em logradouros da cidade de Cuiabá, na perspectiva de um trabalho pedagógico libertário. Devemos, contudo, salientar que, mediante o desenvolvimento desta pesquisa, com presumíveis desdobramentos e intervenções, as leituras em torno das singulares manifestações de rua, forjarão espaços de dialogicidade cada vez mais profundos: Quebrando o silêncio de nossas perplexidades, faz-se necessário o uso de pronúncias possíveis, pois “[...] não é no silêncio que os homens se fazem, mas na palavra, no trabalho, na ação-reflexão.” (FREIRE, 2014b).

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Referências

A BÍBLIA SAGRADA. 2. ed. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 1993.

BARROS, Diana Luz Pessoa de. Teoria semiótica do texto. São Paulo: Ática, 1997.

CASTILHO, Suely Dulce de. Quilombo contemporâneo: educação, família e cultura. Cuiabá: EdUFMT, 2011.

FALKENBACH, E. M. F. Texto/Contexto. In: STRECK, Danilo; REDIN, Euclides, ZITKOSKI, Jaime José (Orgs.). Dicionário Paulo Freire. Belo Horizonte: Autêntica, 2008. p. 408-410.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2014a.

_____. Pedagogia da indignação: cartas pedagógicas e outros escritos. São Paulo: Paz e Terra, 2014b.

GRUPOS DE ESTUDOS, EDUCAÇÃO E MERLEU-PONTY. Projeto RuAção. Grupo de Pesquisa Movimentos Sociais e Educação. Cuiabá: UFMT, 2014. Disponível em: <http://projetorua.gempo.com.br/?author=2>. Acesso em: 13 nov. 2014.

MERLEAU-PONTY, Maurice. A dúvida de Cézanne. In: CHAUÍ, Marilena (Cons.). Merleau-Ponty: textos escolhidos. São Paulo: Abril Cultural, 1980a.

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MORETTI, Fernando. Qual a diferença entre charge, cartum e quadrinhos. Disponível em: <http://www.aleph.com.br/ moretti/artigos_diferenca.htm>. Acesso em: 13 nov. 2014.

STRECK, Danilo; REDIN, Euclides; ZITKOSKI, Jaime José (Orgs.). Dicionário Paulo Freire. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.

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RuAção: Das epistemologias da rua à política da rua

ZANOTELLI, Jandir João. Educação e descolonialidades dos saberes das práticas e dos poderes. Revista de Educação Pública, Cuiabá, v. 23, n. 53/2, p. 491-500, 2014.

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La exclusión de los gitanos en el contexto europeo contemporáneo:

un desafío para la democracia, confrontada a políticas públicas excluyentes

José MARÍN

Introducción

La exclusión es un concepto que no solo ha tomado una gran importancia en el dominio de las ciencias sociales, sino también en le debate político contemporáneo. Actualmente, la exclusión es una situación opuesta a la inclusión, en el discurso político y en los medios de comunicación. Forma parte de otros conceptos clásicos de las teorías sociales, tales como la pobreza, la marginalidad, la integración, la desigualdad o la justicia (PEIFFER, 2012).

El concepto de exclusión define en general, una situación extensa, multidimensional de falta de posibilidades, de participación y acceso a los recursos. Acceso al mercado laboral a la integración, en condiciones dignas a la sociedad. Acceso a los derechos económicos: salarios, empleo y bienes materiales (FARZIN, 2011). Exclusión de servicios sociales, como la salud, la educación y los servicios públicos y finalmente exclusión de la vida social y cívica. Para ciertos autores el concepto de exclusión está considerado como una categoría central para el análisis crítico de la sociedad contemporánea. La exclusión puede asociarse también, a la perdida de reconocimiento o dignidad e identidad y en general a la pérdida de relación social (KRONAUER, 2006; PEIFFER, 2012).

La exclusión ha sido una constante histórica, desde la implantación del colonialismo y se ha acentuado profundamente ahora, con la expansión del capitalismo salvaje en su fase neoliberal, con el proceso de Globalización del sistema capitalista (FERRERO, 1994).

La exclusión provocada por el capitalismo, no solo multiplica la precarización de las condiciones sociales, sino también deteriora profundamente la condición humana. Asistimos hoy en día, al desafío de la preservación de la dignidad humana y al desafío capital,

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de imaginar un modelo alternativo de sociedad, que nos ayude a construir otro mundo más justo y solidario

En este texto nos limitaremos a una reflexión sobre el papel que juega el modelo político de Estado-Nación en relación con la exclusión. Consideramos al Estado, como un ente jurídico de gestión política, económica y también gestor y mediador de la diversidad cultural y religiosa de las sociedades europeas actuales. Somos conscientes, que abordamos un tema basto y complejo y que nuestro texto, tiene un carácter introductorio. En consecuencia, posee muchas limitaciones y deficiencias. Esperamos, que trabajos posteriores podrán superarlo y enriquecerlo.

Los Gitanos, son víctimas, entre otras minorías (inmigrantes y marginales) de la estigmatización, que los señala como responsables de algunos disfuncionamientos, que hoy en día, sufren las sociedades europeas, atrapadas en un profundo proceso de mutación debido a la profunda crisis económica social y política.

Europa atraviesa una de sus más graves crisis económicas y políticas, que provocan una precarización social generalizada. Contexto en el que, se degradan las condiciones de vida y donde se destruye y precariza el mercado de trabajo. Desapareciendo así, la perspectiva de futuro, que provoca a su vez, una profunda crisis de identidad y un nuevo proceso de emigración. La elevadísima porcentaje de desocupación, que en países como España, Portugal, Italia, Francia, Inglaterra son muy importantes, sacrifican el futuro de los jóvenes, en un escenario, donde el monstruo del capitalismo neoliberal, nos demuestra que es capaz de tragarse a sus propios hijos (EUROPEAN LEFT, 2013).

En este contexto, la problemática de la exclusión y la estigmatización de los gitanos, que poseen además, la ciudadanía europea, constituye la mejor demostración, de las limitaciones del ejercicio democrático en el contexto europeo actual. Las acciones de exclusión en contra de los Gitanos, se cristalizan en la aplicación de políticas públicas excluyentes y discriminatorias.

La discriminación, en todas sus manifestaciones, es el producto de un orden político, jurídico, social y económico injusto, casi siempre justificado por una ideología y una construcción cultural que legitima la desvalorización de los excluidos. La desvalorización antecede y justifica la inferioridad, que se les atribuye a las

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poblaciones discriminadas, en diferentes contextos históricos (WIEVIORKA, 1996).

Desde la época de las Cruzadas, pasando por la época colonial, en el contexto europeo, americano, africano o asiático, los calificativos dados a los pueblos oprimidos por el poder colonial, fue el de considerarlos, como casi-animales, como paganos, primitivos, salvajes o subdesarrollados. Todos estos términos, han servido para legitimar e institucionalizar un orden injusto, proceso que continuo después de la fundación de los Estados y de las repúblicas, denominadas democráticas. En el caso de los gitanos, esta situación histórica de inequidad, se ha prolongado hasta nuestros días, su nomadismo o su precaria inserción sedentaria en las sociedades urbanas, han sido los pretextos para estigmatizarlos, atribuyéndoles un comportamiento dudoso, que ha permitido justificar la marginación y la exclusión de la que son víctimas los gitanos (PAUGAN, 1996; PEIFFER, 2012).

Desvalorizar al otro, al dominado, ha sido la regla de oro de la opresión, es la justificación primera, para legitimar la dominación, la discriminación y la exclusión. Estas prácticas sociales inaceptables, legitimadas muchas veces, por políticas públicas, han permitido y permiten institucionalizar situaciones injustas en las relaciones humanas.

La discriminación, la marginalidad y la exclusión que sufren los gitanos, se inscribe dentro de un contexto histórico, con las características y peculiaridades, que corresponden a las diferentes sociedades, donde acontece este proceso.

La historia de la humanidad está marcada por las secuencias de las migraciones, muchas de ellas desesperadas, provocadas por situaciones históricas diversas, que tienen como preocupación central, la lucha por la sobrevivencia de la especie humana. En el contexto actual de la Globalización, asistimos a un proceso de migración desesperada, de más de doscientos millones de personas a través del mundo.

Vivimos actualmente, el regreso a un nomadismo de nuevo tipo, en el que sus actores buscan como objetivo primero, una sobrevivencia precaria, muchas veces en condiciones infrahumanas. Los gitanos forman parte de este nuevo torbellino histórico, y en las peores condiciones. La Globalización provoca grandes mutaciones sociales, que generan muchos efectos perversos, crisis económicas, sociales y culturales, que destruyen el futuro de los pueblos y que producen

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sistemáticamente, la discriminación, la marginalidad y la exclusión que las acompaña.

Actualmente, en el contexto europeo, después del desmantelamiento de la ex Unión Soviética (1999-2001), seguida por la “democratización”, que precedió en los países del Este de Europa, asistimos a múltiples mutaciones, de las que son víctimas los gitanos, en tanto, una de las minorías más frágiles. En esta nueva situación histórica, los gitanos son las víctimas de una estigmatización, que provoca una sistemática discriminación y una marginalización sin precedentes.

Los gitanos son percibidos por los movimientos populistas europeos de la extrema derecha y algunos gobiernos, como el italiano y el francés, entre otros, como el “chivo expiatorio”. En el imaginario colectivo son considerados, como los responsables de los problemas y los disfuncionamientos sociales, que provoca la crisis económica actual. Sobre todo, en la Europa del Este, Rumanía, Polonia, República Checa, Eslovaquia, Hungría, Bulgaria y los países surgidos del desmembramiento de la Confederación de Yugoslavia, etc.

En la República de Bosnia, en octubre de 2014, una ley aún impide a las minorías como los judíos o gitanos, de aspirar a la presidencia. Este cargo solo es accesible a sus tres presidentes rotatorios, representantes de las tres comunidades mayoritarias: Bosnios (musulmanes), Serbios (cristianos ortodoxos) y croatas (cristianos católicos) Bosnia sigue sin emprender el camino para cambiar su constitución discriminatoria, que permita concurrir a los ciudadanos de sus minorías para ser candidatos a la presidencia. Esta actitud aleja su candidatura para formar parte de la Comunidad Europea. Pese a las reiteradas advertencias comunitarias y el hecho de haber sido condenada dos veces por el Tribunal Europeo de los Derechos Humanos (SAUQUILLO, 2014).

En muchas ocasiones, como en Italia (2008-2013) o Francia (2010-2014), esta percepción ha orientado el desarrollo de políticas públicas, que permiten señalar, detener y expulsar a los gitanos de sus respectivas sociedades, aún cuando estos, son teóricamente y jurídicamente ciudadanos europeos.

Nuestra intención es abrir la discusión y la reflexión, sobre las políticas públicas europeas y las flagrantes limitaciones de la llamada Democracia Occidental. Reflexionar, cómo asumimos que, dentro de

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una sociedad europea, autodefinida como abierta y tolerante, puedan elaborarse políticas de estigmatización y de discriminación racista, contra los gitanos y otras minorías, como los inmigrantes. Muchos de ellos, provenientes de América Latina, colaboran con su trabajo, mal remunerados, al enriquecimiento de las economías de la gran mayoría de los países europeos.

Iniciaremos nuestro enfoque, primeramente, con una breve introducción histórica sobre los pueblos gitanos, su origen, sus migraciones y su precaria presencia actual en Europa.

En segundo lugar, para comprender cómo se generan las políticas públicas, desde el Estado, trataremos brevemente, sobre la formación del Estado en Europa y el carácter discriminatorio del modelo político Estado-Nación, como un modelo mono-cultural, inapropiado en contextos multiculturales. Haremos una referencia comparativa, entre la exclusión gitana en Europa y la discriminación de los pueblos indígenas en el continente americano. Aún cuando, gitanos e indígenas corresponden a horizontes históricos y culturales muy diferentes, ambos grupos son víctimas del mismo modelo político de Estado.

Este modelo político de Estado, desarrolla políticas de asimilación, denominadas de “integración nacional”, que en la realidad, corresponden a políticas de asimilación, basadas en naciones míticas, con lenguas y culturas oficiales, supuestamente homogéneas, en detrimento de toda la diversidad cultural y lingüística, que realmente existe en los territorios, que estos Estados declaran bajo su soberanía.

El modelo político de Estado-Nación se originó en Europa, entre los siglos XVI y XVIII, y se consolida después de la Revolución francesa de 1879. Su aplicación como modelo político de gestión de la sociedad, no se limita a las sociedades europeas, sino también, se extiende a las nuevas repúblicas americanas y a otros continentes. El modelo político de Estado-Nación, supone que, el Estado, representa una nación mítica, con una cultura y una lengua oficiales. Este supuesto político y jurídico, aplicado en contextos multiculturales, compuesto por diferentes etnias, naciones o minorías étnicas, jurídica y políticamente, no reconocidas oficialmente, provoca la discriminación, la marginalidad, la exclusión y en algunos casos, la eliminación física de muchos pueblos y grupos humanos.

La identidad nacional y el Nacionalismo extremo, como ideología exclusiva, durante la historia reciente europea, ha dejado una secuela,

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de nefastas repercusiones, sobre el respeto a la diversidad cultural y religiosa, y han constituido verdaderas afrentas contra los derechos de los pueblos y de los individuos. Las experiencias de purificación étnica realizadas en Turquía, por los militares nacionalistas turcos, inspirados por Ataturk, ejecutaron el genocidio, que sufrieron un millón y medio de armenios, entre 1916-1919. Este hecho histórico, aún no asumido por el Estado turco, fue seguido por el holocausto provocado por los nacional-socialistas alemanes, durante la segunda guerra mundial (1939-1945) que hizo víctimas, a cientos de miles de gitanos y a millones de judíos. Este genocidio incluyo también a muchos contestatarios del régimen e incluso a discapacitados físicos.

El final del siglo pasado en Europa, asistimos a la dolorosa experiencia de la purificación étnica en la ex Yugoeslavia. Europa que creía haber enterrado a los fantasmas del apocalipsis, que provocaron las dos guerras más nefastas, vio renacer la violencia del nacionalismo, del racismo y la exterminación física de los diferentes, y excluidos, biológica, cultural y religiosamente tipificados. Esta tragedia que desmembró la antigua Confederación Yugoeslava, contó con la complicidad de varios actores militares, políticos y religiosos, que participan en la disputa de la hegemonía geopolítica contemporánea (DELANNOI, 1993).

En la Europa actual y en otros países de América, nos encontramos frente a una sociedad humana, que muestra su incapacidad para convivir y asumir la riqueza de la diversidad cultural. Los hechos históricos, a los que nos hemos referido, son ejemplos elocuentes de este proceso. Los gitanos y otras minorías, como los Kurdos entre otros, han sido las víctimas en la mayoría de estos hechos, desde Turquía, pasando por la experiencia alemana, hasta Yugoeslavia, los gitanos han sufrido, en cada época, de estos crímenes contra la humanidad (DELANOI, 1993). El Estado, en su afán de administrar y gestionar la sociedad, genera políticas públicas, restrictivas y excluyentes, a las cuales son confrontados los gitanos, entre otras minorías, así como los inmigrantes, que se encuentran en situaciones precarias, tanto social, como jurídicamente, lo que no les permite integrarse o insertarse en las sociedades europeas actuales. Las políticas públicas determinan las relaciones, entre los diferentes actores, que son los portadores de la diversidad cultural y religiosa. Esta realidad social, es la que impregna a la actual sociedad multicultural europea y también a las sociedades americanas (MARIN, 2005a, 2007, 2010).

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Finalmente, propondremos, algunas reflexiones y cuestionamientos, sobre las limitaciones de las políticas de integración, propuestas por el Estado, que teóricamente deben asumir la tarea de insertar a los diferentes actores sociales de la diversidad y la pluralidad, dentro de un marco democrático, del cual también forman parte, teóricamente, los gitanos y otros grupos minoritarios marginales.

Somos conscientes, que abordar y tratar de analizar la discriminación y la marginalidad, que vehiculan las políticas públicas, responsables de la intolerancia y la discriminación, en contra de los pueblos gitanos, en las actuales sociedades europeas, constituye un enorme desafío.

Nuestra problemática, es un tema amplio, vasto y muy complejo, y en consecuencia, no pretendemos tratarlo en su totalidad. Nuestra intención es limitarnos, a proponer la introducción de un esbozo histórico y algunos cuestionamientos y reflexiones.

Nuestro trabajo está inspirado entre otros, principalmente, en la investigación realizada por Rachel Magre, sobre las políticas públicas, aplicadas por la Confederación Suiza, frente a los gitanos suizos, denominados “Jenish” (MAGRE, 2008; MICHON, 1993, 1997).

Orígenes geográficos e históricos del pueblo Gitano

Probablemente son originarios del norte de la India, región a partir de la cual, antes de llevar adelante su emigración, y posterior diáspora, realizaron una vida nómade, en tanto que artistas, músicos, danzantes y artesanos, a través del antiguo territorio de la India, que comprendía antes el actual Pakistán. Es solo a partir del siglo X, que por razones no esclarecidas, comienzan a emigrar de la India, iniciando un periplo de Este a Oeste, que configuro desplazamientos migratorios sucesivos hacia Afganistán, luego Irán, atravesando el Cáucaso, que los llevo a Constantinopla (Turquía), antes de dispersarse en el Asia Central. Estambul fue la puerta de entrada hacia Mesopotamia y el Medio Oriente, para llegar hasta el norte del Africa. Existen textos que hacen referencia de la presencia gitana en Grecia y Creta a partir del siglo XV (CAHN, 1977; LIÉGOIS, 1977; MAGRE, 2008; VAUX DE FOLETIER, 1970, 1983).

Posteriormente, a principios del siglo XV, hay testimonios de su presencia sobre el territorio europeo. Grupos de gitanos,

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accedieron por diferentes vías, en olas migratorias sucesivas desde el Medio Oriente, Grecia y por diferentes vías llegaron a Europa occidental y posteriormente, se dispersaron hacia la Europa del Este. Existen referencias de su llegada en Alemania, Suiza, Francia, España, Italia, los Países Bajos, los países Escandinavos, Gran Bretaña, llegando a implantarse en el norte del Africa y más tarde vía Portugal y España, viajaron para América (DOMINGUEZ, 1968; MARIN, 1994). En Suiza, se registran su presencia entre 1418 y 1419, en los otros países europeos existen las mismas referencias. Se denominan “Bohemians”, Gitanos, “Romanichels” “Roms”, “Gypsis”, “Gitans”, Ciganos, “Tsiganes”, “Manouches”, “Sintis”, “Zíngaros”, Ciganos o “Gente de Viaje”, según las diferentes denominaciones lingüísticas, a toda persona que se reconozca y se identifique con las particularidades culturales, propias a esta etnia:

a) Roms: es la denominación dada a todas las tribus que hablan el Romaní (próxima del sanscrito). Se calcula en 8 a 10 millones en el mundo, según la Asociación internacional Unión de Roms, reconocida por las Naciones Unidas en 1979.

b) Sinti: se denomina así a los descendientes de Roms emigrados en Europa central en el siglo XV, Presentes sobre todo en Alemania, Italia y en Francia, bajo la denominación de Manouches, (significa hombre/Romanichel).

c) Tsiganes: el primer texto de un monje del monte Athos (Grecia), que los menciona “Atsingani”, data del año 1100. Atsingani en griego, quiere decir “intocables”, secta bizantina de músicos y adivinos, Este término es la fuente de la cual se deriva Tchingani en turco, Cygan en polaco, Cigano en portugués. Zingaro en italiano, Gitano en castellano, Gitan en francés, Zigeuner en alemán. Denominaciones consideradas injuriosas por algunos, ya que fueron utilizados por los nazis, con toda la carga histórica de desvalorización y estigmatización que implica. Algunos gitanos asumen estas denominaciones con orgullo, por afirmar la identidad de su etnia.

d) Yenisch: Un lengua, una cultura y una historia propia. Es una lengua producto histórico de un mestizaje cultural entre el Romaní, el alemán, el hebreo, el “yidish” denominación asociada en gran parte a los gitanos suizos, sedentarizados (HEUNKER, 2009; MICHON, 1993).

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Más allá de las denominaciones, los gitanos han circulado en el sistema de representaciones sociales, que han construido y construye el imaginario colectivo europeo a través de los siglos, entre la curiosidad, sobre el “buen salvaje”, la adulación y la detestación o el “chivo expiatorio”.

El gitano representa para la sociedad sedentaria, el extranjero más próximo, la minoría más frágil, sobre la cual podemos proyectar todos nuestros prejuicios, que construyen las distancias y la fragmentación, entre los grupos de una sociedad. La ignorancia sobre el “otro”; el “diferente a nosotros”, ha sido siempre un buen pretexto, para desvalorizar y descalificar el “otro”, y ha sido una fuente eterna de conflictos, que ha generado la discriminación y en algunos casos, la eliminación física, durante la historia de nuestra humanidad. Las políticas públicas son tributarias de estas representaciones y percepciones sobre los “otros”, de los diferentes y de los minoritarios. La política pública esgrime la justificación ideológica y jurídica, para institucionalizar el etnocentrismo y el racismo de las sociedades que las producen y del Estado que las justifica.

Los denominados gitanos, como se los nombra en castellano, son en principio nómades, aún cuando hay muchos que se han vuelto sedentarios, por voluntad propia, o forzados por las políticas públicas de asimilación, impuestas por los diferentes Estados europeos (KREISS, 1997; MAGRE, 2008; MARIN & DASEN, 2007). Sobre sus orígenes, existen en el imaginario colectivo de las sociedades sedentarias europeas, múltiples leyendas, construidas a partir de prejuicios etnocéntricos y racistas, con una clara tendencia a desvalorizar y estigmatizar estas poblaciones. Los gitanos también han construido otras leyendas o mitos, presentándose como originarios de la Mesopotamia y como descendientes de los egipcios, lo que explica la denominación de “Egypti” en griego y a la derivación de las denominaciones, como “Gypsies”, “Gitanos” o “Gitans”. Algunos se atribuían títulos nobiliarios o relacionados a ciertos nobles de la Europa del Este (LIÉGEOIS, 1977). Gracias a la investigación lingüística, al estudio de la fonética comparada y la etimología, sabemos que sus lenguas tienen una marcada relación con el sanscrito y actualmente, debe ser el Indi, la lengua más cercana a las diferentes variaciones dialectales del Romaní, la lengua gitana (LIÉGEOIS, 1977, 1994, 1996).

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La identidad, la familia, las creencias religiosas y el mestizaje cultural

Los gitanos pertenecen al territorio de las sociedades tradicionales, articuladas por la oralidad, los ritos y por una visión del mundo asociada al espacio, más que al tiempo. Su relación está centrada en el tiempo presente y las necesidades puntuales, que deben resolver. El tiempo regulado por un horario y un calendario, es una concepción que articula mayoritariamente a las sociedades sedentarias, asociadas a una concepción racional del tiempo, como referencia de la vida económica, social y cultural. El nomadismo no es una frontera infranqueable en términos culturales, entre gitanos y sedentarios. El nomadismo se encuentra en ambas, ha evolucionado en relación a las exigencias históricas, económicas y sociales y ha producido profundos cambios culturales en la vida de la gente (LIÉGEOIS, 1977; VAUX DE FOLETIER, 1970, 1983).

Las migraciones actuales a través del mundo constituyen, los nuevos rostros del nomadismo contemporáneo. Irónicamente, la globalización económica actual, alienta y exige la movilidad, la productividad y la disponibilidad permanente de los trabajadores a nivel planetario.

Evidentemente, los gitanos no han estado ausentes del proceso histórico del mestizaje cultural y lingüístico, que produce el encuentro, las influencias y la adopción de elementos culturales y lingüísticos, que se adquieren en los procesos migratorios en general. Todos somos en cierta medida mestizos culturales, por los múltiples contactos interactivos que realizamos durante nuestra existencia, a través de la socialización, la educación en general y la experiencia existencial de cada persona. Todos somos, el producto histórico de una construcción cultural múltiple y dinámica. En este sentido, la pretensión de querer obtener el mito de la “purificación étnica”, no tiene asidero alguno (PORTOCARRERO, 1993).

El mestizaje cultural y las exigencias de la sociedad dominante, llevaron a los Gitanos a mimetizarse en términos religiosos y a participar en las diferentes manifestaciones y grupos religiosos, de las sociedades donde se encuentran, preservando algunos elementos de sus sistemas de creencias ancestrales, recreadas o transformadas, según sus propias experiencias.

La estructura familiar está delimitada por la familia nuclear, patrilocal y endogámica, al interior del grupo de familias que forman

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parte de una familia extendida, constituida a tres generaciones y por la relación que se construye entre ellas. La solidaridad y el apoyo mutuo teje una relación importante del grupo y los ancianos son considerados con respeto.. Los gitanos forman parte de familias patriarcales, en las que la división sexual del trabajo y los lugares que cada uno ocupa dentro de la familia, están bastante delimitados. El padre es el jefe de familia y es responsable del funcionamiento del grupo familiar y de la familia extendida, donde la autoridad de los ancianos, está bastante considerada. Los hijos están asociados a las actividades de sus padres y están retribuidos por su participación y disponen libremente del producto de sus actividades. Las hijas y las mujeres son responsables de los niños y las actividades familiares, contribuyendo cotidianamente a la sobrevivencia del grupo. La precariedad extrema, que caracteriza el contexto actual europeo y la inevitable influencia y exigencias del mundo externo, ponen a prueba, los valores tradicionales, los referentes culturales y los lazos de solidaridad , que determinan la durabilidad del grupo

La educación se inscribe en los parámetros de la educación tradicional, vehiculada por la oralidad, es una transmisión y un aprendizaje continuo, sobre el terreno, en el esfuerzo cotidiano, por adaptarse a situaciones bastante difíciles, en las que, les toca sobrevivir. La educación tradicional vehicula también un sistema de valores y de referencias, que permiten la preservación de sus identidades y la racionalidad que les puede dar un sentido a su existencia y la necesaria cohesión que necesita el grupo para sobrevivir.

Si pensamos en términos de una integración democrática, la educación intercultural, en la medida que valoriza y respeta las identidades culturales, las lenguas maternas y reconoce el valor de los conocimientos y saberes de cada grupo, podría ser una perspectiva, en la que podríamos imaginar una educación apropiada para las especificidades de la cultura gitana. Reconociéndolos como una minoría étnica y respetando sus identidades. La educación intercultural, podría realizar la mediación, entre la sociedad y el Estado, facilitándoles su inserción y sobrevivencia, en mejores condiciones que las actuales, Las sociedades sedentarias, por su parte, necesitan abrirse hacia una perspectiva educativa intercultural, que les permita poner en discusión sus prejuicios y su visión etnocéntrica, frente a las minorías que injustamente discriminan.

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Los Gitanos en Europa. Perspectiva actual

En el caso que gane la izquierda, Milán se convertirá en una ciudad islámica, una Tziganopolis llena de

campamentos gitanos y asediada de extranjeros.

Silvio Berlusconi, presidente de ItaliaCit. In Tribune de Genève, 28-29 mai 2011.

(Traducc. del autor).

La emigración gitana hacia Europa, transcurrió, entre un premier período de tolerancia y curiosidad, en el caso español, evolucionando después, hacia una tolerancia limitada, para degenerar finalmente, en una abierta discriminación y persecución (ATTALI, 1991; DOMINGUEZ, 1988). Estas secuencias de la relación entre gitanos y sedentarios en Europa, se reproduce con regularidad histórica, al margen de las características específicas de cada país. Más tarde ya en el siglo XX, se dieron casos, como en Suiza, entre los años 1923 a 1975, los gitanos, denominados en Suiza, Yeniches o Tsiganes, fueron confrontados a un Programa de asimilación forzada, que consistió en el secuestro de sus hijos menores de los gitanos, por una Institución, pretendidamente humanitaria, denominada Pro-Juventude, con el pretexto de educarlos, como “debía ser”, en la sagradas normas y parámetros de esta institución. Este acto brutal e inhumano, estuvo secundado por el Estado suizo, que apoyó esta medida. En 1989 El Estado suizo expreso sus disculpas formales, por este atentado contra los derechos fundamentales de la humanidad. El secuestro de los niños, separándolas de sus padres, es un atentado contra los derechos básicos más elementales. Este capítulo de la historia suiza, en su relación con los Yenish, fue una experiencia traumática, que dejo muchas secuelas y que marcó para siempre la memoria de la comunidad gitana, hasta nuestros días (CHAGOLL, 2009; DELSOUC, 2005; LEWY, 2003; MAGRE, 2008).

Durante la segunda guerra mundial, cientos de miles de gitanos fueron las primeras víctimas de los campos de exterminio del nazismo. La política nazi de utilizar a seres humanos, como si fueran animales de laboratorio, para la experimentación médica, concluyó en la exterminación física, en los campos nazis, conjuntamente con los judíos y otras minorías. La eugenesia implantada por los alemanes,

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incluyó a los discapacitados físicos o mentales, que fueron sacrificados igualmente, durante la segunda guerra mundial. Estos crímenes contra la humanidad, contaron con la eficaz colaboración de muchos gobiernos de países europeos. El genocidio, del que fueron víctimas los gitanos, es muy poco conocido. Fueron cientos de miles de gitanos, los que fueron brutalmente asesinados. Este episodio de la historia europea estuvo ausente de la memoria colectiva y de los archivos de la historia oficial europea (CAHN, 1977; HEUNKER, 2009).

La perspectiva actual

Los gitanos forman actualmente una población aproximada, entre 8 y 10 millones de personas, bajo múltiples denominaciones y en diferentes países de Europa, representando un poco más del 5% de la población total (CONSEIL DE L’EUROPA, 2007).

Los gitanos han experimentado todas las opciones impuestas por la sociedad mayoritaria: desde la aculturación, como proceso de adaptación y renuncia en parte, a sus modos de vida y a sus identidades, para facilitar su sobrevivencia e inserción, a la asimilación, que significa la renuncia y la negación de sus propias raíces, identidades y modos de vida, para tratar de mimetizarse con la sociedad mayoritaria. Caso mayoritario, a la autarquía, traducida por un parcial aislamiento, de rechazo, para protegerse, de toda influencia externa. Caso muy minoritario.

Nos queda la opción de la integración, que sería la vía ideal de inserción, preservando una gran parte de sus valores, sus modos de vida e identidades, en un proceso de democracia real, de abertura y adaptación a las exigencias y condiciones de la inserción, que permita a los gitanos acceder a la sociedad. Esta opción, en el contexto europeo actual, es inviable por la ausencia de la voluntad política y por la rigidez de las políticas, que impone un modelo político de Estado, en el que toda proposición de asimilación, es arbitrariamente denominada “Integración”, sin tener en cuenta la equidad y el respeto, como condición primera, para facilitar la interacción de los diferentes grupos sociales.

Podemos afirmar, que el conjunto de medidas dictadas por las políticas públicas, de los diferentes Estados europeos, que pretendían asimilar a los gitanos, está marcado por un fracaso visible. Los

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diferentes informes oficiales y los trabajos de investigación constatan que: los gitanos viven en condiciones de una precariedad extrema. Estas condiciones de vida, tienen como consecuencia la exclusión, la desconfianza, el analfabetismo, el racismo y la explotación, que amenazan con la fragmentación de la etnia gitana entera. A partir del rechazo múltiple y las agresiones racistas de los grupos populistas extremos de la sociedad sedentaria, numerosos son, los gitanos que han optado, forzados por una realidad adversa, a sedentarizarse, sin lograr conseguir por lo tanto, una existencia digna de ese nombre (GOLOWIN, 1997).

Después de algunos años, al comenzar este siglo, asistimos a una llegada masiva de gitanos provenientes de los países de Europa del Este, donde ellos soportaban condiciones extremadamente precarias y se reagrupan sobre terrenos abandonados sumamente tugurizados en las periferias de las grandes ciudades europeas del Occidente. En los países de Europa del Este y del Asia central, los gitanos mayoritariamente conocidos como Roms, son las víctimas predilectas de la violencia racista, ejercida por los grupos de extrema derecha (neo-nazis) y por algunos sectores de la sociedad civil. Excluidos del sistema económico y marginalizados sin alternativa, huyen masivamente hacia los países del Oeste europeo (CAHN, 1997).

En Italia, en la ciudad de Milán, en el año 2006, la extrema derecha racista prendió fuego a las instalaciones, destinadas a recibir a las mujeres y a los niños gitanos, en vísperas de navidad. Durante el gobierno de Silvio Berlusconi, se apoyo la formación de brigadas ciudadanas, para denunciar a las personas inmigrantes ilegales, como un acto cívico. Estas medidas de agresión racista, afectan también, a grandes sectores de inmigrantes latinoamericanos, entre otros.

Hoy en día, obtener un espacio físico donde permanecer, constituye el problema central de la discriminación que sufren los gitanos. En efecto, los terrenos que disponen, puestos a su disposición, para estacionar sus vehículos, son escasos. Obligados a desplazarse y reagruparse en zonas periféricas urbanas, extremadamente precarias, le es imposible encontrar un mínimo de estabilidad, condición necesaria y vital, para asumir su sobrevivencia. En Francia, ha existido y existen algunas iniciativas aisladas por hacerles justicia en este aspecto. Pero en la mayoría de los casos, no existe la voluntad política, para resolver realmente los problemas. Se planteo incluso la revisión

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de leyes restrictivas, como la ley Besson, decretada en el año 2000, pero las declaraciones de principios y las consideraciones, no se han traducido en decisiones políticas. Sin la voluntad política de llevarlos adelante. Esta obstrucción real, es una constante en los diferentes países europeos, indiferentes de su orientación política (MAGRE, 2008; PEIFFER, 2012). En el transcurso de los años 2009, el gobierno de Sarkozy y posteriormente el gobierno de François Hollande, 2013-2014, han desarrollado una política de brutal exclusión de los gitanos, expulsándolos a una gran parte de ellos de Francia. La gran mayoría de los deportados, son ciudadanos europeos. La creación del Ministerio de la identidad nacional, durante este periodo, muestra de cuerpo entero, la voluntad política absurda y discriminadora contra los gitanos y otras minorías, como los inmigrantes, declarados en situación ilegal y limitando además a los inmigrantes legales, que ven recortados sus derechos adquiridos, por nuevas restricciones, que precarizan aún más su situación dentro del país.

El analfabetismo entre los gitanos europeos es muy elevado. y concierne a la mayoría y constituye una de la barreras esenciales, para acceder a un cierto nivel de integración. La educación puede ser una puerta de entrada a la vida sedentaria, por la importancia capital, de saber leer y escribir y así poder asumirse ante las múltiples exigencias de la sociedad. La educación implica también, la posibilidad de crear un espacio de abertura, en la desconstrucción de los prejuicios y representaciones sociales, creados en el imaginario colectivo de la sociedad sedentaria dominante, desarrollados después de tantos siglos.

La educación emana también, de una dimensión política, que la inscribe dentro de las políticas educativas que decreta el Estado, y si el modelo político que la concibe, no considera la diversidad cultural, como un valor y una posibilidad para enriquecer el patrimonio colectivo de la sociedad, es muy difícil, que podamos imaginar esta abertura. Además, más difícil será, que se encuentre la voluntad política necesaria, que modifique la tendencia actual, de repliegue de los grandes principios democráticos y la defensa de los derechos fundamentales, que se limitan al ámbito de las declaraciones políticas, sin que nada cambie en la realidad social.

La ausencia de la voluntad política para asumir la realidad de sociedades multiculturales está determinada, por el carácter del modelo Estado-Nación. La multiculturalidad debe ser asumida por

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políticas sociales y educativas adaptadas a las exigencias y necesidades de las mismas. El modelo político de Estado es el mayor obstáculo en el contexto europeo. Actualmente, gobiernos como el alemán, el inglés, el holandés, el italiano o el francés, entre otros, al negar la multiculturalidad- de sus sociedades, demuestran su incapacidad para asumir políticas democráticas (SANTOS, 2010; TOURAINE, 1997; WIEVIORKA, 1996).

Las preguntas y reflexiones sobre el contexto europeo, serían:¿Cómo imaginar la integración democrática de los gitanos,

respetando su identidad cultural y reconociéndolos como personas y como ciudadanos con todos sus derechos?

¿Qué hacer, en el marco de políticas públicas, impuestas por el Estado, desde la perspectiva del modelo Estado-Nación, cuando sabemos, que éste no admite el reconocimiento de la diversidad cultural y lingüística existentes en la sociedad?

¿Cómo imaginar el respeto y la apertura a otras visiones del mundo, cuando las políticas impuestas por el Estado, dejan solamente, la opción de asimilarse voluntaria o forzadamente, a los parámetros de la cultura, la lengua y la visión del mundo dominante, sin ninguna opción, que reconozca la multiculturalidad, que impregna a la sociedad humana contemporánea?

Breve historia de la construcción del Estado y del modelo político de Estado-Nación en Europa

Consideramos que, un paralelo histórico, entre la discriminación sufrida por los gitanos en Europa y también en América, los asocia a los pueblos indígenas del continente americano, en la medida que, ambos son víctimas históricas de un modelo político de Estado–Nación, incapaz de concebir el respeto de la diversidad cultural.

Este paralelo histórico podría sernos útil, para comprender las políticas públicas, como tributarias de un modelo político.

La proposición política en Bolivia y otros pueblos del sur de América de refundar el Estado, para mejorar la administración democrática de la sociedad, asumiendo la diversidad cultural y la pluralidad que las impregna, podría inspirar y ampliar nuestra reflexión sobre este tema (SANTOS, 2010; WALSH, 2008). Si imaginamos la historia de América Latina vista desde la ventana europea: Europa, podría

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reconocerse como en un espejo, donde nosotros, podemos reconocer las formas de un modelo político de Estado europeo, aplicado en la mayoría de los países de América, con las mismas consecuencias en los dos continentes.

La incapacidad de respetar y administrar la diversidad cultural frente a realidades históricas concretas, ponen al descubierto la crisis de este modelo político de Estado, en contextos diferentes, en México, Guatemala, Bolivia, Ecuador o en España, con la emergencia de la nación catalana y la exigencia de la autonomía del país vasco. En Europa, hemos vivido recientemente en Inglaterra, con el referéndum por la independencia de Escocia en 2014.

Esta aproximación global de la historia, nos permite asociar Europa y América Latina, a través de los dos últimos siglos; América Latina es considerada como un laboratorio de la política colonial y neo-colonial europea. Estos antecedentes nos permiten comprender, en qué medida, los modelos políticos, como el “Estado-Nación”, impuestos en este espacio geográfico y en otros continentes, han terminado por provocar los mismos efectos perversos: de intolerancia, de racismo, de exclusión y de negación de los derechos más fundamentales.

Más allá de las particularidades de los actores históricos de las sociedades europeas o americanas y el de sus contextos históricos y sociales, es un solo modelo de Estado y una voluntad política que influencian sobre los procesos de integración o de asimilación y exclusión.

Los actores históricos, pertenecen a un solo conjunto. El género humano. De este hecho emerge necesariamente una reflexión común, sobre los principios fundamentales del respeto a la diversidad cultural y del respeto a la pluralidad, que forman los ejes de toda sociedad humana, frente al etnocentrismo y el racismo que impregnan la construcción de una identidad en cada cultura.

En el contexto europeo de principios del siglo XIX y durante el siglo XX, el modelo político de Estado-Nación, ha ejercido y ejerce todavía, una negación de la diversidad cultural y lingüística. Las víctimas son: o las minorías étnicas, (como los gitanos en Europa del Este) o los pueblos (como los catalanes y los vascos en España o en Francia) o las minorías nacionales (como los húngaros en Rumania y los rusos en Ucrania, o el de otras minorías, al interior de la Federación rusa y en otros países de la Europa del Este) y las poblaciones de

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inmigrantes en general (FERRER, 1998; MARIN, 2005a; PEREZ, 1998; SALVI, 1973; SANGUIN, 1993).

Del continente americano, desde el Canadá hasta Chile, los derechos ancestrales de los diferentes pueblos autóctonos han sido negados, en virtud de la aplicación, contra sus intereses, de los principios autoritarios del Estado Nación y la negación de la ciudadanía.

Esta discriminación implica una secuela de racismo, de exclusión y de marginalización, basada sobre prejuicios ”biológicos”, culturales y jurídicos, enunciados por el eurocentrismo, que ha impregnado los discursos del poder político colonial y neo-colonial (MARIN, 2011). En este contexto, las iglesias y la escuela se convirtieron con el proceso de evangelización y de alfabetización, en los instrumentos por excelencia, de la asimilación forzada, promovida por las políticas denominadas de “integración nacional” (MARIN, 2012; WALSH, 2009). La iglesia y la escuela serán las encargadas de prohibir las lenguas y de destruir las culturas indígenas, en nombre de la civilización occidental y cristiana. Estas instituciones promovieron los mitos del Progreso y del desarrollo (MARIN, 2005; MONTOYA, 1990, 1998).

El Estado-Nación

El Estado-Nación es a la vez creación y criatura e la Europa moderna.

E. L’Etat-Nation Morin, 1991, p. 319 (Traducción del autor)

La nación emerge como una construcción puramente ideológica y expresa la cristalización de una voluntad por consolidar un sentimiento de existencia y de reconocimiento, en tanto, identidad colectiva. Es a través de una construcción imaginaria, que la conciencia (nacional) crea la nación. La repetición y la difusión de sus mitos fundadores, promovidos por una lengua determinada, en un espacio geográfico e históricamente dado, permitieron finalmente, la construcción de un Estado que la representa. El Estado utiliza el mito y el discurso de la Nación para reforzar su voluntad política de existir.

A partir de la Edad Media, las naciones se identificaron a las lenguas; la nación alemana por ejemplo, ha sido formada por todos los

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pueblos que hablaban alemán. Más tarde, se definieron las naciones a partir de la lengua, de un territorio, de una etnia, de una religión, de las tradiciones. En Grecia, en Serbia, en Bulgaria, en Rumania, la idea de Nación precede a la construcción del Estado y motiva las luchas emancipadoras de los pueblos sometidos al imperio Otomano.

Los Estados-Nación, no corresponden nunca a sus fronteras geográficas. La demarcación de un territorio, casi siempre se realiza de una manera arbitraria, por la parte de los Estados, que terminaron por fragmentar las naciones originales, haciendo de la historia humana, una sucesión de dramas. En África, sobre la base de las demarcaciones coloniales, los Estados nacientes impusieron “naciones” inciertas, ver ficticias, sobre diferentes etnias, sin lenguas comunes. El caso extremo es aquel, donde la idea de una nación precede no solamente a la formación del estado, sino, inclusive a la ocupación de un territorio, estimulando el primero y después el segundo, como es el caso de la fundación de Israel en 1948. El caso del Sionismo es la versión de la concretización de una identidad, no solamente religiosa o étnica, sino nacional (MORIN, 1991).

El Estado-Nación, en tanto que modelo político, tiene sus orígenes en Europa durante la segunda mitad del siglo XV. La alianza de los reyes de Castilla y de Aragón, marca el principio de la construcción del Estado español, basado sobre la supremacía de una lengua (el castellano), de una concepción religiosa (el cristianismo católico y romano) y de una filiación al mundo Occidental: bajo estas condiciones, nació el germen histórico del Estado-Nación (ATTALI, 1991; FERRERO, 1994; MARIN, 2011).

España fue históricamente, el espacio donde el proceso de afirmación de una identidad nacional, a partir de un modelo político de Estado, se dio los instrumentos ideológicos y jurídicos que la llevaron a negar la diversidad cultural y lingüística, sobre el territorio geográfico que declara el nuevo Estado. Este principio de una negación institucionalizada de la alteridad, de la diversidad cultural y religiosa, se expresa en la expulsión, de una gran parte de la importante comunidad judía de España, el 31 de marzo de 1492. Este mismo año, después de siete siglos de ocupación, los musulmanes son también expulsados, después que fueron derrotados en la batalla de Granada. Los gitanos que llegaron del norte del África, algunos decenios antes del fin del siglo XV, fueron perseguidos y excluidos (DOMINGUEZ, 1988).

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Hasta la Edad Media, la historia contó sobre los imperios, las ciudades, los pueblos, las etnias. La fórmula del Estado-Nación es más extendida. que las ciudades, es más restringida y más unificada que la de los imperios, aún cuando sean estos poli-étnicos (MORIN, 1991).

El Estado monárquico francés opero la gestación de la nación, por la lenta imposición del francés sobre las etnias conquistadas. El Estado-Nación estuvo concebido por el romanticismo francés, contra el absolutismo monárquico; la revolución reforzó y prolongó el Estado, con una concepción cosmopolita que, sobrepasa la identidad basada sobre la lengua (DELANNOI, 1991).

A partir de la revolución, la nación legitima al Estado. El Estado-Nación se forma lentamente, diversamente en Francia, en Inglaterra, en España y Portugal, a partir o alrededor del poder monárquico, que el mismo se transforma, por la formación del Estado-Nación.

En América del Norte, se constituyó en un modelo federal de Estado-Nación, a partir de la emancipación de los colonos de la metrópoli colonial inglesa. Desde entonces, tanto sobre el principio francés, que sobre el principio norteamericano, el Estado-Nación, constituye un modelo político emancipador y potencialmente universalizable. De este hecho, desde el principio del siglo XIX, el ejemplo de los Estados Unidos anima las revueltas de las poblaciones que van a hacer emerger las nuevas repúblicas de América Latina.

Durante los siglos XIX y XX, el modelo político de Estado-Nación europeo se convierte en el modelo para la constitución de las repúblicas surgidas del período neo-colonial en América Latina, Asia y en África, a partir de los años 1960.

Pero, más allá de los discursos, la elite política en el poder privilegia e impone, en nombre del cosmopolitismo, una visión del mundo, una lengua y una cultura dominante, en perjuicio de las otros grupos étnicos, aún cuando el grupo en el poder, no es mayoritario, ni representativo. Este hecho, es una constante en la historia de América Latina.

El modelo político de Estado-Nación concebido al principio del siglo XIX, después de la Revolución Francesa está basado sobre la construcción de la “Nación”, como un mito unificador y homogeneizador de un conjunto de pueblos, con sus lenguas y sus culturas diferentes. Estos nuevos Estados proclaman su soberanía sobre los territorios que no controlan totalmente. A pesar de una proclamación de principios de Libertad. Igualdad y Fraternidad, este

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modelo se convirtió en un instrumento ideológico y jurídico que generó una política autoritaria (SALVI, 1973).

Estos antecedentes autoritarios ligados a la fundación de los Estados, son el origen de los conflictos contemporáneos. En México, por ejemplo el drama actual de los pueblos indígenas de Chiapas, sobrevive a pesar de la revolución de 1910. Esta revolución tenía como objetivo principal la construcción de una sociedad igualitaria de justicia social. Una política autodenominada de “integración nacional”, a partir de la alfabetización en castellano pretendía consolidar la creación de una “nación” mexicana; en la realidad, este proceso degeneró en un proceso de asimilación forzada.

Actualmente, en el contexto latinoamericano, los desencuentros entre el Estado-y la sociedad en Colombia, país pluriétnico y multicultural, nos muestran un buen ejemplo de la incapacidad del Estado-Nación, en tanto modelo político para administrar la profunda crisis social y la violencia política, que fragmentan y sangran la sociedad colombiana, sobre una parte importante de su territorio.

Las consecuencias de la implantación de este tipo de modelo político de Estado, en contextos que presentan una importante diversidad cultural, lingüística y religiosa, puede provocar verdaderos etnocidios y genocidios. Las pérdidas de territorios y la miseria de los pueblos indígenas de América, es una realidad del Canadá hasta el Chile actual.

Son ejemplos elocuentes: la miseria de los pueblos indígena en Estados Unidos de América, los conflictos en Chiapas y Guerrero en México, el genocidio reciente de más de 250,000 mil indígenas en Guatemala. El desplazamiento y el genocidio de los pueblos indígenas, por la violencia política y por favorecer los intereses de compañías multinacionales en Argentina, Brasil, Colombia, Ecuador, Paraguay, Perú y Chile, por citar algunos casos. De las de cerca 70 mil víctimas de la violencia política y el terrorismo de Estado en el Perú, investigados por la Comisión de la Verdad, más del 80%, eran de origen indígena.

A pesar de la “Declaración del decenio de los pueblos Indígenas” decretado por las Naciones Unidas en 1992, el drama contemporáneo de la discriminación racial, la exclusión económica y social de los indígenas y otras minorías, como los gitanos en Europa y la negación sistemática del carácter multicultural de las sociedades americanas continua.

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Reflexiones y cuestionamientos: Gitanos e indígenas en el contexto de políticas de

“Integración nacional”

A partir de nuestra percepción histórica, podemos observar que la integración está impregnada de múltiples dimensiones: políticas, económicas, sociales y culturales. Nuestra reflexión percibe la integración, como la real posibilidad de participar en condiciones de igualdad, a todas las decisiones de una comunidad o una sociedad determinada.

La participación política y económica, en la sociedad, la escuela y la vida cotidiana, son entre otros, los espacios donde la integración debe realizarse. El respeto de la pluralidad es primordial; todo autoritarismo o arbitrariedad implícita o declarada, engendra una asimilación sutil o forzada. La democracia, como principio de justicia y de igualdad, solo es viable, en la medida que posea la capacidad de integrar a sus miembros.

La asimilación y la segregación, en todas sus formas, constituyen lo contrario de la integración; éstas son la negación de la alteridad, de la diferencia y de la pluralidad.

La integración de los pueblos indígenas de América, después de la conquista colonial, hasta nuestros días, ha estado reducida a un enunciado de políticas denominadas de “integración nacional”; estas políticas se proponían de “integrar” a los indígenas, en tanto que “inferiores”, en condiciones de dominados. Este discurso ideológico, esconde mal una brutal asimilación.

Los gitanos, guardando los contextos y las especificidades que los separan de los pueblos indígenas, son objeto de políticas de asimilación forzada, pero en la mayoría de los casos, han sido marginalizados sin ninguna opción alternativa.

Gitanos y pueblos indígenas: Multiculturalismo e Integración. ¿Qué función para la educación?

La integración es el resultado del respeto de la pluralidad, es la puesta en práctica de la democracia, desde el momento, en que se garantiza a todos, la igualdad de condiciones, para cohabitar y para participar en la toma de decisiones que determinan el destino de todos los grupos que forman una sociedad.

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Bajos estas premisas, la pregunta actual sobre las políticas públicas es: ¿Serían capaces de abrirse, quienes elaboran las políticas públicas,

a la multiplicidad de percepciones y puntos de vista, que conforman la diversidad cultural que impregna a la sociedad?

¿Cómo imaginar la posibilidad de hacer vivir la diversidad cultural y la pluralidad?

La tolerancia debe estar basada sobre la reciprocidad; si nosotros somos tolerantes hacia los otros, nosotros esperamos de ser tolerados de la misma manera, lo que implica una cierta aceptación, para poder compartir con los otros. Todas estas premisas nos permiten establecer relaciones con los miembros de la comunidad, que es el cuadro fundamental de la puesta en marcha de la relación entre los individuos y de toda reciprocidad.

El conjunto de comunidades forma la sociedad civil y nos permite imaginar un espacio político que sobrepasa el autoritarismo y las mutaciones y desfases, entre los individuos, e igualmente, entre el Estado y la sociedad (SARTORI, 1994).

La integración supone un proceso que engloba dimensiones múltiples y puede estar asociada a un modelo político de Estado. El Estado está supuesto representar a la sociedad, que debe crear las condiciones de la participación de los ciudadanos a las decisiones fundamentales.

La integración supone la libertad y el respeto del derecho de los individuos de todos los grupos implicados.

En una sociedad multicultural y plurilingüe, como es el tipo de sociedades que existen, tanto en Europa, como en el continente americano. El Estado tendría que garantizar el respeto de la diversidad cultural y lingüística.

En esta perspectiva, la educación, en un sentido amplio y en sus diferentes formas, es el vehículo privilegiado, para realizar la transmisión de visiones del mundo, de creencia y de sistemas de valores, de normas y de referencias, y sobre todo de conocimientos que funden un proyecto de sociedad viable.

Administrar la diversidad cultural y la pluralidad, me parece que constituye el desafío más importante para las sociedades contemporáneas. El actual modelo político de Estado.-Nación, se muestra incapaz de asumir esta realidad multicultural, que caracteriza a las sociedades europeas y a las americanas.

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A partir de estas premisas, en el caso de sociedades multiculturales y plurilingües, podríamos imaginar un tipo de Estado, capaz de asumir la formulación y la aplicación de una política intercultural, que responda a las exigencias, que venimos de poner en evidencia?

En el contexto actual, al que se confrontan los gitanos, nuestra pregunta central es:

Si un modelo político de Estado Confederado, sería capaz de respetar la diversidad cultural y lingüística y a la vez, tendría la capacidad de asumir la gestión democrática de la sociedad multicultural?

Una de las grandes tareas vitales, para hacer realidad una integración democrática, debe ser asumida por la educación, que debe promover el respeto de la pluralidad cultural y lingüística que caracteriza a los países europeos y a los países de América (MARIN, 2010; PARDO-FIGUEROA, 2013).

Ante esta realidad, ¿cómo imaginar la integración, si el Estado a través de la escuela oficial admite y privilegia una lengua y una cultura oficial en su programa educativo, imponiendo así, arbitrariamente una visión monocultural y occidental del mundo?

Gitanos: Estado Nación, entre retórica y realidad

Algunos cuestionamientos finales: ¿Cuál es el lugar de los pueblos gitanos en el presente y el

futuro del desarrollo económico, social y cultural de las sociedades contemporáneas?

Esta interrogante, queda como la pregunta más importante a responder en todo proyecto. Esta pregunta crucial, nos permite comprender igualmente, la importancia de la dimensión política, que impregna a la educación, como intermediaria entre la sociedad y el Estado, en todo proyecto de integración (MARIN & DASEN, 2007; MONTOYA, 1999).

Sin embargo, conviene preguntarnos sobre la perspectiva actual de los pueblos gitanos:

¿Cuáles son las posibilidades reales de superar la frontera, entre el discurso Político y la declaración de intenciones, que no se cumplen en la realidad?

¿Cuáles son las posibilidades reales para crear los espacios políticos, en los cuales, la interculturalidad y la pluralidad de la sociedad, puedan expresarse?

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Tomando en cuenta el carácter multicultural de la sociedad europea actual,

¿Qué modelo de Estado y Constitución necesitan los países europeos, para asumir democráticamente esta realidad?

¿Qué posibilidad existe, en el contexto actual de crisis económica, social y de identidad europea, para respetar la diversidad cultural y religiosa y para honrar los grandes principios democráticos, declarados en las constituciones europeas?

¿Es posible imaginar el respeto de las poblaciones gitanas y de otra minorías en el contexto político actual?

A manera de conclusión…

Hay que tener en cuenta, los desafíos que nos imponen a todos nosotros, en lo que respecta a los gitanos, a los pueblos indígenas y otras minorías, la enorme importancia que tiene la preservación de la dignidad humana, como exigencia fundamental, para imaginar nuestro futuro como especie.

El caso de la insurgencia popular de los pueblos árabes, por la defensa de sus derechos vitales y el respecto de la dignidad, se ha vistos expresada en el año 2011, en Túnez y en Egipto, con hechos históricos de defensa de sus derechos vitales para sus pueblos, ante sistema estatales autoritarios. Sus luchas, nos desafían a realizar una reflexión, sobre nosotros y sobre el funcionamiento de nuestras sociedades.

En sociedades multiculturales, como es el tipo de sociedades que existen, tanto en Europa, como en América, el Estado tendría que garantizar el respeto de la diversidad cultural, lingüística y religiosa. En esta perspectiva, la educación, en un sentido amplio y en sus diferentes formas, es el vehículo privilegiado, para realizar la transmisión de visiones del mundo, de sistemas de valores, de normas, de referencias y finalmente de conocimientos, que ayuden a fundar un proyecto de sociedad viable (MARIN, 2010; WALSH, 2009).

¿Cómo vivir y compartir juntos en las sociedades actuales?Administrar la diversidad cultural y la pluralidad, me

parece constituir, el desafío más importante para las sociedades contemporáneas. El actual modelo político de Estado.-Nación, se muestra incapaz de asumir esta realidad multicultural, que caracteriza a nuestras sociedades americanas y europeas (TOURAINE, 1997; WIEVIORKA, 1996).

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A partir de estas premisas, ¿podríamos imaginar un tipo de Estado, capaz de asumir la formulación y la aplicación de una política intercultural, que responda a las exigencias, que venimos de poner en evidencia?

¿Es que un modelo de Estado Confederado, basado en el respeto de la diversidad cultural y religiosa, sería capaz de asumir la gestión democrática de la actual sociedad multicultural en Europa, en las Américas y en otras realidades?

Europa, en el contexto económico y político actual, muestra en sus políticas públicas, una enorme incapacidad para ofrecer las condiciones necesarias a la integración y al respeto de los gitanos, y otras minorías.

Al terminar este texto, en octubre del año 2014, asistimos a la emergencia reforzada de partidos populistas de extrema derecha, racista y xenófoba, en casi todos los países europeos. La profunda crisis económica y las mutaciones sociales y políticas que genera la recesión, provocan una ausencia de futuro y una dramática crisis de identidad en todas las sociedades europeas. Ante este contexto histórico, de creciente precarización y de pérdida de logros sociales, adquiridos en tantos decenios, los sectores más conservadores y reaccionarios culpabilizan a las minorías más frágiles de la sociedad, como los inmigrantes y los gitanos. Estos son utilizados como chivos expiatorios de la destrucción del mercado de trabajo y como responsables de todos los males que aquejan, hoy en día a la sociedad europea.

Cómo vivir juntos, respetando nuestras diversidades culturales y religiosas?

Queda como una pregunta, que la democracia occidental europea, tiene mucha dificultad en responder, al mismo tiempo, que se embarca en cruzadas militares patrocinadas por la Otan, para llevar la democracia y la libertad a los países árabes y enarbola la retórica de los derechos humanos, sin cuestionar la realidad de la existencia de lugares como Guantánamo.

Ginebra, octubre, fin del otoño europeo del año 2014.

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La exclusión de los gitanos en el contexto europeo contemporáneo: un desafío para la democracia, confrontada a políticas públicas excluyentes • 315

RuAção: Das epistemologias da rua à política da rua

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316 • PARTE IV - Perspectivas críticas, (des)colonialidades e educação

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RuAção: Das epistemologias da rua à política da rua

Ciganos: resiliência por entre paisagens, lugares e territorialidades...

Solange T. de Lima GUIMARÃES

O humano como uma categoria está perdendo seu significado, se tornando uma aberração linguística.

Para sermos humanos devemos saber o que a humanidade significa, como alcança-la, como

preserva-la. Ser humano é tanto um fato quanto uma exigência, uma condição e uma esperança.

Nosso ser humano é precário, está sempre em julgamento, cheio de riscos; o homem está sempre sob

o perigo de negligenciar sua humanidade.

A. J. Heschel, 2005, p. 46

Introdução

Diante dos atuais cenários de mudanças globais, gerados por instabilidades socioeconômicas que fragilizam Estados e nações, expressas por diferentes crises axiológicas, vimos observando com olhos atentos, o ressurgimento de partidos com suas políticas nitidamente delineadas por ideologias fascistas, com plataformas fundadas no retorno de seus ideários marcados pelo racismo, eugenismo, xenofobia, totalitarismo, nacionalismo, entre outros. Mais ainda, vemos diferentes segmentos da sociedade aderirem a estas bandeiras que repugnam posicionamentos éticos e morais, como um sinal de desatino e deterioração de sua saúde psicossocial, ao criarem estados que restringem ou impedem o relacionamento humano com os seus próprios ambientes situacionais e condições ambientais, indicando “fragilidade, deficiência, insuficiência no caráter do homem”. (HESCHEL, 2005, p. 51-52). Este panorama pode ser interpretado por muitas comunidades como um presságio de uma nova onda que se expande pelas concretudes e virtualidades dos territórios vivenciados, envolvendo acelerados processos de mudança, adaptação, enfrentamento, resistência e resiliência, que nunca foram tão marcantes em intensidade e magnitude, porém, muitas vezes,

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318 • PARTE IV - Perspectivas críticas, (des)colonialidades e educação

disfarçados em sutilezas e imagéticas ilusórias, como nos dias presentes. Estes contextos mundiais engendram inquietações e reflexões

profundas, levando à eclosão dos movimentos de consciência e justiça social das minorias étnicas e socioeconômicas, associados às estratégias de defesa frente às violências e iniquidades socioambientais, a propósito das manifestações de racismos, autoritarismo, militarismos e fundamentalismos religiosos, registradas, bem como das respectivas propagandas ideológicas através dos vários canais de mídias, enquanto também movimentos globais de refugiados acontecem em distintas regiões do planeta.

Por estes novos tempos de névoa e neblina, os processos de marginalização e exclusão social, cultural, econômica, científico-tecnológica, assim como os de dissimulação política, são reforçados, planejados, impostos gerando paisagens de restrições. O espaço vivido torna-se uma sequência caótica de territorialidades em intersecções e desconstruções paisagísticas conflituosas e desestabilizadoras, todavia, que se fragmentam e se reorganizam continuamente a partir de imagens de incertezas e morte, culminando na desvalorização que elimina o próprio ser humano, no dizer de Frankl (2014), como também comprometendo os significados e a legitimidade das relações de alteridades (BUBER, 2004). Para Gottfried (2005, p. 26), fundamentado em Buber, significa também refletirmos sobre o mal causado pelas ausências de relacionamentos e direções em nossas vidas, considerando que “o modelo para todos os relacionamentos deveria refletir aquele que estabelecemos com Deus”, adentrando às dimensões e territorialidades do sagrado, quando “podemos potencialmente combater o mal do sofrimento desenvolvendo relações com o outro [...]”.

Nestas conjunturas, dedicamos um breve histórico sobre as imagens das paisagens vivenciadas pelos ciganos - o povo Rom - que enredam uma teia de relações dialógicas entre distintos universos culturais, revelando retrações, onde a exclusão, o extermínio, a intimidação se expandiram por lugares demarcados pelo medo e os conflitos, ameaçando continuamente, de modo objetivo e subjetivo, a existência destas populações, levando ao desenvolvimento de uma forte resiliência e consciência étnica e cultural em nossos dias. (LIMA, 1996). Todavia, estas histórias sobre lugares e seres humanos podem se constituir na história de outras paisagens em intersecções,

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Ciganos: resiliência por entre paisagens, lugares e territorialidades... • 319

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de suas territorialidades passadas e presentes e das transformações espaciotemporais, ao percebermos os mesmos sentidos e significados, atitudinais e comportamentais que perduram por séculos, quando tomamos consciência dos outros que habitam em nós, sejam estes amados ou odiados em suas diferenças.

Pelas paisagens das tradições...

Meu coração, disse ele, está lá no Oriente, mas estou aqui, no canto do Ocidente...

Iehudá Halevi apud Trudy Alexi, 1994, p. 284

Durante os anos de convivência com diferentes grupos de população cigana, muitas foram as narrativas recolhidas sobre a sua possível gênese, e todas mesclam diversos elementos do imaginário e do concreto de culturas variadas, resultantes de percursos milenares, justificando-se o fato em razão de processos de assimilação sociocultural, visto a apreensão de diversos aspectos materiais e imateriais, embora sejam registradas muitas contradições a este respeito, e a necessidade da adaptação em territórios distintos, delimitados por diretrizes políticas e religiosas.

Várias histórias preservadas pelas tradições orais de alguns grupos ciganos, narram lendas sobre caravanas que partiram de um país nas terras de Ur, denominado Kaldí, situado em alguma região da remota Caldéia acompanhando o Patriarca Abraão em sua jornada à Terra Prometida. Contudo, em algum momento, e desconhecidos os motivos, houve uma separação destes povos das tendas. Assim, um grupo se afastou, subdividindo-se em dois: um deles teria rumado para o país de Chal (Egito), e o outro, para o país de Sindhu (Índia). Ainda nesta separação, firmaram promessas de reencontro e reconhecimento, que seria perpetuada para sempre mediante sinais secretos conhecidos como patrin, que durante muitos tempos, constituiu-se em uma das lições principais entre todos os outros ensinamentos. (LIMA, 1996).

Consideramos o patrin como uma forma de conhecimento a partir da interpretação de alguns sinais geralmente dispostos às margens dos caminhos e estradas, composto por plantas, pedras, restos de madeiras, feixes de ervas, folhas, raízes, tiras e retalhos de tecidos, e desenhos, dependendo do texto relativo à mensagem a ser transmitida, sendo

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320 • PARTE IV - Perspectivas críticas, (des)colonialidades e educação

muito praticado até hoje por vários grupos ou famílias de ciganos. Sua utilização é direcionada para indicar as direções que devem seguir, ou bem como para veicular notícias pertinentes e significativas à vida extra ou intergrupal. Do ponto de vista geográfico, poderíamos analisar um patrin como uma espécie de referência significativa de um mapa mental ou de afetos, cuja representação poderia ser interpretada por aqueles habituados não só a percebê-los, mas também a reconhecê-los e compreender os significados de suas mensagens. Mediante o patrin, atravessaram espaços ao longo dos tempos, reconheceram paisagens, valoraram lugares a partir das experiências vivenciadas de modo topofilico ou topofobicamente até os nossos dias... (LIMA, 1996).

Algumas tradições têm suas origens nas histórias bíblicas, trazendo diferentes versões, buscando justificar o modo de vida nômade, fundamentadas no Livro de Gênesis, capítulo IV, versículos 12 e 16, e no capítulo IV, verso 22. Outras, já se reportam-se ao Livro do Êxodo, em seus capítulos XXXI, XXXV, XXXVI, onde segundo os próprios ciganos, teriam participado como mestres dos artesãos, nas artes de fundição de metais e ourivesaria, durante a construção do Tabernáculo. Bloch (1953), também apresenta uma lenda dos gitanos espanhóis, trazendo-nos outra narrativa coincidente em alguns de seus referenciais bíblicos, elucidando que durante a perseguição impetrada pelo Faraó egípcio contra os judeus que seguiram a Moisés, descrita no Livro de Êxodo, no capítulo XIV, enquanto o seu exército era tragados pelas águas do Mar Vermelho, somente escapou um casal de jovens, e desta união originariam os ciganos. (LIMA, 1996).

Ao discutir as possíveis origens dos ciganos, Hoffmann (1992) considerou uma ascendência oriental, destacando a realidade da imprecisão de um lugar, devido à ausência de provas documentais concretas, ou insuficiência de outros aspectos comprobatórios definitivos, dando ênfase ao fato de que qualquer afirmativa ou consenso sobre estas origens deve ser precedido de incertezas quanto à veracidade e fidedignidade, dados os aspectos específicos de sua cultura oral. Ainda, conforme o autor, poderiam ser originários de qualquer região entre o Egito e a Índia, relembrando uma descendência dos patriarcas bíblicos, ligada aos ancestrais das tribos de Israel e seus respectivos territórios. Para Hoffmann (1992, p. 66), em termos das conjeturas e inferências quanto à gênese do povo cigano, devemos considera-los “como uma tribo surgida no Oriente Médio e que isto carrega traços paragmáticos

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totalmente diferenciados à Sociedade Ocidental”.Todavia, os verdadeiros lugares que abrigaram as origens do povo

Rom estão ocultos ou esquecidos entre as paisagens das terras de Kaldí, Chal e Sindhu, no decurso de suas migrações, contudo não suficientes para causarem uma ruptura, preservando assim sua identidade cultural. De acordo com M’Bow (1984), a tradição oral destes “andarilhos de toda a Terra”, parece ter se constituído no fator essencial de proteção da alma, da dignidade e identidade dos ciganos, mediante seus valores socioculturais, permitindo que nunca perdessem suas raízes.

Entre os espaços e lugares marcadamente concretos ou imateriais que abrigam os cenários das tradições e histórias, as paisagens mesclam-se com a vida em suas múltiplas faces, fragmentando-se e se reorganizando a cada experiência vivenciada, compondo quadros de um universo cultural nem sempre compreendido, porém, envolvendo significados diversos, memórias, mundividências distintas, confirmando um senso de presença em espaços e mundos vividos: ícones do real e do imaginário concernentes à paisagem vivida, crivados no tamis das experiências e percepções. (LIMA, 1996).

Alguns percursos espaçotemporais...

Entre as coisas que parecem tirar o sentido da vida humana estão não apenas o sofrimento, mas

também a morte. Nunca me canso de dizer que os únicos aspectos realmente transitórios da vida são

as potencialidades: porém, no momento em que são realizadas, elas se transformam em realidades; são resgatadas e entregues ao passado, no qual ficam a

salvo e resguardadas da transitoriedade. Isso porque no passado nada está irremediavelmente perdido,

mas está tudo irrevogavelmente guardado.

V. E. Frankl, 2014, p. 144

Das narrativas e histórias levantadas a partir dos relatos e diários de viajantes e mercadores, dos cronistas sobre o encontro e contatos com esta “misteriosa e mágica gente”, e também de vários documentos oficiais, a exemplo das bulas papais, leis, alvarás e decretos imperiais, autos da Inquisição, podemos localizar alguns dos lugares de suas passagens pretéritas pelo continente europeu e oriente médio. Locatelli (1981)

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em estudo sobre os impactos derivados dos processos de adaptação e perdas culturais das comunidades ciganas na Região Sul do Brasil, considera que os primeiros registros sobre os ciganos, datam do século V, originários da antiga Pérsia, onde segundo o poeta Firdusi (930-1020) apud Locatelli (1981, p. 34), “o rei Sassâmida Bahrãn Gor (421-438), teria importado doze mil menestréis jãt da Índia para a Pérsia, os quais seriam os antepassados dos modernos ciganos”.

Voltando às longas permanências pela Grécia e outras regiões europeias, Locatelli (1981) considera que traduziram-se por uma influência marcante na cultura cigana, impregnando seus traços, tanto na linguística como em alguns hábitos destes grupos. Neste sentido, traça alguns dos itinerários da dispersão das “bandas zíngaras” através do continente europeu, a partir dos seguintes lugares: Creta (1322); Sérvia (1349); Ilha de Corfu, Zagreb (1370); Bohemia (1370); Valáquia (1399); Alemanha (1414); Bruges e Arras (1418); Zaragoza (1425); Paris (1427); Inglaterra (1430); Escócia e Rússia (1500). Os primeiros registros sobre o aparecimento dos ciganos no mundo ocidental que apresentavam uma relativa precisão são datados em torno do século XIV, com a chegada destes grupos de “raça mista de judeus e mouros” à Europa, como penitentes em peregrinação à Terra Santa.

Foletier (1984) afirma que para muitos especialistas no campo da linguística, as origens da cultura cigana seria a Índia, pois sua língua – romani chib – apresenta aproximações com o sânscrito e com outras línguas vivas como o caxemiri, o hindi, o gujarati, o marati ou o nepalês. Neste sentido, com base nos estudos em linguística de John Sampson, o autor discorre sobre a estadia dos ciganos na Pérsia e a divisão em vários ramos, que seguiram para Oeste e Sudeste, enquanto outros, para Noroeste, em direção à Armênia e ao Cáucaso, percorrendo a Europa Bizantina, observando que foram registradas várias referências nos textos de época, em especial, nas crônicas de viajantes ocidentais em peregrinação à Terra Santa. Também menciona os registros de Simon Simeonis e Hugo, o Iluminado, dois frades menores, datados de 1322, sobre o encontro em Creta de “alguns indivíduos considerados pertencentes à raça cham que observavam o rito ortodoxo e viviam em tendas baixas e negras, como os árabes, ou em cavernas” (FOLETIER, 1984, p. 6). O longo período vivido na Grécia possibilitou aos ciganos uma percepção de outros modos de vida, que levaram a novas atitudes, comportamentos e valores

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correlacionados então ao mundo cristão daquela época. Assim, em terras gregas foram denominados “atkinganos” ou “atsinganos”, relacionados a uma seita de músicos e adivinhos, segundo o autor.

A presença dos ciganos durante o século XIV, morando em cabanas e trabalhando com ferragens, foi registrada na cidade fortificada de Modon, localizada na Costa Ocidental da Morea, um dos principais portos da rota Veneza à Jaffa, região também conhecida como Pequeno Egito, em razão da fertilidade de sua área, em meio às terras áridas, a exemplo do delta do Rio Nilo, no Egito. Devido às estas características geográficas regionais, os ciganos europeus são conhecidos até hoje como “egípcios”, “gitanos” ou “gypsies”, enquanto seus chefes teriam recebido títulos de duques ou condes do Pequeno Egito. (FOLETIER, 1984 apud LIMA, 1996). As travessias dos ciganos por áreas da Hungria e a Alemanha, no ano de 1418, tinham a proteção de livre trânsito garantida, com a apresentação das cartas do Imperador Sigismundo, ainda de acordo com Foletier (1984). Assim, estes grupos foram observados na Westfalia, em algumas cidades livres do Norte, e às margens do Mar Báltico, bem como, em Leipzig e Frankfurt, às margens do Rio Reno, antes da penetração na Suíça. Já em meados de 1419, chegaram à França, mediante cartas imperiais de proteção que permitiam livre circulação e, após um período de três anos, alguns grupos entraram nos Países Baixos, embora as cartas protecionistas não tivessem mais validação. Diante deste fato, o Duque André, do Pequeno Egito, com seu grande séquito buscou em julho de 1422, proteção junto ao Vaticano, atravessando Bolonha e Forli. (FOLETIER, 1984).

Em agosto de 1427, chegaram às portas de Paris, sendo esta encontrada sob ocupação inglesa, e ali permaneceram acampados em Saint-Denys-de-la-Chapelle  por três semanas. A partida para a região de Pontoise e a consequente disseminação por todo o território francês, se deu em relação às fortes repreensões da parte do Bispo de Paris, com a alegação de práticas de “feitiçaria”, atraindo a população do entorno. (FIG.1). Outros grupos, justificando a rota de peregrinação de Santiago de Compostela, tomaram a direção de Castela e Aragão, rumo ao território andaluz, conquistando as graças do Condestável e Chanceler de Castela, o Conde Miguel Lucas de Iranzo, em seu castelo de Jaén. (FOLETIER, 1984). Todavia, ainda no início do século XV e XVI, encontramos referências literárias sobre os ciganos em Portugal, na Escócia e na Inglaterra. No ano de 1505,

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segundo este autor, chegaram à Dinamarca com recomendações expressas, outorgadas por Jaime IV, da Escócia, e em setembro de 1512, entraram em Estocolmo. Em terras norueguesas aportaram em 1544, na condição de prisioneiros dos ingleses, defrontando-se com os fanters, ou seja, outro grupo nativo e nômade, a exemplo dos tinkers nas ilhas britânicas. Nesta mesma época, temos o registro de grupos que migraram da Suécia para a Finlândia e Estônia. No Reino da Polônia e o Grão-Ducado da Lituânia os “ciganos da montanha”, procedentes da Hungria, e os “ciganos da planície”, da Alemanha, encontraram acolhimento. Alguns grupos foram observados no Sul da Rússia, em 1501, enquanto outros tinham como ponto de partida a Polônia com destino à Ucrânia, chegando finalmente à Tobolsk, na Sibéria, em 1721, de acordo com os registros de Foletier (1984).

Figura 1. Os ciganos, que predizem o destino, retratados na obra de Sebastiano Münster, Basle.

Fonte: FONDAZIONE ISTITUTO INTERNAZIONALE DI STORIA ECONOMICA “F. DATINI”, [19--].

De modo geral, populações ciganas já eram registradas em todos os países da Europa, nos séculos XV e XVIII, bem como em suas colônias e possessões europeias localizadas em sua maioria nas Américas e na África. Esta dispersão não era produto de migrações espontâneas, mas resultante das sucessivas deportações, iniciadas no final do século XVI, e principalmente aquelas motivadas pela Inquisição Medieval,

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RuAção: Das epistemologias da rua à política da rua

sob acusações de heresias, nos séculos XII e XIII. No caso dos ciganos de Portugal e Espanha, os destinos dos degredados eram Angola, São Tomé, Cabo Verde e Brasil. Assim também, no decorrer do século XVII, os “gypsies” escoceses foram enviados como mão-de-obra para as culturas agrícolas da Jamaica e de Barbados, e à Virgínia, no século XVIII. Condenados às penas de galés na França, no reinado de Luis XIV, obtiveram a liberdade mediante a partida para as “ilhas da América”, e assim foram recrutados entre colonos pela Companhia das Índias, radicando-se em Nova Orleans e Lousiana. (FOLETIER, 1984).

Segundo Lima (1996), os relatos da tradição oral cigana e os registros historiográficos convergem em certos aspectos, apresentando pontos de concordância sobre o início desta dispersão, quando então, os ciganos afirmavam ser cristãos exilados do Pequeno Egito, sua pátria de origem. Durante estas peregrinações sem fim, estes apresentavam documentos de reis, bulas papais, onde sempre constavam recomendações especiais referentes a medidas protecionistas. Entretanto, segundo várias fontes, a presença destes grupos que embora não-belicosos, eram considerados antissociais e nômades (em uma época em que o nomadismo já não era mais uma característica dos povos europeus), começou a gerar motivos os mais diferenciados possíveis, conduzindo assim a desconfianças e intrigas.

A partir de então, uma nova paisagem seria delineada, com territorialidades definidas pelos rastros de expulsões e perseguições, predominantemente pelas políticas religiosas do Vaticano, através do Santo Ofício Inquisidor, “ao incitarem situações malévolas, impregnadas de violências contra os ciganos, estimuladas por um “fervor religioso”, ameaças de excomunhão dos fiéis sob suspeitas de manterem relações de qualquer ordem ou nível com os mesmos” (LIMA, 1996, p. 30). Estes fatos determinaram lugares marcados pela topofobia, ao abarcarem os horrores de processos fundados em censuras, sanções e repressões, das torturas e execuções, que visavam punir às muitas acusações de heresias, bruxarias, antropofagia, além de outros modos de vida considerados pagãos. Desta forma, conforme Locatelli (1981), eram iniciados na Áustria, em 1497, registros de uma longa trajetória de perseguições e expulsões; dois anos após, na Espanha; na França, em 1504, e na Polônia, em 1577.

Adentrando no século XVIII, podemos constatar da parte de alguns Estados europeus, um novo período de legislações anti

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ciganas, quando a proibição da passagem das caravanas através de suas fronteiras, obrigou os grupos a viverem em espaços pré-determinados de confinamento. As sanções penais impostas tanto na Alemanha como na França, se caracterizavam pela existência de um tipo de “carta branca” que justificava a eliminação dos homens, como prática legal de extermínio racial, simultaneamente às práticas de torturas públicas e separação de crianças e mulheres, sendo que estas tinham os seus cabelos raspados. (LOCATELLI, 1981).

Já as políticas da Coroa Portuguesa eram alinhadas aos objetivos do povoamento de suas colônias, sendo os ciganos ibéricos deportados para Angola e Brasil, conforme documentos dos séculos XVII e XVIII. Estes grupos de “novos colonos”, segundo Locatelli (1981, p. 38), “eram imediatamente integrados nas fileiras do exército, nas obras régias, em diversos cargos públicos de certa responsabilidade”, ficando sob a supervisão das autoridades encarregadas do cumprimento das ordenações imperiais. Nos meados do século XIX, os ciganos no Brasil já se encontravam adaptados à população, sendo inclusive aceitos pela classe alta, e recebendo honrarias de D. João VI. Neste processo de adaptação, Locatelli (1981, p. 46) elucida que “desvincularam-se de antigos costumes e renunciaram as suas antigas tradições para serem melhor aceitos”. Deste modo, tornaram-se sedentários, fixando residências, adaptando-se à sociedade da época, encaminhando, conforme o autor, “seus filhos para as ciências jurídicas”, sendo “identificados nas nossas mais altas cortes”.

Sobre a presença dos ciganos na Península Ibérica, Grande (1984) afirma ser o salvo-conduto de Alfonso V, o Magnânimo, de janeiro de 1425, em Zaragoza, a prova documental mais antiga sobre a entrada dos mesmos na Espanha. Este documento encontra-se no Arquivo da Coroa de Aragão, em Barcelona, e seu conteúdo refere-se a uma autorização de trânsito e moradia na Espanha para o grupo de Juan de Egipto Menor. Posteriormente a este primeiro salvo-conduto, vários outros se sucederam, visando garantir os deslocamentos dos grupos ciganos em território espanhol, tendo como justificativas suas peregrinações a Santiago de Compostela e a Roma, sendo estas “apenas mascaramentos para serem tolerados nas terras da Europa cristã”. (GRANDE, 1984, p. 30). Todavia, esta situação não perduraria por muito tempo, pois a intolerância sociocultural amalgamada a

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um cristianismo exclusivista levaram à tomada de posicionamentos discriminatórios e de rejeições:

... muito rapidamente os verdadeiros traços zíngaros começaram a ser interpretados de um modo menos aprazível: aquela gente, inconcebivelmente, amava a mobilidade; sua obediência era simulada; suas palavras, estranhas; suas roupas, exóticas; suas condutas [...] ininteligíveis e por isso perturbadoras. Enfim, suas roupas, sua fala, seus costumes, tudo isso denunciava o estranho, o temível, o Outro... A lua-de-mel entre duas culturas tradicionalmente antagônicas (uma cultura sedentária e uma cultura nômade) tinha que acabar. Uns extremariam sua força e os outros, sua astúcia. Essa astúcia estimularia a rejeição da cultura assentada e majoritária. E essa rejeição faria nascer no cigano um encrespado e frequentemente beligerante orgulho. A fenda aberta só podia se aprofundar. (GRANDE, 1984, p. 30).

De acordo com o autor, no fim do século XV, mais precisamente em janeiro de 1499, as disposições judiciais contra os “egípcios” foram iniciadas na Espanha, mediante um decreto dos Reis Católicos, conhecido como “Pragmática de Medina del Campo”, tratando-se de uma proibição do nomadismo sob pena de castigos severos. Esta primeira disposição se constituiria no marco inicial de três séculos de sanções legais contra as populações ciganas, entre as quais se destaca o Decreto de Carlos III, datado de 19 de setembro de 1783 — “Regras para conter e castigar a vagamundeação e outros excessos dos chamados ciganos”. Para Grande (1984, p. 30), as causas ou motivos dos castigos eram plenos de ambiguidades ou até mesmo inexistentes, contudo, poderiam resumir-se “a apenas uma: o rancor contra uma maneira de viver que contém a insubmissão”. Durante o século XVIII, o nomadismo dos grupos ciganos, considerado como uma conduta de desobediência civil, geraria castigos e condenações individuais e coletivas, abrangendo todas as faixas etárias e gêneros, sendo registradas exterminações dentro e fora dos limites dos seus lugares de confinamento, visando unicamente o desaparecimento desta “infame raça”.

De acordo com Lima (1996), os ciganos ibéricos também foram motivo de estudos acadêmicos desde o século XIX, sendo a obra de

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Coelho (1892), um dos primeiros trabalhos de caráter geo-histórico e etnográfico, considerada uma rica fonte de informações sobre os gitanos espanhóis e os ciganos portugueses – suas características étnicas, o dialeto calón e suas migrações. Seus estudos, de abordagem etnográfica, abrangeram pesquisas étnico-linguísticas, levantamentos bibliográficos, pesquisa em coleções de documentos históricos desde os idos de 1500, compreendendo ainda pesquisas de campo junto às comunidades ciganas e colóquios com outros ciganólogos. A divulgação destes estudos para a comunidade científica da época, se deu por ocasião do Congresso Internacional dos Orientalistas, promovido pela Sociedade de Geographia de Lisboa, em 1880, objetivando “a direcção em que se collocam os espíritos menos phantasistas e que é a que prevalecerá naturalmente, na sciencia”. (COELHO, 1892, p. 4).

A partir de relatos, fundamentados na história oral dos ciganos, Coelho (1892) atribuiu como região de origem destes, o Egito, surgindo então as denominações de gitanos, gypsies, derivadas de egitanos, egypsianos. Seu “esboço histórico e etnográfico”, também considerou várias fontes literárias e científicas, e deste modo, gerou um questionamento sobre a origem dos tsiganos, pois com base nas Constituições da Catalunha, acreditava-se em uma origem grega, em conformidade com muitos documentos onde eram denominados de gregos. Sobre os ciganos da Península Ibérica, Coelho (1892, p. 167) trouxe vários pontos de discussões, considerando a obra O Cancioneiro Geral, coligida por Garcia Resende, em 1515, como “o mais antigo testemunho português, de mim conhecido acerca dos ciganos”, onde constam as passagens dos versos de Affonso Valente sobre os gregos.

A obra El Estudioso Cortesano, de Lorencio Palmireno, considerado na época um renomado e erudito humanista e professor de grego na Universidade de Saragosa, datada de em 1517, constituiu-se como uma das principais referências sobre as indagações concernentes às origens dos ciganos, embora com juízos e valores negativos, como podemos observar:

Que son Gitanos? Responde: Esta ruyn gete, año 1517, començo en Alemaña, adonde les Ilaman Tartaros, o Gentiles: en Italia Cianos. Fingem que salieron de Egypto menor, y que tienen su perigrinacion por penitecia: y para prouar esto muestrã cartas del rey de Polonia. Pero mienten,

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porque su vida no es de penitencia, sino de perros y ladrones. Vn hombre docto, año 1540, cõ muitos halagos recabo dellos, mostrassen la carta del rey, y vio con ella ser ya acabado el tiempo de su penitencia. Hablo con elles en lengua de Egypto, dezian, que como auia mucho tiempo que eran salidos de alla, no lo entendiam. Habloles en Griego vulgar, como hablan hoy en la Morea y Arcipelago, vnos entendiam, otros no: ansi, que pues todos no entienden, señales, que la lengua que traen es fingida y de ladrones para encobrir sus furtos, como la girigonça de los ciegos. (PALMIRENO apud COELHO, 1892, p. 165-166).

No campo da Literatura, a obra Farça das Ciganas, de Gil Vicente (1521), e a de Cervantes (1612), La Jitanilla , também contribuíram para a visibilidade bem como de um imaginário sobre os ciganos que permaneceriam ligados à Espanha, pois segundo Coelho (1892, p. 174-175) “não ha nenhum dado histórico ou supposição bem fundada que nos auctorize a pensar que a primeira vinda de ciganos para Portugal fosse anterior de muitos annos ao fim do seculo XV”. Também no período compreendido pelos anos de 1525 e/ou 1535, devido à incerteza dos dados documentais, de acordo com Coelho (1892), e com a disseminação dos grupos ciganos pelas províncias portuguesas, foram solicitadas à Coroa, providências restritivas e punitivas contra os mesmos, visto as acusações de diferentes naturezas. (LIMA, 1996). Tais medidas motivariam a criação do “Alvará de 1526”, seguido da “Lei de 1538”, conforme Coelho (1892, p. 230-231):

No 1

1526

“Alvará de 13 de Março de 1526, para que não entrem Ciganos no Reino, e se saião os que nelle estiverem; e diz quasi o mesmo que a lei 24. das chamadas das Cortes, e de 26 de Novembro de 1538, e a Ord. nov. (philippina), liv. v. tit. 69. no pr.

-  [José Anastacio de Figueiredo, Synopsis chronologica. Lisboa, 1790, x, 321, que cita o Liv. roxo ou 8. da Supplicação, fl. 244.]---------

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No 2

1538

No volume intitulado Capitulos de cortes e leys que se sobre alguñs delles fezeram. Com priuilegio real. (74 fol.; tem no fim: Forã impressos estes Capitolos e ley per mandado del rey nosso senhor na cidade de Lixboa: per Germã Galharde empremidor. E acabarã se aos iij dias do mes de Março. Anno de M.D. xxxix.), do qual tive presente um bello exemplar em pergaminho do Archivo Nacional, acham-se; “Capitolos geraes: que foram apresentados a el Rey do Johã: nosso senhor terceiro deste nome: xv Rey de Portugal: nas cortes de Torres nouas: do anno de mil e quinhetos e vinte e cinco. E nas Deuora: do anno de mil e quinhetos e trinta e cinco: com suas respostas. E leys que ho dito senhor fez sobre alguus dos ditos capitolos. As quaes forã publicadas na Cidade de Lixboa, no año xvii. de seu Reynado: e xxxvii de sua idade; xxix dias do mes de Nouembro. Anno do nacimeto de nosso senhor Jesu christo. De mil e quinhetos e trinta e oyto ãnos” e entre eles se lê a fol. xxxvi:

Capitolo CXXXVIII

“Item, senhor, pedem a vossa alteza aja por bem que nunca em tempo alguu entre ciganos em vossos reynos; porque delles nào resulta outro proueito se não muytos furtos que fazem e muytas feytyçarias que finge saber: em que o pouo recebe muyta perda e fadiga.”

Reposta

“Ey por bem que não entrem ciganos em meus reynos daqui por diante como neste capitolo me pedis e disso farey ley”.E a fol. LXVII:Ley XXIIII. Que os ciganos não entrem no reyno.

“Vendo eu o prejuizo que se segue de virem a meus reynos e senhorios ciganos: e neles andarem

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vagando pelos furtos e outros maleficios que cometem e fazem em muyto dano dos moradores de meus reynos e senhorios. Mando que daqui em diante nenhuus ciganos assi homes como molheres entrem em meus reynos e senhorios: e entrando sejam presos e pubricamête açoutados com baraço e pregam: e despoys de feita nelles a dita execuçam lhe sera assinado termo conveniente em que se sayã dos ditos reynos e senhorios. E se despoys de passado o dito termo for mais achada algua das ditas pessoas por não se sayr dentro no dito termo; ou posto que se saisse tornar outra vez a entrar nos ditos reynos e senhorios: sera outra vez açoutado pubricamente com baraço e pregam: e perdera todo o mouel que teuer e lhe for achado: a metade pera quem ó accusar: e a outra metade pera a misericordia do lugar onde for preso. O que auera lugar assi nos ciganos como em quaesquer outras pessoas de qualquer naçam que forem que andarem como ciganos: posto que ho não sejam. Porem sendo alguu natural de meus reynos não sera lançado fora delles: e sera degradado dous annos pera cada huu dos lugares dafrica: alem das sobreditas penas.”

As sanções legais fundamentavam-se em acusações variadas que compreendiam desde furtos, vestuário característico até a prática de feitiçarias, cartomancia e “irreligiosidade”. Esta visão permaneceria durante todo o século XV, gerando várias leis, decretos, alvarás contra os grupos ciganos, tendo como objetivo resguardar a população portuguesa dos possíveis “malefícios” causados por eles. Deste modo, a comutação das penas foi cada vez mais crescente, abrangendo torturas e castigos públicos, seguidos de expulsão, degredo para África; registrando-se também, as chamadas penas com galés e a pena capital, previstas na “Lei de 1592”, de acordo com Coelho (1892):

1592

Lei de 28 de Agosto de 1592, em que se exasperão mais as penas contra os Ciganos, que dentro de quatro meses não sahissem de Portugal, ou se não avizinhassem nos Lugares sem andarem vagabundos, não podendo andar, nem estar, ou viver mais em ranchos, ou Quadrilhas; tudo sob

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pena de morte natural, que se faria executar, fazendo-os para isso prender os Ministros das terras, e procedendo contra elles até à execução sem appellação, nem aggravo.

[Figueiredo, Synopsis chronologica, II, 961].

Ainda neste período, temos processos resultantes das ações do Santo Ofício, contudo, Coelho (1892, p. 177) observa não conseguir “todavia encontrar mais que um processo inquisitorial em que seja ré uma mulher d’essa raça e nenhum em que seja reu um caló”. Este processo datado de 1582, era referente à cigana Garcia de Mira, acusada de feitiçarias como, por exemplo, fazer “apparecer a figura de um defunto num papel posto em água”, porém, após sua confissão, os inquisidores não julgaram que houvesse a “unha de Satanaz”, pois a cigana alegara ha ver usado pedra hume para riscar o papel. O caso foi encerrado com repreensões, mais a obrigatoriedade da devolução do dinheiro e do pagamento das custas processuais. Borrow apud Coelho (1892, p. 178), “diz não ter encontrado nenhum exemplo de interferência da Inquisição de Hispanha com os gitanos”, elucidando que “esse facto, á primeira vista singular, com uma gente cujos costumes causavam por certo horror aos bons cathólicos peninsulares, que não podiam ver nelles se não atheus, vivendo em peccaminosa concubinagem, encantadores e adivinhos”.

Apesar dos preconceitos e percepções distorcidas que perduraram por séculos, Coelho (1892, p. 192), analisou o modo de vida de alguns grupos, bem como suas tradições, reconhecendo o que considerou como os sentimentos principais:   o amor extremoso dos filhos; a fidelidade conjugal; a fraternidade; o respeito aos velhos. Também acrescentou o sentimento de gratidão do cigano aos estranhos que os protegem, ressaltando o respeito e a lealdade envolvidos nestas situações. A obra de Coelho (1892) teve um valor indiscutível na época, ao se constituir-se em um referencial pioneiro sobre os estudos e pesquisas dos ciganos ibéricos, assim como pelo seu trabalho de pesquisa documental, entretanto, destacamos que o autor já levantava as dificuldades originadas pelo «caracter desconfiado e supersticioso d’essa gente” (COELHO, 1892, p. 181), fator comum entre todos os pesquisadores até nossos dias.

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Com referência à presença dos ciganos no Brasil, China (1936, p. 58) nos apresenta um ato governamental de D. Sebastião, datado de 1574, referente ao cigano João Torres, versando sobre a comutação de sua pena de galés em desterro para esta colônia portuguesa, onde poderia vir acompanhado de sua família. Esta resolução é considerada entre os documentos coligidos por diversos pesquisadores, inclusive por Adolpho Coelho, como o mais antigo registro sobre a vinda dos ciganos para o nosso país. Posteriormente, no período colonial, muitas outras famílias ciganas chegaram ao nosso país, desterradas de Portugal, com a preservação dos mesmos hábitos de vida nômade, percorrendo o interior do território brasileiro, tendo como principal destino o Maranhão, como atestam, segundo China (1936), os relatos e crônicas do inglês Henri Koster, durante suas viagens pelo Norte do Brasil, entre os anos de 1809 e 1815. Em suas viagens pelo sul do país, Saint-Hilaire (1940, p. 138-140), em meados de outubro de 1819, também registrou a presença dos ciganos no interior de São Paulo:

Estava acampado em Urussanga, enquanto alí permanecí, um numeroso bando de boêmios (ciganos). Êsses indivíduos eram estabelecidos numa vila vizinha — Mogí-Guaçú; mas espalhavam-se pelo país, para fazerem, segundo o costume de sua raça, permutas de muares e cavalos. Haviam construído uma choça em Urussanga, e, quando não necessitavam de seus animais soltavam-nos nas pastagens dos arredores, que são excelentes. Nunca os ouví falar outra língua senão a portuguesa; estavam vestidos como os brasileiros, mas tinham os cabelos compridos e longas barbas. Perguntei-lhes por que, contrariando o costume do país, deixavam crescer a barba; mas só obtive respostas evasivas. Todos tinham boa aparência; possuíam escravos e grande número de cavalos e de animais de carga. Na época de minha viagem, eram os ciganos, principalmente, que, no Rio de Janeiro, faziam, em segunda mão, o comércio de escravos, e entre os mesmos encontravam-se homens muito ricos. “Os ciganos (boêmios), diz ESCHWEGE, “foram convidados para as festas organizadas na capital do Brasil, por ocasião do casamento da filha mais velha do rei D. João VI com um infante da Espanha. Os jovens da raça, tendo à garupa suas noivas, entraram na arena,

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cavalgando belos cavalos, ricamente ajaezados. Cada par soltou ao solo com incrível ligeireza, e todos juntos executaram lindas dansas jamais vistas. Todos os olhares estavam postos nas jovens boêmias, e as outras dansas pareciam ter por único fim fazer sobressair as das mesmas jovens, dansas mais interessantes e agradáveis”.Os ciganos de Urussanga passaram um dia inteiro procurando fazer trocas com os proprietários das duas caravanas que, comigo, estavam abrigadas no rancho. Em tom de brincadeira, falei a um deles da pouca probidade de que é acusada a sua raça. “Eu engano tanto quanto posso, — respondeu-me sèriamente —; mas todos os que comigo negociam fazem o mesmo. A única diferença que existe entre nós, é que êles dão altos gritos quando se vêm embrulhados, ao passo que se me embrulham, nada digo a ninguém”. O mais idoso do bando, belo tipo de velho, veio numa tarde consultar-me. — “O senhor é médico?” — disse-me êle. — “Não”, — respondí. — “O senhor não quer confessar, mas se não fôsse médico, não andaria colhendo tantas ervas”. Neguei quanto pude, mas inùtilmente, pelo que me resignei a aceitar o título de médico.

A presença dos ciganos em território brasileiro é constatada desde os séculos XV e XVI, e Debret, no século XIX, dedicou uma de suas ilustrações para retratar a residência de um rico cigano, no Rio de Janeiro, dedicado ao comércio de escravos. (FIG.2). Para Mota (1984, p. 32), nos idos de 1808, constituíam comunidades na Bahia, Pernambuco, Rio de Janeiro e Minas Gerais, formadas por ciganos de origem ibérica desterrados, justificadas pelas sistemáticas perseguições, tendo em vista que eram tidos como “hereges, feiticeiros e inconvenientes à sociedade da época”. Sant’Ana (1972) corrobora que a origem dos ciganos no Brasil se apresenta historicamente por meio dos alvarás, atos e disposições legislativas da Coroa Portuguesa, sendo detalhadas as informações sobre as condições das penalidades sofridas, denúncias ao Santo Ofício, mais precisamente ao visitador inquisitorial Mendonça Furtado. Para a autora, disseminaram-se pelas diversas capitanias a Norte e a Nordeste, sendo observados (com base em documentos do século XVIII) em um momento posterior, em Minas Gerais, São Paulo, Rio de Janeiro e Sul do Brasil.

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Figura 2. Litografia sobre papel: “Interior de uma residência de ciganos”, Jean Baptiste Debret (1835).

Fonte: WIKIMEDIA COMMONS, [19--].

Quando trazemos à luz as paisagens vividas e suas histórias, notamos que em todas as épocas nascer cigano em qualquer parte do mundo onde vivessem, já era em si uma contravenção ou uma heresia, levando ao desenvolvimento de processos de resiliência milenares, mas que exigiram adaptações constantes para o enfrentamento de outros processos derivados da sedentarização, marginalização, exclusão, escravatura, preconceito e banimento: os gadjés continuariam engendrando imagens distorcidas, enquanto inquietações eram engendradas no espírito de povo Rom. (LIMA, 1996). As sanções legais e morais referentes às permissividades e libertinagens atribuídas aos ciganos — “os corvos do Egito” como foram chamados na França, longe da verdade concernente a vários casos, eram muito mais resultantes da falta de arbitrariedade e justiça social, permitindo que imaginários distorcidos fossem exacerbados por atos severos de repressão e coerção, mediante imagéticas e representações refletiam os medos, superstições, religiosidades, conflitos, discriminações, ideologias da sociedade europeia, marcando indelevelmente as realidades de modo adverso para as populações romanis. (FIG.3). (LIMA, 1996).

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Figura 3. Cartaz publicitário, em língua romena, anunciando a venda de escravos ciganos, em Bucareste, ano de 1852, extraído da obra de Ian F. Hancock, “The

pariah syndrome: na account of Gypsy slavery and persecution”, Karoma Publishers, 1987, p. 46.

Fonte: WIKIPEDIA, [19--].

Para Charlemagne (1984, p. 17), o reconhecimento da gente de viagem ou gitanos, se estabeleceu mediante construções e comparações negativas em função da percepção dos modos de vida sedentários dos não-ciganos, onde a “identidade sociocultural nunca é levada em conta”, a menos que representasse um problema para a sociedade. Neste sentido, ao analisarmos as condições desta franja marginalizada, constatamos que a resistência cigana preservou suas tradições e seu passado, como uma forma de resiliência às ameaças de destruição de sua identidade cultural, sob conjunturas nem sempre as mais favoráveis: eram o outro, os estrangeiros, eram gente de passagem... O ser

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diferente, sob quaisquer circunstâncias era vivido em paisagens onde a percepção do tempo cronológico mesclava-se ao tempo interior, ou tempo de vivência, criando territorialidades imateriais, nas mais rudes e miseráveis materialidades experienciadas nos espaços percorridos. Nestas imaterialidades paisagísticas construíam seus lugares, não eram mais reclusos.

Nesta perspectiva, Janush (1984, p. 19) elucida que foram “as próprias condições de vida e a necessidade de se proteger contra um meio hostil que modelaram a estrutura da família cigana”. Mediante as adversidades geradas pelos diferenciados contextos históricos, a comunidade cigana desenvolveu seus próprios meios de proteção, processos de adaptação sociocultural e econômica, proporcionando a preservação de suas tradições e saberes, de modo a propiciarem uma coesão interna dos grupos face às atitudes de hostilização e exclusão da sociedade não-cigana, lembrando as terríveis injustiças cometidas no decorrer de séculos que privaram muitas gerações de todos os seus direitos civis e humanos. Para ilustrar sua afirmativa sobre a opressão social, persistente na Europa, durante séculos, Janush (1984, p. 19-20), cita a obra de sua irmã Katarina Taikon, Zinganare är vi, (Nós Somos Ciganos):

Da Grécia os ciganos se dispersaram por diversas regiões da Europa. Alguns rumaram para o norte — Moldávia e Valáquia, que faziam parte da Romênia -, onde muitos foram reduzidos à escravidão, que durou até meados do século XIX. Em 1845 os jornais de Bucareste publicaram anúncios referentes à venda de 200 famílias ciganas pertencentes a um boiardo romeno. Em 1851 apareceu em um diário oficial da Moldávia um anúncio com os nomes e a descrição de 94 homens, 85 mulheres, 86 meninos e 84 meninas de raça cigana que haviam pertencido ao falecido ministro Alceu Sturdza e estavam sendo vendidos juntamente com parte da mobília.

Entretanto desde o século XIX até o presente século, os movimentos migratórios das famílias ciganas vêm acontecendo tanto de maneira voluntaria como imposta por políticas discriminatórias em vários países, no que tange aos seus deslocamentos da Europa para as Américas ou outras regiões, continuamente marcados por perseguições, conflitos, extermínios, assentamentos, além de outras

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conjunturas adversas, deixando no espaço vivido, os rastros indeléveis do acirramento dos confrontos e do enfrentamento de situações decorrentes. Principalmente nos séculos XX e XXI, continuamos a encontrar muitos grupos ciganos sob contextos distintos, oscilantes entre a quase total adaptação cultural ao modo de vida e valores gadjés, (ou seja, não-ciganos), contrastando com a persistência de seus próprios modos de vida nômade ou seminômade, porém, ainda sofrendo com a marginalização socioeconômica e o preconceito cultural, que vem se acentuando novamente de modo intenso, a ponto de recriarem inusitadas geografias de reclusões. A efetivação de políticas de sedentarização e aculturação, cujos objetivos alegados visam integrar as populações ciganas nas sociedades, bem como a implementação de outras medidas oficiais, geralmente não atingem suas metas, apresentando resultados tanto de baixa eficiência como de eficácia, além de contribuir ainda mais para evidenciar os contrastes existentes nas diferentes comunidades ciganas.

Dentre estas políticas, nas primeiras décadas do século XX, que apresentavam várias convergências, podemos lembrar aqui da criação de alojamentos infantis, pelo império austro-húngaro, quando as crianças foram separadas de suas famílias, para cursar escolas regularmente, além de frequentarem a igreja. Estas políticas separatistas tinham como diretriz a extinção da identidade cigana, ao afastarem as novas gerações dos seus grupos de origem, e por decorrência, causariam uma ruptura causada pelo desconhecimento de suas tradições, levando aos poucos à perda de sua identidade cultural. Também a França em suas políticas de recenseamento dos grupos ciganos, instituiu medidas oficiais, a exemplo, das carteiras antropométricas, onde constavam dados pessoais, especificando características raciais particulares dos indivíduos, que deveriam ser apresentadas às autoridades, garantindo um “controle” respectivo ao trânsito dos ciganos em território francês, assim como por extensão, em quase toda Europa.

Na Inglaterra, verificamos na literatura que foi realizado um censo de sua população cigana, caracterizado por inúmeros problemas de ordem prática — analfabetismo, informações de terceiros, grupos recenseados mais de uma vez, enquanto outros, nem sequer constavam dos formulários. Na Itália, durante o reinado de Vitor Emanuel III, no período que antecedeu a II Guerra Mundial, os ciganos tiveram algumas garantias, graças ao casamento do rei com

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Helena de Montenegro, descendente de ciganos. Já nas regiões das extintas Iugoslávia e Tchecoslováquia, desenvolviam atividades correlacionadas ao comércio de animais e aos ofícios de ferreiros e caldereiros, praticamente não se distinguindo do restante da população, devido ao modo de vida sedentário, embora habitassem as periferias e entornos urbanos. Na Espanha, restaram aos ciganos as periferias urbanas e os confinamentos em certas áreas, à semelhança de guetos quanto às situações de reclusão vividas. Na antiga URSS, tanto no período de suas revoluções como de pós-guerras, os esforços eram direcionados às políticas de sedentarização, implicando no abandono do nomadismo, e assentando os grupos ciganos em fazendas coletivas, sob a ótica de uma modernização baseada nos ideais socialistas. Contudo, não se estabelecendo o cumprimento dos padrões de trabalho considerados como socialmente úteis, os aprisionamentos em campos de trabalhos corretivos tornavam-se a realidade final para muitos deles. (LOCATELLI, 1981, p. 39-40).

Entretanto, durante as décadas de trinta e quarenta, observou-se um maior rigor neste controle devido às ideologias sobre raça e saúde hereditária, disseminadas principalmente, pelas políticas intervencionistas do Partido Nacional Socialista, na Alemanha, designadas como política populacional biológica. Na Alemanha de Hitler, outras políticas foram estabelecidas anteriores à II Guerra Mundial, durante as décadas de 1930 e 1940, trazendo em seus bojos, um acentuado rigor quanto ao controle dos grupos ciganos, devido às ideologias sobre raça e saúde hereditária, disseminadas principalmente, pelas políticas intervencionistas do Partido Nacional Socialista, na Alemanha, designadas como política populacional biológica. Nesta perspectiva, as políticas e ações eram alinhadas visando o extermínio dos ciganos, face às situações pelas quais foram submetidos – foram separados, recenseados, marcados, isolados, confinados, e por fim, exterminados nos campos de concentração. (LIMA, 1996).

A partir de 1933, as restrições e punições dirigidas à população cigana, tornaram-se mais severas, simultaneamente ao crescente interesse pelos estudos raciais que eram fortemente estimulados, tendo em vista as palavras de Eva Justin apud Novitch (1984), assistente do Dr. Ritter, pois o sangue cigano poderia ser considerado como “extremamente perigoso para a pureza da raça alemã”. Em detrimento da impossibilidade de negação da origem ariana dos ciganos, o

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Prof. Hans F. Guenther classificou-os numa categoria denominada Rassengemische, ou seja, mistura racial indeterminada, podendo vir a “corromper a pureza do sangue dos camponeses alemães” (NOVITCH, 1984, p. 24), conforme a afirmativa do Dr. Portschy. Estas colocações dariam início aos planos de ações coordenadas, abarcando as práticas genocidas de caráter sociocultural e biológico.

De acordo com documentos da época – novembro de 1936 – as pesquisas desenvolvidas pela Sociedade Alemã de Pesquisa, impregnadas de uma “naturalidade rotineira”, integrariam sob a coordenação do Dr. Ritter, psicólogo e psiquiatra, um estudo sobre a população cigana, enquadrada à semelhança dos judeus, na temática sobre antissociais e sobre a biologia de bastardos (ciganos e judeus). Estes trabalhos científicos procuravam justificar o expurgo daqueles considerados não pertencentes à raça ariana. Segundo Müller-Hill (1993), os estudos realizados através do Departamento de Pesquisa sobre Higiene Racial e Política Populacional, da Comissão de Saúde do Reino, em Berlim, recebiam os subsídios necessários, tanto a nível financeiro como de materiais, considerando-se a sistematização dos preceitos sobre “raça” da ideologia nazista. Nos anos de 1937 e 1938, os ciganos foram aprisionados em massa como criminosos inveterados de hábitos antissociais, passando a ocupar uma ala no campo de concentração de Buchenwaldt. Em Ravensbrück, suas mulheres e meninas sofreram os processos de esterilização das medidas de despovoamento pelo “Das Sterilisierungsprogramm der SS”, e de acordo com Lustig (1991, p. 156):

O Dr. Treite investigou a esterilização em meninas; ele preferia pequenas meninas ciganas com menos de 10 anos. Antes do tratamento eram desvirginadas pelos homens da SS. Era-lhe totalmente indiferente que elas se contorcessem de dores no chão do Revier do campo de concentração Ravensbrück. “Temos de esterilizá-las muito cedo, por que elas estão em condições de ter filhos já com 13 anos de idade”, esta era a sua argumentação.Treite, Wirts, Clauberg e dúzias de outros médicos da SS, todos eles médicos condenáveis, e seus superiores até Himmler e Hitler, sonhavam quando não estavam assassinando. Sonhavam com as grandes áreas no leste que eram povoadas por “árvores infrutíferas”. Sonhavam com países inteiros sem crianças, países a ele subjugados, nos

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quais trabalhariam milhões de homens castrados e mulheres esterilizadas, dia e noite, para a glória dos Übermenschen nazistas.

No ano de 1938, com a transferência da “Central Nacional de Questões Ciganas”, para Berlim, sob intervenção pessoal de Himmler, ocorria também a detenção de trezentos ciganos na aldeia de Mannwoerth, proprietários de terras e vinhedos nesta região. Assim, neste período, foram classificados três tipos de genocídio: 1) por eliminação da capacidade de procriar; (2) por deportação; (3) por extermínio; e no caso dos ciganos, todas estas maneiras de morrer foram testadas. (BILLIG apud NOVITCH, 1984, p. 24). O primeiro ocorreu no Hospital de Dusseldorf-Lierenfeld, com a esterilização de mulheres ciganas casadas com não-ciganos, sendo que muitas faleceram pelo fato de estarem em diferentes estágios de gravidez. Contudo, temos registros documentais sobre a esterilização de cerca de cento e vinte meninas de origem cigana, em Ravensbrück. Em relação ao segundo tipo, verificou-se a deportação de cinco mil ciganos da Alemanha para o gueto de Lodz, na Polônia, porém, as condições desumanas e miseráveis dos prisioneiros deste lugar, levaram estes à morte por motivos diversos, tais como a fome, as experiências científicas, as sucessivas epidemias, e o suicídio devido a estados de choque. Estes lugares de medo e horrores – os guetos – “eram estações para o caminho da rampa da morte de Birkenau-Auschwitz”, para Lustig (1991, p. 51). O último tipo se deu em meados de outubro de 1941, sob a supervisão de Heydrich, responsável pelos métodos respectivos que denominavam como solução final para as questões raciais: os ciganos foram considerados como evacuáveis, recebendo tratamento especial. E sob esta visão, as práticas de extermínio foram implementadas com uma crueldade sem precedentes na época na sociedade europeia, justificadas pelos ideais em voga da Deutsche Kultur.

Durante todo o ano de 1941, os ciganos seriam vítimas do chamado tratamento especial, sendo eliminados em campos de concentração ou executados em campo aberto, e de acordo com Novitch (1984, p. 24), um dos piores massacres coletivos fora dos campos, teria ocorrido na Iugoslávia, quando ciganos e judeus foram executados na floresta de Jajnice, onde “ainda hoje os camponeses se recordam dos gritos das crianças que eram levadas em caminhões para

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os locais de execução”. No inverno de 1941-1942, segundo Müller-Hill (1993, p. 27), Ritter participaria de uma conferência sobre o estudo da morte por afogamento de cerca de trinta mil ciganos de origem alemã, embarcando-os em navios que seriam bombardeados no Mediterrâneo, posteriormente. Também durante o mês de janeiro de 1942, de acordo o autor, seriam exterminados com monóxido de carbono nos postos de extermínio de Kulmhof (Chelmno). Em dezembro de 1942, sob o comando de Himmler, todos os ciganos mestiços foram evacuados para o campo de concentração de Auschwitz, o mais hediondo de todos do complexo de campos da morte, estando o mesmo sob a administração de Rudolf Hess.

Nestes tempos, Auschwitz tornar-se-ia o principal centro de extermínio, devido às medidas mais sistematizadas e planejadas de liquidação das raças inferiores. Quanto à população cigana, o pior massacre neste campo, teria ocorrido na noite de 31 de julho de 1944, de acordo com o sobrevivente Kulka Kraus, em sua obra A Fábrica da Morte (NOVITCH, 1984). A autora acredita que foram mortos cerca de 500 mil ciganos, contudo, os índices reais são ignorados, tanto a respeito dos mortos, quanto dos sobreviventes. Para Novitch (1984, p. 24): “os ciganos tentaram resistir à morte, mas a crueldade e o poderio de seus inimigos, prevaleceram à sua coragem. O amor à música serviu-lhes por vezes de consolo no martírio. Famintos e cobertos de piolhos, eles se juntavam diante dos hediondos barracões de Auschwitz para tocar música, encorajando as crianças a dançar”.

Neste sentido, Lustig (1991) relata as terríveis condições do Campo E ou Zigeunerlager, isto é, o campo de ciganos, situado ao lado direito da aleia que dividia ao meio o campo de Birkenau, para onde foram evacuados cerca de 22.696 ciganos, dos quais aproximadamente entre oito a dez mil sobreviviam em 1944, por ocasião da chegada dos judeus deportados da Hungria. Em agosto de 1944, em uma noite quente e estrelada, conforme sua narrativa, deu-se o bloqueio deste campo – Blocksperr – para formação das filas para a seleção, ordem que devia ser compreendida como a indicação para a morte. Consoante Lustig (1991), o massacre dos ciganos iniciou-se em torno das vinte e duas horas e todos foram mortos nas câmaras de gás, sendo os corpos enviados aos crematórios do campo. Embora os ciganos não existissem mais neste lugar, este campo continuou a ser denominado de Zigeunerlager, e a descrição

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pungente deste autor, evoca as paisagens estabelecidas por entre os territórios do medo existentes nos campos de concentração:

Naquela interminável noite de verão, todos os ciganos do campo E, em Birkenau-Aschwitz, foram mortos por gás e queimados. Crianças nascidas no campo e jovens ciganas que ainda sonhavam ser sequestradas por rapazes e levadas através de caminhos secretos só conhecidos por eles, em cavalos ligeiros como o vento, pelas florestas da Baviera; todos os Blockältesten e Vertreter, os senhores todo-poderosos de nosso bloco, junto com as videntes, que até o último instante haviam previsto, com a ajuda da concha cauri, dos grãos de trigo ou das cartas que voltariam a montar as suas caravanas ou tendas, que os colares voltariam a saltitar sobre os seios das moças durante a dança do diabo, durante todos os casamentos que não foram festejados, durante todos os batismos que não foram celebrados, porque nos campos da Saxônia, nos vilarejos de Thüringen, na beira das cidades da Bélgica e nas ruas asfaltadas da Holanda, as carroças, caravanas e tendas ciganas foram todas cercadas por carros e pelos SS, com carabinas prontas para abrir fogo, porque os ciganos foram jogados nos caminhões e deportados.Sim, naquela noite os descendentes dos famosos ciganos que contrabandeavam seda de Lyon, que durante séculos alegraram os senhores dos castelos à beira do Reno com suas músicas e danças, foram colocados dentro de caminhões negros e fechados, sendo todos eles asfixiados até a morte sem ao menos poderem dar uma última olhadela para o céu estrelado. Pessoas que só podiam viver quando eram livres para perambular pelas cidades e vilarejos, sobre caminhos escolhidos por eles, e andar por entre montanhas e vales, pessoas que amavam e viviam de acordo com leis e mandamentos próprios, e que tinham como testemunhas apenas a lua e os astros.De manhã amontoamo-nos diante dos blocos — ainda sem coragem de pisar na aleia — e olhávamos os blocos que do outro lado se alinhavam ao longo da aleia. Nenhum movimento. Um deserto assustador. Com as portas largamente escancaradas, os blocos pareciam túmulos vazios e profanados.

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Não se podia ver o céu sobre eles, porque uma grossa camada de fumaça negra, sufocante, o cobria. Vez por outra, imensas chamas ou fagulhas que saltavam das chaminés dos crematórios, cortavam-no, chocavam-se e sumiam como estrelas cadentes.Naquela noite, ninguém ouviu os apitos de uma locomotiva ou o matraquear das rodas dos trilhos. Mas não havia mais ciganos. Na área que eles haviam ocupado, nada mais se movia. Apenas aquela nuvem de fumaça grossa, negro-azulada, sufocante, descia cada vez mais sobre os blocos desertos com as portas amplamente escancaradas, que se assemelhavam a imensos túmulos vazios e profanados. (LUSTIG, 1991, p. 189-191).

A paisagem vivenciada até o fim da II Grande Guerra estaria marcada por lugares de morte, mesclando simultaneamente aspectos pertinentes à topofobia e à biofobia, entremeados de armadilhas, violências e destruição: assim, muito poucos sobreviveram a estas sincronias e diacronias de horrores. Mas restariam outros seres humanos como guardiões da memória em uma sociedade do esquecimento... Existiriam os lugares da memória, assim como as memórias subterrâneas ou marginais persistiriam...E neste breve intervalo histórico até os nossos dias, o pesadelo de raça voltaria a ser vivenciado como uma realidade cotidiana em várias partes do mundo. (LIMA, 1996). Nos diferentes contextos espaciotemporais do século XX e XXI, os ciganos ainda encontrariam resistências sociais, confrontos e conflitos diante do preconceito e práticas xenofóbicas, evacuações e desmantelamento de acampamentos e expulsões dissimuladas por vários governos europeus.

Ao considerarmos a inserção socioeconômica e cultural das comunidades ciganas em nossa sociedade, abrangendo educação, emprego, saúde e habitação, continuamos a registrar discriminações e agressões diretas e indiretas em diferentes níveis e, até mesmo, por motivos tais como a simples aparência cigana. Em muitos países europeus as situações tornam-se dramáticas com a crescente retomada de movimentos nacionalistas de extrema direita, agravadas com a somatória de diversificadas conjunturas resultantes de legislações referentes à imigração, obtenção de cidadanias, proibição de entrar em determinadas cidades, além da transferência de crianças ciganas para as escolas oficiais denominadas “institutos especiais”, destinados aos

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alunos portadores de deficiências mentais. Neste contexto, um número cada vez maior de ciganos tentam esconder suas raízes, pois a realidade vivenciada em nossos dias na Europa, é novamente constituída por sobressaltos e inquietude como no passado. (LIMA, 1996).

No início dos anos de 1990, estas comunidades também passaram a sofrer, com frequência, os violentos ataques dos skinheads, movimento internacional reconhecido pelos seus atos de vandalismo com feições neonazistas, e de acordo com Almeida (1994, p. 91-93), “na cidade tcheca de Pardubice, skinheads marcharam pelas ruas gritando ‘ciganos para as câmaras de gás’. Na ocasião, vários ciganos foram espancados”. Também na Romênia estas ações dos extremistas de direita são registradas desde 1992, quando vilarejos foram atacados e queimados. Na aldeia romena de Hadaremi, durante o ano de 1993, foi registrado um incidente quando dois ciganos foram mortos, e outros cento e setenta expulsos sem que ninguém fizesse nada para protegê-los, conforme dados da Anistia Internacional. Para ilustrar seus relatos, Almeida (1994, p. 93) nos traz o depoimento contundente de Olga, de sessenta e nove anos, revelando toda a sua indignação e aturdimento relativos ao preconceito crescente na ex-Tchecoslováquia: “Não entendo por que estão nos tratando assim. Moramos aqui há tanto tempo... Nossos filhos e netos nasceram aqui. Ir para onde, meu Deus?”

Durante as primeiras décadas dos anos de 2000, temos como exemplo emblemático de influências político-ideológicas a França, sendo um dos motivos de preocupação segundo o Comitê pela Eliminação da Discriminação Racial das Nações Unidas, “em conformidade com as normas internacionais relativas aos direitos humanos” (RFI, 2012). A política implantada em 2010, pelo então presidente Nicolas Sarkozy (e continuada por François Hollande), apoiada tanto por eleitores dos partidos de extrema direita como de esquerda e do partido verde, vem marcada ainda por repatriações dos ciganos para a Bulgária e a Romênia, títulos de trânsito trimestrais, além de expulsões, visando cumprir as regras de imigração em vigor, “foi considerada discriminatória e contrária à dignidade humana”, conforme relatório publicado em 10 de novembro de 2011, pelo Conselho da Europa (órgão criado em 1949, sendo uma instância paralela à União Europeia), em Estrasburgo, no oeste da França. (STIVANIN, 2011). Para a autora:

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De acordo com o comitê europeu de direitos sociais, as medidas adotadas em julho do ano passado pelo governo francês “revelam um desrespeito dos valores essenciais da Europa”, e vai contra a Convenção Europeia de Direitos Humanos. O Conselho de Ministros também adotou uma resolução pedindo que Paris adote medidas para reparar o desrespeito às leis europeias. (STIVANIN, 2011).

Desde o século XX, a Organização das Nações Unidas e a União Europeia vem discutindo questões relacionadas aos conflitos e problemas emergenciais correlacionados à integração das comunidades ciganas, e a partir da Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, em 2010, solicitou aos Estados-Membros a elaboração de estratégias nacionais tendo em vista diretrizes que promovam a integração das comunidades ciganas, sob a ótica da interculturalidade, respondendo pelas situações de exclusão consideradas não compatíveis com os valores sociais ou com o modelo econômico europeu, ao reconhecerem a marginalização destas minorias, analisada sob a perspectiva dos riscos e vulnerabilidades socioambientais. Em junho de 2011, o Conselho Europeu, órgão máximo de governo da União Europeia (UE), oficializou o Marco Europeu de Estratégias Nacionais de Inclusão da População Cigana, constituindo-se em um iniciativa , que deve ser executada pelos Estados da União Europeia, por meio do planejamento e ações de suas estratégias nacionais, com desenvolvimento compreendido entre 2012-2020. Tais estratégias devem envolver a utilização dos instrumentos institucionais, as autoridades nacionais, regionais e locais, em suas diferentes instâncias, assim como a participação ativa da sociedade civil e das comunidades ciganas, abarcando normas de atuação moral, ética e valores, advogando uma desconstrução de imagens falsas ou negativas, na busca de um reconhecimento mútuo, ao criar possibilidades dialógicas sob o princípio da interculturalidade.

No Brasil atualmente as situações observadas não diferem tanto em relação às injustiças e discriminações, quanto ao preconceito sociais, inclusive são alvos de restrições e até mesmo proibições por parte de governos municipais, quando instalam acampamentos. Por outro lado, estão sob a proteção da Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais, desde o ano de 2007, e também da Secretaria de Políticas Públicas de Igualdade

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Racial, tendo como objetivo a inserção dos grupos nos programas sociais governamentais. Todavia, na realidade ainda são verificadas muitas incongruências quanto ao acesso a programas do governo federal de educação escolar, saúde, segurança e proteção civil (pois são consideradas populações em risco, devido a vulnerabilidades sociais) entre outros, não só devidas às condições de itinerância de alguns poucos grupos, visto que a maioria são sedentários, ou seminômades em função da prática de algumas atividades culturais e/ou socioeconômicas, consideradas as especificidades étnico-culturais. Também temos hoje, a inserção de muitos ciganos em áreas profissionais que exigem formação universitária, a exemplo do Direito, Medicina, Veterinária, História, Geografia, Antropologia, entre outras, principalmente em cidades que tem maiores comunidades, a exemplo de Campinas e Bauru, no estado de São Paulo, não significando que em outras, a exemplo dos estados de Minas Gerais, Goiás etc, não existam, mesmo em se tratando de ambientes situacionais mais adversos.

Sob certos aspectos, podemos afirmar que as comunidades ciganas em nosso país, sofrem com uma invisibilidade intencional derivada da falta de reconhecimento, do preconceito camuflado ou não, dos quais reconhecemos a geração de estereótipos negativos

Reflexões finais: os outros que habitam em mim...

Nós vivemos no fluxo torrencial da reciprocidade universal, irremediavelmente encerrados nela.

Martin Buber, 2004, p. 18

Lungo drom...longo caminho...Este ainda continua a representar, mesmo que paradoxalmente, as perspectivas e os horizontes no cotidiano das comunidades ciganas em pleno século XXI. Entre os liames da sociedade de risco e do esquecimento, permaneceram demonstrando uma resiliência milenar, expressa em angustias existenciais, onde encontramos uma relação dialógica entre seres humanos e suas paisagens, dado o dinamismo que leva a transformações constantes, e que determina um modo de ser próprio, entre relações de alteridades e reciprocidades.

Os ciganos, assim como todos os seres humanos, são os outros que habitam em mim, que me conduzem ao estabelecimento de um

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diálogo intercultural, humanizado, onde a intencionalidade e seus conteúdos devem refletir o Eu-Tu e o Eu-Isso, compreendendo tanto o mundo das relações, quanto das atitudes cognoscitivas, objetivantes, na visão de Buber (2004), pois o EU é determinado pela presença sensível do outro, como TU. Deste modo, ao considerarmos as dimensões do espaço e mundo vivido existentes nas territorialidades de uma paisagem, sob a continuidade dos fluxos das ações recíprocas e das afetividades decorrentes, temos ainda na perspectiva buberiana, os quatro aspectos essenciais à relação EU-TU: a reciprocidade, a presença, a imediatez e a responsabilidade.

A paisagem vivida, construção tangível e intangível de nossa sociedade, passa a representar um campo de encontros e responsabilidades respectivo aos diálogos inter-humanos, permitindo experiências que nos conduzem na direção do outro bem como de suas diferenciadas mundividências; e então podemos sentir, transformar, construir, desconstruir nossas realidades, estereótipos etc, seja em relação ao conviver como ao coexistir, e sobrevivermos aos confrontos e às nossas crises, numa dimensão ontológica.

A história dos ciganos e seus percursos por territorialidades em intersecções na busca de uma relação dialógica, de reconhecimento do inter-humano, mais do que nunca, em nossos tempos, se expressou como um cotidiano marcado por rupturas, separações, abandonos... Agora é um tempo para voltarmos às possibilidades do reencontro face-a-face, da dádiva de viver o outro na visão de Buber (2004), numa adesão total ao ser humano, que se traduzirá mediante nossas escolhas.

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Apontamentos para uma compreensão da população em situação de rua

João Clemente de SOUZA NETO

Compreender o fenômeno da população que procura a rua como espaço de sobrevivência, moradia e trabalho significa descortinar a realidade de milhares de pessoas por todo o mundo. Falamos de um fenômeno enraizado em múltiplos fatores culturais, políticos, religiosos, geopolíticos, ecossistêmicos, subjetivos, que exige das ciências sociais uma desreificação dos conceitos, para uma nova aproximação e, portanto, uma nova compreensão do fenômeno.

Na evolução da defesa dos direitos humanos, persiste o sonho de que todas as pessoas sejam tratadas como seres humanos e não como coisas. Certamente, as pesquisas realizadas em diferentes centros, como na Universidade Federal de Mato Grosso, pelo Grupo de Estudo e Pesquisa Movimentos Sociais  e Educação – GPMSE/GEMPO/UFMT, coordenado do Prof. Passos, contribuirão para o aprimoramento das políticas públicas e a compreensão do que é uma sociedade pautada nos direitos humanos.

O fenômeno da população em situação de rua reaparece no Brasil e no mundo com algumas novidades. No quadro das transformações tecnológicas, sociais e econômicas, da reinvenção das categorias analíticas, pessoas em situação de rua emergem como novos sujeitos, como um clamor pelo reconhecimento das práticas de injustiça. Este é um fato impulsionador da criação de reordenamentos jurídicos e institucionais, que suscita a formulação de propostas sociais correspondentes às necessidades do mercado, do sujeito e do ecossistema.

Talvez as bases da fenomenologia nos permitam uma releitura e uma nova compreensão do que é estar no mundo e de como transformá-lo. Neste caso, a perspectiva do pesquisador é a de quem quer aprender, quer descobrir, em busca de apreender o que fizeram de nós, até quando vamos deixar ocorrerem essas perversidades, o que faremos daqui pra frente . Não é a pergunta de quem sabe ou ignora, ou de quem transforma a liberdade numa mercadoria, ou daquele que pergunta e responde como mestre. Aqui está alguém que tem curiosidade, tem amor à liberdade, compromisso com a humanidade.

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Cada ser humano é um ser em ação, a trilhar avenidas, ruas, curvas e becos, prestes a se perder ou a encontrar o novo, a viver a liberdade, a construir projetos. Neste movimento, quer ser livre de condicionamentos, sujeito do seu pensamento e de sua existência, para que outro não pense e decida por ele. Romper ditaduras e fortalecer o sonho significa “ir além das aparências imediatas, desvelar, refletir, discutir, estudar criticamente, buscando conhecer melhor o tema problematizado [...], voltar à prática para transformá-la com referências teóricas mais elaboradas e agir de modo mais competente [...]” (Freire).

A centralidade da questão tem como referencial a liberdade ou, em outros termos, a serviço de quem estão os direitos humanos, o que querem as políticas públicas? O que fazemos? Como fazemos? Por que fazemos? Para quem trabalhamos? Com quem estamos comprometidos? Quem está em nossa caminhada? Como produzimos conhecimento? Qual é a nossa contribuição para transformar o indivíduo e a sociedade? Que sociedade nós queremos? O que está acontecendo com as instituições? Como educar o Estado e as instituições?

O que estaria em jogo é a institucionalização/desinstitucionalização do indivíduo, seu desconfinamento, é dar crédito às vítimas, valorizar o sujeito e a família. Neste sentido, parece importante voltar ao vivido, àquilo que está aí, para perceber o novo e desencadear processos de descoberta. O retorno ao vivido é impulsionado pela perplexidade diante dos desafios que se apresentam. Cada vez que retornamos ao vivido, fazemos diferentes descobertas, diante de uma realidade quase inesgotável. Nessa relação, a teoria descongela a realidade e a realidade descongela a teoria.

As coisas estão ali, cada uma reivindicando uma nova compreensão, à espera de um sentido, de uma reconfiguração. Não há de imediato uma relação entre o conceito e a realidade, entre a leitura da ciência e a realidade. A população de rua sempre foi rotulada com títulos preconceituosos. Já na Lei do Pobre, que Marx alcunhou de Lei Sanguinária, pobre é vagabundo, indolente, preguiçoso, sem desejo e sem vontade, quase se poderia dizer, sem alma. Por esse aspecto, voltar hoje ao vivido da população de rua provavelmente nos levaria a descobrir uma nova realidade, nem sempre relatada na literatura.

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Apontamentos para compreensão da população em situação de rua • 353

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“Quem dá aos pobres empresta a Deus”

No livro Trajetória do menor a cidadão, descrevo como o processo repressivo buscava extirpar da sociedade o que ela entendia por preguiça, vadiagem e ociosidade, pelo confinamento em verdadeiras “casas de terror”, um recurso para reduzir o custo dos programas de assistência ou da caridade pública (Foucault, 1979, p. 49). Diante dos novos pressupostos da assistência, as “obras de caridade” desencadearam a apologia do trabalho como instrumento de equacionalização da pobreza, ao contrário das ideologias anteriores que centralizavam suas forças no binômio caridade e justiça. A primeira preocupação, de fato, era escamotear a formação do exército de reserva de mão de obra, que seria a base do capitalismo.

As instituições confinatórias procuravam demonstrar que somente a partir da ordem disciplinadora se adquire a virtude. A internação funcionava como um mecanismo social que proporcionava intimidade com Deus e gerava tranquilidade social. A partir daí, ganham força a ideologia do trabalho e do asilo como mito da felicidade, pois os pobres que perambulavam pelas ruas gastavam o que ganhavam em esmolas com bebidas e mulheres prostituídas, aprendiam vícios imorais e, em alguns casos, chegavam a ser extremamente violentos, enquanto os confinados recebiam orientação religiosa, deixavam a vida mundana e afastavam-se dos turbilhões do mundo (Stoffels, 1977).

Assim se chegou ao trinômio caridade, justiça e trabalho, fundamentado no conteúdo da religião, que, bem articulado, substituiria até mesmo a função policial. As entidades assistenciais desenvolveriam o papel de controlar os pobres, discipliná-los para a submissão, e a felicidade se perpetuaria. A chamada “lei dos pobres” justificava o confinamento e o trabalho forçado dos itinerantes em casas de correção ou similares, orientadas por um conteúdo pedagógico discriminatório que usurpava aos pobres seus direitos. Sancionada em 1597, essa lei foi reformulada em 1834, sem nada perder de seu caráter rigoroso e excludente (Martinelli, 1989:49).

No Brasil colonial, a assistência se fundamentava na unidade entre caridade e trabalho a partir da concepção da Escolástica. Era praticada por alguns cristãos generosos, algumas paróquias e Confrarias ou Irmandades que aglutinavam pessoas motivadas pela devoção a um santo, desejosas de praticar as obras de misericórdia. Formavam

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uma caixa comum, assumiam os cuidados das crianças abandonadas e órfãs, velhos, leprosos e mendigos, para cumprir sua finalidade de socorrer material e espiritualmente os pobres. Com o apoio da Igreja e dos monarcas, ampliaram sua atuação e começaram a cuidar de asilos, albergues e leprosários. Importa ressaltar que a Igreja e o Estado colonial sobreviviam, então, graças à cumplicidade e que a Igreja dependia do Estado para poder impor seu projeto missionário. Nesse sentido, tanto a Igreja quanto o Estado compartilhavam da mesma concepção que delineava o pobre como ser privado de direitos e desejos.

As Irmandades das Santas Casas de Misericórdia talvez sejam as primeiras entidades assistenciais brasileiras. A Santa Casa mais antiga no Brasil é a de Santos, fundada por Brás Cubas, em 1543. Visava ao socorro dos marinheiros doentes que aportavam após a penosa travessia do Atlântico. No fim do primeiro século de colonização, já existiam, no Brasil, pelo menos catorze Irmandades da Misericórdia (Mesgravis, 1972, p. 41). Sua manutenção corria por conta das doações de sítios, casas, dinheiro e apólices da vida pública, loterias e ajuda de Lisboa, recursos recebidos para cuidado dos pobres, doentes, prisioneiros e enjeitados, enterros e dotes para noivas pobres (Russell-Wood, 1981, p. 76). Outras formas organizadas de distribuição da esmola surgiram no Brasil imperial, como a Conferência Vicentina (Sposati, 1988, p. 79). Em 1901, São Paulo possuía oito dessas Conferências. A elas se seguiu o trabalho das Associações de Damas da Caridade, atuantes desde 1887. Com a proliferação de entidades para o cuidado dos pobres, em 1828, foi criada pela Câmara de São Paulo uma comissão para fiscalizá-las.

Um preceito bastante divulgado era “ganhar o pão com o suor do rosto”, consoante a Bíblia, o que levava a concluir que a riqueza resultava do esforço pessoal e da bênção divina. A pobreza era fruto da culpabilidade pessoal e denotava a falta da graça de Deus, que somente se podia superar pela paciência resignada no sofrimento. Ajudar os pobres pela esmola equivalia à remissão dos pecados, pois “quem dá aos pobres empresta a Deus” ou “assim como a água apaga o fogo, a esmola apaga o pecado”, na expressão de São Cipriano (Stoffels, 1977, p. 32).

Até o advento do capitalismo, o pobre era julgado como vagabundo, vadio, desocupado, avesso ao trabalho ou viciado; como mendigo, desvalido, desfavorecido, incapaz em função da idade ou deficiência física ou mental; como trabalhador, camponês ou artesão,

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que mal conseguia manter-se e a sua família; ou como alguém que, por disposição espiritual, assumia a condição de ser pobre. A sociedade do Brasil colonial norteava-se pelo princípio da Revolução Industrial, que concebia a pobreza como responsabilidade individual, e entendia que há homens que nascem pobres e destituídos de direitos, enquanto outros nascem ricos e com todos os direitos.

Essa ideologia foi ultrapassada à medida que as forças produtivas se desenvolveram e criaram as condições objetivas para seu desvelamento e substituição. Somente após 1930, no Brasil, a pobreza começou a ser entendida como uma questão social. Somente no capitalismo é que se tornou transparente a real condição do pobre e da pobreza, colocada na pauta da análise científica, para ultrapassar a antiga hipótese da origem natural dos miseráveis.

Direitos humanos, construções históricas e sociais

A história dos direitos humanos é a história dos homens, e sua cartografia percorre uma trajetória que se desenha desde o saber mítico até a contemporaneidade. Para que possa fazer ecoar a liberdade, o construto desses direitos deve ser debatido no cerne das relações sociais e do agir humano. Desligados desse contexto, os direitos humanos surgem como um idealismo que se volta contra a liberdade humana. Na sociedade capitalista, esses direitos podem também ser utilizados para escamotear sistemas de exploração e interesses mercadológicos, religiosos e políticos. Por esse aspecto, conservam certa ambiguidade, uma vez que contêm elementos que tanto fortalecem quanto reprimem as formas de dominação e de exploração.

O construto marxista enfatiza que a problemática dos direitos humanos consiste em que estes estão submissos ao direito sagrado da propriedade privada ou da lógica do mercado. Os direitos humanos trazem em si um conflito entre os interesses mercadológicos, pessoais e da convivência social, da qual participam os próprios violadores. Um direito violado atinge não apenas o indivíduo, mas a todos, até o próprio infrator. Enquanto a lógica do mercado e da propriedade tiver a primazia sobre os direitos humanos, os sujeitos estarão à mercê de diferentes práticas e formas de violência. A priorização do direito à propriedade é o sinal de que todos os direitos humanos serão violados.

As necessidades humanas e sua satisfação são construções históricas e sociais cujo objetivo é salvaguardar o bem-estar das famílias e dos

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indivíduos, fortalecer sua capacidade de fazer escolhas e abrir espaço ao exercício da liberdade. Submetidas, porém, a processos de violações de direitos, desigualdade e exclusão social, populações vivem aprisionadas por desejos criados pela dinâmica mercadológica. Elas são as vítimas de um contexto socioeconômico orientado por princípios e práticas tendentes a fortalecer uma política pautada na iniquidade social e incapaz de garantir um patamar mínimo de condições favoráveis ao desenvolvimento das potencialidades e da dignidade humana.

Os direitos humanos são resultantes de lutas históricas, no sentido de proteger aqueles que estão fora do sistema e de criar as condições para acesso de todos aos bens públicos. Nesse sentido, cidadania poderia ser entendida como o direito a ter direitos, o direito à vida, à igualdade, à liberdade, à saúde, à moradia, ao lazer e à convivência familiar e comunitária. Ressaltamos que esse conjunto de direitos não cai do céu como uma dádiva, exige conquista e construção social. À medida que avançam, eles propiciam as condições para acesso às coisas públicas. Por meio das políticas sociais, o Estado democrático garante tais direitos como res publica. É a garantia do acesso ao espaço público que permite a construção de um mundo mais equitativo.

Nas últimas décadas, a ideia de direitos humanos vem toman-do conta dos discursos oficiais em âmbito nacional e internacio-nal, nas organizações dos trabalhadores, no empresariado, entre os banqueiros e agentes educacionais. Essa ideia invade a literatura, a religião, a arte. Entretanto, “[...] essa aparente vitória da ideia e do uso dos direitos humanos coexiste com certo ceticismo real, em círculos criticamente exigentes, quanto à profundidade e à coerência dessa abordagem. Suspeita-se que exista certa ingenuidade em toda a estrutura conceitual que fundamenta a oratória sobre os direitos humanos” (Sen, 2010, p. 264).

De uma forma ou de outra, a ideia de direitos humanos tem ajudado, ultimamente, a pensar o desenvolvimento e o progresso, pela perspectiva de garantir a liberdade e a vida. É extremamente complexo propor direitos humanos, quando milhares e crianças morrem por falta de alimentação, não têm acesso à educação, à saúde, à assistência e ao direito à criatividade. Se os filósofos nos ensinam que nem mesmo Deus pode alterar o passado, nossa racionalidade e criatividade nos ensinam que podemos criar leis e mecanismos para alterar o futuro ou, pelo menos, para moldá-lo de alguma forma.

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Que sociedade queremos?

Pensar a questão dos direitos humanos é gestar uma sociedade rica em oportunidades, que possa garantir a existência humana, a liberdade e o bem-estar do planeta Terra. Esse princípio é vocacionado a gerar instituições e mecanismos que equilibrem as possibilidades e impossibilidades decorrentes da heterogeneidade entre indivíduos, grupos e classes. Já não podemos admitir que uma só pessoa ou determinados grupos e países tenham acesso à maioria dos bens vedados a grandes parcelas da população. A riqueza de cada nação pertence a seu povo. Os valores sociais e éticos devem dar prioridade a coisa pública.

Destacamos que a temática dos direitos humanos deve ser compreendida no centro da questão social. Portanto, eles integram as políticas de Estado e de Governo. Capturados pelos agentes financeiros, os direitos humanos passam a ser utilizados como estratégias de sedução do Estado e da sociedade civil. Nessa linha, as tragédias humanas costumam servir de matéria-prima a marqueteiros, cuja prioridade é ampliar e melhorar a dinâmica dos negócios, e a prática do direito e da ética tendem a se “[...] imobilizar e inclinar a favor do domínio das classes economicamente privilegiadas e politicamente reinantes” (Lefèbvre, 1969, p. 63). O desafio dos movimentos sociais e das pessoas e organismos comprometidos com uma perspectiva emancipadora dos direitos humanos é produzir um acervo crítico e analítico voltado para uma nova cultura e um ordenamento jurídico que esteja, efetivamente, comprometido com a vida.

Esse jogo de contra e a favor, de ceticismo e confiança não pode conduzir ao imobilismo em relação aos direitos humanos. Estes não são bons e nem maus em si. Sua importância aparece nas relações cotidianas e na luta pela paz local e global. Em alguns momentos, percebemos que uma regra não garante a emancipação, mas que sua ausência fortalece a barbárie. “Não é tanto uma questão de ter regras exatas sobre como exatamente devemos agir, e sim reconhecer a relevância de nossa condição humana comum para fazer as escolhas que se nos apresentam.” (Sen, 2010, p. 321.)

As mudanças e as transformações sociais permitem a gestação de uma nova cultura, que tem no próprio cerne o ressignificar do domínio humano sobre a vida cotidiana, sobre as circunstâncias e a civilização.

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A dinâmica cultural interfere na formação da subjetividade e na urdidura do tecido social. As transformações sociais fazem emergir um processo civilizatório, desde que os direitos sejam liberados do fanatismo moralizante e das práticas ideologizantes, que têm um caráter mais punitivo do que educativo. A cultura expressa a forma de ser, de pensar, de produzir, de confabular de um determinado grupo. Em outras palavras, é a expressão do agir humano dentro de determinadas circunstâncias. Homens e mulheres, crianças e adolescentes, são produtores e produtos de uma determinada cultura, que organiza as formas de comunicação, de relacionamento e de fazer política, entre outras. Ela é simultaneamente prática e abstrata, reorganiza o fazer e ajuda a sistematizar o pensamento, a criar um mundo humano, a expressar os rituais de vida e de morte.

Na sociedade contemporânea, estão as condições para o desenvolvimento de uma experiência humana carregada de possibilidades e riscos. Como explicita Berman (1986, p. 15), viver na modernidade é mergulhar num espaço que propicia “[...] aventura, poder, alegria, crescimento, autotransformação e transformação das coisas em redor [...] num turbilhão de permanente desintegração e mudança, de luta e contradição, de ambiguidade e angústia. [...], um universo no qual, [...] tudo o que é sólido desmancha no ar”. Num cenário polifônico de perigo e sedução, de realização e frustração, de violência e exploração, é que aparece a necessidade de uma cultura de direitos, que garanta o desenvolvimento da existência humana. Nossa perspectiva é entendê-la como expressão das correlações de forças.

As ideias de equidade e justiça social que permeiam a noção de direitos humanos têm que ultrapassar a perspectiva formal e atender eficazmente as necessidades individuais e coletivas do sujeito. Os conflitos existentes nesse território deverão promover a libertação dos resíduos de exploração, de fanatismo, de ideologização e transcendência, ainda presentes na cul-tura de direitos. Às lutas em torno da bandeira dos direitos humanos cabe o papel de gerar um patamar civilizatório que possa erradicar ou conter a cultura da barbárie. Nesse sentido, o direito não tem apenas um caráter repressivo e punitivo, mas também o de oferecer recursos para a formação do tecido social da convivência humana.

De fato, a história é rica de homens e mulheres que foram resgatados como pioneiros de uma nova ordem social, depois de serem julgados

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como criminosos, desviantes, hereges e feiticeiros. Na história da família, da criança e do adolescente, práticas que eram aceitas são hoje rejeitadas e outras que não eram aceitas são incorporadas. Talvez possamos entender nesse sentido a concepção de Stuart Mill (1991) de que a democracia não é a vontade da maioria. A democracia também deve defender a minoria, pois um novo saber e uma nova moral nascem geralmente daqueles que estão fora do sistema. A esse respeito, talvez seja interessante citar o exemplo de Sócrates diante do direito ateniense. De acordo com a cultura e a legislação de Atenas,

“Sócrates era um criminoso e sua condenação simplesmente justa. No entanto, seu crime, a saber, a independência de seu pensamento, era útil, não somente à humanidade, mas à sua pátria. Pois ele servia para preparar uma moral e uma fé novas, das quais os atenienses tinham então necessidade, porque as tradições segundo as quais tinham vívido até então não mais estavam em harmonia com suas condições de existência. Ora, o caso de Sócrates não é isolado; ele se reproduz periodicamente na história. A liberdade de pensar que desfrutamos atualmente jamais poderia ter sido proclamada se as regras que a proibiam não tivessem sido violadas antes de serem solenemente abolidas. Entretanto, naquele momento, essa violação era um crime, já que era uma ofensa a sentimentos ainda muito fortes na generalidade das consciências. Todavia, esse crime era útil, pois preludiava transformações que, dia após dia, tornavam-se mais necessárias” (Durkheim, 2007:61-62).

Segundo Durkheim (2007:30ss), é impossível uma consciência coletiva totalmente homogênea, “[...] pela simples razão de que cada um tem seu organismo próprio, e esses organismos ocupam porções diferentes do espaço. Por isso, mesmo nos povos inferiores, nos quais a originalidade individual é muito pouco desenvolvida, ela não chega a ser nula”. Por esse aspecto, é inevitável a existência de divergências entre grupos e indivíduos. Elas abrem condições para as práticas do crime, do desvio, das patologias sociais. Estão ligadas às condições da vida so-cial e, portanto, são condicionantes do desenvolvimento da moral e do direito. “De fato, não é mais possível hoje contestar que não apenas o direito e a moral variam de um tipo social a outro, como também mu-

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dam em relação a um mesmo tipo, se as condições da existência coletiva se modificam.” Tanto aqueles que lutam pela transformação quanto os que lhe são contrários acabam assumindo comportamentos e atitudes desviantes. Durkheim denomina crime “[...] todo ato punido e faz do crime assim definido o objeto de uma ciência especial, a criminologia”.

Portanto, o crime não é um mal em si mesmo, e dele não se deve fazer apologia, mas é um sintoma que permite avaliar as condições da sociedade. Durkheim concebe o crime como uma doença e o sistema de coerção e de punição é o remédio. Por isso, a pena deve corresponder ao delito, à inflação. Por esse olhar, é que devemos, segundo ele, estudar os procedimentos e as penas que são aplicadas. “O dever do homem de Estado não é mais impelir violentamente as sociedades para um ideal que lhe parece sedutor, mas seu papel é o do médico: ele previne a eclosão das doenças mediante uma boa higiene e, quando estas se manifestam, procura curá-las.” (Durkheim, 2007, p. 65.) A questão da anomia inclui outros tipos de crimes, como o desvio e a rebeldia, que não se podem compreender apenas pela ausência de leis ou de autoridade, mas por outras variáveis também.

Durkheim acaba por naturalizar a compreensão dos procedimentos para lidar com o crime. As práticas sociais e as teorias devem ser compreendidas por uma outra perspectiva. Quando olhamos a cultura de direitos implantada no decorrer do século XX, podemos compreender que o desvio passa por diferentes variáveis, desde as organizações institucionais até as necessidades biopsicossociais do indivíduo. Se observarmos as práticas pela ótica do rizoma, que navega nos entre dos acontecimentos, perceberemos que elas são mais do que aplicação da teoria e que produzem um saber. Assim acontece na história dos saberes médico e jurídico, como descreve Foucault, e mesmo, poderíamos dizer, das outras formas de saber, sobretudo da educação. Por esse aspecto, estamos vivendo

“[...] de maneira nova as relações teoria-prática. Às vezes se concebia a prática como uma aplicação da teoria, como uma consequência; às vezes, ao contrário, como devendo inspirar a teoria, como sendo ela própria criadora com relação a uma forma futura de teoria. De qualquer modo, se concebiam suas relações como um processo de totalização, em um sentido ou em outro. Talvez para nós a questão se coloque de outra maneira. As relações teoria-

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prática são muito mais parciais e fragmentárias. Por um lado, uma teoria é sempre local, relativa a um pequeno domínio e pode se aplicar a outro domínio, mais ou menos afastado. A relação de aplicação nunca é de semelhança. Por outro lado, desde que uma teoria penetre em seu próprio domínio encontra obstáculos que tornam necessário que seja revezada por outro tipo de discurso (é este outro tipo que permite eventualmente passar a um domínio diferente). A prática é um conjunto de revezamentos de uma teoria a outra e a teoria um revezamento de uma prática a outra. Nenhuma teoria pode se desenvolver sem encontrar uma espécie de muro e é preciso a prática para atravessar o muro. [...] Para nós, o intelectual teórico deixou de ser um sujeito, uma consciência representante ou representativa. Aqueles que agem e lutam deixaram de ser representados, seja por um partido ou um sindicato que se arrogaria o direito de ser a consciência deles. Quem fala e age? Sempre uma multiplicidade, mesmo que seja na pessoa que fala ou age. Nós somos todos pequenos grupos. Não existe mais representação, só existe ação: ação de teoria, ação de prática em relações de revezamento ou em rede” (Deleuze, in Foucault, 1979:69-70).

Na prática cotidiana dos atendimentos à criança e ao adolescente, não ocorre necessariamente uma passagem da teoria à prática. Em alguns momentos, não há uma aplicação de uma teoria e nem de um projeto político-pedagógico, delineado na forma tradicional de pesquisa e construção de teoria. O que existe é um movimento, cuja dinâmica está na relação entre o arcaico e o novo. Por isso, acreditamos que há nesse processo uma multiplicidade de elementos e variáveis de fundo cultural, religioso, teórico e prático, que se reveza por uma perspectiva de desintegração e integração.

Olhar pelas janelas da história

Para compreender as práticas de atendimento, devemos olhar pelas janelas da história, rumo ao século XX. Nesse século, é que se organizam de forma mais sistematizada as medidas de proteção e assistência à criança e ao adolescente. Essas medidas se fundamentam no tripé formado pela medicina, pelo direito e pela educação. As

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práticas cotidianas são articuladas por vários sujeitos. É por isso que no cotidiano sempre encontramos linhas de fuga. O cotidiano não é homogêneo e possui um movimento de desterritorialização, desestratificação, territorialização e estratificação. Essa dinâmica deixa emergir as oportunidades e as estratégias contidas no cotidiano.

As práticas de atendimento, mesmo quando capazes de driblar as adversidades, devem ser analisadas dentro dos embates de classes e das circunstâncias sociais, políticas e religiosas. Nesse cenário, elas aparecem como um “mal necessário”, numa coexistência do mal e do bem-estar social. A mesma fábrica que produz o bem gera também o mal-estar, dependendo das relações de força entre o trabalho e o capital a forma de configuração das ONGs e das políticas sociais. No cotidiano dos usuários se revela a ambiguidade própria da assistência social e da educação, dentro do processo de acumulação do capital, que tem absolutizado o desenvolvimento econômico. Entre as maiores vítimas desse sistema, a história demonstra que estão os adolescentes e as crianças, que sempre foram tratados como coisas.

A novidade da proposta do Prof. Passos é analisar a situação da população de rua, atualmente, visitando o vivido, no qual é possível capturar as estruturas sociais e o contexto, bem como o sujeito, o que ele deseja e o que pensa sobre sua vida. Certeau diz que o sujeito não é um inútil, um bobo, é alguém que busca os atalhos da vida. Um exemplo do que estamos falando podemos ilustrar com uma das falas de Carolina Maria de Jesus:

Não digam que fui rebotalho, que vivi à margem da vida.

Digam que eu procurava trabalho, mas fui sempre preterida. Digam ao povo brasileiro

que meu sonho era ser escritora, mas eu não tinha dinheiro para pagar uma editora.

O que dela podemos extrair é que as públicas têm que inquirir do sujeito qual é seu projeto de vida. Não é possível pensar os seres humanos longe sequer da ética, quanto mais fora dela. Estar longe ou pior, fora da ética, entre nós, mulheres e homens é uma transgressão. É por isso que transformar a experiência educativa em puro treinamento técnico é amesquinhar o que há de fundamentalmente humano no

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exercício educativo: o seu caráter formador. Se se respeita a natureza do ser humano, o ensino dos conteúdos não pode dar-se alheio à formação moral do educando (Freire, 1983:33).

Referências

DURKHEIM, Émile. As regras do método sociológico. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

FOUCAULT, M. de. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da esperança. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983.

HOORNAERT, Eduardo; et al. História da Igreja no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1983.

IAMAMOTO, M. Relações sociais e serviço social no Brasil. São Paulo: Cortez, 1988.

KOWARICK, Lúcio. Trabalho e vadiagem. São Paulo: Brasiliense, 1987.

LEFEBVRE, Henri. A vida cotidiana no mundo moderno. São Paulo: Ática, 1991.

LEFEBVRE, Henri. Introdução à modernidade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1969.

MARTINELLI, M. Valores humanos e transformação. Rio de Janeiro: Fundação Petrópolis, 1998.

MARTINS, José de Souza. O massacre dos inocentes. Hucitec: São Paulo, 1991.

_____. (Coord.). Henri Lefebvre e o retorno à dialética. São Paulo: Hucitec, 1996.

_____. A sociedade vista do abismo. Petrópolis: Vozes, 2002.

MARX, Karl. O capital. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980.

_____. Miséria da Filosofia. São Paulo: Ciências Humanas, 1982.

MESGRAVIS, Laima. A Santa Casa de Misericórdia de São Paulo (1599-1884). São Paulo, 1972. Tese (Doutorado), USP. (mimeo.)

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364 • PARTE IV - Perspectivas críticas, (des)colonialidades e educação

MILL, John Stuart. Sobre a liberdade. Petrópolis: Vozes, 1991.

PEREIRA, Potyara A.; PAIVA, Leda. A política social e a questão da pobreza no Brasil. Revista Serviço Social e Sociedade, São Paulo: Cortez, mar. 1981.

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Contrato social. São Paulo: Abril, 1978. (Coleção Os Pensadores.)

RUSSELL-WOOD, A. J. R. Fidalgos e filantropos. A Santa Casa de Misericórdia da Bahia. 1550-1755. Brasília: UB, 1981.

SARTRE, Jean-Paul. Jean-Paul Sartre. São Paulo: Abril, 1978. (Coleção Os Pensadores.)

SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

SOUZA NETO, João Clemente de. De menor a cidadão: filantropia, genocídio, políticas assistenciais. São Paulo: Nuestra América, 1993.

_____. Mutações da esfera pública. In: BAPTISTA, Dulce. (Org.). Cidadania e subjetividade. São Paulo: Imaginário, 1997. Vol. 1, 17-42.

_____. Crianças e adolescentes abandonados, estratégias de sobrevivência. São Paulo: Expressão & Arte, 2002.

_____. A trajetória do menor a cidadão. São Paulo: Expressão e Arte, 2003.

SPOSATI, A. Vida urbana e gestão da pobreza. São Paulo: Cortez, 1988.

STOFELS, Marie-Shirlaine. Os mendigos na cidade de São Paulo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.

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O Rancho da Goiabada

Os boias-frias quando tomam umas biritas Espantando a tristeza

Sonham, com bife a cavalo, batata frita E a sobremesa

É goiabada cascão, com muito queijo, depois café Cigarro e o beijo de uma mulata chamada

Leonor, ou DagmarAmar, um rádio de pilha um fogão jacaré a marmita

O domingo no bar, onde tantos iguais se reúnem Contando mentiras pra poder suportar aí,

São pais de santos, paus-de-arara, são passistas São flagelados, são pingentes, balconistas

Palhaços, marcianos, canibais, lírios pirados Dançando, dormindo de olhos abertos

À sombra da alegoria Dos faraós embalsamados.

– João Bosco –

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PARTE V Memória e balanço do trajeto

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Memórias merleau-freireanas e perspectivas de trajetórias

Solange T. de Lima GUIMARÃES Claudia Cristina FERREIRA CARVALHO

Luiz Augusto PASSOS José MARÍN

Mas não, mas não, o sonho é meu

e eu sonho que...a cidade dos meus amores, deve ter alamedas verdes,

E, quem dera, os moradores, e o prefeito e os varredores

e os pintores e os vendedores as senhoras e os senhores

e os guardas e os inspetores fossem somente crianças!

“A Cidade Ideal”, Chico Buarque Os Saltimbancos

O sonho não acabou; está no nosso colo, nos nossos pés e mãos. É preciso nos reconciliarmos com uma epistemologia que conheça

um dos lados mais importantes da nossa condição humana, aquela da vulnerabilidade. Ela nos protege dos delírios e pesadelos, de não abraçar essa identidade de origem que nos acompanha, e que nos referencia e nos mistura ao pó das estrelas, das quais somos artesania. Negar essa condição de origem e travestir-se de uma inocência sem fundamentos no real é a primeira e mais grave das loucuras que nos destrói a todos e a todas, que não nos permite experienciarmos a plenitude da Vida, ou seja, o Amor. Filhos da Terra, mas também do sol e das estrelas, tudo que nega o corpo, que nega termos vindo do pó, reveste-se de uma falsa transcendência, evaporada, que nos protege do golpe narcísico de que pertencemos à Terra, alienando-nos de nós mesmos; e nos cega, tirando a condição dita em palavra: húmus – nossa pertença a uma natureza que nunca será maldosa e nos liga umbilicalmente a todas as criaturas. Somos Natureza. Esta é nossa grandeza, e nada a apagará, salvo por delírios e pesadelos, que incorrem no que dizia Pascal que pessoas que querem se fazer de anjos acabam se fazendo de bestas. É preciso, contudo, reconhecer

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370 • PARTE V - Memória e balanço do trajeto

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que, por trás dos sonhos emancipatórios, a modernidade nos pensou como éter, espírito, pensamento e de tal forma nos enganou que, na busca de nos reconciliarmos com a gente mesmo, ficamos na ponta dos pés, instáveis e visionários, enxergando a fumaça de uma transcendência que não estará fora, se antes não estiver dentro, em nosso recôndito. Infelizmente, a cultura da qual também todos e todas somos adotivos quis nos passar a limpo. Imaginou que a terra era suja. E imaginou uma sociedade cuja fantasia pensou a lonjura da terra como aquilo que nos libertaria de nossa animalidade, nos imaginários de suas enfermidades e distanciamentos. Fizemo-nos como nunca “de bestas”. Renunciamos a nosso útero de origem, renunciamos ao prodígio de uma biologia inesgotável em segredos que nos protege instintivamente dos perigos de morte, que nos induz a descobrir caminhos para nos salvar dos vírus, sem outros acessórios senão a criação em nós, a partir de nós, mediante a busca de reconectividades. Nossas intervenções têm mostrado que a cultura, cada dia mais, sofistica seus mecanismos de defesa artificiais e as bactérias se transformam para mostrar que nossas defesas são, em última análise, o silenciamento de nossos sistemas defensivos biológicos e emocionais. E próximo já está o momento em que a Natureza se encarregará de pôr fim à cultura, mostrando-nos que, se somos deuses, nossos pés são feitos de barro, de terra e água, substâncias primordiais de nossos próprios corpos. O pior, contudo, é que nós mesmos estamos nos destruindo, em deteriorações objetivas e subjetivas. Cultivamos uma aparente superioridade de reis e príncipes que somos, contra a plebe, contra os servos de gleba! Matamos a Natureza em sua expressão de humanidade. Forjamos uma cultura cuja saída não é a vida, mas a escolha da morte do corpo e do espírito humano. Geramos uma perversa insensibilidade que se expressa no uso execratório dos nossos próprios apoios e substratos imprescindíveis à Vida. Vida sem adjetivação. Vida e pronto! Não matamos a maldade, ela está muito mais próxima do topo da pirâmide! Mais próxima do poder ilimitado em suas intencionalidades e desvarios. Mais próxima dos que acumulam e geram aquilo que odeiam – a pobreza, a miséria, a fome, o não acesso aos meios de vida restringindo os bens produzidos coletivamente, inclusive pelo suor e sangue da maioria, - maioria ignorada, silenciada, amordaçada, descartada, - usada pelos grandes meios de divulgação nos noticiários para mostrar que todas as pragas

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Memórias merleau-freireanas e Perspectivas de Trajetórias • 371

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vem pela existência deles e delas. A peste negra tinha uma origem: as bruxas. A multidão dos famintos alimentada pelas catedrais tinha sido ela mesma produzida por aqueles e aquelas que viviam das sobras, dos restos, do trabalho suado e sem meios, cerceados e taxados como vagabundos, enquanto vivenciavam suas condições de miserabilidades humanas, de invisibilidades cotidianas, mas que não alimentavam um consumo de uma só pessoa precisar de nove ou doze planetas por aquilo que a matará. O grave das nossas opções é que estas nos tiram todas as outras possibilidades de escolhas. A opção pela violência, pela criminalização, pelas execuções, pelo enjaulamento, a tortura, o espancamento, a escolarização para homogeneização de um sujeito universal e bem normalizado é nossa cruz irredimível. Não creiam na força das armas – elas somente matam fantasmas... Gandhi dizia em discurso filmado: “Se valer como lei, olho por olho, dente por dente, teremos uma sociedade de cegos e desdentados!”.

Se há alguma saída para nós, antes de qualquer outra medida, é nos reconciliarmos com a nossa humanidade destruída sob os escombros de epistemologias, todas elas mentirosas. Nos ensinam a desigualdade entre seres humanos. Produzem uma linha divisória perversa em que só existe um, se houver a guerra total contra todos os outros restantes. Vale como nunca em nosso país voltar à expressão veracíssima de Glauber Rocha, de que temos vivido em uma cultura que se acha superior, em que vale como lei fundamental: “Cada um por si, e Deus contra todos!”. Se Deus existir, eu creio, deverá dizer aos chefes dos Estados e a toda a parafernália justiceira: “Me deixem fora disso!”.

No entanto, a religião erigida no Capital não terá qualquer conflito com a usura, com a expropriação, com o sequestro e expropriação dos direitos, com o uso de pessoas como coisas, com vistas à acumulação e ao enriquecimento de cada vez menos gente, e ela será usada para apaziguar consciências (já amortecidas!) como se isso fosse a vontade do mesmo Deus anunciado. Vale o que dizia Walter Benjamin, parodiado livremente por nós: “Deus é o dinheiro, uma religião que não conhece perdão nem acena para a redenção; não tem nada a dizer acerca da esperança, porque se sente bem com os sacrifícios sangrentos das vítimas!”.

Precisamos urgentemente de uma epistemologia que não nos ensurdeça e nem nos emudeça. Que não use de estratagemas de silogismos e de raciocínios formais para justificar invasões de

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território, abatimento das matas e florestas, sacrifícios dos animais, roubo usurário do suor do trabalho escravo, matança de lideranças indígenas, camponeses e camponesas, de crianças, de adolescentes cujos pais condenamos na guerra do tráfico, das “execuções” que estão sendo feitas por meio dos alimentos e pretendidas medicações que geram as doenças, que nominalmente nos dizem curar ou ser capaz de alimentar todas as pessoas. Nada disso é delírio! Essa é a condição de uma reconciliação fundada na misericórdia e na compaixão, palavras que significam, respectivamente, um coração sensível à miséria do mundo, e as delicadezas presentes nos desejos de mitigar dores e sofrimentos do outro ser em sua senciência, num reconhecimento e identificação da outra pessoa, em expansões e conexões que envolvem todos os outros seres animados pela Vida. Não há saída sem opções radicais: a diminuição de nossos gastos, de nosso consumo, do reconciliarmo-nos com os mais pobres e enfermos, saber que as condições situacionais deles não estão desligadas da nossa própria condição de destino. Todos seres humanos, porque saídos da terra, da argila, somos vida e morte ao mesmo tempo. Somos ambiguidades. Somos bons e maus ao mesmo tempo. Não metafisicamente, ou nominalmente. Somos o que somos, somos o que fazemos, porém somos nossas omissões também. Mas tudo o que fazemos, que nos constitui, sempre será mediado pela RELAÇÃO expressa em um compromisso profundo com a Vida. Fazemo-nos como seres políticos, pois nos fazemos na relação com todos os outros, outras e com as criaturas todas do mundo.

É preciso uma epistemologia que tire as escamas dos nossos olhos construídas pelas ciências da forma como se constituíram historicamente e situadas em espaço e tempo. É necessário dizer duas coisas: o mundo não é, ele está sendo. Nós não estamos terminados, nem como filo. A esperança está em ouvir menos o canto das sereias, na sua transcendência, que odeiam a terra. É preciso um movimento de inversão. Ouvir os que se rebelaram, pois guardam uma centelha do bom senso perdido. Ouvir os que nos dizem culpados, sem que nos defendamos, pois eles têm razão. Ouvir os sofrimentos de tudo e de todos, e comungar com todas as dores do mundo, pois somos cúmplices delas. Respirar aliviadamente em vista de nossa con-VERSÃO, reconciliando-nos antes e primeiro com a Natureza, como nossa condição ontológica e aquela do mundo, que estavam

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mutuamente referenciadas desde o início; e usamos coisas disponíveis para gerar a ANTIRRELAÇÃO, as armas da morte que nos podem fazer desaparecer do planeta. Se nossa relação com os bens da terra nos separaram de forma cruel – petróleo, soja, milho, minérios, animais –, será por meio deles e delas que se deverá construir uma nova relação, que permita um novo céu e uma nova terra, uma nova Várzea Grande, uma nova Cuiabá, um novo Mato Grosso.

Vamos apostar na luta em favor do reconhecimento de todas as pessoas em distintas vulnerabilidades como condição de recriarmos a dimensão política de nossa humanidade. Nós temos sede disso. Tudo o que a afeta, faz sofrer, adoece, oprime, enlouquece, e ainda a retira da convivência, a isola, violando sua dignidade de ser de relação, implica-nos nisso. Cabe a nós ainda jamais permitirmos, em parte, que deleguemos nosso poder político ao Estado, que jamais se concentre nele e nos alije do processo de acompanhamento, vigilância, anúncio, denúncia e organização coletiva contra aquilo que fere este reconhecimento que não é um ato feito em uma ocasião, o qual podemos abandonar e nos alijar dele. Ao contrário. Ninguém nos representa no poder a não ser de forma compartilhada com cada pessoa do país e com os movimentos sociais, sobretudo populares, que expressam o que há de melhor para uma democracia frágil e vulnerável como a nossa. Que exista uma divulgação transparente das fontes de informação, com responsabilidade e isenta, que permita a construção de dispositivos administrativos jurídicos que impeçam que a concentração do poder hoje nas mãos de grandes grupos e corporações, sobretudo transnacionais, que ferem os interesses dos brasileiros e atuam de forma perversa no que tange ao respeito à Vida e à cooperação em favor da autonomia. Que o Estado e seus aparelhos políticos e jurídicos expressem a apuração de todas as violências contra a vida, todos os seres e a Terra. Que a direção do governo esteja imantada pelos interesses do Sul e sem quaisquer casuísmos voltados à defesa dos interesses dos mais pobres, dos excluídos, dos marginalizados, dos silenciados e aqueles e aquelas que não possuem o reconhecimento devido da sua dignidade humana. Que não se contingencie a ninguém e a nenhum caso, seus direitos, inclusive daqueles direitos não positivados, mas que balizam a vida, e propugnam a justiça ou aqueles que à sua falta, diminuem e tiram a vida. Um governo precisa responder acima de tudo lá onde seja

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mais necessário, isto é, junto a programas de Estado. Gerar, com responsabilidade consulta pública acerca das medidas urgentes e necessárias daqueles e daquelas a quem se pretende beneficiar. Ninguém ignora o “faz de conta” de consultar, que escondem a precariedade de decisões, sobretudo quando os recursos públicos são expropriados, privatizados e usados, por alguns discursos de interesses sociais, interesse nacional, segurança nacional, na contramão da verdade. É necessário esclarecer recursos do Estado que são apropriados por grupos ferindo direitos consuetudinários, mas cuja consulta também fizeram desaparecer estas mesmas documentações, não permitindo conferir nem o direito de propriedade, em face da voracidade do capital. As questões ambientais, territoriais, de segurança física e jurídica têm tido reverberações de um arbítrio manifesto, sobretudo na área da terra e do agronegócio, do hidronegócio, bem como aquelas de germoplasma, genoma que incluem mutações genéticas, dos organismos geneticamente modificados prejudiciais à saúde humana e dos animais, do plantio abusivo em cabeceiras de rios, eliminação de espécies ecológicas e resistentes, submetidas a herbicidas, desfoliantes em quantidades acima, inclusive, dos protocolos firmados, apenas para fins de liberação ameaçando todo o ambiente. Monoculturas capazes de mudanças climáticas a cada dia imprevisíveis, dada a complexidade dos sistemas socioecológicos e a interação das espécies. Isso recaí sempre sobre as mais pobres. Mascaramento nos protocolos imponderáveis acerca do sequestro de carbono, e uma situação de trabalho informal que daí deriva. São alguns paliativos que pela propagados por grandes grupos internacionais privados dão cobertura ao aquecimento global e a formas de contaminação e envenenamento do planeta e dos recursos comuns, incapazes de serem medidos em suas consequências para todas as espécies.

Estas situações macroestruturais possuem impactos em toda sua extensão em nível micro. Não existe, Merleau-Ponty defende a impossibilidade de imaginarmos qualquer ponto da teia da vida que não carregue toda a realidade humana e suas interconexões, expressando em cada ponto, as implicações da totalidade. Merleau-Ponty chama essa realidade de ‘carnalidade’ ligação de tudo com tudo como quiasma (Visível e Invisível, 2009; 127ss;) uma interconexão de tudo com tudo. Nada está fora, nada está dentro, tudo está dentro e fora. Isso não implica em uma mistura entre as coisas em si mesmas.

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Elas permanecem íntegras no que são. E é nessa dimensão que os problemas que afetam um bairro, um portal ou uma rua tenham a ver com a cidade como um todo. Não há nada, por sua vez, que se movimente em nível macroestrutural no país, no Estado de Mato Grosso, nas cidades vizinhas e nos campos de entorno que não tenha repercussão direta e includente neste ponto desta rua.

A questão dos moradores de rua, antes de tudo, é global e não local, em sentido estrito. Não é aqui neste ponto que se resolve a higienização da perversidade, visto que é exatamente perversidade imaginar que o ódio, a raiva e a chacina sejam pontuais; nem no sentido causal, em que a desgraça venha desse sujeito, desta pessoa, desta mulher, deste adolescente e desta criança, responsabilizada individualmente pela desgraça da cidade. E perverso que se possa responsabilizar moradores e moradoras de rua, indígenas, negros e negras, crianças e adolescentes coletivamente, como foi anunciado pela imprensa de um estupro recentemente ocorrido próximo à Universidade. Como também mente quem disser que a culpa dos problemas sociais se deve à escolarização, à educação, aos professores e professoras. Quem fizer publicamente acusações dessa natureza, saiba que, se não as fizer por ignorância, só é possível por má fé. Quem faz uma cidade mais violenta é, sobretudo, o capital, sua política e todos os seus mecanismos de encobrimento desta responsabilidade que reside, de maneira drástica, na catarse de tentar se desculpar, penalizando os mais empobrecidos. Não é possível, contemporaneamente, fazer da segurança pública um campo privado, de modo que sejam validadas decisões de distribuição de privilégios aos interesses de mercado com fins de exploração e acumulação. A população de rua nesta cidade não manipula contas fantasmas.

Não é possível curar uma doença sem reconhecê-la aberta e deslavadamente. Saibam todos os que possuam consciência da repercussão política de suas ações, cuidem muito, para não seguir essa ideologia de encobrir malfeitores com enorme quantidade de poder, para transferir, como se faz com o bode expiatório, o pecado de todos e todas, no qual todos e todas resgatam a pseudoinocência derramando todos os seus crimes, numa imolação ardente de inocentes cordeiros pascais. E o diabólico: todos saem inocentados! Fazemos da realidade um inferno, ao qual Sartre na década de sessenta se referia num teatro célebre cujo texto dizia: “O inferno são os outros”. Não

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são não, mas somos, sobretudo, nós, os filhos de uma modernidade muitíssimo antiga que tem conseguido manter divinizadas todas as epistemologias de autolegitimação que, com o aval das suas ciências, com seus rituais de morte e desespero, providencia, com requintes cerimoniais, o assassinato de todos os revolucionários. Pretende curar a loucura do sonho e as razões da festa e da alegria de viver através de sua ciência, que lava as mãos como Pilatos, dizendo: “Não tenho nada a ver com isso!”. Saiba mais: que somente se pode legitimar esta operação por meio de complicados processos rituais, para-religiosos, compulsivos e obsessivos, que nos conduzem a um tipo de “religião” tanática, mortal e sem qualquer resíduo salvífico. Estas ações, em detrimento de todas as formas da Vida, não permitem mais o religare, em sua real e essencial dimensão.

O feliz anúncio que devemos fazer é que tudo isso nos diz respeito. Tem a ver com todos e todas. É necessário muito mais que boa vontade; é necessário criação, arte, gana e paixão. Se não for possível se resolver em âmbito individual e pessoal, todavia não poderá ser feito sem ele, sem a decidida inclusão, neste trabalho de formiguinha, de refazer a esperança nas nossas relações diuturnas, sobretudo com os diferentes, sem exclusão de ninguém, colocando nossa imaginação, nossa criatividade, nossas mãos, pés e coração no grande sonho da FELIZcidade, que partirá do lugar onde estamos ao encontro de onde estarão sendo compartilhadas, planejadas, construídas nossas utopias em projetos tópicos, e começar pela grande roda de trocas de necessidades, expectativas e sonhos, pelo cuidado de todos/as para com todos/as, pelo cuidado com os animais, com as árvores, com nossa rua, com seus estranhos andantes: uns com os outros e outras, sem exclusões.

Em um mundo que se acostumou a institucionalizar a divisão entre seres humanos, entre bons e maus, entre perversos e virtuosos, entre poderosos e fracos, entre os que têm toda a razão e aqueles a quem não sobra nenhuma, é preciso ter lado. Mais do que isso. É preciso chamar às luzes o ocultamento da isonomia entre seres humanos. É preciso engendrar uma epistemologia capaz de desvendar essa divisão fabricada e mantida com fóruns de justiça e verdade. Denunciar os atributos ideológicos que respaldam estes crimes. A condição de rua não é uma condição de natureza para o ser humano. É uma estratégia social e política gerada pelos dominadores e pelos que promoveram

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a recriação e a ampliação permanente da miséria às custas de uma acumulação que possui um caráter criminoso e delinquente, pois utiliza dos recursos que deveriam estar acessíveis a todos e a todas que dele necessitam, para o gozo e poder estéril, regressivo e perigoso, do interesse pessoal. A sociedade que temos é, para a maioria, inclusive aqueles que nela convivem, fonte de infelicidade e de frustração. A vida vale pouco para a defesa da propriedade. A propriedade privada é uma instituição gerada pela violência dos ricos e potentados, para defenderem até à morte o que tomaram dos outros; por direito, paira sobre estes bens uma penhora coletiva. Ganhar a guerra contra esta condição de barbárie implica desprivatizar as epistemologias dominantes, vitoriosas e fecundas que estão à morte por asfixia, processualismos e puritanismos metodológicos. É preciso uma epistemologia que não precise ser esterilizada do seu contato com o mundo da fantasia, da sua convivência com o não normalizado – sem escândalos metafísicos. Será preciso restaurar as catacumbas para poder viver a liberdade? Uma epistemologia filosófica cujo rigor não minta acerca dos seus limites, das suas imprecisões e relatividades, porque, se pouco sabe, não há dúvidas de quão pouco sabemos dela; que não nos permita, sem risco, um mundo que não nos permite devassá-lo, apesar de nossas tentativas. Mas também é um tempo em que se torna preciso com urgência mudar uma sociedade entregue a uma cultura fáustica e mefistofélica, que cultiva uma estética da guerra, do terror e do sofrimento para que possa manter sua alma. Viremos a página desta história em favor de um esforço coletivo e organizado para fazer valer a Vida como princípio último, ético e praxiológico para todos e todas.

Há tudo por fazer desde ontem! Podemos andar juntos?

Referências

MERLEAU-PONTY, Maurice. O visível e o invisível. São Paulo: Perspectiva, 2009.

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Organizadores/Autores

Claudia Cristina Ferreira Carvalho

Mestra em Educação, pela UFMT (2008); doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFMT, Linha de Pesquisa Movimento Social e Educação. Atualmente, é coordenadora do Centro de Referência em Direitos Humanos de Mato Grosso, da Secretaria de Justiça em Direitos Humanos. Docente da Academia de Polícia Militar do Estado de Mato Grosso, na disciplina Didática. Tem experiência na área de Educação, com ênfase em Gestão Educacional, Currículos e Programas, Didática, Direitos Humanos e Diversidade Cultural, atuando principalmente com os seguintes temas: Homofobia-Diversidade Sexual, Gênero e Relações Étnico-raciais, Grupos Vulneráveis, Minorias Sociais. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Movimentos Sociais e Educação; e do Projeto RuAção: “População em Situação de Vulnerabilidade Vivendo da Rua”. Membro do Grupo de Estudos Educação & Merleau-Ponty. E-mail: [email protected].

Luiz Augusto Passos

Bacharel em Filosofia, pela Faculdade Nossa Senhora (1968); e em Teologia, pelo Colégio Máximo Cristo Rei (São Leopoldo, 1973); licenciado em Filosofia, pela Faculdade Medianeira de Filosofia (1979); doutor em Educação Pública, pela Universidade Federal de Mato Grosso (1995); doutor em Educação, pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2003). Atualmente, é Professor Associado III da Universidade Federal de Mato Grosso. Tem experiência na área de Educação, com ênfase em Educação e Movimento Social e Fenomenologia existencial e merleaupontyana; e Epistemologia e Política e Metodologia de Pesquisa Merleau-freiriana. Atua com os seguintes temas: Filosofia da Educação, Movimentos Sociais Populares e Educação, Educação Libertadora, Educação e Saúde, Ética e Direitos Humanos, Políticas Públicas e Democracia. Página Pessoal: <http://luizaugustopassos.com.br>. E-mail: [email protected].

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Sobre os autores • 379

RuAção: Das epistemologias da rua à política da rua

Solange Terezinha de Lima Guimarães

Bacharelada em Geografia, pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (1983); mestra em Geografia, pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (1990); e doutora em Geografia, pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (1996); livre-docente em Interpretação e Valoração de Paisagens (2007). Desenvolve atividades de pós-doutorado no Instituto Florestal de São Paulo. Atualmente, é professora adjunta do Deptartamento de Geografia do Instituto de Geociências e Ciências Exatas da Universidade Estadual Paulista, onde exerce a docência desde 1985. Atua sobre os seguintes temas: Gestão e Conservação de Recursos Paisagísticos Naturais e Culturais, Multifuncionalidade de Paisagens, Valoração Subjetiva de Paisagens, Educação Ecológica, Trilhas Interpretativas, Trilhas Cênicas, Gestão Ambiental Territorial, Percepção de Riscos, Desastres e Impactos Ambientais, Ecologia de Paisagens, Uso Público em Unidades de Conservação [áreas protegidas]. Consultora do projeto RuAção. E-mail: [email protected].

José Marín

Mestre em Estudos Latinoamericanos, pelo Instituto de Altos Estudos da América Latina, em Paris (1981); e doutor em Antropologia, pela Universidade de Sorbonne (1988). Trabalha na Rede Universitária Internacional de Genebra (RUIG), da Universidade de Genebra, no projeto de pesquisa “A Educação frente à Globalização e os Direitos Humanos”. Atualmente, colabora com diferentes instituições e publicações da Europa e América Latina. Foi colaborador da UNESCO na África. Realizou estudos sobre a problemática do desenvolvimento e sobre ecologia humana. E-mail: [email protected].

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380 • Sobre os autores

RuAção: Das epistemologias da rua à política da rua

Prefaciador

Boaventura de Souza Santos

Professor Catedrático Jubilado da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e Distinguished Legal Scholar da Faculdade de Direito da Universidade de Wisconsin-Madison e Global Legal Scholar, da Universidade de Warwick. É igualmente diretor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra; coordenador científico do Observatório Permanente da Justiça Portuguesa. Atualmente, dirige o projeto de investigação “ALICE – Espelhos Estranhos, Lições Imprevistas: Definindo para a Europa um Novo Modo de Partilhar as Experiências com o Mundo”, financiado pelo Conselho Europeu de Investigação (ERC), um dos mais prestigiados e competitivos financiamentos internacionais para a investigação científica de excelência em espaço europeu. É cocoordenador científico dos Programas de Doutoramento: Human Rights in Contemporary Societies; Democracia no Século XXI; Pós-colonialismos e Cidadania Global. Foi também cofundador do programa de doutoramento Direito, Justiça e Cidadania no Século XXI. Tem trabalhos publicados sobre globalização, Sociologia do Direito, Epistemologia, democracia e direitos humanos. Recebeu o título de Doctor Honoris Causa da Universidade Federal de Mato Grosso, em setembro de 2014. Os seus trabalhos encontram-se traduzidos em espanhol, inglês, italiano, francês, alemão e chinês. E-mail: [email protected].

SECO

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Sobre os autores • 381

RuAção: Das epistemologias da rua à política da rua

Autores

Arlete Marcia de Pinho

Bacharela e licenciada em Filosofia, pela Universidade Federal de Mato Grosso (2011). Foi bolsista do programa Conexões de Saberes, da Universidade Federal de Mato Grosso. Atualmente, faz o curso de Saúde Coletiva. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Movimentos Sociais e Educação; e do Projeto RuAção: “População em Situação de Vulnerabilidade Vivendo da Rua”. Membro do Grupo de Estudos Educação & Merleau-Ponty. E-mail: [email protected].

Beleni Salete Grando

Doutora na linha Formação de Educadores, com intercâmbio com a Faculdade da Motricidade Humana da Universidade Técnica de Lisboa (2004); pós-doutora em Antropologia Social, sob a temática Antropologia da Criança, no PPGAS/UFSC (2011). Professora da Universidade do Estado de Mato Grosso (1994), onde atua como docente do Programa de Pós-Graduação/Mestrado em Educação (linha de pesquisa Educação e Diversidade) e na coordenação do PROCAD/CA. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Movimentos Sociais e Educação; e do Projeto RuAção: “População em Situação de Vulnerabilidade Vivendo da Rua”. Membro do Grupo de Estudos Educação & Merleau-Ponty. PES-Amazônia com a UFSC (2008-2011). Professora da Faculdade de Educação Física e pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Mato Grosso (2011), na linha de pesquisa Movimentos Sociais, Política e Educação Popular. Suas temáticas de pesquisa e extensão são: Educação do Corpo em Relações Interétnicas e Interculturais, Cultura Popular, Educação Indígena, Educação e Cultura Corporal na Infância. E-mail: [email protected].

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382 • Sobre os autores

RuAção: Das epistemologias da rua à política da rua

Carla Izabela Bonzanini

Licenciada em Educação Física, pelas Faculdades Integradas de Palmas (2002); especialista em Educação Física e Qualidade de Vida (Lato Sensu), pela Faculdade de Artes do Paraná (2003); especialista em Saúde do Idoso (Atualização), pela FIOCRUZ-RJ (2011); especialista em Gerontologia (Lato Sensu), pela Universidade Federal de Mato Grosso (2014); aluna regular do Programa de Mestrado em Educação Física da Faculdade de Educação Física (FEF) da UFMT, na linha de pesquisa Fundamentos Pedagógicos e Socioantropológicos do Corpo. Integrante do Grupo de Estudos e Pesquisas: Sociedade, Educação e Culturas de Movimento Corporal, coordenado pelo Professor Dr. José Tarcísio Grunennvaldt (UFMT – Campus Cuiabá). Aluna pesquisadora do Grupo de Pesquisa Movimentos Sociais e Educação (GPMSE) e do Grupo de Estudos Educação & Merleau-Ponty, coordenado pelo Professor Dr. Luiz Augusto Passos (UFMT – Campus Cuiabá). E-mail: [email protected].

Cristiano Apolucena Cabral

Graduado em Filosofia, pela PUC-GO (2004); especialista em Sociologia e Educação, pelo Instituto Aphonsiano de Ensino Superior (2009); mestre em Educação, pela UFMT (2014). Professor da rede estadual, em Mato Grosso. Coordenador da Comissão Pastoral da Terra (CPT-MT). Pesquisador do Grupo de Pesquisa Movimentos Sociais e Educação; e do Projeto RuAção: “População em Situação de Vulnerabilidade Vivendo da Rua”. Membro do Grupo de Estudos Educação & Merleau-Ponty. Autor do livro: Existência, liberdade e democracia. As contradições de um sistema irracional (2011). Temas trabalhados: Epistemologia, Filosofia de Maurice Merleau-Ponty, Metodologia Merleau-freiriana, Fenomenologia e Ontologia de Merleau-Ponty, Cultura dos Camponeses e Camponesas. E-mail: [email protected].

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Sobre os autores • 383

RuAção: Das epistemologias da rua à política da rua

Edson Bendito Rondon Filho

Graduado no curso de Formação de Oficiais, pela Academia de Polícia Militar do Estado de Goiás (1994); bacharel em Direito, pela UFMT (2001); e em Ciências Sociais, pela UFMT (2010); especialista em Gestão de Segurança Pública, pela FAECC-UFMT (2003); e em Inteligência de Segurança Pública, também pela FAECC-UFMT (2008); mestre em Educação, pelo IE-UFMT (2008); doutor em Sociologia, pelo PPGS/UFRGS, linha de pesquisa Violência, Criminalização, Cidadania e Direito, com estágio doutoral (sanduíche) junto ao Centre de Recherche Sociologique sur le Droit e Les Institutions Pénales (CESDIP) – França (2013). Docente convidado da Pós-Graduação em Direitos Humanos aplicados à Segurança Pública da Universidade Federal de Mato Grosso. Docente de Criminologia do curso de Direito da Faculdade Católica Rainha da Paz (FCARP). Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Administrativo e Direito Penal Militar. Coordenador do Centro de Desenvolvimento e Pesquisa da Polícia Militar do Estado de Mato Grosso. Pesquisador do Projeto RuAção: “População em Situação de Vulnerabilidade Vivendo da Rua”. E-mail: [email protected].

Fábio Santos de Andrade

Doutor em Educação, pela Universidade Federal de Mato Grosso (2014). Educador social e professor Assistente na Universidade Federal de Rondônia, campus de Vilhena. Secretário Executivo da Associação Brasileira de Pesquisadoras e Pesquisadores pela Justiça Social (ABRAPPS). Pesquisador da área da História Social e Sociologia da Juventude. Membro do Grupo de Pesquisa Movimentos Sociais e Educação, e do Grupo de Estudos Educação & Merleau-Ponty. E-mail: [email protected].

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384 • Sobre os autores

RuAção: Das epistemologias da rua à política da rua

Fernanda de Arruda Machado

Pedagoga, pela Universidade Estadual de Maringá (1992); especialista em Turismo e Desenvolvimento Sustentável, pela Universidade Estadual de Mato Grosso (2003); e Didática e Metodologia do Ensino Superior, pela Universidade Católica Dom Bosco (1993); mestra em Educação, pela Universidade Federal de Mato Grosso (2006); doutoranda em Educação Ambiental, pela Universidade de Santiago de Compostela-Espanha, no Programa Interuniversitário em Educação Ambiental (2011). Possui experiência na elaboração e execução de projetos na área do comércio, serviço e, principalmente, educação para a inclusão social, com a metodologia dialógica de Paulo Freire e fenomenológica de Merleau-Ponty. Também é experiente em ministrar aulas e orientar trabalhos científicos na graduação, pós-graduação, Educação a Distância, Educação Profissionalizante e formação permanente de professores. Atua, principalmente, com os seguintes temas: Educação Profissional, Educação a Distância, Educação Ambiental, Turismo, Percepção, Pesquisa, Análise de Processos, Produção de Trabalhos Científicos (metodologia de pesquisa), Turismo Rural, Inclusão Social e Educação para a Diversidade. Pesquisadora do Projeto RuAção: “População em Situação de Vulnerabilidade Vivendo da Rua”. E-mail: [email protected].

Gil Passos de Mattos

Graduado em Licenciatura Plena em Geografia, pela UFPEL (2009); mestrando em Antropologia, na Universidade Federal de Pelotas (UFPEL); também é aluno de Bacharelado em Geografia. Atua na área de Climatologia aplicada à Geografia e em Geoprocessamento, com ênfase em Sensoriamento Remoto, GPS e Sistemas de Informações Geográficas, realização de mapeamentos e a consequente produção de mapas. Bolsista do CNPq (entre agosto de 2011 e julho de 2012), dedicando-se à pesquisa da Arqueologia da Escravidão. No momento, realiza o mapeamento de áreas de remanescentes de Quilombos, na parceria entre a UFPEL e o INCRA. Também atua como colaborador do Laboratório Multidisciplinar de Investigação Arqueológica (LAMINA)

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Sobre os autores • 385

RuAção: Das epistemologias da rua à política da rua

da UFPEL, no trabalho de montagem de banco de dados e na escavação da charqueada Santa Bárbara (Pelotas-RS). Colabora com o Laboratório de Ensino de Geoprocessamento do curso de Geografia da UFPEL. Pesquisador voluntário do Grupo de Pesquisa Movimentos Sociais e Educação; e do Projeto RuAção: “População em Situação de Vulnerabilidade Vivendo da Rua”. É membro do Grupo de Estudos Educação & Merleau-Ponty; E-mail: [email protected].

Itamar Camaragibe Lisboa Assumpção

Biólogo de formação. Servidor da Universidade Federal de Mato Grosso. Educador popular em saúde. Pesquisador voluntário e adjunto de coordenação do Projeto RuAção: “População em Situação de Vulnerabilidade Vivendo da Rua”. E-mail: [email protected].

Jandir João Zanotelli

Bacharel em Filosofia, pela Faculdade de Filosofia Nossa Senhora da Imaculada Conceição (1961); licenciado em Filosofia, pela mesma Faculdade (1963); graduado em Teologia, pelo Seminário Maior Nossa Senhora Imaculada Conceição Viamão (1964); e em Ciências Jurídicas e Sociais, pela Universidade Federal de Pelotas (1971); doutor em Filosofia da Educação, também pela Universidade Federal de Pelotas (1977). Atualmente, é sócio honorário e assessor do Conselho de Reitores das Universidades Brasileiras. É membro da Academia Sul Brasileira de Letras, ocupando a cadeira nº 46. Tem experiência na área de Filosofia, com ênfase em Filosofia da Linguagem, atuando principalmente sobre os seguintes temas: Literatura, Educação, Ética, Filosofia e Epistemologia. É membro do Grupo de Estudos Educação & Merleau- Ponty. Contribuiu com a pesquisa RuAção, com um recorte acerca da criança em condição de rua e o que esta presença negada implica às dimensões epistemológicas que se impõem sobre a Academia. E-mail: [email protected].

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386 • Sobre os autores

RuAção: Das epistemologias da rua à política da rua

João Clemente de Souza Neto

Graduado em Ciências Sociais, pela Faculdade de Filosofia Nossa Senhora Medianeira (1987); mestre em Ciências Sociais, pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1992); doutor em Ciências Sociais, pela PUC-SP (1997); e pós-doutor em Sociologia Clínica, também pela PUC-SP (2005). Atualmente, é professor adjunto do curso de Pedagogia da Universidade Presbiteriana Mackenzie e membro do Socius, Centro de Investigação em Sociologia Económica e das Organizações (Instituto Superior de Economia e Gestão, Universidade Técnica de Lisboa). Integra o Instituto Catequético Secular São José (ICSSJ); a Pastoral do Menor da Região Episcopal Lapa, São Paulo-SP; e a Associação Civil Gaudium et Spes (Ages), na área da criança, do adolescente e famílias em situação de vulnerabilidade social. Tem experiência na área de Ciências Sociais, com ênfase em Análise Institucional do campo da infância e da adolescência, atuando principalmente sobre os seguintes temas: Construção e Circulação do Conhecimento, Cultura, Subjetividade, Pedagogia Social, Cidadania, Sujeito, Assistência, Direitos Sociais, Municipalização, Educação, Organizações Públicas Não Estatais e Exclusão Social. Ultimamente, realiza pesquisas sobre socialização, aprendizagem, inserção social, desvio, práticas sociais, diversidade cultural e pedagogia social. É autor de vários artigos e livros sobre os temas pesquisados. É consultor voluntário do Projeto RuAção: “População em Situação de Vulnerabilidade Vivendo da Rua”. Membro do Grupo de Estudos Educação & Merleau-Ponty. E-mail: [email protected].

José Tarcísio Grunennvaldt

Graduado em Educação Física, pela Universidade de Passo Fundo (1985); mestre em Educação, pela Universidade Federal de Sergipe (1997); doutor em Educação: História, Política, Sociedade, pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2005); e pós-doutor em Educação Física, pela Universidade Federal de Santa Catarina (2012). Atualmente, é professor associado da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Tem experiência na área de Educação e

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Sobre os autores • 387

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Educação Física, com ênfase em História da Educação, Educação Física e Esporte. Coordena projetos de pesquisa com os seguintes temas: Educação Física Escolar, Esporte, Instituições Educativas, Ensino Militar, Processo Civilizador e Envelhecimento Humano. Pesquisador do Grupo de Pesquisa Movimentos Sociais e Educação; e do Projeto RuAção: “População em Situação de Vulnerabilidade Vivendo da Rua”. Membro do Grupo de Estudos Educação & Merleau- Ponty. E-mail: [email protected].

Lisanil da Conceição Patrocínio Pereira

Doutora em Geografia, pela Universidade Federal Fluminense (2011). Professora adjunta da UFMT, na área de Metodologia Científica; e coordenadora do TCC do Curso de Pedagogia, desde 2006. Tem experiência na área de Geografia Humana e Administração. É membro do Conselho Universitário (CONSUNI) da UNEMAT e do Comitê Interinstitucional em Educação do Campo do Estado de Mato Grosso. É professora colaboradora do curso de Licenciatura em Educação do Campo da UnB. Foi diretora da Faculdade de Educação da UNEMAT e atualmente exerce o cargo de diretora da Unidade Regionalizada – Político- Pedagógico e Financeiro do Campus Universitário de Juara da UNEMAT. É líder do grupo de pesquisa Laboratório de Estudos e Pesquisa da Diversidade da Amazônia Legal (LEAL-CNPq). Integra o Grupo de Pesquisa em Movimentos Sociais e Educação (GPMSE-UFMT); e o Grupo de Estudos Educação & Merleau-Ponty. Participa no Projeto RuAção no cotejo entre populações indígenas do interior do Estado Munduruku, Apiaká, Kaiabi e a população em condição de rua. E-mail: [email protected].

Lori Hack de Jesus

Graduada em Pedagogia, pela Faculdade de Educação, Ciências e Letras de Cascavel (FECIVEL) (1985); mestra em Educação, pela UFMT, com a dissertação Trajetórias de Vida e Estudo de Alunos Negros do Ensino Médio da Cidade de Tapurah-MT (2005); doutoranda em Educação (2014), pela mesma Universidade. Atualmente, é professora da

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388 • Sobre os autores

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Universidade do Estado de Mato Grosso (UNEMAT – Campus de Juara-MT). É pesquisadora vinculada ao Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Relações Raciais e Educação (NEPRE-UFMT) e ao Núcleo de Estudos sobre Educação, Gênero, Raça e Alteridade (NEGRA-UNEMAT). Tem experiência na área de Educação, com ênfase em Relações Raciais e Educação, atuando, principalmente, sobre os seguintes temas: Relações Raciais e Educação, Relações de Gênero, Educação a Distância e Educação Matemática. É pesquisadora do Grupo de Pesquisa Movimentos Sociais e Educação; e do Projeto RuAção: “População em Situação de Vulnerabilidade Vivendo da Rua”, com o recorte: Jovens Negros e Negras em condição de rua. Atua no Grupo de Estudos Educação & Merleau-Ponty. E-mail: [email protected].

Lucileide Domingos Queiroz

Graduada em Pedagogia (UFMT, 1995); especialista em Política Social (UFMT, 2001); e mestra em Educação, pela Universidade Federal de Mato Grosso (2004). Atualmente, é professora das séries iniciais da rede estadual de Educação. Tem experiência na área de Educação, com ênfase em Filosofia e Sociologia da Educação, atuando principalmente sobre os seguintes temas: Educação, Escola, Família, Fontes Primárias e Secundárias, Pedagogia. Membro do Grupo de Pesquisa Movimentos Sociais e Educação e do Grupo de Estudos Educação & Merleau-Ponty. E-mail: [email protected].

Mara Cristina Tondin

Graduada em Psicologia, pelo Centro Universitário de Várzea Grande (UNIVAG) (2008). Especialista em Saúde Pública, com ênfase na Saúde da Família, pela Universidade de Cuiabá (2010); mestra em Educação, pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal de Mato Grosso (2012), com a dissertação: Consultório de rua: uma forma de intervenção ao uso de drogas com pessoas em situação de rua. Atualmente, é psicóloga da Secretaria de Estado de Justiça e Direitos Humanos de Mato Grosso. Tem experiência na área

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Sobre os autores • 389

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de Saúde Mental, com ênfase em Psicologia Humanista atuando, principalmente, sobre os seguintes temas: Saúde Coletiva, Redução de Danos, Drogatização, Prática Pedagógica. Participa do Grupo de Pesquisa Movimentos Sociais e Educação; e é voluntária do Projeto “RuAção: População em Situação de Vulnerabilidade Vivendo da Rua”. E-mail: [email protected].

Maria Aparecida Rezende

Graduada em Pedagogia, pela UNEMAT (1997); especialista em Teorias e Métodos da Antropologia; mestra em Educação, pela UFMT (2004); doutora em Educação, também pela UFMT (2012). Atualmente, é professora da Universidade Federal de Mato Grosso. Tem experiência na área de Educação, com ênfase em Educação Indígena, Educação Escolar Indígena e Educação de Jovens e Adultos. Possui uma pesquisa de doutorado concluída sobre a organização social e educativa das mulheres Xavante. Trabalha com a disciplina optativa no curso de Pedagogia da UFMT, Tópicos Especiais em Educação Escolar Indígena. Participa de projetos de extensão e pesquisa ligados à temática Educação Escolar Indígena e Educação Indígena, Metodologia Merleau-freiriana. Possui algumas publicações, como artigos completos, em vários eventos científicos nacionais e internacionais, capítulos de livros e palestras referentes a essa temática. É pesquisadora do Grupo de Pesquisa Movimentos Sociais e Educação; e do Projeto RuAção: “População em Situação de Vulnerabilidade Vivendo da Rua”. É membro do Grupo de Estudos Educação & Merleau- Ponty. E-mail: [email protected].

Tereza Ramalho de Azevedo Cunha

Licenciada em Educação Artística (Pintura), pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1969); graduada em Licenciatura em Educação Artística, pelas Faculdades Integradas Bennett (1981); especialista em Semiótica, pela Universidade Federal de Mato Grosso (1994); e mestra em Comunicação e Semiótica, pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1999). Atualmente, é Professora Titular da Universidade

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390 • Sobre os autores

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Federal de Mato Grosso. Tem experiência com ênfase na área de Artes, atuando principalmente sobre os seguintes temas: Educação Artística, Semiótica, Educação Musical, Fenomenologia, Cultura Musical, Percepção Musical, Arte e Percepção Visual. Doutoranda do Grupo de Pesquisa Movimentos Sociais e Educação. Membro do Grupo de Estudos Educação & Merleau- Ponty. Pesquisadora do Projeto RuAção: “População em Situação de Vulnerabilidade Vivendo da Rua”. E-mail: [email protected].

Vilma Aparecida de Pinho

Graduada em Educação Física, com especialização em Educação Física Escolar, pela Universidade Federal de Mato Grosso (1996); mestra em Educação (2004), por essa mesma universidade; doutora em Educação, pela Universidade Federal Fluminense (UFF), no Programa de Pós-Graduação em Educação (2010). É Professora Adjunta da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Pará (UFPA), Campus Universitário de Altamira. Pesquisou como bolsista Internacional da Fundação Ford da coorte 2006. Atuou por 17 anos na Educação Básica ensinando classes de Educação Infantil e Ensino Fundamental nas áreas de Educação Física, Alfabetização e Ciências Humanas. Atuou na assessoria pedagógica da SEMED e no setor de Formação de Professores de Educação Física da Secretária de Esporte e Lazer de Cuiabá-MT (SEDEL). Pesquisa Infância e Juventude, Direitos Humanos e Educação, Relações Étnico-raciais, Currículo e Formação de Professores. E-mail: [email protected].

Viviane Massavi 

De família indígena da etnia Chiquitana. Graduada em Serviço Social, pela UFMT (2005). Atuou, de abril de 2009 a março de 2013, no Centro de Atenção Psicossocial de Álcool e Drogas – CAPS Adolescer. Integrou a primeira equipe de Consultório de Rua do SUS de Cuiabá. Atualmente, é Servidora Pública da Prefeitura Municipal de Cuiabá, lotada na Secretaria Municipal de Saúde – Diretoria de Atenção Secundária – Policlínica do

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Sobre os autores • 391

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Pascoal Ramos Dr. Silvio Curvo. Faz parte da equipe do Planejamento Familiar e do CTA – Centro de Testagem e Aconselhamento, como Assistente Social e Redutora de Danos. Tem experiência na área de Movimentos Sociais e Educação em Saúde, Dependência Química e Populações em Condição de Vulnerabilidade. Mestranda do Grupo de Pesquisa Movimentos Sociais e Educação (GPMSE) e do Grupo de Estudos Merleau-Ponty & Educação (GEMPO). Pesquisadora do Projeto RuAção: “População em Situação de Vulnerabilidade Vivendo da Rua”, com recorte em população de rua e saúde. E-mail: [email protected].

Waldinéia Antunes de Alcântara Ferreira

Licenciada em Pedagogia, pela Universidade do Estado de Mato Grosso (1991); e em Ciências Biológicas, pela Universidade do Estado de Mato Grosso (1997); especialista em Currículo do Ensino Fundamental – Conteúdos e Metodologias na Área de 1º Grau – Nível I a IV, pela UNEMAT (1994); e mestra em Educação – Área de Concentração: Educação, Cultura e Sociedade – Linha de Pesquisa: Educação e Meio Ambiente, pela Universidade Federal de Mato Grosso (2007); doutora, pela UFGRS (2014), com a tese Educação Escolar Indígena na Terra Indígena Apiaká-Kayabi em Juara-MT: resistências e desafios. É professora efetiva da Universidade do Estado de Mato Grosso e do Centro de Formação e Atualização dos Profissionais da Educação Básica do Estado de Mato Grosso (CEFAPRO). Tem experiência na área de Educação, atuando sobre os seguintes temas: Educação Ambiental, Educação Escolar Indígena, Comunidades Ribeirinhas, Cultura, Pantanal e Currículo. É integrante do Grupo de Pesquisa em Movimentos Sociais e Educação (GPMSE-UFMT); e do Grupo de Estudos Educação & Merleau-Ponty (GEMPO). Participa do Projeto RuAção, no cotejo entre populações indígenas do interior do Estado Munduruku, Apiaká, Kaiabi e a população em condição de rua. E-mail: [email protected].

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392 • Sobre os autores

RuAção: Das epistemologias da rua à política da rua

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Apresento-vos um livro urgente. Carrega consigo a urgência da denúncia de uma sociedade que desperdiça

vida e dignidade humanas como se fossem restos de um banquete fatalmente satisfeito de si. Fá-lo de uma

maneira brilhante e, por vezes, empolgada, construído por investigadores e investigadoras conscientes como poucos

da sua responsabilidade social, dispostos a dar as mãos, contra tudo e contra todas, por cima da linha abissal.

Madison, 24 de novembro de 2014.

Boaventura de Souza Santos

Coordenação e PesquisAção

SEJUDH/MT Secretaria Estadual de

Justiça e Direitos Humanos de Mato Grosso

PPGE Programa de Pós-Graduação

em Educação Mestrado e Doutorado

Apoio

GEMPOGrupo de Estudos

Educação & Merleau-Ponty

CRDH Centro de Referência dos Direitos

Humanos de Mato Grosso

Distribuição gratuita

ISBN 978-85-327-0550-1 Venda proibida

UFMT

ISBN 978-85-67770-02-4

Sustentável

editora

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