duas crônicas poéticas de pedro chagas freitas

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CRÔNICAS POÉTICAS de Pedro Chagas Freitas (ela no colo dele) - Se eu pudesse escolher tinha nascido nos seus braços... - Para não perder tempo. Para perceber, logo ali, onde estava o motivo para viver. - Todos devíamos nascer nos braços da pessoa com quem vamos morrer. Por questão de economia de esforços. Para começarmos, de imediato, a ganhar tempo. (a mão dele no rosto dela, lentamente descobrindo cada ruga no rebordo dos olhos) - Todas as mães entenderiam que há amores que são urgentes. - Todos. - E que encontrar o caminho no meio do caminho é meio caminho perdido. - Antes de você eu procurava; depois de você continuo a procurar. Mas já encontrei. Procuro mais do que encontrei. - Amar é isso. Procurar mais mesmo depois de já ter encontrado. - Na pior das hipóteses te encontro outra vez. (abraço apertado) - Você sabe que sempre que acordo ainda te olho, ainda te toco? Para saber que você está, para saber que isto existe. - E te ver respirar. Fico horas lutando contra o sono para te ver respirar. Sinto cada movimento do seu peito como se sentisse o espaço que a vida ocupa dentro de mim. O seu peito sobe e eu vou com ele, desce e eu vou com ele. É assim que adormeço, com a certeza de que você respira. Com a certeza de que posso dormir descansado. (lágrimas no rosto dela, a cabeça perdida no colo dele) - Acordamos sempre de mãos dadas. Já reparou? - É como se até nos sonhos precisássemos estar juntos. Adormeço e te levo comigo, mão na mão, para que nenhum caminho que faço, mesmo o que acontece por dentro do meu inconsciente, se faça sem você. - Outro dia sonhei que era a mulher mais feliz do mundo. Depois, quando acordei e te vi ao meu lado, é que percebi que afinal tinha sonhado que era a segunda mulher mais feliz do mundo. - Se eu pudesse ter escolhido o que queria sentir ficaria aquém do que realmente sinto. (as roupas se despem; primeiro as dele, depois as dela) - E tudo o que nos dizemos sai da nossa alma. Te falo, e o que digo sai de dentro, do mais fundo de mim. Se eu tivesse de mentir para você tinha de te dizer a verdade. - Nunca tivemos uma conversa. Tudo o que falamos se estende. Falamos a mesma conversa por mais diferente que seja o assunto. Quando nos falamos o assunto é nós. Pode ser biologia : ciência ou política. Quando nos falamos o assunto é sempre nós.

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Page 1: Duas Crônicas Poéticas de Pedro Chagas Freitas

CRÔNICAS POÉTICAS de Pedro Chagas Freitas

(ela no colo dele)

- Se eu pudesse escolher tinha nascido nos seus braços...

- Para não perder tempo. Para perceber, logo ali, onde estava o motivo para viver.

- Todos devíamos nascer nos braços da pessoa com quem vamos morrer. Por questão de economia de esforços. Para começarmos, de imediato, a ganhar tempo.

(a mão dele no rosto dela, lentamente descobrindo cada ruga no rebordo dos olhos)

- Todas as mães entenderiam que há amores que são urgentes.

- Todos.

- E que encontrar o caminho no meio do caminho é meio caminho perdido.

- Antes de você eu procurava; depois de você continuo a procurar. Mas já encontrei. Procuro mais do que encontrei.

- Amar é isso. Procurar mais mesmo depois de já ter encontrado.

- Na pior das hipóteses te encontro outra vez.

(abraço apertado)

- Você sabe que sempre que acordo ainda te olho, ainda te toco? Para saber que você está, para saber que isto existe.

- E te ver respirar. Fico horas lutando contra o sono para te ver respirar. Sinto cada movimento do seu peito como se sentisse o espaço que a vida ocupa dentro de mim. O seu peito sobe e eu vou com ele, desce e eu vou com ele. É assim que adormeço, com a certeza de que você respira. Com a certeza de que posso dormir descansado.

(lágrimas no rosto dela, a cabeça perdida no colo dele)

- Acordamos sempre de mãos dadas. Já reparou?

- É como se até nos sonhos precisássemos estar juntos. Adormeço e te levo comigo, mão na mão, para que nenhum caminho que faço, mesmo o que acontece por dentro do meu inconsciente, se faça sem você.

- Outro dia sonhei que era a mulher mais feliz do mundo. Depois, quando acordei e te vi ao meu lado, é que percebi que afinal tinha sonhado que era a segunda mulher mais feliz do mundo.

- Se eu pudesse ter escolhido o que queria sentir ficaria aquém do que realmente sinto.

(as roupas se despem; primeiro as dele, depois as dela)

- E tudo o que nos dizemos sai da nossa alma. Te falo, e o que digo sai de dentro, do mais fundo de mim. Se eu tivesse de mentir para você tinha de te dizer a verdade.

- Nunca tivemos uma conversa. Tudo o que falamos se estende. Falamos a mesma conversa por mais diferente que seja o assunto. Quando nos falamos o assunto é nós. Pode ser biologia: ciência ou política. Quando nos falamos o assunto é sempre nós.

Page 2: Duas Crônicas Poéticas de Pedro Chagas Freitas

(olhos nos olhos: suor, olhares partilhados, mãos excitadas)

- Me ame como se fôssemos intermináveis.

- Não há outra opção: ou você ama como se fosse a última vez, e isso não é amor nenhum, é apenas tapar o medo com o prazer, a ansiedade com o gemido, o som do silêncio com o som do gemido; ou você ama como se fosse a interminável vez, e é assim que o amor pacifica sem deixar de desassossegar, como uma corrente forte, rápida, mas nunca apressada, nunca desesperada.

Ou desesperada na medida certa. Excessiva na medida certa.

- Tem de ter um sabor grande demais sem ser exagerado.

(o instante de um no outro)

- Me ame como se me falasse com o corpo.

(e chega o momento final)

- Se eu pudesse escolher tinha nascido nos seus braços.

Não sei o que sou mas sei que sou sua.

Não acredito em amores que façam mal apesar de ter certeza de que todos os amores fazem mal. Amar e ter a certeza de que é melhor dois pássaros voando do que um na mão. Nenhum provérbio sabe o que é o amor.

Troco uma vida de orgasmos pelo orgasmo de uma vida.

Há uma quase felicidade em cada minuto sem você, e até o prazer acontece sem que eu venha com ele. Os mais cerebrais me pedem contenção, me pedem anulação. Mas não se pode conter o que nos faz querer. Não se pode conter o que nos faz viver. E se a vida existe é para que seja assim para você, para que alguém, um dia, possa ser assim de alguém.

Só quem nunca deixa de ser completamente de si mesmo consegue ser completamente de outra pessoa.

Sou em você o que nunca poderia deixar de ser, a mulher que nunca fugiu do que a pele lhe dá, que nunca se entregou ao tanto faz. Se faço me faço toda, se quero me entrego toda, se preciso me curvo toda. Se estou aqui para viver estou aqui também para ceder. Para saber que não sou menos só porque não sou rainha, e para que todos os reinos se governem por dentro.

Só quem consegue ficar em cacos consegue ser-se por inteiro.

Só os coitados vão até o meio da ponte. Não admito me encontrar no que nada é. Se quero chegar vou até ao outro lado, sem orgulho e orgulhosa, tremendo mas sem medo, e quando me disserem que fui fraca responderei com o desprezo de quem só admite o êxtase quando o êxtase é possível.

A força consiste em recusar o satisfaz bastante quando se pode ter o satisfaz plenamente.

Page 3: Duas Crônicas Poéticas de Pedro Chagas Freitas

Não sei a mulher que sou mas sei a mulher que não sou. Não sou a mulher que se esconde nos tachos, a mulher que se cala nas horas, que se entrega ao embuste da segurança, a fraude suportável de ver passar o tempo. Não. Não sou. Não sou a mulher do fado e das lágrimas, a mulher do enfado e das rotinas, dos sonhos que se arrastam pelas esquinas. Não. Não sou. Não sou mulher de sorrisos quando existe a gargalhada, de aldeias quando existe o mundo. Não sou nem um milímetro menos do que aquilo que posso ser, e se um dia cair foi porque tentei saltar e não porque preferi aceitar.

Antes um Titanic afundado do que um barco que não vai a lugar nenhum. Não sei o que sou mas sei que sou sua.

Quando me pediram para mostrar as veias apresentei uma imagem sua.

E todos riram e eu não entendi.

Nenhuma ciência consegue compreender o amor.

Te arrancar de mim ou cortar os pulsos?

E o que é a morte senão o instante em que você percebe que te amputaram uma veia da alma? Ainda que o corpo persista (os corpos às vezes persistem, teimosos, quando todas as almas já se foram, quando todos os espaços estão vazios e só resta fechar a derradeira fechadura; há corpos teimosos, que não percebem que não depende deles, nunca depende deles, declarar a falência de alguém), ainda que haja a respiração de sempre e a expiração de sempre, os segundos passando, um a um, lentamente. Pode me faltar até o sonho se você estiver ao meu lado para me fazer sonhar.

Todas as quedas são úteis se você puder me levantar.

Só para sentir que você existe para mim, que está para mim, e que verdade nenhuma (ouço por aí que não posso depender de você assim, que nenhum amor resiste a se a mar assim) tem dimensão para se intrometer nesta invencível mentira.

Quando eu não puder te amar assim é porque já não te amo.

Quando eu não sentir o chão parar quando você não está, quando não sentir tudo em mim te abraçar quando te olho, quando houver algum momento imperfeito para ser sua.

Ou me dá um sabor que vale por tudo ou não vale nada.

Ontem fomos ao parque juntos, velhos adolescentes em balanços, em carrosséis, nos carrinhos de brincar onde aprendemos a ser crianças. E quando te dei a mão e te olhei no meio de toda aquela gente quis que até a morte chegasse mais depressa. Para podermos ter um final feliz. Para que nos acabássemos como deve acabar o que é imortal. Nós e o sorriso (há tantos anos o seu sorriso perante o meu esforço para te fazer rir; e as lágrimas sem parar enquanto eu te dizia que era para sempre e você não acreditava) que nos juntou. Já que temos de morrer que eu seja a princesa e você o príncipe.

Que venha então a morte e o casamento final. E que na nossa lápide duas simples frases se escrevam:

Morreram. E viveram felizes para sempre.