chagas crÔnicas das almas

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Chagas Das Almas

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Themístocles Silva Neto mqwertyuiopas

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Chagas das Almas

1

Dedicado a minha irmã Kitty,

uma pessoa por quem sinto

um orgullho especial nesta vida.

QNC, Silva, Themístocles ISBN Reg. 348.398

Livro 462 Fl. 58 - 08/08/2014.

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Chagas das Almas

2

Prefácio

Num momento em que a obsessão pelo

corpo perfeito, pela carreira de sucesso e pelo

consumo do último lançamento – seja do

smartphone ou do sapato – preenchem as redes

sociais e nossos dias vazios, Themístocles Silva

Neto rompe barreiras, revelando as feridas do

tempo em que vivemos. Nessas crônicas, as

chagas de nossas almas, tantas vezes

disfarçadas ou ocultas, são denunciadas pelo

escritor que, ora brincando com palavras, ora

fazendo humor com sua própria dor, as expõe

sem anestesia ou esperança de cura.

Nascido em Petrópolis, cidade imperial

que se esforça por manter o brilho do tempo em

que era cidade veraneio da antiga capital

federal, o autor passeia por seus bairros antigos,

ladeiras e escadas sem espaço para o colorido

fantasioso. As Chagas Crônicas das Almas nos

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Chagas das Almas

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mostram que estamos todos em um mesmo

barco, rumo a reviver mágoas não curadas,

enfrentar a solidão e questionar nossa

existência, muitas vezes distanciada do ponto

de partida, quando tínhamos certezas que se

perderam nos imprevistos da jornada.

Deixando qualquer hipocrisia de lado,

partimos nesse voo de crônicas rápidas que nos

ajudam a lembrar o que éramos e abrir os olhos

para o que nos tornamos, enquanto percebemos

na paisagem e no passageiro ao lado que, no

que diz respeito a sonhos, frustrações e

lembranças, o espaço-tempo faz pouca, ou

talvez, nenhuma diferença.

Apertem os cintos, hora de decolar.

Adelia Di Buriasco.

(Professora e amiga)

Recomenda-se ler seguindo a sequencia.

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Chagas das Almas

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Sexo, Drogas e Rivotril

Andei me cuidando, parei até com o

Rivotril! Depois de fracassar com a dieta da

lua, voltei à dieta da rua. Italiano de queijo

e presunto é massa! Junto, Coca-Cola, além

de churros, tipo assim: sobremesa. Tirei

férias mês passado e fui com a família para

Holambra-SP. Conheci uma moça, Inês,

num acidente. Tropecei numa tulipa, foi

inesperadamente. Torci o tornozelo. Ao

menos comia croissant de salame fino e

sobre à mesa nada de chulos, doces

vulgares do Cebolinha. Dia seguinte tive

alta do hospital local e voltei no primeiro

voo, que o anterior estava lotado. Ponte

aérea São Paulo-Rio de Janeiro. Que medo!

Prefiro buzum Castelo-Cascadura sem

barrinha de cereais! De volta também à

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Chagas das Almas

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Niterói, engessado, retornava das férias ao

Clube de Remo, de volta ao rink. Me

pediram uma programação de eventos para

o inverno, desanimado, comecei propondo

um swing... Muito sexo! Perca o emprego,

mas não perca uma parca rima! Claro que

isso é mentira. Voltei à rotina de casa-

pastelaria-trabalho-casa. O Falabela me

ajudou a abandonar a TV Globo, a começar

por sua Falafeia de abertura num programa

churros sobre sexo e afros. Só pode gente

tipo ele e Mala fala, se você disser isso, vai

para a cadeia, vai entender! Desconfio que

estou com LER. Causa? O controle remoto

no eterno nada de bom para ver. Ler! Tentei

sim retomar aos livros, desisti. Faz mais de

um ano que não pratico, atrapalha para

escrever. Me sinto cover sei lá de que ou

quem. O que sei é que sinto isso, porém.

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Chagas das Almas

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“Ai porém!”, resolvi ouvir mais música e

neste relato chato estou com o magnífico

Paulinho da Viola nos ouvidos. Isso é a

coisa que faz jus aos dias, aliás, sempre

fora, parece. É tarde e já se foi o sábado.

Vou deitar e, ao acordar, devoraremos dois

frangos assados com a pele bem tostada,

hum! É a tradição brasileira semanal da

celebração do dia de ação de desgraças:

Domingão do Faustão e depois do Mengão,

que já tem a quarta especial após a novela.

Tudo com bastante colesterol da

sambiquira, - adoro! – “esta parte é minha!”

Sambiquira é o nome popular da cloaca ou

se preferirem, o anus da galinha. Perdão a

grosseria. Melhor ir de Wikipédia:

“Sambiquira é a porção terminal do corpo

das aves no formato de um apêndice

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Chagas das Almas

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triangular, ela abriga uma...” Basta de

hipocrisia, né? Isso tudo é cú!

Depois veio uma das canções chatas do

Carlos Lira. Mas tudo bem que samba eu

queria, menos indigesto que sambiquira.

Arrotei a noz moscada por algumas horas.

Entrava a segunda-feira e fui dormir. Puto,

pois o meu Botafogo caiu para o Z4. No dia

seguinte tinha labuta. De casa para o

trabalho, recheando-o com massas assadas e

fritas com queijo, carne e doce de leite.

Tudo misturado, sabemos se vomitado. O

colega Roney voltou de férias logo depois e

pediu para assinar no meu gesso. Sobrava

espaço, prova de que há alguma evolução

na sociedade, ponta de esperança. É justo,

só estava faltando ele, pensei. Deixei correr

a Last.fm no computador e uma enorme

coincidência! Terminando esta frase ouvi:

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Chagas das Almas

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“Naquela mesa está faltando ele e a saudade

dele tá doendo em mim”, isso na voz

marcante de Léo Batista, digo, Nelson

Rodrigues, perdão, Gonçalves.

Acordei muito sensível no dia seguinte,

sabe? Meu estomago também, repleto de

ácidos, gazes e sons de bolhas

desagradáveis como aqueles

transcendentais que fazem fundo em

sessões de Shiatsu. No almoço deste mais

um dia, resolvi pegar leve com um

pirezinho e salada de alfaces. Me senti indo

para a lua novamente e quando terminei

maldisse Armstrong e Collins. Esqueci o

outro. Retornei à minha mesa de trabalho e

botei para tocar “What a Wonderful

World” e “Take a Look at Me Now” como

que para me redimir deste atentado contra o

orgulho de humilde nação norte-americana.

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Chagas das Almas

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Escureceu. Marquei o ponto e fui embora.

A caminho doutro, uma barraca de churros,

assombração! Hesitei, mas acabei comendo.

Cheguei em casa e resolvi eu mesmo

arrancar o gesso. Sobrou até para o forro!

Dia seguinte chamei o pedreiro para

remendar tudo. Ele que, aliás, faria melhor

trabalho no meu pé. Descobri que

enfaixaram e lambuzaram o lado errado e

que tudo não passou de uma tola luxação.

Liguei a TV. Na Band passava “O último

tango em Paris”. Enjoado com a gordura

poliinsaturada daquela iguaria fálica, quase

regurgitei na cena da manteiga. Depois de

um sal de fruta Eno, até lacrimejei. Fui

dormir e sonhei que comia uma galinha

com muita gula. Não era coincidência, pois

acordei com uma baita dor nas costas e não

fui trabalhar. Minha amada esposa me

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Chagas das Almas

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levou o prato do almoço na cama, dizendo:

”Querido, preparei um ensopadinho de

sambiquira com batatas delicioso para

você! ”Pela primeira vez comecei a

repensar sobre meus conceitos céticos

acerca da teoria da conspiração. Que tudo

começou com FHC introduzindo o Frango à

dieta da classe média brasileira de então.

Me vi metido nas drogas, muitas drogas!

Na terça tudo normal. De volta ao

Clube, estava feliz, sentimento de

superação, meio isso. Olhei várias pessoas

velejando no frescor da Bahia, de remos em

punho, lindo. Tive uma sensação de

ginecologista... Trabalhando onde os outros

se divertem. Liguei o computador, a rádio

Atena 1 tocava “ouro de tolo” do Raul e a

vida seguiu em frente entre trilhas sonoras,

enredos e auroras baixo-astrais. Coca,

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massa, churros, TV e vez por outra, uma

sensaçãozinha de medo. De morrer? Ora,

não! De viver! Me deu vontade de mandar

tudo para puta que pariu, mas graças a deus,

voltei com o Rivotril!

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Eclipse do amor

Infante, a impressão que tinha era de

que alguém ou alguma coisa além da minha

compreensão desligava um botão lá em

cima e apagava o sol no cair da tarde. Como

as chaves que me lembro de meu pai mexer

na caixa de luz quando os fusíveis ainda

eram de louça. Depois, mais atento, metido

a filósofo grego, com atentas observações e

interesse na matéria científica, desconfiava

que a lua fosse o sol à meia luz, que ambos

fossem o mesmo astro em estados

diferentes, mas nada egoísta, só

generosidade e exação, achava. De dia o sol

fazia seu papel de trabalhador. No inverno

era ameno para agasalhar os pobres

descobertos de boas lãs e calorias de nozes

a avelãs. No verão, severo aos operários,

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como o Seu Gumercindo que trabalhava lá

em casa e suava em bicas, um amigão para

sempre em trabalhos esforçados. Mas que

isso era para o bem comum, como os

diretores da escola se faziam enérgicos com

a gente para educar e formar caráter, mais

postulados... Este ainda discorria sobre o

fato de que todas as noites, findo o

expediente, o Astro Mor se transformava

em Lua para usufruir do descanso e levar o

lazer e o amor aos homens. Não

pressupunha o gênero imposto pelos artigos

definidos, posto que mal terminasse o

abecedário. O conto de fadas celestiais

fazia-me crer que ele se travestia de Pierrot,

que me fascinavam nas matines de carnaval

no Petrô, referindo-me ao clube da cidade

neste depoimento galáctico retrô. Só que

agora artista a levar a beleza e a leveza das

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existências românticas e sensíveis de alma

como sentia o protótipo do meu ser, apesar

de angústias esparsas de fragilidade no final

das tardes, sujeitos a pancada de rua em

meio aos moleques da irmandade até o

alvorecer. Lua. Via suas manchas em forma

de lágrimas no rosto redondo e reluzente na

escuridão da abóboda circense. Ele. Fosse

minguante ou nascente. Estas fases

discretas pareciam a de uma meretriz que

mostra apenas o decote ou as coxas, criando

as melhores expectativas em seus ensaios

lunáticos sensuais. Se cheias, luas nuas...

Quanto às estrelas, colombinas, anãs, Anas

e Marias, anos-luz, anos-lua de mim. Para

mais de três. Convidadas para o magnífico

espetáculo quando as nuvens negras, raios e

trovões não tomavam a cena como vilões

vindos de supersônicos aviões. Vruuum!

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Chagas das Almas

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Mas observando a chuva, seu poder de

acalanto, com o tempo desconfiava que

seus anunciadores não pudessem ser do

mal, que eram como os cães da casa ao

lado, lindos pastores que ladravam muito,

mas não mordiam em seus mantos alemães

malhados.

Esta alegoria combinava com o abajur

que minha mãe deixava aceso no quarto

para melhor segurança das minhas

madrugadas de passarinho em repouso de

azas a voar. Descansando de muita alegria

até o despertar, com o relógio analógico em

nosso ninho, que não havia nesta época os

digitais, é claro e isso sim lógico. Agora

sem Anas dos Lenos ou qualquer outra

constelação do zodíaco, vinham sonhos

animados e coloridos da imaginação

juvenil, onde os pesadelos invariavelmente

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são vencidos por algum super-herói abstrato

e tudo mais, e tudo bem, pois que nunca

faltava o mocinho das ilusões do menino

tolo. Criança passageira do trem da

infância, profunda e com a cabeça sempre a

mil por hora num vagão, noutras instancias

de um infinito que desconhece distancias...

Um dia conheci um eclipse, entendi

que dois astros formam um tipo de maré de

sizígia, que é nada mais do que a soma da

força gravitacional entre os astros

envolvidos, quando as lágrimas oceânicas

são as mais rasas, aprendera no ginásio com

a saudosa tia Lígia e comovido. Embriagues

nostálgica mental e orgânica de avejão em

pus. Pus-me a rever... revival sim... e como

vivo! E assim vou, coisa e tal...

O fato é que a esta altura estava ciente

de que ambos, Sol e Lua, eram sujeitos

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distintos nas orações, que nem estas como

súplicas, fossem com as vestes das mais

coloridas, continuaria dando pano para

manga com o sabor doce de uma rosa ou

caiana. Remete-me e remendo com alvitres

de Ana, que caía na minha na escola! Bela

menina, mas nem sabia o que é dar bola! Só

nas peladas, digo, no futebol na quadra. Ah!

Mas aí me deram uma porrada no joelho.

Até hoje não posso mais jogar. Como não

ter ar triste? Bem, nem tudo pode ser

considerado ideal... Voltemos ao espaço

sideral.

Um dia, deitado na cama, antes da

pestana emplacar, momento em que a

cabeça se põe mais a pensar, quando não vi,

já era candidato a rapaz, - tinha até buço -

recomecei a viajar na velha cauda do

cometa, na onda gulosa astronômica. De

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repente parei. Senti-me ridículo, pueril com

a imagem deliciosa que interrompera lá

atrás e, ainda que perdido em uma nebulosa

deixei prosseguir o filme dando fim à órbita

mental.

Na relatividade do tempo, será que um

eclipse não passa de um encontro casual

entre o Sol e a Lua, tão emocionalmente

envolvidos? Encontro para um abraço

fraterno e quente. Breve, sem espera e de

sempre. Coisa singela, inocente...

Fraternidade de um Deus limpo e todos

uníssonos com o mundo. Abençoado e a

abençoar, dignos de olimpo. Celebrando

com louvor os sentidos e instintos. Dos

homens ao milagre da vida em esplendor.

Da graça dos céus, da terra e do mar... O

todo conjugando o verbo amar... Este

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fenômeno raro de louvor... Eclipse de um

Grande Amor!

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Menino Jesus

Aos 13 anos de sua era, num dia

qualquer, Jesus fazia companhia a José em

sua carpintaria:

― Filho, me passe a estopa.

― Sim, senhor. ― Respondeu o

menino entregando-lhe a bucha.

― Já disse Jesus, me chame de pai!

Falou José enquanto fazia a limpeza final

de uma cruz de cedro.

― Desculpe pai, eu não sei o que

acontece, mas vou me acostumar... Senhor,

ou melhor, pai, quando é que o tio Batista

vem nos visitar novamente?

― Não sei. Teu primo... Está bem,

tio... É um andarilho, ninguém nunca sabe o

seu paradeiro. Mas por que você quer

saber?

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― É que eu gosto de conversar com

ele.

― Este negócio de você ficar dando

ouvidos as ideias desatinadas de João, não

me agrada. Aquele vive nas nuvens!

― Nada pai. Aliás, ele diz que eu serei

uma pessoa muito importante, sabia?

― É. Mas para isso, você tem que

continuar frequentando a escola.

― Eu detesto ir à escola e não gosto do

mestre Esaú.

― Já disse para não falar assim, você

tem de respeitar seus professores.

― Mas ele só fala coisas horríveis

sobre Javé, eu fico com medo. E outro dia

disse que os homens ainda voarão e ele me

colocou de castigo.

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― Você ainda é novo para

compreender o Livro. Ah...! Prodígio,

prodígio. ― fala baixo para si.

― Eu sou um garoto normal!

― Não, óbvio...! Bem... ― José se cala

e balança a cabeça para os lados com

reprovação condescendente.

― O que foi Sen... quer dizer, pai?

― Ah sim. Aquela história do menino

que caiu dentro do rio semana passada.

― O meu amigo Judas? O que é que

tem pai?

― Todo mundo anda falando que você

o curou. Ouça filho, só Deus opera

milagres, entendeu? E realmente como

aquele corte estancou e cicatrizou em

minutos é mais uma de suas providências.

― Eu sei. Eu sempre digo que aquilo

foi obra do Pai, quer dizer, do Senhor...

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Deus. Eu apenas pulei na água para socorrê-

lo e passei minha mão na ferida da sua testa

para tirar a areia.

Esquecendo o assunto, José levantando

a cruz, fala com esforço cansado:

― Ajude-me a levantar isto aqui.

― Nossa! Pai, como é pesado.

O silêncio toma conta da oficina e logo

o menino o quebra com sua irresistível

tagarelice:

― Pai, o Senhor, quer dizer, o papai

nunca me falou como é uma crucificação.

― Esqueça isso filho!

― É para punir os bandidos não é?

― Sim, e também os hereges.

― Como aquele Sócrates, o homem da

velha Grécia que o tio falou?

― Mais ou menos isso, aquele homem

era perturbador da ordem estabelecida e foi

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condenado a tomar veneno, não havia

crucificação naquela época.

― Sei... Será mesmo que ele era do

mal? Veneno... Não dá tudo na mesma?―

E é verdade que os condenados têm que

carregar isso até o calvário?

― É.

― E depois?

― Hum meu filho... Está bem, então

escute:

Depois eles são pregados vivos na

cruz, ela é suspensa, afixada na terra, no

cume do calvário e em meio a uma sangria

desatada, o réu permanece lá até morrer!

O menino fica atônito, se arrepia e

emenda:

― Deus me livre!

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Os Ursos

Casa nova é uma delícia! Para as

crianças um universo a se explorar,

enquanto os adultos posicionam móveis,

desembalam caixas e arrumam as coisas.

Mudança cansa, mas traz esperança. Parece

que os velhos teréns são novos, os cheiros

de mofo promovidos a jasmim e que das

dificuldades de inquilino possam vir

milagres, ilusões tolas sem fim, a cada casa

par ou impar, que foram quase trinta!

Porém, os baixinhos nem reconhecem isso,

só um peso no ar vez por outra lhes alcança

as preocupações das pessoas adultas

fazendo sentir uma sensação ruim no peito,

mas também que basta um peido que ladra

ou uma coceirinha na cabeça de dois dias

sem banho, que logo passa. Aí só alegria,

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nirvana... Eles só se preocupam em

perscrutar os novos arredores onde os

mistérios brincam de esconde-esconde.

“Onde vai dar aquele buraco escuro da

lareira? Será que sai direto em tele

transporte para o país da Alice? Ou no

porão escuro do Conde Drácula?” O

vampiresco da Sessão Coruja que todo

mundo evita que a gente veja tarde da noite.

É, mas que sempre damos uma escapadinha

masoquista para bisbilhotar tipo o “Moita”,

de espreita e esguelha na lateral das portas

entreabertas e rangedoras num imenso pé

direito, - ao contrário do nosso despertar de

um incerto dia.

O nome da nova rua, Avenida Barão do

Rio Branco, se fosse Conde, tanto faz, seria

tudo igual, meio obscuro... Contudo, o Rio

parecia sugestivo... De águas lácteas! No

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Chagas das Almas

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fim, nada tão lúdico, apenas nobre e justo

quando aprendemos na escola se tratar de

homenagem, ruas afora no imenso Brasil, a

um grande homem servidor de nossa

diplomacia no passado. E o seu título

familiar simplesmente contemplou a capital

do Acre, oxalá minhas sandálias, bolas de

futebol e bodoques!

A imensidão é subjetiva no espaço-

tempo, tudo parece ser muito maior para as

crianças, no caso eu e meu irmão no

segundo andar daquela “mansão.” E foi

assim que descobrimos um verdadeiro

tesouro numa noite de lua cheia, apesar do

clima mais propício a juntar os filmes

adultos da TV em preto e branco com as

lendas dos lobisomens! Mais um dia de

estágio de rotina, um anoitecer antes de

dormir, quando os carrinhos, o pegas-

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varetas e todas as ferramentas de trabalho,

maravilhoso trabalho escravo de brincar,

vão para seus respectivos compartimentos,

graça a desgraça diária da mamãe

certamente. Aténs de colocarmos a cabeça

no travesseiro, debruçamo-nos na janela de

nosso quarto cuja vista dava à esquerda

para a moageira de trigo. Ela era escrava,

pois que trabalhava dia e noite, sete dias por

semana, denunciavam as luzes brancas

internas e o som das máquinas. De repente,

ao erguer a cabeça no ócio infantil, cutuco

meu irmão e aceno com queixo.

Bem a nossa frente, resplandecidos

pela luz do céu noturno a meio breu,

abóboda em miríade estrelada, - ou apenas

minha memória agora enluarada...? - Nos

deparamos com dois ursos gigantes!

Medidas de infante? Lembro-me bem da

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trilha que vinha suave do quarto ao lado,

Panis e Circenses dos Mutantes. Para que se

tenha uma ideia, os animais vinham do chão

do primeiro andar do nosso quintal, até uns

dez metros ou mais acima de nossas

cabeças, que já estavam a alguns pés do

segundo andar. Eles eram verdes. Não!

Eram pretos... pretos? Nada! Ora, eram

marrons, como não?! Dependia da

intensidade da luz celeste e da luminosidade

das nossas fantasias. Às vezes uma coisa, às

vezes outra, não importa. Nunca saíam do

lugar, apenas mexiam parte de suas cabeças

e troncos fartos de pelos grossos que se

estendiam por seus corpos troncudos,

revezando os lados com misteriosa

maestria, cujo regente parecia ser o vento

frio do outono da serra como a executar a

Sinfonia ao Luar. Uma valsa em compasso

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Chagas das Almas

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terno, ternaríssimo, sempre a nos espiar

com zelo. Neste balanço a nos ninar com

esmero, até pesarem nossas pálpebras.

Pode-se dizer que passaram a ser parte

diária do ritual, páreos em nossa mútua

simpática e risonha contemplação entre

comentários sem pé nem cabeça, afetos aos

ursos. Assim fora por várias noites que se

seguiram nos primeiros meses do lar que

ainda cheirava a cera nova.

Adotamos em segredo os animalaços

como nossos bichos de estimação,

relegando a amada cadelinha Biriguda, que

tinha as duas cores da imagem da TV. Tudo

bem, ela era de todos da casa, e Kitty dava

conta de muito amor como sempre.

Como casa nova à noite dá aquele

friozinho na barriga até que a gente se

acostume com seus barulhos e fantasmas

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Chagas das Almas

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próprios; e o papai leva um tempinho a nos

garantir a confiança de super-herói que logo

há de imperar deliciosamente; resolvemos

tomar nossos ursos como nossos protetores

e passamos as chamá-los carinhosamente de

ursões. Eram dois irmãos, como nós, bem

chegados, sempre lado-a-lado. Tivemos que

assumir posse cada um de um. Eu, claro,

que era mais novo, fiquei com o ursão

menor, o da esquerda. Até tentei o outro...

porra... com o Omar era perda de tempo...

Moca na cabeça, essas coisas... me inclui

fora dessa! O que importa é que eu amava

meu ursão caçula, afinal, à minha imagem e

semelhança. Cada um feliz com o seu.

Como não era pudim de leite, tamanho não

era documento, digo, motivo para se sair na

porrada.

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Um dia, depois da escola, armando

cabana no quintal, chegaram uns homens no

portão perguntando pelo responsável.

Informamos que mamãe foi à feira e papai

foi trabalhar. É, isto mesmo, o desfecho

desta história é tão bizarro, quanto certas

canções de ninar!

― “Aí, nós somo da prefeitura” ―

disse um “armário”, ladeado de uns caras

não menos fortes, como o “Poderoso Thor”,

que víamos com empolgação na TV

caixotão. Ainda por trás, um baita

caminhão.

Na casa dos sete a nove anos a gente

sabia mais ou menos o que era prefeitura,

mas não tínhamos muita simpatia não,

porque o papai sempre falava coisas como:

“Este salário da prefeitura é uma merda!”;

“Assim eles vão cortar nossa água!” Eu

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Chagas das Almas

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pensei se seria necessário todo aquele

aparato para tirar água de nossas torneiras

ou prender o papai por ele falar mal da

coisa... Ou algo mais legal, generosidade,

trazendo seu pagamento na porta!Sei lá...

Afinal, todo mundo se referia à instituição

como algo importante. “O Senhor Prefeito!”

Hoje é de dar gargalhadas!

O fato é que nosso irmão mais velho

estava em casa. Ouviu o burburinho, foi até

lá falar com os brutamontes e abriu o portão

para eles. Queria eu ser mais prodígio e

pedir um mandado, colocá-los para fora! Os

brutamontes vieram para prender nossos

bichos! Ele, nosso brother, saia da

puberdade no auge de sua beleza e

masculinidade. Preocupado com sua

guitarra, sua esbelta cabeleira e a

mulherada, não estava nem aí para mais

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Chagas das Almas

34

nada, que dirá nossos ursões. Ordenou a

execução com autoridade. Saca autoridade

de adolescente, a galera fora e dois

pentelhos? Lembro-me da gente fazendo

juras de vingança com as narinas abertas:

"Vamos arrebentar as cordas de sua maldita

guitarra!" Como trama de alta conspiração

infantil. Não me lembro se cumprimos a

missão. Creio que o Omar sim, talvez até

antes do evento, com motivo menos grave,

faço pausa para rir...

Mas hoje percebo que ele fez o que

podia fazer um adolescente, vítima da

própria condição, nada mais do que algo de

pouca consciência, ebulição de hormônios

incandescentes, não julgo meu amado irmão

mais velho, não carece de perdão.

Mas não dá para esquecer o que de

suposta ordem de prisão, fora uma

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execução. Surpresa foi ver do outro lado do

muro o vizinho entusiasmado. Se metendo,

dava palpites técnicos de como fazer, o

melhor ângulo para mover aqui e amarrar as

cordas acolá. Baixinho narigudo filho da

puta! Soubemos depois que foi ele quem

denunciou nossos animais de estimação,

entrando com papéis por escrito na

repartição, acho que isso. Sob a alegação de

que eles - imaginem se nossa ira não era

justa por tal insulto – justo eles, nossos

ursões, lhes roubavam o sol da manhã.

Quando que nossos amigos protetores,

heróis da noite, reis das florestas e jardins,

crias da natureza, amigos das crianças,

poderiam roubar alguma coisa de alguém?

Principalmente o sol! E como o Astro Rei

podia pertencer ao vizinho? Seria o Sol, sua

luz, a exemplo da água, propriedade da

Page 37: CHAGAS CRÔNICAS DAS ALMAS

Chagas das Almas

36

prefeitura?Ah! Vinha cobrada junto na

conta da tal Light?! Que porra é essa, Omar,

meu irmão?!

Assistíamos pávidos o assassínio.

Começou pelos multibraços à foiçadas.

Suas vestes nobres verdes sangue azuis,

como que caindo ao chão de saibro de

chamar atenção aos urubus. Depois os

machados em suas canelas de pau inertes

que sangravam seiva cheirosa das linhagens

mais briosas. Ambas começaram a

desfalecer seus corpos num dia quente.

Começamos a perceber a impotência de

nossas indagações repletas de ingênuas

dúvidas, súplicas em meio às lágrimas que

tentavam se esconder nos cantos dos olhos

presentes. Uma mistura de dor pelo ato

literal de defloração, com a vergonha do

rótulo de que é maricas chorar à toa. Um

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Chagas das Almas

37

choque de espanto e comoção, tipo Malásia

Airlines, aquele avião... De boa?

Percebo só agora o que só vi uma vez,

cortar-se um bem pela raiz, nunca ouvira ou

vira mais tal estupidez. Só agora... Que as

pessoas investidas de uma autoridade estéril

se fazem donas dos bens naturais que não

passam de uma generosa concessão da mãe

natureza. Seja nas praças e bosques

públicos, seja nas propriedades particulares

ou florestas virgens tropicais. E mais,

arbustos de cativeiro, animais, ilhas, praias,

campos, seus solos férteis e vistas

deslumbrantes como que privatizando tudo

ao seu bel poder. Mais filhos da puta!

Em menos de uma hora, as duas

árvores estavam abatidas e totalmente

mortas, bem assentadas no caminhão.

Amarradas com a mesma fealdade qual

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Chagas das Almas

38

galinhas que se trás da feira para o domingo

um molho pardo. Eu, meu irmão e a

Biriguda – ela, xereta que sempre fora – nós

três, esticamos nossos pescoços miúdos

com forçosa limitação, quietos e

engasgados. Assistimos à partida do veículo

suntuoso, dando adeus com as pequenas

patas da imaginação, já que as outras

amparavam nossos corpos nas grades do

portão. Até que o carro sumiu de vista do

outro lado da via, depois de virar a curva da

ponte da Avenida Barão do Rio Branco...

Agora nome sem qualquer importância.

A nossa cachorrinha fez fiu, fiu

baixinho e depois correu pra dentro de casa

se enroscando na cadeira verde onde o

papai a chamava...

Por longo tempo, a casa nova se

encolheu e a novidade se perdeu entre

Page 40: CHAGAS CRÔNICAS DAS ALMAS

Chagas das Almas

39

mentes. A não lua nascia mais em nossa

janela, fossem as noites mais belas. Ou

talvez simplesmente, de almas denegridas,

começamos a perder a mácula dos imberbes

e o brilho nos olhos para os dotes de

natureza tão bela, aprendendo a lamber

feridas como a nossa cadela.

Page 41: CHAGAS CRÔNICAS DAS ALMAS

Chagas das Almas

40

Nem aí...

Não estou nem aí, só lá...

Mas quem está? Se é que é para ser e

estar.

Gastar sola não, sol há, vem a mim

sem que eu vá.

Entretido comigo mesmo percebo as

luzes sombrias dos pixels vindas da TV. Em

nível inconsciente vejo que passa o jornal

da noite anunciando aos berros as tragédias

do dia de ontem e amanhã. Tudo em alta

definição, isso, os atos que se auto definem

sem qualquer vergonha de si mesmos.

Países que invadem e tentam tomar uns aos

outros, plebe e gleba, roubando o que eles

têm de melhor e impondo seus ritmos de

horror. Egos infecundos se exteriorizando

Page 42: CHAGAS CRÔNICAS DAS ALMAS

Chagas das Almas

41

ao máximo, clamando audiência, atenção,

qual Narciso em seu espelho alagado.

Enquanto isso, sem dar a menor

importância, nem às vitimas, tento o

contrário, me interiorizar, sair do ar. Sendo

absorvido pelo branco leitoso da tela que

poupa árvores, trocando silício por celulose

e, oxalá, com toda impessoalidade do hi-

tec, nem tudo está perdido. Inspiro-me

em Keith Jarrett em seu “My song”, onde

sai de “si” e flutua sobre o piano fundindo-

se a um estado de espírito elevado,

produzindo acordes que se alternam entre o

alto e baixo tom em melodia onde percebo

não haver mais um “eu” nem um

referencial. Ele parece ser o criador e a

criação. Já vi minha irmã assim no palco,

como se não fosse mais minha parente tão

próxima, mas um ser de luz maior que isso.

Page 43: CHAGAS CRÔNICAS DAS ALMAS

Chagas das Almas

42

Capto nas entranhas também o suor

profícuo do David Gilmour solando em sua

guitarra em tons rosa-floyd. Tudo que me

vem e não é pouco, coloca o panorama

beligerante em estado ainda mais

insignificante, já que na realidade deles,

promovem tanta dor a terceiros inocentes,

ou neste reality show talvez não haja

simplórios, mas só culpados pela maldição

de serem o que são. São? Só um artista em

sua ilusão de cosmo pensado, passivo de

luzes cintilantes que me recocheteiam em

seus aspectos e me fazem senti-las em

reflexo. Não há mais futuro ou passado.

Ouço "umas e outras" do Chico de

Holanda... Vem-me uma vaga cauda

passageira como de um cometa raro, Halley

de raciocínio, interferência daquele mundo

externo, tamanha minha perplexidade

Page 44: CHAGAS CRÔNICAS DAS ALMAS

Chagas das Almas

43

diante de uma idealização e concepção

genial. Ele é de um grupo onde o degrau do

talento se sobe em paços mais largos. Por

extensão vejo a música de minha terra de

referencia no orbe da praticidade de sua

dialética física e cronológica, como um

berço esplendido e infinito de ideias e

arranjos em acordes desbundantes. Eu

treino, me esmero e chego a ter lampejos no

meu escrever. Não me vejo perto do estado

dos supracitados, nem do Matthew

McConaughey, óbvio... Sou aprendiz de

feiticeiro, que espera um dia se encantar

com o repleto de tudo um pouco, bastando

produzir um suspiro, já me contentaria um

tanto. Esta poção de que se apoderam os

ricos de verdade, independentes das cifras

que sabem e fazem por merecer ou não,

mero detalhe. Eles em seus gozos múltiplos

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Chagas das Almas

44

espasmódicos levam conforto e apazíguo

aos entes sensíveis entre pátrias. Tornam-se

seletos seres humanos de ressalva que

justificam a existência e permanência do

nosso bicho cambiante neste mundo de até

então. Portanto, sou fã e viciado da boa arte

que nunca me é bastante. Para aquele resto,

estou nem aí, me alieno como um

ignorante... e daí?

Onde estou? Não sei onde, viajando de

carro, jatinho ou de bonde. Sei que

ouço Shine on the crazy diamond...

Page 46: CHAGAS CRÔNICAS DAS ALMAS

Chagas das Almas

45

Aquele abraço

Na volta da escola, tempo único em

que reinava o auge da minha vitalidade

criativa e emocional, era almoçar e depois ir

pra rua. A rua é um cenário em preto e

banco, tem uma dimensão de lembranças e

fantasias de paisagens e personagens

esparsas: a família, os amigos, aquele

bêbado emblemático, os comerciantes e, em

cor, apenas o bouganville no topo da praça,

onde tudo girava em torno de seu encanto.

Ainda tenho nos ouvidos a trilha sonora que

vinha da minha casa, defronte: Genesis,

Pink Floyd, Chico de Holanda e tanta coisa

boa de um mundo progressivo que meus

irmãos tocavam, fazendo sonoplastia da

minha vida às alturas. A gente só dava

alguns passos de volta da praça até em casa

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Chagas das Almas

46

quando a mamãe gritava da janela: ―

Criança, vem lanchar! ― Engolíamos uma

xícara de café com leite e pão com

manteiga, já com os pés apontados pra

porta, prontos para retornar a praça e seus

arredores.

Foi numa dessas cercanias, a escadaria

da fábrica velha, que eu fiz um novo amigo,

uma amiga desta vez, uma menina.

Começou de uma brincadeira qualquer, mas

no passar dos dias passei a dividir o futebol

e o trole por ficar ali com ela, muitas vezes

rodeado de crianças menores, suas primas,

batendo papo até começar a escurecer. Era

interessante, a gente tinha uma empatia por

certa maturidade maior do que o normal

para a nossa idade. Conversávamos sobre

problemas pessoais, sobre nossas famílias,

tantas dificuldades financeiras. E outras

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Chagas das Almas

47

preocupações entre as bobagens e

brincadeiras que culminavam na despedida

com o seu tradicional: ― “Tchauzinho

viu.” ― Balançando para cima e para baixo

os três dedinhos centrais da sua destra

mãozinha fina, branquinha e delicada. Eu

achava um barato.

***

Lembrei-me de tudo isto e relato

porque estou muito chateado, triste mesmo,

pela perda do Filó, seu irmão que faleceu há

quase um mês. Ele regulava com meus

irmãos mais velhos que faziam programas

mais adultos, mas que também habitavam o

mesmo palco, a praça. Inteligente, sensato,

boa pinta, me impressionava como espécie

de ídolo. Me bateu pesado hoje. A vida foi

perversa com ele dando-lhe de presente, na

casa dos 40, uma esclerose múltipla que

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Chagas das Almas

48

mutilou sua rotina, tirou-lhe trabalho,

mulher, lazer e entrevou-o por mais de dez

anos. Vida filha da mãe!

***

De vez em quando ela me avisava que

seu namorado vinha da Fazenda Inglesa,

bairro perto, subindo em direção ao Moinho

Preto. Na primeira vez, achei natural, na

segunda me incomodei bastante, até que na

terceira ela disse: ― Vou terminar com o

Roberto. ― Eu conheci o garoto, achava ele

bacana. Então, ainda que fosse a minha

iniciação também na hipocrisia, aconselhei-

a a repensar. Mas ela não me ouviu, assim

estava claro que nossa empatia tinha

transbordado em alguma coisa maior.

Passados quase um mês, ainda como

grandes amigos contidos, estávamos a dois

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Chagas das Almas

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dias do carnaval. O Petropolitano era o

clube que a classe alta e os esmerados da

média, como nós, frequentavam na época e

que tinha os melhores bailes da cidade. Na

sexta-feira combinamos nos encontrar na

matinê do dia seguinte, sábado, baile de

abertura. Só me lembro de que o tempo

parecia não passar e àquelas alturas estava

em tamanho estado de ansiedade que mal

consegui dormir, como numa sexta-feira

treze.

Sempre fora na maioria dos anos, meu

primo Fred e eu chegamos ao baile levados

por minha amada tia Téia, que também se

foi há pouco. Entramos na matinê, numa

tarde de viúva ou espanhol, tanto faz, que

cheirava a ozônio e lança perfume num

delírio onde o aroma era de fazer lisonja à

própria natureza. Ao primeiro pé portão

Page 51: CHAGAS CRÔNICAS DAS ALMAS

Chagas das Almas

50

adentro, minhas pupilas já giravam em

todos os graus, como se tivesse maluco ou

com um baita cisco nos olhos. Entramos no

primeiro salão e ao som da “cabeleira do

Zezé”, empinei o nariz e rodopiei nas

pontas dos pés sobre as cabeças do Batman,

do Homem Aranha, de odaliscas e

fantasmas, mas nada de avistar minha

fantasia preferida, como um Pierrot em

busca de sua Colombina. A tia nos levou

para comer um salsichão. A gente tinha que

esperar um ano para comer aquilo que tinha

um sabor estratosférico. Porém, confesso,

de tanto girar a cabeça no bar de fora, nem

apreciei a coisa direito. Depois fomos para

o segundo salão, desta vez tocava daqueles

sambas enredo que não se produzem mais.

“E os jagunços lutaram até o final”, que não

seria eu quem desistiria de vencer minha

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Chagas das Almas

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causa em pleno carnaval. Nem por isso o

salão do meio me conteve em partir logo

para o terceiro, o da piscina, que a essa

altura, do tempo e do som, não me lembro

de mais nada se não de uma sensação de

profunda tristeza e frustração. Minha tia e

meu primo, para evitar o tumulto da saída,

me chamaram para ir embora e eu disse que

iria de ônibus. Aí já eram quase seis e meia

da tarde e até as sete eu fiquei rodando em

circulo, revezando entre o pátio e os três

salões, como um zumbi, até que ouvi o “ai,

ai, ai, ai, tá chegando a hora” e tive que

acompanhar a multidão junto à orquestra

que tradicionalmente fechava o baile

tocando e caminhando para a rua até

esvaziar o clube e encerrar a matinê. Eles

tinham que limpar toda aquela sujeira de

confetes e serpentinas para o badalado baile

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Chagas das Almas

52

noturno dos adultos, O Baile de Máscaras,

que nos despertava a maior curiosidade.

Já na rua, bem abatido, peguei à direita

em direção ao ponto de ônibus, de repente

senti baterem no meu ombro por trás. Olhei

numa direção e não reconheci ninguém,

virei sentido oposto com tranco de fazer jus

a um baita torcicolo e, para minha surpresa,

ali estava ela. Como eu, com os olhos

espantados e a boca a falar de pronto:

― Putzzz! Onde você estava? Passei o

baile todo te procurando! ― Levava na voz

um tom hesitante entre alegria e irritação. E

eu com vibrato não menos prejudicado,

rebati: ― Meu Deus, eu também!

E quase que por instinto, demos um

abraço...

***

Page 54: CHAGAS CRÔNICAS DAS ALMAS

Chagas das Almas

53

Aquele abraço... Ah! O abraço do

primeiro amor, de nada combinado, não

contaminado, sem interferência das sujeiras

adultas. Abraço amaciado, de súplica, de

afago em pleuras impossíveis de qualquer

ausculta. Abraço inquieto e rotundo, maior

que o mundo. De quase santas volúpias,

como os das núpcias. Nunca vou me

esquecer daquele abraço, o melhor abraço,

que apesar de nem tão forte, de bem tão

simples, tão generoso aos nossos braços.

Emanante de um calor humano que, se de

ínfimos segundos, parecera de um ano. O

que restara de foliões em nossa volta,

pareciam inertes e sublimes feito estátua de

carrara. Como se reinasse a tão ingênua e

tola paz sonhada e todo o mundo fosse feito

de homens felizes, tamanha alegria e

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Chagas das Almas

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harmonia sobejavam nossas almas

aprendizes.

***

Depois rachamos um táxi e seguimos

de braços dados, entregues, eco do abraço,

fomos para casa. Até então só isso, ou

melhor, tudo isso. Depois de volta à vida,

sua rotina, de volta à praça, a escadaria da

fábrica velha, seus arredores. Que

continuou sendo cenário, porém de paixão e

amor agora selado, ensaiando e encenando

o primeiro beijo, dos mal aos bem beijados.

Das saladas mistas com marmelada, dos

casamentos na igrejinha com a ajuda dos

amigos e dos primos, por eles celebrados e

abençoados, no meio do mato lá em cima

do morro, que quase tocava o veludo azul

das tardes de outono. No meio, tantas

risadas e criancices num tempo sem

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Chagas das Almas

55

perigos, drogas e maldades, onde podíamos

ficar na rua com a anuência de nossos pais,

amáveis donos, até tarde demais. Tudo era

motivo dela largar bonecas e cabanas e eu a

bola e o bodoque, numa fase em que os

hormônios vêm a galope. Nos escondíamos

em cantos proibidos para nos amassar e

molhar em gemidos, nada daquilo, só

beijos, mãos e todos os sentidos se

descobrindo em cantos baldios, escadas

escuras e degraus levando nossos corpos

aos quarenta graus. Sim, teve o primeiro

baile à noite. Ah, ela naquele vestido num

tom de fazer lisonja ao que fiz de tecido,

aquele de outono. E o cineminha na cidade?

"E o vento levou", me lembro do filme. Do

nome só, é claro. Ah, não trocaria nada

disso por uma viagem para fora, como hoje

sonham os entrevados na TV e

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Chagas das Almas

56

computadores por um voo para ver o

Mickey. Enfim, quase um ano assim de

intenso, em estado de praça. Até que, por

fim, veio uma banalidade, o amor se

contaminou e para um lado foi-se a minha

menina e para outro o menino meu. Ela dos

meus olhos e eu dos seus. E como tudo na

infância e tudo na vida, nosso sonho se

arrefeceu.

À Sônia Fecher

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Chagas das Almas

57

Filhos das horas

Quando eu tinha cinco anos, veio a tia

rica do Rio e disse para mamãe com altivez:

― Está na hora desse menino largar a

chupeta! ― Mamãe pressionada, retirou-me

a chupeta, não me perguntou se eu queria

ou me preparou, simplesmente, sufocada,

repetia os argumentos da titia: ― Nesta

idade não se usa mais chupeta!

Quando eu tinha 15 anos, vozes

ecoavam nos corredores: ― Está na hora

deste menino cortar os cabelos e largar essa

guitarra, está na hora de estudar mais. ―

Levaram-me ao barbeiro na marra, fizeram

chantagens e barganhas com a minha

Gibson e me mudaram de colégio, que

adorava. Nunca sentaram comigo e

ponderaram, perguntaram se eu gostava

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Chagas das Almas

58

disso ou daquilo, ou o porquê disso e

daquilo. Nem insinuavam se havia algo que

me incomodava ou sobre o que eu sonhava

e pensava da vida, mesmo que fossem

tolices. Para me corrigir e direcionar

devagarzinho, ao ritmo da minha

imaturidade.

Aos 16 anos: ― Está na hora deste

menino perder a virgindade! ― disse o tio

Agnelo. Como eu via que meus colegas já

contavam vantagens ou mesmo inventavam

suas experiências sexuais, eu começava a

me achar estranho, diferente, talvez doente.

Meu tio, provavelmente combinado com

meu pai, também pressionado, já que às

vezes lhe pedia algum dinheiro emprestado,

me levou num puteiro. Não me disse como

e onde colocar isso naquilo, como começar,

o mais difícil. Mas a senhora lá sabia,

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Chagas das Almas

59

parece, e eu fiz o tal sexo, levando tempos à

frente para descobrir que o ato era uma

coisa boa.

Aos 17, outro tio falou que abriu uma

vaga de auxiliar administrativo na filial de

sua imobiliária na cidade vizinha,

perguntou ao papai se tinha algum interesse

de encaixar um dos filhos. Não sei por que

papai me escolheu, podia remanejar um

irmão, mas não, fui eu. E não sentou

comigo, perguntou se eu queria, só disse:

― Esta na hora de você começar a

trabalhar! ― Logo eu, o mais novo, mais

inexperiente, ir para um lugar diferente.

Senti medo, mas também uma sensação boa

de desafio, novidade, sobretudo, liberdade.

Lá, trabalhei, me diverti, sofri e chorei, até

que um dia conheci uma menina e pela

primeira vez me apaixonei, era da minha

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Chagas das Almas

60

idade e a engravidei, ou melhor, nos

engravidamos. As famílias em alvoroço,

uma merda daquelas. Mas ela abortou.

Fodido - voltei e me diziam: ― Isso era

hora de arrumar filho? Como você foi fazer

uma coisa dessas? ― E eu calado, pensava

confuso, encabulado: “Se soubesse não

faria. Como devo aprender, onde?” E o

mais irônico: ― Você não tem juízo?! ―

Fiquei dias largado nos cantos de casa, sem

minha chupeta, minha guitarra, meus

cabelos longos, minha amada e, isolado, só

escola, certamente. Me davam o necessário,

o de sempre: casa, comida e roupa lavada,

vez por outra, não sou ingrato, uma

acariciada. Uns me ignoraram,

decepcionaram. Papai e mamãe, às vezes,

sentiam algum remorso e vinham

complacentes com palavras vazias e um

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Chagas das Almas

61

irmão, por sorte, me compreendia e me

consolava com a maior, mais maldita e mais

incoerente sensação que tinha: a culpa.

Bagagem de chumbo que levamos nas

costas até a maturidade. Epa! Maturidade?

Tem como eu ter esse negócio?!

Engraçado... Os tios sumiram.

Parecia de castigo, como que na

geladeira, até que descobrissem o que fazer

com aquilo, ou melhor: o que está na hora

de se fazer agora com isso? Quem sabe me

colocar num avião para Bósnia e este

exploda no ar? Segui estudando e

caminhando para os 18 já tinha identidade,

digo, a carteira. Arrumei um estágio. No

segundo mês, preenchi uma nota fiscal

errada, pequeno prejuízo. O chefe me

chamou dizendo que precisava de alguém

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Chagas das Almas

62

mais preparado e fui dispensado. Como

começar preparado?

― Está na hora de você sair das abas

dos pais! Está na hora de cuidar sozinho da

própria vida! ― preciso mencionar quem

dizia?

No entanto, passei no vestibular para o

Rio e por sorte um amigo me conseguiu um

trabalho numa livraria. Me mudei. Comecei

a tocar a vida lá. Saía nas noites, boates,

inferninhos. Fodi muito e bebi muito, me

droguei a valer. De putas a uísque on the

rocks, saudades dos undergrouds da vida

vadia! Participei de passeatas, carreatas,

micaretas e ia sempre pro Maraca, fazia o

que bem queria. Fui a Londres desbravar os

pubs! Ganhei e perdi de tudo: empregos,

mulheres, dinheiro. Larguei a faculdade por

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Chagas das Almas

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negócios, decolei e aterrissei, arremeti e me

esborrachei.

Num fim de semana em casa, vinte e

tal na cara, visitando a galera, um deles

estava lá. Me disse: ― Esta na hora de você

se casar. ― Puto, retruquei: ― Como você?

Então está na hora de trair e fingir amar

uma mulher oficial, que legal! ― Meu pai

me chamou atenção, mandei todo mundo à

merda, peguei minhas coisas, bati a porta e

fui embora. Um amigo de trabalho, muito

bacana, religioso, me disse: ― Acho que

está na hora de você aceitar Cristo. ―

Cansado daquela vida, pensei com carinho.

Afinal ele emendou: ― Funcionou comigo.

― De repente o vi por inteiro: medíocre,

conformado, robotizado. Não emplaquei

naquilo.

Quase um ano depois, me acalmei e,

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Chagas das Almas

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mais centrado, de novo me apaixonei e me

casei. Tive filhos... Aí que aprendi de

verdade a perdoar meus pais, amigos, até os

tios. Pois acertei e errei muito, demais com

eles, mas sempre tentei ser diligente numa

coisa, em ver cada um como uma pessoa

única, uma personalidade, respeitando seus

tempos. Tento ser bússola em vez de

relógio a lhes impor meus horários e os da

sociedade com toda sua ansiedade.

De bons contatos, entrei para a vida

política. Vivi bons tempos de prestígio,

queridos, amigos, status e orgulho dos

melhores Rolex. Tipo assim: O lugar certo

na hora certa, saca? Quando bem sucedido

nisso, eu disse em alto e bom som: ― Então

essa vai ser minha profissão ― Estava

viciado, quando percebi, era como meu

amigo, apenas que meu cristo era o meu

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Chagas das Almas

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líder partidário. Verdade quem diz que

política é como religião, jogo e drogas, pois

que é tudo a mesma merda. Entrei de

cabeça, me filiei, balancei bandeiras, gritei

nos “cultos” e um dia logo após uma vitória

triunfal, eu, me achando parte importante

daquilo, fui traído. Como nunca me

ensinaram nada, só me informavam a hora

das coisas, também não sabia sequer roubar

e ser mau caráter para me adaptar a eles, o

que tão simplesmente era necessário, desde

que se soubesse a hora certa... Ah, ah, ah...

Mentira, que isso é vocação.

Na casa dos quarenta e tal me vi

desempregado, claro. Podem rir do que vou

dizer, porque é mesmo engraçado. Descobri

que existe também a fase do “não é mais a

hora”. - Você está velho para o mercado de

trabalho. ― me disse na lata um empresário

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Chagas das Almas

66

frio e calculista numa entrevista. Entediado,

certo dia, tive vontade de comer uma moça

mais jovem que me dava bola no caixa do

mercado. Um colega me disse: ― Não está

mais na idade disso, correr atrás de

meninas. ― como se eu quisesse fazer disso

um ofício. Agora a situação é mais

delicada e por isso as pessoas também, as

reprimendas vem como telefone sem fio,

aquela brincadeira de criança, dos

familiares, amigos... Ah! E agora dos

primos. Isso, os filhos dos tios, isso mesmo!

― Já passou da hora de depender da

esposa, dos filhos! Já passou da hora de

pedir dinheiro emprestado! ― A cada

acusação, sentença, penso nas putas e digo,

puto: “Ah! Filhos d...! Das horas!”

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Chagas das Almas

67

Enfadonha

A minha mulher emplacou num

emprego, carteira assinada, essas coisas.

Isto fez com que eu, já trabalhando em casa,

tomasse as rédeas de sua manutenção. Uma

experiência natural nestes tempos

feministas, onde se torna cada vez mais

comum os homens dividirem as tarefas

domésticas e o sustento da casa com as

mulheres. Confesso que tem sido um ensaio

excitante. Eu sempre pensei que a intuição

feminina para perceber detalhe no nosso

comportamento fosse um atributo especial

só delas. Mas não, entendi que a rotina de

um “ser” ou “estar sendo” “do lar” é pobre

de expectativas a ponto de quaisquer

banalidades não passarem despercebidas.

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Chagas das Almas

68

Assim, não me contive e devolvi a ela uma

daquelas brincadeirinhas insinuantes, que já

ouvira coisa parecida algum dia, repletas de

ironia e verdade:

“Nossa, quanta produção, quem é o

felizardo?” Ridículo... Bem...

Dedico a parte da manhã para cuidar

das coisas do lar. Começo lavando a louça.

Essa tarefa dura mais ou menos uma hora,

porque a minha louça é pré-aquecida com

água fervendo. Não, eu não quero ser

melhor do que ela não. Apenas tenho pavor

de gordura e procuro ser muito caprichoso

em todas minhas empreitadas. Depois limpo

o fogão, varro o chão e passo o pano. Outro

dia me peguei falando pras crianças:

― Cuidado com a minha cozinha!

Mas estas coisas enfadonhas eu resolvo

às quintas-feiras com o meu analista.

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Chagas das Almas

69

Descobri um prazer sem igual, aliás,

mais do que isso. Posso dizer que uma

experiência telúrica: catar feijões. Isto

mesmo, depois da faxina na cozinha, eu dei

uma geral na sala e nos quartos até retornar

à cozinha para fazer o almoço. Catar feijão

é uma terapia para a gente, sabe? Há um

processo de transe que está quase me

fazendo entrar em contato com o cosmo.

Mas tem um efeito colateral: meu processo

de seleção de pedras e caroços estragados é

muito rígido. Chego ao ponto de, às vezes,

chamar um dos meus filhos para uma

segunda opinião. Mas a minha mulher outro

dia brigou comigo porque um quilo de

feijão só estava dando para uma refeição:

― Você tem que economizar! ― Disse

ela em tom grave como via o meu pai fazer

com a minha mãe.

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Chagas das Almas

70

O problema maior tem sido adequar às

crianças. Todas na casa dos vinte. Tenho

usado o método de argumentação

comparada. É mais ou menos assim:

― Se eu não obedecesse ao meu pai,

levava uma surra! Certa vez, quando a sua

avó ficou doente, nós tivemos que assumir

todas as tarefas da casa! ― ou ainda ― Lá

em casa as coisas não eram como hoje não,

Coca-Cola todo dia? Nada, só de vez em

quando! Papai trabalhava muito, eram

muitos filhos.

Até que um dia tive que ouvir um deles

dizer:

― Caraca...!Pai, sua infância deve ter

sido uma merda, hem?

Como eu sou da geração diálogo, ou

seja, dos otários que achavam que os pais

eram muito repressores e agora vemos que

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Chagas das Almas

71

eles até pegavam leve demais, em vez de

ficar puto, ri batata baroa.

Outro dia saí para comprar vela nova

para o filtro. Sinto pela confissão patética

da minha condição de classe B com

passaporte para C que ainda abastece a casa

de água potável com aquele rudimentar

objeto de barro. Resolvi entrar num bazar

de 1,99. Não achei a peça, mas saí com

algumas coisinhas interessantíssimas. Um

descaroçador de azeitonas “três por vez”,

uma colher de pau de um metro e, para

finalizar, uns incensos de citronela, que

estavam uma bagatela.

Em seguida, fui ao mercado comprar

alguns itens, apenas para manutenção da

despensa. De repente, me vi sem os óculos

e perguntando a um rapazinho o preço da

lata de milho. Exato, estendi a lata aos seus

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Chagas das Almas

72

olhos. Depois, sem nenhuma justificativa

comentei com uma idosa dona de casa,

então colega, sobre o absurdo do aumento

do preço dos tomates.

Mas essas coisas enfadonhas eu

resolvo às quintas-feiras com meu analista.

Passaram-se três meses e a coisa

começou a virar rotina. O trabalho de casa

já me tomava também o turno da tarde.

Roupas na máquina e óleo nos móveis...

Meu amigo Douglas, editor do jornal, me

mandou um correio eletrônico:

― E aí cara, você não tem mandado

nada!

A situação financeira continuava crítica

e eu comecei a maldizer as tarefas do lar.

Um mau humor se instalou em mim. No

final do mês piorava e se misturava a um

estado de muita sensibilidade, chorava

Page 74: CHAGAS CRÔNICAS DAS ALMAS

Chagas das Almas

73

copiosamente defronte à pilha de louças.

Segundo meu analista eu estava com TPS,

ou seja, tensão-pré-salarial, algo já

consagrado e que consta inclusive na

literatura médica. Além disso, ele achava

que o excesso das demandas do lar veio a

produzir uma crise de identidade masculina

em mim e, assim, aumentando o estresse.

Mas a coisa foi ficando mais grave,

comecei a surtar. Um dia, sentado à mesa

com os feijões derramados para catar, gritei

e varejei tudo no chão. ― Ele está possuído

pelo diabo. ― disse meu vizinho, o Pastor

Besouro, vim saber depois.

Neste dia, passando a crise fui fazer os

pastéis do almoço e quando descaroçava as

azeitonas, o aparelho quebrou no segundo

grupo de um trio das melhores portuguesas.

Varejei o objeto longe, acertei o basculante

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Chagas das Almas

74

quebrando um de seus vidros. Em seguida

peguei o gato em flagrante se aproveitando

da minha distração, com a boca na carne

moída sobre a pia e que ia preparar para

fazer a porra do pastel. Peguei a colher de

pau de um metro e quebrei na traseira do

bicho, que largou o naco e saiu grunhindo.

Em alto estado de ansiedade, sentei e

respirei fundo, lembrei-me daqueles

ensinamentos dos tempos inúteis de yoga,

ou yôga...? Dane-se! Inspirar e expirar pelo

abdomem, é isso. Ah! Acendi um incenso

de citronela!

Logo, já havia preparado a carne com o

que foi possível e recheei os pastéis.

Comecei a fritura. Num certo momento me

deu remorso e fui me acertar com Fernando,

o gato. Ele me esnobou por dois dias até vir

massagear minha barriga agulhando-a à

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Chagas das Almas

75

noite na cama. Fernando foi uma

homenagem ao Gabeira cometida por

minha filha na fase da esquerda festiva, o

bicho já está com treze anos! Enfim, nesta,

queimei a primeira leva.

Na segunda, senti uma baita coceira no

olho direito. Fui ao banheiro, um mosquito

me picou, ardia a coisa. Passei álcool, ardeu

dentro dele. Voltei para cozinha, queimou a

segunda leva e óleo estava preto. Fui trocar

e percebi que esqueci este item lá no

mercado e no final das contas o prato

principal foram ovos estrelados. À noite, eu

e minha mulher conversamos sobre o dia e

a possibilidade de se contratar uma

empregada, ou ainda, sobre uma possível

internação minha em regime de urgência.

Porém, o orçamento ainda não permitia

nenhuma das duas coisas e eu abominava a

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Chagas das Almas

76

ideia de ter uma doméstica me inquirindo o

dia inteiro como aprenderam com as

serviçais das novelas das nove.

Ao cair das tardes devia ir para o

computador escrever meu artigo, mas

estava tão cansado que acabava indo para

frente da TV. Foi assim por vários dias até

que percebi que não conseguia ficar um

deles sem assistir a tal novela. E, em

seguida a morbidez: Desastres aéreos na

Discovery Chanel. De manhã me prendi ao

programa da Ana Maria Braga, que

receitas! Em contrapartida rezava pelo

passamento do louro... E do pastor que

ainda repetia os salmos 23 todas as noites!

Mas essas coisas enfadonhas eu

resolvo às quintas-feiras com meu analista.

Passados mais dois meses, a situação

começou a melhorar e conseguimos

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Chagas das Almas

77

contratar uma empregada, consenti sem

resignação. Enfim, pude me dedicar só ao

trabalho e me livrei definitivamente das

tarefas domésticas. Dona Maria não era o

ideal, mas além de ser tímida e falar muito

pouco, era muito prestimosa e limpava

meus livros. Cozinhava direitinho, embora

suas almôndegas não chegassem aos pés

das minhas. Um dia, meu amigo Douglas

me ligou e eu o convidei para almoçar. Era

uma segunda-feira, me lembro pelo tédio

dos domingos de Fausto Silva e Luís

Penido na rádio Tupi, transmitindo mais um

desastre do meu Botafogo contra o Quinze

de Piracicaba no brasileirão, serie B. Pedi

que a Dona Maria fizesse berinjelas

recheadas, que sabia que ele gostava, pois

elogiava as da minha mãe nos velhos

tempos. Em resumo: foram as piores que já

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Chagas das Almas

78

comemos na vida. Elegantíssimo com

sempre fora, meu amigo disse sobre meus

eufemismos: “Você é exigente demais.”

Depois da vergonha, Douglas foi embora e

eu fui falar com ela. À moda de uma perua

enlouquecida, com vaidade desmedida,

típica das classes opressoras, perdi as

estribeiras e proferi alto e grosseiramente

para ela:

― Caramba Dona Maria, mas que

merda! Onde diabos a senhora arranjou esta

merda de receita? Malditas berinjelas

empapadas!

Percebi que passei de “dono de casa”

ao correspondente masculino de uma

Madame do núcleo do mal das novelas que

via. Passada meia hora fui pedir desculpas,

mas em vão. Ela pediu as contas,

peremptoriamente! Isso pesou à minha

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Chagas das Almas

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consciência, como se perdesse uma turbina

precisando arremeter com urgência. Daí

passei a contar cada dia como um

presidiário, fazendo um xis no meu postite

de tela, torcendo que chegasse logo quinta-

feira!

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Chagas das Almas

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Sombra da Carne

“A sombra do teu corpo é o corpo da

tua alma.” (Oscar Wilde)

Minha fiel companheira, onde se

encontra quando preciso de ti em estado de

maior escuridão como agora? Onde andas

sombra da carne?

Momento em que a luz arde em meus

olhos na saída do cárcere. O sol nasce

redondo de novo e ao contrário dos

canalhas injustiçados não vejo bondoso seu

esplendor de aurora.

Ah...! Quanta ilusão! Não saímos por

bom comportamento, foi apenas uma

transferência para outra ilha suja, apenas

isso. O amor não passa de um grilhão

maldito.

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Chagas das Almas

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Por que não te sinto então comigo?

Éramos cúmplices nos deleites e delitos, e

na hora do trabalho forçado, tu foges da

plantação dos cogumelos contaminados.

Tentei te segurar quando caindo

ajoelhado. Escorregadia de lama imoral.

Driblou-me habilmente no piso árido

diagonal.

Vejo-me aqui andando nas horas de

pátio a te caçar para agasalhar-me como

sempre, jogado como um regurgitado acido-

lácteo ainda quente. Tentando decolar com

uma turbina incandescente.

Espera! Vi-te branca...! Como assim?

Vi nuanças de faces e gestos, e listas

brancas de tuas vetes! Quem fala sou eu?!

Deus! Vejo-me agora, uma mancha escura

no poço da ala dos dementes!

Page 83: CHAGAS CRÔNICAS DAS ALMAS

Chagas das Almas

82

Não sou eu alma em sombra quem

partiu, a mente... Ei corpo da carne!

Fastuosa, com todo este aparato cultural de

segurança máxima, como fugiu passando as

grades eletrificadas de fios de seda da alta

tensão e falsidade? Nem eu conseguiria,

entrementes!

Como me deixou aqui sozinha, pedaço

de mancha rota e escura sem uma réstia de

claridade ao bem de minha tênue e sutil

identidade? Sem poder sequer me

distinguir... A escuridão geral me engoliu,

às vezes, acho que a gente nunca se

entendeu, se sentiu.

Está bem, foragido de mim, isto

refletirá opaco em ti muito e, porém, corpo

de carne... Perdidos, somos dois lados

covardes, presas da mesma caça,

continuamos alvos fáceis. Nosso coração

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Chagas das Almas

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que apanha e dói parará logo. A ti espera

uma gaveta qualquer onde descansará inerte

sua carcaça e poderá sempre dormir um

pouquinho até mais tarde... Quanto a mim,

caberá dar continuidade à agonia da vigília

com o buraco-negro a querer me sugar

como tu, na maldição da eternidade...

Page 85: CHAGAS CRÔNICAS DAS ALMAS

Chagas das Almas

84

Janeiro

Saímos do mês da confraternização e

da virada com requintes pirotécnicos

decretados pelos homens e entramos no

primeiro dia do ano com muita preguiça.

Espíritos placebos se curando em vão.

Dormimos, levantamos, beliscamos das

sobras do réveillon, caímos no sofá,

soltamos gases nobres e arrotamos muito,

tudo cheirando a quebra nozes, assistimos

qualquer besteira na TV, cochilamos de

novo e quando vimos já estamos no dia 02,

nos arrumando com pressa para trabalhar,

entrando na rotina. Pegamo-nos xingando o

motoboy no trânsito a caminho do

escritório. Pode até ser a mesma toupeira

que desejamos feliz natal e um próspero

ano novo quando foi entregar o pedido da

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Chagas das Almas

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farmácia, o “kit ressaca” num dos porres da

véspera da véspera.

Nossos filhos descansam da escola, da

faculdade e se entregam mais aos jogos e

redes sociais na gosma da vida sedentária.

Algumas pessoas tiram férias da labuta, do

chefe que rima e, se guardaram a féria para

isso, fazem viagens aos paraísos. Edens

fiscais ou tropicais. Na primeira ou segunda

classe de um avião inseguro, tanto faz. Dos

simples anseios menores aos grandes

sonhos, os maiores, quando não, as viagens

na maionese... Por vezes estragada,

acamados num hospital com uma

intoxicação anunciada por uma puta cólica

estomacal. Há de tudo, para todos os

ponderáveis e imponderáveis desígnios da

existência mundana.

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Chagas das Almas

86

Começamos a construir e transferir os

planos do ano velho para o que virá. As

promessas feitas à beira mar, degustando

um manjar ou adorando Iemanjá. Quiçá! É

um mês morno. Faz sol escaldante aqui e

chove a rodo acolá. É o terror dos

bombeiros e ambulâncias. Mês de

transtorno e de esmero é também este tal de

janeiro!

Ao mesmo tempo são 31 dias de

superação, temos que pagar o pato, a ceia e

os excessos que as vitrines de ontem nos

aliciaram. Também há uma trégua

pacificadora. Os jornais não trazem muitas

novidades, os algozes hibernam para

conspirar sobre os golpes do ano bom. Nos

corruptos é como se visse estampado na

testa um "fechado para balanço" sobre o

exercício anterior da putaria. Parece que até

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Chagas das Almas

87

os assaltantes descansam neste tempo de

ironia. E os artistas? Nada há de novo,

melhor nos contentarmos com nossos

dinossauros atemporais, prediletos em

nosso mp3 ou descansar os sentidos,

melhor, ou talvez.

Janeiro pode ser definido como um

mês acanhado, pois que vive no liame de

seu ascendente e descendente, de farturas e

faltas, dependendo da classe a que se está

inserido e da cotação do dólar para os bem

cotados e nascidos. O que nada acrescenta

aos que vivem no black, na marginalidade

periférica, os assalariados e suas senhoras,

cuja moeda é do lar, louça e roupa para

lavar.

O subsequente é de alegrias e pândegas

que se anuncia a todo vapor na euforia do

carnaval. Este mais democrático na divisão

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Chagas das Almas

88

do estado de espírito festivo e alto astral,

algum consolo, menos mal. Enfim, janeiro é

como um irmão do meio, que vive à sobra

do dezembro e do fevereiro. Mas o

réveillon deveria ser comemorado mesmo é

no último dia das águas de março, em meio

a seu mormaço. Aí, passadas as vinte e

quatro horas da mentira, que jocosamente

nos lembram de que tudo fora pura ilusão,

realmente começa o ano, a vida à vera. E o

princípio das frustrações, repletas de

ansiedade e solidão, nascentes junto à

plenitude e beleza da prima dela.

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Chagas das Almas

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À beira mar

Sou otimista. Com boa, muito boa

vontade mesmo, ainda me restam dez ou

quinze anos de vida. Uma adolescência...

Mas que voa. Bate as azas no destino. Que

bom, ele arruma tudo e ainda me promete a

eternidade. Não importa que ela exista de

fato, apenas que eu acredite agora.

Agora é o que assusta. Exato, o agora.

O que passa, tenho que jogar para trás,

jogar fora.

Fora bom quase tudo, mas não vivi

intensamente, fugi, ponho na conta do fado

e da sina e pago num além, onde pegarei

um voo cego para onde nem sei, e o

culpado sempre será o piloto, claro, o

mordomo da pinguela aérea... neste caso,

eu... Quanta falsidade.

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Chagas das Almas

90

Falsa idade não posso mais esconder,

algumas rugas me entregam, mas se há

algum viço ainda, rogo que não me digam.

Mendigam amor, os muitos mal quitados,

não eu, contento-me em fingir que tudo deu

certo, como planejado.

Planos errados talvez, mas vivo das

sobras de felicidade dos meus. Até os

ajudo, porque dá menos trabalho e não

afronta minha coragem.

Coro a minha imagem se o novo e um

projeto de felicidade me invadem, hesito,

pois assim me foi ensinado, por isso nunca

amei plenamente, tampouco sei, de fato,

quem me amou de verdade.

Verdes imagens de imaturidade doem

em mim, porque realmente quase tudo é

assim de fato... Vacilo muito. Palavras são

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perigosas, podem ter farpas, principalmente

as ditas com ternura e amabilidade.

Habilidades de amar, que me orgulho

muito, mas não suporto elogios, se não me

puno pelos meus pensamentos que só me

fazem alimentar culpa. Eu nasci para ter

donos e o meu coração em tudo está

repleto, doo o amor e doo a dor.

Doador universal, mas também de

renúncias e solidão, sinto falta de mim,

contudo, insisto. Se eleito, renuncio a tudo

que me lembra de quem sou e em que

idade. A opinião alheia e a opressão dos

meus profetas são como administrar sem

verve uma monumental cidadela.

Cidade bela do interior, de praia, onde

me delicio e sou feliz com a brisa do mar e

o sol ameno que reflete em minha face,

mesmo sem saber qual delas. Até que venha

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a grande onda negra para me levar, me

pegando distraído e à beira mar.

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Vastidão

Maior. Tudo cada vez maior. Tamanho

em metros quadrados e polegadas dá

sensação de poder. Principalmente porque

se necessita de mais empregados para

mandarmos e humilharmos na manutenção

de nossos caprichos e sujeiras, isso é

gratificante. Se bem que é legal ser do tipo

que diz que lhes tratamos como se fossem

iguais. Melhor: “como se fossem da

família”. Dever de casa sobre hipocrisia dos

mais bem nascidos.

Eficientes intentos para distanciarmo-

nos dos desafetos e, sem que nos demos

conta, também dos afetos, pensem comigo:

Cada um dentro de casa com seu

computador, seu telefone e sua TV com seu

combo no tão sonhado “quarto só para

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mim”, ali onde levamos a xícara ou prato e

comemos de olhos vidrados nas atividades

virtuais e os sabores ficam todos iguais. É

pratico e acaba com aquelas brigas que até

me lembro de como deliciosas antigamente.

Pelo canal da TV, futebol e novela com os

irmãos! Por fim, nos colocamos vizinhos

uns dos outros dentro do próprio lar.

Tem aquele vaivém agonizante de

desejo por bens tecnológicos a ocupar os

espaços vazios da casa (da casa?). Sofremos

com a expectativa de comprar o aparelho

último tipo, o High Tech, e entramos em

histeria interior até adquirirmos. Aí

sentimos o prazer de estar construindo um

bem imóvel de primeiro mundo, quanto

conforto. Mas logo o novo modelo já foi

lançado no mercado, ele é mais atraente,

tem um recurso que nos dará menos

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Chagas das Almas

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trabalho e empenho, da mais tempo para

muitos idiotas, incluindo se aqueles que

querem aumentar o pênis.

A TV insiste em nos perseguir,

exibindo seu status e na rua há cartazes e

pôsteres com fotos nas lojas descrevendo

seus benefícios sensacionais. Quando

chegamos ao trabalho, um colega fala sobre

ela com entusiasmo, pois já comprou um

protótipo antes de você. Irrita isso, instiga

mais para devolver o esnobismo. Enfim,

ele, um produto, ou ela, uma coisa, sussurra

em seus ouvidos e brilha nos seus olhos a

toda hora, dentro e fora de casa. Aquelas

parafernálias que adquirimos antes de

ontem, nas semanas passadas, já não dão o

mesmo prazer, o novo sempre vem e os

queremos porque somos pra frente, tipo os

dos lá de fora. Contudo, esta girândola arde

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em qualquer língua, todos os idiomas. Café

quente, sem aroma.

Obras na casa, casa na praia... Também

é necessário manter isso sempre em

andamento, bastante poeira o ano inteiro. É

mais prático do que uma empreitada na

cachola. Ah! Investir em filiais e franquias!

Aumenta o lucro, embora as despesas

também, mas é mais trabalho, mais horas

para o fim e menos para o meio, ou seja, os

filhos ou o companheiro que engorda a

olhos vistos! Não passamos de criadores de

porcos.

Ainda assim sobra tempo para o lazer,

não há dúvida. Disney uma vez por ano

com as crianças e por elas. Não, por todos

nós, aquelas comprinhas... Convenhamos...

A família de classe media desabando como

um aeroplano da TAM.

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Chagas das Almas

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Mas somos diligentes, nunca nos

esquecemos da vovó com saudades e

sempre dizemos: ― Um dia desses vou

visitá-la, aquele bolo de cenoura...! Embora,

é fato, algumas vezes reclamamos alto: ―

“Porque vovó Leda cisma em continuar

morando no interior...? Teimosa!” ―

Mesmo sendo bem mais perto que Miami,

120 km de carro. Yes, nossa charanga é

importada, comprada em prestações que

sabemos quando acaba, ao contrário de nós,

nossa existência que pode ir antes delas.

Quando sentimos que estamos naquela

fase boa, a casa com a churrasqueira e

sauna com as obras encerradas, os negócios

indo de vento em popa e aquela TV

citoplasmática de 180 polegadas, o “enfim,

comprei”! Juntamos a família e os amigos

para a inauguração. Um terço não vai

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Chagas das Almas

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porque tem tudo que temos; outro terço vai

porque não tem e temos. Outros não

aparecem se somos do tipo que ficamos

babando em nossas conquistas, fotos de

Miami, além de morarmos longe pra cacete.

Enquanto isso, a galera jovem fica

trancada em seus quartos jogando

Playstation. Alguém vai levar picanha e

coração lá para eles, que, ironicamente,

conhecem até as vísceras, embora nunca

tenham visto uma galinha na vida se não

que à moda Touch Screem.

Naquela cerveja saideira, uma série que

se insere numa quantidade que já perdemos

a conta e o sabor, quando sobraram, se

muito, umas oito pessoas ouvindo às alturas

nosso novo CD dos sambas de enredo que

as escolas já compuseram para fevereiro, o

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telefone toca. É a vizinha da vovó

anunciando que ela morreu.

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Como dizer não

Ah! Santo Deus! Como dizer não?!

Eles são um casal de amigos tão amáveis.

Mas chega. Não suporto mais as pessoas

que vivem das minhas gentilezas, sugando

da minha alma para desfilarem as suas

tediosas e cacetes. Não, nesta nós não

vamos. Não precisa de muito, uma resposta

como uma puta dor de cabeça está bem ao

nível do convite deles para irmos tomar um

vinhozinho e ver suas fotografias da última

viagem à Paris. Junto ao convite ainda vem

àquela recomendação: ― Olha, não precisa

trazer nada, não. ― Protocolo que faz

parecer querer se afirmar: "somos melhor

de vida que vocês". Há de chegar o dia em

que responderei: ― Nem travesseiros? ― A

porra da hesitação, do adiamento. Respondi

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Chagas das Almas

101

com uma mentira dizendo que ia consultar a

Barbara, pois achava que ela tinha

comentado alguma coisa sobre outro

compromisso amanhã; quer dizer, abri mais

o leque para inventarmos uma desculpa e

disse que ela tinha ido ao mercado, com a

palma da mão em sua boca, pois ela estava

ao meu lado, e que então ligaríamos mais

tarde. Sim, o “ligaríamos” era já uma

informação subjetiva de que estava jogando

a roubada para a mulher, óbvio. Ela sempre

mais complacente que eu: ―Vamos sim, é

tão raramente e passa rápido. ―

argumentou. Não, discordei, sou pela teoria

da relatividade, citei Einstein: ― “Três

segundos sentados numa boca acesa do

fogão parece durar muito mais que um

delicioso beijo de meia hora numa

rapariga.” Não, não passará rápido, parecerá

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uma eternidade. Entrarei com o resto que

sobrou de minha jovialidade e sairei com

incontinência urinária, dores reumáticas e

demonstrando sinais de esclerose. Fecharei

com um mico ao sair: ― Onde diabos

colocaram minha bengala? ― Bem, acabei

percebendo que antes da árdua incumbência

de ligarmos para eles para dar uma

desculpa, teria que convencer a mulher.

Usando minha humilde habilidade de

cronista e junto pegando emprestada uma

veia perdida como ator, como que a

hipnotizando, disse: ― Imagine querida?

Nós vamos chegar lá, primeiro

aquele poodle asqueroso. Amanhã promete

chuva, a primeira coisa que vamos fazer é ir

ao banheiro limpar o barro das calças feito

pelas patas imundas daquele animal

mimado. Eles já têm até as toalhinhas

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Chagas das Almas

103

prontas, bordadas com o nome dele:

Michel. Só para isso. Viado! Depois o

Naldão abre o vinho, pois aquelas pastinhas

malditas já estarão expostas. Claro, bem

previsível: salaminho, tremoços, ovos de

codorna, azeitonas e molho rosê. Ah!... E

sacanagem, é claro! Não, quem dera! É

aquela porra daqueles palitinhos com

mozzarella, salsicha e azeitona. No final,

quando o trigésimo álbum vier a ser

mostrado, chega o gorgonzola e já estamos

empapuçados, estratégia mesquinha. O

Naldão desagradável, não segura os bocejos

escancarados como se quisesse mandar a

gente embora. Ou esse é o melhor lado

dele? Verdade, quem adora essa porra

mesmo é a Márcia. É sempre assim. Tem

todo um ritual. Primeiro a gente fala de

futebol, eu e Naldão. Ele é Flamengo

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104

doente, sem redundância. É, dizem que tem

coisas que só acontecem com o botafogo, e

com botafoguenses também. Depois ele

vem elogiar o Lula, que nos tempos da

escola chamava de analfabeto e vagabundo.

E vocês na cozinha. Enquanto ela disserta a

rotina de seus filhos com orgulho e elogios,

você tenta falar algo sobre os nossos e ela

interrompe. Porra, cá entre nós querida:

Eles são bonzinhos à beça, mas são chatos

pra caralho! O máximo que você vai

conseguir dizer é “tem certeza que não quer

uma ajuda com a louça?” E sabe que ela vai

responder? “Que nada, amanhã a

empregada vem e lava tudo boba!” Numa

mistura de gentileza e ostentação.

Começa as fotos, primeiro álbum. A

descrição é minuciosa, pois em Paris é a

primeira vez que eles foram. Ah! Um caso

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Chagas das Almas

105

que um começa a contar sobre um motorista

de táxi mal educado, o outro interrompe e

corrige:

― Não “benhê”, isso foi indo

para Sainte-Chapelle.

― Tenho certeza que não foi

"moreca". Foi indo para Notre-Dame.

A gente ali, esperando eles chegarem a

conclusão sobre um fato que não nos

interessa bosta nenhuma. Dá vontade de

dizer nas entrelinhas: ― Tudo bem gente,

quanto tempo para chegar daí à Torre

Eiffel? ― Sim querida, só você entenderia

o duplo sentido. No álbum, não, em Paris.

Pois que claro, sabemos que a Torre e o

Louvre terão um álbum exclusivo cada um.

Mas antes vem o Palácio de Versalhes,

óbvio, e sei lá por que, a narrativa deles

sobre as fotos segue o estilo barroco do

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Chagas das Almas

106

monumento. Narrarão em rococó! Disse

depois a Barbara que ainda não estávamos

juntos quando fui, faz uns sete anos, numa

chatice desta, era a primeira viagem para

Disney. Mais fácil, pois podia jocosamente

pedir para pular o Pateta e o Mickey, já que

são personalidades consagradas. Essa

merda é a mesma coisa que, se por obra do

acaso, assim como sortudos acertam a

mega-sena, seis fatores me levassem a

comer a Shakira. Porra! Imagine eu

chamando a turma do pôquer para contar:

― Gente! Pegar naquelas ancas... Ah...! E a

vagina dela... é perfeitinha, só falta falar! ―

Cacete, eles podem se orgulhar, achar

interessante, mas nunca vão saber

exatamente o que é comer a Shakira,

caralho! Barbara pede calma. Ok. Vejo-a

desanimada, mas ainda há um resto de

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Chagas das Almas

107

humanidade nela que me diz: ― Tem

certeza que não devemos ir?

Dou meu último suspiro, penso e tento

meu argumento fatal.

― Sabe como termina? Ao fim do

último álbum, sempre sobram algumas

páginas que ficam em branco, certo? Eles

completam com fotos de família. É uma

mistura das sobras dos eventos dos álbuns

completos, então misturam dez do

aniversário de um ano do Marquinhos,

quinze do natal e aqueles infames dos

encontros de casais. Dá saudades de Paris!

Você vai ter que ver pessoas feias, que

nunca viu na vida e ainda sendo informada:

― Essa aqui ó, é a Carmem, enteada do

meu sobrinho por parte do Naldinho. Olha a

tia Roseli! Lembra dela, não? Tadinha ela

agora está com diabetes e perdeu o pé. ―

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Chagas das Almas

108

Foda-se a tia Roseli! Moooorram todos ali.

Podiam estar todos no avião para Paris e a

nave cair.

Deu certo! Mas acho que exagerei.

Barbara lacrimejando pediu: ― Pare! Eu

não posso mais, por favor, pare! ―

Revelando também certo talento na

dramaturgia. Depois confabulamos, fizemos

uma espécie de brainstorming,

esfregávamos as mãos, ríamos, nos

arrepiávamos. Parecia haver um prazer

mórbido e malicioso em criar uma

desculpa, até que... Vamos ligar!

― Oi Márcia...?! Pooooxa, chaaaato,

chato mesmo, mas desculpe, se vocês

tivessem ligado antes. Pois é, combinamos

em levar as crianças ao cinema e depois

comermos algo. Sabe como são os filhos

né... Que? Imagina se eles aceitam ir junto!

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Chagas das Almas

109

“Programa careta”... Ah! Os seus meninos

também...? É tudo igual, né? E a gente

ainda tem que assistir ao filme que eles

escolherem... “Duro de matar 5”, é mole?

Duro de assistir 5, isso mesmo... Ah! Ah!

Ah...! '' Claro, McDonald’s, aquelas

porcarias. Nem fala... um vinhozinho neste

frio... Só de pensar me dá água na boca!

Então, e as fotos! Não, nunca, nem Paris

nem nada, só região dos lagos... (grgr)...

Mas vamos marcar depois tá... Olha, a vó

vem passar um mês aqui em casa sabe, a

dona Graziela, vó do Thêmis. O clima da

serra neste inverno castiga ela, tadinha...

Mas no mês que vem... pô, já está certo

Márcia. Manda um abraço pro Naldão.

Olha, o Thêmis também tá aqui mandando

um abração (não é verdade, mas é de praxe,

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Chagas das Almas

110

não só nossa, dos leitores também, vem

não!). ― Tchau!

Sim, a Barbara ligou né. O plano foi

perfeito. O exercício da mentira e da

hipocrisia fora executado com primazia. E

ainda ganhamos um mês com a vovó, sim, a

velha e boa vovó que tanto matei no tempo

da escola e do trabalho. Sempre a nos

servir. Até já falecida. Ressuscitamos e

matamos. Que bom que eles não sabiam de

tal finitude ocorrida há quase um ano. Que

Deus a tenha.

A sensação de alívio só veio mesmo no

dia seguinte. Levantei radiante naquele

sábado. Fui à cozinha e Barbara estava

lavando a louça (grrr) e os meninos

tomando café papeando. De repente, me

deu na telha: ― Galera, que tal sairmos

hoje para assistir o novo Duro de Matar 5 e

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Chagas das Almas

111

depois comer no Mac?! Eles se

entreolharam. E depois para mim, como se

eu tivesse dito alguma barbaridade, (sem

trocadilhos com a mulher), tipo: ― Onde

diabos colocaram minha bengala?

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Chagas das Almas

112

Psico bélica

Meu testamento será covardia e

fracasso, só farei jus a uma parede fria e

sem epitáfio. Mas não quero como pena a

eternidade. Quem tanto deseja e sente-se

dono de tudo merece serenidade, pois que

cumpriu apenas o que lhes deram de

identidade, angústia. Que eles deem então a

não finitude aos hipócritas. Quão

agonizante isso! Será a morte mais perigosa

que a existência mórbida que não possamos

ter paz em vez de viver buscando luz na

obscuridade? Não quero existir bastante,

pois que isso é o que basta. Prefiro ser aí

um bastardo... Portanto, não julgo um

suicida, o mais passional dos criminosos,

que faz à vista o que eu e muitos fazemos a

prazo com a vida. Todos sentindo que se

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Chagas das Almas

113

expirou o prazo de validade das boas

aventuranças. Que não vale a idade, se vai

idade, moça idade para fazer o certo e

consagrado, ou seja, reeducação alimentar,

deixar de fumar, se embriagar e ser

comedido, além do tedioso exercício físico,

não, nada compensa. Só o crime. Todo

mundo no fim está fodido. Se não vale a

pena (dos outros) é porque não se é tão feliz

assim quanto se ostenta. Vai chegar o dia

em que a expectativa de vida do homem

será a meia era! Aos 50 e pouco, já era!

Oxalá! Imaginemos quão perfeito se

ajustaria o mundo se a morte se desse aos

por aí. Como a média de hoje, os cidadãos

de 70 passasse a longevos, morrendo

lúcidos e com maior dignidade. Um

Nieymeier menino. Poderia enumerar as

vantagens que são muitas, mas deixo a seu

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Chagas das Almas

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cargo esta criatividade... Chega disso!

Quem viveu covardemente, há de morrer

covardemente. Imprudência? Não. Os

obituários estão cheios de pessoas

prudentes que se intoxicavam de saúde ou

preferiam os automóveis, ultraleves

estraçalhados no chão. Eu no máximo, sou

meio “deprê” com a vida. Mas rio e me

divirto muito. Somadas as partes e divididas

pelo mesmo valor, meu produto é zero,

apenas torpor, mas este repleto de amor.

Envelhecer é uma sina, apenas serve para

aprender um pouco a morrer. Eu não passo

de um ego, mais impotente que um cego, já

que esse consegue até ver a fisionomia de

seus filhos crescendo. Com o tato,

magnífico intento! Eu não. Encho minha

cabeça com palavras e desperdiço olhares,

todos os sentidos... Tidos... Como sãos,

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Chagas das Almas

115

são? Muitos, sem sequer acompanhar o

crescimento dos filhos com todos os

sentidos. A labuta é vossa escravidão e se

dizem “olho vivo” por ganharem bastante

dinheiro que no fim é para dar o melhor ao

rebento e morrer empilhado de renúncias.

Quem dá mais? O cego de poucas posses ou

eles, ditos em boas condições de saúde,

“homens de visão” e suas donas com

casacos de visom? Todos remelentos pelas

manhãs, pois não. Embora os meus

pensamentos com minha voz e a voz dos

outros que me lembro, em qualquer língua,

sejam mudos, telepáticos, porque tanto

barulho? Da vontade de auto induzir-me ao

coma, esse processo mágico do corpo para

se entrar em off-line. Isto me parece um

déjà vu, que pra mim está mais para “à être

vu”. Já vi também, sem prévio aviso, a luz

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116

de Einstein curvar-se a Deus com elegância

e reverência, há poesia na ciência, sua

magnificência. Talvez esse seja seu único

propósito e ele se esqueceu da arte

universal, só isso. Como as cordas no

átomo que vibram em harmonia como a lira

entoando belas melodias em milagres de

vida quântica, a física romântica. Todo dia

24 de novembro, faço meu ritual beato,

presto um minuto de silencio às Sete

Quedas, brutalmente extintas por

assassinato. No fim, em dez mil e tal,

estaremos esquecidos, o foco será a caça

dos rastros do Homo digital. Portanto quero

viver minha boemia, liberdade pessoal,

como quem vive uma anarquia, um cio

espiritual, repleto de romance sensual,

como os vampiros, nos undergrounds das

noites num pub ou hospital. Melhor do que

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Chagas das Almas

117

a sobriedade da melancolia, onde fico

tentando escrever explicações com pena de

lágrimas em livros sem páginas e capa dura

de edições ordinárias. Cansam-me o

melindre alheio, pessoas feitas de cristal

que se comportam como bibelôs e temos

que falar outra língua, dialeto, repleto de

eufemismos e cuidados, por fim mudando

quase o sentido da prosódia, linguagem de

criança, como um contador de histórias.

Dispenso o glamour, a futilidade no auge da

mais fiel sedução. Outra dependência, como

a devoção. Não crio mais expectativas. A

expectativa é uma boa atriz que rouba a

cena do fato. Eu queria ser competente em

motivar a ação, contemplar a ação e saber

criar atividades. Mas nasci sem dom. Estou

cansado de euforia, como quem vive de

estabilizantes aromatizados artificialmente.

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Chagas das Almas

118

Minha mente mente, somente. Mas tenho

sempre à mão um caqui verde para dar

àqueles que me acusam de não ter sido

maduro na jovialidade. Sou um grão de

areia vigente... E assim vejo e sempre vi

gente, muita gente. Nesta magna e soberba

terra, filha órfã de pais celestiais, menina

dos olhos das razões universais. Ouso atirar

a pedra que ninguém quis atirar... Se já tiver

morrido, que seja um meteoro na vastidão

do infinito. Minha sina é se ferrar?

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Chagas das Almas

119

Alívio ou humilhação?

Fomos às compras naquele sábado.

Qualquer sábado ora. O que diriam nossos

primatas ancestrais ao ver tão triste ritual

para busca de alimento. Um lugar

superlotado de seres da mesma espécie se

esbarrando uns nos outros em meio à

poluição sonora dos caras que anunciam ou

denunciam aquilo que você pode comprar

com aquela voz sensacional, sensual, em

tom pra lá de original. E carrinhos

congestionando o tráfego dos amplos

corredores... da morte! Ainda tem sempre

aquele fedelho que faz “vrum”, rápido

como um maldito Concorde, até acertar o

ferro inferior dianteiro do seu veículo “de

brinquedo” no seu calcanhar. Se voasse

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Chagas das Almas

120

deceparia cabeças em acidentes aéreos

surreais. Como eu queria beliscar um deles.

Começamos sempre pela seção

de hortifrutis. É a tática de começar pela

pior parte, se é que, a exemplo de

programação de TV local, há alguma

melhor parte.

Resolvi ensacar uma dúzia de laranjas

Bahia, que apesar do preço pareciam

suculentas. Uma senhora ao lado, como

parte do rito completo dos humildes, me

pede para ler o preço da banana na tabuleta.

Ela ouve, me agradece e não leva.

Provavelmente sente-se saudosa como eu,

dos bons tempos em que banana era

sinônimo de coisa barata.

Depois das frutas e legumes, fomos ao

setor de carnes. Aquele, cuja fila não nos

distingue muito daquelas que os seus

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Chagas das Almas

121

“fornecedores” entram para ser degolado

nos matadouros, com lágrimas que

antecipam o golpe fatal, no nosso caso, o

preço. Tomamos uma decisão sofrida,

daquelas que podem render várias consultas

no analista, tamanha culpa que produzem:

pedimos uma peça de filé mignon.

Enquanto isto, ao meu lado, uma

mocinha pedia dois bifes de chã, um

coração de boi para o cachorro –

provavelmente o seu marido – e perguntou

o preço do bucho ao atendente simpático do

açougue. Virou-se com a bolsa como quem

esconde a humilhação nela, depois voltou

para o atendente e disse: ― Não vou levar o

bucho não, é só isto mesmo. ― Fiquei

chocado ao confrontar minha visão da

situação do país promovida em

propagandas institucionais no horário nobre

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Chagas das Almas

122

da TV: Escolas bem acabadas com crianças

de boa dentição, incluindo negros, além de

índices de crescimento animadores que

encerram com slogans de entusiasmar o

cidadão. Parece que a gente está na Suíça.

Então, vai ver aquela mulher não passa de

uma incompetente ou irresponsável, não é

mesmo?

Não podíamos sair sem levar algumas

coisas para as crianças. Assim, terminamos

na seção de laticínios. Enquanto pegava

duas bandejas de iogurte, um senhor bem ao

meu lado, paletó surrado e chapéu não

menos, tipicamente aspecto de aposentado

do INSS, que carrega documentos em saco

plástico, pegava e devolvia, analisando

preços, vários produtos na seção. Bem, hoje

os supermercados têm uma política

Apartheid nas arrumações das prateleiras:

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Chagas das Almas

123

De um lado as seções dos produtos nobres,

estes que a mesma publicidade da noite na

TV vende com famílias cheirosas, e do

outro, os produtos baratos, com corante

vermelho sangue, cheiro de cachorro

molhado e uma série de substâncias que

nunca aparecerão em nossas autópsias.

Mas o mais desagradável foi ver um

menininho na seção de chocolates enquanto

eu pegava três caixas de bombons. Ele

demonstrava as dores de suas renúncias

com um biquinho de choro preso na

garganta e a cabeça baixa, puxando com a

pontinha dos dedos a manga da blusa da

mãe discretamente, enquanto na outra

segurava uma réplica de brinquedo

ordinária de aviãozinho comercial.

Certamente aprendera que só assim podia se

manifestar, ao contrário dos berros e

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Chagas das Almas

124

escândalos dos riquinhos, apesar de saber

que, no máximo, ganharia um Batom

Garoto nas conveniências de última hora

dos caixas, feitas para... Para os donos dos

supermercados ganharem mais em cima da

gente, povo que adora quinquilharias, é

claro.

Demos sorte naquela hora que talvez

seja a pior das compras, ou seja, a fila para

pagar, ela nos dá tempo para lembrar o que

faltou. Devolver o que culpou, se

arrepender e refletir que aquele carrinho só

durará pouco mais de uma semana frente a

minha voracidade e a das crianças. E ainda

pagamos taxa de esgoto, ca-ce-te!

Já terminando a vítima da frente, vejo

atrás de mim, e aos lados: A mulher

cegueta, a mocinha envergonhada, o senhor

aposentado e o menininho relegado. De

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Chagas das Almas

125

repente começou a dar uma sensação

desconfortável ao perceber meu carrinho

cheio de guloseimas, supérfluos. Sentia

como se eles me olhassem a pensar: “Você

é o culpado por tudo.” Suava, rezava para a

caixa contabilizar o mais rápido possível

nossos itens. Para piorar, ainda tive que

ouvir a mocinha do caixa falando para outra

colega ao lado em alto e bom tom: ― Olha

só fulana, isto aqui é que é champignon ó,

que te falei outro dia, nunca provei, tenho a

maior vontade, mas olha o preço.

Até que, enfim, a minha mulher

entrega para ela o cartão para pagar aquela

quantia que achava que todos em volta

esticavam o pescoço para ver, com mórbida

curiosidade como faz o povão quando, por

exemplo, cai um carro dentro do rio.

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126

De repente, eu e meus fantasmas fomos

pegos de surpresa com a minha mulher me

puxando abruptamente, mandando a gente

sair rápido dali. Largamos tudo e, lá fora

com ela me empurrando táxi adentro,

perguntei atônito:

― O que é que aconteceu, mulher? ―

No que ela arrematou: ― Nosso cartão foi

recusado...

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Chagas das Almas

127

Hello Horooy

Se verter-me às lembranças dos fatos

bem assinalados, sobra réstia de sucesso na

obscuridade do mundo das sombras. O real

não é palpável, posto que história escrita

por escribas endinheirados só discuta a

parte que nos cabe de liberdade, que para

alma está para vida como o mundo está para

o estreito de Gibraltar. Sentados nas

confortáveis poltronas de suas

esquizofrenias não diagnosticadas, bebem

muito uísque doze anos e fumam charutos

cubanos, quanta ironia, discutem em

gargalhadas as cifras e saldos de extratos

milionários e o que pensam em ilusão

apenas de sobras mais gigantes sobre os

legados de seus nomes. Depois vão vomitar

o que nós também vamos limpar. Por isso

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Chagas das Almas

128

eu ouço agora Alice Cooper, sem entender a

língua deles, pouco importa, mas destilando

da melodia a rebeldia que brota nas

entranhas de seus olhos pintados em

maquiagem preta, junto aos solos metálicos

rebeldes com causa. Outro tipo de sombra,

contra os males do mundo, as vistas das

cavernas, denunciando que todos nós

estamos presos nas correntes dela, os

contempladores, apenas com a promessa da

vida eterna, tolos é o que somos. Acendo o

cigarro e ouço mais músicas de roque

pauleira e progressivas. Junto, vêm da

janela, sons de bombas e torpedos tipo de

guerra, ecoadas do morro perto e de destino

incerto. O amor é isso em sua versão

cinzenta, paixão por matar. Não choro mais

por estas coisas e digo sem cerimônia que

me lixo para cada ser humano anônimo. Eu

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quero nomes! Se não há, não há crime, a

exemplo dos corpos para a justiça. Esta

impessoalidade é insuportável, logo, não

desperdiçarei mais lágrimas para números

de “cepeéfes”. Isso não é frieza, é cansaço.

Sei que o mal não se abate só ao lado, mas

o egoísmo está se impregnando em mim, é

a “alma do negócio”, não estou isento por

ler muito, sou o mesmo nefasto, eu também

construo o mundo. Tramas familiares

entoam a dor dele também. Não, nada é tão

ruim só da porta para fora, o mesmo ocorre

na casa de hoje e de outrora, quando os pais

me acordavam com canções em francês.

Cada um é sobra de barro ou argila

facilmente moldado para servir. Servil.

Não! Ser vil, cada qual é em verdade, da

velhice à mocidade. Ingênuos, um dia

achamos que nos juntamos e entre canções

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de Chico e Caetano mudaremos o mundo.

Depois passa o tempo e somos também

parte “deste mundo”, eles são. Esperando

por um céu, onde sempre julgamos merecer,

mesmo sendo mais um reles e abjeto estar

em estado de vir a ser. Não importa à física,

que aqui devemos pegar um avião para

viajar de um lado para o outro totalmente

oposto do globo, espaço e tempo percorrido

por um corpo bípede saudável ou

extenuado. Para lá se vai e pronto, tele

transporte arbitrário, sem qualquer

explicação. Ida e volta, rodando em círculos

em vão.

Alguns guardam e insistem com o que

chamam de ideologia, mas são sempre

rotulados e amputados pela massa pensante.

Aqueles que pensam a vida sem a arte.

Corrige-se: Gente que processa ideias com

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Chagas das Almas

131

lógica. Como eu aqui e sequer respeitando o

tempo dos verbos, para mim desprezíveis,

já que em maioria a serviço do asco e do

cobiço. Não fumo maconha e não bebo,

mas me sinto meio doidão. Defeco sacos de

bosta para a sensibilidade do futuro e me

abstraio olhando o quadro do Magritte à

minha frente, fixado na parede amarelada

pela tinta e a nicotina que lhes conferem cor

peculiar de cream-cracker, tom pastel,

destes fritos com óleo saturado, em seguida

vem a tosse, muita tosse. Mas isso já me

acontece também no campo, com o ar puro

no pomar na casa da minha irmã. Overdose

de oxigênio! Na verdade, o quadro não me

diz nada e é delicioso como uma romã, nem

sei por que, talvez apenas pelo fato de me

fazer esquecer em ínfimo e precioso hiato

de pensar em bela manhã ou antes de ir me

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132

deitar, me abstraindo com os olhos fixos na

distração. Pelos homens de charuto, nos

perdemos de nossos focos e das velhas

prioridades, vamos para cama para

despertar bem cedinho para viver, dormir,

acordar, viver, dormir... Isto já é morrer,

apenas chega uma hora em que não nos

levantamos mais. Simples assim.

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Chagas das Almas

133

Ah, se não fossem cortar a minha

luz!

A fila do banco estava de lascar, minha

senha era 264 e o torturador eletrônico

marcava 167.

Ah! Se não fossem cortar a minha luz!

Não tinha jeito, era esperar ou esperar.

A vantagem é que numa agonizante fila de

banco sobra tempo para muitas

reminiscências. Comecei a me lembrar da

época em que os bancos tinham uma fila

separada para cada caixa. Eu era jovem,

mas já me irritava em ficar em pé muito

tempo. No final do mês, em dias de

pagamento, ficava furioso e me contentava

em brincar comigo mesmo vendo um careca

da fila ao lado ir ficando para trás. Mas às

vezes, quando faltavam dois antes de mim,

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Chagas das Almas

134

tinha aquele office boy pentelho, com um

malote cheio de pagamentos e cheques para

depositar e o careca acabava, quando não se

ladeando a minha poliposition, saindo antes

de mim da agência. Eu ainda via um

sorrisinho sarcástico no canto de sua boca,

provavelmente produto da minha mente, e

pensava: “filho da mãe!”

De repente perdi a distração com o

sujeito da frente a me falar cochichando: ―

É um absurdo não é mesmo? Trezentas

pessoas na fila e apenas dois caixas para

atender!

― Verdade mesmo. ― Respondi.

Nesse momento passa um gerente e o

sujeito acena para ele: ― E aí, tudo bem

amigo?

Passados mais quarenta minutos, outro

sujeito, agora o que estava atrás de mim,

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Chagas das Almas

135

resolveu perder as estribeiras: ― Caramba,

este banco é uma bosta!

No que num ato impensado, da mais

absoluta infelicidade, aticei com um

magnífico clichê: ― É, se fosse na

Argentina, todo mundo já estava

protestando na gerência.

Pra quê? O cara se empolgou:

― É isto mesmo, vamos lá!

Saímos da fila: ele, eu (o idealizador,

como não ir?) e mais dois ou três adeptos

da causa em direção à elite opressora do

sistema capitalista. Até que surge um cara

de meia-idade, terno, gravata e bigode, o

gerente, quem mais? Que logo vai de

encontro ao sujeito em que nos

amparávamos, não perdendo tempo

convidou-o logo para um café:

― Em que posso ajudá-lo?!

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Chagas das Almas

136

Como é extraordinário este feeling dos

gestores experientes para identificar e

eliminar líderes de uma iminente rebelião.

Isto mesmo. Perdemos nosso mártir para o

sistema, ou melhor, para um café

fresquinho num box com cadeiras

confortáveis.

O pior de tudo é que eu e os três

dissidentes do levante tivemos que voltar de

cabeça baixa para o final da fila.

Ah, se não fossem cortar a minha luz!

Eu continuava puto porque já era

correntista do banco, mas não passava de

duas estrelas há quase dois anos. Verdade,

uma agência bancária é o protótipo perfeito

do capitalismo. Olho à minha direita e vejo

uma fila para clientes Plus – dizia a placa.

Uma perua e um senhor muito bem vestidos

encabeçavam um caixa exclusivo, enquanto

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Chagas das Almas

137

os outros estavam lotados. Depois, olho à

minha esquerda e vejo uma fila destinada a

gestantes, crianças de colo, deficientes e

idosos. Nela havia uma linda moça que

supus estar no primeiro mês de gravidez,

com o resultado do teste de urina da

farmácia na bolsa para qualquer

eventualidade. Depois outra de meia-idade

suando em bicas ao segurar uma criança de

nove ou dez anos no colo. Na terceira

posição, um cara com uma bengala que

devia ter se contundido na pelada do fim de

semana. Por fim, um idoso com tudo em

cima, que se disputássemos um confronto

de check-ups, certamente me daria uma

surra.

Este banco não era daqueles que

punham cadeiras para a gente esperar,

talvez porque se tratasse de mais humilde

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Chagas das Almas

138

instituição financeira multinacional. Crise

na bolsa, estas coisas... Então não obtivesse

recursos suficientes para tal investimento,

havemos de compreender. Mas não se pode

dizer o mesmo para o marketing, cacete!

Em cada parede um pôster anunciando o

título de capitalização ou seguro de vida do

banco, com aqueles seres humanos

perfeitinhos, família modelo, Acima de

tudo, bocas com sorrisos fartos de dentes de

porcelana, brincando de roda num gramado

tapete, coisa de fazer inveja mesmo. Na

verdade, aquele monte de cartazes que

anunciam as vantagens do banco “que foi

feito para você”, faz-me quase pensar que

eu estou dentro de uma entidade

filantrópica.

Este dia no banco estava trepidante

mesmo. Mais meia hora e ouvi um cliente

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Chagas das Almas

139

espinafrar uma daquelas gostosinhas do

atendimento preferencial, porque haviam

feito um débito errado em sua conta

corrente:

― A gente faz um estorno Dr. Roberto

Alhadas!

Reconheci a senhorita Meireles.

― Não adianta, agora já voltou um

cheque meu, quero fechar minha conta.

Continuava bravo o janota, até que sem

saber mais o que dizer, ela apaziguou os

ânimos dele com uma baita oferta:

― Olha só, para lhe recompensar dessa

situação constrangedora vamos suspender

suas tarifas para os próximos meses. E

podemos lhe financiar uma viagem de férias

para Aruba. Seu saldo médio permite.

O cara não deu o braço a torcer, mas

saiu feliz e triunfante. E eu, bem... Eu fiquei

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Chagas das Almas

140

muito puto! Não me contive, larguei de

novo a fila e avancei sobre a mesa da

Márcia, primeiro nome daquela ordinária da

senhorita Meireles, que na verdade nem era

gostosa.

― Pô garota, eu tive semana passada

aqui com você pedindo quase de joelhos

uma redução de tarifas, explicando minhas

dificuldades e você disse que não era

possível, que dependia da regional e blá,

blá, blá... E agora esse cara vem aqui, arma

um barraco e consegue isenção total,

cacete?! Só porque ele é um empresário

bem sucedido na fabricação de Oboés?! ―

Um cara na fila me informou por acaso...

Ela ficou meio em apuros e diante

daquela multidão de pessoas olhando de

soslaio sacou a resposta:

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Chagas das Almas

141

― Desculpe senhor, mas este benefício

só pode ser concedido aos clientes Plus.

“Ah, se não...”

Não, nada disso. Saí furioso porta fora

– porta adentro – porta fora, enfim, daquela

espelunca! Quando dei por conta estava no

interior de um supermercado passando no

caixa onze caixas de velas.

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Chagas das Almas

142

Para onde vai a odontologia?!

Sabe aquela puta dor de dente? Pois é,

foi ela que subitamente me pegou em pleno

centro da cidade do Rio de Janeiro num

daqueles dias escaldantes na casa dos 40

graus. Acabava de chegar de Petrópolis via

terminal Meneses Cortes para mais uma

aula de Oboé na escola de música Villa

Lobos. Eram aqueles tempos em que eu era

de esquerda radical. Resolvi que o melhor

para minha vida era ser um profissional

anônimo. E como queria ser artista, nada

melhor do que entrar para uma orquestra, e

tocando oboé, óbvio! Até que percebi o

quanto uma orquestra é burguesa. Vários

integrantes se esforçando, dando o máximo

de seu fôlego ou punhos para atender a

vaidade e a fama de um cara empertigado,

Page 144: CHAGAS CRÔNICAS DAS ALMAS

Chagas das Almas

143

que só sabe fazer pantomima e muita fita,

se gabando de, com uma varinha na mão,

comandar o espetáculo, como uma fada

madrinha! É... Pensamento de esquerdista

babaca mesmo. Mas isso não tem nada a

ver com a história.

A dor de dente, fruto daquele canal tipo

"do Panamá" que negligenciamos o

tratamento é pior do que dor de parto, de

barriga e de cabeça, quando se está com dor

de dente, sim.

Entrei numa farmácia na Carioca e pedi

um destes engodos “Passa já”, “Um

minuto” ou qualquer anestésico local. Só

tinha xilocaína e foi aquilo mesmo. Pedi

para usar o banheiro e coloquei meio tubo

no lado inferior esquerdo da boca. Houve

um alívio imediato, mas ao agradecer o

balconista da farmácia e colocar o pé na

Page 145: CHAGAS CRÔNICAS DAS ALMAS

Chagas das Almas

144

porta, veio uma fisgada. Eram aqueles

malditos nervos novamente. E pensar que

vinha utilizando regularmente um creme

dental daquela tripla-ação, anti-placa

bacteriana que o reclame da TV anunciava

como a panaceia bucal.

Corri desesperado e me deparei com

um prédio comercial na Nilo Peçanha,

entrei no elevador e respondi ao

ascensorista:

― Para onde tiver um dentista!

Sensibilizado, ele respondeu;

― Dr. Silas Ubirajara, sala 406.

Adentrei o consultório, sem

recepcionista bati na porta, ele abriu e

apesar de perceber meu desespero disse que

tinha dois na frente. Olhei para os

respectivos, um tirou os olhos rápido de

mim e voltou-se para a revista cuja capa,

Page 146: CHAGAS CRÔNICAS DAS ALMAS

Chagas das Almas

145

me lembro, estampava a vitória de FHC nas

eleições. Bem, estou contando essa história

sofrível e o Lula está terminado o segundo.

O outro, um moleque, estava mais

confortável, com fones no ouvido nem

tomava conhecimento da situação. Foram

50 minutos cronometrados em que eu me

postava como uma cadeira de balanço em

movimento. Até que entrei e me sentei. O

Doutor me perguntou qual era o dente e

após eu responder ele olhou e disse que não

tratava de canais. Indicou-me um colega

perto dali, Rua Debret, sobreloja, ―

Segunda à direita saindo do prédio. ― disse

o especialista em cáries.

Lá fui eu, sem me dar conta, em oito

minutos estava no consultório que para

minha sorte encontrava a porta aberta com

o Doutor “não me lembro o nome” sentado

Page 147: CHAGAS CRÔNICAS DAS ALMAS

Chagas das Almas

146

na cadeira do cliente tirando uma boa

soneca. Para chamar sua atenção, não tossi,

disse: ― Aaaaaiii...! Ele despertou. Fez o

mesmo procedimento do dentista anterior,

mas não olhou. Quando eu disse que era em

baixo, ele foi decisivo:

― Desculpe-me, mas canal, só trato da

arcada superior. Mas tenho um colega aqui

perto que pode te ajudar, Rua da Quitanda

40, esquina com a Sete de Setembro.

Percebia que fazia um tour no centro

do Rio ao bel prazer das ciências

odontológicas e nunca estas ruazinhas

conhecidas me deram tanta raiva. Fui até lá

em absoluto sacrifício. A essa altura com

meu lenço no rosto provocando piedade aos

transeuntes mais sensíveis, se é que há.

Entrei no consultório do cara, Dr.

Rulfino Salatial, li em letras garrafais na

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Chagas das Almas

147

plaqueta da porta. Dei mais sorte ainda, mas

será que eu posso dizer isto? Bem, quero

dizer, peguei o Dr. sem pacientes, chegando

do “volto já” que anunciava um pedaço de

papel colado com durex. Entramos,

expliquei toda a história quando tive que

ouvir:

― O Senhor me desculpe, mas já estou

de saída, entro de férias e vou viajar com a

família, meu voo sai em três horas, além do

mais, dos superiores eu só trato de canais

nos dentes molares.

Eu não me contive e gritei:

― Filho da puta!

Começamos a discutir:

Eu blasfemava:

― Cada um de vocês deve ter feito um

ano de faculdade e um mês de pós-

graduação, seus lobistas! E ainda querem

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Chagas das Almas

148

ser chamados de Doutor! E aposto que vai

para Orlando seu cretino medíocre! E

peguei pesado: ― Não, seu dentista!

O cara então resolveu só ouvir,

impassível. ― Quer dizer que se eu for a

um oftalmologista vou ter que escolher

entre um profissional de cegueira, catarata

ou miopia?! E deve ter ainda especialista

em olho esquerdo ou direito, castanhos e

azuis? Gargalhei irônico. ― A boca já não

é uma especialidade no corpo humano,

cacete?!

Acalmei-me, pedi desculpas, depois

implorei que ele abrisse uma exceção, ele

não acatou, e como a dor continuava

insuportável, perguntei gentilmente se ele

tinha alguém para me indicar. Reticente, ele

disse que era difícil:

― Pré-molares? Só na Barra da Tijuca.

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Chagas das Almas

149

Saí lacrimejando, era uma mistura de

raiva, autocomiseração e, lógico, a puta dor

de dente. Olhei para o relógio, eram

dezesseis horas, perdi minha aula de Oboé.

Que chato, estava quase pegando a

embocadura!

Resolvi então chutar o pau da barraca e

fui para o Bar Luís, pedi chope e vodca. Saí

cambaleando e parti para pegar o das

dezenove horas no Castelo. Anestesiado

pelo álcool, apaguei no ônibus e cheguei a

Petrópolis.

No dia seguinte, com ressaca e dor de

dente, tratei de ligar logo, bem cedo para o

meu velho dentista, marquei na primeira

hora da manhã. Sentei, colocamos o papo

em dia. Ele abriu o dente que ainda doía.

Ele anulou a dor e tirou uma radiografia e

evasivo me receitou Amoxicilina, cujo

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Chagas das Almas

150

preço me faz maldizer Fleming! Mas

tirando a máscara falou:

― Não é canal.

Quando eu me sentia aliviado e

envaidecido, ele disse:

― A coisa é mais séria, vou ter que te

encaminhar para um especialista em

disfunção Buco-Têmporo-Maxilo-Facial.

Atônito e abatido, eu falei:

― Cacete! Está bem... Mas será que eu

posso ir agora mesmo?!

― Creio que não ― disse ele ― Esta

especialidade só no Rio.

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Chagas das Almas

151

Lá no futuro

Certo dia num futuro mórbido, quase a

2100 D.C., dois donos de casa Classe Dawn

se encontram na seção de águas do

Teramercado da cidade. Analisando

minuciosamente os produtos, seus preços de

prazo e composições subliminares, um

deles deixou escapar um comentário, coisa

típica e eterna dos humildes que precisam

da atenção de estranhos para aliviar o

abandono que a sociedade lhes impõe.

– Pois é – diz João – a sobrevida está

pela hora da morte!

– Verdade – diz Antônio, com a sua

distração de autômato: – veja só, a garrafa

de água natural está mais cara que um litro

de leite!

Page 153: CHAGAS CRÔNICAS DAS ALMAS

Chagas das Almas

152

– E essas turbinadas? Só rico pode

comprar!

– Você tem algum problema sério de

saúde?

– Por quê?!

– Desculpe... É que eu estou vendo no

seu carrinho alguns produtos ultra-light e

extra-diet.

– É... Lá em casa todo mundo está com

glico-colestero-metastático alto.

– Pois é, e pensar que antigamente, na

idade moderna, quando ainda não tinham

inventado a geladeira e descoberto os óleos

vegetais, as carnes eram conservadas em

banha de porco. Só se cozinhava com

aquilo e não morria tanta gente como hoje

de problemas no coração.

– Porcooo... Ah é verdade! E o que eu

gasto com os remédios fito transgênicos!

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Chagas das Almas

153

– Claro, os laboratórios, como tudo

atualmente, estão todos nas mãos dos

chineses! Por que você não tenta os

alopáticos? São mais em conta e os efeitos

colaterais bem mais brandos!

– Pode ser... Você viu ontem no

telepático jornal da noite a prisão do

Deputado que foi acusado de devastar áreas

de concreto para extração de terra?

– Vi! E o desgraçado vendeu quase

cinco toneladas para o exterior! Mas na

VEJA que eu ganhei de brinde pela compra

de um dropes outro dia, tem uma matéria

muito boa falando sobre a impunidade de

nossos políticos corruptos e dos

movimentos dos “sem roda!”

– É, esta corja! E a nave presidencial

que levou o presidente e toda aquela

comitiva para a Groelandia?! É, podia ter

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Chagas das Almas

154

caído! Ah, Ah...! Por isso que agora eu só

voto na esquerda-volver. Eles propõem uma

contra-reforma agrária que promete assentar

mais de três mil famílias por ano em

escaninhos!

– Balelas! Esse José Sarney...! Não é

imortal só na ABL não! ...Bem, eu ainda

prefiro continuar votando na meta-direita,

pelo menos eles não mexem na minha

vidinha. Imagina tirarem minhas bolsas

Família Plus, “Minha casa minha vida”,

“minha privada entupida, kkk...!” Pensando

para si, João se recobra da sua condição

patética e renitente, olha para o carrinho de

Antônio e muda prontamente de assunto: –

Puxa, que irado... Sua família deve ser

grande!

– Como? Ah sim... Todos estes

produtos de farinha de carne? É... Lá em

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Chagas das Almas

155

casa somos eu, minha esposa, três

adolescentes e dois cachorros! É... Eu sou

professor entende? Bem, eu tenho que ir.

Minha mulher vai chegar em casa e...sabe

como é...

– Ah, como não?! A minha também e

ai de mim se o jantar atrasar...! Meu nome é

João, prazer em conhecê-lo! Qual o seu?

– Antônio, o prazer foi meu. Aliás,

qual é o final do seu CPF?

– O Meu é 34 e o seu?

– O meu também é par! Quem sabe,

com este novo sistema de revezamento de

pedestres a gente não se esbarra por aqui

numa próxima vez...?

Em seguida às palavras de João, se

ouve o barulho de uma sirene assustadora

que vem avisar o próximo apagão do dia,

medida proveniente do PRÉ-BRASIL 2100,

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Chagas das Almas

156

Programa de Racionamento Progressivo e

Estratégico de Energia Solar do Governo

Inácio Rousseff Neto... Quando se ouve a

voz apressada de Antônio sumindo no

fundo...

– Quem sabe?! Até algum dia...!

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Chagas das Almas

157

Bula do Tempo

(genérico)

Lembro-me de quando senti pela

primeira vez a tristeza de ter levado um fora

de uma garota que estava apaixonado.

Quando eu me abria às pessoas íntimas, o

que mais ouvia como consolo era: ― O

tempo é o melhor remédio. Lembrando-me

desta metáfora banal tão comum em nossa

cultura, pensei como seria uma bula para

“este remédio” e deu nisto.

– Informações ao impaciente: A

sucessão de anos, dias e horas que

envolvem a noção de passado, presente e

futuro, que compõem o tempo exercem uma

ação benéfica ao sistema nervoso quando

associado ao espaço. A relação espaço-

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Chagas das Almas

158

tempo se desenvolve por meio de quatro

dimensões aonde o tempo é a quarta,

necessária à determinação de um fenômeno

na assimilação pelas ideias do contexto da

realidade pelo sistema cognitivo humano. A

ação em humanos é meia vida a mais, não

ultrapassando a média de 70 anos,

variando-se os cuidados clínicos e

nutricionais.

– Indicações: Suster o corpo e alma

em estado vital, sendo também eficaz no

tratamento coadjuvante das dores de

cotovelos, estado de viuvez; pacientes que

sofrem do mal de abandono ou perdas e

traições da mesma origem. (experiências in

vivo).

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Chagas das Almas

159

– Cuidados de armazenamento: Deve

ser armazenado na alma, sob o abrigo de

cobranças e pressões e administrado

segundo o bem estar do paciente em suas

manias de passado e futuro.

– Uso na Gravidez: Sugere-se o

controle da ansiedade nos últimos dois

meses e cuidados em prematuridades,

principalmente nas parturientes que sentem

a gravidez como sintomas de doença.

– Interrupção do tratamento: A

suspensão abrupta do uso do tempo se

relaciona aos casos de suicídios, o que

significa em óbito. Neste caso, deve se

consultar um psicólogo ou neurologista.

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Chagas das Almas

160

– Reações adversas: Em 90% dos

pacientes, foram registrada impontualidade,

desorganização, uso exagerado em trabalho,

devoções, leitura de livros sagrados,

contagens de cédulas e valores em extratos

e más relações com o desejo entre outros.

– Contra-indicações: O medicamento

é contra indicado em pacientes que fazem

uso da ociosidade, preguiça e

vagabundagem patogênica. Também

àqueles cujos destinos já estão marcados

para morrerem subitamente em eventos de

causas estúpidas como em acidentes aéreos.

Foram registrados casos de tormentos em

presidiários, filas de órgãos públicos e

transito de automóveis e outras

neurastenias.

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Chagas das Almas

161

– Superdosagem: O aparecimento de

manifestações causadas pela superdose de

tempo inclui com mais frequência: solidão,

saudosismo, nostalgia, dores reumáticas e

correlatas, esclerose, abandono, depressão

do SNC, incluindo alucinações.

Experimentos com placebo demonstraram

que o uso concomitante da fé com os

desígnios do tempo obteve respostas 50/50,

só causando mais alivio das dores nos que

não utilizaram placebos. *Farmacocinética:

excretado pela vagina materna e eliminado

em submersão de terra ou cinzas.

– Pacientes idosos: Relacionado a

superdoses, vale advertir que dependendo

das condições físicas e psicologias, a

continuação do medicamento é contra

indicada, podendo ser remendada dose alta

Page 163: CHAGAS CRÔNICAS DAS ALMAS

Chagas das Almas

162

de ar intravenoso em processos de

eutanásia.

– Posologia: 24 horas por dia, durante

12 meses, por anos. Como o uso da

insulina, reguladores de pressão e outras

drogas para doenças crônicas, até

desaparecerem os sintomas ou a critério do

acaso.

– Prazo de validade: Vide lápide.

• Não desaparecendo os sintomas,

consulte seu médium.

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Chagas das Almas

163

Um cigarro à meia luz

Fecho cada dia num ritual de madrugadas.

Deito na cama e acendo um último cigarro à

meia luz. Repenso o dia, quão igual foi ao

de ontem e começa logo uma regressão

involuntária. Vejo o ano com a mesma

ótica. Vou até quase uma década. Daí,

passo para uma espécie de outra vida, mas é

a mesma carnação. Tenho um

“psychotiming” estreito. As lembranças

dos últimos trinta anos parecem as de

poucos meses. Não que as imagens sejam

todas nítidas, mas as certezas e sensações.

Passei a entender que os meus amores por

Sônia, Marisa e Adriana, sempre foram

possíveis. Não havia razão para a

insegurança e covardia que me fez perdê-

las. Vejo seus rostos, toda beleza e

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Chagas das Almas

164

grandiosidade de suas personalidades, que

nunca fora idealização, mas boa intuição

perdida por covardia. Percebo ainda que os

meus primeiros meses com a Barbara

podiam ser anos daquela extra ordinária

alegria! Contudo, o tempo cronológico

mostra que não há mais nenhum de nós

igual, somos agora o produto de mais trinta

anos. Outra pele, outras vidas e

circunstâncias. Apesar do estado atual de

felicidade ser um medidor de saudosismo, é

isso que faz com que as pessoas variem

suas emoções em reencontrar velhos ex-

amigos. Quanto mais psychotiming (que

não é o tempo psicológico tradicional),

menos apego, quanto menos, mais

impressão de que o outro responderá como

antigamente. Assim, não há ninguém

censurável ou louvável.

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Chagas das Almas

165

Às vezes no silêncio e na solidão da

noite, com aparelhos e bocas desligados me

vem estreitamentos comparativos de fatos

que geram certa angústia. Meu filho fez

vinte e três, a idade que me casei. Eu era

dez anos mais novo que meu cunhado,

agora sou quatro anos mais velho. Meu pai

com minha idade, cinquenta anos, assistiu

comigo a derrota triste da seleção brasileira

em 1982, eu tinha dezoito anos.

É difícil querer dormir, tenho medo

dos sonhos bons. Pior, junto há o despertar

tentando juntar seus pedaços em

lembranças furtivas. Têm aqueles com

meus irmãos em festas e bares, os de flertes

com moças lindas sem rosto definido, as

perdidas ou desconhecidas. Há ainda os

recorrentes com os anos dos últimos

trabalhos, de bem com tudo e todos. Não há

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Chagas das Almas

166

culpas e recalques, que bom, fugi desta

máxima de Freud, ficando apenas com a de

que "os sonhos são manifestações de

desejos." As pessoas não são amigas, não

mais, arbitro, que amigos não são sazonais,

bem como valor algum há em amores

platônicos eventuais. É necessário um

mínimo de convívio, notícias. Assim, o que

temos nas redes sociais são contatos, entre

eles amigos a se contar nos dedos de uma

mão, além de pessoas bacanas e parte de

boas lembranças de um tempo, apenas...

Não há necessidade de sincronia temporal

para isso. Voltando a mim, todos os enredos

deleitáveis no sono profundo consagram-se

em verdadeiros pesadelos no amanhecer,

porque desafiam a vigília, desta feita no

café e no primeiro faiscar do isqueiro ainda

na cama, daí o temer.

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Chagas das Almas

167

Uma noite destas, no terceiro trago,

olhei para o cabideiro e vi minhas vestes

dispostas como a minha imagem vista por

ébrios na rua soturna: Camisa acima, calça

abaixo e por coincidência meu par de

sapatenis no chão próximo as suas bocas

puídas por aqueles aquiles. No cume, o

velho boné de feltro preto à moda dos

homens do cais europeu que fica ali de

enfeite, pois que como os óculos nem uso

mais. Com as pontas dos cabides verticais à

vista, a imagem parecia de um espantalho

de mim mesmo ou abantesma mal vestida,

sempre a mesma. Talvez um hibrido, o

boneco desengonçado a espantar o espectro

alado, como um símbolo mitológico da

dicotomia sonhar versus não viver. A

fantasia na TV Memória contra o dia

seguinte com realidade do ser ao vivo.

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Chagas das Almas

168

Tomadas toscas sem ensaios, que o

personagem mudo sabe a sua participação

modesta de cor, sei lá...

Parei de colocar meu corpo seminu a

assistir isso em conforto e tento não mais

relutar ao torpor. Entreguei-me ao nefário

confronto. Agora, apresso o ritual da noite

assistindo o dissipar da fumaça do último

trago do cigarro que dizem matar aos

poucos, mas que só vejo demorado demais.

Em seguida, com calma, o apago a meia

guimba, depois o abajur à meia luz, e por

fim, sem perceber... a mim mesmo à meia

alma.

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Chagas das Almas

169

Nosso lar

O nosso templo é a nossa casa. Nosso

deus, as almas nela habitada. Juntos,

formamos um lar. A casa, lar. Somos ou

criamos o rebento. A família se abriga e

inteira colabora, não importa a beleza de

dentro, nem a de fora. Passando da porta,

juntos ou sozinhos, estamos protegidos

contra os males do mundo, abrigo de nossos

teréns, itens pessoais. E bichos de

estimação, se é que há. Acalanta até a nossa

solidão. Isto nos define como ser, a casa

isso faz. Sem nenhuma enganação, do

jovem ao ancião. Abrimos as portas para os

bem chegados e para os que nem querem

ser. Por isso, às vezes, somos nela mesma

violados, já que a porta principal não é de

mogno nem esquadria, pois sim bem mais

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Chagas das Almas

170

aberta, é cardíaca. Se sair um, sair outro,

mesmo tristes, o consolo vem dela, a casa,

mude o endereço, a pintura. Tudo se auto

retoca, do chão ao teto, posto que é uma

edificação de abstrato e concreto, feita por

nós e os provectos, todos os arquitetos.

Quando voltamos de maior ausência,

vindos de aeroportos incertos, dor nas

costas por conta dos acentos duros da

terceira classe, vimos se matar em nós uma

saudade sem igual. No largar-se no sofá da

sala, no passar de um café fresco, na cabeça

sob o travesseiro velho. Ah sim! Sobretudo

a “nossa cama”! Seja de colcha remendada

ou bacana. Bem vindos até os vizinhos, dos

cacetes aos bonzinhos. Melhor que desfazer

as malas, isso sim é mais chatinho... Não!

Não há nada igual! Tantas sandices de nós,

seres humanos do cativeiro lá fora:

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Chagas das Almas

171

confrontos, competições e violência, assaz!

Nesta guerra que enfrentamos dia-a-dia,

felizes os ricos, os pobres e todos mais,

contanto que possam dizer: ― Eis minha

Casa, onde vivo a plenitude da paz sonhada,

sem olhos que me julgam ou simplesmente

insinuem qualquer coisa, de mau ou de

bom, nada a declarar... Onde eu posso me

espreguiçar, bocejar ou peidar ao luar.

Qualquer gesto de forma nobre ou feiosa.

abrir completa e incondicionalmente

minhas asas para ao ar.

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Chagas das Almas

172

Reencontro

Deodoro Schmidt disse:

Ao Thêmis, saudade e referência...

“Por entre acordes de uma guitarra,

duas crianças inauguram pontes em seus

carrinhos de mão. Guia-os a tristeza e a

solidão da distância da casa. Abandonados

a eles mesmos, cúmplices nas acrobacias

da alma, transformam o recreio numa

revolução em que só eles sobrevivem. A

vida será mais dura à frente. Beberam

todos os excessos separados sem saber que

a vida escreve os roteiros com os mesmos

personagens.

Agora não mais prefeitos de

mentirinha, servem aos alcaides modernos

como velhos camaradas que a cidade

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Chagas das Almas

173

pequena e a derrota da vida os

reconciliaram na cilada do conhecimento.

Viveram em quartos com pôsteres de Alice

Cooper, ouviram Lennon e McCartney em

seus beliches, pelos corredores da casa. As

pernas tortas denunciaram que só um foi

capaz do futebol. Mas a dor estava sempre

como disfarce da memória. Um herói do

outro. Cabeleireiras e merendeiras negras.

O teatro e a leitura. O armazém

improvisado no quarto de empregada.

Foram tudo sem o mal! Este surpreendeu

vindo das ausências e perdas. Da solidão.

Separados, agora torcem para que cada um

tenha se mantido fiel ao que foram. Sem

isso estarão esquecidos. Leais terão

validado todo um Ateneu!”

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Chagas das Almas

174

Do referenciado, não menos...

É a sobra do herói, ou apenas seu alter-

ego que responde agora, já que as crianças

revolucionárias dos recreios, de capa e

espada, foram mortas pelos alcaides, como

Guevara que também mereceu pôster nas

paredes dos arredores das casas,

amontoados, igualmente atraiçoados pelas

costas. Entre toda solidão e tristeza das

distâncias, ao menos tínhamos o nosso

casarão da Rua Koeller, só que perdemos a

posse na primeira infância, no apogeu, no

Ateneu. Lá, nós é que éramos os Reis.

Depois, ainda acreditando em nossos ideais,

não passamos de súditos, já que se referiu

aos alcaides. Sim, verdade, os excessos que

bebemos separados ajudaram a manter a

realeza, a não edificar belos castelos, ou

melhor, fê-los de areia. Digo por mim,

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Chagas das Almas

175

claro, com inúmeras viagens levadas pelo

mesmo carrinho de mão que nos inaugurou

e depois dissolvidas lentamente na

maturidade pelas brumas e espumas pretas,

como as cabeleiras e merendeiras. Será?

Não fosse seu universo particular trancado a

sete chaves, tão submerso, era para sermos

o melhor amigo um do outro. Mas respeito

e de certa forma é parte sua que admiro, e

então o quê?

Os livros e o teatro, junto aos Beatles e

Alice Cooper, continuam acalantando em

melodia a solidão de cada dia, do vácuo do

tempo desperdiçado, já que de fato, a vida é

sempre dura à frente. Tem as perdas e

ausências sem escolha e as com escolha.

Mas com a meia idade batendo à porta,

percebemos que essas são tão

incontroláveis quanto à morte. Perdemos

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Chagas das Almas

176

voos e viagens, amigos, oportunidades,

amores (tudo artigos de ocasião) para a

própria vida, isto é que parece fora da

ordem natural, mas apenas parece, pois não.

Aparentemente menos otimista, parece que

a fidelidade do que somos, formatadas em

boas virtudes e valores, pode não passar de

consolo, e todos, uns mais rápidos, outros

menos, inevitavelmente serão esquecidos.

Mas enquanto houver amanhã, os

nossos heróis não morrerão nunca, fazem

parte da paisagem, a boa parte, que sempre

estará lá. Distantes, mas uníssonos em

nossas lembranças. Basta um suspiro, uma

surpresa boa, uma epifania em papel e

letras, ainda que eletrônicos, promovido por

alguém tão querido, tão saudosamente

lembrado, como hoje ocorrido ao ler o que

li do amigo, por isso agora me regozijo e

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Chagas das Almas

177

até mais animado, digo: ― Claro que tudo

valeu a pena ser vivido!

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Chagas das Almas

178

Pêsames

Era seu aniversário. O casal não levou

nada. Disse Rubens para a nova namorada

de 25 anos: ― Melhor, eles não têm nada

mesmo, pode ocupar espaço, constranger ou

ofender. Amigo? Isso é assunto filosófico.

Talvez só saiba quando sofrer um acidente

e estiver segurando a maçaneta. Chegaram

à casa dele, o de sempre: Acordando. A

família toda fora, trabalhando, estudando e

inventando moda para sustentar a lar e seu

esqueleto, chegar bem tarde e não vê-lo

diante da TV, de chinelo, controle remoto

fazendo tour e os olhos cheios de remela,

acúmulo do Clonazepan. ― 50 anos amigo!

Ele ouve do sujeito incógnito que lhe bateu

à porta com a moça. Vendo tudo embaçado,

se limitava a monossílabos e contava que,

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Chagas das Almas

179

com isso e um agradecimento falso e bem

comovido pelo desplante de ter sido

parabenizado, aquilo poderia acabar logo. E

acabou. O amigo com muita tranquilidade,

em 40 minutos disse que tinha que pegar a

avó na fisioterapia. Desculpa do cardápio

de fim de tarde, do happy hour. Se fosse

pela manhã seria a filha na escola ou à noite

na faculdade... “Porque Niterói está

violento demais.”

Inválido, imprestável e com a

cabeça no mundo da lua velha e minguante,

por um passado que quis cassar o mandato e

perdera, Adrian Simeth era a representação

viva da barata de Franz Kafka em pleno

século vinte e um. Mais dez anos de

casamento, os filhos casados e ele viveria

comodamente junto às aranhas do teto. Até

os seus gatos lhe poupariam. A esposa nem

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Chagas das Almas

180

teria que se preocupar com sua alimentação

e se ele vivesse e sobrevivesse a tudo, tal

como as periplanetas, a relação de

dependência já teria se esvanecido no dia

oficial de sua passagem. É a viuvez branca.

Se não há dependência mútua, um não leva

o outro em seguida. Uma réstia de lucidez

fazia-o pensar: “Ela é maravilhosa e se a

amo, tenho que libertá-la. “Ela foi até o fim,

não se curou de mim.”Simeth sempre

gostou das mulheres frágeis, mas quando

elas se davam alta, ele adoecia e foi assim

que se aposentou por invalidez, por dores

crônicas de amor. Nada lhe produzia prazer

na vida que não amar incondicionalmente,

ininterruptamente e acumuladamente.

Como uma fonte de água cristalina, quanto

mais dá beber, mais brota, valores

ignorados. E isso o deformou como pai,

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Chagas das Almas

181

amigo e profissional. Fez-se modelo desde

cedo por certa covardia, insegurança que

contaminou tudo. Ele já quase nem profere

palavras, inaudíveis a esta altura das sancas.

Estava para terminar o dia que se marca por

convenção, calendário e outras invenções

humanas, informando que cada um de seus

exemplares tem um número tal de anos a

ser comemorado e um padrão de ser e estar.

― Não, chorar não, que isso é coisa de

criança! Após ouvir sons e palavras de

exaltação esparsas em meio a beijos

babados e ver todos degustando com avidez

sanduíches de pão ordinário que lembra

Plus Vita, mais uma massa branca redonda

engordurado de glacê, que se come fatiada,

além do que era muito claro: Coca-Cola,

como não? Arrastou-se até a cama com a

descoordenação natural que os hormônios

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Chagas das Almas

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artificialmente produzidos provocam nas

convulsões da alma a somatizar os

músculos, overdoses de psicotrópicos. Sua

vitalidade não existia mais, sequer lembrava

a que um dia lhe conferiu um tato em

temperatura amena oferecendo viço e tesão

em alta candura que salvou a auto-estima de

algumas almas sofridas, perdidas de amor

por ele. Engoliu os comprimidos

maquinalmente, rotina do piloto

automático, sem ligar para turbulências.

Algo aconteceu no vizinho. Deu

para ouvir. As paredes casca-de-ovo da

COHAB denunciavam que o seu Manoel do

ap. 301 teve um enfarte fulminante. Houve

alvoroço, sua esposa e filhos saíram porta

afora. Logo havia uma ambulância.

Familiares chegaram e o clima funesto foi

fazendo o de costume, as pessoas falando

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Chagas das Almas

183

como que cochichando. Como se para não

incomodar o descanso do cadáver. Ele

estranhou o silêncio, olhou o relógio de

plástico na parede e faltando um minuto

para meia noite colocou o ouvido colado na

parede esticando-se na cama. Foi justo na

entrada do padre no quarto do vizinho que

vinha dar a extrema-unção ao velho. O

homem da batina marrom é salvo de ser

menos barata por uma segunda denúncia, a

do odor empesteado de naftalina. Disse ele

à viúva: ― Meus pêsames.

Simeth conseguiu ouvir isso e filou

o pedido condolente do beato, resgatando

um sentimento de gratidão e solidariedade

inéditos. Junto, uma sensação "térnica" que

há muito não sentia. Tomou-o como o

melhor presente para o fim do seu dia.

Balbuciou babando, baixinho, a única coisa

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Chagas das Almas

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sincera até então no seu aniversário de 50

anos... “Obrigado Senhor! Em seguida foi

pensando em masoquismo, parte daquela

rotina, com os rostos jovens das suas

paixões idas... Em dores perdidas, até as

drogas fazerem efeito e adormecer...

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Chagas das Almas

185

Alma e Espelho

O espelho é um delator de almas,

cristalinas ou manchas d’auras. Relógio

implacável do tempo de um corpo que

reflete a dor de um rosto, a alegria dos

moços. Único presente à solidão é raio-xis

de um abatido coração. Mudo nada diz, mas

não há melhor espectro da verdade inefável

de um momento infeliz. Vidro cravado na

carne...

A mente sempre mente, frente a ele

nunca novamente. Às vezes ele te diz: és

bela ou bonito, noutras, todos malditos! Te

inquire, indaga e só faz lembrar. Do que vai

sobrando de nós é refração de alguém

jamais, talvez ou também. Exposição do ser

em cada novo alvorecer... Suspiro de sim e

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186

não amar, mistura de ser e não ser ou estar.

Sensação de bola de fogo que se viu

explodir no ar. A gente olhando para ele e

ele a nos olhar, dia-a-dia, a cada alvorecer,

até o inevitável instante sublime-cortante,

em prata-escarlate, de tudo se estilhaçar e

falecer.

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Chagas das Almas

187

Abstinência por ilusão

De repente eu acendo um dos cigarros

que já perdi a conta, malditos apenas por

matar aos poucos, ineficazes em produzir

euforia. É a única fonte do cérebro que

produz hormônios, já que há dias ele está

sem o antidepressivo que custa os olhos da

alma. Tudo conspira contra o ego agora,

sedento de falsas explicações, de coisas

incutidas para enganar e lhe dar falsas

esperanças, fonte de seus desejos, fantasias

e mentiras próprias que se transformam em

veneno contra si e respingam

inevitavelmente nos outros. Hipocrisia é a

soma das partes que forma o todo, o que

chamamos sociedade. Como é fato sazonal,

esperamos a depressão se instalar. Pois, em

quem é frágil, medroso e covarde e leva em

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Chagas das Almas

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si a descrença nos mitos e na fé, não resta

mais qualquer recurso para se obter ilusões,

como o consumo de coisas lícitas e ilícitas,

entre outros vícios e atos compulsivos

ingeridos goela abaixo ou fantasma adentro.

O dinheiro é mandante nisso, se é minguado

então, a realidade se torna insuportável.

Pegar um avião para conhecer o mundo é

libertador, mesmo com risco da queda, sem

ela, igual à dor. A paixão, melhor e mais

eficaz, a idade e a cultura de castrações

amputam as oportunidades. Nesse estado de

espírito até o que se tem à mão se torna

pouco, como as mesmas músicas e pessoas.

É lidar só com “o que é”, sem recursos

enganadores com o “finge que é”. Aí vem

uma puta síndrome de abstinência pela

ilusão. Uma depressão branca.

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Chagas das Almas

189

Mas tem a hora de um grande barato,

tipo delírium tremens neste estar em plena

sintonia com a realidade. Prazer? Não. É, na

verdade, um estado masoquista de

despertar. Noutro repente, de forma inédita

há uma epifania sôfrega. Vejo as fotos da

praia de Ipanema infestada de pessoas,

disputando um centímetro quadrado na

areia e sinto o asco pela humanidade e

complacência com as baratas. Quando

poderia imaginar isso? Kafka me invejaria.

Vejo a consubstancia inverossímil das

relações humanas. Prossigo nas notícias e

me deparo logo depois com a continuidade

da barbárie no Maranhão. O avô enfartou ao

saber que a neta faleceu com 80% do corpo

queimado pela retaliação dos presidiários

que não a deixou sair do ônibus deliberada -

à - mente. Uma criança...! Em seguida, sigo

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os olhos e vejo a reportagem anunciando a

celebração especial pelo dia da Folia de

Reis: “O Papa Francisco convidou hoje a

humanidade a seguir a Luz de Deus e

apresentou os Magos do Oriente como um

exemplo de sabedoria.” Conclusão: não deu

tempo para as pessoas que foram obrigadas

a ficar no ônibus incandescente de “seguir a

luz”, que pena... Penso sobre tudo, um tanto

alheio e apático. E caio noutra real, que a

recente morte de Nelson Mandela significa

muito mais a perda de um ídolo, mártir,

cujas ideias já foram esquecidas. E assim,

que a expressão “direitos humanos” é algo

totalmente incoerente por definição, não

cabendo mais qualquer discussão pontual.

O momento é propício para transcender a

porra do ego, mas isso é para poucos, (e

patrocinados que não tenham contas a

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Chagas das Almas

191

vencer no fim do mês). Logo, a luta é por

não sucumbir totalmente a ele até se tornar

um idiota completo. Tenho que procurar um

grupo de ajuda aos solitários anônimos.

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Terra

Tive o imenso prazer de pegar

emprestado de um amigo o livro “Terra” do

fotógrafo mineiro Sebastião Salgado. Esse

magnífico artista, de renome internacional,

orgulho do nosso país, é adepto do que se

chama “fotografia engajada”, que pretende

algo além da estética, da recompensa ou

como diz o próprio mestre: “repensar a

forma como coexistimos no mundo”.

O livro trata do problema dos sem

terra, daqueles que lutam por uma gleba

numa distribuição desigual, vivendo na

miséria por falta de trabalho no campo,

único ofício da maioria. As fotos são tão

chocantes que merecem com louvor os

textos fortes dos não menos brilhantes

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Chagas das Almas

193

escritores Chico Buarque e José Saramago a

permearem à obra.

O álbum começa com a foto de duas

crianças sentadas no chão do que não se

pode chamar de sala, como parte de uma

construção que também não se pode chamar

de casa, que dirá de “um lar”. Junto delas,

dezenas de migalhas de ossos de animais

mortos pela seca, servindo de brinquedinho

de montar coisas. No meio, três cavalinhos

de plástico, talvez um precioso presente de

gente do bem, algum forasteiro de outrora

que viajara no tempo até aquelas bandas,

que por força de um parco destino, ainda

anda um a dois séculos atrás do nosso.

De repente, comecei a pensar nas

crianças. Em todo o universo de

imaginações que movimentam suas

múltiplas manifestações de criatividade e

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Chagas das Almas

194

aptidões. Dos emblemáticos heróis que lhes

dão o senso da justiça, além da TV, dos

computadores que seguem a ordem natural

na formação dos mais bem nascidos,

candidatos a um futuro, uma prosperidade e

uma maturidade de infinitas possibilidades

neste modelo de cartas marcadas da

sociedade humana. Afinal, o que será lúdico

naquela infância nordestina sertaneja e de

todos os cantos marginalizados do mundo?

Que histórias conhecem para inventar o

"faz de contas", coisa tão importante à

formação juvenil? Aquelas coisas saudosas

como as árvores frondosas, os livros

coloridos e o super-homem ou a boneca que

ri. Imagine uma viajem a Disneylândia,

num avião que nem sabem o que é? Quanta

futilidade.

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Chagas das Almas

195

Percebo aflito que aqueles ossos

retratam um cemitério de indigentes,

quando ali não se distinguem os vivos dos

mortos, e que aqueles cavalos de

plástico simbolizam os cavaleiros do

apocalipse.

Folheando o livro, passamos ainda por

adultos com a velhice precoce, corpos e

folhas de rosto rugados, tecidos epiteliais

não irrigados. Seca e tudo junto, com a

colaboração da fome. Mais cruel ainda:

semblantes alheios ao mundo, olhares

perdidos. Crianças, jovens e nem sei se

idosos, todos iguais, não perante Deus, mas

ao tempo que parece apenas reservar-lhes a

morte, única certeza de futuro. Íris sem

brilho, desesperança, representação viva e

realista do mais profundo vazio: o nada.

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Tem esta foto de uma menina na mesa

de uma escola improvisada, segurando o

lápis e olhando para a câmera. Sinto a

ínfima dor que nosso fotógrafo deve ter

sentido latente pelo máximo de sorriso que

conseguira arrancar dela, um cantinho de

lábios para cima, mas com olhos tristes de

profissão. É de emocionar.

Por fim, para me consolar, só mesmo

as palavras de Saramago no desfecho da

obra: “Deus compreendeu que nunca

tivera, verdadeiramente no mundo que

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197

julgava ser seu, o lugar de majestade.

Humilhado, retirou-se para a eternidade”.

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Madre misericórdia

(monólogo para performance teatral)

Tenho saudades do tempo em que o

paraíso repousava em mim. Vivíamos a era

do sublime, lá, lugar em que a minha

exuberância vinha virgem e selvagem;

aborígene da eternidade. Foi quando me

personifiquei. Minha origem remonta

àqueles anos velhos e sombrios quando

injustamente paguei o preço do pecado.

Justo eu, que nasci de uma vértebra:

geração imoral, incestuosa, aberração

universal. Ah!... Como é triste ser órfã de

pai, de mãe e de infância... Carinho,

proteção e afago de colos temperados... É

que de fêmea eu sempre soube ser menina.

Depois veio a época das barbaridades.

Lá, travei grandes batalhas. Bons dias

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aqueles das sociedades matriarcais! Mas

toda minha delicadeza, doçura, e

fragilidade, sempre me fizeram tão

vulnerável. Foi aí que começou a

temporada da caça, isto mesmo, eu era

escrava, mercadoria mais valiosa do

escambo negro.

Abomino quando se questiona minha

condição ordinária, esta porção Jezebel que

jaz em mim. Pois saibam: da classe das

pessoas que se vende, eu sou a mais digna

do perdão alheio. É que os “procuradores”

do Senhor, do Criador, do Grande Macho

Universal, me relegaram ao segundo plano.

Benditos são: o Pai, o Filho e certo espírito

celestial. Está feito, excluíram-me da

magnificente santíssima trindade! Talvez

seja verdade que Ele escreve certo por

linhas tortas, e que o santo seja, quem sabe,

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uma entidade assexuada, equilibrando de tal

modo a dicotomia dos opostos. Assim como

o bem e o mal, a vida e a morte e o ser ou

não ser, que atormentam a alma dos homens

que têm que conviver, sofrer ou gozar, com

a minha parte em seu ser e vísceras.

Até nos céus, quem impera é o Astro, o

Rei! Tudo gira em torno de si, seus

interesses lácticos e interestelares. Pois em

torno de mim, geoestacionários pairam

as parafernálias humanas. E o firmamento

não seria o mesmo sem o charme que

emano como Terra, Lua e alma das estrelas

findas; distas que trasladam longos

caminhos para nutrir os corações e os olhos

dos amantes, viajantes e poetas.

Sou um artigo fausto bem definido de

luz, bondade e tudo mais que qualifique as

mais sublimes virtudes morais; também

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sopro palavras de substância: a lei, a

liberdade, a felicidade e... sinto muito,

também aquilo que mais temeis...

Sem desfaçatez! Sou eu quem gera,

quem aborta, quem sangra e sente a dor

pungitiva do ventre! É de meus seios fartos

que se provê a cria. Oh! Truculento parece

meu ser agora, não é mesmo?! Sim, por isto

doadora universal de sangue, suor e

lágrimas.

Ai!... Como tudo dói tão doce e

brutalmente em mim. Mesmo com

sofreguidão, sou calmo desejo, amor

latente, libido ardente. Por favor, chega,

chega disso, amor, espancamento. Eu não

resisto, não resisto, acabo sempre à entrega.

Ofertas cândidas ou vulgares de afeto e

sedução, vícios de amor e paixão.

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Devagar, por favor... Deixo-me levar

tão fácil por qualquer mão morna e terna a

afagar meu cangote... Devagar... para, ai...

Não, continua... Não... chega disso, depois

vem o abandono e eu ficando pra trás com

choro engasgado na glote.

Nos áureos dias de poder e nobreza, no

esplendor das ilhas gregas, fui trocada por

meninos de pele lisa, não valia para pensar

nem gozar, só para perpetuar a espécie,

condição abjeta inferior. Ah, Ah! Que berço

esplêndido este que move o mundo das

ideias varonis.

Mas eu já fui rainha do Egito. Lasciva,

dominava os homens com meu viço e

minha chispa; hipnotizava-os com astúcia

felina, mais ardilosa que minhas víboras

fiéis. Fui Hera, Deméter e Afrodite! Aliás,

tive meus momentos de crueldade,

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requintes de morbidez, minha

especialidade, como quando pedi a cabeça

do santo profeta. Eu sou a célula-mãe que

vicejou. O fértil e o fecundo, filha do mais

cálido e primitivo sussurrar latino. Assim

me fiz Félix: ditosa e propícia a tudo...

O Fémino! Que acaba enlanguescendo é

verdade. Por isso fui queimada em fogueira,

minha cruz incandescente, sina de feiticeira.

Ah! Quantas saudades de Joana, de

Anne, Olga e Jana. E tantas operárias

incandescentes, tantos espíritos

desprendidos e abnegados, vítimas da

ferocidade humana contra suas causas

nobres imbuídas de boa-venturança por

justiças de liberdade. É isso que sustenta

nosso juízo: sentido casto a perceber com

retidão aquilo que a intuição nos privilegia:

a benevolência da vontade divina, que nada

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tem a ver com as invenções promovidas

pelas aflições mundanas, fundamentalistas

na salvação por mitos de perversidade, não,

nada disso.

Hoje, ainda que garimpe e me assente

em terras firmes por aqui e por ali, ainda

devo cobrir meu rosto com trajos de falso

pudor em alguns cantos do mundo de

mentes estéreis. Às vezes, nasço e morro

sem que qualquer cavalheiro experimente a

beleza do meu semblante. Como alguém

pode julgar com antecedência algo que não

vê sorrir ou chorar e nem sequer pode

revelar a sua face? É assim que eu vou

perdendo o respeito que sustenta toda

minha graça... Santo Deus, quanto impasse.

Quanto rancor, quanto ódio a desferir por

tantas injúrias, não?! Mas não vos

inquietem aqueles que vestem a carapuça

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205

das minhas acusações de moral assassínio,

brutalidade, desdém e omissão, nem meus

reflexos que se omitem perante a força

atávica dos machos. Não, não pecarei por

revanchismo contra ninguém. Afinal, todos

somos vítimas da própria estupidez.

Como Mãe da terra e dos filhos da

terra, cansada, só necessito de trégua. Deste

jeito alço meus punhos aos céus com uma

bandeira branca. Humildemente eu peço,

suplico paz. Paz para suspirar alívio e

apreciar meu cio. Paz para gestação em ócio

de toda minha cria e atividade. Paz para

viver a quietude do bem-estar e existir, ou

apenas, enquanto haja uma réstia de chama

que faça pulsar o que se anima em mim,

simplesmente. Paz para seguir em frente.

Eu os abençôo, pois!

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Fixação

Eis um espaço-tempo de poesia,

embora eu não seja poeta, me isento. Isto é

apenas um hiato, um momento. O

encantador não existe nas letras apenas,

pois que na vida em tudo é repleta. Eu sou

só um colecionador, esmerado estafeta da

alegria e da dor. Se muito, um esteta... Ah!

Dos olhos femininos, faço predileção,

graduado em maldosos e leais, uma meta se

não. De toda magia de seus fitos, os

sorrateiros me instigam mais. Tem os

malabares aflitos de desejos que arrebatam

até os peritos em suas cruzadas sensuais.

Faço meu pupilo as mais frágeis íris

hesitantes, das que me valho dos atributos,

devolvendo-os fulminantes. Que não

passam de soslaio, frente os delas, que nos

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arrebatam de improviso, sem ensaio.

Derretem-se com viço, como serpentes

dando o bote a qualquer instante, de

repente, a seu bel prazer e serviço. Brilho,

contraste e matiz nas faces da santa ou da

meretriz, tanto faz, quando fastuosa volúpia

lhes conferem o fixar, quase venais.

Sublimes olhares que caçam suas presas aos

pares, como os caças aeroespaciais em

guerras não menos imorais. Ora tristes,

caudalosos de tanto amar, escondem o que

clamam por dentro aos gritos. Corações

partidos, de juras e promessas, iludidos, dos

maldosos que corneiam com outras córneas

numa cama limpa, num antro ou na

esbórnia. Não há ainda profissional ou

artista que cure a dor fadada aos amantes

que se perdem do encontro à primeira vista.

É a função do amor fazer-se ver e ser visto,

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Chagas das Almas

208

toda entrega mesmo no imprevisto. Então,

vê se te enxerga! Não viver de pálpebras

cerradas, revezando as pupilas pros lados,

como quem não liga pra nada. Com

desculpas de remelas e ciscos, cegos são

aqueles que não correm o risco. Os cílios

são alados como borboletas afeitas ao

pomar, feitas para fazer pouso em outro

olhar. Assim, sem piscar, pestanejar,

insisto: do fundo dos refolhos, amemos

muito, lábios nos lábios, olhos nos olhos.

Já!

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“Eternura”

O melhor da vida em qualquer tempo é

aquele louco amor que arrebata à primeira

ou última vista, quando acontece uma

espécie de simbiose que parece coisa do

destino, “coisa do diabo”; magnetismo no

olhar, grito interno de socorro parte a parte

que vem anunciar uma mudança de estação

nas almas desabitadas a fugirem da serração

que outrora furtivamente ocultavam. Nova

visão da vida com seus segredos revelados.

Quanto maravilhoso desatino! É um

momento raro de sintonia, sincronia e graça

e algumas vezes, ao mesmo tempo, é

verdade, quanta desgraça! Existe sim uma

química sensual, uma empatia extra-

sensorial, um fenômeno de pele, tempero da

derme, um cio espiritual. Não à toa então

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Chagas das Almas

210

que os dias mudam e tudo o que antes

parecia tédio, penumbra em tom cinza-

concreto, volta a ter cores vivas novamente,

como um belo prisma do mais nítido arco-

íris que fazemos brilhar sobre nosso baú de

ouro: a pessoa apaixonada, espécie de

espelho de nossa alma maculada. Isto

mesmo, único instante em que amamos

outrem mais que a nós mesmos, o próximo

e Cristo há de abençoar! O coração bate em

harmonia todos os dias enquanto dura uma

paixão. É o prazer da sutil percepção de que

se está sendo admirado, percebido, o que

rejuvenesce o espírito e dá forças para

novas aventuras. Coragens, além do

enfrentamento sem esforço dos pequenos

problemas pessoais e cacetes do cotidiano,

da rotina, da desmotivação ou

desvalorização profissional e tantas

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211

pendências, porém tudo isso passa a ser

trivial. Tem aquele do bilhete ou do flerte,

do colegial ou da euforia e festim do

carnaval, com cheiro da química do

perfume da lança misturado ao ozônio de

viúva ou espanhol, sem dor, odor sem

igual... Só clima enamorado. E o antigo, o

atual, protocolado ou informal. É um

sentimento único e pleno de pacifismo,

desejo de proteção e afago, algo que se

resume num abraço gostoso, um olhar

cúmplice de emotiva docilidade que traz

sempre um beijo além do esperado para

incendiar todo corpo que sua em meio às

chamas sexuais. As noites são de suspiros

aliviados, voltamos a dormir como crianças

quando viramos para o lado.

É o que chamamos de conquista, com

jogos perigosos de estupenda adrenalina,

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212

orgulho quando pensamos: “Como este,

jamais!” Que se pode ter tido outro ou mais

de intensos, mas nenhum deles é igual, pois

que guardam as particularidades em cada

estilo de perfil do amor selado. Damos

adeus (e é deus quem nos dá) à amarga

solidão que acossa as almas de bem. Fim da

carência de libido, de reconhecimento, de

atenção, quando nascem os elogios e

valorização das coisas mais acanhadas,

negligências e abstinências daquele

acolhimento de ombro, de colo, uma

palavra amiga. Ou simples distração que

um longo tempo impõe aos casais,

suprimindo-os de pequenas atenções de

seus detalhes, necessidades um do outro

num convívio de tão grande cumplicidade

em problemas estruturais, embora valha a

advertência, legítimas sejam as

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Chagas das Almas

213

particularidades individuais. Enfim, algo

vital a substituir todo carinho que um dia

inevitavelmente vamos perdendo dos

nossos vovôs, tios e ternos pais. Como

aquela viagem dos sonhos à Paris que

deixamos para trás pelo simples medo de

voar. Amados e amigos que se perdem no

tempo exclusivista da morte e não revemos

jamais, ao menos na mesma forma e âmago.

Se isto não é amor em sua matriz

original, isento da vulgaridade de conceitos

sociais. Se não tem algo a ver com o divino,

digam-me o que é mais?!

“O AMOR ETERNO É O AMOR

IMPOSSÍVEL.”... Essa é de Queiroz,

apenas elucido a contradição, ok?

A paixão, a verdadeira paixão, só é real

e tem este caráter ímpar por sua condição

inata de impermanência. Se não existe

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Chagas das Almas

214

aquele “algo impossível de se viver”, não é

mais “este amor”. O que sobra é o que

vemos nos relacionamentos duradouros,

outro tipo em valor, não menos legal,

sequer questionável em sua magnificente

sublimação. Contudo, não é propriedade do

supremo sentimento fugir, abster-se de sua

generosidade que, como água de farta fonte,

dar de beber a quem sinta sua sede, sem

arbitrário monopólio como se tratasse de

artigo fausto de consumo e vitrines. Por

isso, não só os preconceitos e todas as

dificuldades sociais impedem a

permanência de um amor arrebatador,

porque ele transcende rótulos e eras, de tão

nata no homem é sua condição de quimera.

Assim sendo, ele por si mesmo é efêmero e

seu penoso processo de renúncia, sua sina.

Não fosse isso o que seria dos poetas? Mas

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Chagas das Almas

215

ele não é só vossa licença, é de todos.

Desvivido, só resta a despedida, de coração

apertado e olhos caudalosos para viverem

futuros saudosos, mal desfechados, numa

existência curta demais, mesmo se em ecos

espirituais. Mas triste e infeliz de quem não

rouba ao menos uma confissão, um beijo e

um abraço, onde o sexo é secundário, vício

ordinário. Apenas algo que a ternura

calmamente espera.

Quando, por fim, cada um se perde de

vista, fica apenas uma ou outra fotografia

desbotada, uma carta de amor amarelada

naqueles teréns insondáveis, analógicos ou

digitais no baú da memória, agora de mais

reles metal, fantasias repletas de fugas,

beijos molhados e juras. Tudo pro fundo

inconsútil do não saciado, que só ajuda a

somatizar mais enfermidades. Ah! Quantas

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Chagas das Almas

216

promessas, lembranças de um tempo de

hormônios exaltados, do novo ao idoso,

bem exalados. Que reste ao menos o

consolo de um coração desapaixonado

poder confessar em segredo, ainda que em

tom de falsa sensação de ser por si mesmo

enganado: “Um dia eu amei e fui amado!”

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Chagas das Almas

217

Perdidos de vista

Olá! Como você está?! Tantos anos

que perdemos a conta! Penso em você com

muita saudade, aqueles tempos que éramos

praticamente grudados. Foi uma

oportunidade profissional ou um amor que

nos fez ir embora? Você foi para os EUA, é

isso. Estava naquele avião que caiu?! Não?

Papai e mamãe, morreram faz quase quinze

anos e, no entanto, eu não lhe vejo, sequer

tenho notícias suas há bem mais tempo.

Esquisito, não? Como está de saúde?

Engordou? É que, como meus pais, a última

imagem que tenho de você foi de quando

lhe vi pela última vez. Bem melhor, óbvio.

Quanta jovialidade! Casou e teve filhos?

Não mora mais lá é? Tem notícias do

Beltrano? Também nunca mais vi. E

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Chagas das Almas

218

Cicrana?! Morreu de enfarto aos quarenta,

sabia? Faz dois anos, justo ela,

descontraída, sacana. Lembra-se daquele

dia? Você... eu nunca ri tanto! Quanta

lealdade, cumplicidade. Qual era o nome da

sua mãe mesmo? Ela fazia uma comida.

Hum! Inesquecível. Caramba! Aquela

nossa molecagem. Estou tentando lembrar a

casa também. E qual das duas escolas? Que

memória a minha! Você não ficou com

mágoas por causa daquela nossa briguinha,

ficou? Aliás, depois eu percebi que também

estava errado. Não guardei ressentimentos

e... cheguei a lhe pedir desculpas? Pois é,

vai ver a gente um dia se encontra

novamente... Não. Parece tão difícil quanto

a loteria, mas seria magnífico. Espere aí.

Talvez sim, mas... Também poderia ser

constrangedor, não poderia? Se é que nos

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Chagas das Almas

219

reconheceríamos. Vai que um de nós

mudou muito, por fora ou por dentro, isso

pode dar vergonha, de si mesmo ou do

outro, já lhe aconteceu? Verdade, que

diferença faria? Afinal, ainda que fosse uma

agradável surpresa, nada nunca é como

antes, apenas euforia, lembranças como

cópia em preto e branco de uma gravura

de Gougan. Como o enfarte da Cicrana que

feneceu... Fulminante! Antes ela do que eu!

Ah, ah, ah... Desculpe-me. É que com o

tempo parece que essas coisas vão ficando

um pouco banais. Você é mesmo quem eu

estou pensando, não? Vai que é um dos

falsos! Se bem que, se não há convívio,

somos amigos mesmo? Podemos empregar

o verbo ser no presente? Platônicos?! Porra,

mas isso é ridículo até no amor. Voltemos

ao protocolo. Éééé... Então é isso... Meu

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Chagas das Almas

220

Deus! Será que você pode estar entre aquela

lista de desaparecidos que um dia saiu de

casa para trabalhar ou ir ao bar comprar

cigarros e nunca mais voltou? Assassinado,

foragido de si mesmo, sua vida ordinária.

Ou... Será que você já nem existe, morreu?

Ou terá sido eu? Bem, se assim for,

igualmente, que diferença faz, não é

mesmo? Se não me conhece, diga: ― Não é

daqui não. ― E eu serei cortês: ―

Desculpe, foi engano. ― Depois que nos

ramificamos raramente “nos lembramos”.

Eu aqui e você aí e guardamos na mente

inconsútil um tempo que congelamos

agradavelmente simples e fútil e nos

iludimos com um aparato inconsciente de

que a pessoa querida “sempre estará lá”,

não importa quem e o lugar, desde que

querido um dia. Mas dá uma sensação

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Chagas das Almas

221

estranha quando tão raramente como agora,

paramos para pensar, me lembro de você e

percebo que nunca mais vamos nos ver, não

dá? Afinal, como o passado, em geral, das

pessoas só percebemos as saudades, quando

sabemos que se foram. Vários nomes nos

vêm. Amigos, parentes, amores. Porém,

pensemos juntos e otimistas sobre esta vida

e sua logística que faz com que tantas

pessoas se percam de vista: Sem aquelas

derradeiras más notícias. Imagens,

lágrimas e rituais de despedida e passagem,

nossa jornada terminou da forma devida.

Não sofrer como eu sofri tanto perdendo

uma velha amiga de escola e só sabendo um

ano depois, nosso último encontro na rua,

despedida como que uma falcatrua atrevida.

Cá entre nós, seja eu quem pensa que sou,

você quem penso que é, se é que somos e

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Chagas das Almas

222

estamos, peguemos alguém de exemplo,

pronto.

Pessoas entre si tão queridas um dia.

Não é muito melhor em vez de se perder

para a morte, perder para a vida?

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Chagas das Almas

223

A uma diva no divã

Pois é... Faz alguns dias me sentia

esquisito e pedi meu velho amigo Antônio

da farmácia para tirar minha pressão. Ele

disse que não tinha esse poder e que se

tivesse, não o faria em consideração a mim,

e que então, iria medi-la. E batata! Lá

estava ela em ritmo dos embalos de sábado

à noite: dezesseis por doze! Essa coisa só

havia ocorrido uma vez, há três anos

quando estava num momento delicado da

minha vida, justificável: pressão de fora que

contamina a de dentro. Mas agora isso me

espanta porque estou vivendo um momento

de absoluta tranquilidade emocional. Desde

então, venho tentando entender esse

disparate e, de repente, me veio à luz: estou

sim vivendo uma circunstância se não

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Chagas das Almas

224

inusitada, pouco difundida, ou seja, uma

fossa sexual ou depressão se for mais

adequado. Tanto viço sem nenhuma

correspondência, não que não perceba

minha atração, mas porque aprendi não me

permitir a isto pelos conceitos infalíveis de

moralidade social. É triste constatar que

desperdiçamos o nosso melhor ciclo, mais

maduro e perito, que quer dar tanto de si

para quem quiser ardentemente. Não vou

sair por aí mendigando, passei desta fase de

vulgaridade e desrespeito com os outros e,

acima de tudo, comigo mesmo.

Descobri o fato por um sonho,

masturbação mental, porque físico não

levanta mais o astral. Uma excursão longe

de onírica. Aquele fantasma que persegue a

gente dia e noite nas horas menos entretidas

e algumas cheias também que têm como

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Chagas das Almas

225

personagem uma beldade qualquer,

subjetiva paixão, subjetiva mulher. Uns

aviões Boeing 747 da Vasp como diziam

outrora, um monumento que, às vezes,

desfila nas passarelas, as calçadas da

cidade. Ânsias lascivas não dão muita

poesia, só a vivacidade lhe constrói melhor

imagem. Antes de descrevê-lo no analista,

vou tentar desabafar no papel, divã dos não

poetas como eu.

Nosso cenário não pode ser uma cama,

nem quadrada, nem redonda, isto é lugar-

comum, inóspito aos amantes. Deve ser

qualquer canto de um escritório ou beco

escuro, e neste caso, a plataforma não

importa, corpos ardentes dispensam

conforto, futilidade e simetria.

Que comece simples, como encostar

meus lábios aos seus, carnudos e carmim,

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Chagas das Almas

226

até apertar o ritmo das pleuras fazendo

acordo nossas línguas encharcadas.

Depois, ainda cavalheiro, hei de descer

devagarzinho e apreciar aquilo que muitos

não se dão conta da delícia, o ombro que

ampara o colo em banho-maria. Até vir a

parte de maior prodigalidade em harmonia,

onde a natureza foi por demais generosa

contigo. O que vêm aos pares e deve ser

lambuzado com primazia, como sopa

quente de palmitos frescos no inverno

infernal, comido pelas bordas até chegar

ao cerne de cada um; e fazer sua dona

tremer sem medo de qualquer

consequência, nem da vermelhidão que

minha barba de lixa fará vestígios dois ou

três dias seguidos. Pouco importa se virão.

Depois, minhas mãos mornas que nunca

soube aclarar por que, descansarão em

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Chagas das Almas

227

tuas ancas, aquela parte que tu exibes com

graça entre a blusa modinha e a calça da

onda, sensuais todos os dias e que parecem

ter sido inspiradas em ti pelos grandes

estilistas, embora jamais comparáveis ao

Criador, que preparou os moldes do teu

corpo em formas de cristal. Como não iria

despertar tanta fantasia e criatividade nos

machos sedentos de amor como eu?

Tu és roliça, de pequeno porte como

uma potra puro-sangue em puberdade;

difícil é saber se resistiria passar dali aos

lábios às ínferas, explorando tuas

diversidades ainda bem mais untadas e com

aquele odor de cio a me produzir demência.

Isto tem que passar antes, é verdade, pela

veste íntima provada quando já bem

embebida do que te fiz produzir em delírios,

como que febris, misturada aos pelos não

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Chagas das Almas

228

menos, frutos da tua agitação. Aí sim,

faremos rolar a cerimônia do banquete

final onde se refestelam os corpos, o animal

que tira a veste mais íntima da presa, de

bruços, com a avidez e a pressa dos brutos.

Eu, agora cavaleiro, não perderei o maior

espetáculo varonil que é ver de cima a

garupa se estendendo, os mais belos

flancos de carne lisa e macia a se

arreganhar e pedir clemente por traspasse

do que de mim então estará esperando,

ansioso só para ti. Isto mesmo, após esta

excursão meticulosa no teu corpo, chega à

hora do homem se fazer homem e da

mulher se fazer mulher com máxima

intensidade dos seus instintos. Que Deus

nos abençoe!

A impetuosidade se misturará em dor e

prazer, e eu pegarei as rédeas do teu

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Chagas das Almas

229

cabelo para manter o controle da tua

entrega, e não largarei enquanto não te ver

gritar meu nome em súplica pedindo o

quanto mais possível. Mais ainda, quando

ver sair dos teus olhos de louca, algumas

lágrimas. Ah! Esse momento único em que

não se quer saber de mais nada, nem dos

filhos, quando drogados nos sentimos os

mais amados e magnificentes pervertidos.

Vou me regozijar quando te vir quase

desfalecida e recobrar-se com o brado

longo e sofrido no masoquismo que dá o

clímax, fim em êxtase do sublime

espetáculo marginal, o melhor diálogo da

terra, de gozos e sussurros, linguagem

universal.

Depois vem a bonança, pausa de

apaziguo, beijinhos no cangote, troca

silenciosa de delicadezas no fantástico

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Chagas das Almas

230

contra-senso, agora como crianças das

mais ingênuas. Conversa fiada; tu com a

cabeça no meu peito e eu com a minha aos

ventos. Até que a tua deslizará aos

pouquinhos, sem nem saber como ou por

que, querendo começar de novo o enredo,

quando agora quem cerrará os lábios serás

tu, sem que sequer eu sugira. Você

explorará meu corpo, meio que por vontade

do arbítrio, meio que por simples

curiosidade de sentir o meu sabor e a

sensação da minha ilha de amor sem

fronteiras, mais uma vez exclusiva ao

turismo de teu deleite. Chega a minha vez

de ser devassado e torturado. Usado

indiscriminadamente; na inteireza da

minha devolução a ti, para me fazer o que

bem entender, seja no corpo, seja na alma,

ambos ardentes de prazer.

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Chagas das Almas

231

Amanhã espero chegar à farmácia do

Antônio e ver de volta meus “doze por

oito”, se não, que meu sangue faça pacto

com a diabetes e minhas veias se danem; se

isquemiem, se derramem. Melhor morrer de

excessos de pressão por amor e libido do

que de preocupações, abandonos e

desencantos.

Acordo!

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Chagas das Almas

232

Meu amigo de Portugal

No mês de julho do ano passado tive a

grata surpresa de receber um correio

eletrônico do meu velho e querido “amigo

de Portugal”. Ele veio de férias ao Brasil e

claro, para nossa cidade natal. Escreveu o

número do seu “telemóvel” para eu ligar.

Em Portugal, onde vive faz mais de 20

anos, telefone móvel, se fala assim. Não,

não pense nada, não se disperse da leitura,

ora, pois!

Então eu liguei. Só ouvir a voz dele

depois deste tempão já foi uma emoção

especial. A gente brincou como sempre: ―

E aí você ainda tem cabelos? Aquelas

tolices que, nestes casos, parecem que

param o relógio, tempo em que convivemos

jovens com todas as boas coisas relativas:

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233

Os trotes por telefone, a primeira

namorada... Mas ele disse que ficaria

apenas mais três ou quatro dias por aqui,

por motivo de trabalho e depois pediu o

meu “telemóvel” que iria me ligar para

marcar de tomar um café lá em casa. Eu dei

o número e emendei: ― É “celular” cacete,

já esqueceu o português do Brasil cara?!

Demos mais umas boas risadas e nos

despedimos.

Era fim de semana, confesso que me

tomei de um entusiasmo sem igual.

Tínhamos trocado dois ou três e-mails

nestes quase vinte anos sem nos ver e

comecei a transformar-me de ansiedade:

arrumar a casa, pensar em “algo mais” para

o café, além de criar as fantasias repletas de

dúvidas: será que ele se casou? Ou de tão

mulherengo que era, acabou homossexual?

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234

Isso às vezes acontece, o cara enjoa, sei lá.

Bem, o que eu sei é que chegou o domingo

e nada do telefone tocar. Não tive o cuidado

de salvar seu correio eletrônico. E eu a

pensar, bem... Afinal ele tem sua família

a cá, muitos amigos, poucos dias... Na

segunda, já estava igual a uma donzela

apaixonada, meio esperançosa, meio

desiludida... Será que morreu alguém da sua

família, ora, pois?! Já na terça-feira uma

empreitada de trabalho me distraiu e ele

certamente partiu de avião para Portugal,

graças a Deus, porque se fosse dessa para

melhor ou coisa “menos pior”, contrariaria

o ditado de que “notícia ruim chega

rápido”.

Para ser sincero, eu nunca me sinto a

vontade em procurar velhos amigos, mesmo

antes desse episódio. Parece que as

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Chagas das Almas

235

impressões dos tempos idos são as que

ficam. Aí, criamos expectativas a nos

esquecer que a vida de todos nós passa por

transformações e que não só a gente, mas

todos eles amadureceram e blá, blá, blá. Daí

que me valho agora da tecnologia, um

correio eletrônico é bem menos passível de

constrangimento do que uma voz ou um

semblante. Ou talvez seja melhor mesmo

ser esquecido no adeus para sempre, que

não deixa vestígios, frustrações, falta de

assunto ou decepções peremptórias, como

uma valise velha no fundo do armário.

Não estou a falar isto com qualquer

intenção de julgar meu amigo, transferir

remorso ou outras coisas do gênero, de jeito

algum desferiria tamanha feiúra a uma

pessoa que tem vaga cativa no meu coração.

Tenho certeza que o dito cujo deve ter tido

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Chagas das Almas

236

algum imprevisto como acontece com

qualquer um.

Mesmo assim, quem sabe depois de

efetuar o check in, lá no Tom Jobim, ao

passar pelo portão de embarque, em meio às

despedidas, com duas palpadelas nos bolsos

da frente e de trás, entre parentes a amigos,

ele não pensou em meio tom um pouco para

si um pouco para eles: “Está tudo aqui?

Estou com a sensação de esqueci alguma

coisa.”

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Chagas das Almas

237

A morte de Maria Alice

Morreu Maria Alice, aos 49 anos.

Suicidou-se. O amor que sentia por

Ricardo, seu segundo marido, que a

abandonou definitivamente pedindo

separação por conta de se envolver com

uma mulher mais jovem, dilacerou seu

coração por dois anos. Ela era inteligente,

sensível e muito passional. Mas o ato de

atentar contra a própria vida, como ocorre

com todos que testemunham coisa igual,

não deixariam seus amigos e sua filha

Marina menos chocados, claro. Apenas

mais intrigados, levando-se em conta que o

"mais" é sempre o de cada um. Marina era

filha de seu primeiro casamento. Ela não

convive só com a dor da perda da mãe de

forma tão trágica e surpreendente, mas a

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238

angústia de entender essa escolha, o que

também não parece, a princípio, nada do

que uma legião de pessoas passa, daqui ao

extremo oriente. Mas há um elemento

maior. Marina tem em mente, do amor de

sua mãe pelo seu pai, um intrigante

precedente. Ela sequer conheceu seu

progenitor, daí não ser possível adjetivá-lo

melhor do que isto. Ele morreu de câncer,

poucos meses antes de seu nascimento.

Soubera que sua mãe teve um luto

desesperado, quase a perdeu na gravidez,

seu parto foi prematuro e, depois,

quarentena e lactação dificultosa. Teve até

que fazer a ligadura das tubas. Eram

lembranças latentes e mais claras, agora

para ela, as crises de sua mãe. Histerias e

depressôes assolaram sua vida por anos,

onde três podem sugerir dez quando se

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239

combina idade, lembranças e dores de

infância. Ela se lembra, na casa dos seis a

sete anos, de sua mãe na cama, encolhida,

tremendo. Mas também se recorda de que a

partir de uma época, já pré-adolescente,

antes mesmo de conhecer Ricardo, que a

mãe já havia melhorado muito, era quase

outra pessoa, ou a mesma de origem, no

caso. Até largou os medicamentos. Quando

Ricardo se casou com ela então, foi como

se nada de tão ruim tivesse acontecido em

sua vida. Marina não via Ricardo como um

padrasto, mas como um tio, um grande

amigo, uma referência. Por isso, também

sofreu muito com a separação deles,

embora fosse outro tipo de dor. Na mente

de Marina, ficam agora muitas perguntas

que seu analista trabalha com ela sem parar.

― Eu, que já estou formada, casada, não fui

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240

razão suficiente para mamãe sentir o dever

de viver? Quando pequena eu era um

propósito, mas agora não mais? Será que

era, mesmo quando bebê? Será que eu

deveria estar mais com ela no momento da

separação de Ricardo? Será? Será?

Nesse caso, é a culpa que entra em

primeiro lugar, em todas as pessoas, pois

culpar-se parece a solução inconsciente

mais cômoda para explicar tudo que

transcende à capacidade humana de

compreensão sobre os malogros da vida que

carcomem a alma. Culpar-se é explicar,

ainda que falsamente. Mas isso passa e

passou para ela também. Dado momento da

terapia, meses à frente, parece que as coisas

começaram a se elucidar, o que,

paradoxalmente faz criar o ponto

culminante da dor. É que tudo que se dá à

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luz é parto, cuja dor é inerente. Ou a dor do

ficar, condição não menos comparável, se

lembrar da sensação de desamparo pela

falta que a mãe faz em qualquer idade.

Todos nossos momentos crianças para

sempre os faz inevitavelmente órfãos algum

dia. Elas não poderiam morrer nunca, ao

menos antes de nós. Mas isto é egoísmo, o

que de pior poderíamos dar-lhes em troca.

Assim, na última sessão, ficou no ar uma

elucubração tentadora, ainda que sôfrega. É

a morte em si, a do outro ou a nossa para o

outro, carne sem vida, cérebro inerte, o que

mais atemoriza o ser humano? Ou alguns

deles, ou a perda? Qualquer perda,

sustentada pela posse e seus desejos. A

perda de uma pessoa que amamos dói mais

pelo sentimento de compaixão por ela ter

deixado a vida, ou por ter nos deixado, pelo

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Chagas das Almas

242

sofrimento, abandono, a falta e saudades

que nós vamos sentir? ― Então, mamãe

suportou perder um homem que amava para

a morte, mas não perder o outro para

vida?Foi a perda, a humilhação por ela

derivada, a derrota numa competição

desigual que a motivou de desistir

peremptoriamente?

Afinal, corroboremos com ela, o seu

pai no câncer fora mais humilhado,

terminou seus dias dependendo de quem lhe

trocasse as fraldas. Ou seria a meia idade

que por si só condena as mulheres ao

abandono pelos conceitos machistas

sociais? Na verdade que seus corpos

desabrocham lindos mais cedo, em

compensação deformam-se não menos

precocemente. O medo da solidão? Não,

Maria Alice era professora universitária,

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Chagas das Almas

243

amava a profissão, tinha muitos amigos.

Assim, Marina punha em jogo até o amor

que sente por seu marido e o que ele diz

sentir por ela. “Existe amor de verdade no

coração dos homens? Será este amor pelo

outro, sensual, fraternal, de compaixão, que

seja, maior do que o amor próprio? E tudo

no fim não se resume em dependência?” O

lote inclina-se para a afirmação hesitante de

que até a auto piedade, quando alguém grita

internamente, demonstrando que sua auto-

estima está abaixo de zero, é pura

supervalorização de si mesmo e o amor

incondicional que sente pela própria

personalidade. Tais ideias vão brotando em

Marina com sentimento de dó, mas com

certa pitada de ressentimento por sua mãe,

processo comum, outra reação trivial em

perdas de tal dano e modalidade. A sua

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Chagas das Almas

244

religião e crença em Deus, que está dentro

de um padrão normal, quer dizer, pessoal

não praticante, nunca satisfez as perdas

menores em sua vida, não seria esta, a

maior até agora, de sua mãe, ainda recente,

que a confortaria. E da forma que foi,

principalmente, não haveria desígnios

divinos que lhe promoveriam a cura da

alma, fissura em sangria. Por fim, até

quando permanecerá este luto confuso em

seu coração, no todo de seu ser em tamanha

aflição? Para piorar, ela não deixou carta,

nem sequer um bilhete e ingeriu

barbitúricos em sua própria casa sozinha e

ainda tendo o cuidado de tentar arrumar as

coisas, quer dizer, se desfazer de tudo. Os

teréns que fazem um episódio à parte de

sofrimento para quem assume a árdua

incumbência. Mais ainda, deixou todas as

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Chagas das Almas

245

providências de seu crematório, tomadas e

pagas. Houve frieza, parece, consciência.

Embora este ato solitário, ninguém jamais

pode saber o que de fato passa nos

neurônios incandescentes dos moribundos

de alma.

Elas são uma ficção, mas estão

encarnadas na realidade, onde há vítimas ou

candidatos em potencial na curva estéril da

existência infestada. Uns que levam a vida

sedentária, fumam, bebem, devoram fast-

food poliinsaturados, gosmam o corpo,

matam-se aos poucos e sequer enchem as

cabeças dos familiares como as de Marina.

Apenas porque sua mãe fê-lo à vista, o que

eles, os compulsivos, fazem a prazo e que

ao menos a mim, o autor desta história, não

enganam. Que engolem e mascaram

tristezas de perdas de amores e danos

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246

gerais, de morte, de insatisfações pessoais

nada muito diferentes de Alice. Pois que

apenas há um liame tênue do imponderável

onde só um cretino, ainda que se diga douto

e se ampare em teorias, livros e postulados

acadêmicos, ousaria cometer a infâmia de

julgar. Não posso explicar onde os fios se

embaraçam em infinitos e insondáveis

mistérios da vida. Não fosse nada o

empecilho a encerrar este enredo de forma

agonizante, ao revelar como dói o

irrevogável, o não consubstancial em Deus

e o lado cruel de se sentir amor ou acreditar

que ele exista tal como o vemos, tão

vulgarmente, incluído na dualidade

mundana do pensamento: o bem e o mal

que assombram o mundo, como fantasmas

que em nada se diferem de toda nossa

estúpida forma de viver na abstração. Que a

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Chagas das Almas

247

mamãe descanse em paz, sem evolução,

hierarquia, princípios éticos, convívios,

incluindo também tudo de mais formoso e

belo que é a vida em seu potencial. Apenas

paz que pressupõe vácuo, que por si só é

ausência de dor. Logo, alguma coisa, o

substrato da vida, o côncavo, que cria

espaço para o trago do destilado que

acalanta goela abaixo ou o chá de

manufatura indiana, seu sabor e aroma na

mais legítima porcelana chinesa. Nada,

contudo, que atenue o dó que sinto de

Maria Alice e Marina, que são a

representação do meu eu e o da maioria das

pessoas do mundo, hediondo coliseu.

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Chagas das Almas

248

O Balanço

Mãe é quem pari ou quem cria

rebentos, seus ou alheios. Filhos da

engendra do próprio ventre ou de quem

gera aos quaro ventos, como ratos, sem

perceber, em esgotos e lixões, encaixotados

em qualquer alvorecer. Filhos de berços

esplendidos, de grutas obscuras ou filhos da

puta.

Por atos de prazeres inconsúteis pela

excitação no sexo que se é escravo e um

desejo inconsciente de também perpetuar a

espécie... O ser humano faz uso do

imaginário de consumo para incutir que há

beleza no que não passa de mais um

sacrifício animal, engravidar, mero fato

social, como urinar ou respirar.

Page 250: CHAGAS CRÔNICAS DAS ALMAS

Chagas das Almas

249

Vale lembrar que um embrião é tido

pelo organismo como uma coisa abjeta e dá

vômitos às mulheres pedindo a expulsão

daquilo. Depois desta fase acostumada,

pesa uma barriga que por nove meses faz

estragos, das vértebras aos dentes, além de

tirar a graça das moças que as têm como

dádiva, magnífico presente. Os seios caem,

posto que cai um ser nos braços da Eva

como se de uma nave, de pára-quedas.

Até que vem o ato de dar à luz, com

dor pungitiva do ventre, algo que parece o

Javé bíblico gritado de prazer a seu bel

estado de ser em alma vingativa do alto da

babel: “Eis sua desgraça por colocar mais

um no meu inferno, ó Mulher Jezebel!”

O leite a natureza dá, às vezes em

pedra, mas dá. A generosidade desta Mãe

maior é a pitada doce e bela nisso tudo. Mas

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Chagas das Almas

250

as mamas racham, sangram e suas

condições de brotos em flor murcham em

favor do quanto sugam sua seiva, do filho,

sua fome e fervor, além das leis de Newton,

mais horror.

Com a voracidade de um feto mais

farto e abençoado, sorte dos que têm tudo

no lugar, vem como previsto e todo mundo

há de dizer: “que lindo!” sobre algo que se

supervaloriza como se distinguíssemos cada

pedra cinza e disforme das muralhas da

China, antes que um escultor supostamente

lhe dê beleza real, forma e cor.

Junto ao sacrifício lácteo, tem muitas

fezes para limpar, farta perfumaria em

noites de um mal dormido sem luar e berros

formidáveis aos ouvidos. Quanto mal estar.

Em suas mãos ou berços, bebês ninados em

balanço, no embalo, tentativa de

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Chagas das Almas

251

merecimento deles de um pouco de

descanso.

Por isso o puerpério é um período em

que muitas mães desejam abrir mão desta

majestade. Artimanha do inconsciente

feminino descontente em seus hormônios

discrepantes e incandescentes que sentem

medo, em tão tenra idade, de tomar posse e

ser a rainha deste império. Conflito

esquisito que surge se assim se é mulher...

Por inteiro ou pela metade? Confronto cruel

entre a maternidade e coisas individuais de

sua vaidade. Dilema de solidão, como se a

mente fechasse para balanço. Como se cria

isto? Não vem com manuais! Queremos ser

mais que animais!

Diz-se que ser mãe é padecer no

paraíso. Somando-se a preocupação para o

resto da vida, onde um quarentão será

Page 253: CHAGAS CRÔNICAS DAS ALMAS

Chagas das Almas

252

sempre o "meu menino", com tudo isso,

difícil é imaginar o que seria padecer fora

dele... é de se merecer a ISO do inferno!

Mas ser mãe é também ser inevitavelmente

cruel sem intenção, da racionalidade nos

bípedes humanos, quase que uma

imposição.

Passado isto, falando do lado da cunha

que, aliás, elas também são ou foram um

dia. O rumo das almas do porvir, a que

desígnios servirão? Dignas de elogio ou

alcunha? Bem, felizes daqueles que tem um

regaço materno imanente de calor,

aconchegantes mãos mornas a lhes embalar

nos braços, com requinte do mais puro e

incondicional amor. É a mulher em seu

maior ato de heroísmo!

Porém, elas morrem como qualquer

existência de ávidos sentidos, manifesto que

Page 254: CHAGAS CRÔNICAS DAS ALMAS

Chagas das Almas

253

pulsa. É aquele momento em que cada filho

desejaria até que a ordem natural das coisas

entrasse junto a todo o enredo enfadonho de

parir e ser parido, existir e ter existido. Do

moço ou senhor, homens e mulheres,

maduros e imberbes o momento maldito,

para sempre um vácuo profundo a falta dela

deixa na gente... Que nem o papai dá jeito...

Que as coisas dele têm o seu universo

próprio a ser descrito, não menos

imperfeito.

Falta de um alivio no cansaço do corpo

e alma em exaustão, da atitude não tomada

que fez se perder o bem almejado, alvo de

algo oportuno ou amado, melhores

intenções imbuídas, mas abafadas em

tomadas mal decididas... Ah! Que bom

nestas horas é poder repousar a cabeça

naquele ombro e chorar em alto e bom som,

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Chagas das Almas

254

sem receio de ser o que se está sendo, mau

ou bom. A porta fechada, no cantinho da

cama. Na sua cabeceira sentindo no

máximo as pontas de seus cabelos

casquinando no rosto ombro adentro.

Apenas naquele sereno e implícito “eu te

entendo”... Sem complicação e sentenças, -

que acalanto de mãe é silêncio e presença.

Pois que sempre há dias e instantes em

que nada nem ninguém, melhores parentes,

amigos ou amantes substitui a falta do colo

e do calor materno que não mais se tem

como antes... Burro-velhos, cheios de bons

orgulhos e maus ranços, tantas vezes nos

sentimos cada qual um órfão infante, tal

como uma criança numa praça vazia, fria e

sem encanto, solitária, brincando em seu

balanço.

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Chagas das Almas

255

Três destinos

Antônio e Marta, há 20 anos passados,

num lugar que só pode ser segredo:

― Oi amor! ― diz Marta.

― Estava ansioso por te ver querida!

― Emenda Antônio.

― Vamos sair daqui querido, alguém

pode nos ver!

― Espere... Saiba Marta. Eu estou

muito esperançoso no concurso da

Petrobras.

Beijam-se por longo tempo e ele continua:

― Eu te amo muito, não quero te

perder.

― Eu também, mas não dá... Você está

noivo e...

― Então, espere as coisas se acertarem

e quando eu receber o meu primeiro salário,

Page 257: CHAGAS CRÔNICAS DAS ALMAS

Chagas das Almas

256

largo ela e ficamos juntos. Podemos fugir,

compro passagens para bem longe. Toca o

celular dele, é a sua noiva ligando para falar

do enxoval. Ele diz que está tomando um

chope com seu amigo Fred. Desliga e

emenda: ― Eu tenho que ir, te ligo amanhã

querida.

― Está vendo? Eu não suporto mais

isto Toni. Vamos terminar aqui, é melhor

eu seguir o conselho da Elaine. ― Fala

Marta com lágrimas nos olhos.

― Mas querida?!

― Saiba, eu te amo e te amarei para

sempre, mas... Não sei... Não dá mais.

E ela sai às pressas.

Antônio e Fred, hoje na esquina da Casa

D’Ângelo:

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Chagas das Almas

257

― E aí amigo, há quantos anos! ― Diz

Antônio.

― Meu Deus! Toni... Como vai você

cara?!

― Tudo indo.

― Que beleza!

― Então Toni, não me vai dizer que

casou com a Martinha, que aquele grande

amor da faculdade vingou?!

― Não, não... Que isto... Diga-me, e

você se casou?

― Ainda não, continuo aquele

mulherengo. O que é que você está fazendo

da vida?

― Trabalho no ramo de cartões de

crédito, não está dando para reclamar não...

― Entendi. ― Esta resposta de Fred

foi adequada à própria sentença de Toni,

que mostrou que está no osso certamente.

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Chagas das Almas

258

― Eu ainda estou na Vale, você sabe...

Estabilidade...

― Claro. Pô, eu tenho que ir Fred... A

gente tem que se encontrar com mais calma

para se lembrar dos velhos tempos e colocar

o papo em dia, né?

― Sem dúvida! Anote meus

telefones...

Pediram guardanapos ao garçom,

trocaram números e endereços eletrônicos.

Aqueles fantasmas que quase sempre

pegamos borrados e ilegíveis quando a

roupa do encontro chega da lavanderia,

numa sensação ao mesmo tempo de culpa e

de alívio.

Marta e Elaine, um mês depois do

encontro de Fred e Antônio, por ironia do

Page 260: CHAGAS CRÔNICAS DAS ALMAS

Chagas das Almas

259

destino, na mesma esquina em frente à Casa

D’Ângelo.

― Amiiiga! ― Diz Marta, efusiva.

― Maaartinha Querida! ― Se abraçam

balançando os corpos como gangorra:

― Como vai você?

― Tudo indo...

― Pois é Martinha, eu perdi a mamãe

faz uma semana...

― Ah! A dona Sílvia! Ela fazia o

melhor pudim de leite que eu já comi.

― É... É a vida... E você?

― Eu estou me separando Elaine.

― Nooossa! Mas você ainda é nova,

aliás, não mudou nada! ― O tom desta

exclamação tem dois sentidos: serve tanto

para o caso dela ter deliberadamente

largado o marido, quanto para o caso de ter

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Chagas das Almas

260

levado um pé no traseiro. Continua a

Elaine:

― Então Marta, eu agora estou de

licença prêmio na prefeitura, quero pensar

um pouco em mim. E o Fred, o Toni, tem

notícias deles?

― Não, nunca mais os vi.

― Também não. Andei procurando

vocês no Face, mas não acho ninguém...

Aliás, você era louca pelo Fred lembra?

― Hein? Ah! Isto é coisa do passado,

besteirinhas da juventude, você sabe. E o

Carlos Alberto, não é este o nome do seu

filho?

― É, ele se formou, está casado e

trabalhando em Rorâima, acredita?!

― Veja você! Elaine... Estou com

pressa, vou levar o papai ao médico! Me dá

seu e-mail?

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Chagas das Almas

261

― Claro Marta!

Por fim cada uma passou seu e-mail

para outra que certamente só renderá uma

mensagem e uma resposta, se muito, porque

na casa dos quarenta não se tem mais

novidades: novos filhos que nascem, novas

oportunidades de emprego, novos amores.

Assim, cada uma vai para uma direção da

avenida, pensando saudosamente nos

tempos idos e cada defeito que viram uma

na outra como obra da perversidade do

tempo e da competição feminina. Elaine

logo se distrai ao ver um belo vestido na

vitrine de uma loja. E Marta dispersa

pensando intrigada:

“Afinal, o certo é Rorâima ou

Roráima?”

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Chagas das Almas

262

Um dia um Ipê

Despertei em plena aurora num

amanhecer de mais um dia qualquer. Vi a

sala avermelhada. Curioso, fui à janela.

Minha janela é uma exposição de quadros,

tipo estas porcarias modernistas. Natureza

morta, exceto um ângulo à direita que com

certa dificuldade me acomodo para ver,

entre dois blocos de concreto, um hiato de

natureza com montanhas lá no fundo, bem

longe. É de lá que o sol nasce para mim. Foi

então de onde a sua luz ofuscou meus olhos

com aquela chegada especial e vigorosa em

seus tons ultravioletas irradiantes. Corri

para achar um filme velho de máquina

fotográfica. Percebendo que isso não existe

mais, peguei meu último raio-X de pulmão,

delator de um fumante, que ficava guardado

Page 264: CHAGAS CRÔNICAS DAS ALMAS

Chagas das Almas

263

perto do sofá numa estante. Voltei ao canto

incômodo para refazer uma brincadeira de

criança. Ver o sol no seu formato original

em relação à distancia da Terra. Coloquei a

chapa sobre meus olhos, ergui a cabeça e lá

estava o astro rei, meu deus que sustém

minha vida e posso arcar com o ônus da

prova.

See see the sun. Reproduzi a capa deste

disco progressivo do Kayak. Acompanhe

comigo, pois não resisti e liguei o

computador para ouvir a canção tema do LP

e trilha desta manhã. Fiquei a lembrar sobre

como as coisas são efêmeras e me veio à

mente a casa velha anterior onde tinha só

para mim um ipê amarelo no jardim. Pensei

na frase que escrevi sobre o quanto de

aparato há para o prazer de um mero

instante. Parece que o orgasmo rege esta

Page 265: CHAGAS CRÔNICAS DAS ALMAS

Chagas das Almas

264

orquestra, mas é assim no saborear um

prato predileto, em quinze minutos

acabamos com algo que alguém na cozinha

levou duas a três horas para preparar com

muito amor.

Descobri sozinho que um ipê vive o

ano todo seco, esquecido, a ponto de eu

nem saber do que se tratava, se mais um

limoeiro ou pé de jabuticaba, tamanha

ignorância em relação à história da minha

ancestralidade. Até que outro dia, em mais

um despertar de meu corpo, cujo relógio

biológico já ficou biruta faz tempo, me

deparei com algo que me fez pensar estar

ainda na cama, sonhando. A tal árvore se

revelara inteiramente florida em amarelo na

minha janela, como um quadro de Maxfield

Parrish. Me emocionei com tamanha beleza

daquele ipê. Uma das coisas mais lindas

Page 266: CHAGAS CRÔNICAS DAS ALMAS

Chagas das Almas

265

que contemplava na vida e entendi o

porquê. Me sentia um príncipe na sacada da

varanda do segundo andar da casa. Foram

dois dias que acompanhei aquilo, porque no

final do segundo, já percebia que as flores

secavam e caiam. Ele era como as

borboletas, pensei com ar de botânico. Dois

dias de esplendor por ano, contra o resto de

reclusão, suplicio ante as secas e todas as

intempéries das estações. Jesus aprendeu o

sacrifício com a natureza. E a teoria da

evolução mostra quão árdua é a

sobrevivência. Enquanto os pinguins e as

águias entregam suas almas e entranhas,

nós humanos, lastimamos por tudo. Eu sou

um belo exemplar da espécie, admito.

Compreendi um pouco a ordem natural

das coisas simples esquecidas. O que

importa é a qualidade e não a quantidade.

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Chagas das Almas

266

Que o que é belo e poético deve ser breve,

passageiro, do rosto bonito à melodia

principal, a cena especial, para não ser

vulgar e fazer assim os objetos fins, os seres

animados que desfrutam, se distraírem.

Porém, por seus ávidos sentidos, os homens

logo enjoam e desvalorizam suas graças

recebidas e por isso se fartam e usurpam

tudo de bom da vida. Resumindo este

barato: são aqueles momentos raros em que

sentimos um arrepio das ínferas aos pelos

dos braços. Eu senti isso no

deslumbramento do ipê e como sempre

acontece com esta canção e elepê.

Portanto, o sol nasce todo o dia, aqui

meio que quadrado em meu amanhecer.

Mas atento, agora com uma atenção

astronômica, verifico que sua órbita leva

poucos minutos por trás das montanhas a

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Chagas das Almas

267

sair e produzir seu brilho maior, o resto é

trabalho e suor a semear e nortear a Terra,

sua causa maior. Não seria eu a pleitear a

longevidade, a eternidade... Se no que

consideramos breve existência, - e não faz

sentido sê-la? - em curtos instantes, puder

raiar um pouquinho aos olhos dos que

esperam algo de mim, terei feito minha

parte e me tornado uníssono a todas as

coisas tais como são, membro integrante

com a inteireza das minhas células e

membranas, contribuindo com a imensidão.

Ao contrário da sociedade e suas

artimanhas de ilusão, entendo neste

momento que sou parte disso e a mim não

cabe ser o centro pelo qual algo deva girar

em torno. Coadjuvante, não sou a estrela

deste magnífico espetáculo, sobra me

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Chagas das Almas

268

orgulhar muito de ser parte integrante do

estafe.

Terminou a canção, certo? Fui à

cozinha passar um café. Com o resto desse

espírito, o coar lento e irritante se fez

tolerante, da demora valia a xícara

apreciada em curtos goles daquilo

frasquinho junto ao aroma, cara das

manhãs. Definitivamente de pé, o sol já não

entra mais. A janela parece se reduzir a uma

quadrada, vedada e blindada de avião.

Vejo-me diante da tal exposição, aqueles

quadros cinza do concretismo. Estou no que

é mais certo chamar de recinto, a mesmice

dos dias condenados, falando do apê, por

fim me fazendo de pedreiro. Quem sabe me

enforcar com meu cinto?! Ah, ah! Melhor,

tomar absinto...! Neste vernissage sofrível,

desta feita me ressinto, pois parte de seus

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Chagas das Almas

269

curadores é o como me sinto. Não, isso não

é possível, minto! Não sou capaz de curar

dores... E isso dá uma sensação dos

horrores...

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Chagas das Almas

270

Resumo da Ópera humana

“Sempre aqueles que dizem de

antemão que lutam em nome de Deus são

as pessoas menos pacíficas do mundo:

como crêem que recebem mensagens

celestiais, têm os ouvidos surdos para

qualquer palavra de humanidade”. (Stefan

Zweig)

E sempre o fora, antes e depois da

vinda de seu Mártir... Então, enquanto não

retorne o Messias; os discos voadores não

desabrocham aos olhos dos seus céticos; os

espíritos não cumprem sua eterna e

agonizante missão carmática; qualquer

operação de um “cavalo de Tróia” não leve

os homens de volta ao passado para

corrigirem seus erros ou viverem seus

mundos lunáticos; e os filósofos prossigam

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Chagas das Almas

271

sua peregrinação sem fim, que tal

substituirmos tantos dilemas e todo este

investimento de espírito em questões

duvidosas, pela cura das doenças malditas,

na recuperação das matas virgens ou das

baías submersas no asco das latrinas

humanas e nos óleos derramados por navios

mercantes? E a camada de ozônio que

derrete nossas calotas polares, o eixo da

terra que retira gradativamente segundos

dos nossos dias já tão fugazes? Para que se

refugiar na ingenuidade perigosa sobre a

curiosidade por tudo que se diz sobrenatural

ou relativo a um passado inútil de

consciências mórbidas? Que afinal não

mata e nem esfola, mas afeta o caráter e

atrasa a evolução da alma. Enche o bolso de

líderes e oportunistas, mercenários

inescrupulosos de seitas, de pérolas, de

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Chagas das Almas

272

indústrias cinematográficas, do lazer e

editoriais, além de cartéis farmacêuticos e

petrolíferos que fazem escravos e cobaias,

parte da miséria alheia.

A lua um dia já foi sobrenatural, o “Calígula

de Camus” ansiou por ela no auge da

angústia dos seus limites de poder. Hoje a

conhecemos de cor e sabemos bem que ela

não tem nada que supere a realidade além de

uma beleza ímpar, ao contrário do que

pensavam em grunhidos aqueles pré-

históricos patéticos. Este “Uno” de Platão,

Espinosa ou Einstein é privilégio do

conhecimento deles que são minoria no

mundo. O gênio de cabeleira e língua

esbugalhada virara um clichê que ofuscaram

muitos outros de sua estirpe. Que a filosofia

se atenha as questões racionais porque afinal,

o próprio Sócrates, espécie de pai, descobriu

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Chagas das Almas

273

que “nada sabia” como todo cidadão

ordinário. E a maioria dos seus sucessores

que se verteram para o romantismo inútil,

experimentou frustrações inimagináveis,

alguns inclusive entregando suas vidas na

alta mocidade com tola pureza d’alma. A

fome e a miséria no mundo nos levam a

dispensar urgentemente o supérfluo! Aliás, a

natureza em si não produz supérfluos e muito

menos é redundante em quaisquer de suas

manifestações. Só devemos aceitar como

verdade o que um número expressivo de

espectadores experimentarem, com os

devidos ônus das provas. Devemos aprender

com a lenda de Tomé que nos deu antes de

tudo, uma grande lição de humildade. Deste

modo o que a gente vê pode provar, é a

miséria e a fome ao contrário dos discos

voadores e vídeo tape do passado, sonho

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Chagas das Almas

274

maior do homem de uma engenhoca

matadora de saudades. As favas com os

prosélitos e sectários, Papas Pios, Dalais e

Aiatolás! Vida depois da morte só interessa

para os mortos que vivem nela, ainda que

tudo se resuma a nada, anestesia eterna e

geral! Aqui no Inferno humano, no dantesco,

o que pesa mesmo é morte prematura: de

homens, mulheres, crianças, animais em

extinção e toda e qualquer forma estupenda

de vida animada, danem-se por quem! Por

isso chega de cultos, mitologias, orações,

meditações e rituais! O que importa é “mãos

a obra” com amor a tiracolo e compaixão de

dar a esmo... o resto pouco importa, deve

esperar até que o ser humano recupere sua

maturidade, senso de integridade. Fácil sim é

temer a Deus como o povo alemão temia o

Reich. Melhor é acreditar no juízo final e

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Chagas das Almas

275

aguardar a salvação que se compra em

prestações mensais como planos de saúde e

funerais. Afinal, se o mundo está para acabar,

que importa os novos degelos glaciais? Que

importa a miséria africana? Alerto, pois, os

individualistas e artificiosos... Talvez, ao soar

das trombetas vocês tenham uma surpresa

aterrorizante, pesadelos com camelos

adentrando em sangria, buracos farpados de

agulhas celestiais. Somos todos Deus

herdados, e só!

Por enquanto, todo este embuste como

entretenimento, tudo bem, vai...! Como a

vasta literatura de ficção, contos de fadas e

carochinhas ou até mesmo estas minhas

vaidosas e dispensáveis quimeras no caos.

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Chagas das Almas

276

Contornos baldios

Na flor da idade, casas dos vinte,

depois de viverem alucinante paixão,

Marcos e Andréa deram cabo do casamento

em menos de um ano. Ao nono

mês Andréa pediu o divórcio. Ela era filha

única, muito regulada pelos pais. Então,

estava confusa. Sentiu na vida conjugal

uma liberdade que nunca havia

experimentado, isenta da tutela deles. Por

mais que amasse Marcos, passou a ver o

compromisso matrimonial como empecilho

para fazer uma porção de coisas que

faltaram na sua fase de solteira como sair

para festas, relações com amigos e, embora

esta ideia a culpasse terrivelmente, até

mesmo ter mais experiências com homens

diferentes. Também pensava que uma

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Chagas das Almas

277

gravidez interferiria nos planos

profissionais, com o sonho de cursar a

faculdade de artes plásticas. A sociedade

chama isto de casar para abrir caminho, mas

julga como sendo ato premeditado, o que

pode ser injusto e arriscado em muitos dos

casos, como o de Andréa, por exemplo.

Marcos custou a se recuperar do baque,

deu graças a Deus de não terem filhos, que

seria um golpe ainda mais difícil de

suportar, passar por todas aquelas

intransigências e burocracias do processo,

quando o filho é tido como um objeto de

posse disputado em litígio. Contudo, mais

experiente, passados alguns meses ele já

estava se casando novamente. Era do tipo

que não conseguia ficar sozinho muito

tempo.

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Chagas das Almas

278

Andréa passou a curtir a vida. Fez uma

viagem aos EUA, matando o sonho de

andar de avião, frequentou as noitadas, teve

relações sexuais e tudo mais que permeia a

alma de uma juventude liberta. No entanto,

seu coração era frágil, depois de dois anos

nessa rotina de solteira, emplacou em mais

dois relacionamentos sérios que juntos não

passaram de cinco anos. Em ambos os casos

a causa da ruptura foi a traição de seus

amantes. Até que por insistência dos pais,

dos quais nunca deixou definitivamente de

sofrer beata autoridade, acabou por casar

com um homem bem mais velho, sem

amor. Era o filho de um grande amigo de

família. Em pretexto de melhor reflexão,

esta coação foi gerada pela necessidade

cultural que as mulheres têm de ter filhos

com todos seus rituais. Como não se

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Chagas das Almas

279

recomenda fazê-lo depois dos trinta, seria

um peso doloroso para Andréa não dar

netos a seus pais.

Antes de toda essa engendra, ela

apelou para o Marcos meio que por ato do

inconsciente. Descobriu o endereço do seu

escritório e certo dia, quando ele saia,

abordou-o como se fosse um encontro

casual. A diferença é que ela alongou a

conversa deixando claros a sua

disponibilidade e o telefone “para qualquer

coisa”.

O tempo perverso em sua relação de

“fases insignificantes da vida” não

sustentou suas precárias intenções. Marcos

ainda estava naquele momento do

casamento que, se não está mais numa lua

de mel, ainda há entusiasmo... Nem que a

custa de alguns tragos rotineiros com os

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Chagas das Almas

280

amigos para afastar o tédio ou, quem sabe,

umas puladas da cerca para simples

afirmação de sua virilidade, condição

patética do sexo masculino.

Embora a cidade em que viviam não

fosse das maiores, os compromissos de

Marcos com sua empresa de informática e a

rotina de Andréa no cuidado de um lar, já

com três filhos, não possibilitavam a eles se

cruzarem muito pelas ruas e pontos sociais.

Isso acontecia uma vez por ano, se muito.

Mesmo assim, nesse caso, como prova de

uma postura muito elegante e tão rara entre

casais separados, se cumprimentavam e se

falavam com interesse e dignidade, o

suficiente para provocar ciúmes tolos em

seus novos parceiros. É provável que para

eles, um divórcio deva ser uma declaração

de combate, preferencialmente com

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Chagas das Almas

281

bastante reivindicações de direito

mesquinhos, e por parte das mulheres,

rejeição doentia aos enteados.

Passou-se mais de vinte e cinco anos

dessa vidinha. Até que Marcos, então na

casa dos cinquenta, se apaixonou por uma

de suas estagiárias, de vinte. Miriam era o

nome dela, que proporcionava a Marcos

uma recíproca paixão entusiástica, típica

deste estágio onde a euforia confere

efêmero caráter às previsões mais otimistas.

Em um ano sua vida estava do avesso.

Separado da esposa e morando

num flat com a Miriam, se sentia

revigorado, como se rejuvenescesse dez

anos, apesar dos negócios terem caído

bastante em função dos caprichos da nova

parelha.

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Chagas das Almas

282

Dez anos mais tarde, Andréa não havia

mudado de vida a ponto de fazer jus gastar

pena de qualquer escritor, se não no sentido

de dó, principalmente sobre seus sonhos em

direção às artes que a fizeram largar a

universidade e não passar de uma exímia

bordadeira. E Marcos foi mordido pela

cobra que generosamente anunciara o bote,

mas que ele estava surdo para ouvir. Levou

um fora da Miriam no segundo ano de

relacionamento e voltou para a ex-mulher,

aquela cujo nome nunca importa, tamanha

vítima que é da sociedade machista. A

mesma mulher que, depois de dez a vinte

anos de matrimônio, desaprende a ser

indivíduo para virar contrapeso social. Vive

de pensão, das alegrias alheias, sucesso dos

filhos, lembrança do corpinho do passado e

esperando, como última esperança, ter seu

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Chagas das Almas

283

marido de volta para viverem a reincidência

do “faz de contas que somos felizes”. Mas

incrível, foi isso mesmo que aconteceu.

Marcos não se abateu tanto com o fora

da Miriam, nem pelo fato dela tê-lo trocado

por um rapaz com a metade da sua idade.

Certa vez ele confessou para um amigo: ―

Isto era de se esperar, as pessoas são muito

previsíveis. Além disso, foi melhor para

mim também, afinal de contas, mais alguns

anos, tudo cairia em rotina. Veria seu corpo

como vejo meu carro na garagem, não é

mais novidade; começaria a peidar a

vontade na frente dela e ela usaria a privada

de porta aberta... Ah! Às vezes, eu tenho

uma puta saudade da minha primeira

mulher! ― completou melancólico.

Os dois chagavam à casa dos sessenta e

tantos. Primeiro Marcos, dois anos

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Chagas das Almas

284

depois Andréa. Pareciam estar em paridade

no que se refere aos ideais humanos de

vida. Financeiramente bem resolvidos, cada

um com seus filhos bem encaminhados e,

claro, cada qual com casamento estável.

Naquelas poucas vezes em que se

encontravam, mantinham aquela

cordialidade. Agora com mais frequência,

pois têm em comum frequentar clínicas,

consultórios médicos e locais de terapia ou

temor no que se chama ironicamente de

melhor idade. A amizade ganhou mais

colorido em suaves tons pastel, findo os

quentes. Como um voo para as Bahamas,

calmo e tranquilo, sem nenhuma adrenalina.

Havia a liberdade de poderem estar sem

seus respectivos cônjuges, já que a saúde de

ambos ainda não necessitava de amparo

físico ou psicológico a virar estorvo dos

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Chagas das Almas

285

parentes. Com a sabedoria e a segurança

que só a vetustez imprime maior

honestidade, se é que há, suas migalhas de

encontros começaram a ficar mais

desprendidas, a ponto de poderem

conversar sobre amenidades, incluindo

histórias em preto e branco sem nenhum

constrangimento.

Certo dia, num breve café após o

horário de RPG, cada um confessou para o

outro sobre a comodidade de seus

casamentos, enaltecendo o enorme apreço

que tinham por seus esposos, embora as

entrelinhas delatassem claro, que não eram

plenamente realizados no amor.

― Pois é. ― disse Andréa ― Depois

de nossa separação eu... ― Proferiu um

rápido resumo desta história de brilho

fosco. Em seguida Marcos emendou: ―

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Chagas das Almas

286

É... E eu... ― Fez ele a resenha da sua não

menos turva.

De repente, ao fim do diálogo

renitente, fez-se um silêncio longo e

cáustico. Houve um fito mútuo e lacônico.

A cognição de ambos projetou uma imagem

similar, clara e conformada, mas também de

grande consternação. Tantas aventuras,

tantas buscas... Contornos baldios. Cada um

tinha, diante de si, a única pessoa que um

dia verdadeiramente amou. “Para que levar

tudo tão a sério? Correr tanto, buscar

tanto?” Cada cabeça pensou não

necessariamente nesta ordem ou desordem

das coisas, repletos de inúteis talvez, se e

ou.

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Chagas das Almas

287

Recordar

Recordar não é viver, é recriar, logo,

do ditado “quem conta um conto aumenta

um ponto", faz-se valer um bocado!

Recordar é recrear, felicidade sem

sofrer, pelas dores entender, valendo sim,

por que não e sem culpa até um leve

lacrimejar ao anoitecer? Sem chatear os

outros com nossa exegese (!), viajar mesmo

na maionese.

Recordar é pousar em terras copiosas,

porto seguro, quintal ou pátio de outrora,

tocando o sino da memória e colocando

“nossas crianças e jovens” pra fora, em

mentes acesas ou ociosas, a toda e qualquer

hora.

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Chagas das Almas

288

Recordar é tudo isso ao nosso bel

prazer e, do súdito ao xeique, a sós ou em

companhia dos mais chegados, poder tecer

na vida nosso remake, de "curtas ou longas

metragens”, dos melhores momentos

vividos, todos seus babados.

Recordar é também esquecer e ser

esquecido, de todo rosto ou apelido, coisas

de neurônios, liga não, isso não nos faz

mais ou menos queridos. O importante é o

amor do todo e não do nosso ego indivíduo.

Não recordar é maldade com o "mim"

ou "consigo", que saudade não se mata, se

faz alvorecer!

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Chagas das Almas

289

Daquilo que aprendemos e afinal é o

que tentamos passar aos nossos filhos e

netos. Arduamente fazê-los compreender o

que para nós já fora um conflito...

Que apesar dos pesares, ainda que

nunca plena...

Ah! A vida sempre valeu a pena!

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290

Chagas das almas

...Roney, Ana, Sônia, Douglas, Vera,

Leda, Ronaldo, Márcia, Senhorita Meireles,

Silas, Antônio, Deodoro, Jorge, Deméter,

Beltrano, Antônio, Edson, Marina, Jezebel,

Fred, Tony, Maxifild, Themístocles,

Andréa... Um funcionário da Prefeitura de

Petrópolis e uma mulher cegueta ainda não

identificados...

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Chagas das Almas

291

... Aos poucos vão sendo divulgados os

primeiros nomes repletos de sobrenomes

que não importam mais se fazerem

distinguir, das vitimas do que estão

chamando de tragédia do voo cego. Mal

identificados, entre áridos escombros, saiu a

primeira lista parcial de mortos no acidente

com a aeronave desaparecida há seis meses.

Ela foi descoberta na semana passada

inteiramente destroçada no meio da floresta

amazônica. Autoridades, ainda que seus

títulos e cargos não passem de

chamamentos insignificantes, ainda não

sabem afirmar a origem e destino do voo,

cercado de muitos mistérios, uma vez que

se insere em um vácuo no espaço-tempo.

Tudo é incerto, imponderável.

Provavelmente logo serão confirmadas

outras vítimas. Parentes aguardam notícias

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Chagas das Almas

292

nos aeroportos das capitais, mas são entes

não necessariamente deste acidente. Podem

fazer parte das estatísticas de pessoas

desaparecidas que um dia saíram de casa e

nunca mais voltaram. Ou acidentadas em

automóveis e balas perdidas a esmo. Até a

véspera da descoberta das ferragens, eles

não haviam dado falta de ninguém. Todos

estavam lá, como parece ainda estarem

agora. Tempo que para no liame entre o

côncavo e o convexo espaço relativo das

coisas que são. Maiores detalhes só

acompanhar na TV, caixa preta que revela

as tragédias humanas.

Supõe-se que haja fãs que iriam

assistir ao Show de Alice Cooper. Dois

casais apaixonados, recém-casados

informais e no papel. Também foi

confirmada toda a tripulação, enfim, que o

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Chagas das Almas

293

menino Jesus proteja a todos neste

momento de luto opaco.

***

Não, Deus não é onipresente para o

supérfluo. As necessidades universais, sem

falar das africanas, os ocupam bastante. Por

isso não há justiça divina. Vários corruptos,

perversos e empedernidos morrem idosos,

gozando de boa saúde no conforto de seus

lares suntuosos pagos com o sacrifício dos

miseráveis. Este ditado "aqui se faz, aqui se

paga" não encontra estatísticas relevantes.

Tudo isso são abstrações religiosas, de um

povo cuja maioria é de pobres, ignorantes e

medianos, precisando mesmo de

mecanismos de consolo e ilusão para

seguirem em frente os patéticos ardis de

suas vidas. Devemos sim nos esforçar para

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294

sermos melhores, bem sucedidos, mas tem

o fator misterioso que rege as leis do

mundo. Em segundos os milagres ou

malogros podem bater na porta de um ou de

outro. Não temos o controle. Somos

responsáveis por nossas escolhas sim, mas

com muitas pressões.

Por anos convivemos com varias

pessoas, sejam familiares, amigos ou

colegas, absolutamente frágeis, dos bons

caráteres aos maus. Lembro-me de alguns

chefes que, em seus pequenos mundinhos

representados por suas empresas,

administram as pessoas com arrogância, se

valendo da prerrogativa do alto nível de

desemprego ou outras dificuldades, para

demonstrarem o que consideram

superioridade. Executivos: altos

empresários que acumulam salários

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Chagas das Almas

295

exorbitantes e caem na armadilha do prazer

e dos excessos que suas fortunas podem

comprar; os nomeados em cargos públicos

que maquinam com os fartos recursos do

poder e manipulam destinos, além de

verbas do erário em benéfico de suas

ambições. Gente que vive trancada em casa

acumulando extratos para se manter nas

estatísticas dos mais isso ou aquilo na capa

da Times. Homens religiosos que fazem da

fé, má fé, martírio, paixão e fanatismo de

sofredores anônimos. Todos carregando à

tira colo seus egos narcisistas, tamanha

vaidade desmedida.

No coro das pessoas de bem, tem

aquela legião de entes que lutam

obstinadamente por seus sonhos, outros que

travam batalhas para largar vícios,

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Chagas das Almas

296

conquistar melhor posto, diploma, fama,

pós-graduação ou simplesmente qualquer

lugar ao sol a custos altos e sacrifícios

inimagináveis. Destes bons e portadores de

valores nobres, também há os que se

arrependem, se culpam, os responsáveis que

perdem noites de sono por suas dívidas,

pela prova do concurso ou vestibular. E

ainda os que rogam serem queridos,

admirados, que se preocupam em ser

orgulho de pais ou filhos. Todo mundo

desejando superar-se, corresponder às

exigências selvagens da sociedade, onde

subsistir no sistema de capital é cada vez

mais penoso. Crises, índices, leis de oferta,

slogans, toda esta parafernália. Junto a isto,

violência e tecnologia trabalham juntas sem

saber, na contramão. O consumismo e o

entretenimento levam todos a quererem

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Chagas das Almas

297

experimentar os próprios limites, tão

tentador tudo parece. Como efeito colateral

vem à ansiedade e com ela novas doenças

depressivas e obsessivas. Acontece é que o

mundo se reveza entre os que buscam ajuda

médica e espiritual e os que se ocupam de

novos deleites e aventuras com os recursos

cada vez mais pretensamente eficientes da

modernidade em meio às fórmulas

químicas, super-naves pesadas ou ultra-

leves. Maquinários digitais que dão prazer,

agilidade, ganho de tempo, porém que

matam ou mutilam corpos e mentes.

Depois, profissionais especializados catam

desculpas como agulhas em palheiro,

enquanto clarividentes se calam frente ao

dilema de assombrações perdidas nos óbitos

espetaculosos. É a moral mediúnica com as

beatices do espiritualmente correto.

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Chagas das Almas

298

Dinheiro, grande mantenedor da

contemplação comovente da aldeia

humana! Por ele se vendem almas e se

movem montanhas com suor ou sacanagem.

Valerá mesmo à pena tudo isto?

Ainda que angustiante, só há uma triste

constatação, a de que todos nós estamos

equivocados, adoentados em nosso

hardware de carnes e nervos. Que a vida

por tão rara não merece tanta circunspeção

e obstinação. Não vale tudo o que

exaltamos com tanto apego, apenas ser

vivida um dia atrás do outro, sem grandeza

de concentração com as armadilhas

humanas que se deslembram da beleza de

uma simples rosa amarela, do amor ou do

bate papo à toa com os bons amigos num

dia comum do bem-viver. Não,

definitivamente este ritmo retilíneo torpe

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Chagas das Almas

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uniformemente acelerado não faz bem aos

homens. Afinal, de inteligentes, vaidosos,

arrependidos, ambiciosos e sonhadores, o

trágico e espetacular acidente de um

domingo comum com o Air France AF 447,

levou sem aviso, consulta e anuidade de

Deus, à sua revelia, 228 almas deste mundo

cão.

(04 de junho de 2009)

***

Voltando a ficção. Bem...

Neste obituário torturante que sai aos

poucos, à medida que os corpos

carbonizados são reconhecidos pela arcada

dentária, pedaços de documentos

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Chagas das Almas

300

plastificados e vestes, percebo distinguir

quase todos além de mim. Mas há os que

não. Velhos, adultos e jovens, entre

homens, mulheres e crianças. Apesar disso,

ninguém me parece estranho. Todos tinham

uma variedade de sonhos perdidos e

realidades projetadas, sãs e vis, como já

fora anunciado antes.

Quem eu realmente conhecia, são os

que eu mesmo criei. Muito pertinente para

quem fez o mesmo com o espetaculoso

acidente. No entanto, réplica de uma

verdade recente como o voo Frances.

Também a qualquer momento pode ser

a próxima realidade, tragédia anunciada e

badalada.

Festa para os patrocinadores que

sustêm mídias, que nutrem espectadores.

Por seu turno, estes se alimentam de

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301

perguntas, dados de sangue e morbidez.

Clientes finais fechando a corrente do

consumismo imoral. Pois que depois,

quando entra no âmbito protocolar: justiça,

investigações e perícias, viram um enredo

chato demais e todo mundo esquece, de

olho num novo lançamento mais atraente

nas bancas, redes e telejornais. Anos

pesados para os parentes, estes sim, sempre

plugados ao fato, até saberem as causas,

espera de um mínimo de justiça. Eu luto

para não esquecer os fatos e assim ser

menos inútil e solidário a eles que em nada

são piores e menos merecedores ou mesmo

afortunados do que tu-ele-nós-voz-eles.

***

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Chagas das Almas

302

Há compaixão no mundo. Há de todo

tipo. Têm os que se compadecem com a

miséria africana, da indonésia. Mas a dor e

o sofrimento estão espalhados em diversos

lares: de um pop star, dos empresários do

tradicional ocidente capitalista e machista

de cristãos brancos ocidentais, que se

consideram principais. Mas não. Todos

sofrem aos poucos, em distâncias relativas,

sem manchetes, em cantos de páginas como

qualquer alma anônima esquecida. O

soldado na guerra, o terminal de câncer, o

que feneceu de estômago colado, Ebola, os

pais do filho da bala perdida e o assassino

executado na cadeira elétrica. Os famosos,

o peso de será, mais lembrados por isso...

Somos todos irmãos. Marfim e ébano

que viemos do mesmo cerne e iremos para

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Chagas das Almas

303

as mesmas cinzas, mesma verve, denuncia

esta variedade de traspasses desvairados.

É difícil entender a morte, ela

transcende nossas faculdades intelectuais.

Sentimos a dor dos entes e queridos idos,

consagramos nossas dificuldades mentais,

pois sim. É propriedade do ego levar o

apego consigo. Há sofreguidão demais. Não

é de nossa cognição afetiva tolerar dor por

milhares de CPF que morrem no varejo, se

não forem de nossos círculos. Apenas os

que se vão de uma vez só, num dia e

instante fulminante como na tragédia de um

voo cego. Só ficamos abismados com os

espetaculares, espetáculos nos ares. O que

está na negligencia ou no incógnito, eventos

sensacionais com a TV e suas trilhas

emocionais. Choramos se o mesmo for bem

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304

representado no cinema. Realidade e ilusão

nos confundem.

Assim, esta crônica derradeira cumpre

sua sina de misturar isso, a dor real com a

da ficção existencialista, o que ainda não sei

bem a diferença. Sina dos cronistas? Nestas

horas, como fora nos últimos acidentes

tanto do Air-France, como o da Gol e da

TAM, assim como o Tsunami asiáticos ou

boite do sul ... Não menos intrigado, me

pergunto e não acho qualquer resposta mais

adequada à maior questão que me aflige:

“Vida: vales muito ou não vales

nada?!”

Não há caminho do meio Mr. Buda.

Assim como pouco importa se haja

mais dela depois, uma vez que jamais seria

como esta, da forma que nossas almas são

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Chagas das Almas

305

apegadas e vicejam a beleza da terra e da

água.

Tantas destas crônicas eu escrevi então,

misturando minhas verdades com

divagações e enredos falseados, não? Juntei

a primeira pessoa com terceiros, criaturas

recheadas de sabores ácidos, doces e

alegres. Dançarinos da corda bamba.

Mesmo assim, não me contento com nada.

Estou sempre frustrado e preso nesta

alfândega esperando o sinal verde para

liberdade. Não há felicidade plena se há o

sofrimento alheio.

Sabendo que a vida é repleta destes

impulsos falíveis que nos fogem totalmente

às escolhas, será que vale mesmo a pena

tantos planos, sonhos e anseios?

Preocupações excessivas? O que os

penados diriam se pudessem prever ou

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306

voltar para expressar o ato milésimo de

segundo antes do coração parar de bater?

Ou se houver este tal de “um outro

lado?” Afinal, tanto desprendimento de

energia do espírito, para que fim?

Por que meio buscamos a felicidade?

Chorando a miséria própria ou

colecionando status em perfis indômitos nas

tramas reais ou virtuais?

Durmo ansioso pelo beijo na minha

amada no encontro de amanhã e no

caminho “bum”! Desapareço em segundos,

deixando-a esperando em Bagdá ou

Amsterdã. Ainda têm culpas, promessas,

dívidas e renúncias. Nada que também

possa ser mais sanado. “Problema” passa a

ser uma palavra vazia, estéril.

As parafernálias do mundo, a mixórdia

dos sistemas de civilização... Tudo trazendo

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307

muita tentação e junto, à ingratidão em uma

mó de vidas perdidas em tempos esparsos.

No dicotômico e tragicômico viver do dia-

a-dia que não passam mesmo de meras

crônicas banais. Sofrimento sem fim dos

seres humanos e desumanos ao bel prazer

de um destino esquisito. Muitas tão bem

imbuídas, deixando entes chegados

absolutamente desamparados. Lagrimas e

rinites crônicas, renitentes narizes rubros

úmidos de tanto chorar para sempre. Sina

de existir sem sentidos e propósitos...

Bendita seja a vida ingênua ao

contrário da sociedade moderna em cada

era temporal presente. Cada uma, amorfa

anã, ansiosa e clemente de calma, se

enganando em fé maometana ou cristã.

Malditas desonras e dores humanas, chagas

crônicas das almas.

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Chagas das Almas

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Niterói, 15/10/2014.

Denuncie possíveis erros de distração,

ortográficos ou gramaticais e me de uma força.

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Obrigado,

Abraço.

Themístocles Silva Neto.