UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA
NÚCLEO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DESENVOLVIMENTO E MEIO
AMBIENTE
NÍVEL MESTRADO
ÁUREA JACIANE ARAUJO SANTOS
A IMPORTÂNCIA DA CONSERVAÇÃO DO MEIO
AMBIENTE CULTURAL PARA A CONSTRUÇÃO DE UMA
SOCIEDADE SUSTENTÁVEL: O CASO DE
LARANJEIRAS/SE
SÃO CRISTÓVÃO
2015
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE
PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA
NÚCLEO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DESENVOLVIMENTO E
MEIO AMBIENTE
ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: PLANEJAMENTO E GESTÃO AMBIENTAL
NÍVEL MESTRADO
ÁUREA JACIANE ARAUJO SANTOS
A IMPORTÂNCIA DA CONSERVAÇÃO DO MEIO
AMBIENTE CULTURAL PARA A CONSTRUÇÃO DE
UMA SOCIEDADE SUSTENTÁVEL: O CASO DE
LARANJEIRAS/SE
Dissertação apresentada como requisito parcial para
obtenção do título de Mestre, pelo programa de Pós-
graduação em Desenvolvimento e Meio Ambiente da
Universidade Federal de Sergipe.
Orientador: Professor Doutor Evaldo Becker
SÃO CRISTÓVÃO-SERGIPE
2015
FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA CENTRAL UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE
S237i
Santos, Áurea Jaciane Araújo A importância da conservação do meio ambiente cultural para a
construção de uma sociedade sustentável: o caso de Laranjeiras/SE / Áurea Jaciane Araujo Santos; orientador Evaldo Becker. – São Cristóvão, 2015.
136 f.: il.
Dissertação (mestrado em Desenvolvimento e Meio Ambiente) – Universidade Federal de Sergipe, 2015.
1. Desenvolvimento sustentável. 2. Meio ambiente. 3. Desenvolvimento econômico – Aspectos ambientais. 4. Direito ambiental. 5. Patrimônio cultural - Proteção. 6. Laranjeiras (SE). I. Becker, Evaldo, orient. II. Título.
CDU 502.131.1(813.7)
AGRADECIMENTOS
Chega ao final mais uma etapa e ao final de cada etapa é preciso parar, respirar, olhar
para trás e lembrar daqueles que no caminho trilhado até aqui contribuíram direta ou
indiretamente. Obrigado Senhor Deus e à espiritualidade amiga! A fé é a força que me move e
sem o Teu amparo eu não iria a lugar algum.
Agradeço também a minha mãe, pelo amor incondicional, pela luta diária. Cada
conquista é mais sua do que minha. Obrigado pela vida, pela educação, pelo caráter! Obrigado
Neiva Cristine, minha amada irmã, pelo incentivo e por sempre acreditar em mim! Obrigado
Anselmo Galvão, pela companhia diária, pelo apoio!
Obrigado a minha família, vocês são a base de tudo! Ao meu orientador, Professor
Doutor Evaldo Becker, obrigado pela confiança em mim depositada. A sua competência fora
imprescindível para a concretização desse trabalho. Ao senhor todo meu respeito e minha
profunda admiração.
Aos amigos da Defensoria Pública da União, obrigado por tudo, pelo apoio, pela
confiança, pelo aprendizado e pelo incentivo contínuo, em especial a Andréa Peretti, Pedro,
Davi, Ricardo, Maricélia, Erivan, Dr. Raimundo, Dra. Patrícia e Dr. Oséas.
Aos professores, funcionários e colegas do PRODEMA, em especial aos Professores
Antônio Carlos, Antônio Vital, Cristiano Ramalho e Professora Maria José e a minha querida
Najó. Agradeço imensamente a contribuição significativa de cada um na construção desse
trabalho.
Enfim, meu muito obrigado a todos, nessas páginas têm um pedaço do meu coração.
“Erguem-se por ali soberbos casarões apalaçados, de dois e três
andares, sólidos como fortalezas, tudo pedra, cal e cabiúna; casarões
que lembram ossaturas de megatérios donde as carnes, o sangue, a
vida para sempre refugiram. Vivem dentro, mesquinhamente,
vergônteas mortiças de famílias fidalgas, de boa prosápia entroncada
na nobiliarquia lusitana. Pelos salões vazios, cujos frisos dourados se
recobrem da pátina dos anos e cujo estuque, lagarteado de fendas,
esboroa à força de goteiras, paira o bafio da morte. Há nas paredes
quadros antigos, crayons, figurando efígies de capitães-mores de barba
em colar. Há sobre os aparadores Luís XV brônzeos candelabros de
dezoito velas, esverdecidos de azinhavre. Mas nem se acendem as
velas, nem se guardam os nomes dos enquadrados – e por tudo se
agruma o bolor râncido da velhice. São os palácios mortos da cidade
morta”.
Monteiro Lobato
RESUMO
Esta pesquisa versa basicamente sobre dois pontos, a conservação do ambiente cultural e o
desenvolvimento do município de Laranjeiras/SE. O objetivo principal é analisar de que
forma a legislação urbanística e ambiental municipal contempla seu patrimônio material e
imaterial no que concerne às questões socioambientais. Pretende-se verificar, se o Direito à
cidade (LEFEBVRE, 2001) é respeitado, de modo a auxiliar na compreensão das questões
relativas à valorização do patrimônio material e imaterial para uma melhor sociabilidade.
Busca-se enfim ampliar o pensamento acerca da dimensão da proteção ambiental através
de uma discussão que demonstra que o ambiente artificial e cultural são tão importantes
quanto o ambiente natural na construção de sociedades sustentáveis. A hipótese é que o
fortalecimento dos laços de identidade constitui a base para a ampliação da visão da
importância do patrimônio cultural e é fator determinante para a perpetuação da cultura
local como um bem a ser conservado de modo que as futuras gerações possam conhecê-la.
E, ao que tudo indica, o legislador municipal no processo de elaboração das leis urbanas de
Laranjeiras, não levou em conta as questões e a complexidade dos problemas
socioambientais da cidade, de modo que estas não respondem de forma eficaz às demandas
concernentes à preservação, conservação e uso deste patrimônio. Justifica-se esse trabalho
como uma forma para comprovar que em se tratando de cidades históricas, a cultura deve
ser sempre o centro das atenções, logo, toda a legislação de uma cidade com riqueza
cultural material e imaterial como Laranjeiras sofre influência direta do seu arcabouço
cultural, visando o desenvolvimento socioambiental. Esta pesquisa se utiliza do método
dialético, considerando a necessidade de abordar os fatos dentro do contexto político,
social e econômico, de modo a favorecer uma interpretação dinâmica e totalizante da
realidade (PEREIRA, 2010). Para alcançar o objetivo, foi feito um levantamento
bibliográfico e documental, além da realização de entrevistas com diversos segmentos no
âmbito municipal, estadual e federal, além de diversas visitas in loco visando conhecer a
realidade social do lugar. Trata-se de uma pesquisa qualitativa, exploratória e descritiva
tendo em vista a problemática apresentada. O texto final foi estruturado em três partes: a
Fundamentação teórica, dividida em 03 (três) capítulos. Em seguida é apresenta a
metodologia utilizada. E por fim, o capítulo final com a compilação de dados coletados e
tratados sobre Laranjeiras/SE e a formação do patrimônio cultural material e imaterial da
cidade ao longo da sua história. Após o que foi possível concluir que os laços de identidade
sem dúvida são a base para a ampliação da visão da importância do patrimônio cultural e é
fator determinante para a perpetuação da cultura local como um bem a ser conservado de
modo que as futuras gerações possam conhecê-la. O que se espera é que os resultados
desta pesquisa contribuam para uma forma abrangente de se pensar a comunidade de
Laranjeiras, de modo que possa se diminuir os contrastes sociais bem como estreitar os
laços entre o povo e seu lugar.
PALAVRAS – CHAVE: Patrimônio cultural; conservação; legislação urbanística e
ambiental.
ABSTRACT
This research versa basically on two points, the conservation of the cultural environment and
the development of the municipality of Laranjeiras/SE. The main objective is to examine how
the municipal urban and environmental legislation contemplates its tangible and intangible
assets with respect to environmental issues. The aim is to verify if the right to the city
(LEFEBVRE, 2008) is respected, in order to assist in the understanding of issues relating to
the valuation of tangible and intangible heritage for a better sociability. The aim is to finally
expand the thinking about the size of environmental protection through a discussion that
demonstrates that the artificial and cultural environment are as important as the natural
environment in the construction of sustainable societies. The hypothesis is that the
strengthening of ties of identity is the basis for the expansion of the vision of the importance
of cultural heritage and is a determining factor for the perpetuation of local culture as an asset
to be preserved so that future generations can meet you. And, it seems, the municipal
legislature in the process of urban laws of Laranjeiras/SE, did not take into account the issues
and the complexity of social and environmental problems of the city, so that they do not
respond effectively to the demands concerning the preservation, conservation and use of this
heritage. Justified this work as a way to prove that when it comes to historic cities, culture
should always be the center of attention, so all laws of a city with rich cultural material and
immaterial as Laranjeiras is under direct influence of its framework cultural, aimed at
environmental development. This research uses the dialectical method, considering the need
to address the facts in the political, social and economic context, in order to promote a
dynamic and totalizing interpretation of reality (PEREIRA, 2010). To achieve the goal, a
bibliographic and documentary survey was conducted, in addition to interviews with several
segments at the municipal, state and federal, and several site visits (of the place) aiming at the
social reality. This is a qualitative, exploratory and descriptive research with a view to appear
problematic. The final text was structured in three parts: Theoretical framework, divided into
three (03) chapters. Next is presents the methodology used. Finally, the final chapter with the
compilation of collected and processed data on Laranjeiras/SE and the formation of the
material and immaterial cultural heritage of the city throughout its history. After which it was
concluded that the undoubtedly identity ties are the basis for the expansion of the vision of the
importance of cultural heritage and is a determining factor for the perpetuation of local culture
as an asset to be preserved so that future generations can meet. The hope is that the results of
this research contribute to a comprehensive way of thinking the community of Laranjeiras, so
that it can reduce social contrasts as well as strengthen ties between the people and place.
WORDS – KEY: Cultural environment; conservation; urban and environmental legislation.
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 – Mapa de localização da cidade de Laranjeiras/SE (Map data @2014
Google)..................................................................................................................................... 90
Figura 2 – Matéria veiculada na Gazeta de Vitória/ES (IPHAN, 1989, folha 31)
.................................................................................................................................................. 91
Figura 3 – Igreja da Comandaroba – Laranjeiras/SE (Fotografia -Acervo pessoal)
.................................................................................................................................................. 93
Figura 4 – Gruta da Pedra Furada – Laranjeiras/SE (Fotografia - acervo pessoal)
.................................................................................................................................................. 98
Figura 5 – Fachada do Campus da Universidade Federal de Sergipe – Laranjeiras/SE
(Fotografia - acervo pessoal) ................................................................................................. 101
Figura 6 – Mapa do Conjunto Arquitetônico, paisagístico e urbanístico – Laranjeiras/SE
(IPHAN, 1989, fl.03) ............................................................................................................ 106
Figura 7 – Igreja Presbiteriana de Sergipe (1884) – Laranjeiras/SE (Fotografia - acervo
pessoal) ................................................................................................................................. 106
Figura 8 – Antiga Estação de Trem (2015) – Laranjeiras/SE (Fotografia- acervo pessoal)
............................................................................................................................................... 107
Figura 9 – Altar da Igreja da Comandaroba durante a Semana Santa, com as imagens
cobertas com um pano roxo (2013) – Laranjeiras/SE (Fotografia- acervo pessoal)
............................................................................................................................................... 110
Figura 10 – Festa dos Lambe-sujos e caboclinhos (2014) – Laranjeiras/SE (Fotografia -
Prefeitura Municipal de Laranjeiras) .................................................................................... 112
Figura 11 – Mapa de Macrozoneamento – Laranjeiras/SE (Anexo I- Plano Diretor do
Município) ............................................................................................................................ 118
Figura 12 – Perímetro Urbano – Laranjeiras/SE (Anexo I- Lei complementar nº 18/2008)
.............................................................................................................................................. 120
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
CF/88- Constituição Federal de 1988
CONAMA - Conselho Nacional do Meio Ambiente
ECO 92- Conferência das Nações Unidas para o Meio ambiente e desenvolvimento
GRAU - Grupo de restauração e renovação arquitetônica e urbana
IBAMA: Instituto Brasileiro do Meio Ambiente
IBGE: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
IDH - Índice de Desenvolvimento Humano
IPHAN: Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
JFSE- Justiça Federal de Sergipe
MPE- Ministério Público Estadual
MPF- Ministério Público Federal
ONU- Organização das Nações Unidades
PDDP- Plano Diretor de Desenvolvimento Participativo
SE- Sergipe
SUBPAC - Subsecretaria do Patrimônio Cultural do estado de Sergipe
SNUC- Sistema Nacional de Unidades de Conservação
SPU- Superintendência do Patrimônio da União
UNESCO - Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO................................................................................................................... 14
FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA ....................................................................................... 18
2. MEIO AMBIENTE E DESENVOLVIMENTO: DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS ÀS
POLÍTICAS PÚBLICAS ........................................................................................................ 18
2.1 Homem x natureza: mudança de paradigma .............................................................. 18
2.2 A ética ambiental: a relação delicada entre o homem e a natureza ............................ 24
2.3 Socioambientalismo: eis que surge um novo conceito .............................................. 29
2.4 Políticas públicas ........................................................................................................ 33
3. BASE LEGAL .................................................................................................................... 37
3.1 A CONSTRUÇÃO DO DIREITO AMBIENTAL BRASILEIRO ................................. 37
3.2 A CARTA MAGNA DE 1988: A CONSTITUIÇÃO CIDADÃ E O MEIO AMBIENTE
................................................................................................................................................. 38
3.3 A POLÍTICA DE DESENVOLVIMENTO URBANO COMO PREVISÃO
CONSTITUCIONAL .............................................................................................................. 41
3.4 AS LEIS MUNICIPAIS ANALISADAS NA PESQUISA ............................................ 44
3.4.1 Plano diretor: instrumento básico da política urbana .................................................... 44
3.4.2 Código de edificações .................................................................................................... 47
3.4.3 Uso, ocupação e parcelamento do solo .......................................................................... 47
3.4.4 Código Ambiental municipal ......................................................................................... 48
3.5. A LEGISLAÇÃO BRASILEIRA E A PROTEÇÃO A CULTURA ............................ 48
3.6 O TOMBAMENTO ......................................................................................................... 52
3.7 DANO AO PATRIMÔNIO CULTURAL: CRIME LESIVO AO MEIO AMBIENTE
.................................................................................................................................................. 55
4 PATRIMÔNIO CULTURAL ........................................................................................... 61
4.1 CULTURA: UMA PALAVRA DE AMPLA ABRANGÊNCIA ..................................... 61
4.2 PATRIMÔNIO HISTÓRICO CULTURAL ..................................................................... 64
4.3 CONSERVAR OU PRESERVAR .................................................................................... 68
4.4 CULTURA E LUGAR ..................................................................................................... 71
4.5 DESENVOLVIMENTO VERSUS CULTURA: O DIREITO À CIDADE .................... 75
5 METODOLOGIA .............................................................................................................. 84
5.1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS ......................................................................................... 84
5.2 LEVANTAMENTO DE DADOS ................................................................................... 85
5.3 TRATAMENTO DOS DADOS COLETADOS ............................................................... 89
6 RESULTADOS E DISCUSSÕES ................................................................................... 90
6.1 COMEÇANDO DO COMEÇO: A HISTÓRIA DE LARANJEIRAS ............................. 90
6.2 AS RIQUEZAS NATURAIS DE LARANJEIRAS ........................................................ 96
6.3 O DESENVOLVIMENTO URBANO DO MUNICÍPIO ............................................... 99
6.4 O PATRIMÔNIO CULTURAL DE LARANJEIRAS ................................................... 105
6.4.1 O Conjunto arquitetônico da cidade ..................................................................... 105
6.4.2 O patrimônio imaterial ......................................................................................... 109
6.4.3 O arcabouço legislativo da cidade de Laranjeiras: uma análise crítica das leis do
município ...................................................................................................................... 114
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................ 123
REFERÊNCIAS .................................................................................................................127
14
1 INTRODUÇÃO
A presente pesquisa versa basicamente sobre dois pontos, a conservação do ambiente
cultural e o desenvolvimento do município de Laranjeiras/SE. O objetivo principal é analisar
de que forma a legislação urbanística e ambiental municipal contempla seu patrimônio
material e imaterial no que concerne às questões socioambientais. Pretende-se verificar, se o
Direito à cidade (LEFEBVRE, 2001) é respeitado, de modo a auxiliar na compreensão das
questões relativas à valorização do patrimônio material e imaterial para uma melhor
sociabilidade. Busca-se enfim ampliar o pensamento acerca da dimensão da proteção
ambiental através de uma discussão que demonstra que o ambiente artificial e cultural são
tão importantes quanto o ambiente natural na construção de sociedades sustentáveis.
A área de estudo envolverá a zona urbana e os respectivos distritos da cidade de
Laranjeiras/SE, entre os anos de 2013 e 2014. A escolha do município se deu por tratar-se
de um dos mais antigos do país. Sua importância histórica está relacionada com as riquezas
por lá produzidas no Século XIX, que vão desde o conjunto arquitetônico, como pela
grande produção cultural e artística do povo laranjeirense.
No tocante à legislação urbana, analisaremos o Plano diretor participativo e o código
ambiental, sem muitas minúcias serão feitas algumas ponderações acerca da lei de uso,
ocupação e parcelamento do solo e o código de edificações, só por tratarem de leis que
regulamentam algumas diretrizes do Plano Diretor.
Preliminarmente, a análise seria feita apenas com o Plano Diretor da cidade, no
entanto, percebeu-se ao longo da pesquisa que o Plano Diretor da cidade destacava outras
leis como o Código ambiental, o qual por se tratar de norma ambiental deve ser analisado
para a obtenção dos objetivos desse trabalho.
Dessa forma, de todo arcabouço legal do município de Laranjeiras, segue um breve
introito do que seja cada um dos instrumentos analisados (Lei orgânica, Plano Diretor,
Código Ambiental, Lei de uso, ocupação e parcelamento do solo, código de edificações),
todos estes, instrumentos da política urbana, definidos pela Lei nº 10.251/01, o Estatuto da
Cidade, apesar da análise detalhada ser em torno do Plano Diretor e do Código Ambiental.
15
Segundo Martins, (2009, p. 22), “um problema de pesquisa origina-se da inquietação,
da dúvida, da hesitação, da curiosidade sobre uma questão não resolvida. A pesquisa se
inicia pelo problema e é a busca de solução que orienta toda lógica da investigação”.
Dessa maneira, a presente pesquisa caracterizou-se por buscar dados que
respondessem às seguintes questões: 1- Qual a influência do patrimônio cultural da cidade
de Laranjeiras/SE enquanto espaço socioambiental na formação da legislação do
município? 2- Qual a relação das pessoas com a cidade/cultura? 3- Qual a importância do
patrimônio cultural no processo de desenvolvimento de um lugar? 4- Como promover o
desenvolvimento sem destruir as riquezas culturais da cidade?
A hipótese é que o fortalecimento dos laços de identidade constitui a base para a
ampliação da visão da importância do patrimônio cultural e é fator determinante para a
perpetuação da cultura local como um bem a ser conservado de modo que as futuras
gerações possam conhecê-la . E, ao que tudo indica, o legislador municipal no processo de
elaboração das leis urbanas de Laranjeiras, não levou em conta as questões e a complexidade
dos problemas socioambientais da cidade, de modo que estas não respondem de forma eficaz
às demandas concernentes à preservação, conservação e uso deste patrimônio.
Justifica-se esse trabalho como uma forma para comprovar que em se tratando de
cidades históricas, a cultura deve ser sempre o centro das atenções, logo, toda a legislação de
uma cidade com riqueza cultural material e imaterial como Laranjeiras sofre influência direta
do seu arcabouço cultural, visando o desenvolvimento socioambiental. Pretende-se
comprovar que em se tratando de cidades históricas, a cultura deve ser sempre o centro das
atenções, logo, toda a legislação de uma cidade com riqueza cultural material e imaterial
como Laranjeiras sofre influência direta do seu arcabouço cultural, visando o
desenvolvimento socioambiental.
De caráter interdisciplinar, a pesquisa abrangerá diversos aspectos, buscando
correlacionar os que envolvem a relação do homem com o seu ambiente sob vários
enfoques, desde a filosofia, passando pela sociologia, antropologia, direito, dentre outros.
Vale destacar que foi através das disciplinas cursadas que se pode ampliar o olhar acerca
das mais diversas questões ambientais atinentes à pesquisa1.
1 1- Lógica e crítica da investigação científica constitui a base filosófica da presente pesquisa. É
importante analisar que foi através dessa disciplina que se pode conhecer o desenvolvimento ao longo
da história do pensamento científico. Foi uma releitura pessoal da filosofia, até então maculada pelos
preconceitos e pela ignorância face ao total desconhecimento.
16
E por fim, outra grande fonte de aprendizado foram os encontros realizados pelo
grupo de pesquisa Filosofia e Natureza. Fora do curriculum obrigatório e sem o caráter da
cobrança das disciplinas da matriz curricular do curso, participar do grupo proporcionou
um avanço pessoal no campo do conhecimento e da pesquisa. As orientações, as
discussões e principalmente as críticas foram alicerces necessários para assumir uma
postura adequada para quem tem interesses dentro do meio científico. A
multidisciplinaridade própria do curso e todo o caminho percorrido foram ingredientes
necessários para a construção do presente trabalho.
A dissertação será estruturada da seguinte maneira: Fundamentação teórica que está
dividida em 03 (três) capítulos, o capítulo 02 (dois) versa sobre a relação intrínseca entre
meio ambiente e desenvolvimento, no qual são abordados diversos pontos como a relação
homem e natureza ao longo dos séculos e as questões em torno da ética ambiental, bem
como o surgimento do socioambientalismo e as políticas públicas voltadas para a área
ambiental, tendo como embasamento teórico as ideias de (SANTOS, B., 2007),
(DIEGUES, 2001), (SACHS, 2002), (LARRÈRE, 2012), (FOLADORI, 2001),
(ROUSSEAU, 1997), (BECKER, 2012), (SANTOS, A.C., 2012), (SANTILLI, 2005),
dentre outros.
O terceiro capítulo discorre acerca da base legal que subsidiou a discussão aqui
pesquisada, com o ponto de vista da doutrina, das normas e da jurisprudência. Iniciando
com a evolução ao longo do tempo do direito ambiental no Brasil, a importância da
2- Instrumental e técnicas de pesquisa e os seminários integradores foram de suma importância
para a formação de pesquisadora. Foi através das críticas, das leituras e da prática que se aprendeu a
desenvolver uma pesquisa, desde a concepção do projeto até sua execução. Foi uma disciplina
primordial.
3- Sociedade, desenvolvimento e natureza e Cultura Urbana e modos de vida foram disciplinas
que trouxeram uma ampliação do olhar para além do mundo jurídico. O profissional de direito vive
atrelado a leis e esquece-se de olhar ao seu redor, na tentativa de enxergar o que existe para além dos
Códigos. A disciplina foi uma releitura do pensamento já fixado para os mais diversos aspectos que
envolvem a vida em sociedade, a relação entre os homens e a relação entre o homem e a natureza.
4- Desenvolvimento e sustentabilidade é uma reflexão para os fatores que contribuem
diuturnamente para a degradação ambiental. Proporcionou a oportunidade de convívio direto com a
natureza e os maiores problemas enfrentados nesse campo, discutiu-se a economia na visão ecológica
e ajudar a repensar no que consiste de fato o direito à vida.
5- Direito administrativo, constitucionalismo e cidadania foi a abordagem diferenciada do que se
aprende na graduação em Direito. Através de discussões sobre os mais diversos temas político-sociais,
constrói-se um novo modo de ver e pensar acerca das questões que envolvem o homem enquanto
cidadão. Fortemente ligado a questão do Direito a cidade, a disciplina buscou mostrar o poder do
Estado e dos cidadãos que o compõe.
17
Constituição Federal com a proteção conferida ao meio ambiente e constitucionalização da
política de desenvolvimento urbano e por fim uma breve descrição acerca dos instrumentos
legais que serão analisados na pesquisa, dentre os quais merece destaque o Plano Diretor.
Como principais referências, (BRASIL, 1988 e 2001), (AMADO, 2011), (BELTRÃO,
2009), (LEITÃO, 2006), (LEITE, E., 2011), (MEIRELLES, 2011) e (MILARÉ, 2009).
E finalizando a base teórica, o quarto capítulo trata acerca do Patrimônio Cultural,
abordando a abrangência do termo, numa discussão que começa em torno do conceito de
cultura e em seguida sobre patrimônio histórico cultural, fazendo em seguida uma análise
dos termos conservar e preservar, discutindo a correlação entre cultura e lugar e
finalizando com o contraponto entre cultura e desenvolvimento, trazendo à tona o direito à
cidade. Embasam este capítulo a ideia de grandes autores, dentre os quais merecem
destaque (BOLLE, 2000), (LEFEVBRE, 2001), (SANTOS, B., 1982), (EUFRASIO,
1999), (DIDEROT, 2011), (FORTUNA, 2006), (ORTIZ, 1998), dentre outros.
O quinto capítulo apresenta a metodologia utilizada na pesquisa, descrevendo os
caminhos trilhados para que se chegasse aos resultados e discussões que são apresentados
no sexto capítulo. Esse consiste no diagnóstico da situação observada e analisada, através
de uma reflexão crítica. Foi feito o estudo sobre Laranjeiras/SE e a formação do
patrimônio cultural material e imaterial da cidade ao longo da sua história. Buscando
analisar através de todos os dados e informações coletadas de que forma as metodologias
participativas podem ser o caminho para a conservação, revitalização e uso do patrimônio
cultural de Laranjeiras, avaliando as questões urbanas, socioambientais e éticas acerca da
discussão.
18
FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
2. MEIO AMBIENTE E DESENVOLVIMENTO: DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS ÀS
POLÍTICAS PÚBLICAS
2.1. Homem x natureza: mudança de paradigma da mera exploração para o uso racional
O período compreendido entre o século XIX e meados do século XX, foi marcado
pelas maiores tragédias contra a humanidade. O novo personagem da história é o cidadão.
Ou seja, o exercício pleno da cidadania se confunde com o exercício dos mais diversos
direitos, quais sejam políticos, civis e sociais. Os direitos políticos são aqueles que dizem
respeito à participação do cidadão no governo. O modelo brasileiro reconhece o direito à
participação popular, mas com um acesso ainda limitado, o poder conferido pela sociedade
civil ainda é feito através do voto. Os direitos sociais são um dos pilares de sustentação da
dignidade da pessoa humana, uma vez que assegura aos cidadãos em geral o acesso ao
trabalho, à educação, ao salário digno. E por fim, os direitos civis, ou melhor, os direitos
fundamentais à vida, à liberdade, à igualdade e à fraternidade.
Os chamados direitos fundamentais têm sua origem histórica marcada pelos ideais
advindos da Revolução Francesa e surgiram com a ideia de ser uma frente de defesa do
homem em face do poder estatal. Estabelece e ganha reforço nas ideias de Locke e
Rousseau acerca dos direitos naturais do homem. A doutrina dividiu os direitos
fundamentais em três dimensões ou gerações, baseados nos ideais da Revolução Francesa:
liberdade, igualdade e fraternidade.
A primeira dimensão advém principalmente das ideias iluministas na qual a
liberdade é vista como um Direito Natural do homem, como o direito à vida. Segundo
(BECKER, 2008), a liberdade enquanto qualidade inseparável configuraria um dever do
19
homem para consigo mesmo. Ou seja, os direitos de primeira dimensão precedem o
homem e o acompanham por toda sua vida. O pós-guerra vem como o ápice da degradação
do homem, era preciso resgatar o mínimo possível de dignidade que restava após tanta
barbárie, com a garantia mínima de direitos. A segunda dimensão constitui o direito a
igualdade mediante a garantia dos direitos sociais.
E por fim, os direitos de terceira geração embasados na ideia de fraternidade. É
chegado o momento em que não se pensa apenas mais nos direitos individuais do homem,
aqui os direitos tomam outra dimensão e dizem respeito à coletividade. Os direitos da
terceira dimensão são abrangentes, englobam em verdade a liberdade e a igualdade. Aqui o
homem chega à sua plenitude quando redescobre a solidariedade. Ele não pensa apenas
mais em si mesmo, mas, existe um comprometimento do homem consigo mesmo e com o
próximo, mesmo que este próximo seja as futuras gerações. No pensamento de Robert
Alexy, quando o estado assegura os direitos coletivos está impondo a garantia aos direitos
individuais, conforme se depreende no trecho que segue:
Puede considerarse como un bien colectivo el que una sociedad está organizada de
forma tal que en ella pueda vivirse agradable y variadamente y puede, además,
sosternese que el Estado, cuando están asseguradas cosas más fundamentales, está
obligado a crear y conservar este bien colectivo. Pero hay que poner em duda el
que existan derechos individuales para los cuales este bien sea exclusivamente un
médio... Pueden haber casos en los cuales existan buenas razones para dotar al
individuo con derechos, de forma tal que pueda para si o como abogado de la
comunidad imponer bienes colectivos, (ALEXY, 2004, p. 203)
Acerca da ideia anteriormente passada, ao mesmo tempo em que se assegura um
direito coletivo, consequentemente está se assegurando um direito individual, vez que o
objetivo comum de ambos os institutos é assegurar a formação de uma sociedade justa e
igualitária. Dentro dessa linha de pensamento podemos considerar o direito ao ambiente
sadio como um bem de suma importância para a qualidade de vida do homem, mas que se
confunde com o próprio direito à vida. É um direito, o qual não se pode identificar a
titularidade, mas que a garantia de sua eficácia atinge da mesma forma a todos
indistintamente.
Nesse passo, compilando os mais diversos conceitos, entende-se que os direitos
humanos compreendem não apenas normas, mas também valores e princípios com vistas a
assegurar a dignidade da pessoa humana, independente de raça, cor, credo e religião. São
20
direitos elencados em declarações universais, pactos internacionais e convenções, dos
quais merece destaque a Declaração Universal dos Direitos Humanos.
No Brasil, com a promulgação da Constituição de 1988, os direitos fundamentais
tornaram-se garantias constitucionais, elencados nos mais diversos artigos e incisos da
Carta Magna. É assim que, segundo Sachs (2002, p. 47), “desenvolvimento e direitos
humanos alcançaram proeminência na metade do século, como duas ideias-força
destinadas a exorcizar os horrores da Segunda Guerra mundial”. Dentro dessa nova
perspectiva e após todo processo de redemocratização, o Brasil, signatário de tratados de
direitos humanos, em 1988, com a ruptura com o regime militar e o começo de uma nova
perspectiva na sociedade brasileira é que foi promulgada a chamada “Constituição
Cidadã”, que traz já no bojo dos seus primeiros artigos uma série de direitos aos cidadãos
brasileiros (sociais, políticos e civis), os chamados direitos fundamentais.
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade
do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos
seguintes:
[...]
§ 2º - Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros
decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados
internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte. (BRASIL, 1988)
De acordo com Silva (2005, p. 122), “a tarefa fundamental do Estado Democrático
de Direito consiste em superar as desigualdades sociais e regionais e instaurar um regime
democrático que realize a justiça social”. Os direitos fundamentais visam proteger e
garantir à dignidade humana, princípio basilar, que deve ser assegurado a todos,
indistintamente. Constituem um equilíbrio de forças entre o poder estatal e a sociedade
civil. Na verdade, seguindo o pensamento de (SARLET, 2012), pode-se dizer que estes
direitos se constituem como a defesa do cidadão quanto a possíveis arbitrariedades do
Estado. Esse enfrentamento é fruto do pensamento iluminista e das mudanças sociais e
políticas pelas quais passaram a sociedade após a ruptura com o poder real. Atualmente, no
cenário brasileiro, mesmo não vivendo numa monarquia, é preciso que o cidadão tenha
prerrogativas ante o poder estatal, como se pode comprovar no trecho abaixo:
[...] Assumem particular relevo no rol desses direitos, especialmente pela sua notória
inspiração jusnaturalista, os direitos à vida, à liberdade, à propriedade e à igualdade
21
perante a lei. São, posteriormente, complementados por um leque de liberdades,
incluindo as assim denominadas liberdades de expressão coletiva (liberdades de
expressão, imprensa, manifestação, reunião, associação etc.) e pelos direitos de
participação política tais como o direito de voto e a capacidade eleitoral passiva,
revelando de tal sorte, a íntima correlação entre os direitos fundamentais e a
democracia. Também o direito de igualdade, entendido como igualdade formal
(perante a lei) e algumas garantias processuais (devido processo legal, habeas
corpus, direito de petição) se enquadram nesta categoria [...] (SARLET, 2012, p. 47)
Assim, é lícito afirmar que o Brasil sendo considerado um estado democrático de
direito consagra na sua Constituição, princípios fundamentais como a soberania, a
cidadania, a dignidade da pessoa humana, bem como valores sociais do trabalho e da livre
iniciativa e o pluralismo político. É nesse sentido que Marshal afirma que:
A cidadania exige um elo de natureza diferente, um sentimento direto de
participação numa comunidade baseado numa lealdade a uma civilização que é um
patrimônio comum. Compreende a lealdade de homens livres, imbuídos de direitos e
protegidos por uma lei comum. Seu desenvolvimento é estimulado tanto pelo
gôzo(sic) dos mesmos, uma vez adquiridos. (MARSHALL, 1967, p. 84)
Observe-se que a associação de homens livres seria o primeiro passo para uma lei
comum e quiçá uma lei eficaz. Em outras palavras, os homens são livres, eles se juntam,
passam a ter que conviver e por isso precisam estabelecer regras de convivência. Na
mesma linha de pensamento, (BECKER, 2008), acredita que a passagem para o estado de
sociedade, implicaria numa mudança de análise, do homem livre para o homem que a
partir de agora precisa viver sob o julgo de leis.
Dentro desse contexto, passa a vigorar dentre as preocupações do homem, as
questões relativas ao meio ambiente. A ideia equivocada de que os recursos naturais são
infindáveis, fomentou um modelo de exploração sem preocupação com consequências
futuras, onde predominava uma cultura de colonização altamente exploradora
(FERNANDES, 2009). Uma mudança de paradigmas urgia. Era preciso romper com
modelos exclusivos de exploração capitalista e passar a perceber que em se tratando de
questões ambientais, o homem não podia ser mero espectador, este precisava ser inserido
como um sujeito não só de deveres, mas antes de tudo, portador de direitos. É no final dos
anos 60 e na década de 70, que surge o que Diegues (2001, p. 39) chama de “proposta do
desenvolvimento sustentado”, reconhecendo como base do crescimento o meio ambiente e
22
passando a se pensar nas principais estratégias que viessem a proporcionar para os países
subdesenvolvidos crescimento, mas ao mesmo tempo resistência às crises econômicas.
A Conferência das Nações Unidas sobre o Ambiente Humano, de 1972, ocorrida em
Estocolmo, colocou o meio ambiente na agenda internacional. Ela foi precedida pelo
encontro Founex, de 1971, implementado pelos organizadores da Conferência de
Estocolmo para discutir, pela primeira vez, as dependências entre o desenvolvimento
e o meio ambiente, e foi seguida de uma série de encontros e relatórios
internacionais que culminaram, vinte anos depois, com o Encontro da Terra no Rio
de Janeiro. (SACHS, 2002, p. 48)
A proposta de (DIEGUES, 2001), era de uma estruturação das sociedades em
termos de sustentabilidade própria, segundo suas tradições culturais, seus parâmetros e sua
composição étnica específica. Na verdade um chamado à mudança de paradigmas. A
natureza, em todos esses modelos, era considerada como um elemento imutável, fonte
inesgotável de matéria-prima, e não como um sistema vivo com processos e funções
próprias [...] (DIEGUES, 2001, p. 42) e era essa concepção que precisava ser mudada
urgentemente.
Ponto bem visível quando Diegues (2001, p. 52), faz um contraponto entre
“Desenvolvimento” e “Sociedade sustentável” e afirma que o conceito de “sociedades
sustentáveis” é mais adequado do que “desenvolvimento sustentado”, na medida em que
“possibilita a cada uma delas definir seus padrões de produção e consumo, bem como o de
bem-estar a partir de sua cultura, de seu desenvolvimento histórico e de seu ambiente
natural”. Em que pese a preocupação central trazida por (DIEGUES, 2001), está no
conjunto de preocupações sobre as relações entre homem e natureza e dos homens entre si.
A questão é válida e atual, o que leva a necessidade de se criar novas utopias para o
século XXI, pensando na “diversidade de sociedades sustentáveis, com opções econômicas
e tecnológicas diferenciadas, voltadas principalmente para o “desenvolvimento harmonioso
das pessoas” e de suas relações com o mundo natural” (DIEGUES, 2001, p. 55).
A proposta é semelhante ao modelo de quebra do pensamento hegemônico de
Boaventura Sousa Santos (2007), no livro Renovar a teoria crítica e reinventar a
emancipação social. Ou seja, o que os dois autores trazem é a necessidade de se romper
com o pensamento dominante, mas já ultrapassado, é mudar a forma de pensar e
consequentemente a de agir frente às novas necessidades que surgem.
23
Agora, o foco da atenção concentra-se tanto na relação das forças produtivas com as
forças sociais, como com a natureza. A preocupação com a degradação do fator
humano é estendida ao meio ambiente que agora é percebido como uma base de
recursos finitos que estabelece severos limites a um crescimento econômico
contínuo e à própria reprodução da espécie humana. (LEIS, 1999, p. 121)
Destaque-se que o Brasil, colonizado por Portugal, mantém em suas raízes a cultura
altamente predadora e exploratória, mas em contrapartida, a sensibilização para a finitude
dos recursos naturais urge no chamamento a mudança de atitude imediata, de modo a
evitar catástrofes irremediáveis. No pensamento de Becker e Becker (2014), a ação
antrópica é que potencializa o efeito das catástrofes, “tudo que fazemos repercute de
alguma maneira sobre o mundo em que vivemos (2014, p. 120). E é este pensamento
crítico que precisa ser desenvolvido pela sociedade. O ambiente saudável e equilibrado é
um direito, mas antes de tudo dever de todos manter a sua incolumidade e isso passa
basicamente pela mudança de hábitos, dentre os quais o uso racional daquilo que a
natureza nos oferece.
Importante destacar que o objetivo dessa pesquisa não é defender um retrocesso,
um retorno à vida pré-histórica. Muito pelo contrário, defende-se o desenvolvimento que
assegure a garantia de meio ambiente ecologicamente equilibrado e isso depende única e
exclusivamente do homem e de suas atitudes. E quando se fala em homem, não está aqui a
se tratar apenas daqueles que nos representam politicamente. Não, ao se tratar de
conservação ambiental a igualdade de ação atinge todos os homens. Nesse sentido, forçoso
comentar acerca do que diz Rousseau na Carta ao Senhor Voltaire, da responsabilidade
dos próprios homens em produzir suas desgraças. Destaca ainda a ambição que nos torna
egoístas, materialistas e cegos, onde a única luz enxerga-se nos bens materiais. Trazendo a
discussão do autor em questão aos dias atuais, podemos entender que a medida que a sede
de consumo do homem aumenta, mais ele compromete o seu futuro e das futuras gerações,
produzindo como anteriormente dito, as suas próprias tragédias.
Utilizando o pensamento de (SACHS, 2002), podemos dizer que não se pode
equacionar conservação com a opção de “não-uso” dos recursos naturais e sim com o uso
racional para atender as necessidades. Tal ideia fica clara em passagens como esta na qual
o autor propõe que:
24
[...] De modo geral, o objetivo deveria ser o do estabelecimento de um
aproveitamento racional e ecologicamente sustentável da natureza em benefício das
populações locais, levando-as a incorporar a preocupação com a conservação da
biodiversidade aos seus próprios interesses, como um componente de estratégia de
desenvolvimento. Daí a necessidade de se adotar padrões negociados e contratuais
de gestão da biodiversidade. (SACHS, 2002, p. 53)
O caminho mais apropriado para consolidar a conservação do meio ambiente, o
desenvolvimento sustentável e o respeito à diversidade cultural dos povos é justamente
tornar esses atores sociais como os mais importantes personagens do contexto,
responsáveis diretos pela preservação do meio em que vivem. O Princípio 1 da Declaração
do Rio de Janeiro sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento traz em seu enunciado a
seguinte definição:
[...] Os seres humanos constituem o centro das preocupações relacionadas com o
desenvolvimento sustentável. Têm direito a uma vida saudável e produtiva, em
harmonia com a natureza. [...] (UNITED NATIONS, 1992)
Ao se falar em uso racional, subentende-se que é preciso haver um acordo implícito
entre o homem e a natureza. Ou seja, é preciso redefinir essa relação, estabelecendo um
contrato ético ou o contrato natural, conforme definido na obra de mesmo nome de Michel
Serres. A seguir, a discussão acerca dessa relação entre o homem e seu ambiente.
2.2 A ética ambiental: a relação delicada entre o homem e a natureza
Durante muito tempo, grosso modo, a preocupação ambiental de um modo geral, tanto
por parte do povo, como do poder público se resumia a criação e mantença de parques e
reservas ecológicas. A maior parte da população, alheia ao processo de degradação ambiental
que crescia ao seu redor enxergava que a preservação ambiental referia-se apenas a plantas e
animais silvestres ou selvagens. O homem criava em seu imaginário os espaços que
legalmente deveriam ser protegidos e meio que assinava um atestado que funcionava como
uma “auto-liberação” inconsciente de que já tinha feito a sua parte. Não existia o
compromisso e nem a sensibilização de ser o homem parte integrante da natureza e a medida
que a voracidade humana contribui para sua destruição, automaticamente está promovendo a
sua própria destruição.
25
A natureza por muito tempo se apresentou assim: como o que está fora, o exterior,
de onde se poderia extrair, que se poderia transformar, onde se poderia depositar o
que se tinha em excesso. A humanidade, as “placas físicas” de homens, ocupam a
terra inteira, não resta nenhuma reserva, nenhuma exterioridade. Globalidade rima
com fragilidade. “Nossa potência coletiva atinge os limites de nosso hábitat global”
(SERRES, 1990, p. 54).(LARRÈRE, 2012, p. 18)
Com o passar dos anos, as questões ambientais tiveram seus contextos ampliados para
o que realmente importava. Dentre os equívocos estava não inserir o homem no contexto
ambiente, como se este não fosse um ser integrante da natureza e sim um ser superior pela sua
capacidade de raciocínio e que a degradação ambiental era consequência dos avanços
tecnológicos, como se nada tivesse com todo esse processo.
Essas ideias foram molas propulsoras para uma degradação ambiental crescente.
Objetivando o estabelecimento de uma relação harmoniosa entre homem e natureza, Michel
Serres traz à tona a necessidade de se estabelecer um contrato natural, o qual seria uma
espécie de acordo entre o homem e a natureza. Vale falar do conceito de contrato no mundo
jurídico que é um acordo de vontade das partes. Talvez fosse difícil pensar em como a
natureza poderia manifestar sua vontade expressamente a fim de se estabelecer um contrato
com o homem.
Mas, conforme (CARSON, 2010) a natureza tem também seu modo de se manifestar,
não através de palavras ou de escritos, mas através de mudanças que vão ocorrendo, muitas
vezes passando despercebidas aos olhos dos homens, que ocupados em demasiado com seus
interesses materiais não percebem que existe um clamor implícito de pare, olhe e pense. Em
seu texto “A atualidade do Contrato Natural”, Larrère examina o conceito proposto pelo autor
francês e escreve:
As afirmações sobre o contrato natural, sobre a natureza tornada sujeito são melhor
compreendidas quando nos damos conta que a natureza para Serres, é o melhor que
a ciências diz dela em um determinado momento. O que caracteriza a natureza,
atualmente, é sua globalidade, o conjunto de suas relações científicas e técnicas, que
a liga com o mundo e desenha a configuração. Porque elas fazem testemunhas os
objetos, as ciências não são somente um discurso sobre o mundo, elas estabelecem
uma relação com a natureza, elas fazem dela uma parceria. (LARRÈRE, 2012, p. 24)
Discutir o papel do homem nesse processo é fundamental, mas não é tarefa das mais
fáceis. A definição biológica do homem é estabelecedora da sua forma de se relacionar com a
natureza. De acordo com (FOLADORI, 2001) é necessário comparar o homem com os demais
26
seres vivos para explicar como as necessidades humanas são as responsáveis pela definição
cultural. Ou seja, à medida que os seres se desenvolvem, são necessárias funções novas,
gerando necessidades diferentes, seja de mobilidade, alimentação, etc., criando sempre um
novo desafio para aquela espécie. Ainda dentro da linha de raciocínio do autor, a principal
especificidade humana é a capacidade de pensar, que faz com que os homens imponham
condições artificiais com o intuito de modificar a natureza.
A ambição do homem é sem dúvida a maior responsável pelos processos de degradação
ambiental. Para (BECKER, 2012, p. 55), “O problema da ação humana é seu desregramento,
o amor pelo poder e pelo domínio acaba gerando monstros”.
Não satisfeito em produzir o necessário, produz-se o supérfluo e é esse excesso que
contribuirá para a modificação do espaço em que se vive em total dissonância ao processo de
desenvolvimento da natureza, que é mais sábia e gradativa em suas mudanças. Para
(ROUSSEAU, 1997), o homem é um ser insaciável, quanto mais ele tem, mais ele quer e
acaba por perder sua liberdade, tornando-se escravo de si mesmo. Afirma ainda que “é preciso
que a consciência de nossa responsabilidade seja equivalente ao potencial possuído pelo
homem contemporâneo, de causar danos, seja aos contemporâneos, à natureza extrínseca ao
homem, ou mesmo às futuras gerações” (BECKER, 2012, p. 57).
Nenhuma ética anterior vira-se obrigada a considerar a condição global da vida
humana e o futuro distante, inclusive a existência da espécie. O fato de que hoje eles
estejam em jogo exige, numa palavra, uma nova concepção de direitos e deveres,
para a qual nenhuma ética e metafísica antiga pode sequer oferecer os princípios,
quanto mais uma doutrina acabada. (JONAS, 2006, p. 41)
A proposta de (ROUSSEAU, 1997) e (JONAS, 2006) é de que os avanços devem ser
feitos, mas não podem ser realizados de forma impensada, irresponsável, é preciso que haja
ética na conduta humana. Essa ética consistiria no uso racional da natureza, de maneira que
outrora às futuras gerações tenham o mesmo direito dos seus predecessores. É o homem,
único responsável pelo mal ou pelo bem que lhes acontece. Destaque ainda que na Carta ao
Senhor Voltaire sobre a Providência, Rousseau chama-nos a uma análise mais meticulosa dos
fatos que acontecem. Ele não descarta que nos sensibilizemos diante das tragédias, mas que
tenhamos diante delas um olhar crítico e que seja capaz de visualizar quem de fato deu causa
ao acontecimento. O homem sempre se considerou um Deus e assim capaz de promover
mudanças a seu bel-prazer, como se pudesse prever todas as consequências. O domínio da
27
natureza está incluído nesse rol de controle humano, mas vez ou outra, e porque não dizer
quase sempre, a resposta sempre vem em proporção ao estrago feito pelo homem.
A ética diz respeito, justamente, à razão de agir e ao modo de agir. Ela está ligada
aos valores que cada um estabelece para si mesmo e para o outro, numa relação
entre meios e fins. Nesse sentido, há certas perguntas que o cientista não pode deixar
de fazer-se em caso de dúvida: “O resultado daquilo que faço trará benefícios para
todos ou para uma pequena minoria?” Será que o resultado só a mim beneficiará?
“Estou pondo meu conhecimento a serviço do desenvolvimento da humanidade ou
de uma ideologia, um partido ou, simplesmente, de uma instituição que só visa a
certos fins, como o lucro, por exemplo?” (SANTOS, A.C., 2012, p. 38)
Merece destaque ainda a ideia proposta por Serres e comentada por (LARRÈRE, 2012),
de que a natureza e o homem são um só, um é parte integrante do outro, atribuindo
responsabilidades aos homens no que concerne ao ambiente, justamente pela sua capacidade
de raciocínio. Considerando ainda que a natureza que outrora fora vista como algoz, hoje é
vítima, o que custa ao homem entender que a partir do momento em que se vitimiza a
natureza, a vítima em potencial será ele próprio que terá que arcar com as consequências da
sua intempérie. Haveria o estabelecimento do que ele chama de contrato natural.
A ideia básica seria de que fosse estabelecida uma regra, na qual os homens retiram da
natureza, de forma sensata o que precisam. Se outrora fora necessário estabelecer um Contrato
Social (ROUSSEAU, 2002), para organizar a vida entre os homens, nada mais justo que se
estabeleça um Contrato Natural, este entre o homem e a natureza. Ou seja, o homem deixa o
papel de mero predador/consumidor, e passa a ser antes de tudo aquele que conserva
pensando no futuro, desde quando usa a natureza de forma racional.
Faz-se necessária uma mudança de atitude frente a estes seres (natureza e gerações
futuras) que até o momento não podem requerer direitos mas em relação aos quais não
podemos negar certos deveres. A relação deixa de ser exploratória/predatória e passa a ser
equilibrada/consciente. Isso faria com que ao invés de esgotar os recursos naturais e provocar
mudanças desastrosas no meio natural, o homem passe a assegurar o mesmo direito de
usufruir que teve às futuras gerações. É a redescoberta da solidariedade, a formação de uma
cadeia conservacionista ininterrupta.
Face à este frágil equilíbrio que se estabelece entre o homem e o ambiente em que vive,
requer-se uma mudança em relação às éticas tradicionais, que devem agora incluir aspectos
que foram por muito tempo negligenciados. É preciso atentar para a ética ambiental. Segundo
(SANTOS, A.C., 2012, p. 38), “a ética ambiental, que é um ramo da ética aplicada, vai
28
perguntar-se sobre a relação entre os homens e o meio ambiente, ou seja, o conjunto de seres
vivos e inanimados que existem no planeta”.
Ainda de acordo com (SANTOS, A.C., 2012), a discussão da ética ambiental gira em
torno do papel do homem na natureza, destacando o antropocentrismo, biocentrismo e
zoocentrismo. Entre as quais a diferença está em o que ou quem se torna o centro, qual seja, o
homem, a vida ou os animais, respectivamente.
Particularmente, com base nas leituras e nos estudos realizados durante esta pesquisa, o
termo mais adequado para se tratar de meio ambiente, seria o biocentrismo. Há correntes
ainda que prefiram o termo “ecocentrismo”, do qual se depreende do prefixo “eco” o
sinônimo de casa/habitat, logo grosso modo, o centro das preocupações seria o habitat.
Dentro desse contexto, importante trazer a baila algumas correntes antropológicas que
contribuem para o estudo da relação homem/natureza, quais sejam: Ecologia cultural,
antropologia ecológica, etnociência e a antropologia neomarxista ou econômica.
Para (DIEGUES, 2002, p. 77), a ecologia cultural seria a corrente “que estuda os
processos adaptativos por meio dos quais as sociedades são afetadas por ajustes básicos, e
através deles o homem utiliza o meio ambiente”. Já a antropologia ecológica seria a corrente
que “ao contrário da ecologia cultural toma como unidade de análise as populações humanas
em seus parâmetros demográficos, não os grupos sociais em suas características culturais”
(DIEGUES, 2002, p. 78). Ainda segundo o mesmo autor, a etnociência seria a “que parte da
linguística para estudar o conhecimento das populações humanas sobre os processos naturais,
tentando descobrir a lógica subjacente ao conhecimento humano do mundo natural, as
taxonomias e classificações totais” (DIEGUES, 2002, p. 79).
Finalmente, a antropologia neomarxista (ou econômica) através dos seus representantes,
teria a função de contribuir “para a análise das relações entre as sociedades chamadas
“primitivas” e seu ambiente” (DIEGUES, 2002, p. 80).
Ante todo o exposto, a conclusão mais lógica é que o homem enquanto ser integrante da
natureza, ao conservá-la assegura tanto seus direitos como cumpre com deveres para consigo
mesmo e para com as outras espécies de seres vivos sejam estes animais ou vegetais, em face
da sua primazia ante sua capacidade de pensar, o homem chama para si uma responsabilidade
pelo bom uso dos recursos naturais e do ambiente em que vive. Logo, independente da teoria
a ser adotada, haverá sempre imputada ao homem à responsabilidade por seus atos lesivos.
29
2.3 Socioambientalismo: eis que surge um novo conceito
Nesse novo contexto histórico, o homem é agora sujeito portador de direitos e
deveres, pode-se dizer que pelo simples fato de existir o ser humano já é titular de direitos
naturais e inalienáveis, os chamados direitos fundamentais. Direitos intimamente ligados à
formação do cidadão.
[...] a liberdade e a participação não levam automaticamente, ou rapidamente, à resolução de
problemas sociais. Isto quer dizer que a cidadania inclui várias dimensões e que algumas
podem estar presentes sem as outras. Uma cidadania plena, que combine liberdade,
participação e igualdade para todos é um ideal desenvolvido no Ocidente e talvez inatingível.
Mas ele tem servido de parâmetro para o julgamento da qualidade da cidadania em cada país e
em cada momento histórico [...] (CARVALHO, 2001, p. 8-9)
Doutrinariamente os direitos fundamentais foram divididos em gerações ou
dimensões (liberdade (1ª dimensão), igualdade (2ª dimensão) e fraternidade (3ª dimensão)),
levando-se em conta que seu surgimento se deu de forma gradativa, conforme a demanda
de cada época e como já explicado no capítulo anterior. Sendo de caráter elucidativo, os
esclarecimentos do Ministro Celso de Melo, em julgamento de um Mandado de Segurança
que pleiteava a anulação de ato expropriatório, pela falta de provas no tocante a notificação
pessoal do expropriado, como garantia do devido processo legal, demonstrando a força dos
direitos fundamentais como um ponto de equilíbrio entre o cidadão e o por Estatal:
[...] enquanto os direitos de primeira geração (direitos civis e políticos) – que
compreendem as liberdades clássicas, negativas ou formais – realçam o princípio da
liberdade e os direitos de segunda geração (direitos econômicos, sociais e culturais)
– que se identificam com as liberdades positivas, reais ou concretas – acentuam o
princípio da igualdade, os direitos de terceira geração, que materializam poderes de
titularidade coletiva atribuídos genericamente a todas as formações sociais,
consagram o princípio da solidariedade e constituem um momento importante no
processo de desenvolvimento, expansão e reconhecimento dos direitos humanos,
caracterizados enquanto valores fundamentais indisponíveis, pela nota de uma
essencial inexauribilidade. [...] (LAFER apud MELLO, 1995, p. 23)
No meio de todo esse processo de politização e organização é que acontece em
1972, a Conferência de Estocolmo, que é o primeiro grande debate mundial sobre o meio
ambiente, é um marco para o novo pensamento, no qual se associa a necessidade de
desenvolvimento econômico e social, o socioambientalismo, ou seja, as políticas
ambientais só surtirão efeitos mediante um trabalho conjunto e integrado da sociedade, no
30
qual a sensibilização das comunidades locais é que será o meio mais eficiente de se
conservar o ambiente.
Não era mais suficiente pensar em um novo modelo de desenvolvimento. Era
possível aqui visualizar que o modo de produção exclusivamente exploratório findaria em
esgotamento total dos recursos naturais. Em pauta, o homem versus natureza e uma
preocupação o futuro das próximas gerações. Os documentos oficiais que instauram as
relações entre as diversas nações e destas com o meio ambiente começam a integrar na sua
redação a necessária preocupação com o meio circundante.
O homem é ao mesmo tempo criatura e criador do meio ambiente, que lhe dá
sustento físico e lhe oferece a oportunidade de desenvolver-se intelectual, moral,
social e espiritualmente. A longa e difícil evolução da raça humana no planeta
levou-a a um estágio em que, com o rápido progresso da Ciência e da Tecnologia,
conquistou o poder de transformar de inúmeras maneiras e em escala sem
precedentes o meio ambiente. Natural ou criado pelo homem, é o meio ambiente
essencial para o bem-estar e para gozo dos direitos humanos fundamentais, até
mesmo o direito à própria vida. (ONU, 1972)
Da Convenção de 1972, foram extraídos 23 (vinte e três) princípios com o objetivo
de orientar a humanidade no tocante às reais necessidades “para a preservação e melhoria
do ambiente humano” (ONU, 1972), pensando nas presentes e futuras gerações,
destacando já em seu Princípio 1(um), os direitos fundamentais e as suas três dimensões. O
Brasil teve pouca ou quase nenhuma participação, mas os reflexos trouxeram algumas
mudanças para o país, como a criação de uma Secretaria de Meio Ambiente. Mas é com a
ruptura com o regime militar e processo de instauração da democracia que o
socioambientalismo no país começa a ganhar força já na década de 80, principalmente com
a edição da Lei nº 6980/81, que implementa a Política Nacional do Meio Ambiente. A lei
em questão define em seu artigo 2º o chamado desenvolvimento sustentável:
A Política Nacional do Meio Ambiente tem por objetivo a preservação, melhoria e
recuperação da qualidade ambiental propícia à vida, visando assegurar, no País,
condições ao desenvolvimento sócio-econômico, aos interesses da segurança
nacional e à proteção da dignidade da vida humana. (BRASIL, 1981)
Em outras palavras, o homem é parte integrante do ambiente e a sua correta relação
com ele é que poderá assegurar que as futuras gerações possam também usufruir de um
meio ambiente sadio e ecologicamente equilibrado. No pensamento de Diegues (2001), é a
31
partir da estruturação das próprias sociedades segundo suas tradições culturais, seus
parâmetros e sua composição étnica específica que se chegará a uma sustentabilidade
própria.
Fazendo um contraponto entre “Desenvolvimento” e “Sociedade sustentável”,
Diegues (2001, p. 52-53), traz um novo conceito: “sociedades sustentáveis” representando
a possibilidade das próprias comunidades, localmente, definirem seus padrões de produção
e consumo, bem como as questões que envolvam bem-estar a partir de sua cultura, de seu
desenvolvimento histórico e de seu ambiente natural.
A ideia mestra de Diegues (2002) é que o isolamento como forma de preservação
da cultura não funciona. Ou seja, a proposta preservacionista, emergida de teóricos norte-
americanos é o total isolamento da natureza em relação ao homem. São criadas áreas,
dessas áreas são retirados inclusive os moradores nativos, ou as chamadas comunidades
tradicionais, sob a alegação de que supostamente a natureza funciona sozinha. No entanto,
a natureza muda e o modo do homem lidar com ela também. Então entendemos que ela
não pode ficar isolada, alheia ao processo de desenvolvimento da sociedade. É preciso que
exista harmonização entre a diversidade ecológica e a diversidade cultural. Essa outra
vertente seria o conservacionismo, através do qual se descarta a opção do não-uso,
substituindo-o pelo uso racional. Em termos mais objetivos, preservar aqui seria sinônimo
de estagnar, parar e conservar, seria permitir o uso, mas de forma estratégica,
sensibilizados da finitude dos recursos naturais e ainda mais, devemos está ciente que a
medida que afetamos o meio ambiente, as próprias vítimas somos nós. Em suma, a prática
conservacionista na visão de (DIEGUES, 2002) requer uma mudança de concepção do
homem com relação a natureza.
O maior problema a ser enfrentado são os paradigmas enraizados na mentalidade do
próprio homem e difíceis de quebrar. Adotar a prática preservacionista é como uma auto-
isenção de responsabilidade com a degradação ambiental. Isola-se uma área que deve ser
protegida e inconscientemente se produz a sensação de que do lado de fora não precisa se
preocupar tanto assim. Entendemos os parques e reservas como uma versão atual da “Arca
de Noé”, no entanto, diferentemente da Arca, o homem fica fora do contexto. O que não
queremos dizer aqui, que sejamos contra a criação de espaços protegidos. Corroborando
com nosso pensamento, a seguinte afirmação de Diegues (2002, p. 99) “se pode pensar na
criação de áreas protegidas como espaços territoriais onde a necessidade de uma relação
32
harmoniosa entre homem e natureza é afirmada positivamente, não de forma excludente
como hoje prevê a legislação de parques e reservas”.
O socioambientalismo nasceu, portanto, baseado no pressuposto de que as políticas
públicas ambientais só teriam eficácia social e sustentabilidade política se
incluíssem as comunidades locais e promovessem uma repartição socialmente justa
e equitativa dos benefícios derivados da exploração dos recursos naturais.
(SANTILLI, 2005, p. 35)
De acordo com Santilli (2005), o sociomabientalismo está diretamente ligado ao
processo de redemocratização do país, tendo três importantes marcos, quais sejam, o fim
do regime militar, a Constituição de 1988 e a ECO 92.
No entanto, ainda se via pouca sensibilidade dos movimentos sociais e movimentos
sindicais no tocante às causas ambientais. Santos, A. D. (2005, p. 29) considera que “a
relação entre a agenda ambiental e os movimentos sociais revela tensões e contradições”.
No entanto, a busca pelo fortalecimento dos movimentos sociais, proporciona o caminho
para o diálogo.
Merece destaque, o movimento social dos seringueiros, liderados por Chico
Mendes, que em 1988, recebeu o Prêmio Global 500, concedido pela ONU àqueles que se
destacam na defesa do meio ambiente (SANTILLI, 2005). Eles combatiam o modelo
predatório de exploração, herança advinda ainda dos tempos da colonização do país e que
se perpetuou ao longo dos anos. “O extrativismo foi “redescoberto como uma atividade
não-predatória, uma possível via de valorização econômica da Amazônia”, e passou a ser
exaltado como alternativa ao impacto ambiental devastador provocado pelos projetos
desenvolvimentistas” (SANTILLI, 2005, p. 32).
O socioambientalismo se apresenta como uma nova concepção na abordagem da
questão ambiental e como paradigma jurídico mais apto a promover a proteção da
sociobiodiversidade. Promove a conjugação dos fatores estritamente ambientais e de
caráter técnico com o seu contexto social, econômico, cultural, étnico e político.
Reconhece os saberes e os fazeres populares, suas construções culturais sobre o seu
ambiente, como fatores determinantes no trato jurídico dos conflitos jurídico-
ambientais e como fontes de construção e renovação do Direito Ambiental.
(CAVEDON, 2007)
33
Sem dúvida um dos pontos mais importantes na defesa do meio ambiente é a
sensibilização dos atores de que existe uma responsabilidade recíproca e contínua de todos
para com o ambiente que ocupam, seja ele natural ou artificial.
2.4 Políticas públicas
Um típico direito de terceira geração é o expresso no artigo 225 da Constituição
Federal que prevê em seu caput que “todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado” (BRASIL, 1988). O direito aqui ultrapassa os limites da individualidade e
contempla toda a coletividade. A sua titularidade não pertence a uma só pessoa e sim a
todos indistintamente. Logo, se já é difícil de assegurar direitos individuais, mais
complicado ainda, é garantir os direitos difusos.
Uma das formas de se garantir a efetividade dos direitos fundamentais está na
promoção e implementação de políticas públicas adequadas.
[..] políticas públicas são programas de ação governamental visando a coordenar os
meios à disposição do Estado e as atividades privadas, para a realização de objetivos
socialmente relevantes e politicamente determinados. As políticas públicas podem
ser entendidas como o conjunto de planos e programas de ação governamental
voltados à intervenção no domínio social, por meio dos quais são traçadas as
diretrizes e metas a serem fomentadas pelo Estado, sobretudo na implementação dos
objetivos e direitos fundamentais dispostos na Constituição [...] (BUCCI, 2002, p.
259)
Comparato (1997, p. 18), dá a seguinte definição: “as políticas públicas são
programas de ação governamental”. Têm objetivos amplos em benefício da coletividade,
dentre os quais merecem destaque a melhoria de condições sociais, econômicas e políticas.
[...] política pública é a soma das atividades dos governos, que agem diretamente ou
através de delegação, e que influenciam a vida dos cidadãos. (PETERS apud
SOUZA, 2006, p. 5)
A Constituição de 1988 formou um sistema político em cadeia, da qual fazem parte
diversos atores, onde se pode considerar que o Governo exercerá a função de produtor e o
povo o receptor em potencial. Segundo Lopes (2008), até sua implementação, as políticas
34
públicas passam por um processo de formulação que abrange cinco fases, que vão desde a
formação da agenda ou seleção de prioridades até a fase de avaliação pós-implementação.
“Na prática estas fases se interligam entre si, de tal forma que essa separação se dá mais
para facilitar a compreensão do processo” (LOPES, 2008, p. 10).
De fato, a definição de agenda, segundo Souza (2006), vem quando as pessoas de
maneira geral se sensibilizam para um determinado problema.
O modelo de arenas sociais vê a política pública como uma iniciativa dos chamados
empreendedores políticos ou de políticas públicas. Isto porque, para que uma
determinada circunstância ou evento se transforme em um problema, é preciso que
as pessoas se convençam de que algo precisa ser feito. É quando os policy makers
do governo passam a prestar atenção em algumas questões e a ignorar outras.
(SOUZA, 2006, p. 13)
Ainda na história do Brasil, sem dúvida, a Constituição de 1988, intitulada de
“Constituição cidadã”, constitui um marco da cidadania, vez que, passa a assegurar dentre
tantos direitos, a participação social na vida política brasileira. Em muitos casos a
implementação de políticas públicas estava pautada na criação de conselhos estaduais e
municipais.
A Constituição de 1988 carrega a tensão entre a democracia representativa e a
democracia direta, e o resultado desse embate é um texto constitucional que
consagra a representação, mas, ao mesmo tempo, abre margem à elaboração de
mecanismos para o exercício da democracia direta. (SANTOS, A.D., 2005, p. 37)
O fortalecimento dos movimentos sociais constitui um importante aspecto no que
concerne às políticas públicas e o processo de globalização agrava ainda mais a situação
tendo em vista que os olhos do mundo começam a se voltar para os grandes problemas
sociais e isso passa a ser um fator altamente decisório.
Seguindo o pensamento de Milaré (2009), cabe aqui uma reflexão acerca das
formas de instituição das políticas públicas que podem se dar através de lei ou através de
decreto. Aparentemente o senso comum pode considerar que não existe diferença. O certo
é que apesar de serem atos normativos, a lei se diferencia do decreto por funções e força
diferentes, principalmente no tocante ás suas origens.
Segundo Moraes (2010, p. 654) “o procedimento de elaboração de uma lei é o mais
completo e o mais amplo, servindo de paradigma para a análise e elaboração das demais
35
espécies normativas”. A lei para entrar em vigor precisa passar pela aprovação do
legislativo e do executivo, ou seja, o projeto de lei é discutido e aprovado pelos
parlamentares e depois sancionado pelo Presidente da república. De modo diverso, o
decreto não precisa de aprovação do legislativo, requer apenas a elaboração e aprovação
por parte do executivo, ou seja, ele não é submetido ao processo legislativo o que o torna
hierarquicamente inferior às leis (MILARÉ, 2009). Pode-se afirmar inclusive que existe
hierarquia entre eles, as leis sejam elas complementar ou ordinária estariam num patamar
acima do decreto.
Em se tratando de problemas ambientais se pode observar que estes não são uma
novidade das décadas de 70 e 80, mas é a partir de marcos acontecidos nesse período que o
mundo, de certa forma, começa a se sensibilizar de que os recursos naturais não são
infindáveis e que se não se fizer algo, em pouco tempo haverá um colapso sem
precedentes.
No pensamento de Sachs (2009, p. 282), “toda cidade é um ecossistema. Portanto,
dispõe de um potencial de recursos desperdiçados, mal utilizados, latentes, que é preciso
valorizar em benefício das populações. Consoante o pensamento de Santos, A.D. (2005),
as políticas públicas na área ambiental, surgem como reflexo das transformações pelas
quais passou a sociedade brasileira nas últimas décadas, principalmente pela influência do
socioambientalismo.
Na política ambiental brasileira, assim como em outros setores, têm-se estabelecido
instâncias coletivas de tomada de decisão, como o Conselho Nacional do Meio
Ambiente (CONAMA), conselhos estaduais e municipais do meio ambiente,
comitês de bacias, conselhos consultivos de unidades de conservação ambiental,
entre outras. Eles são aqui considerados como espaços públicos socioambientais nos
quais questões e problemas de interesse público são tematizados segundo as
prioridades e demandas dos atores sociais, do Estado ou do setor privado.
(SANTOS, A.D., 2005, p. 34-35).
A proteção ambiental, após a previsão constitucional, passou a compor o arcabouço
jurídico brasileiro, através de uma série de leis que discorriam sobre a matéria. Vale a
ressalva de que com isso não se pretende afirmar que apenas leis sejam suficientes para
assegurar a proteção ambiental, mas constitui um fator importante no conjunto da gestão
ambiental, principalmente no tocante aos pleitos da sociedade civil organizada.
36
Santos, A. D. (2005), considera que a Constituição de 1988 universalizou a
construção de espaços públicos para a discussão dos mais diversos problemas sociais, mas
destaca também uma desigualdade de forças nesse contexto para a sociedade civil.
Outro ponto que merece ser lembrado é a criação da Agenda 21. Talvez um
importante marco para a consolidação do pensamento da necessidade de agir localmente,
reforçando a ideia de que o homem que vive naquele lugar é o principal responsável pela
conservação do mesmo, principal ator no processo de desenvolvimento sustentável local,
como exercício pleno da cidadania.
A política do ambientalismo não deve então entender-se como referida apenas a
determinados objetivos, já que a complexidade dos mesmos levou os atores a ter que
envolver-se também na produção dos meios (técnicos, políticos e culturais, em
sentido amplo) para sua realização. Deve ficar claro que decidir uma política
ambiental supõe mais do que escolher meios técnicos, supõe também a imposição de
certos valores e ideias sobre o que está certo ou errado. Uma política sobre poluição
leva, por exemplo, a ter que decidir sobre complexos problemas políticos-éticos de
justiça distributiva. (LEIS, 1999, p. 125-126)
De tudo que já foi exposto neste capítulo o que se pode ver é que urge uma
mudança de paradigma na relação homem e natureza. Não é mais possível que o ser
humano viva alheio ao que está acontecendo em termos de degradação ambiental como se
fosse mero espectador. Antes de tudo, necessário que o homem se reconheça como parte
integrante da natureza e assim promova uma imediata mudança de atitude na tentativa de
tentar conter as consequências dos erros que vêm sendo cometidos há muito tempo.
Adiante, passaremos a analisar o arcabouço jurídico pertinente a matéria no Brasil,
buscando equalizar a base legal em apoio àqueles que já mudaram seus conceitos e
estabeleceram uma relação amistosa com o ambiente e ao mesmo tempo uma fonte de
prevenção e repressão para àqueles que ainda necessitam da coercitividade legal como
meio sensibilizador de eficácia impositiva.
37
3. BASE LEGAL
3.1. A CONSTRUÇÃO DO DIREITO AMBIENTAL BRASILEIRO
No Brasil a proteção legal do meio ambiente é relativamente nova. Apesar de ainda
no tempo do Brasil (colônia e império) alguns atos legais parecerem com preocupações
ambientais, nada mais eram do que receio dos membros da Coroa Portuguesa em deixar
esvaírem-se as riquezas naturais que por aqui encontraram.
O fato é que só a partir da década de 30, com o processo crescente de
industrialização e a preocupação mundial com os direitos humanos que as questões
ambientais passam a ser suscitadas no Brasil. Merece destaque a Constituição de 1934, que
no seu artigo 10, estabelece a competência concorrente entre a União e os Estados para
“proteger as belezas naturais e os monumentos de valor histórico ou artístico” (BRASIL,
1934).
Foi em 1934 também que foi editado o Código das Águas e em 1937 o Decreto-lei
nº 25 acerca da proteção do patrimônio histórico cultural, do qual será falado em detalhes
ainda neste capítulo. Em 1948 é criada a Fundação Brasileira para a Conservação da
Natureza(IBAMA, ?). Mas de fato só após a Conferência das Nações Unidas para o
Ambiente Humano, realizada em 1972, é que se pode falar em medidas de fato adotadas
pelo Brasil com relação a preservação do meio ambiente brasileiro.
Para perceber o salto do ambientalismo a partir de Estocolmo-72, pode-se comparar
o número de países que tinham programas ambientais antes e depois da conferência.
Em 1971, apenas 12 países contavam com agências estatais para cuidar do meio
ambiente. Dez anos depois, mais de 140 países tinham criado órgãos administrativos
nessa área. (LEIS,1999, p. 131)
Em 1973, foi criada a Secretaria Especial do Meio Ambiente (SANTILLI, 2005).
Destaque-se que não se tratava de um órgão que fosse trabalhar em defesa do meio
ambiente, mas seu objetivo maior era poder falar sobre as questões ambientais com a
população, numa tentativa de despertar da consciência pública. O passo mais significativo
viria 8 (oito) anos depois com a Lei nº 6938/81, que institui a Política Nacional do Meio
Ambiente (BRASIL, 1981). E quatro anos mais tarde, a Lei nº 7347/85, a qual “disciplina a
ação civil pública de responsabilidade por danos causados ao meio-ambiente, ao
38
consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico”
(BRASIL, 1985).
Foi só em 1981, com a edição da Lei da Política Nacional do Meio Ambiente, que a
avaliação de impacto ambiental e o licenciamento de atividades efetiva ou
potencialmente poluidoras se tornaram legalmente obrigatórios. Foi também a
primeira lei a conferir legitimidade ao Ministério Público para promover a
responsabilidade civil e criminal por danos ambientais, embora só em 1985 o
Ministério Público tenha passado a contar com um instrumento processual eficiente
para responsabilizar civilmente os autores de danos ambientais, com a edição da Lei
nº 7347/85, que cria a ação civil pública. (SANTILLI, 2005, p. 29)
Em 1988, a Constituição Federal, passa a trazer em seu texto, a proteção ao meio
ambiente em um capítulo dedicado a este fim. Destaca-se ainda, a criação do Instituto
Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis – IBAMA e a
Conferência da ONU sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (ECO-92), que acontece
em 1992, no Rio de Janeiro. (SANTILLI, 2005). Tais instituições ajudaram a
instrumentalizar as decisões em prol do meio ambiente e forneceram subsídios para punir
os crimes contra a natureza, sendo de importância singular nas ações de preservação e
conservação do ambiente no Brasil. Apesar de uma atuação ainda deficitária,
principalmente pelo número mínimo de funcionários face a dimensão do país, pode-se
dizer que apesar de não ser um serviço de excelência, as suas atuações têm sido eficientes
nas atividades de proteção das matas (fauna e flora), rios, mares e de todos os recursos
naturais existentes no território nacional.
3.2. A CARTA MAGNA DE 1988: A CONSTITUIÇÃO CIDADÃ E O MEIO
AMBIENTE
Signatário de tratados de direitos humanos, em 05 de outubro, após a ruptura com o
regime militar e o começo de uma nova perspectiva na sociedade brasileira é que foi
promulgada a chamada “Constituição Cidadã”, que traz já no bojo dos seus primeiros
artigos uma série de direitos aos cidadãos brasileiros (sociais, políticos e civis), a qual
dedica um capítulo inteiro ao meio ambiente.
A constitucionalização do ambiente, ou seja, a elevação das normas de proteção
ambiental ao status constitucional é considerada uma tendência mundial irreversível,
39
dado o crescente número de nações que passaram a incluir em suas respectivas
Cartas normas de tal natureza. Nesse contexto, a Constituição Federal do Brasil de
1988 é reconhecida internacionalmente como merecedora de elogios quanto à
preocupação ambiental que ostenta. De fato, a Carta de 1988 apresenta uma série de
preceitos quanto a tutela ambiental, seja de forma fragmentada em diversos
capítulos, seja em um capítulo específico do meio ambiente. (BELTRÃO, 2009, p.
60)
Antes de adentrar na análise do artigo 225, da Constituição Federal, vale destacar
que o mesmo se refere ao meio ambiente no Brasil, em que pese a redundância do nome
que associa dois sinônimos, meio e ambiente, merece destaque o artigo 3º da Lei nº
6938/81, que traz a definição para o direito brasileiro, do que seja o meio ambiente
constitucionalmente protegido.
Art. 3º, I - meio ambiente, o conjunto de condições, leis, influências e interações de
ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas
formas. (BRASIL, 1981)
Já dentre tantos pontos importantes no artigo 225, da CF/88, um que deve ser
ressaltado é que ao mesmo tempo em que ele reconhece o direito ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado, ele também impõe o dever de conservá-lo e preservá-lo para às
presentes e futuras gerações. Talvez a mensagem mais importante do referencial legal em
comento: a atribuição de um direito que ao mesmo tempo encerra um dever a toda
coletividade.
Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de
uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder
Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e
futuras gerações. (BRASIL, 1988)
É ponto de destaque também, que a Carta Magna de 1988, além de dedicar um
capítulo exclusivo para o meio ambiente, a tutela ambiental também está presente em
diversos outros artigos, o que denota a importância do meio como ponto definidor do
princípio da dignidade da pessoa, consagrado no Artigo 1º, III, CF/88 (BRASIL, 1988).
Com base nessas informações, doutrinariamente o meio ambiente foi classificado
em 03 aspectos: o natural, o artificial e o cultural (BELTRÃO, 2009). Alguns teóricos e
doutrinadores falam em meio ambiente do trabalho e outros já passam a incluir também o
40
patrimônio genético, no entanto muitos entendem que o primeiro está inserido no meio
ambiente artificial e o segundo no natural (AMADO, 2011).
O meio ambiente cultural “consiste nas intervenções humanas, materiais ou
imateriais, que possuem um especial valor cultural, referente à identidade, à ação, à
memória dos diferentes grupos formadores da nacionalidade ou sociedade brasileiras”
(BELTRÃO, 2009, p. 25).
Segundo Milaré (2009) a Constituição federal consagra inequivocamente o
princípio do desenvolvimento sustentável, ou seja, quando se fala em proteção ambiental,
busca-se não só conservar a fauna, a flora, o ar, a atmosfera, mas também todas as
alterações físicas, químicas e biológicas feitas. Distancia-se daquele pensamento de
crescimento econômico e desenvolvimento zero e passa-se a adotar uma nova postura, que
é o equilíbrio entre o desenvolvimento e a conservação. O artigo 225 da Constituição
Federal de 1988 se relaciona diretamente com outros tantos artigos constantes da Carta
Magna.
[...] a necessidade de se procurar um equilíbrio ou harmonia entre os fatores sociais,
ambientais e econômicos e exigir-lhes proporção adequada e racional, sempre em
busca da qualidade de vida, principalmente no ambiente urbano, que o homem
moderno escolheu para viver. (MILARÉ, 2009, p. 541)
Em se tratando de matéria ambiental, o município pode suplementar a legislação
federal e estadual, dividindo a competência com a União e os estados, conforme se segue:
Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos
Municípios:
I - zelar pela guarda da Constituição, das leis e das instituições democráticas e
conservar o patrimônio público; (...)
III - proteger os documentos, as obras e outros bens de valor histórico, artístico e
cultural, os monumentos, as paisagens naturais notáveis e os sítios arqueológicos;
(...)
IV - impedir a evasão, a destruição e a descaracterização de obras de arte e de outros
bens de valor histórico, artístico ou cultural; (...)
VI - proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas;
VII - preservar as florestas, a fauna e a flora; (BRASIL, 1988)
Volta-se aqui, ao pensamento difundido pela Agenda 21, de que se deve pensar
globalmente, mas as ações têm que ser locais. Vale o parêntese aqui, para destacar que se
acredita que em matéria ambiental deva haver um trabalho integrado entre várias
41
secretarias municipais. Estas não devem trabalhar isoladamente, uma vez que os resultados
obtidos podem vir a ser desastrosos no que se refere à proteção ambiental do lugar.
3.3. A POLÍTICA DE DESENVOLVIMENTO URBANO COMO PREVISÃO
CONSTITUCIONAL
No Brasil, o processo de urbanização foi acelerado pelas políticas
desenvolvimentistas do governo de Juscelino Kubitscheck, com a intensificação do
processo de industrialização a partir de 1956, mas só com a Constituição Federal de 1988 é
que a política urbana passou a ter previsão constitucional.
Em se tratando de matéria de desenvolvimento e meio ambiente, cerne desta
pesquisa, não se poderia deixar de fora o capítulo II da Constituição de 1988, o qual
estabelece a política de desenvolvimento urbano no Brasil nos seus artigos 182 e 183.
O artigo 182 traz o objetivo da política de desenvolvimento urbano, atribuindo ao
Poder municipal a sua execução.
Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público
municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei têm por objetivo ordenar o
pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem- estar de seus
habitantes. (BRASIL, 1988)
Do artigo lido anteriormente, vale destacar o princípio da função social, tão
mencionado e debatido no direito brasileiro. Para Diniz (1998, p. 613), “função social
consiste na atividade e papéis exercidos por indivíduos ou grupos sociais, com o escopo de
obter o atendimento de necessidades específicas”. Ou seja, quando se fala em
desenvolvimento urbano, diversos aspectos devem estar atrelados a ele, um desses é o
princípio da função social.
O § 1º do artigo 182 da Constituição Federal afirma que: “ O plano diretor,
aprovado pela Câmara Municipal, obrigatório para cidades com mais de vinte mil
habitantes, é o instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana.”
(BRASIL, 1988)
A previsão do Plano Diretor é norteada por princípios constitucionais fundamentais,
como “a função social da propriedade, o desenvolvimento sustentável, as funções sociais
42
da cidade, o princípio da igualdade e da justiça social e o princípio da participação
popular” (BRASIL, 2001). Segundo Meirelles (2011, p. 115), “o plano diretor ou plano
diretor de desenvolvimento integrado”, como era chamado antes, é definido da seguinte
maneira:
[...] é o complexo de normas legais e diretrizes técnicas para o desenvolvimento
global e constante do Município, sob os aspectos físico, social, econômico e
administrativo, desejado pela comunidade local. Deve ser a expressão das aspirações
dos munícipes quanto ao progresso do território municipal no seu conjunto cidade-
campo. É o instrumento técnico-legal definidor dos objetivos de cada
Municipalidade e, por isso mesmo, com supremacia sobre os outros, para orientar
toda atividade da Administração e dos administrados nas realizações públicas e
particulares que interessem ou afetem a coletividade. (MEIRELLES, 2011, p. 115)
O parágrafo 2º do artigo 182 da Carta Magna brasileira enaltece a função social da
propriedade bem como as punições arbitradas pelo Estado para o não cumprimento desse
princípio. Vejamos: “A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às
exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor.” (BRASIL,
1988). Dando continuidade à proteção ao princípio da função social da propriedade o
artigo 183, estabelece os critérios para a ação de usucapião urbana.
Art. 183. Aquele que possuir como sua área urbana de até duzentos e cinqüenta
metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a
para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja
proprietário de outro imóvel urbano ou rural. (BRASIL, 1988)
No entanto, os artigos 182 e 183 da Constituição Federal só foram regulamentados
em 2001, ou seja, 13 (treze) anos depois de promulgada a Carta Magna, quando entrou em
vigor a Lei Federal nº 10.257, popularmente conhecida como Estatuto da Cidade.
Dentre tantas coisas, a Lei 10.257/01 estabeleceu parâmetros e diretrizes gerais da
política e gestão urbana no Brasil, que devem ser aplicados pela União, Estados e
principalmente pelos municípios.
O município é o ente federativo principal responsável em promover a política
urbana visando ao desenvolvimento das funções sociais da cidade, de modo a garantir que
a propriedade urbana cumpra sua função social.
43
A Constituição estabeleceu competência privativa para legislar sobre assuntos de
interesse local além de promover o ordenamento territorial, mediante planejamento e
controle do uso, parcelamento e da ocupação do solo urbano, conforme artigo 30, I, II e
VII.
Art. 30. Compete aos Municípios:
I - legislar sobre assuntos de interesse local;
II - suplementar a legislação federal e a estadual no que couber;
VIII - promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante
planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano;
(BRASIL, 1988)
A preservação do meio ambiente e a garantia do direito à cidades sustentáveis
também estão explícitas em alguns dos artigos da Lei nº 10251/2001:
[...] Art. 2º- A política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das
funções sociais da cidade e da propriedade urbana, mediante as seguintes diretrizes
gerais:
I – garantia do direito a cidades sustentáveis, entendido como o direito à terra
urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infra-estrutura urbana, o transporte e
aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações;
[...]
XII – proteção, preservação e recuperação do meio ambiente natural e construído, do
patrimônio cultural, histórico, artístico, paisagístico e arqueológico; (BRASIL,
2001)
Outro ponto que merece total atenção nas previsões legais do Estatuto da Cidade,
diz respeito ao Direito de Preempção. Segundo Meirelles (2011, p. 171), “preempção
significa preferência”. No entanto vale destacar que essa preferência nãoé exercida de forma
arbitrária. A Administração pública tem sim preferência, mas em situações que devem estar
devidamente explicitadas no Plano Diretor da cidade. Um dos pontos importantes a ser
analisado nessa pesquisa, dada a riqueza cultural do município de Laranjeiras e os inúmeros
casarões que constituem o patrimônio edificado da cidade.
Art. 26. O direito de preempção será exercido sempre que o Poder Público necessitar
de áreas para:
[...]
VI – criação de espaços públicos de lazer e áreas verdes;
VII – criação de unidades de conservação ou proteção de outras áreas de interesse
ambiental;
44
VIII – proteção de áreas de interesse histórico, cultural ou paisagístico; (BRASIL,
2001)
A urbanização se dá quando determinado lugar passa a perder as características
rurais e passa a ter características urbanas, por isso, a importância do município nesse
aspecto, vez que é este ente federativo o principal responsável pelo processo de
desenvolvimento urbano local. Por este motivo, é que o objetivo principal desta pesquisa é
analisar de que forma a legislação urbanística e ambiental municipal contempla seu
patrimônio material e imaterial no que concerne às questões socioambientais.
No próximo tópico serão apresentadas, através de uma breve análise, as leis
municipais que foram objeto de estudo no presente trabalho.
3.4. AS LEIS MUNICIPAIS ANALISADAS NA PESQUISA
3.4.1 Plano diretor: instrumento básico da política urbana
Em quase todos os estados brasileiros, a expressão “plano diretor” refere-se a um
plano abrangente e sem vinculação jurídica. Tem casos que ele trata de todos os aspectos
da gestão urbana, em outros apenas de aspectos urbanísticos. Ao longo dos anos ele
recebeu diversas outras denominações populares como “plano de desenvolvimento local
integrado”, “plano urbanístico básico”, “plano estratégico”, “plano piloto” e “plano diretor
de desenvolvimento urbano”.
De acordo com Pinto (2006), existem três grandes modelos internacionais de
planejamento urbano, o norte-americano, o europeu continental e o britânico. Ainda
segundo o autor, o modelo brasileiro tradicional segue o modelo norte-americano.
[...] Uma leitura atenta do artigo 182 permite concluir que o plano diretor
constitucional não é o máster plan norte-americano, mas o plano urbano europeu
continental. O § 1º do art. 182, associa o cumprimento da função social da
propriedade ao atendimento do plano diretor. No mesmo sentido, o parágrafo 4º,
atribui ao plano diretor a fixação do “adequado aproveitamento” do solo urbano,
com base no qual se pode estabelecer seu parcelamento ou edificação compulsórios.
(PINTO, 2006, p. 340)
Por força da previsão constitucional, o Plano diretor só seria obrigatório nas cidades
com mais de 20.000 (vinte mil) habitantes, no entanto, deve ser elaborado por todo e
45
qualquer município independente da quantidade de habitantes, tendo em vista que se trata
de parâmetro para que se possa verificar se a propriedade urbana estaria cumprindo ou não
a sua função social.
Uma das peculiaridades do Plano Diretor é a necessidade da participação da
comunidade e da aprovação pelo legislativo municipal. O processo de elaboração do Plano
Diretor está previsto nos artigos 39 a 42, da Lei 10.257/01, conhecida como Estatuto da
Cidade, conforme transcritos abaixo:
Art. 39. A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às
exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor,
assegurando o atendimento das necessidades dos cidadãos quanto à qualidade de
vida, à justiça social e ao desenvolvimento das atividades econômicas, respeitadas as
diretrizes previstas no art. 2º desta Lei. (BRASIL, 2001)
O Plano Diretor de uma cidade deve também prever a outorga onerosa do direito de
construir, as operações urbanas consorciadas, o direito de preempção, a transferência do
direito de construir e as Zonas Especiais de Interesse Social (MEIRELLES, 2011).
Vale destacar um dos requisitos obrigatórios na elaboração do Plano Diretor é a
realização de audiências públicas no Executivo municipal, não só no processo de
elaboração, como também no processo de implementação, respeitando o chamado espaço
público de discussões, uma das conquistas advindas de movimentos sociais. O legislador se
preocupou efetivamente em preservar a participação popular. Afinal de contas está se
definindo metas que dizem respeito à população em geral e que assegurem uma sadia
qualidade de vida, respeitando o Princípio da Dignidade da pessoa humana.
Essas audiências públicas também são obrigatórias no âmbito do legislativo
municipal durante o processo de aprovação pela Câmara Municipal. As audiências públicas
não são uma faculdade, são obrigatórias, única e simplesmente pela previsão no Estatuto
da cidade. Destaque-se que a não realização pode representar um vício processual por
desrespeito ao princípio constitucional da participação popular. No processo legislativo,
constituem condição de validação da edição da lei, sendo que a sua ausência gera um vício
formal (MEIRELLES, 2011).
No mais, é importante deixar claro que além da participação popular assegurada
constitucionalmente, o direito à informação, oriundo do princípio da publicidade, garante
aos cidadãos brasileiros, acesso a todos os atos e documentos da Administração pública.
46
Além de ser obrigatório nas cidades com mais de vinte mil habitantes (BASIL,
1988), também existe a obrigatoriedade para cidades com menos de vinte mil habitantes
(BRASIL, 2001), mas integrantes de regiões metropolitanas e aglomerações urbanas, de
áreas de interesse turístico, ou inseridas na área de influência de empreendimentos ou
atividades com significativo impacto ambiental de âmbito regional ou nacional.
Para os municípios que não estão sob nenhuma dessas características, só será
obrigatório se houver a pretensão de utilizar instrumentos da edificação ou parcelamento
compulsório, do imposto sobre a propriedade progressivo no tempo e a desapropriação
para fins de reforma urbana, bem como a outorga do direito de construir (BRASIL, 1988).
Ressaltando que nos municípios onde existe a obrigatoriedade, a não existência do Plano
Diretor resultará na impossibilidade da Administração Pública de exercer essas faculdades.
Destaque-se ainda que além da implementação, o Plano Diretor precisa ser revisto a cada
10 (dez) anos. Isso porque as cidades se expandem, evoluem e as necessidades passam a
serem outras, necessitando assim uma revisão de quais são e quais serão as prioridades.
Do ponto de vista de Rolnik et all (2001, p. 43), o plano diretor deve explicitar qual
o objetivo da política urbana, através do chamado “macrozoneamento”, ou seja, “a divisão
do território em unidades territoriais que expressem o destino que o município pretende dar
às diferentes áreas da cidade”.
Apesar de toda importância e toda legislação regulamentadora, pouco se tem
observado acerca de eficácia real dos planos diretores. Para Rolnik et all (2001, p. 43),
“passadas pelo menos duas décadas de prática de elaboração de Planos Diretores segundo
o receituário tecnocrático, parece evidente a falência do planejamento urbano em produzir
cidades equilibradas e de acordo com as normas”. Já Leitão (2006, p. 321), questiona a
eficácia dos Planos diretores no Brasil, levantando três pontos como causa: “a imprecisão
conceitual, o desconhecimento ou a negação da diversidade dos municípios brasileiros e a
minimização da importância das características e vícios culturais presentes na gestão da
coisa pública brasileira”.
[...] Ao Estatuto da Cidade caberia estabelecer diretrizes gerais para a política
urbana, isto é, oferecer o estatuto jurídico que permitisse às prefeituras definirem
instrumentos próprios capazes de enfrentar questões urbanísticas sempre polêmicas,
a exemplo da função social da propriedade, das condições de preservação do
patrimônio, ou da conservação de valores ambientais, quer naturais, quer
construídos.” (LEITÃO, 2006, p. 328-329)
47
Mesmo diante das controvérsias, a preocupação com o planejamento urbano é de
suma importância, não só das autoridades, mas principalmente para as pessoas que vivem
nas cidades. Hoje, grandes centros sofrem as consequências do crescimento desordenado,
talvez seja ainda possível corrigir isso em municípios em pleno desenvolvimento,
adequando o novo ao já existente, modernizando, mas sem desprezar a história local, mais
do que critérios para construção, se faz de suma importância a definição de critérios de
conservação e uso, dos espaços socioambientais.
3.4.2 Código de edificações
Pode também ser chamado de Código de obras. E como o próprio nome já diz, é um
código de teor técnico, que define normas técnicas para as construções a serem realizadas
naquele município. Segundo Meirelles (2011, p. 216), o “Código de obras deve estabelecer
as condições de apresentação dos projetos de edificação”, daquele município.
No Código de obras só cabem normas técnicas da construção, ou seja, requisitos de
estrutura e composição da obra, segundo a sua natureza e destinação. Bem por isso,
deve o Código diversificar as exigências para cada tipo de obra, visando a adequar a
construção aos fins a que é destinada: residência, indústria, comércio, escritórios e
outros usos especiais. Em última análise, o Código de Obras só deverá conter
imposições estruturais da construção, visando a propiciar segurança e funcionalidade
a cada obra individualmente considerada. (MEIRELLES, 2011, p. 216-217)
3.4.3 Uso, ocupação e parcelamento do solo
No Brasil, o parcelamento do solo urbano é regulamentado pela Lei nº 6766/79. É
uma lei municipal que objetiva o estabelecimento de regras para uso e ocupação do solo.
Em verdade, trata-se de uma lei municipal que irá definir acerca de locais e melhor forma
de uso do território municipal, regulamentando previsões do Plano Diretor municipal.
O controle do uso do solo urbano apresenta-se como das mais prementes
necessidades em nossos dias, em que o fenômeno da urbanização dominou todos os
povos e degradou as cidades mais humanas, dificultando a vida de seus moradores,
pela redução dos espaços habitáveis, pela deficiência de transportes coletivos, pela
insuficiência dos equipamentos comunitários, pela promiscuidade do comércio e da
indústria com áreas de residência e de lazer. (MEIRELLES, 2011, p. 127)
48
3.4.4 Código Ambiental municipal
É o arcabouço legal que regula as ações do Município com relação à preservação,
conservação, defesa, melhoria, recuperação e controle do meio ambiente ecologicamente
equilibrado, de acordo com a previsão constitucional e as leis federais, estaduais que tratem
sobre as questões ambientais. O Código ambiental deve também respeitar as previsões
contidas na Lei orgânica municipal, no Plano Diretor e na lei de uso, ocupação e parcelamento
do solo.
3.5. A LEGISLAÇÃO BRASILEIRA E A PROTEÇÃO À CULTURA
O primeiro gesto considerado como defesa do patrimônio histórico no Brasil foi em
1742, quando o Conde de Galveias, então vice-rei do Brasil, em carta ao governador de
Pernambuco, opôs-se à transformação do Palácio das Duas Torres, construído no período
Nassau em Recife. Depois, apenas em 1922, ouviu-se falar em preservacionismo2 de bens
culturais, com a criação do Museu Histórico Nacional, até que em 1933, mediante um decreto
que atendia uma série de solicitações de intelectuais mineiros, que Ouro Preto passou a ser a
primeira cidade a ser preservada3 no Brasil (SOUZA FILHO, 2006).
A primeira Constituição brasileira a fazer referência à proteção dos bens culturais
imóveis foi a de 1934, o texto ainda não era o ideal, mas era o começo. Na verdade a maior
preocupação do legislador aqui foi de proteger a evasão das obras de arte e não
propriamente proteger a cultura brasileira.
A Constituição de 1934 abriu a possibilidade de o Estado impedir a evasão de obras
de arte, texto tampouco repetido pelas demais constituições brasileiras. É bem
verdade que esta limitação à propriedade privada expressa constitucionalmente passa
a ser desnecessária, porque cada uma das próximas Constituições, de 1937, 1946 e
1967, a emenda de 1969, e a de 1988, colocam outros e maiores limites a
propriedade: o bem público, em 1937, o bem-estar-social, nas demais,afastando-se
cada vez mais do conceito de propriedade absoluta e retirando a inatingibilidade da
2 Em capítulo posterior, foi aberto um tópico para esclarecer acerca da diferença entre preservação e
conservação. Nesse capítulo, muitas vezes serão vistas as palavras preservar e conservar, mas na maioria as duas
estão sendo tratadas como se fossem sinônimos, sem qualquer diferenciação. Elas foram mantidas dessa forma,
em respeito aos autores das referências utilizadas, o que não quer dizer que a autora da pesquisa concorde com a
utilização.
3 Idem item 2.
49
propriedade privada, passando a dar importância cada vez maior ao princípio da
supremacia do interesse público sobre o privado. (SOUZA FILHO, 2006, p. 61)
Merece destaque que nessa época havia um Ministério no Brasil que ocupava as
pastas da educação e da cultura, realidade que se configurou durante muitos anos. E foi a
reestruturação feita nesse ministério por Gustavo Capanema, que possibilita a criação de
institutos e serviços culturais e “para dar consistência ao serviço criado, submete a
apreciação do Presidente Vargas, o anteprojeto de lei que define o conceito e a proteção do
patrimônio histórico e artístico do país” (SOUZA FILHO, 2006, p. 59).
A Constituição de 1937 reduzia a cultura aos bens edificados, aos monumentos.
Segundo Souza Filho (2006, p. 61), “da Constituição de 1937 até a emenda de 1969, bens
culturais e naturais são tratados de forma conjunta, com destaque sempre para os bens
culturais”. Em novembro de 1937, o Decreto-Lei nº 25, torna-se o primeiro instrumento
legal no país destinado a organizar a proteção do patrimônio histórico e cultural. Vejamos
qual é a definição de patrimônio na própria letra do decreto supracitado:
Art. 1º Constitue(sic) o patrimônio histórico e artístico nacional o conjunto dos bens
móveis e imóveis existentes no país e cuja conservação seja de interesse(sic)
público, quer por sua vinculação a fatos memoráveis da história do Brasil, quer por
seu excepcional valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico. (...)
(BRASIL, 1937)
Foi também em 1937, fruto da reestruturação feita por Capanema, que através da Lei
nº 378, fora criado o SPHAN, hoje IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional). Um organismo federal de proteção ao patrimônio, e sua criação foi tida como “o
início do despertar de uma vontade que datava do século XVII em proteger os monumentos
históricos” (IPHAN, 2012). É também no governo Vargas, que se institui o princípio do
tombamento de bens integrantes do patrimônio cultural nacional (LEITE, E., 2011).
Em 1958, o decreto nº 44851, promulga o protocolo relativo à Convenção da Haia de
1954, para a Proteção de Bens Culturais em Caso de Conflito Armado, sendo o mesmo
ratificado em 2006, através do decreto 5760, após novo protocolo celebrado na Haia, em
26/03/1999. Em 1969, mesmo sob a égide do regime militar, o Estado já reconhecia a sua
obrigação de conservar45 o patrimônio histórico.
4 Idem item 2.
50
A contribuição do período militar brasileiro para a preservação dos bens culturais
nas Constituições outorgadas foi acrescentar a proteção aos sítios arqueológicos, que
são uma especialidade das obras ou monumentos históricos. Por ser uma
especialidade, as modernas legislações têm dado atenção cuidadosa às jazidas
arqueológicas, porque nem sempre já estão descobertas, e os critérios de escavação,
preservação, pesquisa e utilização devem obedecer à disciplina e ciência próprias.
(SOUZA FILHO, 2006, p. 63)
Tanto assim, que foi editada a Emenda Constitucional nº 01, a qual modifica o art.
180, da Constituição de 1967, impondo a responsabilidade do amparo à cultura como um
dever do poder público.
Art. 180. O amparo à cultura é dever do Estado.
Parágrafo único. Ficam sob a proteção especial do Poder Público os documentos, as
obras e os locais de valor histórico ou artístico, os monumentos e as paisagens
naturais notáveis, bem como as jazidas arqueológicas. (BRASIL, 1967)
Mas só em meados da década de 70 é que os assuntos ligados à preservação6 do
patrimônio histórico passaram a ser discutidos com a população em geral. E em 1988, a
Constituição Federal em seu artigo 216, constitucionaliza a proteção ao patrimônio cultural
brasileiro. Destaque-se que a proteção constitucional não é apenas para os bens imóveis,
para a cultura material, estende-se também ao patrimônio imaterial, constituindo um
importante avanço no processo de proteção das riquezas culturais brasileiras.
Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e
imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à
identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade
brasileira, nos quais se incluem:
I - as formas de expressão;
II - os modos de criar, fazer e viver;
III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas;
IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às
manifestações artístico-culturais;
V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico,
arqueológico, paleontológico, ecológico e científico. (BRASIL, 1988)
5 Idem item 2.
6 Idem item 2.
51
De acordo com Milaré (2009, p. 264), a Carta Magna de 1988, diferentemente da
Constituição de 1934, “abraçou os mais modernos conceitos científicos sobre a matéria”.
Assim, o patrimônio cultural é brasileiro e não regional ou municipal, incluindo bens
tangíveis (edifícios, obras de arte) e intangíveis (conhecimentos técnicos)
considerados individualmente e em conjunto; não se trata somente daqueles eruditos
e excepcionais, pois basta que tais bens sejam portadores de referência à identidade,
à ação, à memória dos diferentes grupos que formam a sociedade brasileira.
(MILARÉ, 2009, p. 264)
Vale observar, que assim como o artigo 225, da Constituição Federal impõe à
administração pública e à coletividade defender e preservar7 o meio ambiente equilibrado. Da
mesma forma o § 1º, do artigo 216, ao mesmo tempo em que impõe o dever de promover e
proteger o patrimônio cultural brasileiro ao Poder Público, também faz a mesma imposição à
comunidade. Fato que reforça, ser imprescindível a participação popular no processo de
preservação cultural.
§ 1º - O Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o
patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância,
tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação.
(BRASIL, 1988)
Não resta dúvida ao se afirmar que a Constituição de 1988 representou grande avanço
na proteção legal aos chamados direitos difusos, principalmente no tocante ao meio ambiente
e às questões culturais. Tal é o que afirma Santilli, na seguinte citação do livro
Socioambientalismo e novos direitos:
Indubitalvemente, a Constituição de 1988 representou um marco e um grande
avanço na proteção jurídica ao meio ambiente. Tanto a biodiversidade- os processos
ecológicos, as espécies e ecossistemas – quanto a sociodiversidade são protegidas
constitucionalmente, adotando o paradigma socioambiental. A Constituição seguiu
uma orientação claramente multicultural e pluriétnica, reconhecendo direitos
coletivos a povos indígenas e quilombolas, e assegurando-lhes direitos territoriais
especiais. (SANTILLI, 2005, p. 41-42)
7 Idem item 2.
52
3.6 O TOMBAMENTO
Instrumento aliado no processo de preservação8 cultural, principalmente do patrimônio
edificado o tombamento está legalmente previsto no § 1º, do art. 216, da Constituição Federal:
§ 1º - O Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o
patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância,
tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação.
(BRASL, 1988)
O vocábulo tombamento vem do verbo tombar, significa inventariar, registrar ou
inscrever bens. É uma palavra de origem portuguesa, usada no sentido de registrar algo
(BASTOS apud SCARIOT, 2012). Meirelles, (2011, p. 153) define tombamento como sendo
“a declaração pelo Poder Público do valor histórico, artístico, paisagístico, turístico, cultural
ou científico de coisas ou locais, que, por essa razão, devam ser preservados, de acordo com a
inscrição em livro próprio.”
No ordenamento jurídico brasileiro, o tombamento está regulamentado nos
capítulos II e III, do Decreto lei nº 25 de 30 de novembro de 1937:
Art. 5º O tombamento dos bens pertencentes à União, aos Estados e aos Municípios se fará
de ofício, por ordem do diretor do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, mas
deverá ser notificado à entidade a quem pertencer, ou sob cuja guarda estiver a coisa tombada,
afim de produzir os necessários efeitos.
Art. 6º O tombamento de coisa pertencente à pessoa (sic) natural ou à pessoôa(sic) jurídica de
direito privado se fará voluntária ou compulsóriamente(sic). [...] (BRASIL, 1937)
O instituto do tombamento é um ato administrativo, através do qual a
Administração Pública intervém na propriedade privada através do exercício do seu poder
de polícia. Frisando que, como a Constituição legitima para o tombamento o “poder
público”, tanto a União, os Estados, Distrito Federal e municípios podem dispor a esse
respeito, sendo que, no âmbito federal a responsabilidade é do IPHAN- Instituto do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Já na esfera estadual e municipal, a
responsabilidade cai sobre o respectivo órgão criado para esse fim (MEIRELLES, 2011).
8 Idem item 2.
53
DOS EFEITOS DO TOMBAMENTO
Art. 11. As coisas tombadas, que pertençam à União, aos Estados ou aos
Municípios, inalienáveis por natureza, só poderão ser transferidas de uma à outra das
referidas entidades.
Parágrafo único. Feita a transferência, dela deve o adquirente dar imediato
conhecimento ao Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.
[...]
Art. 13. O tombamento definitivo dos bens de propriedade particular será, por
iniciativa do órgão competente do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional, transcrito para os devidos efeitos em livro a cargo dos oficiais do registro
de imóveis e averbado ao lado da transcrição do domínio. [...] (BRASIL, 1937)
Se o tombamento atinge determinado bem, segundo o pensamento de Meirelles
(2011), acarreta uma restrição individual, onde há apenas redução dos direitos do
proprietário ou a imposição de encargos. No entanto, também pode atingir a coletividade,
gerando a obrigação do respeito a padrões urbanísticos ou arquitetônicos, acarretando
assim, uma limitação geral. Importante ressaltar que tombar não é desapropriar.
Art. 17. As coisas tombadas não poderão, em caso nenhum ser destruidas,
demolidas ou mutiladas, (GRIFOU-SE) nem, sem prévia autorização especial do
Serviço do Patrimônio Histórico e Artistico Nacional, ser reparadas, pintadas ou
restauradas, sob pena de multa de cincoenta(sic) por cento do dano causado.
[...]
Art. 21. Os atentados cometidos contra os bens de que trata o art. 1º desta lei são
equiparados aos cometidos contra o patrimônio nacional. (BRASIL, 1937)
No tombamento a propriedade do bem não é alterada. A administração apenas
intervém no sentido de proibir o particular de fazer alterações que venham a destruir ou
descaracterizar o bem tombado (MEIRELLES, 2011). O objetivo é apenas o de garantir
que serão mantidas as características originais que a edificação possuía na data do
tombamento.
As coisas tombadas, embora permaneçam no domínio e posse dos seus proprietários,
não poderão, em caso algum, ser demolidas, destruídas ou mutiladas, nem pintadas
ou reparadas, sem prévia autorização do IPHAN, sob pena de multa de 50% do dano
causado (art. 17). (MEIRELES, 2011, p. 156)
54
Em que pese, a principal finalidade do tombamento é preservar9 algo, que tanto
pode ser bens materiais, móveis ou imóveis, não havendo uniformidade na doutrina no que
diz respeito a sua natureza jurídica.
A doutrina não é pacífica quanto à natureza jurídica do tombamento, entendendo
alguns que se trata de simples limitação administrativa, e outros que ele configura
uma servidão administrativa, exatamente pelo fato de gerar um direito à
indenização, na medida dos danos ou das restrições impostas à propriedade.
(MEIRELLES, 2011, p. 154)
De acordo com Meirelles (2011), o tombamento para ser efetivado necessário um
procedimento administrativo, respeitando o princípio do devido processo legal, tendo em
vista a intervenção no direito de propriedade do administrado. Um dos primeiros atos do
procedimento é a notificação do proprietário, dando-lhe a oportunidade de defesa.
Importante frisar que qualquer nulidade no procedimento pode ser pronunciada pelo
Judiciário, tornando nulo o tombamento.
O tombamento realiza-se através de um procedimento administrativo não vinculado,
que conduz ao ato final de inscrição do bem num dos Livros de Tombo. Nesse
procedimento deve ser notificado o proprietário do bem a ser tombado, dando-se-lhe
oportunidade de defesa na forma da lei. Nulo será o tombamento efetivado sem
atendimento das imposições legais e regulamentares, pois que, acarretando restrições
ao exercício do direito de propriedade, há que se observar o devido processo legal
para sua formalização, e essa nulidade pode ser pronunciada pelo Judiciário, na ação
cabível, em que serão apreciadas tanto a legalidade dos motivos quanto a
regularidade do procedimento administrativo em exame. O Tribunal de Justiça de
São Paulo já concedeu mandado de segurança contra o tombamento de imóvel que,
comprovadamente, não apresentava valor histórico ou cultural, configurando o fato
evidente desvio de poder da Administração. (MEIRELES, 2011, p. 153-154)
Identificado o bem pelo órgão competente e aberto o processo de tombamento, até
a decisão final a preservação daquele bem já estará assegurada. Após o tombamento
definitivo, somente caberá recurso ao Presidente da República, que poderá cancelá-lo, até
mesmo de ofício.
A abertura do processo de tombamento, por deliberação do órgão transformar-se em
abuso de poder, corrigível por via judicial.
9 Nesse contexto na opinião da autora deveria estar a palavra conservar. No entanto, em se tratando de
tombamento a palavra mais adequada é preservar. Ou seja, preservar é como se quisesse congelar o objeto, para
que o tempo não o destrua, já a conservação, seria promover o uso racional pela população.
55
Feito o tombamento definitivo, caberá recurso ao Presidente da República, para o
cancelamento, na forma estabelecida pelo artigo único do Decreto-lei 3.866, de
29.11.1941. Esse cancelamento, aliás, pode ser determinado até mesmo de ofício,
“atendendo a motivos de interesse público”, como diz o mencionado artigo. Não é
de se louvar o poder discricionário que se concedeu a Presidente da República em
matéria histórica e artística, sobrepondo-se seu juízo individual ao do colegiado do
IPHAN, a quem incumbe competente, assegura a preservação do bem até a decisão
final, a ser proferida dentro de 60 dias, ficando sustada desde logo qualquer
modificação ou destruição. (MEIRELES, 2011, P. 155-156)
No que diz respeito à indenização, vale salientar que nem todo processo de
tombamento gera esse direito. Doutrinariamente analisando, a indenização é necessária vez
que as condições impostas acarretam despesas extras para os proprietários e resulta
interdição de uso ou depreciam seu valor econômico, face às restrições impostas.
Art. 5º. Consideram-se casos de utilidade pública:
[...]
k) a preservação e conservação dos monumentos históricos, e artísticos, isolados ou
integrados em conjuntos urbanos ou rurais, bem como as medidas necessárias a
manter-lhes e realçar-lhes os aspectos mais valiosos ou característicos e, ainda, a
proteção de paisagens e locais particularmente dotados pela natureza; (BRASIL,
1941)
No entanto, apesar de toda essa legislação, ainda existem situações em que o poder
público se omite. Nesses casos, necessário se faz a intervenção do Ministério Público
através de Ação Civil Pública ou através de cidadãos com Ação Popular, fazendo com que
o Poder Judiciário determine que o poder público passe a proteger aquele bem. Esse
procedimento também pode ser adotado, nos casos em que a Administração inicia o
processo de tombamento e não finaliza, afetando o direito de propriedade do particular,
lesando o patrimônio individual.
Vale salientar ainda que estão também sujeitos ao tombamento bens móveis,
alimentos, bens imateriais como as danças, rituais religiosos. Aqui impende registrar a
existência desse tipo de tombamento no patrimônio cultural de Laranjeiras, o que será
avaliado mais minuciosamente em capítulo posterior.
3.7 DANO AO PATRIMÔNIO CULTURAL: CRIME LESIVO AO MEIO AMBIENTE
Geralmente quando se fala em crime ambiental, o pensamento automaticamente se
reporta a danos causados a flora, a fauna, aos rios, oceanos. No entanto, os bens culturais
56
também são protegidos de possíveis danos pela legislação ambiental. Importante alertar,
que anteriormente, nessa mesma pesquisa fora apresentada a subdivisão doutrinária de
quando se fala em meio ambiente, para lembrar: artificial, natural e cultural.
Merece destaque que o Código Penal, uma lei editada em 1940 e em vigor até hoje,
trazia a proteção ambiental ainda que de maneira bem sutil. Os artigos de 163 à 167,
tratavam acerca do dano. Dentre os quais destaca-se a introdução ou abandono de animais
em propriedade alheia, onde a punição não era pelo abandono do bicho, mas pelo dano que
viesse a ser causado pelo mesmo na propriedade alheia. Incluía também o dano em coisa
de valor artístico, arqueológico ou histórico. Salientando aqui, que o artigo previa a
proteção apenas aos bens tombados. E por fim, o artigo 166, do livro penal, que previa a
punição para a alteração de lugar especialmente protegido por lei, ou seja, aqui o bem
jurídico protegido é o patrimônio que tanto pode ser público ou privado, devendo para a
consumação do crime existir a alteração do aspecto paisagístico do bem. Vale frisar que o
Código Penal deixa brechas a impunidade, principalmente quando existe uma valoração
subjetiva para considerar que de fato tenha havido o crime e este seja passível de punição
pelo estado-jurisdicional.
Art. 165 - Destruir, inutilizar ou deteriorar coisa tombada pela autoridade
competente em virtude de valor artístico, arqueológico ou histórico:
Pena - detenção, de seis meses a dois anos, e multa.
Art. 166 - Alterar, sem licença da autoridade competente, o aspecto de local
especialmente protegido por lei:
Pena - detenção, de um mês a um ano, ou multa. (BRASIL, 1940)
A imputação de responsabilidade criminal aos danos causados ao meio ambiente vem
da própria Constituição de 1988, do seu artigo 225, § 3º. Ressalvando que, as punições nas
esferas administrativas e penais, não eximem o responsável de reparar os danos causados.
Art. 225 [...] § 3º - As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente
sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e
administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados.
(BRASIL, 1988)
Em verdade, a Constituição de 1988, apenas ampliou a abrangência das condutas
lesivas ao meio ambiente, vez que, muito antes dessa data, outras leis no ordenamento
jurídico brasileiro tratavam da questão ambiental.
57
A ampla proposta constitucional de criar um sistema de responsabilização com
relação ao meio ambiente, com uma maior e mais efetiva abrangência, tem razão de
ser na própria realidade da degradação ambiental do País. Pois, na mesma proporção
de riqueza e diversidade do meio ambiente no extenso território brasileiro e seus
ricos biomas naturais, também são as práticas lesivas contra o meio ambiente que se
multiplicam na sua abrangência, violência e impunidade, práticas criminosas
alimentadas m sua cultura social e econômica de desrespeito, desconsideração e
exploração agressiva do meio ambiente, e em uma indiferença e omissão do Poder
Público na sua proteção. (PADILHA, 2010, p. 297-298)
Mesmo com todo o aparato constitucional, só dez anos depois, em 13/02/1998, é
sancionada a Lei nº 9605, chamada de Lei dos Crimes ambientais. É importante ressaltar
que essa lei não revogou nenhuma lei anterior que tratasse sobre crimes ou contravenções
penais, como também não restringiu ao legislador que continuasse a produzir leis voltadas
à punição dos crimes ambientais. Considera-se que esse talvez seja um dos grandes
problemas no ordenamento jurídico brasileiro: o excesso de leis, pouca efetividade e
objetividade para aplicação de penas de modo a assegurar que seja realmente punido o
autor de qualquer crime. O fato é que o crime ambiental não atinge apenas o bem protegido
e sim a todos indistintamente. A lei que pune crimes ambientais é relativamente recente no
ordenamento jurídico, advinda como regulamentação ao direito constitucional expresso no
artigo 225 da Constituição Federal. Se voltarmos ao capítulo anterior, podemos bem
relacionar esse problema na punição ineficaz do crime ambiental com a necessidade de
mudança de paradigma que se propõe na relação homem e natureza.
As leis não funcionam isoladamente, eles são parte do contexto social e sua eficácia
não depende apenas de Juízes ou de normas mais rígidas, depende mesmo da certeza de
que haverá punição para o cometimento daquele crime, o que na maioria das vezes não
ocorre no Brasil, uma vez que nosso direito penal é garantista, situação da qual se
aproveitam aqueles que querem viver da impunidade. Vale ressaltar que não estamos aqui
afirmando que a lei de crimes ambientais é inútil. De maneira alguma, a lei em questão
representa um passo importantíssimo na prevenção e repressão da degradação ambiental,
mas isso também não quer dizer que por si só seja perfeita a ponto de não merecer críticas.
O trato aos crimes contra o meio ambiente exigem adequações dada a sua abrangência e
dimensão, conforme se depreende do trecho abaixo:
[...] o tratamento jurídico do meio ambiente, em qualquer área, exige adaptações
necessárias à amplitude de seu próprio conceito e abrangência, pois o meio ambiente
não possui sequer conceito definitivo, dada a sua multidisciplinaridade, e realmente,
58
nem mesmo a norma penal poderá definir todos os elementos da matéria ambiental.
É preciso que o Direito Penal encontre seu caminho de eficácia para lidar com a
criminalização das condutas lesivas ao meio ambiente, mesmo que ele quebre
paradigmas e tradições jurídicas clássicas que, entretanto, não atendam à
necessidade de criminalização da degradação ambiental. (PADILHA, 2010, p. 299)
Um dos pontos fortes da lei 9605/98, é o reconhecimento da responsabilidade
criminal das pessoas jurídicas. Em matéria ambiental considera-se isso como um grande
avanço legislativo, tendo em vista que muitas vezes, o crime ambiental é cometido por
grandes empresas, principalmente no tocante a possibilidade de se atribuir penas, tais como
aplicação de multa, pena restritiva de direitos e prestação de serviço comunitário, que
podem ajudar a inibir esta prática criminal. Em termos de dosimetria da pena, a valoração
será feita com base no dano causado ao meio ambiente, afastando assim o princípio da
culpabilidade como nos casos em que o agente é pessoa física.
Para esta pesquisa, merece destaque o Capítulo II, da seção IV desta Lei, que trata
acerca dos crimes contra o ordenamento urbano e o patrimônio cultural nos artigos 62 à 65.
Segundo Souza Filho (2006, p. 79), “a lei reconhece que os bens culturais fazem parte do
que se chama Direito Ambiental e, portanto, reconhece que meio ambiente não é apenas a
proteção da natureza, mas também o ambiente urbano e, com ele o ambiente cultural”.
Art. 62. Destruir, inutilizar ou deteriorar:
I - bem especialmente protegido por lei, ato administrativo ou decisão judicial;
II - arquivo, registro, museu, biblioteca, pinacoteca, instalação científica ou similar
protegido por lei, ato administrativo ou decisão judicial:
Pena - reclusão, de um a três anos, e multa. (BRASIL, 1998)
A grande conquista do artigo 62 é a ampliação do alcance da proteção, vez que, se
antes a proteção atingia só os bens tombados, agora existe uma maior abrangência,
incluindo a proteção por lei, ato administrativo ou decisão judicial. E o artigo 63, traz a
punição àqueles que venham a alterar algum bem protegido.
Art. 63. Alterar o aspecto ou estrutura de edificação ou local especialmente
protegido por lei, ato administrativo ou decisão judicial, em razão de seu valor
paisagístico, ecológico, turístico, artístico, histórico, cultural, religioso,
arqueológico, etnográfico ou monumental, sem autorização da autoridade
competente ou em desacordo com a concedida:
Pena - reclusão, de um a três anos, e multa. (BRASIL, 1998)
59
O artigo 64 se coaduna muito bem com a lei de uso e ocupação do solo e o código
de obras dos municípios, lembrando que são leis que complementam ou regulamentam
diretrizes do Plano Diretor. Ou seja, feito o zoneamento, a cidade terá lugares protegidos e
lugares onde se permitirá construir. Essas áreas serão protegidas, não importando se tal
fato se dê por conta de um bem artificial ou natural.
No tocante ao artigo 165, Souza Filho (2006), considera-o problema, por entender
que dá ensejo a uma censura cultural a quem pichar ou grafitar edificação ou monumento
urbano, tendo em vista que por não esclarecer a forma de pichação, o tipo de tinta e até a
pichação em prédio não protegido abre margem para diversas interpretações.
Art. 65. Pichar ou por outro meio conspurcar edificação ou monumento urbano:
Pena - detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, e multa. § 1o Se o ato for realizado
em monumento ou coisa tombada em virtude do seu valor artístico, arqueológico ou
histórico, a pena é de 6 (seis) meses a 1 (um) ano de detenção e multa.
§ 2o Não constitui crime a prática de grafite realizada com o objetivo de valorizar o
patrimônio público ou privado mediante manifestação artística, desde que
consentida pelo proprietário e, quando couber, pelo locatário ou arrendatário do bem
privado e, no caso de bem público, com a autorização do órgão competente e a
observância das posturas municipais e das normas editadas pelos órgãos
governamentais responsáveis pela preservação e conservação do patrimônio
histórico e artístico nacional. (BRASIL, 1998).
O mais importante nesse contexto é o aparato legal que hoje gira em torno da
proteção a cultura no país. Destaque-se que aparentemente parece pouco, mas na verdade é
muito, tendo em vista os avanços alcançados desde o Decreto nº 25/37, até a presente data.
Merece ainda ser ponderada a questão da aplicação das penas, que muitas vezes,
quando a condenação é inferior a três anos, isso permite a realização de transação penal.
Ou seja, é concedida ao condenado a possibilidade de conversão em pena restritiva de
direitos, prestação de serviço comunitário dentre outros, destacando uma vez mais que,
independente da esfera penal, os danos também serão reparados na esfera cível.
A competência para processar e julgar esses processos vai depender da localização,
o tipo de bem, a sua propriedade a depender do caso é da justiça estadual comum ou da
Justiça Federal.
60
Terminado o estudo acerca da legislação que embasou o conteúdo da pesquisa,
passamos a uma análise sobre Patrimônio cultural e a amplitude e abrangência do termo.
61
4. PATRIMÔNIO CULTURAL
4.1 CULTURA: UMA PALAVRA DE AMPLA ABRANGÊNCIA
Um dos pontos de maior destaque e importância da presente pesquisa é a discussão
acerca do conceito de cultura. Segundo Leite, E. (2011, p. 26), a palavra cultura tem
origem latina e vem do verbo colere, que significa cultivar. Acredita-se que a cultura tem
relação com a identidade da pessoa, com aquilo com que ela se identifica, se afiniza,
compactua. Ser parte de uma cultura, depende preliminarmente em se auto-reconhecer
membro daquele grupo social.
A questão da identidade é assim semi-fictícia e semi-necessária. Para quem a
formula, apresenta-se sempre como uma ficção necessária. Se a resposta é obtida, o
seu êxito mede-se pela intensidade da consciência de que a questão fora, desde o
início, uma necessidade fictícia. É, pois, crucial conhecer quem pergunta pela
identidade, em que condições, contra quem, com que propósitos e com que
resultados. (SANTOS, B., 1994, p. 32)
Na França iluminista, o sentido de cultura estava ligado ao estado de espírito
vinculado com a instrução, o que associava o significado à ideia de evolução, progresso,
educação, de acordo com Cuche (2002, p. 21), “a cultura, para eles, é a soma dos saberem
acumulados e transmitidos pela humanidade, considerada como totalidade, ao longo de sua
história”.
Para Reisewitz (2004, p. 85), cultura é “tanto aquilo que forma o ser humano, como
o produto dessa formação, num vaivém contínuo, pois aquilo que é produto novamente vai
ser fonte e influenciar uma nova formação e assim, ad infinitum”. Esta definição mostra o
caráter dinâmico e não estático da cultura.
Em que pese, a cultura na visão antropológica é um processo contínuo de
construção, onde o homem é o principal ator não existe um roteiro pré-determinado, ou
seja, as coisas vão acontecendo gradativamente, espontaneamente, sem que haja
acontecimentos intencionais, seria um processo interacional que acontece naturalmente.
Na dimensão antropológica, a cultura se produz através da interação social dos
indivíduos, que elaboram seus modos de pensar e sentir, constroem seus valores,
62
manejam suas identidades e diferenças e estabelecem suas rotinas. Desta forma, cada
indivíduo ergue à sua volta, e em função de determinações de tipo diverso, pequenos
mundos de sentido que lhe permitem uma relativa estabilidade. (BOTELHO, 2001,
p. 02)
Já na visão sociológica existe um padrão que é compartilhado, com a nítida
intenção de perpetuá-lo. Não é algo que acontece despretensiosamente.
Por sua vez, a dimensão sociológica não se constitui no plano do cotidiano do
indivíduo, mas sim em âmbito especializado: é uma produção elaborada com a
intenção explícita de construir determinados sentidos e de alcançar algum tipo de
público, através de meios específicos de expressão. Para que essa intenção se realize,
ela depende de um conjunto de fatores que propiciem, ao indivíduo, condições de
desenvolvimento e de aperfeiçoamento de seus talentos, da mesma forma que
depende de canais que lhe permitam expressá-los. (BOTELHO, 2001, p. 02)
As noções de cultura tanto sociológica como a antropológica, segundo Botelho
(2001) têm o mesmo peso quando se trata de políticas públicas, o que não descarta a
importância da distinção apresentada pelas duas vertentes.
A variedade das vivências humanas faz com que cada cultura seja o resultado de
uma história particular, incluindo as relações com outras culturas e as possibilidades
de movimentação em direção ao futuro. A discussão sobre cultura está muito ligada
à constatação da diversidade e às forças sociais que movem a cidade. (CASTELLS
apud LEITE, 2011, p. 27)
O longo período que vai de 1789 a 1914, segundo Ortiz (1998), foi um período
marcado por rupturas e descontinuidade, intitulado pelo autor de “Dois séculos”, que vai
da Revolução Francesa até sua metade e o outro que se inicia com a Revolução Industrial e
no qual merece destaque o ritmo histórico que deve ser levado em consideração ao se
discutir cultura, considerando de suma importância marcar estas diferenças, tendo em vista
que elas constituem o quadro social em que a problemática cultural se manifesta.
A constituição da nação requer a emergência de uma consciência que solde os
franceses no interior de um mesmo território. Neste sentido, a consolidação de uma
memória coletiva nacional é um produto recente da História. O primeiro desafio que
o Estado-nação enfrenta diz respeito a sua unidade lingüística; a realização de sua
organicidade implica uma luta sistemática contra os dialetos regionais. (ORTIZ,
1998, p. 39)
63
O pensamento de Ortiz (1998, p. 36) é que “as transformações estruturais pelas
quais passa a sociedade induzem ao desaparecimento de toda uma cultura tradicional”, ou
seja, a própria ideia de sociabilidade coletiva entra em crise.
Na reflexão que faz acerca das culturas tradicionais Ortiz (1998) sublinha a
constituição do estado francês, ressalvando que aqui não se refere ao sentido político
administrativo e sim a formação da nação francesa, no sentido de passar a existir uma
unidade mental e cultural dos habitantes que passavam a aderir às leis do Estado.
As culturas nacionais, enquanto substâncias, são uma criação do século XIX, são,
como vimos, o produto histórico de uma tensão entre universalismo e particularismo
gerido pelo Estado. O papel do Estado é dúplice: por um lado, diferencia a cultura
do território nacional face ao exterior; por outro lado, promove a homogeneidade
cultural no interior do território nacional. (SANTOS, B., 1994, p. 47)
A ideia de cultura está intimamente ligada com a identidade de um povo. É um
sentimento coletivo, que liga uns aos outros invisivelmente, mas de maneira sólida, que é o
que faz com que aquela cultura se perpetue.
Lendas ou crenças, festas ou jogos, costumes ou tradições- esses fenômenos não
dizem nada por si mesmos, eles apenas o dizem enquanto parte de uma cultura, a
qual não pode ser entendida sem referência à realidade social de que faz parte à
história de sua sociedade. O fato de que as tradições de uma cultura possam ser
identificáveis não quer dizer que não se transformem, que não tenham sua dinâmica.
Nada do que é cultural pode ser estanque, porque a cultura faz parte de uma
realidade, na qual a mudança é um aspecto fundamental. (SANTOS apud LEITE,
2011, p. 28)
No entanto, manter esses laços vivos não quer dizer que eles devam permanecer
estagnados, é preciso reconhecer que a cultura precisa do seu caráter dinâmico e esse
caráter é imprescindível para mantê-la viva. Considera (SANTOS, B., 1994, p. 49) que
para “uma cultura que verdadeiramente nunca coube num espaço único, às identificações
culturais que daí derivam tendem a auto-canibalizar-se”. A cultura não se perde no tempo
quando acompanha a evolução da história.
64
4.2 PATRIMÔNIO HISTÓRICO CULTURAL
A palavra patrimônio por si só, já se mostra interessante pela sua formação, qual seja,
a união de dois termos, uma de origem no latim e outro de origem grega. O termo “Pater”
significa pai, paterno, em termos mais amplo, os antepassados e o “nomos” origina-se do
grego e se relaciona à lei, usos e costumes relacionados a um grupo social (BIAZZO
FILHO, 2013). No dicionário de língua portuguesa patrimônio significa “herança paterna,
bem que vem de família, riqueza” (XIMENES, 2000, p. 705).
Em 1982, foi realizada no México, a Conferência Mundial da UNESCO sobre
Patrimônio Cultural, na qual foi produzida uma declaração, que dentre outras coisas traz
uma definição de patrimônio cultural.
O patrimônio cultural de um povo compreende as obras de seus artistas, arquitetos,
músicos, escritores e sábios, assim como as criações anônimas surgidas da alma
popular e o conjunto de valores que dão sentido à vida. Ou seja, as obras materiais e
não materiais que expressam a criatividade desse povo: a língua, os ritos, as crenças,
os lugares e monumentos históricos, a cultura, as obras de arte e os arquivos e
bibliotecas. (UNESCO, 1985)
No Brasil, a definição oficial de Patrimônio cultural, está no artigo 216 da
Constituição de 1988. Merece destaque que a Carta Magna brasileira é abrangente e
contempla tanto o patrimônio material quanto o imaterial. O texto constitucional deixa de
contemplar apenas os monumentos históricos e passa a reconhecer todo o arcabouço cultural
brasileiro, em respeito a sua diversidade cultural. Vejamos a confirmação do que vimos
falando na própria letra do artigo em tela.
Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e
imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à
identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade
brasileira, nos quais se incluem:
I - as formas de expressão;
II - os modos de criar, fazer e viver;
III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas;
IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às
manifestações artístico-culturais;
V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico,
arqueológico, paleontológico, ecológico e científico. (BRASIL, 1988)
65
De acordo com Varine-Boham apud Lemos (2006, p. 8-10), o Patrimônio Cultural
divide-se em três grandes categorias de elementos. Primeiro a categoria dos recursos
naturais, do meio ambiente; segundo, a categoria do conhecimento, das técnicas, do saber e
do saber fazer e o terceiro, considerada como a categoria mais importante, “os chamados
bens culturais que englobam toda sorte de coisas, objetos, artefatos e construções obtidas a
partir do meio ambiente e do saber fazer”.
Já consoante Milaré (2009, p. 264), a Constituição de 1988 diferentemente da
Constituição de 1934, “abraçou os mais modernos conceitos científicos sobre a matéria”.
[...] o patrimônio cultural é brasileiro e não regional ou municipal, incluindo bens
tangíveis (edifícios, obras de arte) e intangíveis (conhecimentos técnicos)
considerados individualmente e em conjunto; não se trata somente daqueles eruditos
e excepcionais, pois basta que tais bens sejam portadores de referência à identidade,
à ação, à memória dos diferentes grupos que formam a sociedade brasileira.
(MILARÉ, 2009, p. 264)
Levando em conta todos os conceitos, o patrimônio cultural se confunde com a
história do povo, tem ligação com fatos, lugares, memória. Talvez a mais importante
conquista e abrangência vem da ampliação de patrimônio histórico e artístico para patrimônio
cultural, cuja titularidade é do povo brasileiro.
[...] a cultura de um dado grupo social não é nunca uma essência. É uma auto-
criação, uma negociação de sentidos que ocorre no sistema mundial e que, como tal,
não é compreensível sem a análise da trajetória histórica e da posição desse grupo no
sistema mundial. (SANTOS, B., 1993, p. 43)
Verifica-se que os termos se confundem, mas para esta pesquisa mais cabível a
abrangência do termo patrimônio cultural ao invés da relativização da palavra histórico. Cabe
destacar também que apesar da diversidade cultural regional existente no Brasil, não há que se
falar em divisão de culturas, mas em unificação como forma de fortalecimento da identidade
nacional.
[...] o bem que compõe o chamado patrimônio cultural traduz a história de um povo,
a sua formação, cultura e, portanto, os próprios elementos identificadores de sua
cidadania, que constitui princípio fundamental norteador da República Federativa do
Brasil. (FIORILLO, 2009. p. 22)
66
Reportando-se ao conceito de patrimônio histórico, Meirelles (2011), entende que este
abrangeria todos os bens, móveis e imóveis, feitos pelo homem ou obras da natureza, tanto do
passado como contemporâneas, condicionando sua conservação ao interesse público e a
vinculação a fatos memoráveis da história pátria, ou por seu excepcional valor artístico,
arqueológico, etnográfico, bibliográfico ou ambiental.
Patrimônio histórico. A expressão designa um bem destinado ao usufruto de uma
comunidade que se ampliou a dimensões planetárias, constituído pela acumulação
contínua de uma diversidade de objetos que se congregam por seu passado comum:
obras e obras-primas das belas-artes e das artes aplicadas, trabalhos e produtos e
todos os saberes e “savoir-faire” dos seres humanos. Em nossa sociedade errante,
constantemente transformada pela mobilidade e ubiquidade de seu presente,
“patrimônio histórico”, tornou-se uma das palavras-chave da tribo midiática. Ela
remete a uma instituição e a uma mentalidade. (CHOAY, 2006, p. 11)
Impende destacar também que dentro do contexto da pesquisa, não cabe apenas falar
em vínculo com fatos memoráveis da história da pátria. Acredita-se que o valor do patrimônio
a ser conservado, seja ele material ou imaterial independe de sua ligação aos fatos
anteriormente reportados. Bastando para ser considerado patrimônio cultural daquele local, o
vínculo de identificação entre o bem e/ou o fato, com o grupo social de determinada
comunidade, considerando que, este vínculo justamente é que será determinante para a
perpetuação do bem cultural.
Torna-se claro que a descontextualização e a recontextualização das identidades são
elementos contraditórios do mesmo processo histórico, o que, mais uma vez, põe
fim às veleidades evolucionistas da versão liberal da
modernidade. A coexistência articulada destas contradições não deve, no entanto, ser
entendida de modo funcionalista. Representam relações sociais
conflituais protagonizadas por atores individuais e coletivos que se constituem
historicamente em processos de lutas cujos resultados não são determináveis a
priori. (SANTOS, B., 1994, p. 42)
A distinção entre patrimônio cultural material e imaterial é um ponto imprescindível.
Desse ponto de vista, entende-se que talvez pela sua concretude, seja mais fácil se identificar
e conservar o patrimônio material, mas nem por isso, este pode ser considerado mais
importante que o patrimônio imaterial. O homem identifica melhor aquilo que está edificado,
aquilo que é palpável, mas isso não torna mais importante a cultura material.
67
[...] conjunto de bens culturais classificados segundo sua natureza: arqueológico,
paisagístico e etnográfico; histórico; belas artes; e das artes aplicadas. Eles estão
divididos em bens imóveis como os núcleos urbanos, sítios arqueológicos e
paisagísticos e bens individuais; e móveis como coleções arqueológicas, acervos
museológicos, documentais, bibliográficos, arquivísticos, videográficos, fotográficos
e cinematográficos. (IPHAN, 2012?)
É possível que esta preferência também tenha conotação um tanto racista. Ao analisar
o decreto nº 25/37, vem de uma época totalmente diferente da que se vive hoje. A abolição da
escravatura infelizmente, ainda era página recente na história do país, apesar da diversidade
racial, os negros estavam à margem da sociedade, os índios sequer tinham lugar nas cidades.
Por isso, valor econômico mesmo só tinha o patrimônio oriundo da cultura dita branca, ou
melhor, burguesa, que era composto basicamente de edificações e obras de arte.
O conceito de cultura estava ligado, primordialmente, aos bens móveis ou imóveis.
A proteção do chamado patrimônio cultural resumia-se a tombamentos e inscrições
de obras de arte que, ou eram belas, sob o conceito de beleza de um grupo de
tecnocratas, ou traduziam fatos marcantes da história do Brasil, sob o critério
meramente empírico, sem qualquer fundamento científico e, juntando-se a isto, a
ausência de mecanismos para a proteção do patrimônio cultural do povo, da massa,
dos grupos marginalizados. (RODRIGUES, 2006, p. 8)
A Declaração do México, documento oriundo da Conferência Mundial da UNESCO
sobre Patrimônio Cultural, realizada em 1982, mais que uma valoração a produção, traz os
artistas como os atores principais da expressão patrimônio cultural:
O patrimônio cultural de um povo compreende as obras de seus artistas, arquitetos,
músicos, escritores e sábios, assim como as criações anônimas surgidas da alma
popular e o conjunto de valores que dão sentido à vida. (GRIFOU-SE) Ou seja, as
obras materiais e não materiais que expressam a criatividade desse povo: a língua, os
ritos, as crenças, os lugares e monumentos históricos, a cultura, as obras de arte e os
arquivos e bibliotecas. (UNESCO,1985)
O problema é que enquanto a cultura dita dos brancos, tem monumentos
arquitetônicos espalhados por todo território nacional, os negros (quilombolas) e índios que
viviam neste país foram marginalizados assim como suas manifestações culturais. O artigo
216 da Constituição Federal é um grande marco no processo de preservação da história
brasileira em seu sentido amplo, respeitando a diversidade que identifica esta nação,
68
principalmente no tocante à cultura imaterial, devido a sua fragilidade. Nesse ponto, a
Constituição de 1988 merece destaque, vez que consagra a diversidade racial no Brasil,
reconhecendo o lugar de direito dos negros e índios.
A expressão patrimônio cultural brasileiro consagra o entendimento de que nele
estaria inserido o patrimônio cultural brasileiro consagra o entendimento de que nele
estaria inserido o patrimônio cultural como um todo, seja de interesse da União, dos
estados ou dos municípios. Tem-se, na verdade, um patrimônio cultural no sentido
da universalidade. [...] Nesse sentido, é que se deve compreender o conceito legal de
patrimônio entendido como um todo orgânico, cuja unidade expressa a identidade do
país e cuja significação é tanto maior quanto o sentimento do povo em relação a sua
cidadania. (SILVA apud RODRIGUES, 2006, p. 12)
Segundo Beltrão (2009, p. 25), o meio ambiente cultural “consiste nas intervenções
humanas, materiais ou imateriais, que possuem um especial valor cultural, referente à
identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da nacionalidade ou
sociedade brasileiras”.
A seguir passamos a uma reflexão sobre os termos conservar e preservar.
4.3 CONSERVAR OU PRESERVAR: A NECESSÁRIA DISTINÇÃO
Quando se fala em questões atinentes ao meio ambiente, se faz importante precisar a
distinção entre conservar e preservar. A palavra “preservar” vem do latim “praeservare” que
significa observar previamente, prever Drumond (2006, p. 108). Na língua portuguesa,
preservar significa, “resguardar” (XIMENES, 2000, p. 752). Quando se fala preservar, em
matéria ambiental, quer se dizer: manter intocado.
No entanto entende-se que nem sempre o isolamento pode ser a forma mais correta de
não degradação do meio ambiente e a segurança que as futuras gerações poderão ter acesso a
ele. O entendimento é que uma relação equilibrada entre o homem e a natureza seja a forma
mais adequada de mantê-lo vivo, pensamento que faz surgir o que se chama de
conservacionismo. A palavra conservar, segundo Ximenes (2000, p. 246) significa “manter,
resistir ao tempo”.
Preliminarmente as duas palavras parecem sinônimos, mas sua diferenciação será
destacada a partir da relação que o homem exercer dentro do seu ambiente. Para Diegues
69
(2002, p. 77), “reside na interação homem-natureza um dos pontos que diferenciam as várias
correntes no que diz respeito à cultura”.
Logo, se a ideia for o preservacionismo, a intervenção do homem será praticamente
nula. Este procurará manter aquela coisa intocada, da maneira mais natural possível. Segundo
(LARRÈRE, 2012), o preservacionismo corresponde ao pensamento do século XIX, quando
se pensou em proteger a natureza isolando-a em parques e mantendo esses inertes ao processo
de desenvolvimento. No entanto esqueceram que os homens também são seres naturais,
segundo a autora (2012, p. 17), “a humanidade não é somente sujeito, ela é também uma
força”. E é baseado nessa força que entra a ideia do conservacionismo, no qual, o próprio
homem, enquanto ator principal desse processo buscará meios em que possa usar o ambiente
em que vive da forma mais racional possível.
Diegues (2002, p. 83), cita Dasmann, que considera que são as “sociedades
interligadas a uma economia global, de alto consumo e poder de transformação da natureza,
que causam grande desperdício de recursos naturais”. Manter intocado torna o bem estagnado
e a cultura não é estática, seu caráter é dinâmico e daí a necessidade que passe por
transformações que funcionarão como adequações necessárias à perpetuação da identidade
daquele grupo com determinado bem, seja ele material ou imaterial. Mas esse pensamento não
é uniforme. Vejamos o que nos diz Lemos acerca da questão que vimos examinando:
[...] será mais fácil a manutenção de nossa identidade cultural se soubermos
controlar os processos de evolução que fatalmente se desenvolvem mercê de
alterações inevitáveis no campo do saber fazer. Neste controle esta implícito registro
dos vários estágios que passamos. Aqui registrar é sinônimo de preservar, de guardar
para amanhã informações ligadas a relações entre elementos culturais que não têm
garantias de permanência. (LEMOS, 2006, p. 27)
Na segunda metade do século XIX, segundo Diegues (2002), foi grande a criação de
áreas de proteção, os chamados parques e reservas. Isso porque a revolução industrial trouxe o
ônus do crescimento desordenado das cidades e a destruição acelerada do meio ambiente.
Naquele momento, dentro daquele contexto, o ideal foi providenciar áreas em que se
mantivesse a natureza intocada, na verdade uma espécie de demarcação foi criada, liberando o
homem a destruir o que não estivesse dentro daquele eixo criado.
Apesar do despertar do homem para a finitude dos recursos naturais, se em tese houve
uma modificação na forma de pensar, na prática, o homem continua sendo o principal ator no
70
processo contínuo de degradação do ambiente. Papel importante nesse processo, como
exemplo, são as chamadas comunidades tradicionais, ou seja, aqueles povos que vivem em
contato constante com natureza, chegam a retirar dela a sua subsistência, mas adotam uma
relação de cumplicidade com o meio natural e conseguem mantê-lo vivo e útil. Nesse sentido,
utilizando o pensamento de Sachs (2002), não se pode equacionar conservação com a opção
de “não-uso” dos recursos naturais e sim com o uso racional para atender as necessidades.
[...] De modo geral, o objetivo deveria ser o do estabelecimento de um
aproveitamento racional e ecologicamente sustentável da natureza em benefício das
populações locais, levando-as a incorporar a preocupação com a conservação da
biodiversidade aos seus próprios interesses, como um componente de estratégia de
desenvolvimento. Daí a necessidade de se adotar padrões negociados e contratuais
de gestão da biodiversidade. (SACHS, 2002, p. 53)
De outra vertente, quando se fala em meio ambiente artificial, geralmente o termo
mais ouvido é o de preservação. Criou-se o costume que a história para ser mantida viva deve
estar sob a égide do tombamento, sob a guarda dos museus. Estamos longe aqui de discordar
desta prática que tem sido realmente eficaz no sentido de guardar em segurança, mas
questiona-se se ao invés da prática preservacionista, talvez a prática conservacionista não
trouxesse resultados mais eficazes no sentido de manter viva a história se associada com o
caráter dinâmico próprio da cultura, de modo a evitar que as cidades se tornem mortas, como
aconteceu com Atenas.
A Atenas moderna não tem mais nada em comum com a cidade arcaica, coberta,
absorvida, desmesuradamente estendida. Os monumentos e os lugares (ágora,
acrópole) que permitem encontrar a Grécia antiga não representam mais do que um
local de peregrinação estética e de consumo turístico. (LEFEBVRE, 2001, p. 17)
Entende Lefebvre (2001), que estes lugares sobrevivem graças a uma troca que os
fazem ter um duplo papel, o do lugar que se vende e o lugar que se consome. De certa forma
são atribuídos dois tipos de valor aos lugares. O valor de uso e o valor de troca, como se
refere (LEFEBVRE, 2001). Ou seja, valor de uso tem relação com o sentimento das pessoas e
valor de compra ou de troca, o valor como produto de mercado. O valor de uso é aquele
ligado ao sentimento desenvolvido com relação ao lugar, tem relação com a identidade das
pessoas que vivem em determinado espaço. Já o valor de troca é o valor pecuniário que a
exploração daquele lugar pode ter, ou seja, aquele atribuído ao lugar de acordo com intenções
71
na sua concepção. Criam espaços voltados exclusivamente a atrair o olhar de investidores,
mas, descarta o sentimento das pessoas que ali vivem. Muitas vezes esses espaços passam por
tantas modificações que pouco interessa àquele que nasceu e sempre viveu na localidade. Em
matéria cultural, acredita-se que o manter vivo só se dá quando o homem entende seu papel
conservacionista.
Acredita-se que existe um grande equívoco em achar que a sensibilização surge de
maneira controlada, como se fosse uma mercadoria que se coloca numa prateleira para ser
comprada ou não pelo consumidor. No caso da cultura, é preciso que exista a identificação, o
sentimento, por isso que se entende que as práticas conservacionistas surtiriam um efeito mais
promissor do que a prática comum preservacionista.
4.4 CULTURA E LUGAR
No ano 2000, com a edição da Lei nº 9985, Lei do Sistema Nacional de Unidades de
Conservação- SNUC foi estabelecido no seu artigo 2º um conceito para as chamadas
comunidades tradicionais. No entanto, foi um conceito extremamente criticado e foi vetado,
por impor condições, principalmente na questão relativa à delimitação do território como
necessário a caracterização de determinado grupo como comunidade tradicional. Um dos
principais erros foi a redução dos territórios tradicionais apenas à localização geográfica,
desprezando o que existe de mais importante, o auto-reconhecimento da comunidade de
determinado espaço como de fato o seu lugar.
[...] Um elemento importante na relação entre populações tradicionais e a natureza é
a noção de território que pode ser definido como uma porção da natureza e espaço
sobre o qual uma sociedade determinada reivindica e garante a todos, ou uma parte
de seus membros, direitos estáveis de acesso, controle ou uso sobre a totalidade ou
parte dos recursos naturais aí existentes que ela deseja ou é capaz de utilizar[...]
(GODELIER apud DIEGUES, 2002, p. 84)
Sete anos depois o Decreto nº 6040/2007, em seu artigo 3º, traz um novo conceito de
Povos e comunidades tradicionais, como uma tentativa de delimitar a subjetividade de um
conceito de enorme abrangência. Pensamento que também predominou ao se definir
territórios tradicionais, trazendo a cultura como um dos pilares. Para as comunidades e povos
72
tradicionais o território tem uma simbologia muito grande, existe uma identidade com o lugar,
uma interação simbiótica.
Art. 3º [...]
II - Territórios Tradicionais: os espaços necessários a reprodução cultural, social e
econômica dos povos e comunidades tradicionais, sejam eles utilizados de forma
permanente ou temporária, observado, no que diz respeito aos povos indígenas e
quilombolas, respectivamente, o que dispõem os arts. 231 da Constituição e 68 do
Ato das Disposições Constitucionais Transitórias e demais regulamentações;
(BRASIL, 2007)
A importância do lugar tem características que vão além da definição de espaços
geográficos. A relação do povo que vive em determinado espaço e seu lugar tem ligação que
envolve sentimentos, identidade e é aí que surgem os territórios. Foi através da geografia
chamada de humanística que o lugar passou a ter contornos diferentes aos olhos da ciência.
Segundo Santos, M. (2006, p. 216), “cada lugar, irrecusavelmente imerso numa comunhão
com o mundo, torna-se exponencialmente diferente dos demais”. E essa diferenciação é feita
individualmente ou através da formação de grupos.
As pessoas têm uma reação emotiva diante dos lugares em que vivem, que
percorrem regularmente ou que visitam eventualmente. Alguns lhe agradam, lhes
parecem agradáveis, acolhedores ou calorosos; outros os seduzem por sua beleza,
pela impressão de calma e de harmonia que deles emana ou pela força das emoções
que eles suscitam. (CLAVAL, 2010, p. 39)
Urge mencionar que ao tratar de cultura é imprescindível a ligação do homem com o
lugar em que se vive. Essa ligação é quem vai definir a relação das pessoas que ali vivem com
o seu contexto cultural e é justamente essa ligação que culturalmente formará um lugar, ao
qual tem-se como sinônimo de território. Nas palavras de Foucault (2008), a soberania
depende de uma boa situação dentro do território e soberano é um território com boa
disposição espacial. Nesse pensamento a cidade iria aquém dos limites geográficos. Ela seria
formada acima de tudo por uma ligação afetiva abstrata entre aqueles que ali vivem e
permitem que aos poucos seja maximizado o que tem de positivo ou negativo. Ou seja, dentro
de um mesmo espaço, existiria um controle abstrato, que não seria um controle das pessoas
em si, mas das suas vidas enquanto membros daquela comunidade. Nas minúcias cotidianas,
estariam implícitas formas de controle que ditariam os caminhos para os quais deve ser
conduzido aquele grupo de pessoas.
73
Assim haveria aqui, acreditamos uma diferença entre a visão de Foucault (2008) e da
de Santos, M. (2006). Diferença não na forma espacial de território, mas talvez na forma
conceitual. Enquanto o primeiro restringe, o segundo amplia o sentido do termo território.
Não é incomum encontrarmos pessoas que apesar de terem nascido e sido criadas em
determinado lugar, não terem nenhuma identificação com aquela cultura ou não se sentirem
parte pertencente àquele grupo social. A ligação afetiva-social é intrínseca e independe de
fatores externos é questão de identificação. Por isso a crítica quanto a relacionar patrimônio
histórico cultural com fatos memoráveis ligados a um povo. É uma delimitação que
compromete o verdadeiro sentido do que aqui é pesquisado. Esclarecendo tal pensamento,
acredita-se que o significado cultural independe dos grandes acontecimentos.
É assim que, da mesma forma que uma grande edificação representa a cultura de
determinado grupo, essa mesma edificação pode não representar ou não ter nenhuma
simbologia para outro grupo. A construção do lugar de cada um é formada por edificações,
pela natureza e até mesmo e principalmente pelas pessoas, é processo único e próprio de cada
um.
De acordo com Claval (2010, p. 41), a reação que as pessoas apresentam em relação
ao lugar em que vivem é inseparável dos seres que ali se encontram, “um único ser falta e
tudo fica deserto”. Isso se resume ao processo de construção do “habitat” de cada ser humano.
O lugar é o quadro de uma referência pragmática ao mundo, do qual lhe vêm
solicitações e ordens precisas de ações condicionadas, mas é também o teatro
insubstituível das paixões humanas, responsáveis, através da ação comunicativa,
pelas mais diversas manifestações da espontaneidade e da criatividade. (SANTOS,
M., 2006, p. 218)
Segundo Rogério Leite (2004), o conceito de espaço é mais abrangente que o de lugar,
o que não significaria atribuir fronteiras rígidas ao lugar e a dinâmica da mudança histórica ao
espaço, isso porque os aspectos mais perenes da vida social são guardados nos lugares. E nos
tempos em que se vive de mensagens instantâneas, há de se convir que o apreço a memória
reste também comprometido. Se as pessoas não têm mais tempo de compartilharem suas
experiências, de viverem os lugares, dificilmente desenvolverão uma ligação afetiva com
determinado espaço, o que compromete de fato, a perpetuação de uma cultura. E talvez seja o
imediatismo, a principal causa do que se chama de falta de memória.
74
Interessante pensamento nesse sentido de Pierre Nora (1989), para o qual a dinâmica
da história hoje em dia se dá em face da medida em que os fatos acontecem. Ou seja, a
história tem sido reduzida a notícia do minuto e rapidamente substituída pela noticia seguinte,
donde intrinsecamente passamos a absorver a ideia de que cultura, memória estão atrelados a
fatos dos nossos antepassados e que ficam guardados nos museus, nos arquivos e vez em
quando podem ser visitados, confundindo-se erroneamente memória com história. Sendo que,
a história teria ligação direta com os fatos passados, no entanto, a memória teria um sentido
abstrato, ligado ao sentir.
History’s goal and ambition is not to exalt but to annihilate what has in reality taken
place. A generalized critical history would no doubt preserve some museums, some
medallions and monuments – that is to say, the materials necessary for its work- but
it would empty them of what, to us, would make them lieux de memoire. In the end,
a society living wholly under the sign of history could not, any more than could a
traditional society, conceive such for anchoring its memory10. (NORA, 1989, p. 3)
Ainda dentro desse contexto, caberia salientar que o lugar tem vínculo com a
existência daquela pessoa e influencia diretamente todas as relações do homem em toda sua
vida, por isso mesmo que quando se trata de cultura, não pode existir delimitação no seu
conceito, é preciso analisar a relação do homem com o próprio homem, a relação com a
natureza e acima de tudo a relação com seu lugar. Consoante Santos, M. (2006), um lugar se
torna sede de alienação para o homem, quando a memória daquele local lhe é estranha ante
um espaço desconhecido, o qual não ajudou a criar e tampouco conhece a história.
O modo como essas práticas sociais criam seus nexos identitários com os lugares
sociais colide muitas vezes com as formulações abrangentes das políticas oficiais de
cultura. A tradição mais uma vez parece encurralada pela complexificação e
diferenciação social quando se observam as tensões da política como ação
simbólica, que pretende restabelecer as relações tradicionais, no âmbito da nação,
entre identidade e lugar. As políticas de patrimônio cultural destacam-se,
justamente, por terem a pretensão de reconstituir os nexos constitutivos da tradição
para a vida em uma sociedade nacional. (LEITE, R., 2004, p. 39)
10 O objetivo e a ambição da história não é exaltar, mas modificar o ocorrido. Uma crítica generalizada da
história preservaria alguns museus, algumas medalhas e monumento- o que diriam ser material necessário para
seu trabalho- mas seriam objetos vazios para nós, que não representariam os lugares de memória. No fim, a
sociedade que vivesse inteiramente sob a influência da história, não teria de fato lugares para ancorar sua
memória.
75
Apesar de tudo que foi dito, não existe dúvida quanto à relação do lugar com a cultura.
Mas é preciso que se fique atento e que não se despreze a construção que se faz dentro de
espaços com a intenção de formar lugares. É nesse sentido que Milton Santos, (2006) afirma
que existem espaços intencionalmente concebidos, intencionalmente fabricados e
intencionalmente localizados, os quais aspiram uma perfeição maior que a da própria
natureza.
Segundo o pensamento de Nora (1989, p. 6), “these lieux de memoire are
fundamentally remains, the ultimate embodiments of a memorial consciousness that has
barely survived in a historical age that calls out for memory because it has abandoned it”11.
Isso explica a situação de muitos lugares especialmente criados para o turismo
cultural, os quais são de grande representatividade para aqueles que vêm de fora e busca
conhecê-lo, e ao mesmo tempo, independente desse valor de mercado, acaba sendo
considerado de pouca valia, para aqueles que apesar de viverem naquele lugar, não se
identificam com a forma com que se apresenta a cultura nativa daquele grupo social. É nesse
sentido que Milton Santos (2005, p. 255), escreve que é o uso do território, e não o território
em si mesmo, que faz dele objeto da análise social.
São espaços montados artificialmente e que se não fosse pelo cenário arquitetado nada
significaria. A memória em sendo afetiva, não necessita de estátuas, fotografias, como causa,
estas seriam apenas consequências, a concretude daquilo que existe na abstração, a
materialização do sentimento.
4.5 DESENVOLVIMENTO VERSUS CULTURA: O DIREITO À CIDADE
Atrelado ao conceito de desenvolvimento está também o conceito de urbanização.
Grosso modo, o conceito “urbanização” pode ser considerado como sendo o processo que se
dá quando determinado lugar passa a perder as características rurais e passa a ter
características urbanas. Talvez a maior alavanca mundial para o processo de urbanização
tenha sido a industrialização, (LEFEVBRE, 2001), chega a utilizar o termo “sociedade
industrial” para definir a “sociedade moderna”.
11 Estes lieux de mémoire são fundamentalmente restos, remanescente da memória que quase não sobreviveu à
história porque foram abandonados.
76
Segundo Santos, B. (1982, p. 34), as transformações da cidade estiveram sempre
relacionadas com as transformações do campo e o desenvolvimento do capitalismo como
fenômeno iminentemente urbano, acabou por subordinar o campo à cidade. O processo de
desenvolvimento urbano é muito mais que um processo de crescimento econômico, seria um
processo complexo com mudanças nas características culturais dos locais.
Um exemplo desse processo é Chicago, que em menos de 50 (cinquenta) anos passa
de um lugar insignificante para a segunda maior cidade norte-americana. Segundo, Eufrasio
(1999), ao analisar o crescimento rápido de Chicago, considera que o desenvolvimento das
ferrovias foi decisivo para este processo, tendo em vista que a cidade que era um grande
entroncamento de linhas tornou-se um grande centro comercial do meio-oeste.
Ainda de acordo com Eufrasio (1999), o fato da produção de todos os bens
manufaturados dos Estados Unidos se concentrar em Chicago, atraiu imigrantes de toda parte
do mundo, principalmente uma elite que contribuiu para o desenvolvimento da escola de
Chicago de arquitetura, que “não somente contribuiu com o arranha-céu para a civilização
urbana americana como também criou o primeiro estilo arquitetônico urbano coerente e
próprio do continente” (BULMER apud EUFRÁSIO, 1999, p. 28-29).
O grande problema é que as mudanças nos aspectos físicos das cidades,
principalmente numa escala de tempo pequena, como no exemplo de Chicago, trazem bônus,
mas também trazem ônus. Vale aqui a ideia de Diderot (2011, p. 119), que em pleno século
XVIII, já lembrava que a corrupção e os vícios nascem e crescem com o nascimento e
crescimento das cidades.
Considera Lefevbre (2001, p. 11-12), que a Cidade preexiste à industrialização e já
tem uma poderosa realidade, “a própria cidade é uma obra, e esta característica contrasta com
a orientação irreversível na direção do dinheiro, na direção do comércio, na direção das
trocas, na direção dos produtos”.
Para alguns, a cidade seria uma área urbanizada, para outros o termo "cidade"
designaria uma entidade político-administrativa. De acordo com (CARLOS, 2013, p. 67), a
cidade, enquanto realização humana é um fazer intenso, ininterrupto, “a cidade tem a
dimensão do humano, refletindo e reproduzindo-se através do movimento da vida, de um
modo de vida, de um tempo específico que tem na base o processo de constituição do
humano. Para Rousseau (2002), a cidade seria “a pessoa pública, formada assim pela união de
77
todas as outras”. Ou seja, a cidade seria um ente produzido através de uma associação de
vontades, na qual a essência seria o acordo de obediência e liberdade inerente a todos eles.
[...] ao invés da pessoa particular de cada contratante, esse ato de associação produz
um corpo moral e coletivo, composto de tantos membros quanto a assembléia de
vozes, o qual recebe desse mesmo ato sua unidade, seu eu comum, sua vida e sua
vontade. (ROUSSEAU, [1762] 2002, p. 26)
De acordo com Freitag (2006, p. 23), as cidades são formações históricas próprias,
cada uma com sua individualidade. Já Lefebvre (2001), considera que a cidade ultrapassa os
limites da geografia, ela é construída estabelecendo uma relação entre a sua história e as
transformações pelas quais passou, seria a Cidade sinônimo de cultura.
O duplo processo de industrialização e de urbanização perde todo seu sentido se não
se concebe a sociedade urbana como objetivo e finalidade da industrialização, se se
subordina a vida urbana ao crescimento industrial... A industrialização produz a
urbanização inicialmente de modo negativo... A sociedade urbana começa sobre as
ruínas da cidade antiga e da sua vizinhança agrária... (LEFEBVRE, 2001, p. 137)
Freitag (2006, p. 115) citando Sassen, afirma que o estudo urbano traz o alerta de que
a vida urbana tem sido perigosamente alterada pelos funcionários das firmas multinacionais,
que chegam as cidades colonizando-as virtualmente.
A estrutura física da cidade representa uma figura geométrica, motivo pelo qual para
Park, citado por Eufrasio (1999) no livro Estrutura Urbana e ecologia humana, os processos
inevitáveis da natureza humana têm um caráter difícil de controlar, fazendo com que esta
assuma uma organização que não é nem intencionada e nem controlada. Fato que de acordo
com Carlos (2013, p. 69) provoca mudanças cada vez mais rápidas e profundas, alterando o
ritmo de vida, a relação das pessoas e até mesmo os valores.
[...] o que antes era um mero agregado de pessoas, uma expressão geográfica de
concentração da população, “se torna vizinhança, uma localidade com sentimentos,
tradições e uma história próprios”, e de algum modo, dentro de cada vizinhança, “se
mantém a continuidade dos processos históricos”, o passado se impõe sobre o
presente e a vida de cada uma se altera com certa força e ritmos próprios, com certa
independência do círculo maior de vida e dos interesses em seu redor. (EUFRASIO,
1999, p. 51)
78
É a concepção ecológica da estrutura urbana. Segundo Eufrásio (1999, p. 46) existem
duas linhas de ênfase no estudo da organização espacial da cidade. Uma linha que identifica
as forças da dinâmica espacial e descreve seu movimento real até a recriação do quadro
espacial e a linha que ressalta os aspectos da estrutura espacial que se configura num conjunto
definido de categorias de áreas diferenciadas da cidade num determinado momento. Essas
duas concepções são baseadas nos estudos de Robert Park, um importante sociólogo urbano
norte americano e do sociólogo canadense Ernest Burgess, respectivamente.
Observe-se que na linha dos estudos de Park, a cidade deveria ser pensada como uma
instituição, sendo algo além do simples aglomerado de pessoas ou uma entidade coletiva. Ou
seja, a cidade abrange um todo, o conjunto entre esse ente coletivo, e toda estrutura física.
Segundo Eufrasio (1999), Robert Park sustentaria que a cidade possui uma organização física
e uma moral, o que fará que adiante, o mero aglomerado de pessoas, venha a se tornar uma
localidade com sentimentos, tradições e histórias próprias. Já do ponto de vista dos estudos
de Burgess, existiria uma cooperação mútua que faz com que a cidade exista, mas ao mesmo
tempo existiria uma competição, que é o que mantém a cidade como um organismo vivo,
através das interações entre as forças sociais e econômicas. Pensamento este que se aproxima
em parte com o de Lefebvre (2001), quando este entende que a cidade não pode ser vista
como um sistema fechado,vez que estas interações sociais possibilitariam a abertura de
inúmeras outras possibilidades.
Em verdade, de tudo que fora lido até agora, concordamos com a assertiva de que a
cidade é um organismo vivo, produto das interações morais, que produzem as cooperações
competitivas descritas por Ernest Burgess. Corroborando com essa ideia, podemos remontar a
Rousseau (2002) na Carta ao Senhor Voltaire sobre a Providência, quando este atribui ao
homem a responsabilidade por suas próprias desgraças. Sem dúvida razão assiste ao
renomado pensador, vez que a ambição e o egoísmo oriundos da natureza humana são as
principais causas para os problemas enfrentados por toda sociedade. Os homens estabelecem
distâncias morais, convertidas em preconceitos e que servem como justificativa para o
processo de segregação interna existente dentro de toda e qualquer cidade. Segundo
(EUFRÁSIO, 1999, p. 56), as cidades “mostram o bem e o mal da natureza humana em
excesso”.
Destaque-se que essa suposta sociabilidade que segrega o grande grupo em pequenos
grupos nesse aspecto se confunde com etnicidade, na medida em que a intimidade é
desenvolvida dentro desses pequenos grupos dos quais são excluídos os que podem ser
79
chamados de intrusos, por não possuírem as características que se exige para que estes sejam
“socialmente” aceitos. E existe atualmente uma grande preocupação em se ser aceito
socialmente, o que leva as pessoas a se fecharem em pequenos grupos sociais por medo da
rejeição, formando um círculo vicioso que entendemos assim, extinguir a possibilidade de
pensar esse grupo como uma sociedade política ampla e soberana. São bem recebidos apenas
aqueles que compactuam dos mesmos gostos, dos mesmos pensamentos. A maior
consequência disso é a promoção de um afastamento cada vez maior entre os homens
inseridos numa mesma sociedade o que leva a falta de elo entre eles, mola propulsora da
unicidade.
Se no plano efetivo da história o reconhecimento das diferenças é importante, no
plano filosófico especulativo- o qual instaura um dever ser e a possibilidade mesma
de critica às desigualdades- reconhecer uma “natureza comum”, constituída pela
liberdade, igualdade e pela bondade originais é decisivo. (GARCIA, 1999, p. 54)
Olhando num plano mais amplo, ao longo da história podemos observar que o mundo
se constitui num misto cultural e por essa mera observação podemos ainda compreender que a
fonte da desigualdade entre os homens é o próprio homem (GARCIA, 1999).
Ao se pensar no desenvolvimento das cidades, estas questões ligadas à natureza
humana não podem ser excluídas, pois o homem é a base, nada se desenvolve se o homem
não se desenvolver também, o problema é que a voracidade humana atropela os demais
processos internos de conhecimento a si mesmo. Isso prejudica muito os estudos que são
feitos acerca do processo desenvolvimentista. De acordo com Fortuna (2006, p. 11) a
preocupação desenvolvimentista é que faz com que se ofusque ou se perca a análise das
cidades. Trata-se de um processo tanto mais gravoso para a sub-disciplina sociológica quanto
ocorre à contra-ciclo.
[...] a moderna cultura urbana que é cada vez mais uma cultura de velocidade e de
instantaneidade adversa à história e à memória dos lugares, contraria o espaço-
tempo de encontro público e vê o cidadão como ser em contínuo movimento
dirigindo-se sem interrupção a um destino pré-estabelecido. (FORTUNA, 2006, p.
5)
Criou-se uma falsa generalização mundial, na qual se ocidentaliza o oriente e vice
versa, mas que, de certa forma ao invés de agregar produz mais segregação. É vendida a
imagem que tudo está sendo globalizado, mas em verdade o que existe por trás é uma
80
tentativa implícita de se levar o produto cultural de um lugar para outro, sem respeitar a
realidade local do receptor desse produto. Para Garcia (1999), ao citar a crítica ao
cosmopolitismo feita por Rousseau, é evidente que existe uma ilusão quando se acredita que a
transposição do modo de vida de uma sociedade para outra é algo que extermine as
diferenças. Em outras palavras isso que se chama de teoria da convergência, ou seja, os
processos através dos quais se impõe a cultura de um local em outro, geralmente esses lugares
destino são os que estão em desenvolvimento ou subdesenvolvidos. No entanto, esse processo
ao invés de agregar, provoca mais segregação ao tempo em que exclui do polo receptor a
população local. Segundo (FORTUNA, 2006, p. 13), as simbioses teóricas estão sendo
abertas no campo das questões urbanas de cidades, tanto no domínio sociológico e político
como nos processos econômicos e urbanísticos e a consequência para essa chamada teoria da
convergência seria o progresso que chega, mas, também traz pobreza, drogas e
criminalização.
Uma das preocupações de Lefebvre (2001), é considerar que existe alienação na
forma como se estuda a cidade, vez que resumem os seus problemas a questões espaciais,
desconsiderando seus inúmeros contextos. Para Carlos (2013, p. 23), o uso diferenciado da
cidade, demonstra que este espaço se constrói e se reproduz de forma desigual e contraditória,
“a desigualdade espacial é produto da desigualdade social”.
A cidade não é apenas uma linguagem, mas uma prática. Ninguém portanto, e não
tememos repeti-lo, ressaltando-o, está habilitado a pronunciar esta síntese, a
anunciá-la. Não mais o sociólogo ou o “animador” do que o arquiteto, o economista,
o demógrafo, o linguista, o semiólogo. Ninguém tem nem o poder e nem o direito de
fazê-lo. Talvez apenas o filósofo tenha esse direito, isto se a filosofia, no decorrer
dos séculos, não tivesse mostrado sua incapacidade de atingir realidades concretas
(ainda que ela sempre tenha objetivado a totalidade e levantando as questões globais
e gerais). Apenas uma práxis, em condições a serem determinadas, pode se
encarregar da possibilidade e da exigência de uma síntese, da orientação na direção
desse objetivo: a reunião daquilo que se acha disperso, dissociado, separado, e isso
sob a forma da simultaneidade e dos encontros. (LEFEBVRE, 2001, p. 101-102)
Pensamento similar ao de Fortuna (2002, p. 20), que acredita que a cidade do futuro
próximo deverá ser construída como uma cidade nova. Uma cidade que corrija os principais
erros da cidade de hoje e se mostre uma cidade justa, imaginativa, ecológica, tão compacta
como policêntrica, com memória e sentido de lugar, de fácil contacto social, culturalmente
diversa e, acima de tudo, uma cidade bela (FORTUNA, 2002, p. 20). Interessante apresentar
81
que de acordo com Bolle (2000, p. 29), o poder da metrópole está no mercado consumista,
local no qual existe espaço tanto para a circulação de mercadorias como para o consumidor
envolto numa atmosfera de luxo. Esse mesmo lugar de desejos é o cenário ideal para despertar
outras visões da cidade, como o contraste entre a burguesia e a realidade vivida pela classe
operária.
Para Freitag (2006, p. 21-23), a questão monetária, valores abstratos, a
comercialização e a possibilidade de tudo ter um preço, até mesmo o amor, influenciam na
mente das pessoas que vivem na cidade, e cria um novo valor na história mundial do espírito.
Nos dias atuais na cidade, as pessoas vivem como se estivessem num grande hotel, segundo
Park apud Eufrásio (1999, p. 54-56) se mantêm cordiais, mas estabelecem relações fortuitas
ao passo em anulam qualquer possibilidade de intimidade através de distâncias morais
mentalmente estabelecidas.
Já Fortuna (2006) considera que existe uma contradição entre a cidade como espaço
libertador com vínculos e interações fortes, em oposição com a cidade responsável pelo
desaparecimento do que teria sido a comunidade pré-urbana, destroçada agora por uma
individuação excessiva, realidade que foi mal acautelada pela sociologia urbana.
Os espaços sociais de proximidade relacional não são deste modo, espaços de
fechamento individualista e de “solidão” comunicativa (FORTUNA, 2006, p. 2), mas essas
alterações sofridas interferem tanto no modo como se vive como no modo em que se
interpreta.
A participação pública dos cidadãos, grupos e movimentos sociais surge
condicionada e, perante os efeitos sensíveis da globalização da economia, da cultura
e da comunicação, o espaço público das cidades surge pautado pelos desígnios da
massificação e da estetização dos consumos, do mesmo modo que o planejamento
urbano e mesmo numerosas imagens identitárias e promocionais das cidades passam
a sujeitar-se à lógica do mercado. É a chamada colonização do espaço público
urbano. (FORTUNA, 2002, p. 7)
Utilizando uma concepção restrita, poderia se considerar que a retração do espaço
público deve-se a incoerência de modelos de planejamento arquitetônico e urbanístico,
Fortuna (2006), considera não apenas esse o motivo, mas também a desurbanização e a
desvitalização dos lugares e das interações sociais.
82
[...] a moderna cultura urbana que é cada vez mais uma cultura de velocidade e de
instantaneidade adversa à história e à memória dos lugares, contraria o espaço-
tempo de encontro público e vê o cidadão como ser em contínuo movimento
dirigindo-se sem interrupção a um destino pré-estabelecido. (FORTUNA, 2006, p.
5)
A necessidade da revisão epistêmica, segundo Fortuna (2006), reforçará a
compreensão dos quotidianos urbanos e das diversas expressões culturais da vida na cidade.
Alertando, que a teoria da convergência despreza universos urbanos não ocidentais,
produzindo uma retórica exclusivista, incongruente com a chamada globalização. A teoria
renovada deverá equacionar o mundo urbano na sua globalidade, impondo-se um dever de
convergi-las e torná-las aptas para um projeto e uma narrativa global (FORTUNA, 2006, p.
16-17).
A afirmação moderna da cidade como entidade autônoma, política, econômica,
administrativa e cultural, é uma longa história de tensões e conflitualidades. Na
cidade medieval e barroca, por exemplo, este quadro de tensões coloca a cidade em
manifesta oposição àquilo que hoje designamos por “campo”. “Os ares da cidade
libertam”, esse velho aforismo da Alemanha pré-moderna é elucidativo deste
conflito, pois, nele, a cidade representa a liberdade e emancipação política e social a
que aspiram os camponeses. (FORTUNA, 2002, p. 2)
É importante também salientar que para Fortuna (2002), a cidade é eminentemente
excludente: repele e subalterniza os grupos sociais vulneráveis que “ofendem a frágil
sensibilidade do olhar burguês”, o que leva a morte simbólica de uma parte da cidade onde
estão os mais frágeis, pobres e incultos, e enaltece a outra, a dos mais ricos, cultos e
poderosos, considerando ainda que “a cidade substituiu o seu conflito com o campo e o rural
pelo conflito consigo própria” (FORTUNA, 2002, p. 4).
Como pressuposto, Fortuna (2002, p. 7-8) traz a chamada “crise” do espaço público
das cidades, resultante da lógica cultural contemporânea que acentua, de um lado, o reino do
individualismo e da domesticidade e, de outro lado, a cultura do movimento e da velocidade.
As transformações socioeconômicas assinaladas desde os tempos da cidade estariam ligadas
com a questão dos espaços públicos urbanos.
Necessitamos, para tanto, de assegurar um requisito fundamental: é preciso que o
redesenvolvimento cultural das cidades e dos seus espaços resulte de uma
conferência alargada de consenso participado que se debruce sobre o lugar e o
significado do tempo e do espaço na cidade, para o que se torna essencial pôr em
confronto as visões díspares do que antes designei por cidade e “não”-cidade e as
83
suas respectivas leituras e sentidos desta relação espácio-temporal. Se esta é a
hipótese, a contra-hipótese traduz-se no facto de, perante a impossibilidade desta
conferência de consenso, a cidade, em vez de diversa, permanecer sujeita a
intervenções medíocres, ou à arrogância e à insensibilidade de muitos profissionais
das terceiras culturas, ou ao utilitarismo de muitos investimentos e usos dos seus
espaços públicos. Ou mesmo a tudo isso simultaneamente. (FORTUNA, 2002, p.
156-157).
O direito à cidade é o direito de ser cidadão. Segundo Diderot (2011, p. 121), constitui
o direito de participar dos privilégios que são comuns a todos os cidadãos. Em tese, a
existência da cidade pressupõe a regras intrínsecas estabelecidas para regular a convivência
social. Desses grupos que se formam em torno de um ideário comum têm-se as cidades.
De acordo com Lefebvre (2011, p. 111), o fato de habitar aqui ou ali comporta a
recepção, a adoção, a transmissão de um determinado sistema. A própria ontologia da cidade
moderna (fragmentações e incoerências políticas, sociais e culturais) é o que dificulta a
instituição de ações que abranjam o redesenvolvimento cultural das cidades. Fortuna (2002, p.
19), considera, nesse sentido, que o espaço público bem sucedido é um espaço público que
além do seu sentido estético, se revela inteligível, abstrato e não apenas funcional, mas, ao
mesmo tempo, suficientemente definido e explícito, de modo a promover a
intersubjectividade da cidade.
Com base nas análises teóricas apresentadas ao longo desta dissertação, adentraremos
agora na análise mais detida dos processos de urbanização da cidade Laranjeiras. Antes de
passarmos aos resultados e discussões será apresentada a metodologia utilizada na pesquisa
bem como o caminho trilhado para a obtenção das informações coletadas e das considerações
que a partir de então foram feitas.
84
5 METODOLOGIA
5.1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Tendo em vista a problemática a ser diagnosticada, o método utilizado foi o
dialético, considerando a necessidade de abordar os fatos dentro do contexto político,
social e econômico.
Baseado na dialética de Hegel, “é um método de interpretação dinâmica e
totalizante da realidade” Pereira (2010, p.80). Ou seja, muito mais que simples análise da
legislação do município de Laranjeiras/SE, o trabalho exigiu um estudo acerca da história
da cidade, desde sua fundação aos tempos atuais, bem como da maneira como suas leis
foram construídas e as influências sofridas ao longo do processo.
Impende salientar que a interpretação é atividade cotidiana na vida do operador do
direito. Assim, impossível dissociar a formação profissional do pesquisador durante a
execução da pesquisa. A interpretação é “função atribuída ao exegeta, que buscará o real
significado dos termos constitucionais” Lenza (2010, p. 129). Em que pese à hermenêutica
dentre tantas outras coisas, leva em consideração todo o contexto no qual se insere a
norma, para que se identifique o seu real significado.
Em geral, a interpretação significa a exposição do verdadeiro significado do material
apresentado, em relação aos objetivos propostos e ao tema. Esclarece não só o
significado do material apresentado, em relação aos objetivos propostos e ao tema.
Esclarece não só o significado do material, mas também faz ilações mais amplas dos
dados discutidos. (LAKATOS, 2010, p. 152)
Quanto à forma de abordagem, a pesquisa foi qualitativa. Pereira (2010, p. 71),
afirma que este tipo de pesquisa traz “um vínculo indissociável entre o mundo objetivo e a
subjetividade do sujeito que não pode ser traduzida em números”. Ainda segundo o autor:
A interpretação dos fenômenos e a atribuição de significados são básicas no
processo de pesquisa qualitativa. Não requerem o uso de métodos e técnicas
estatísticas. O ambiente natural é a fonte direta para a coleta de dados e o
pesquisador é o instrumento-chave. É descritiva. Os pesquisadores tendem a
analisar seus dados intuitivamente. O processo e seu significado são os focos
principais de abordagem. (PEREIRA, 2010, p. 71)
85
Quanto aos objetivos, a pesquisa foi exploratória e descritiva. Exploratória no
sentido de buscar maior familiaridade com o problema e descritiva com a finalidade de
levantar as opiniões, atitudes e crenças de determinado grupo Gil (2009, p. 41-42). Ou seja,
não bastava conhecer a legislação da cidade de Laranjeiras. Foi preciso conhecer também a
realidade vivenciada pelo povo que lá vive e as pessoas que circulam na cidade e a sua
respectiva interação com a cultura do lugar.
Os estudos exploratórios são como realizar uma viagem a um lugar desconhecido,
do qual não conhecemos nada nem lemos nenhum livro a respeito do qual
possuímos uma rápida ideia oferecida por terceiros. Ao chegar ao local, não
sabemos que lugares visitar, a qual museu ir, onde comer bem, como são as pessoas;
em outras palavras, desconhecemos tudo do lugar. A primeira coisa que temos a
fazer é explorar: perguntar sobre tudo, pedir ao taxista ou ao motorista do ônibus que
nos deixe próximo ao hotel em que estamos hospedados e, por fim, tentar encontrar
pessoas que nos pareçam simpáticas. (COLLADO, 2006, p. 99)
5.2 LEVANTAMENTO DE DADOS
A primeira fase da pesquisa foi o levantamento bibliográfico e documental. o
levantamento bibliográfico se fez extremamente necessário tendo em vista a necessidade
de conhecer os fundamentos teóricos acerca da temática tratada na pesquisa, desde a
questão da proteção ambiental, passando por todo processo de conhecimento dos diversos
conceitos a serem abordados na construção da dissertação final, tais como o conceito de
socioambiental, cidade sustentável, o direito à cidade, dentre tantos outros abordados ao
longo dos capítulos.
Assim, tão logo identificadas as obras à serem estudadas, iniciou-se o processo de
fichamento, separando de cada obra o que seria interessante utilizar como referencial
teórico da presente pesquisa.
A pesquisa bibliográfica é um excelente meio de formação científica quando
realizada independentemente – análise teórica- ou como parte indispensável de
qualquer trabalho científico, visando à construção da plataforma teórica do estudo.
(MARTINS, 2009, p. 54)
Passada essa fase de identificação das obras pesquisadas, estas começaram a ser
separadas em grupos de acordo com os temas que estavam sendo discutidos em casa
capítulo da revisão de literatura. Foi utilizada a classificação básica, separando para cada
tópico à ser analisado as obras primárias, secundárias e terciárias. Vale lembrar que à
86
medida que o trabalho ia avançando, muitas dessas obras ganhavam novo posicionamento
e classificação de acordo com o desenvolvimento do texto revisor.
Já o levantamento documental deu-se em face de necessidade de conhecer todo o
aparato legal do município, para de fato encontrar no ordenamento jurídico municipal as
leis que importavam na pesquisa. Foi assim, que de todo arcabouço jurídico, decidiu-se
trabalhar com os seguintes dispositivos legais do município: a Lei orgânica, o Plano diretor
participativo, a lei de uso, ocupação e parcelamento do solo, o código de edificações e o
código ambiental.
Ainda no levantamento documental, foi possível encontrar outros documentos, que
também foram utilizados, mas para os quais não houve uma analise profunda, em face de a
pesquisa ter como foco principal, a legislação municipal. Um dos principais documentos
encontrados foi o estudo completo feito pelo Instituto do Patrimônio Histórico Nacional-
IPHAN para realizar o tombamento do sítio arquitetônico na década de 1990.
Após coleta de todo material, chegou a hora de voltar a Laranjeiras onde foram
aplicadas entrevistas semiestruturadas. O objetivo dessas entrevistas não foi obter dados
estatísticos ligados a números. Elas fizeram parte enquanto complemento do trabalho
observacional.
A entrevista é uma técnica de pesquisa para coleta de informações, dados e
evidências cujo objetivo básico é entender e compreender o significado que
entrevistados atribuem a questões e situações, em contextos que não foram
estruturados anteriormente, com base nas suposições e conjecturas do pesquisador.
(MARTINS, 2009, p. 88)
Foi assim que as entrevistas consistiram numa avaliação diagnóstica, com o
objetivo de confrontar os documentos e as observações com a percepção dos entrevistados,
buscando chegar o mais próximo possível do que se pode chamar de verdade dos fatos.
Inicialmente, o público alvo para esta entrevista eram membros da administração
pública direta e indireta (União, estado, município), população que vive em Laranjeiras,
pessoas que trabalham e/ou estudam na cidade, bem como autoridades ligadas ao poder
judiciário. No entanto, à medida que o trabalho foi sendo desenvolvido e algumas
dificuldades foram surgindo, precisou-se fazer alguns ajustes.
87
Dessa forma, o primeiro grupo a ser entrevistado seria da população de Laranjeiras,
fosse ela nativa ou pessoas que apesar de não terem nascido na cidade, vivem lá. A
primeira dificuldade encontrada foi de conseguir pessoas que se interessassem em
responder com o que se chama de boa vontade. Em quase uma semana, num trabalho
árduo, conseguiu-se apenas 6 (seis entrevistas). Assim, diante do tempo escasso, pensou-se
em contratar um Instituto de pesquisa especializado para aplicação dos questionários, mas
após profunda reflexão, se as entrevistas se dessem dessa maneira, não alcançariam seu
objetivo maior que era a interação entre o pesquisador e os pesquisados, item essencial
para as pesquisas nas ciências sociais.
Outro ponto negativo foi o baixo grau de informação das pessoas, que remetem ao
medo, a falta de interesse e principalmente a timidez. Em que pese, vale destacar que a
conversa com o potencial entrevistado transcorria muito bem, até o anúncio de que se
desejava fazer algumas perguntas para uma pesquisa. As poucas pessoas que se dispuseram
a responder tinham interesses políticos.
Assim, foi possível perceber que na cidade existem dois grupos políticos rivais e
que a rivalidade passa para a população, o que fazia com que, aqueles que são a favor do
prefeito atual se posicionassem como se tudo fosse muito bom e que ruim era na outra
gestão. Já aqueles que atualmente se diziam da oposição criticavam a gestão atual e trazia o
saudosismo da gestão anterior, fato que prejudicava e comprometia o objetivo das
entrevistas, conforme já mencionado anteriormente.
Dessa maneira, foi preciso reestruturar a pesquisa de campo. Então, direcionamos
primeiro questionários para algumas secretarias municipais, escolhidas de acordo com as
suas respectivas pastas e a importância no contexto da pesquisa.
Com esse parâmetro buscamos as informações com a Secretaria de Infraestrutura,
onde se buscou conhecer quais as preocupações no que concerne projetar o futuro da
cidade sem causar danos ao patrimônio cultural. Foi através dessa Secretaria que se
conseguiu o acesso a boa parte da legislação municipal analisada na pesquisa.
Como se trata de bens ambientais e de importância cultural foram incluídas também
a Secretaria Municipal de Meio Ambiente e a Secretaria de Cultura. Foi incluída também a
Secretaria de Turismo, tendo em vista que o valor de mercado do patrimônio cultural
também é discutido e também a Secretaria de Educação municipal, pela sua importância na
formação das crianças e jovens da cidade.
88
Com os dados de todas essas secretarias, foi a vez de entrevistar o prefeito. No
entanto, após mais de um mês, apenas as Secretarias de Infraestrutura e Cultura
responderam ao questionário. As demais e o prefeito preferiram se omitir.
Com relação específica à Administração Pública o objetivo foi buscar os dados
acerca das leis existentes na cidade e as ações que estavam em andamento no sentido de
assegurar o desenvolvimento urbano da cidade, mas ao mesmo tempo conservar o
patrimônio cultural.
Aqui também, outro ponto que se fez imprescindível foi buscar saber se existia
abertura do poder público para a gestão participativa e como se dava a participação popular
nesse processo. A principal intenção era oportunizar a todos estes entes que se
pronunciassem e apresentassem dificuldades, realizações que fossem de encontro ou a
favor da realidade observada.
Fora do contexto municipal, foram também incluídas nas entrevistas, a
Subsecretaria do Patrimônio Cultural do estado de Sergipe- SUBPAC e o Instituto do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN. Na SUBPAC, foi informado
verbalmente que eles não tinham dados estatísticos com relação ao município de
Laranjeiras e que as suas atividades estavam bem mais voltadas para o sítio histórico de
São Cristóvão. Foi pedido um tempo para responder o questionário e até a finalização da
pesquisa, este não fora devolvido.
Inicialmente não fazia parte do projeto, mas aconteceram fatos relacionados a
Segurança Pública no município de Laranjeiras, que culminaram com o fechamento
temporário do Campus Universitário da Universidade Federal de Sergipe. Por este motivo,
foi preciso incluir também no trabalho a correlação entre o desenvolvimento urbano e a
crescente violência, bem como, buscou-se estabelecer uma relação que envolve o contexto
cultural, o turismo e a violência. Os dados foram colhidos informalmente com a Secretaria
de Segurança Pública do Estado e também foram ouvidos alguns professores da
Universidade Federal, dentre os quais merecem destaque a participação da professora MSC
Verônica Nunes, do departamento de Museologia e o Professor Doutor Márcio da Costa
Pereira, coordenador do Escritório Modelo de Arquitetura.
Conhecidos esses pontos, foi necessário também conhecer atuação e o papel dos
representantes do Poder judiciário, principalmente o Ministério Público Estadual e o
Ministério Público Federal. Isso, principalmente no que tange o papel de fiscal das leis e as
89
ações realizadas para garantir o seu fiel cumprimento, incluídas também as questões
relacionadas à violência tanto contra as pessoas como contra o patrimônio da cidade.
5.3 TRATAMENTO DOS DADOS COLETADOS
Coletado todo esse material teve a início a fase de análise de conteúdo, com a
chamada descrição analítica, que segundo (MARTINS, 2009, p. 99) estudo aprofundado do
material, orientado pelas hipóteses e referencial teórico. Impende aqui salientar que com os
dados obtidos foi preciso mais que uma análise, necessária também à interpretação de
todos aqueles dados e a sua relação com o referencial teórico já analisado e interpretado.
A fase final consistiu na consolidação de todos os dados coletados, com as
respectivas conclusões, análises e recomendações após a interpretação dentro de todo
contexto, associando-os de modo a entender o valor do patrimônio cultural da cidade desde
a concepção de suas leis até a sua vivência prática cotidiana, identificando quais as
possíveis soluções para que a história do lugar se mantenha conservada para as futuras
gerações.
O trabalho foi dividido em três fases principais: a primeira fase foi a exploratória,
através do levantamento documental, bibliográfico e do trabalho observacional em campo
incluindo aqui as entrevistas realizadas. A segunda fase caracterizou-se pela compilação
dos dados coletados (bibliográfico, documental e observacional). A terceira e última fase, a
descritiva, relatando o problema e identificando se há correlação direta, ampla e
satisfatória, considerando-se o patrimônio histórico cultural existente e dispositivos legais
constantes no ordenamento jurídico municipal de Laranjeiras, buscando ainda, identificar
consequências dessa correlação e apresentando possíveis soluções.
90
6 RESULTADOS E DISCUSSÕES
6.1 COMEÇANDO DO COMEÇO: A HISTÓRIA DE LARANJEIRAS
Laranjeiras é um município do Estado de Sergipe, com uma área territorial de 162,280
Km², situado cerca de 18 km de distância da capital, Aracaju. Hoje possui população estimada
de 28.835 habitantes (IBGE, 2014).
Foi considerada uma das principais cidades do Estado e de acordo com projeto de lei
encaminhado à casa civil do estado de Sergipe, Laranjeiras será incluída na região
metropolitana de Aracaju (SERGIPE, 2013), o que será um marco para o desenvolvimento da
cidade.
Figura 6.1.1 – Mapa de localização – Laranjeiras/SE (Map data @2014 Google)
Segundo (SANTOS, L. e OLIVA, 1998, p. 17), somente conhecendo o patrimônio
cultural de uma comunidade, podemos entender um pouco o que ela é. De fato, a riqueza do
patrimônio cultural de Laranjeiras fez com que fosse intitulada “Atenas de Sergipe” e
chamada de “Museu a céu aberto”, em matéria que circulou na Gazeta de Vitória-ES (IPHAN,
1989).
Um passeio por suas ruas permite uma viagem no tempo, através das suas construções
que traduzem a imponência da arquitetura colonial de origem portuguesa, além de vasto
patrimônio cultural imaterial, composto por elementos da cultura negra, portuguesa e
indígena, o que faz com que seus folguedos estejam entre os mais importantes do Brasil
(LARANJEIRAS, 2014).
91
Figura 6.1.2 – Matéria veiculada na Gazeta de Vitória/ES (IPHAN, 1989, folha 31)
Seu conjunto arquitetônico urbanístico e paisagístico foi tombado definitivamente, em
1997. A Universidade Federal de Sergipe instalou um Campus na cidade, em 2007 e o projeto
Monumenta do Governo Federal também atua na cidade.
O cerne da pesquisa versa basicamente sobre dois pontos, o processo de
desenvolvimento do município de Laranjeiras e a preservação do seu patrimônio cultural.
Logo ao tratar de tais temas o primeiro ponto é conhecer a história, vez que, conhecendo o
passado, entende-se o presente e pode-se fazer projeções para o futuro. Os portugueses
chegaram ao Brasil em 1500, mas a colonização nas terras sergipanas só se iniciou em 1590,
com o capitão-mor Cristóvão de Barros, que promoveu a morte de muitos índios e escravizou
outros tantos. Nesse período a mata atlântica cobria todo litoral e avançava quase 40 km para
o interior. Mas destaque mesmo era a existência de 08 (oito) rios navegáveis, que foram
importantes vias de comunicação e transporte (SANTOS, L. e OLIVA, 1998).
A capitania de Sergipe chegou ao final do século XVIII, contando com uma cidade,
São Cristóvão, que funcionava como Capital e mais quatro povoações: Laranjeiras,
Pacatuba, Japaratuba e São Pedro (Porto da Folha). A maioria da população de
55.600 habitantes que vivia em Sergipe no fim do século XVIII encontrava-se
dispersa pelas fazendas, sítios e engenhos e formava uma sociedade de caráter
essencialmente rural. (SANTOS, L. e OLIVA, 1998, p. 46)
92
A distribuição de terras no então chamado Vale do Cotinguiba começou na primeira
metade do século XVI. Acredita-se que cerca de 24 sesmarias foram distribuídas na região
entre o período de 1594 à 1623, mas o povoamento não se iniciou de imediato. Os primeiros
habitantes em 1606 construíram um pequeno porto fluvial, o qual fora chamado de Porto das
Laranjeiras, devido a muitas Laranjeiras que existiam na região (GRAU, 1975).
Em 1637, o povoado foi invadido pelos holandeses, o que deixou um rastro de
destruição, mas 08 anos depois, o domínio das terras fora retomado pelos portugueses que
prosseguiram com seu projeto de colonização (SANTOS, L. e OLIVA, 1998).
É importante também destacar, a colonização a qual foi submetida à América, em
especial o Brasil. Portugal nunca foi exemplo de nação produtora, aliás, considerado por
muitos como a periferia da Europa, talvez um estereótipo criado em consequência do seu
passado. O fato é que as colonizações por aqui realizadas tinham características exploradoras,
os portugueses encontraram um território extremamente rico em termos de recursos naturais e
se dispuseram a desbravá-lo e conquistá-lo a qualquer custo, primeiro com a dominação dos
povos que aqui viviam, os índios e segundo com a exploração dos escravos trazidos
principalmente da África.
Em termos sociológicos, os fundamentos legais e políticos dessa dominação colonial
exigiam uma ordem social em que os interesses das Coroas e dos colonizadores
pudessem ser institucionalmente preservados, incrementados e reforçados, sem
outras considerações. Isso foi conseguido pela transplantação dos padrões ibéricos
de estrutura social, adaptados aos trabalhos forçados dos nativos ou à escravidão (de
nativos, africanos ou mestiços). (FERNANDES, 2009, p. 23)
Só depois da expulsão dos holandeses, é que de fato começou-se o povoamento
humano na região que hoje é Laranjeiras, que se tornou centro da colonização, graças à
posição geográfica e o pequeno porto (GRAU, 1975).
Vale destacar que a partir da metade do século XIX, poucas as vilas concentravam
mais da metade das unidades produtoras de açúcar, dentre as quais, Laranjeiras (SANTOS, L.
e OLIVA, 1998), época também em que a população no território do Cotinguiba passou a ser
constituída basicamente por portugueses e escravos. No entanto, apesar de existir
povoamento, não existiam povoados, estas pessoas habitavam sítios e fazendas, que se
mantinham a certa distância dos outros (GRAU, 1975).
93
No sítio de Laranjeiras, circundado de numerosas colinas que o envolvem e à
margem do rio francamente navegável- o que facilitava o correto desempenho da
natura tendência portuguesa para as comunicações por via aquática-, não é de
surpreender que aí, no início do século XVII, tivesse existido um agrupamento
humano pequeno, com poucas casas e habitantes, mas já configurando o início de
uma ocupação do solo, ainda que de forma incipiente. É a etapa da Laranjeiras porto
[...] GRAU, 1975, p. 14-15)
De suma importância foi a chegada das Companhias de Jesus, que começaram suas
construções no povoado em 1701. Merecendo destaque a Igreja da Comandaroba, que foi
construída entre os anos de 1731 e 1734, para servir de residência para os Jesuítas, hoje
tombada pelo IPHAN. Obra de suma importância, tendo em vista que foi ao redor dessa
igreja que de fato começou a aparecer os primeiros moradores, que vinham em busca da
segurança e do conforto espiritual, começando assim a formar a pequena vila (GRAU, 1975).
Figura 6.1.3 – Igreja da Comandaroba – Laranjeiras/SE (Acervo pessoal)
Dois fatores importantes contribuíram para que Laranjeiras passasse a existir: a
presença da Igreja e o Porto Regional. Logo, a feira existente por lá começava a destacar o
povoado, agora já conhecido como Povoado das Laranjeiras. Segundo (GRAU, 1975), mesmo
ainda com poucas casas, o fortalecimento comercial, fez perceber que o pequeno lugar
94
começava a se desenvolver e aos poucos passou a fazer parte do cenário político, econômico,
social e cultural de Sergipe.
O século XIX é considerado o século de ouro para o lugar. Em 1848, Laranjeiras foi
elevada à cidade e com o comércio cada vez mais ascendente passou a atrair para a cidade
uma sociedade mais rica, o que fora acentuada com o advento do capitalismo e a chegada da
ferrovia.
É de se destacar também que a região era formada em sua maior parte pelos senhores
dos engenhos, cujos filhos eram encaminhados a Recife, Rio de Janeiro e Salvador para
estudarem, o que contribuiu para a formação de uma sociedade mais politizada e culta, por
outro lado. A outra grande parte daqueles que habitavam a cidade eram escravos, que com a
Lei Áurea ficaram livres, sendo que alguns permaneceram nos engenhos, outros se juntaram
aos já refugiados nos quilombos que cercavam o lugar e outros passaram a viver na cidade,
mas de forma marginal (GRAU, 1975).
De acordo com (SANTOS, L. e OLIVA, 1998), a luta republicana no estado começou
em 1888 e foi em Laranjeiras que o movimento ganhou força, com a fundação do partido
Republicano. Como consequência, a região do Cotinguiba ganhou força.
O processo de desenvolvimento acontecido em Laranjeiras entre 1590 e 1888, traz
informações de suma importância. Primeiro o processo de exploração advindo dos
portugueses, provido do jogo de interesses pelas riquezas do lugar, depois a chegada do Porto
e dos jesuítas, cruciais para a formação da cidade, sem contar com o crescimento da economia
açucareira e a multiplicação de engenhos em toda região. Laranjeiras tinha tudo e por muito
tempo foi um dos lugares mais prósperos do Estado de Sergipe.
Apesar da distância cultural, viu-se em Laranjeiras um processo de desenvolvimento
como o de Chicago, retratada por (EUFRASIO, 1999). Aqui, a chegada da ferrovia, o porto e
a feira foram preponderantes, responsáveis diretos pela distribuição das riquezas e lá o
desenvolvimento das ferrovias ajudou a que se tornasse um grande centro comercial do meio-
oeste norte-americano, atraindo imigrantes de toda parte do mundo.
É evidente que Laranjeiras com o passar do tempo não manteve o ritmo de
crescimento de Chicago e sua importância dentro do estado de Sergipe se dá mais pelo valor
cultural do que pelo desenvolvimento trazido pelo comércio ou pela indústria.
Vale aqui também lembrar o pensamento de (SANTOS, B., 1982), apresentado no
capítulo 3 (item 3.5) que destaca a subordinação da cidade com relação às transformações
sofridas no campo. Outro ponto de suma importância nesse processo de desenvolvimento de
um local diz respeito à formação cultural da sociedade laranjeirense. Veja-se que as pessoas
95
atraídas para o lugar possuíam um poder aquisitivo maior e isso fazia com que os filhos
pudessem estudar fora e consequentemente havia o aumento de uma classe de intelectuais, o
que motivou a discussão política na região, na época fora criado o jornal O Laranjeirense, que
temos mais tarde passou a se chamar de O republicano.
Consoante o pensamento de Lefebvre (2001, p.54), “se considerarmos a cidade como
obra de certos “agentes” históricos e sociais, isto leva a distinguir a ação e o resultado, o
grupo e seu produto” e era isso que se via na cidade e no que ela produzia.
No entanto, segundo (SANTOS, L. e OLIVA, 1988), a crise açucareira foi agravada
pela abolição da escravatura o que só veio agravar ainda mais a situação. Destaque para
Fausto Cardoso, Felisberto Freire, Baltazar Goes e Silvio Romero, intelectuais da época que
organizaram em Laranjeiras uma escola para alfabetizar ex-escravos. O que foi apenas um
paliativo, vez que em nada alterou a situação da população negra que ali vivia que, continuava
vivendo em condição de miserabilidade, a maioria sem trabalho, fato que ensejou no
aparecimento de camadas pobres da sociedade laranjeirense.
Ainda de acordo com (SANTOS, L. e OLIVA, 1988), paralelamente a crise nos
engenhos, Aracaju, através de seu comércio, fábricas de tecido e do emprego público,
contribuiu para que viesse a se tornar a capital do Estado. Assim, a crise no campo
intensificou a migração das pessoas para as cidades, principalmente grandes proprietários que
começaram a transferir suas residências para a capital, tanto para educar seus filhos como para
aproveitarem as comodidades oferecidas pela vida urbana.
Grau (1975, p. I), destaca que a riqueza do passado de Laranjeiras, contrasta com a
presente pobreza. Das informações anteriores, o que se pode ver é que com a mudança da
capital para Aracaju, as pessoas mais abastadas financeiramente deixaram Laranjeiras. A
população da cidade, outrora formada por intelectuais e pensadores, mudou seu perfil para
uma sociedade formada por ex-escravos, quilombolas e pessoas de outras camadas mais
baixas.
De acordo com Lefvbvre (2001, p. 28), “a destruição prática e teórica (ideológica) da
cidade não pode ser feita, aliás, sem deixar um vazio enorme. Sem contar com os problemas
administrativos e outros cada vez mais difíceis de resolverem”.
E foi o que aconteceu com a cidade. As pessoas mais abastadas financeiramente e
consequentemente ou coincidentemente as que detinham maior grau de instrução mudaram-se
da cidade e deixaram um grande vazio. Os que lá ficaram em sua maioria eram pessoas das
classes sociais de menor poder aquisitivo. Destaque-se que boa parte sem emprego, sem
96
moradia. Isso acarreta uma série de problemas futuros para o lugar. Laranjeiras se tornou uma
cidade morta (LOBATO, 2012).
Os ricos são dois ou três forretas, coronéis da Briosa, com cem apólices a render no
Rio; e os sinecuturistas acarrapatados ao orçamento: juiz, coletor, delegado. O resto
é a “mob”: velhos mestiços de miserável descendência, roídos de opilação e álcool;
famílias decaídas, a viverem misteriosamente umas, outras à custa do parco auxílio
enviado de fora por um filho mais audacioso que emigrou. “Boa gente”, que vive de
aparas. (LOBATO, 2012, p. 2)
Hoje a população residente é formada pela maioria de mulheres e cerca de pouco mais
que 20.000 habitantes da cidade são alfabetizados (IBGE, 2014), ressaltando que estes dados
correspondem a pessoas que sabem pelo menos assinar o nome. A cidade possui a rede
escolar formada por unidades municipais e estaduais, sendo apenas uma escola de Ensino
Médio. Segundo o (IBGE, 2014), no ano de 2012, estavam regularmente matriculados em
escolas do nível fundamental e médio 6.390 alunos.
6.2 AS RIQUEZAS NATURAIS DE LARANJEIRAS
Laranjeiras é um município localizado na região do Vale do Cotinguiba e incluído na
Zona da Mata, mas a cobertura vegetal remanescente da Mata Atlântica, atualmente na maior
parte foi substituída por plantações comerciais de cana-de-açúcar e côco, e de subsistência de
mandioca, milho e outros. Está inserido na bacia do Rio Sergipe, banhado diretamente pelo
seu afluente, o Rio Cotinguiba (GRAU, 1975).
A maior riqueza natural da cidade é Rio. Quando do começo da formação do
povoado, o rio foi utilizado para vários fins, principalmente para a pesca e navegação.
Visualmente pode-se ver a degradação pela qual fora submetido ao longo dos anos. Merece
destaque a informação de que a cidade fora construída em função do rio e que hoje, por ação
do próprio homem, o rio, está poluído e sua vazão reduzida a ponto de não mais permitir a
navegação como ocorria no século passado.
As praças e ruas alinham-se, obedecendo praticamente ao traçado do vale fluvial.
Observe-se a disposição da Av. Municipal, Trapiche, Pça. Samuel de Oliveira, Pça.
da República, Rua Pereira Lobo, Pça. Josino Menezes e Pça. Dr. Bragança, que
constituem o centro da cidade e que foi instalado sobre um terraço meandrado do
Cotinguiba, parcialmente ocupando o leito maior daquele rio. (GRAU, 1975, p.13)
97
Ainda existe na cidade um remanescente mínimo de manguezal, praticamente todo
destruído pela ação do homem, que ocupou de forma irregular e desordenada a área. Segundo
(GRAU, 1975), o mangue fora circundado por modestas moradias. Destaque-se que esse
estudo fora feito 40 anos atrás, hoje a ação antrópica praticamente extinguiu a vegetação
nativa.
Segundo a Secretaria de Infraestrutura municipal, já foi executada a primeira etapa da
obra de revitalização do Rio Cotinguiba, com a finalidade precípua de aumentar o leito do Rio
até o trecho da Universidade Federal para evitar com isso transbordamento em períodos de
chuvas intensas. Ainda sem previsão para começar a segunda etapa desse processo. A
Secretaria de Cultura informou que existe um projeto em andamento da construção de uma
orla margeando o rio na área urbana e limpeza do seu leito.
No meio ambiente natural encontram-se também formações geomorfológicas, das
quais merece destaque a Gruta da Pedra Furada, formação rochosa de pedra calcária,
localizada no povoado Machado. O acesso é relativamente difícil e por estar isolado de
moradias, sem vigilância social nenhuma, torna-se perigoso. Em visita ao local, o que se
observou foi uma área abandonada, nada de exótico, a não ser o mito popular, de que o local,
teria sido usada por nativos na época da colonização como rota de fuga. Contam os moradores
que existiria supostamente um túnel que levaria até a Igreja da Comandaroba, mas não foi
encontrado nenhum dado que comprove realmente a existência da passagem, o local foi
tombado em 1990 pelo Governo do Estado de Sergipe.
Outro destaque também é a Gruta da Matriana, situada na Vila do Faleiro, considerada
Patrimônio cultural, vez que teria sido utilizada por padres como refúgio para orações, desde
1795. Como as duas Grutas e o Rio são tombados como Patrimônio Cultural do Estado e
constam do Inventário Nacional de Referências Culturais em Laranjeiras, realizado pelo
IPHAN, em 2007, quando da entrevista, fora questionado se existia algum trabalho realizado
em parceria entre o IPHAN e os órgãos ambientais (federais, estaduais e/ou municipais), no
sentido de preservar esses bens ambientais Culturais, sendo respondido que isso seria
competência do Governo do Estado, já que o decreto de tombamento foi do executivo
estadual. Verbalmente a Subsecretaria do Patrimônio Cultural do Estado-SUBPAC informou
que não tem nenhum projeto nesse sentido, mas não devolveram o questionário escrito
respondido. Cabe destacar que em dezembro de 2014, o Governador do Estado de Sergipe,
assinou decreto que extinguiu a Subsecretaria do Patrimônio (SUBPAC), incorporando suas
atividades à competência da Secretaria Estadual de Turismo (SECTUR).
98
A Administração Estadual do Meio Ambiente - ADEMA também não tem nenhum
trabalho voltado para a preservação dos bens naturais em Laranjeiras. Pelas informações
colhidas, o órgão ambiental estadual atua mais como órgão licenciador e fiscalizador.
A Secretaria de Infraestrutura Municipal destacou como relevante o projeto concluído
de urbanização da orla do Rio e a Secretaria de Cultura considerou que até o momento a única
ação do município em relação a gruta da pedra furada, é um trabalho de fiscalização a não
depredação realizado pelos guias de turismo, e que em breve estarão sendo desenvolvidas.
Figura 6.2.1 – Gruta da Pedra Furada – Laranjeiras/SE (acervo pessoal)
Interessante observar, que segundo o contexto histórico, Laranjeiras se formou em
torno do Rio Cotinguiba, mas não desenvolveu pelo rio uma relação geralmente comum em
populações tradicionais que vivem essa proximidade com o bem natural. Ao que parece,
infelizmente a população não possui uma identidade com o rio. Conversando com moradores,
principalmente os com menos de 50 anos de idade, se percebe nitidamente que não faria
diferença se existisse ou não o rio. Alguns comentam que “um dia o Imperador chegou na
cidade pelo rio”, mas parece mais uma frase já pronta do que realmente um sentimento de
orgulho advindo da riqueza natural que existe na cidade, refletindo bem o pensamento de
99
(CARSON, 2010), apresentado no capítulo I deste trabalho, no item que trata acerca da ética
ambiental.
O que se vê na relação da população laranjeirense no tocante a seus bens ambientais
naturais é que não existe cautela no modo como lidar com o meio ambiente. Entende-se
também que as ações dos poderes públicos tem mais haver com um embelezamento visando o
potencial turístico do lugar do que uma preocupação realmente efetiva em recuperar de fato os
bens naturais daquele lugar.
6.3 O DESENVOLVIMENTO URBANO DO MUNICÍPIO
A Constituição Federal (BRASIL, 1988), reconheceu o município como ente
federativo, o que lhe garantiu plena autonomia. Em que pese, a Carta Magna brasileira
estabeleceu também que dentre os entes federativos, o município é o principal responsável em
promover política urbana, visando sempre o desenvolvimento das funções sociais da cidade.
Dentre os inúmeros compromissos firmados na Conferência das Nações Unidas para o
meio ambiente e desenvolvimento, mundialmente conhecida como Rio 92, estava o
fortalecimento das ações locais como fator determinante para o alcance dos objetivos
permeados pela Agenda 21(ONU, 1992[1995]).
28.1. As autoridades locais constroem, operam e mantêm a infra-estrutura
econômica, social e ambiental, supervisionam os processos de planejamento,
estabelecem as políticas e regulamentações ambientais locais e contribuem para a
implementação de políticas ambientais nacionais e subnacionais. Como nível de
governo mais próximo do povo, desempenham um papel essencial na educação,
mobilização e resposta ao público, em favor de um desenvolvimento sustentável.
(ONU, 1992[1995], p. 381)
Para falar do desenvolvimento de uma cidade como Laranjeiras não se pode dissociar
do patrimônio cultural existente. Existem dois conceitos básicos para se entender a relação
das pessoas com o lugar que vive, denominados por (LEFEBVRE, 2001), como valor de uso e
valor de troca, considerando que existem locais de consumo e o consumo do local, situação
que se adéqua perfeitamente ao município de Laranjeiras.
A renda per capita na zona rural em 2010 foi estimada em R$ 191, 00 (cento e noventa
e um reais) e na zona urbana, aproximadamente R$ 225, 00 (duzentos e vinte e cinco reais). A
economia local é oriunda da agricultura e pecuária, comércio e da indústria.
100
Calculado com base em três pilares, quais sejam, saúde, educação e renda, em 2010, o
Índice de Desenvolvimento Humano-IDH do município era de 0,642, média que está abaixo
do mesmo indicador no estado como um todo que é de 0,742 (IBGE, 2014).
Na economia da cidade, destaca-se hoje a presença de duas grandes fábricas de
renome internacional, uma de cimento e uma de fertilizantes. O grande impacto ambiental da
presença dessas fábricas é a poluição causada nas imediações e a exploração de minérios. As
fábricas foram instaladas a certa distância da Zona Urbana da cidade, mas o crescimento
desordenado e irregular acabou levando pessoas a viverem nas proximidades.
Na coleta de dados, em entrevista direcionada à Secretaria de Infraestrutura municipal,
fora perguntado qual o ônus e bônus trazidos pela industrialização no município, sendo
respondido que o ônus é a poluição causada nas imediações da fábrica, bem como as
explosões de pedreiras e o bônus seria tanto os empregos que são gerados como o produto
derivado da arrecadação de tributos destinado a melhorias para população.
A Secretaria de Meio Ambiente não respondeu o questionário acerca de informações
sobre parcerias visando à compensação direta ou indireta, por possíveis danos ao meio
ambiente causados por estes estabelecimentos. Segundo o IPHAN, existe uma parceria que
envolve a SUBPAC, a Prefeitura de Laranjeiras e a Votorantim (fábrica de cimento) no
Projeto denominado de Dia do patrimônio, desde 2011. O projeto compreende um conjunto
de ações educativas, realizadas junto a comunidade escolar do município, através de
atividades diversas, nas quais são reunidos alunos, pais, professores e comunidade. Dentre as
atividades a serem realizadas destacam-se o Cinema na escola, oficinas de desenhos, espaços
para brincadeiras tradicionais. No final de cada edição do projeto, as escolas são
contempladas com kits de materiais que permitirão que as atividades permaneçam sendo
desenvolvidas no cotidiano da Unidade de Ensino. Toda execução do projeto, incluindo as
atividades são registradas através de imagens em vídeo feitas por uma equipe especializada,
com o objetivo de futuramente virar um documentário.
No tocante aos empregos gerados, não visualizei nada de significante em termos de
geração de empregos e renda de forma direta. A maioria dos funcionários das fábricas é de
fora e em grande parte nem moram na cidade. Os que moram, não são nativos, mas
funcionários de terceirizadas, que vivem em alojamentos mantidos pelas próprias empresas.
Outro ponto o qual destaco é que apesar da imponência de duas empresas de grande porte
presentes na cidade, o retorno é pouco visível. Um exemplo é a desativação da linha férrea,
importante instrumento na logística de transporte da produção. Hoje esse transporte é feito
101
pela via terrestre em muitos trechos e se utiliza também o porto de Sergipe. Pode ser que a
arrecadação seja de fato usada e contribua para melhorias na cidade, mas pouco foi visto de
mudanças significativas em quase dois anos de observação. O que se presenciou foi uma
população extremamente carente em todos os sentidos. No processo de desenvolvimento de
Laranjeiras, se vê claramente o que (LEFEBVRE, 2001), chama de circuito frágil. Em que
pese, um tipo de urbanização que pode se romper a cada instante, pela falta de
industrialização ou com pouca industrialização. A cidade tende a crescer diante dessas
perspectivas, inclusive atrai mais pessoas para o lugar, existe muita especulação, mas o
crescimento não vai adiante.
E acredita-se que a cidade não cresceu em outros aspectos, não evoluiu, logo
permanece a mesma lógica do século XIX, que a partir do momento em que se melhora o
poder aquisitivo, deixa-se de viver na cidade e passa a morar em um lugar maior,
principalmente pela proximidade com Aracaju. Em 2007, outro importante acontecimento
impactou uma possível alavancada no desenvolvimento da cidade: a implantação do Campus
da Universidade Federal de Sergipe. Segundo Nunes e Nogueira (2009, p. 11), “a instalação
do Campus de Laranjeiras veio preencher uma lacuna na formação de profissionais nas áreas
de Arquitetura, arqueologia, dança, música e teatro”.
Figura 6.3.1 – Fachada do Campus da Universidade Federal de Sergipe – Laranjeiras/SE (acervo pessoal)
102
Segundo o Professor Doutor Marcio Pereira12, “Laranjeiras é uma cidade dormitório
com extrema dependência de Aracaju e a implantação da UFS na cidade poderá incrementar
as atividades do setor de serviços e alavancar a divulgação da cultura local. Além disso,
poderá impactar, através das ações de extensão, na melhoria dos indicadores sociais”. Para a
Professora MSC Verônica Nunes13, “o Campus vai atrair um público mais jovem que, muitas
vezes não conhecia a cidade e, terá um contato direto com a sua população, seus monumentos
e sua cultura. Numa relação de troca, com perdas e ganhos para ambas as partes”.
Destaque para uma parceria entre a Universidade e o poder público municipal
objetivando o desenvolvimento de projetos de arquitetura, paisagismo e urbanismo para
colaborar no desenvolvimento da cidade, o qual inclui assistência técnica para a moradia da
população de baixa renda da cidade, bem como a existência de um projeto de extensão
chamado de “Boas práticas na construção civil: pintura e revestimentos cerâmicos” com o
objetivo de capacitar moradores da cidade com minicursos ministrados pelos professores e
alunos. A Universidade mantém ainda parceria com o IPHAN.
Com tudo isso não se observou uma interação entre a população da cidade e o
Campus. Existe uma barreira invisível, conceitual que aquele espaço não pertence a
comunidade local e entende-se que isso é algo que precisa ser rompido por atividades da
própria Instituição de ensino.
Dentre desse contexto, é de suma importância reportar-se a um fato que ocorreu que
trouxe a visibilidade essa distancia e ensejou uma nova discussão acerca da presença do
Campus na cidade. Em maio de 2014, alunos e professores decretaram greve por falta de
segurança e as atividades do Campus foram suspensas. É consenso que o processo de
desenvolvimento traz coisas boas, mas também traz coisas negativas e uma das coisas
negativas é o aumento da violência.
As cidades passam a atrair mais pessoas como é o caso de Laranjeiras em que a
instalação do Campus aumentou e muito a circulação de pessoas na cidade. Por outro lado,
como anteriormente já fora demonstrado, a população de Laranjeiras em termos gerais é de
poder aquisitivo baixo, os frequentadores do Campus, já pertencem a classe média.
Admitindo-se ou não, existe um processo de afronta inconsciente com aqueles que vivem de
12 Coordenador do Escritório Modelo do curso de arquitetura da Universidade Federal de Sergipe, professor do
magistério superior com dedicação exclusiva, vinculado ao DAU- Departamento de Arquitetura e Urbanismo-
Campus- Laranjeiras em resposta a uma das questões apresentadas na Entrevista de coleta de dados da pesquisa.
13 Professora da Universidade Federal de Sergipe há 22 anos, atualmente vinculada ao Departamento de
Museologia- Campus- Laranjeiras, em resposta a uma das questões apresentadas na Entrevista de coleta de dados
da pesquisa.
103
fato naquele lugar, que continuam vivendo de forma precária muito aquém com a realidade
ideal.
Mas em que pese essa barreira é preciso também alertar que o fato já mencionado,
demonstra uma falência da segurança pública no Estado, isso porque o aumento da violência
não se deu apenas em Laranjeiras, mas se mostrou crescente em todo estado. Segundo
Fonseca et all (2013, p. 11-14), no estado de Sergipe o índice de homicídios para cada 100
mil habitantes era de 28,12%, em 2010. Esse número aumentou para 30,42% casos. Segundo
mesmo estudo, Laranjeiras em 2010, era a 15ª cidade mais violenta do estado, com um índice
maior que o de Nossa Senhora do Socorro e Aracaju, que tiveram o crescimento populacional
e o desenvolvimento urbano muito mais acentuado, não sendo justificativa plausível a
tentativa de imputar à presença do Campus o aumento na violência.
No estudo da violência é necessário que causas potenciais sejam buscadas,
relacionadas não apenas a alterações da sociedade, mas a alterações de um conjunto
de fatores, onde se incluem os de localização relativa e vizinhança, que facilitam a
interação de fatores que, direta ou indiretamente associados, podem favorecer a
ocorrência de atos de violência. (FONSECA et all, 2013, p. 4)
Se existem responsabilidades, estas cabem ao Poder público estadual, responsável pela
segurança pública, mas isso impacta em outros problemas, como a falta de policiamento
ostensivo, que não é feito, em virtude do número baixo de efetivos e a falta de infraestrutura.
No entanto, acredita-se também, que deve partir da comunidade acadêmica a tentativa
de tentar promover maior interação da comunidade laranjeirense com o mundo que existe
dentro da Universidade.
Em se tratando de geração de empregos e renda, se observou que o comércio da cidade
não é expressivo, ele serve apenas para atender algumas demandas da população, no entanto a
proximidade de Aracaju faz com que essa renda seja transferida para lá.
Talvez o grande potencial gerador de renda e empregos para o município seja a
exploração do turismo, transformando a cidade de acordo com o seu valor de troca. Mas
segundo Leite, E. (2011, p. 44), a comercialização excessiva da cultura acaba criando uma
caricatura estereotipada na comunidade que participa desse meio.
O turismo cultural pode gerar renda para os municípios e, também, a manutenção da
cultura nas comunidades. Pode produzir melhoria na autoestima da comunidade e,
consequentemente, melhoria da qualidade de vida da população local. Essa
experiência dos habitantes pode ser incluída como um subproduto muito interessante
104
aos circuitos culturais turísticos. Nem sempre, contudo, a comunidade se dá conta da
importância de suas práticas e de seus saberes específicos. (LEITE, E., 2011, p. 34)
No entanto, observando a cidade, pode-se ver que apesar do potencial, falta muito
coisa para que Laranjeiras possa de fato vir a tornar-se um destino turístico. Não existe
controvérsia de que a cidade de fato tem suas riquezas culturais e pode-se observar que a
Prefeitura tem feito um trabalho ostensivo de divulgação do lugar. Mas não é só isso que faz
com que a cidade desperte o interesse de turistas. Em termos de infraestrutura o município
deixa muito a desejar. Aqui vale novamente retomar um ponto que já foi objeto da discussão,
a proximidade que cria a dependência de Laranjeiras em relação à Aracaju.
No que diz respeito ao acesso à cidade, é bem fácil. Laranjeiras está localizada às
margens da BR 101, entre Sergipe e Alagoas, num trecho inclusive já duplicado. Para o
visitante que tem condução própria, chegar até o município é feito sem nenhum grande
problema, apesar da falta de placas ao longo da estrada que indiquem a proximidade da
entrada, se desavisados é possível que passe despercebido.
Já para o visitante que pretenda ir à cidade através do transporte público, este deverá ir
para Aracaju e de lá pegar outra condução até o município. Essa ligação intermunicipal é feita
por uma cooperativa que atua em boa parte do estado. Os ônibus são precários, velhos, sujos e
sem nenhum tipo de conforto. Causa uma péssima impressão em qualquer visitante,
principalmente os turistas advindos de outros países e do sul-sudeste do Brasil.
Sem contar que nem sempre em Aracaju, na chamada Rodoviária Nova14 tem horários
diversos para Laranjeiras, ou seja, o turista vindo de outro estado desembarcaria
obrigatoriamente na Rodoviária Nova e teria que ir para a Rodoviária Velha se não quisesse
esperar longo tempo por outro horário. As pessoas ainda enfrentam constantes assaltos,
principalmente nos horários em que estão viajando estudantes para as atividades do Campus
universitário em Laranjeiras.
Outra opção e bem mais usada pela população, são as lotações, essas são feitas por
carros pequenos de particulares, transportando passageiros de forma irregular. Merece
destaque aqui que apesar de ser uma situação corriqueira e de conhecimento de todos, apesar
14 Em Aracaju, atualmente existem dois terminais rodoviários. Um que recebe o fluxo de transporte interestadual
e intermunicipal chamado popularmente de Rodoviária Nova, que fica na Avenida Tancredo Neves, na entrada
da cidade via BR 235. E o outro terminal, fica no Centro da cidade e recebe exclusivamente ônibus do transporte
intermunicipal, chamado popularmente de Rodoviária Velha.
105
da irregularidade, a atividade não é coibida pelas autoridades, até mesmo porque o transporte
regular não seria suficiente e nem tampouco eficaz.
No tocante, a hospedagem, mais uma vez é importante destacar a dependência com
relação à Aracaju. Não existem hotéis ou pousadas, no máximo algumas repúblicas ou
pensionatos, montados na maioria das vezes pelos próprios alunos da Universidade.
Na questão de alimentação, apenas dois estabelecimentos têm condição de atender os
visitantes com o mínimo necessário, o que se considera muito pouco para uma cidade com o
potencial turístico de Laranjeiras. A Secretaria de Turismo não devolveu o questionário
respondido.
Apesar de todos os problemas, vale a pena conhecer Laranjeiras e através de suas ruas
viajar pela história do país. A cidade tem um clima de interior que se mistura com a
imponência de sua arquitetura e torna o passeio agradabilíssimo
6.4 O PATRIMÔNIO CULTURAL DE LARANJEIRAS
6.4.1 O Conjunto arquitetônico da cidade
Ao todo, o município de Laranjeiras possui mais de 90 bens culturais devidamente
inventariados (IPHAN, 2007). Vale a ressalva que a riqueza cultural de Laranjeiras não se
compõe apenas de bens materiais, seu patrimônio imaterial é tão grande quanto.
No entanto, o patrimônio imaterial é cada vez mais comprometido com o passar dos
tempos, tendo em vista que são repassados de pai para filho e infelizmente, muita coisa se
perde na transmissão dos saberes ou os filhos não possuem uma identificação com aquilo que
outrora foi de suma importância para os seus antepassados. Alerta o (IPHAN, 2007) que “a
ausências de dados pormenorizados, chama a atenção para o descaso no passado com os bens
culturais”. O primeiro tombamento do patrimônio edificado de Laranjeiras foi promovido
pelo Governo Estadual ainda na década de 70.
Em 1984, através do projeto de lei nº 3476, o então Deputado Federal Francisco
Guimarães Rollemberg requer a elevação da cidade a Monumento Nacional. No entanto, o
processo de tombamento só se iniciou de fato em 1989 e o Decreto de Tombamento só se deu
em 1997.
106
Figura 6.4.1.1 – Mapa do Conjunto Arquitetônico,paisagístico e urbanístico – Laranjeiras/SE (IPHAN, 1989,
fl.03)
Segundo Silva e Nogueira (2009, p. 45), “existiria uma problemática na discussão do
que propriamente uma aceitação comum”, no que diz respeito ao tombamento do patrimônio
arquitetônico de Laranjeiras, se tomado por base o que determinava o Decreto-lei nº 25/37, já
discutido no capítulo acerca da base legal desse trabalho. Isso porque, considera Silva e
Nogueira (2009), o conjunto arquitetônico de Laranjeiras não seria puramente colonial, com
traços da presença dos jesuítas e suas obras, mas traria também presença do neoclassicismo e
do ecletismo, os quais não foram inseridos no texto legal do decreto anteriormente
mencionado. Ressaltam ainda que “outro aspecto, seriam as intermináveis modificações
empreendidas através do tempo nas edificações” (SILVA E NOGUEIRA, 2009, p. 46).
Figura 6.4.1.2 – Igreja Presbiteriana de Sergipe (1884) – Laranjeiras/SE (acervo pessoal)
107
Voltando a discussão entre preservacionismo e conservacionismo, o que se pode
observar na cidade é que a preocupação com o preservar se sobrepõe ao conservar. A
interação da comunidade com o seu patrimônio é muito frágil. A sensação passada é que
aquelas pessoas desconhecem o valor do Conjunto arquitetônico da cidade. Repetem quase
que maquinalmente que tudo aquilo é importante para a cidade, mas não sabem responder
porque é importante para elas, justamente porque são educadas apenas para preservar mas não
lhes é passado que elas fazem parte daquele contexto.
Vale um parêntese aqui para uma situação curiosa. Durante a pesquisa, tomamos
conhecimento que quando do tombamento do sítio arquitetônico da cidade, a comunidade
teria se manifestado acerca da possível inclusão da antiga estação de trem da cidade.
Solicitação que não foi atendida. Consideramos que a Estação de trem é um dos locais onde
de fato havia grande identificação do povo laranjeirense, por ser um espaço democrático na
história da cidade. Pelas estações de trem passam muitas histórias e vez ou outra, foi possível
ao conversar com algum morador mais velho, ouvi histórias saudosistas de quem já embarcou
na estação para fazer uma viagem para São Paulo que chegava a durar quase um mês.
Infelizmente o local hoje é apenas ruínas.
Figura 6.4.2.1 – Antiga Estação de Trem em ruínas (2015) – Laranjeiras/SE (acervo pessoal)
Outro ponto importante é que muitos dos casarões, principalmente os que estão mais
próximos da margem do rio não tem a propriedade regulada perante a Superintendência do
108
Patrimônio da União-SPU e o processo para a regularização é burocrático e necessita de
elementos que muitas vezes são inviabilizados pelo baixo poder aquisitivo do atual possuidor.
Destaque-se que em alguns desses casos o possuidor intenta regularizar a propriedade, mas
porque visa o recebimento de indenização pela relativização da propriedade que pode vir a ser
feita pela União Federal em caso de tombamento, casos em que se percebe também o
reconhecimento do chamado valor de troca (LEFEBVRE, 2001).
Outro dado importante, diz respeito do trabalho do Ministério Público Federal-MPF,
como órgão fiscalizador da lei, no sentido de manter incólume o Patrimônio edificado da
cidade de Laranjeiras. Atualmente existem em trâmite perante a Justiça Federal de Sergipe,
quase 10 (dez) demandas que tratam acerca da restauração de bens imóveis tombados.
Em algumas, o Instituto do Patrimônio Histórico Nacional- IPHAN, figura como réu, e
em outras como autor, em Ação Civil Pública que tem como objeto a recuperação ou obras de
reparos emergenciais em bens imóveis tombados na cidade e em alguns casos contra
proprietários que promovem reformas que comprometem o bem ambiental.
Segundo o IPHAN15, a despeito de todo trabalho que vem a ser feito pelo órgão na
cidade, existem alguns entraves encontrados, principalmente no que diz respeito a
identificação do proprietário do imóvel, conforme anteriormente já relatado.
Observa-se ainda que essas ações são muito demoradas e isso pode vir a comprometer
a obtenção de um resultado eficaz, vez que o decurso do tempo pode ser fatal.
Cite-se como exemplo a demanda tombada sob o nº 0003883-04.2011.4.05.8500, em
tramite na 1ª Vara Federal da Seção Judiciária de Sergipe. Ainda na esfera administrativa, em
2007, o Ministério Público Estadual-MPE, por não ter a competência legal em virtude de se
tratar de bem tombado por Decreto Federal, apresenta denúncia junto ao Ministério Público
Federal, da necessidade de intervenção em uma edificação abandonada, o antigo Teatro de
Laranjeiras, “por apresentar destacamentos de material de parede e deslocamentos horizontais
de alvenaria, com alto grau de deterioração” (JFSE, 2011).
Ainda em 2007, fora instaurado processo administrativo junto ao IPHAN, este órgão
esbarrando nas dificuldades legais no tocante a interferência na propriedade privada, apesar de
inúmeras diligências nada de concreto pode fazer por não ter conseguido identificar quem de
fato era proprietário do imóvel. Assim, passados 04 anos sem nenhuma providência eficaz, foi
ajuizada a ação civil pública.
15 Resposta a questionamento feito na entrevista de coleta de dados com os responsáveis pelo órgão
109
Em julho de 2012, o IPHAN foi condenado “a apresentar, no prazo de 60 (sessenta)
dias, o projeto de volumetria do imóvel, bem como concluir a execução da respectiva obra no
prazo sucessivo de 180 (cento e oitenta) dias” (JFSE, 2011). A juíza sentenciante arbitrou
ainda uma multa diária de R$ 1.000,00 (mil reais) em caso de descumprimento. No entanto,
até a presente data, a demanda continua em curso. Algumas obrigações já foram cumpridas
pela autarquia, mas aguarda-se ainda a comprovação do cumprimento total da obrigação de
fazer imputada.
Ainda merece ser ressalvado que apesar de não estarem incluídos no Conjunto
Arquitetônico da cidade tombado pelo Governo Federal em 1997, existem lugares que tem
importância cultural de alto valor e que diretamente ligada às heranças africanas, como por
exemplo, o Terreiro Filhos de Obá, o terceiro mais antigo do país, fundados por escravos de
origem Nagô (IPHAN, 2007), tombado pelo Governo Estadual desde 1988.
Essa questão da origem dos fundadores do terreno é de suma importância dentro
dessas instituições, representa a força do terreiro, o tipo de trabalho que eles realizam.
O estabelecimento de vínculo estreito com a África e o convívio com os africanos
são maneiras de proclamar conhecimento do segredo dos cultos, força e assim
legitimar-se perante o segmento afro-brasileiro local onde orixá é tido como mais
forte que o caboclo. (DANTAS, 1982, p. 26)
Fazem parte ainda da lista de lugares com valor cultural da cidade de Laranjeiras, a
Casa de Farinha, o cemitério da Mussuca, o Rio Cotinguiba, do qual foi falado e a o lugar
onde realizado a Feira e o antigo Porto do Quaresma (IPHAN, 2007).
Porto da Quaresma é antigo porto utilizado na navegação de cabotagem e transporte
de passageiros. É utilizado por grupos folclóricos com uma das paradas obrigatórias
de seus trajetos, a exemplo da Chegança Almirante Tamandaré o combate entre
Lambe-sujos e Caboclinho., além de ser local de embarque e desembarque da Festa
de Bom Jesus dos Navegantes. (IPHAN, 2007, p. 33)
6.4.2 O patrimônio imaterial
Constitui parte importante da construção da identidade de qualquer grupo social, o seu
patrimônio imaterial. Em verdade, talvez a representação mais verossímil de determinada
comunidade venha através das suas expressões culturais imateriais, conforme já foi visto no
capítulo próprio da fundamentação teórica. Vale frisar que não está aqui se diminuindo ou
110
rechaçando a importância do patrimônio material, mas conforme observação já elencada nessa
pesquisa, nem sempre aquilo que se considera Monumento histórico, representa de fato a
identidade cultural de um povo.
Conforme já visto ao longo deste trabalho, a sociedade laranjeirense é bastante
miscigenada, isso torna o seu patrimônio imaterial de uma riqueza inigualável, com elementos
da cultura portuguesa, negra e indígena, construindo o que podemos denominar da identidade
desse povo. O IPHAN, entre os anos de 2007 e 2010 realizou o Inventário Nacional das
Referências Culturais de Laranjeiras. Constam 60 bens referenciados, mas nenhum ainda
tombado. Segundo a historiadora do IPHAN, o inventário seria um estudo preliminar com
esta finalidade.
Destaque-se que os bens da cultura imaterial de Laranjeiras são também de uma
diversidade imensa, assim divididos: celebrações que englobam em sua maioria rituais
religiosos, como por exemplo: A festa do bom Jesus dos Navegantes, a Festa dos Santos Reis
e a Semana Santa, representando a cultura dos então denominados brancos e A festa do Preto
Velho, o Ibeji e o Corte do Inhame, representando a cultura negra, dentre tantas outras
celebrações (IPHAN, 2007). Grande parte dos bens culturais imateriais de Laranjeiras
inventariados como celebrações, tem alguma vinculação religiosa e aqui merece destaque os
rituais existentes na Igreja católica que tem ainda grande força na cidade e também os cultos
africanos nos inúmeros terreiros.
Figura 6.4.2.2 – Altar da Igreja da Comandaroba durante a Semana Santa,com as imagens cobertas com um
pano roxo (2013) – Laranjeiras/SE (acervo pessoal)
111
Como formas de expressão tem-se a Micareme, o Guerreiro, o Cacumbi, o Samba de
côco, a Taieira e o Encontro Cultural de Laranjeiras, dentre outros, dos quais merece ser
falado pela sua peculiaridade é a respeito do Homem que preparou o próprio enterro, no qual,
um senhor nativo da cidade, conhecido como Sr. Nivaldo, preparou e realizou o próprio
enterro (IPHAN, 2007).
Seu Nivaldo diz “querer muito bem à morte”, e tendo sido criado sem pai e mãe, diz
gostar muito do ambiente do cemitério. O caixão foi feito por um marceneiro
chamado Senhor Raimundo sob encomenda. No dia do feito, segundo Seu Nil, mais
de duas mil pessoas compareceram. Seu Nil saiu de casa dentro do caixão, sem a
tampa, sendo levado por alguns amigos que iam cantando as músicas que Seu Nil
mais gostava. Eram músicas do Lambe-Sujo x Caboclinhos, do carnaval, entre
outras. No cemitério, o coveiro o ajudou a sair do caixão, e logo depois as pessoas
cantaram “Parabéns pra você”. (IPHAN, 2007, p. 20)
Dentre as formas de expressão, um evento que atrai diversos olhares e talvez hoje, um
dos que tenha maior importância reconhecido pela comunidade local é a Festa dos Lambe
sujos e caboclinhos que ocorre no mês de outubro e retrata uma luta entre brancos, negros e
índios. Aqui vale o pensamento de LEITE, E. (2011, p. 69), quando afirma que “a consciência
que atribui poder aos bens culturais não surge do dia para a noite, nem apenas com a
participação do Governo”. De fato, das manifestações culturais observadas, aquela que de fato
o povo participa é a Festa dos Lambe-sujo e caboclinhos. Existe uma aceitação da
comunidade.
É fato que não uma aceitação unânime e existe algum rechaçamento por parte de
pessoas que se sentem incomodadas, tendo em vista que faz parte da tradição que os lambe-
sujos sujem as pessoas que estão assistindo. Importante ressaltar que a Prefeitura Municipal
no ano de 2014, desenvolveu uma campanha na qual tentava sensibilizar aos participantes que
evitasse importunar aqueles que apenas observam a festa, como meros espectadores, sem
querer propriamente fazer parte do movimento (LARANJEIRAS, 2014).
De acordo com a Secretaria de Cultura municipal, objetivo maior da campanha foi
mostrar aos jovens a importância de conhecer a fundo essa festa folclórica que vem sofrendo
distorções quanto a sua história e sua verdadeira essência16. A festa representa a invasão dos
escravos na cidade para saquearem bens dos brancos, e a atuação dos índios, ora contratados
16 Informação obtida na entrevista de coleta de dados realizada com o Secretario Municipal de Cultura, Sr.
Evanilson Calazans.
112
por estes brancos para promoverem a sua defesa, o que acarretava numa batalha entre os
lambe-sujos (negros) e os caboclinhos (índios) (IPHAN, 2007).
Figura 6.4.2.3 – Festa dos Lambe-sujos e caboclinhos (2014) – Laranjeiras/SE (Prefeitura Municipal de
Laranjeiras)
Apesar da tentativa em se manter a tradição cultural, alguns pontos foram verificados
que tendem a no futuro comprometerem a perpetuação de algumas manifestações. Segundo o
IPHAN (2007), “alguns participantes consideram que a Festa dos Lambe sujos e caboclinhos
vem perdendo características primordiais, como a descaracterização da indumentária, inclusão
de pessoas a esmo como figuras”. Observou-se também que em virtudes de divergências
internas entre os líderes do movimento em 2014, foi preciso uma intermediação que envolveu
esforços da Prefeitura Municipal e do Ministério Público a fim de assegurar que a festa não
fosse prejudicada (LARANJEIRAS, 2014).
Considera-se muito delicada a questão, principalmente no tocante a interferência do
pode Estatal em manifestações culturais para resolver desestruturações internas entre
membros, o que pode vir, futuramente a comprometer seriamente a conservação de tão
importante movimento cultural da cidade.
Nesse contexto das formas de expressão, merece destaque ainda o Encontro Artístico e
Cultural, que ocorre anualmente no mês de janeiro, desde 1976 e que reúne nomes
expressivos e diversos pesquisadores da área na cidade, tendo como ponto alto a Festa dos
Santos Reis, classificada como uma celebração.
O encontro ocorre anualmente na primeira semana do mês de janeiro. Talvez seja a
semana em que a cidade encontre-se dentro do ideal, ou melhor, aparentando “o dever-ser”.
As ruas ficam tomadas pela Cultura, movimento intenso de pessoas, de manifestações
113
culturais, todos os espaços são aproveitados de alguma forma. Importante salientar que o
encontro não trata apenas da cultura de Laranjeiras, mas da cultura do Estado de Sergipe. São
diversas as manifestações. Mas vale ressaltar que aqui também é o momento ideal para se
visualizar o paradoxo observado na cidade, no tocante a sua população e a identificação da
cultura local. Durante toda essa semana a presença de pesquisadores, turistas, interessados no
tema é enorme. Todos buscam aproveitar o máximo do que acontece. No entanto, a população
da cidade não participa do Encontro Cultural de fato. Paralelo ao evento, a Prefeitura promove
uma festa com shows de artistas nacionais e é aonde o povo laranjeirense foca a sua atenção.
Ou seja, se de um lado estão pesquisadores tentando perpetuar a cultura do lugar, do outro,
está o próprio povo nativo como se não fosse parte integrante do contexto. Fora anunciado
durante o 40º encontro, acontecido em janeiro/2015, que a Secretaria de Cultura municipal
tinha interesse em tornar frequente, saraus que aconteceram no coreto da praça municipal, o
que desde já almejamos que seja verdade.
Fazem parte também do inventário de referências culturais (IPHAN, 2007), os ofícios
e os modos de fazer, dentre os quais, o aguadeiro, a cerâmica, a renda irlandesa, o ponto de
cruz, a pesca e a fabricação de farinha. Vale frisar que não são atividades tipicamente
laranjeirense, nem tampouco exclusivas, mas que compõem também a história da cidade e por
isso fazem parte dos seus bens imateriais.
Alguns objetos também fazem parte das referências culturais de Laranjeiras, dentre os
quais só não tem caráter religioso, o órgão de tubos. Os demais são imagens de santo da Igreja
católica, como a Imagem do Senhor dos Passos, o Sagrado Coração de Jesus e a imagem de
Nossa Senhora das Dores (IPHAN, 2007). Aqui, vale destacar também o órgão de tubos que
fica na Igreja do Sagrado Coração de Jesus. Um objeto belíssimo, mas em torno do qual
consta a história que muitos escravos sofreram bastantes maus-tratos para que o órgão fosse
mantido limpo e afinado. Esse tipo de informação gera até certo desprezo pelo objeto. Isso
porque a maioria da população é composta de descendentes desses escravos, ou seja, por mais
belo e valioso que seja o objeto, é complicado para alguém saber do sofrimento advindo das
chicotadas a qual fora submetido um antepassado só para manter um órgão usufruído na
época apenas pelos senhores brancos que podiam frequentar as igrejas católicas.
De tudo que foi exposto, não resta dúvida quanto à riqueza cultural de Laranjeiras e a
importância para a formação da identidade do povo laranjeirense.
Atualmente, pelo menos duas secretarias municipais (Educação e Assistência social),
realizam trabalhos no sentido de conservar a cultura imaterial da cidade junto à população,
114
principalmente junto às crianças em idade escolar. Uma ação educativa denominada de ”Mais
Cultura” procura promover a interação de jovens e crianças com os mestres da cultura
popular, levando-os às escolas públicas para apresentar aos alunos a história da cultura da
cidade.
6.4.3 O arcabouço legislativo da cidade de Laranjeiras: uma análise crítica das leis do
município
O principal instrumento legislativo do município de Laranjeiras é a Lei Orgânica. É
uma lei com características especiais quanto à sua edição, vez que segue ditames da
Constituição Federal e Estadual e sua aprovação e respectivas alterações só podem ser feitas
com a aprovação da maioria de dois terços dos membros da Câmara Municipal. A lei orgânica
de Laranjeiras atualmente em vigor é de 1990 e foi alterada em 2009. No entanto, conforme já
esclarecido na metodologia da presente pesquisa, para este trabalho será feita a análise do
Plano Diretor Participativo-PDP e as leis que o regulamentam (Código de Edificações, a Lei
de uso, ocupação e parcelamento do solo) e o Código ambiental do município.
Prática corriqueira em muitos municípios brasileiros, o anteprojeto do Plano Diretor,
do Código Ambiental, Código de Edificações, a Lei de uso, ocupação e parcelamento do solo,
foram feitos por uma empresa de consultoria especializada, com sede em Brasília. Geralmente
são anteprojetos que apresentam diversas falhas, porque na maioria das vezes, são genéricos.
A elaboração é técnica e o profissional apesar de ter a competência acadêmica para tal intento,
desconhece a realidade do município e acaba por criar uma generalidade na lei que pode vir a
comprometer especificidades do lugar. Em Sergipe, a mesma empresa que elaborou o plano
diretor de Laranjeiras também o fez em São Cristóvão, Indiaroba e Santa Luzia do Itanhi
(TECHNUM, 2013).
Conforme já debatido no referencial teórico da pesquisa, a participação popular é
obrigatória na elaboração do plano diretor das cidades. Das pessoas perguntadas acerca de
participação em audiências públicas para tratar do assunto, nenhuma se lembrava de ter
participado, algumas nunca nem tinham ouvido falar em Plano Diretor. A administração
municipal diz ter havido audiências públicas em todos os povoados entre os anos de 2007 e
2008.
115
O plano diretor participativo do município de Laranjeiras foi instituído pela Lei
Complementar nº 16/2008. O artigo 1º da referida lei, traz as diretrizes estabelecidas pela
Constituição Federal de 1988 e o Estatuto da cidade de 2001, buscando o desenvolvimento
sustentável da cidade. Os artigos 2º ao 6º estabelecem as diretrizes para uma gestão municipal
eficaz, nos quais pode se ver claramente a generalidade sugerida acima e repete coisas que já
estão previstas no Estatuto da cidade. O excesso de regulamentação no Brasil, talvez seja um
de seus maiores entraves. Vemos leis que são prolixas, que repetem coisas que já estão
asseguradas em outros instrumentos legais com plena eficácia para o município.
Art. 2º O Plano Diretor Participativo de Laranjeiras é o instrumento básico de
política urbana, engloba todo o território do Município, e tem as seguintes diretrizes:
I. Tornar-se um marco regulatório da política e da gestão democrática;
II. Contemplar os anseios da população do município, na busca incessante pelo
desenvolvimento e pela melhor qualidade de vida para todos; (LARANJEIRAS,
2008)
Observe-se que a previsão se confunde com o que diz no § 1º do artigo 182 e o dito no
artigo 225, ambos da Constituição Federal, ou seja, não seria necessária essa previsão, porque
a Carta Magna do Brasil já trouxe essas previsões. Os capítulos III e IV do Plano Diretor de
Laranjeiras, talvez sejam os que mais interessam a este trabalho por tratarem acerca da
Política de Desenvolvimento Sustentável e a Política ambiental do município, nos artigos que
vão do 7º ao 13º.
Aqui já merece uma ressalva, porque separar a política ambiental da política do
desenvolvimento sustentável, pela própria matéria elas se confundem. Falar em políticas
ambientais presume-se a necessidade de se estabelecer o desenvolvimento sustentável,
buscando a criação de uma sociedade sustentável, conceito de (DIEGUES, 2001).
Art. 7º A Política de Desenvolvimento Sustentável tem por objetivo ações
articuladas para o desenvolvimento econômico do município com ênfase no turismo
cultural, na valorização da cultura local, no desenvolvimento da agricultura
sustentável, na indústria e no acesso dos cidadãos do município à educação
profissional. (LARANJEIRAS, 2008)
Apesar da denominação do capítulo III ser “Da Política do Desenvolvimento
Sustentável”, essa poderia ser substituída pela Política de Desenvolvimento do Turismo. É de
se reconhecer, que os artigos que vão do 7º ao 10º estabelecem medidas de desenvolvimento
116
do turismo na cidade. Considere-se que o turismo é uma grande alavanca para Laranjeiras,
mas a política de desenvolvimento sustentável é bem mais que isso. É preciso oferecer o
crescimento com base em três vieses: o aspecto social, o aspecto econômico e o aspecto
ambiental, pilares que compõem do tripé da sustentabilidade.
A valorização da cultura e preservação dos bens culturais é importante, mas a cidade
ainda carece de mais. Seguindo o pensamento de Lefebvre (2001, p. 106),”impossível
considerar a hipótese de reconstituição da cidade antiga; possível apenas encarar a construção
de uma nova cidade, sobre novas bases, numa outra escala, em outras condições, numa outra
sociedade”.
Já o capítulo IV da Política Ambiental, traz uma série de dispositivos “em aberto”, ou
seja, ele não traz o problema e a solução, traz o problema e define que uma nova lei irá
regulamentar aquele preceito. Outro ponto interessante é o Parágrafo único, do artigo 12, que
prevê a elaboração do Código Ambiental em até um ano, no entanto, como foram
encomendados juntos, quando da votação do Plano Diretor, o código ambiental já se
encontrava pronto também.
Parágrafo único. O Plano Ambiental Municipal será elaborado no prazo de até 1
(um) ano contado a partir da publicação desta Lei, através de lei específica e
encaminhado à Câmara de Vereadores para tramitação. (LARANJEIRAS, 2008)
Em seguida, o Plano Diretor desvirtuando-se de sua função, começa a tratar de
diversos assuntos, como saúde, educação, cultura e esporte e até de assistência social.
Voltando para a definição de Plano Diretor na Constituição Federal, este seria o principal
instrumento da política de desenvolvimento e de expansão urbana, no qual deveriam constar
questões norteadoras do ordenamento da cidade.
Logo, se tomarmos por base a Constituição Federal, deveria está elencados no texto
questões como saneamento básico, moradia, mobilidade urbana e as questões de ordenação
urbana da cidade. E não assuntos como o amparo à velhice e à criança abandonada, como
pode se vê da leitura do artigo 20 e seus três incisos.
Art. 20 A Política de Assistência Social e Segurança Pública de Laranjeiras tem por
objetivo a elaboração do Plano Municipal de Assistência Social de Laranjeiras, que
leve em consideração:
I. A integração do indivíduo ao mercado de trabalho e ao meio social;
II. O amparo à velhice e à criança abandonada;
117
III. A integração das comunidades carentes. (LARANJEIRAS, 2008)
Extremamente prolixo, pode-se encontrar no plano diretor da cidade, até o
estabelecimento da competência da segurança pública municipal à secretaria de assistência
social.
Art. 22 A Política de Assistência Social e Segurança Pública de Laranjeiras é
atribuição da Secretaria de Assistência Social. (LARANJEIRAS, 2008)
Os artigos de 23 a 51 são os que mais coadunam com a finalidade do Plano Diretor,
estabelecendo a Política Urbana e rural do município. Alguns itens que já poderiam estar
descritos no próprio PDDP, transferem a regulamentação para outras leis, como o uso,
ocupação e parcelamento do solo e definição do perímetro urbano.
Alguma coisa que deveriam ter sido tratadas no capítulo acerca do desenvolvimento
sustentável ou da política ambiental também aparece nesse título, como a “Recuperação e
preservação da vegetação das elevações do entorno do centro histórico, visando à preservação
da paisagem” (art. 24, V, LARANJEIRAS, 2008).
Nesses artigos está definido o macrozoneamento, ou melhor, o artigo 26 diz “o
município de Laranjeiras é constituído de Zona Rural e Zona Urbana, conforme apresentado
no Anexo I – Mapa de Macrozoneamento do Município de Laranjeiras” (LARANJEIRAS,
2008).
Figura 6.4.3.1 – Mapa de Macrozoneamento – Laranjeiras/SE (Anexo I- Plano Diretor do Município)
118
Nesse conjunto de artigos, merece destaque o Zoneamento da Zona Urbana, a qual
para nos fins da lei estudada foi dividida em Zona Urbana de Uso Controlado, Zona Urbana
de Consolidação, Zona Urbana de Dinamização, Zona Urbana de Dinamização, Zona Urbana
de Expansão, Zona Urbana Industrial e Zona Urbana de Proteção Ambiental.
Observe-se que de acordo com a temática proposta nessa pesquisa e as definições
apresentadas no PDDP do município a Zona Urbana de uso controlado e a zona de proteção
ambiental deveriam ter correlação, visto que, a zona de uso controlado inclui os bens culturais
imóveis, que conforme visto anteriormente são também bens de proteção ambiental.
A zona de proteção ambiental foi reduzida nesta lei apenas as Áreas de Preservação
permanente que se encaixem no estabelecido na Resolução do CONAMA nº 303, restringindo
completamente o seu uso. Entende-se que a área de proteção ambiental deva incluir não só as
áreas de preservação permanente como também áreas de uso controlado, buscando conservar
com a ajuda da própria população.
Os artigos que vão do 63 ao 81, trata acerca dos instrumentos da Política urbana e
diga-se de passagem são na prática uma réplica do que já estabelece o Estatuto da Cidade,
inclusive definindo ações que serão pautadas na Lei nº 10257/01. Prevê ainda com base no
estatuto da cidade a outorga onerosa do direito de construir, o direito de preempção, a
transferência do direito de construir e as Zonas Especiais de Interesse Social.
Art. 64 A fim de garantir a função social da propriedade aos imóveis não edificados,
subutilizados ou não utilizados na sede municipal, a Prefeitura Municipal aplicará o
parcelamento e edificação compulsórios de acordo com as definições contidas na Lei
10.257, de 10 de julho de 2001. (LARANJEIRAS, 2008)
Os artigos 82 e 83 tratam acerca da implantação de uma Política Habitacional no
município. E os artigos de 84 e 85 tratam acerca da Conservação do Patrimônio, tão genérico
como quase todo Plano Diretor.
Art. 84 A Conservação do Patrimônio Histórico e Cultural construído em
Laranjeiras tem por objetivo valorizar e destacar o ambiente urbano sem limitar os
espaços para a sociedade. (LARANJEIRAS, 2008)
119
Da análise completa do Plano Diretor de Laranjeiras, o que se verifica é que trata-se de
um plano extremamente abrangente e sem vinculação jurídica precisa, o que significa dizer
que a interpretação dos seus dispositivos abrem margens que contribuem de forma negativa
no sentido de não fazer se cumprir a lei, porque ela não foi suficientemente clara, recursos
bastante utilizados nas teses de defesa no mundo jurídico.
O Plano diretor de Laranjeiras trata quase que genericamente de todos os aspectos da
gestão urbana e não só aspectos que envolvam a política urbana. Grosso modo, o Plano
existente na cidade poderia ser aplicado em qualquer outra cidade e não é suficiente para
atender as especificidades do município de Laranjeiras principalmente no tocante a questões
socioambientais. É visível que quem elaborou ignorou ou desconhecia questões que urgiam na
cidade, apresentando um plano com erros básicos e evidentes.
Talvez o maior erro na implementação dos planos diretores tenha sido a pressão
advinda da obrigatoriedade que previa sanções como não repasse de recursos. Isso fez com
que os municípios buscassem atender a exigência da lei, mas sem de fato empenharem-se em
utilizar o recurso legal para elaboração de um verdadeiro planejamento urbano.
Quando o Estatuto da cidade prevê a participação popular no processo de elaboração
do plano está querendo assegurar que os anseios das comunidades sejam ouvidos. Observou-
se que a equipe técnica que elaborou o Plano Diretor de Laranjeiras realmente dispunha de
recursos humanos profissionais do mais alto gabarito, incluindo arquitetos e urbanistas,
geógrafos, advogado, engenheiros.
Mas esbarrou numa questão, ao trazer uma empresa de Brasília, a realidade da
comunidade a ser retratada na lei difere e muito da realidade da comunidade de onde vieram
os técnicos e acredita-se que justamente seja fator negativo é o fato da equipe que elabora o
anteprojeto não conhecer a realidade social da cidade, o que faz com que se produzam leis
imponentes na técnica, mas que deixam a desejar na prática.
No pensamento de Garcia (1999, p. 104), “os enunciados que instituem a Cidade ideal
não devem desconhecer as cidades reais que os homens produziram: é a condição de viver nas
sociedades concretas que obriga a pensar no estatuto da boa cidade...”.
Aqui temos uma situação reproduzida por Claudio Boeira Garcia quando trata de Paris
e Genebra. Trazendo para a realidade da pesquisa e utilizando a mesma linha do referido autor
considera-se que “a produção do universal no plano concreto das diferenças e desigualdades é
uma ilusão (1999, p.105). Ou seja, a análise de cada caso concreto mostrará que existem
120
peculiaridades que não permite que o geral sirva para todas as partes. A realidade de cada
lugar diverge justamente pelo seu contexto histórico, político, econômico e social.
O plano diretor deve estabelecer diretrizes e estas devem ser carregadas de clareza e
objetividade, para que facilitem a sua aplicação. Dentro dessa perspectiva é que se inicia o
estudo das leis que complementam o Plano Diretor de Laranjeiras, responsáveis diretas por
regulamentar as diretrizes anteriormente mencionadas. A Lei complementar nº 18/2008 é uma
lei básica de apenas 03 (três artigos) que através de uma poligonal define o perímetro urbano
da cidade.
Figura 6.4.3.2 – Perímetro Urbano – Laranjeiras/SE (Anexo I- Lei complementar nº 18/2008)
A Lei nº 30/09 traz o código de edificações do município. O principal ponto a ser
observado é que a lei praticamente ignora o Patrimônio arquitetônico da cidade. Percebe-se
que existe o desconhecimento de que além do Conjunto arquitetônico tombado existem
construções que possuem valor cultural na cidade e a lei não traz essas minúcias, acredita-se
que deixando o encargo para as leis federais, o que pode ser um risco a incolumidade desse
patrimônio, tendo em vista que a fiscalização local, exercida pelo município surte mais efeito.
A Lei nº 28/09 dispõe sobre o uso e ocupação do solo urbano do Município de
Laranjeiras. Do 1º ao 44º artigo, a referida lei reproduz os artigos acerca do zoneamento
urbano do município já elencados no Plano Diretor. E nos artigos seguintes define a
121
hierarquização do sistema viário, finalizando com a descrição das infrações e aas respectivas
penalidades. Para os fins desta pesquisa, os comentários acerca do zoneamento já foram
anteriormente elencados.
A Lei nº 29/09, dispõe sobre o parcelamento do solo urbano e vem a ser uma
complementação da lei de uso e ocupação. Apesar de constar um capítulo que trata de
requisitos urbanísticos e ambientais para parcelamento do solo urbano, a referida lei segue os
ditames do plano diretor, sem apresentar nada de extraordinário que seja interessante
mencionar. Como por exemplo, a proibição de parcelamento em área ambientalmente
protegida.
Art. 74. Não será permitido o parcelamento do solo:
VI – em áreas de preservação ecológica, definidas em legislação federal, estadual e
municipal; (LARANJEIRAS, 2009)
O Código ambiental foi instituído pela Lei complementar nº 31/2009. É um dos
instrumentos legais que muito interessam a essa pesquisa. Mas assim como o Plano Diretor, o
que se percebeu foi um código genérico tanto quanto, principalmente quando fala nas licenças
ambientais, nos relatórios de impacto, o que se pode perceber é que a lei ambiental do
município não atende em nada as necessidades da população local como um todo.
Dentre as observações cabe falar acerca do artigo 2º traz uma série de definições que
devem ser usados para fins desta Lei. Para corroborar a análise de que as leis do município
foram elaboradas de forma genérica, merece destaque o inciso VI do artigo em comento que
trata acerca de mar territorial como recurso ambiental do município, já que o caput do artigo,
como dito acima dispõe de conceitos para essa lei especificamente. Logo, em se tratando do
município de Laranjeiras, já que esta não se encontra na costa e não é banhada pelo mar, não
há que se falar em mar territorial e sim em águas interiores, que se referem a lagos e rios.
Art. 2º Para fins desta Lei, considera-se: VI – Recursos ambientais: a atmosfera, as águas interiores, superficiais ou
subterrâneas, os
estuários, o mar territorial, o solo, o subsolo, a fauna e a flora; (LARANJEIRAS,
2009)
122
Até o artigo 4º o que se pode ver é uma réplica da Lei nº 6938/81, que instituiu a
Política Nacional do Meio ambiente. A Lei cria também o Subsistema de Gestão ambiental. A
Secretaria do Meio Ambiente foi devidamente contactada, foi oficiada conforme pediu a
Secretária Municipal e até o fechamento da coleta de dados, mesmo com diversos emails
reiterando a solicitação, não devolveu o questionário respondido com as informações acerca
do trabalho que vem sendo realizado pela Secretaria, o que se lamenta, pela falta de
informação oficial, se realmente esse subsistema de fato funciona e cumpre seu papel legal.
Cabe a ressalva, que o Código ambiental deveria trazer diversas regulamentações,
mas, o que se observou até então, foi que o referido código traz muitas definições:
DAS ÁREAS DE PROTEÇÃO DE MANANCIAIS
Art. 38 Constituem-se em Áreas de Proteção de Mananciais as áreas à montante
dos locais de captação para abastecimento de água potável.
Parágrafo único. As áreas a que se refere este artigo são sujeitas ao regime jurídico
especial e regidas por legislação específica, cabendo ao município sua delimitação.
(LARANJEIRAS, 2009)
Observe-se que a Lei define o que são áreas de proteção de mananciais e deixa em
aberto se existem essas áreas, imputando ao município a delimitação.
A lei ambiental do município é quase inútil, vez que está condicionada a
regulamentação posterior, processo característico da burocratização desnecessária que
impera no Brasil. As leis poderiam ser mais objetivas, mais concisas e mais claras, para
que de fato atingissem seus objetivos. Mas, na verdade é que existe por trás dessa realidade
a predominância de interesses econômicos. Os planos diretores foram elaborados única e
exclusivamente para atender a exigência legal imposta pelo Estatuto da Cidade. Assim,
com receio de serem prejudicados no repasse de verbas federais muitos municípios
correram em providenciar o seu instrumento legal da política urbana sem muito
conhecimento da importância desse instrumento, corroborando com a hipótese levantada
no início da pesquisa de que o legislador municipal no processo de elaboração das leis
urbanas de Laranjeiras, não levou em conta as questões e a complexidade dos problemas
socioambientais da cidade, de modo que estas não respondem de forma eficaz às demandas
concernentes à preservação, conservação e uso deste patrimônio.
123
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao iniciar a presente pesquisa, o objetivo era analisar até que ponto as questões
socioambientais referentes ao patrimônio histórico cultural influenciavam na legislação
urbana do município de Laranjeiras/SE e de que forma a legislação urbana contemplava o seu
patrimônio material e imaterial no que concerne às questões socioambientais, respeitando o
chamado Direito à cidade.
A metodologia proposta permitiu que ao longo de quase dois anos fosse possível
construir conceitos-bases que se tornaram diretrizes na análise supramencionada. A
preocupação era assegurar o cumprimento do proposto inicialmente, mantendo a
impessoalidade, adquirindo conhecimentos necessários, mas que trouxeram como desafio
evitar estabelecer preconceitos.
No tocante a escolha do município, melhor não poderia ter sido. A riqueza cultural de
Laranjeiras e a sua história fascinam a qualquer pesquisador. A cidade tem a capacidade de
produzir contextos propícios à pesquisa científica, foi uma oportunidade única de viajar no
tempo e através da reconstrução do passado, foi possível entender questões, como se a medida
que se avançava fosse colocada uma nova peça num imenso quebra-cabeças.
Ao final desse trabalho, dois pontos precisam ser levados em conta, primeiro, a
carência em que se vive aquele povo e segundo a vontade de poder de alguma forma, mesmo
que singela, contribuir para a melhoria da qualidade de vida daquela gente. Pessoas que vivem
numa sociedade paradoxal, adornados pelas riquezas culturais, mas mergulhados numa
realidade social desfavorecida de tal modo, que confronta diretamente com essa riqueza.
No tocante à legislação urbana Laranjeiras tem um verdadeiro arcabouço jurídico, no
entanto o que se viu, foi uma legislação prolixa e sem muita eficácia, vez que distante da
realidade social do município.
São textos legais genéricos, elaborados por empresas completamente alheias à
realidade local, onde a tecnicidade impera, se sobrepondo ao quadro social da cidade, a
exemplo do Plano diretor, que restringe a política de desenvolvimento sustentável apenas a
investimentos no turismo local. Não se discorda que o turismo seja um gerador de renda, mas
a cidade precisa ser sustentável primeiro para seus próprios habitantes, até mesmo como
forma de atrair o olhar do turista.
124
Utilizando o pensamento de Fortuna (2002, p. 19), já mencionado no referencial
teórico, o espaço público bem sucedido é um espaço público que além do seu sentido estético,
se revela inteligível, abstrato e não apenas funcional, mas, ao mesmo tempo, suficientemente
definido e explícito, de modo a promover a intersubjectividade da cidade. O que não acontece
de fato com Laranjeiras.
Consoante o pensamento de (LEFEBVRE, 2001), os arquitetos estabeleceram e
dogmatizaram um conjunto de significações, traduzidas como função, forma e estrutura. Onde
se elabora não “a partir das significações vividas e percebidas porque aqueles que habitam,
mas pelo simples fato de habitar, por eles interpretado” (2001, p. 111).
A cidade é reinventada para se atender o interesse daqueles que pensam apenas
tecnicamente e esquecem-se de pensar naqueles que ali vivem, no seu modo de sentir e
vivenciar o seu lugar.
Laranjeiras é uma cidade que sempre teve cultura, que sempre produziu cultura e isso
deve ser respeitado. Não apenas querendo vender um produto de consumo.
As necessidades sociais têm um fundamento antropológico, opostas e
complementares, compreendem a necessidade de segurança e a de abertura, a
necessidade de certeza e a necessidade de aventura, a da organização do trabalho e
a do jogo, as necessidades de previsibilidade e do imprevisto, de unidade e de
diferença, de isolamento e de encontro, de trocas e investimentos, de
independência (e mesmo de solidão) e de comunicação, de imediaticidade e de
perspectiva a longo prazo. (LEFEBVRE, 2001, p. 105)
Diante do tratamento que vêm recebendo não é de assustar que se entenda porque
alguns têm rejeitado a presença da Universidade. São mais uma vez consequências dos
paradoxos enfrentados pela população laranjeirense, tão cerceados de tudo e obrigados a
conviverem com pessoas que usam o que lhe pertencem da forma que seria muito difícil
também virem a usar. Consoante pensamento de Lefebvre (2001, p. 13), “os violentos
contrastes entre a riqueza e a pobreza, os conflitos entre os poderosos e os oprimidos não
impedem nem o apego à Cidade, nem a contribuição ativa para a beleza da obra. ”
A história da cidade mostra isso. Desde a exploração da mão de obra escrava pelos
senhores de engenho até a abolição da escravidão que concedeu a liberdade, mas os colocou
como indigentes. A luta de classes que sempre existiu. Consoante o pensamento de Diderot
(2011), o direito a cidade é o direito de participar de todos os privilégios, sem exclusões.
125
O tempo passou mas as consequências ainda são vistas nos dias atuais. A população
rica, os intelectuais mudaram-se da cidade e os remanescentes foram àquelas pessoas de
baixo poder aquisitivo que viviam a mercê da própria sorte. E mesmo que em proporções
diferentes, hoje isso ainda existe. Nas palavras de (NORA, 1989), Laranjeiras é lugar de
história mas um lugar sem memória, justamente pela disparidade entre a riqueza cultural e a
situação econômica social.
Como respostas às questões que nortearam a pesquisa, a conclusão que se tem e sem
maiores dúvidas, é que o patrimônio cultural da cidade de Laranjeiras/SE, não é um espaço
socioambiental e sua influencia na legislação do município se resume a investimento no
turismo, não existindo nada na legislação que impulsione a comunidade local a fazer uso do
equipamento que dispõe.
As pessoas não se identificam com o patrimônio material da sua cidade justamente
porque não tem a opção de uso, aprenderam mecanicamente a preservar e não a conservar,
ou seja, mantém-se um patrimônio edificado morto.
No que concerne à cultura imaterial, existe maior identificação das pessoas, talvez
justificado que a maioria das tradições mantidas são ligados a herança cultural dos negros,
fato que é diferente no patrimônio material, herança da cultura branca.
O patrimônio cultural é a história daquele povo e isso não pode em momento algum
ser rechaçado. A promoção do desenvolvimento sem destruir as riquezas culturais da cidade
só será possível a partir do momento em que o povo de Laranjeiras seja sensibilizado através
de ações efetivas das formas de uso racional, assegurando que tudo aquilo que se usufrui
hoje, é finito e pode acabar amanhã, inclusive a cultura.
Os laços de identidade sem dúvida são a base para a ampliação da visão da
importância do patrimônio cultural e é fator determinante para perpetuação da cultura local
como um bem a ser conservado de modo que as futuras gerações possam conhecê-la.
Ainda balizando-se na hipótese elencada, entende-se que de fato, em se tratando de
cidades históricas, a cultura deve ser sempre o centro das atenções e a participação popular,
força predominante para que se pense em leis que propiciem o desenvolvimento
socioambiental.
A sugestão é que a legislação urbana do município seja totalmente revisada de modo
a atender ao que de fato se propõe, sendo construída ali no dia a dia, sem o tecnicismo
exacerbado dessas empresas.
126
O Plano diretor não é nada de tão complicado, o que faz a complexidade dele são os
agentes políticos, justamente por não terem metas e princípios que norteiem o
desenvolvimento sustentável, ou melhor, a criação de cidades sustentáveis.
Para trabalhos futuros, há muito ainda a se discutir dentro desta temática e de tantas
outras que envolvem a sociedade laranjeirense. Acreditamos que a principal delas talvez
possa acontecer através de um estudo interdisciplinar que busque entender as pessoas dentro
do contexto social em que estão inseridas. Esperamos que de alguma forma as reflexões aqui
expressas possam colaborar para pensar ainda e mais uma vez os rumos possíveis e
desejáveis da cidade de Laranjeiras.
127
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