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Razo e f em Maimnides1
Reason and faith in Maimonides
denis lerrer rosenfieldProfessor do Programa de Ps-Graduao em Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
resumo este artigo visa a analisar a relao entre razo e f na obra de Maimnides. Apresentamos, como casos paradigmticos para essa anlise, dois problemas filosficos que recebem do filsofo/telogo um tratamento luz da filosofia aristotlica, a saber, o problema dos distintos modos de transmisso da tradio judaica e o problema da eternidade do mundo. O primeiro problema caracterizado pela dificuldade de manter uma uniformidade na transmisso dos preceitos do judasmo sem com isso eliminar um trao fundamental dessa transmisso, a oralidade. Essa tenso entre os modos de preservao da tradio rabnica se mostra na tenso entre a finitude humana e o contedo sagrado das escrituras e sua origem na natureza divina. Tal dificuldade implica a necessidade da utilizao de uma linguagem constituda de metforas, alegorias e homonmias para comunicar aos homens as ideias presentes na Tor. Maimnides ocupa-se dessa questo em sua obra filosfica O Guia dos Perplexos, procedendo a uma anlise das expresses utilizadas para fazer referncia a Deus. O segundo problema consiste em compatibilizar a ideia aristotlica da eternidade do mundo, segundo a qual o mundo no tem inicio ou fim, com a ideia da criao do mundo. Com base no tratamento oferecido pelo filsofo aos dois problemas, apontamos para uma concepo de razo como ferramenta para compreenso do objeto da f, de modo que se constata uma subordinao da primeira segunda mesmo quando a razo opera no mbito da investigao filosfica, atividade racional por excelncia.
palavras-chave razo; F; Tor; Criao; Eternidade; Maimnides; Aristteles.
abstract this paper analyzes the relation between reason and faith in Maimonides. Our analysis is builded upon the standpoint of two philosophical questions that receive from the philosopher/theologian Maimonides a treatment based on the philosophy of Aristotle, namely, the question concerning different ways of conveying Jewish tradition and the question concerning the eternity of the world. The first question consists in how to keep uniformity in the transmission of the commandments of Judaism without eliminating an essential feature of such a transmission, its orality. This tension between modes of preservation of the rabbinic tradition shows itself in the tension between human finitude and the sacred content of the scriptures and its source in divine nature. Such a difficulty invokes the necessity of using a language composed by metaphors, allegories and homonymous terms in order to communicate the ideas contained in the Torah. Maimonides gives an account of that question in his philosophical work, The Guide for the Perplexed, by analyzing expressions employed to refer to God. The second question is how to conciliate the Aristotelian idea of the eternity of the world, according to which the world has neither a begging nor an end, with the idea of Creation. Based on the treatment presented by the philosopher to both questions, we indicate a conception of reason as a tool for the comprehension of the faiths object, leading to the conclusion that there is a subordination of the latter to the former even in a philosophical context, the context of essentially rational activity.
keywords reason; Faith; Torah; Creation; Eternity; Maimonides; Aristotle.
O Guia dOs PerPlexOs, no que hoje chamaramos de seu estilo, escri-
to sob a forma de um dilogo, de uma exortao, de uma orientao a um jovem cha-
mado Jos, discpulo2 de Maimnides. Jos era um estudioso, extremamente inquieto
e curioso, por quem nosso filsofo nutria um grande apreo. No se tratava de um
indivduo qualquer, mas de algum que preenchia as condies de elevao s mais al-
tas questes religiosas e filosficas.
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Ademais, apesar das aparncias, no convm
identificar esse aparente dilogo com o estilo pla-
tnico de escrever, embora esse fosse do conheci-
mento de Maimnides. A razo propriamente
religiosa e poltica, isto , Jos representa o judeu
da Dispora (STRAUSS, 1988, p.49), um judeu que
erra pelo mundo, devendo, na diversidade his-
trica, preservar o culto ao Deus nico e a obser-
vncia dos seus mandamentos.
O estilo do Guia obedece, ainda, a uma segun-
da ordem de razes. Ele o que melhor correspon-
de prtica da tradio oral, com o rabino ensi-
nando aos seus discpulos, introduzindo-os no tra-
balho da interpretao e, neste sentido, conver-
sando com eles. O Guia no um livro que se
caracterize pelo discurso, pela ordem das dedues
na acepo clssica do termo. No que dedues
no se encontrem no corao deste texto, o que
no seria plausvel na perspectiva de um grande
estudioso e conhecedor de Aristteles (HADDAD,
2003; NAJMANOvicH, 2006).
A questo outra, por residir em um esforo
de preservao da forma da tradio oral, que per-
manece objeto de mximo respeito. A preservao,
por assim dizer, escrita da tradio oral deveria,
no entender de Maimnides, conservar o seu es-
tilo. Ou ainda, a tradio oral mantida sob a
forma da discusso, do dilogo e da utilizao das
analogias, das parbolas, das metforas e das ho-
monmias presentes na Tor e nas correntes na
transmisso rabnica do Talmud. So perguntas
que se abrem a novas perguntas, portas que se abrem
em uma sucesso infinita.
Os perplexos, os errantes
Le Guide des gars o guia dos perdidos, dos que
perderam o caminho (MAIMNIDES, 1979, p.11).3
A traduo francesa tem a virtude de apresentar o
que bem pode significar estar perdido, errando pe-
lo mundo, onde o judeu se indaga sobre qual
caminho a ser seguido. O judeu erra no sentido
de errante, porm tambm erra por afastar-se da
verdade, uma verdade que no consegue apreender
bem, afligido que est pelos problemas do exlio.
No podemos esquecer que a vida do Galut,
da Dispora, consiste em uma vida em que as re-
ferncias tendem a se enfraquecer, na medida em
que os judeus deparam com outras culturas, ln-
guas e povos, que tanto podem atra-los como re-
cha-los. Em todo caso, a vida do Galut tam-
bm vivida como submetida a perseguies, que
so, por outro lado, entendidas como punies
divinas, castigos merecidos por pecados cometidos.
Tudo entra em uma rede simblica, todo evento
possui significado, por mais estranho e, at mes-
mo, injusto que possa parecer.
Assim, emerge a questo pode ser articulada a
partir da seguinte pergunta: qual o caminho? O
caminho de judeus errantes, que necessitam ser di-
recionados para a boa via, a boa estrada de ser ju-
deu, seguindo os mandamentos, na disperso rab-
nica de suas diferentes interpretaes. cabe lembrar
aqui que a tradio rabnica uma tradio oral,
que se multiplica segundo as diferentes comunida-
des judaicas dispersas pelo mundo. Pode, inclusive,
acontecer que, em dado momento, essa tradio se
enfraquea (HESCHEL, 1982, p.67).4 Nessas circuns-
tncias, quais seriam as condies de transmisso
da rica tradio rabnica? E se enfraquece, mesmo,
graas a rabinos que no conseguem, adequadamen-
te, com sabedoria, veicular toda essa tradio. Por-
tanto, para Maimnides, coloca-se a questo da ne-
cessidade de um texto de referncia, que permita
recolher, coletar toda essa imensa tradio cultural
e religiosa, texto base no qual distintas interpreta-
es possam se apoiar. Trata-se de uma coleta, cujo
objetivo essencial reside na preservao do judasmo.
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Eis, portanto, o problema com o qual Maim-
nides se defronta. contudo, no judasmo de ento,
preservar o judasmo pela escritura era algo proi-
bido, devendo valer estritamente a tradio oral.
Ele, homem piedoso e religioso, atento observn-
cia dos mandamentos, deveria, assim, no trans-
gredir essa mesma tradio qual estava vinculado
e, principalmente, subordinado.5 O paradoxo ,
aqui, extremamente significativo. Na verdade, Mai-
mnides vai infringir um mandamento divino pa-
ra preserv-lo. No dizer de Leo Strauss: somente
a necessidade de salvar a lei pode ter feito com que
ele rompa com ela. (STRAUSS, 1988, p.49)
Nesta perspectiva, cabem duas observaes a
respeito do carter prprio da obra de Maimni-
des. Primeira: a Mishn Tor (Repetio da Lei)
uma coleta de toda a tradio rabnica, com a apre-
sentao rigorosa e completa de todos os manda-
mentos, via uma discusso com os mais sbios
dentre os rabinos. Neste sentido, pode-se dizer que
esse livro um estudo legalista da lei, atento a ela,
voltado a como o homem judeu deve se compor-
tar. No convm esquecer que o judasmo uma
religio que estabelece uma srie de restries (culi-
nrias, sexuais e outras), visando elevao moral
do crente, que, assim, se eleva a Deus. O judasmo,
sob essa tica, pode ser considerado uma religio
da moral e, na viso aristotlica de Maimnides,
uma religio da razo.
Segunda: O Guia dos Perplexos, por sua vez,
um livro filosfico neste sentido, concernente s
razes da crena. No se trata de um livro voltado
para o judeu em geral, preocupado em seguir os
mandamentos. Trata-se, isto sim, de uma obra cujo
objetivo consiste em levar o judeu para o interior
de sua f, explorando as suas razes de ser. Strauss
observa que o propsito central do livro reside no
que o homem deve pensar e crer. contudo, con-
vm observar que a explorao racional da f, ao
adentrar-se em sua interioridade, ao aventurar-se
em suas riquezas, compreendendo novos significa-
dos, dando sentido ao mundo no qual o homem
est inserido, no implica um questionamento des-
sa mesma f maneira de um ctico que tudo ques-
tiona. O questionamento possui limites. Ou seja,
a filosofia opera no interior da f. Se assim no
fosse, estaria abandonando, na viso de Maimni-
des, o seu prprio fundamento. inclusive, poder-
se-ia dizer que Maimnides um filsofo que no
aceita os pressupostos da prpria filosofia, na me-
dida em que ela tende a no reconhecer limites,
seno os que ela mesma se d.
O Guia dos Perplexos dedicado revelao
dos Segredos da Tor. Qual , porm, o tipo de
linguagem utilizado por esse livro? como se d a
revelao de Deus? Qual a linguagem por ele em-
pregada? Maimnides claro a respeito: a Escri-
tura se exprimiu na linguagem dos homens (MAI-
MNIDES, 1979, p.61). Note-se que Deus se ex-
pressa na linguagem dos homens, voltando-se
para um pblico especfico, no afeito, digamos,
a conceitos abstratos, nem a uma linguagem racio-
nal mais elaborada. Estamos, no esqueamos, nos
primrdios da civilizao, em um empreendimen-
to nico de introduo do Deus monotesta, com
todos os seus mandamentos religiosos e morais.
Trata-se do caminho de elevao do homem, co-
meando pelo homem judeu, esse povo escolhido.
Ou seja, a Tor deve falar em uma linguagem que
seja acessvel e inteligvel ao vulgo no caso, a uma
tribo de escravos.
H dois problemas distintos envolvidos: o das
relaes entre o finito e o infinito e o da transmis-
so da mensagem divina a pessoas formadas em
uma mentalidade servil.
A questo da finitude pode ser colocada da se-
guinte maneira: como pode um ser finito, limita-
do, acostumado percepo sensvel e s suas ima-
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gens e limitaes, ter acesso a um ser infinito, que
escapa de todas as categorias usuais da razo? Ou
seja, como pode um ser imperfeito e desejante, pro-
penso transgresso de qualquer regra, vido de
seu prazer, renunciar a essa sua dimenso e elevar-
-se compreenso espiritual de um ser que se ca-
racteriza pela suma perfeio? Ou ainda, como po-
de um ser finito, destinado morte e ao desapare-
cimento, alar-se compreenso e inteligibilida-
de de um ser imortal? como pode um ser afeito
existncia emprica e transitria vir a conceitualizar
um ser que se caracteriza por outra forma de exis-
tncia, a existncia necessria e no emprica?
vejamos o seguinte problema para melhor ex-
plicitarmos o que est em questo: se eu disser de
uma pessoa conhecida e prxima, por exemplo,
Joo ou Maria, Moiss ou Raquel, que ela existe,
a reao mais imediata pode ser a de um questio-
namento sobre o sentido da prpria pergunta. No
caso de pessoas conhecidas, a existncia est suben-
tendida, dada, sendo essa uma condio para que
eu possa falar dessa mesma pessoa. Ou seja, dada
a sua existncia, posso fazer uma descrio fsica
da pessoa (sexo, cor, estatura, idade, etc.), uma des-
crio de sua vida (famlia, profisso, patrimnio,
amizades, etc.) e uma descrio moral (qualidades,
virtudes, religiosidade, etc.). Em todas essas descri-
es, estarei pressupondo que Joo, Maria, Moiss
ou Raquel existem, no cabendo nenhuma questo
preliminar sobre essa forma de existncia. Trata-se,
ainda, de uma substncia dada que funciona como
pressuposto de qualquer atribuio e predicao.
J no caso de Deus, a questo completamente
distinta. H toda uma tradio filosfica de provas
da existncia de Deus, pois a forma mediante a qual
Deus dado totalmente distinta daquela de Joo,
Maria, Moiss ou Raquel. Deus no dado na per-
cepo emprica, ela no funciona maneira de
uma substncia que a base da atribuio. Alguns
podem, at mesmo, acreditar ou no acreditar na
existncia de Deus, o que equivale a dizer que no
acreditam em outra forma de existncia para alm
da emprica. Logo, a expresso Deus existe to-
talmente diferente de Joo existe. Ou seja, o con-
ceito de existncia completamente diferente.
A questo central, consequentemente, consisti-
r no tipo de relao entre essas duas distintas for-
mas de existncia, questo esta vivida agudamente
por um ser finito, imerso na existncia emprica e
em suas formas de percepo e conceituao. Eis
por que a Tor utiliza expresses relativas ao cor-
po, corporeidade, pois elas so acessveis aos
homens, que s tendem a compreender a existn-
cia vinculando-a ao corpo. Para dizer que Deus
existe, metaforicamente foram utilizadas expresses
sensveis, oriundas da percepo emprica de um
ser mortal e finito. Ou ainda, a linguagem dos ho-
mens ou a imaginao popular.
A questo da linguagem, vista na perspectiva do
vulgo, j de tipo diferente, embora possa aparecer
no mesmo texto da Tor. A linguagem de Deus na
Tor adaptada, como assinalado, a uma tribo de
escravos, formados, se que esta expresso conve-
niente, na mentalidade da servido, da satisfao
dos desejos carnais e da sobrevivncia fsica. A ques-
to que se coloca a Deus consiste, precisamente, em
utilizar uma linguagem que seja compreensvel e
possa vir a ser acatada por esse povo. como pode
Deus revelar-se a um povo escravo e inculto, acos-
tumado idolatria e aos sacrifcios? como pode
Deus estabelecer mandamentos severos a um povo
habituado transgresso e rebelio? Alis, toda a
narrativa da Tor constituda por mandamentos e
suas transgresses, por normas de origem divina que
so sistematicamente desrespeitadas. como pode
Deus impor-se a um povo rebelde e pecador? Deus
est sempre chamando esses pecadores e perversos
a voltarem ao seu caminho reto, o do Ser nico.
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Peguemos a seguinte passagem do xodo 6:29-
30: ... e o eterno falou a Moiss, dizendo: Eu sou
o Eterno! Fala ao Fara, o rei do Egito, tudo o que
Eu te digo. E Moiss disse diante do Eterno: Eis
que tenho dificuldade de fala, e como o Fara me
escutar?. Moiss questiona a Deus como poder
ele falar a esse povo escravo, eis que ele no seria
dotado de um uso adequado da fala. Frequente-
mente, ele como que balbucia, o que fez com que
certa tradio rabnica viesse a consider-lo como
gago. Ou seja, Moiss no saberia falar direito,
no sendo o enviado adequado de Deus para preen-
cher a misso que lhe foi designada.
contudo, poderamos suscitar a questo: talvez
no se trata aqui de um problema fsico de fala, de
lngua mesmo, mas de um problema de linguagem,
a saber, o do tipo de linguagem que poderia ser uti-
lizado para convencer um povo escravo. E vos le-
varei terra, pela qual levantei Minha mo para
d-la a Abrao, a isaac e a Jac, e darei a vs por
herana Eu, o Eterno. E Moiss falou assim aos
filhos de israel; mas no escutaram a Moiss por
causa da angstia do esprito e pela dura servido
(xodo 6:8-9). como pode Moiss ser compreendi-
do? No ser ele simplesmente repudiado por dizer
coisas que ningum pode compreender? No po-
deria ele ser considerado um louco ou um in-
sensato, algum que diz coisas incompreensveis?
A tarefa que se coloca diante de Moiss enor-
me. Trata-se de uma tarefa propriamente sobre-hu-
mana, que s poderia ser empreendida por um
homem excepcional, dotado de uma capacidade
nica de linguagem. No casual que Moiss seja
considerado no apenas o primeiro dos profetas,
porm o maior dentre eles. O problema com o
qual ele se confronta o seguinte: como pode ele
transmitir a revelao, o aparecimento de um ser
cuja existncia foge de quaisquer parmetros da
normalidade humana, a pessoa imersas e captura-
das pela percepo cotidiana de uma vida de dese-
jos, sobrevivncia, idolatria e sacrifcios? como
pode a sua linguagem revelada ser captada e com-
preendida por pessoas completamente ignorantes
de seu significado? O problema de Moiss consis-
te, preliminarmente, em criar uma comunidade de
linguagem cujos termos so: um ser nico e trans-
cendente, um mensageiro (Moiss que, embora ex-
cepcional, finito e pertencente a essa mesma po-
ca) e um povo de escravos. A Tor dever adequar-
se a essas condies.
Eis por que Maimnides pode dizer que O Guia
dos Perplexos, dos perdidos, dos errantes, dedi-
cado revelao dos Segredos da Tor. Ela est
escrita em uma linguagem que a torne acessvel a
um povo inculto e escravo, acostumado lingua-
gem da finitude e imerso nos problemas mais co-
tidianos do desejo e da sobrevivncia. Neste senti-
do, o significado da Tor, os seus segredos, escon-
dem-se em parbolas, metforas, alegorias, homo-
nmias e outras expresses semelhantes. A Tor
exige de seu leitor e comentador todo um trabalho
de interpretao. Neste sentido, a obra de Maim-
nides , no apenas no sentido corriqueiro do ter-
mo, um trabalho de interpretao, mas tambm
um trabalho de filosofia da linguagem, atento s
significaes mltiplas das palavras e expresses,
perscrutando as suas acepes mais variadas, em
busca de camadas mais profundas de interpretao.
Maimnides recupera aqui, basicamente, o Orga-
non de Aristteles (a propsito das homonmias),
colocando-se como um percursor da Crtica da
Razo Pura de Kant (a propsito das anfibologias
e antinomias da razo pura).
A interpretao
Segundo Maimnides, o Guia dos Perplexos tem,
como propsito,
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(...) explicar o sentido de certos nomes que se encontram nos livros profticos. Dentre esses no-mes, h os que so homnimos, mas que os igno-rantes tomam em um dos sentidos nos quais a homonmia empregada; outros so metafricos e so tomados no sentido primitivo do qual foi to-mada emprestada a metfora; outros, enfim, so anfibolgicos, de tal maneira que se ora se cr que so empregados como nomes apelativos, ora so tidos por homnimos. (MAIMNIDES, 1979, p.11)
Logo, o trabalho de interpretao bblica destas
expresses que se prestam a mltiplos usos e sig-
nificados consiste no seu desvelamento racional,
sem, no entanto, entender esse trabalho como uma
espcie de penetrao na essncia da Deus, que per-
manece para alm de qualquer acesso racional. No
se pode entender o trabalho de interpretao como
o da exausto de um texto que, assim, se revelaria
totalmente. Deus permanece sempre, e para todo
o sempre, alm de toda interpretao, fornecendo-
lhe apenas a sua base mediante a Tor e sua lingua-
gem especfica. Deus se situa para alm de qualquer
uso possvel da razo. A verdade , neste sentido,
simultaneamente revelada e ocultada.
Maimnides adverte de que as explicaes ofe-
recidas pelo Guia dos Perplexos no so dirigidas
ao vulgo, ou seja, ao homem de pouco conheci-
mento, que tende a absorver acriticamente tudo o
que lhe oferecido ou que lhe possa aparecer como
verossmil. A verdade, mais ainda a revelada, se dis-
tingue essencialmente da verossimilhana, sendo de
gnero totalmente distinto. interpretao no sig-
nifica a expresso de qualquer opinio. No deve-
mos ter simples opinio sobre a verdade, nem, mui-
to menos, sobre a verdade revelada. A interpretao
exige todo um longo trabalho (os rabinos diriam
o trabalho de toda uma vida) de estudo da Tor e
de sua tradio, partindo do pressuposto de que ela
, em si, inesgotvel. A Tor dirigida aos que es-
tudam, aos que se dedicam sua compreenso, no
podendo ser identificada ao costume atual, segun-
do o qual cada um se acha no direito de expressar
a sua opinio como se esta fosse uma questo de
verdade. isto , as interpretaes no podem ser
vulgarizadas. O estudo uma necessidade imperio-
sa, condio necessria de qualquer interpretao.
O estilo dos profetas particularmente afeito
interpretao. A sua linguagem, com imagens cria-
tivas e intuio fulgurante, situa-se no terreno pr-
prio da imaginao. Ela se destina a um pblico
de pecadores, de transgressores, que deveriam com-
preender a mensagem divina. Ou seja, o discurso
proftico est destinado ao vulgo, que deve, atravs
das imagens veiculadas, alar-se ao entendimento
do divino, tendo como contrapartida necessria a
correo do seu comportamento. A mensagem di-
vina tem, como propsito prtico, a mudana de
um povo transgressor. Deve, portanto, utilizar uma
linguagem acessvel a esse pblico determinado,
imerso no apenas na finitude, mas no pecado.
A linguagem proftica se presta particularmente
interpretao racional, capaz de expor a vincula-
o entre as imagens e expresses desse discurso e
uma forma de manifestao do absoluto, de Deus.
Ou seja, a linguagem proftica se caracteriza pelo
uso sistemtico de metforas, de expresses amb-
guas, que as tornem inteligveis a um povo imerso
no desejo e na transgresso. Ela exige, por assim
dizer, o trabalho da razo. Ou no dizer de Maim-
nides: Deve-se saber que a chave para compreender
tudo o que os profetas disseram e para conhec-los
em toda a sua realidade consiste em compreender
as alegorias e os seus sentidos e delas saber interpre-
tar as palavras (MAIMNIDES, 1979, pp.16-17).
A metfora e a alegoria, situadas na esfera da
imaginao, mesmo de uma imaginao popular,
so a base de desenvolvimento do trabalho racio-
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nal. No esqueamos tampouco que os profetas,
apesar de se alarem posio de receptculos da
mensagem divina, so homens de seu tempo, na
posse de uma linguagem prpria, datada naquelas
comunidades determinadas, dirigida a homens que
se comunicam nestes termos e expresses. Saiba
tambm que cada profeta tem uma linguagem que
lhe prpria, que , de alguma maneira, a lngua
(particular) deste personagem; da mesma manei-
ra que a revelao, que lhe pessoal, e o faz falar
a aquele que pode compreend-lo. (MAIMNI-
DES, 1979, p.331)
Os profetas so uma inveno nica do judas-
mo, que enseja, ademais, a necessidade da interpre-
tao, do uso da razo. Este uso racional, contudo,
no pode alterar as premissas da revelao que se
colocam como a sua fronteira intransponvel. Eis
o seu limite, circunscrito pelo universo da f, no
interior do qual a razo se move. Note-se, ainda,
que os profetas, embora indivduos excepcionais
em um dado momento de suas vidas, so pessoas
normais, podendo o seu comportamento posterior
inclusive contradizer as profecias das quais foram
veculos. Podem, at mesmo, no ser objetos espe-
ciais de considerao posteriormente.
Profetas podem perder a sua veia proftica. Al-
canaram uma intuio fulgurante, subiram ao
cume do conhecimento, atingindo o seu mais alto
nvel, foram iluminados e, neste momento nico,
defrontaram-se com o problema da comunicao
do conhecimento assim adquirido. Defrontaram-
se com o problema de transmitir a mensagem do
Absoluto a indivduos imersos na cotidianidade,
nos prazeres do corpo e no afastamento dos man-
damentos individuais. Depois, voltaram norma-
lidade, com todas as fraquezas humanas.
Com efeito, do mesmo modo que o profeta no profetisa durante toda a sua vida, sem interrup-
o, e que, pelo contrrio, aps ter profetizado em um momento, a inspirao proftica o aban-dona em outros, do mesmo modo pode ocorrer que ele profetize, em um momento, sob a forma de um grau superior e, posteriormente, em outro momento, ele profetize sob a forma de um grau inferior ao primeiro. (MAIMNIDES, 1979, p.390)
Pode, at mesmo, ocorrer que ele alcance esse
grau superior uma s vez em sua vida, no mais
voltando a profetizar. Deus teria, no caso, deseja-
do que somente uma vez essa mensagem fosse trans-
mitida na linguagem deste homem determinado,
naquele contexto determinado.6
A linguagem bblica, portanto, no pode ser
tomada literalmente. Ela imaginativa, voltada
para um povo que, continuamente, deve alar-se
ao conhecimento e crena do Deus nico. Povo
este acostumado, como todo ser mortal, s imagens
da percepo, da representao, imerso que est no
emprico, na finitude e, inclusive, no abandono
do Absoluto e de seus mandamentos. O uso da ra-
zo torna-se aqui essencial, pois s ele pode depu-
rar a linguagem popular de sua necessria incorre-
o, inscrita que est na imaginao e nas suas for-
mas metafricas e alegricas. Maimnides analisa
vrios desses casos. vejamos alguns exemplos.
A palavra imagem (tclem) (MAIMNIDES,
1979, p.29), utilizada por referncia a Deus, uma
palavra que deve ser objeto de interpretao cuida-
dosa, pois ela manifestamente voltada para obje-
tos corpreos. Normalmente, ns a utilizamos a
propsito de objetos determinados, dados empiri-
camente e acessveis, neste sentido, percepo.
Logo, a precauo deve ser a tnica quando de sua
utilizao homnima para designar formas de co-
municao de Deus com o homem, formas de apre-
sentao da revelao. Ou seja, a revelao empre-
ga formas de linguagem que esto ancoradas na
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percepo emprica. So, neste sentido, apropriadas
para a comunicao com seres corpreos, empri-
cos, perceptivos, representativos, porm, por outro
lado, inapropriadas para a apresentao de uma
linguagem divina, abstrata, universal e incomen-
survel em relao finitude.
A questo aqui de monta, pois toda a cautela
pouca em relao s formas de representao cor-
prea de Deus. A percepo emprica , por assim
dizer, apenas uma ponte que permite a passagem
para outras formas de percepo, a percepo in-
telectual, que nos d acesso a outra forma de exis-
tncia, em tudo diferente da existncia temporal,
corprea, transitria e finita. Maimnides (MAi-
MNIDES, 1979, p.84) particularmente atento
a esse problema filosfico, pois no se pode falar
da existncia de Deus como se fala da existncia
de homens ou corpos determinados. Uma palavra
utilizada para a percepo do finito totalmente
inadequada para o conhecimento do Absoluto. A
sua significao completamente distinta. A exis-
tncia de Deus simplesmente homnima em re-
lao a outras formas de existncia. A palavra exis-
tncia significa duas coisas distintas, mesmo, radi-
calmente distintas. (MAIMNIDES, 1979, p.84)7
Maimnides recorre frequentemente autorida-
de de Onkelos, tambm chamado targum Onke-
los ou Onkelos, o proslito.8 Em suas palavras:
Onkelos, o proslito, que dominava perfeitamen-
te as lnguas hebraica e siraca, fez todos os esforos
para descartar a corporificao (de Deus); de modo
que, todas as vezes em que a Escritura se serve (fa-
lando de Deus) de um epteto podendo conduzir
corporeidade, ele a interpreta segundo seu (verda-
deiro) sentido. (MAIMNIDES, 1979, p.63; p.258)
Onkelos era um nobre romano, sobrinho de
Adriano,9 que se converteu ao judasmo, tornando-
se um homem piedoso, tendo se mudado para a
Palestina. Ele fez uma traduo da Tor para o ara-
maico, com o objetivo de que o texto bblico pu-
desse ser acessvel aos judeus que, voltando da Ba-
bilnia, j no conheciam o hebraico. Sua traduo
ganhou o reconhecimento rabnico, tendo sido,
durante muitos sculos, utilizada nas sinagogas,
junto ao texto original hebraico. Ou seja, trata-se
no apenas de uma traduo sumamente fiel, mas
de profundo significado espiritual, voltada, preci-
samente, para o conhecimento do Absoluto.
Ora, isto precisamente que exerce uma pro-
funda seduo sobre Maimnides. Seria, inclusive,
tentador dizer que a traduo de Onkelos, na viso
de Maimnides, veicula, na verso de certos termos
e expresses, uma compreenso propriamente filo-
sfica. Ou seja, ela esvazia determinadas expresses
de seu contedo corpreo, emprico, em proveito
de seu significado mais abstrato, enquanto forma
de melhor expresso da linguagem divina. (cOHEN,
1995, p.160)10 O corpreo, por exemplo, de teor
eminentemente finito, emprico e limitado, subs-
titudo por outras formas mais apropriadas de vei-
culao da mensagem divina, infinita e absoluta.
Poderamos ainda dizer que, para Maimnides,
Onkelos melhor verte o contedo racional, abstra-
to e filosfico da Tor.
O mesmo problema ocorre com o uso da pala-
vra Demouth (semelhana), que no pode tampou-
co ser tomada literalmente. Se a Tor diz que o
homem foi criado semelhana de Deus, essa ex-
presso, evidentemente, no pode ser tomada ao
p da letra, exigindo todo um trabalho de inter-
pretao. com efeito, como pode um ser incorp-
reo criar sua semelhana um ser corpreo? como
pode um ser infinito criar sua semelhana um
ser finito, mortal? A contradio salta aos olhos.
O uso da palavra semelhana procura somente vis-
lumbrar, na perspectiva de seres finitos, o acesso a
outra forma de existncia.
A palavra Elohim (MAIMNIDES, 1979, p.31;
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HALEvi, 2003), para nomear Deus, outro exem-
plo da homonmia. com efeito, essa palavra se
origina de seu emprego emprico, mesmo poltico,
significando, na relao entre os homens, a origem
da dominao, o domnio exercido por governan-
tes sobre os seus sditos. Trata-se, portanto, de um
uso poltico, adequado relao entre governantes
e governados. Trata-se, ainda, do modo mediante
o qual os governantes regem os seus Estados. Ora,
essa palavra, facilmente inteligvel no seu signifi-
cado poltico, imediatamente acessvel percepo
dos sditos em relao aos seus governantes, re-
tomada a partir da perspectiva do Absoluto para
tornar-se um dos nomes de Deus. Ela , portanto,
utilizada homonimamente para designar a relao
de Deus e dos anjos com os homens. visvel a
sua inadequao. O tipo de relao completa-
mente diferente. No entanto, o seu significado po-
pular permite que povos dominados venham a ter
outra percepo da relao de Deus com o mundo,
mediante um emprego da linguagem que possibi-
lite aos homens alar-se a essa outra forma de exis-
tncia e de sujeio.
Outro caso o da expresso Ver Deus (MAI-
MNIDES, 1979, pp.36-39), utilizada no livro do
xodo 24:11, para caracterizar a relao de Moiss
com o Absoluto. Evidentemente, esse ver so-
mente uma utilizao homnima ao ver corpreo
e finito. Moiss, mesmo sendo o primeiro e o mais
eminente dos profetas, no possui a capacidade de
ver Deus. Vemos, no sentido corriqueiro da
palavra, objetos determinados, limitados, empri-
cos, dados espao-temporalmente. O que sim pode
ser visto, na perspectiva de Moiss, so as aes
divinas, os feitos de Deus, que, tampouco, so ob-
jetos de uma percepo estritamente sensvel. Ou
melhor, milagres seriam aes divinas que se ofe-
receriam percepo, porm, tambm aqui, es-
tamos diante de dois significados da percepo, a
emprica normal, digamos, e a emprico-religio-
sa. O uso da percepo e da evidncia, em ambos
os casos, no manifestamente o mesmo.
Ainda no xodo, Deus diz a Moiss que ele o
ver por trs (MAIMNIDES, 1979, p.55), o que,
para Maimnides, significa uma forma de ver as
aes atribudas a Deus. isto , Moiss no v em-
piricamente Deus por trs; essa expresso, em seu
significado literal, carece completamente de sentido.
Reiteremos: no h um ver sensvel, prprio da per-
cepo no seu sentido usual, mas uma forma de
percepo intelectual que, no caso de Moiss, a da
viso proftica. O ver proftico de natureza radi-
calmente distinta do ver sensvel. Deus pode ser ob-
jeto de conhecimento por intermdio de suas aes
no mundo. Ou ainda, a percepo das aes de Deus
so formas de conhecimento de seus prprios atri-
butos, isto , a sua forma de atuao no mundo
(MAIMNIDES, 1979, p.125), podendo ser vista
pelos crentes. Estaramos diante do que poderamos
denominar de um conhecimento prtico da exis-
tncia de Deus por intermdio de suas aes.
Fackenheim (1973) coloca precisamente esse
ponto com o intuito de assinalar que o judasmo
teria criado outra forma de evidncia emprica,
que se caracterizaria pelo testemunho de uma co-
letividade, que foi, posteriormente, transmitido via
tradio.11 Segundo ele, o judasmo ofereceria uma
viso da presena emprica de Deus no mundo
mediante os eventos do Monte Sinai, que foram
aceitos pela autoridade de seiscentos mil testemu-
nhos, nmero muito elevado para poderem ser
simplesmente atribudos ao erro de alguns (MAi-
MNIDES, 2012, p.13). Ou seja, a experincia se-
ria levada seriamente em considerao via uma
verificao estabelecida pelo testemunho de mui-
tos, testemunho este que seria, posteriormente, re-
ferendado por toda uma tradio talmdica. A re-
velao no Monte Sinai e o subsequente priplo
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dos judeus pelo deserto durante 40 anos, com o
intuito de que fosse criada uma nova gerao edu-
cada em uma mentalidade nova, obediente aos man-
damentos divinos e no escrava, seria a manifesta-
o de um evento coletivamente percebido, empi-
ricamente constatvel e que no se reduziria a uma
percepo somente individual de Moiss, por mais
elevada e intelectual que tenha sido.
As nuvens que acompanhariam Deus enquan-
to forma de sua presena, os alimentos que caem
do cu e todo o restante seriam, na concepo, ju-
daica, formas empricas de experincia, na me-
dida em que, precisamente, foram compartilhadas
por pessoas que fizeram parte desta jornada. Da
mesma maneira, coloca-se o fenmeno da travessia
do Mar vermelho, que se abre para os judeus em
sua fuga, em sua liberao do Egito. Ora, tal fen-
meno teria sido constatado no somente pelos ju-
deus como pelos egpcios, que sofreram de suas
consequncias. Os exemplos do xodo so inme-
ros. Ou seja, a empiria seria tal no apenas em
uma interpretao religiosa, mas seria acessvel a
pessoas desta mesma poca, de outras religies,
mediante formas de compartilhamento de uma
mesma experincia.
Do mesmo modo, no se pode tomar sensivel-
mente, literalmente, expresses do tipo: Deus pas-
sa diante do povo; Deus fez passar a sua majes-
tade ou sua glria diante do povo, etc. Trata-se,
observa Maimnides (MAIMNIDES, 1979, pp.55-
56), de metforas que expressam a presena de Deus,
embora essa presena deva ser entendida espiri-
tualmente, no podendo ser confundida, concei-
tualmente, com uma presena emprica. Ou seja,
no se trata de uma presena corprea, pela sim-
ples razo de que Deus no tem corpo; logo, no
possui nenhuma forma de movimento. Ora, corpo
e movimento so expresses que s ganham inte-
ligibilidade dentro de um contexto espao-tempo-
ral. A presena de Deus, porm, de outro tipo,
no sendo essencialmente espao-temporal. A me-
tfora repleta de expresses empricas; o seu sig-
nificado, contudo, conceitual, situado para alm
dos limites da temporalidade e da espacialidade.
O mesmo ocorre, acrescenta Maimnides (MAi-
MNIDES, 1979, p.89), com as palavras e a mi-
nha face no ser vista (xodo, 33:23). O proble-
ma consiste em significar a presena de Deus, que
no pode ser apreendida por intermdio do ver
emprico. Deus tampouco teria uma face ma-
neira dos humanos, pois se trata de uma expresso
aplicada a uma forma de presena do corpo. Acon-
tece, contudo, que a presena do corpo no tem
nada a ver com a presena Divina, cuja forma de
acesso seria racional, conceitual, espiritual, e no
corprea. Deus se faz presente mediante outra for-
ma de existncia, necessria, eterna e conceitual, e
no emprica, simplesmente possvel, e transitria.
O uso da palavra anjo enquanto mensageiro
outro exemplo do mesmo tipo. O relato bblico,
em vrios momentos, apresenta o anjo como
sendo uma forma de enviado corpreo, podendo
veicular a imagem de um determinado indivduo,
encarregado desta misso em um contexto espao-
temporal (MAIMNIDES, 1979, p.259, p.262).12
Qualquer leitura literal desse relato s poder re-
sultar em equvocos e, mais ainda, em afastamento
do prprio significado da Bblia. Anjos so men-
sageiros, enviados de Deus, que aparecem em
sonhos e aparies que no podem, evidentemen-
te, ser identificados ao aparecimento de corpos em
movimento. Enquanto enviados de Deus, veiculam
significados e mensagens cuja origem se situa em
uma forma de existncia conceitual e no empri-
ca, enquanto, do ponto de vista do destinatrio,
do vulgo, do povo, surgem de uma forma aparen-
temente corprea para facilitar a aceitao de cer-
ta mensagem. Trata-se de uma forma de acesso a
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outra forma de existncia e de suas consequncias
nas aes humanas, tambm consideradas, portan-
to, como obras de Deus.
A postura reverencial que os judeus dedicam
ao Shabat outra demonstrao da importncia
da elevao da alma existncia espiritual. Esta
teria como condio a consagrao semanal ne-
gao da existncia emprica e cotidiana e sua subs-
tituio pela conceitual, divina. Os homens devem,
um dia da semana, sair de suas preocupaes coti-
dianas, das condies de sua vida finita, com o
objetivo de ter acesso a uma outra forma de exis-
tncia (HEScHEL, 2000). A linguagem da Tor,
na narrao do Gnese, tambm explicitamente
humana, pois ali dito que Deus descansou no
stimo dia da Criao. Como assim, Deus des-
cansou? Deus cansa? Ora: se Deus cansasse, ele
no seria Deus! O cansao uma condio de se-
res finitos e mortais, uma debilidade, uma fraque-
za que no pode, evidentemente, ser atribuda a
Deus. Trata-se de uma linguagem metafrica (MAi-
MNIDES, 1979, p.160), apropriada a tribos exis-
tentes 4.000 anos antes do calendrio cristo. Deus
transmitiu ao homem a prescrio de observar o
Shabat como seu dia de repouso, de ascenso a ou-
tra forma de existncia, e no evidentemente a si
mesmo, o que seria totalmente inapropriado para
uma existncia absoluta.
Razo e f
O pressuposto do pensamento de Maimnides con-
siste na origem divina da Tor, ponto sobre o qual
no paira a menor dvida. A leitura de toda a To-
r deve ser feita a partir do reconhecimento preli-
minar de que, nela, Deus fala aos homens e, em
particular, aos hebreus, mesmo em seus silncios,
omisses e aparentes contradies. Sua mensagem,
como vimos, est constituda por uma comunida-
de de linguagem que tem, em uma ponta, uma
origem divina baseada em uma forma necessria e
no emprica de existncia e que tem, em outra
ponta, tribos nmades e at mesmo escravas que
no entendem diretamente o que pode bem signi-
ficar um Deus abstrato, nico, que foge completa-
mente dos parmetros politestas e idlatras ento
vigentes; e, enquanto mediao entre esses dois ex-
tremos, temos as figuras dos profetas e, em parti-
cular, o primeiro e o maior de todos, Moiss, que
o mediador entre essas duas formas de existncia,
adaptando a linguagem divina a uma mentalidade
de escravos e pecadores.
No convm esquecer que se trata de um povo
inculto consagrado idolatria. Mesmo aps a sada
do Egito, tendo experimentado a vivncia da pre-
sena divina atravs de milagres, ele recai na idola-
tria, consagrando-se ao bezerro de ouro, idolatria
na qual a semelhana de deus identificada a um
animal, em uma completa perverso da concepo
do Deus nico (nada lhe semelhante) e eterno (sig-
nificando no nascido, no engendrado) (MAIM-
NIDES, 1979, p.133). Maimnides chega a salientar
que o fato de, na Tor, Deus aceitar sacrifcios sig-
nifica, to somente, uma concesso a um povo acos-
tumado religiosamente idolatria. Ou seja, Deus
admitiria o sacrifcio, durante um tempo determi-
nado, para depois abandon-lo completamente. Ope-
raria uma adaptao da mensagem divina com o
propsito de converter esse povo de escravos ver-
dadeira religio: o monotesmo sem sacrifcios. Ou
no dizer de Maimnides: Em consequncia, a sa-
bedoria de Deus, cuja providncia se manifesta em
todas as suas criaturas, no julgou conveniente de
nos ordenar a rejeio de todas essas espcies de cul-
to, o seu abandono e a sua supresso, pois isso teria
aparecido, ento, inadmissvel natureza humana,
que tem sempre apreo pelo que lhe habitual.
(MAIMNIDES, 1979, p.522; Cohen, 1995, p.173)
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Logo, o exerccio da razo se encontra limitado
pelos marcos dados pela f. A razo opera no inte-
rior da Tor, dos Profetas, dos livros de Sabedoria,
e, posteriormente, em toda a tradio talmdica. A
razo uma ferramenta utilizada para a explorao
deste riqussimo territrio, operando desde a sua
interioridade. Por outro lado, essa ferramenta, para
Maimnides, se encontra pronta, disposio, sob
a forma de uma filosofia perfeitamente acabada, a
saber, a filosofia de Aristteles, que comparece co-
mo uma autoridade mxima, expresso prpria da
razo. Mais especificamente ainda, Maimnides
formula o parentesco ntimo entre a interpretao
racional da Bblia, desvendando o sentido de enig-
mas e alegorias, e a cincia metafsica, ou ainda,
os mistrios da metafsica (MAIMNIDES, 1979,
p.13). Para ele, a elevao racional a Deus, a sua
percepo intelectual , significa a cincia da
metafsica (MAIMNIDES, 1979, p.82).
A razo se curva diante do transcendente, dian-
te de algo que a transcende completamente, situa-
do em um alm que guarda, desde todo o sempre,
o seu segredo. A razo se inclina diante do que
temos (inclusive, dificuldade de nomeao), fugin-
do dos limites da experincia emprica, sensvel,
aquilo que configura o espao normal da vida co-
tidiana. A razo enfrenta uma questo que se situa
em outra dimenso, a do abismo mesmo da trans-
cendncia. Segundo a religio judaica, Deus cria-
dor, transcendente e no imanente ao mundo. O
judasmo se caracteriza, neste sentido, por um pro-
fundo respeito pela transcendncia.
Eis por que, segundo Maimnides, o estudo da
metafsica deve ser algo controlado, feito por ho-
mens capazes do exerccio, no sentido estrito, da
razo. Mais concretamente, a base de operao da
razo deve ser a Bblia, e no uma ao racional
independente que prescindiria da Tor e dos livros
Sagrados. O alerta , contudo, endereado a aque-
les que pretendem comear os seus estudos direta-
mente pela metafsica, descartando os preliminares
da f. Se a razo opera autonomamente, pode re-
sultar uma perturbao nas crenas, conduzindo
pura irreligio (MAIMNIDES, 1979, p.75),
isto , a descrena em Deus e o atesmo.
Em relao a Aristteles, o mundo judaico um
mundo criado e no, segundo o Estagirita, um mun-
do existente desde sempre. Diversas ordens de pro-
blemas esto aqui envolvidas: 1) o da eternidade
do mundo, como se Deus no fosse dele um ante-
cedente na posio de criador. A questo colocada
diz respeito ao modo de entendimento da posio
de Deus, como se ele fosse imanente ao mundo,
contrariando a posio judaica da transcendncia
divina; 2) o do conceito aristotlico do primeiro
motor, segundo o qual o mundo seria uma emana-
o desta fora primeira, que seguiria, desde sem-
pre, a sequncia da causalidade do mudo. Ou seja,
o mundo estaria submetido a uma ordem causal,
no cabendo nenhum espao, por assim dizer, ao
conceito judaico do milagre, que estaria, tambm
ele, submetido causalidade imanente, perdendo
o seu carter de irrupo e interveno divinas; 3)
o conceito aristotlico do primeiro motor e de seu
conjunto de causas, particularmente o da causa fi-
nal, termina excluindo o conceito judaico de liber-
dade, liberdade de um Deus que cria o mundo a
partir de sua prpria escolha, no obedecendo a
nenhuma causa. O mesmo valeria para os milagres,
que so intervenes livres de Deus.
Mais especificamente, Maimnides sustenta que
Aristteles no tem, propriamente, uma demonstra-
o da eternidade do mundo. Suas alegadas argumen-
taes so as que, segundo o seu esprito, se apresen-
tam com mais verossimilhana, ou as que melhor se
ajustam a suas inclinaes pessoais (MAIMNIDES,
1979, p.285). Logo, a formulao da eternidade do
mundo seria muito mais sustentada pelos discpulos
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de Aristteles do que por ele mesmo, que era desta
opinio, embora reconhecesse o seu carter precrio.
O procedimento de Maimnides consiste em opor
formas de demonstrao, no caso a verso aristot-
lica e a do livro do Gnese, em uma confrontao
eminentemente racional de ideias, analisando os pon-
tos fracos e fortes de cada uma dessas oposies.
Do ponto de vista filosfico, contudo, o deba-
te sobre a eternidade do mundo versus sua criao
configura-se em uma questo propriamente inde-
cidvel (MAIMNIDES, 1979, p.289; GUTTMANN,
1964, p.216). O que termina valendo a melhor
argumentao, isto , o mtodo racional de con-
fronto argumentado de posies. Note-se o livre
trabalho da razo quando se debrua sobre um Li-
vro Sagrado, confrontando-o com posies cient-
ficas e filosficas de um autor maior como Aris-
tteles. Trata-se do filsofo Maimnides em ao:
A maior homenagem que eu pude prestar ver-
dade a de ter abertamente declarado o quanto
essas questes me lanavam na perplexidade e que
eu no havia compreendido, nem conhecido de-
monstraes para nenhuma delas. (MAIMNI-
DES, 1979, p.322) S um pensador em busca da
verdade se coloca na posio da perplexidade, mes-
mo diante de textos-base de sua prpria religio.
Observa ele:
(...) aps termos verificado que, na questo de saber se o cu nasceu ou eterno, nenhuma das duas (hipteses) opostas no poder ser demons-trada, e aps ter exposto as dvidas inerentes a cada uma das duas opinies, ns te mostramos que a opinio da eternidade (do mundo) a que oferece mais dvidas e que muito perigosa pa-ra a crena que deve ser professada em relao a Deus. Acrescentemos a isto que a novidade (do mundo) a opinio de nosso pai Abrao e de Moiss, nosso profeta. (MAIMNIDES, 1979, p.315)
Ora, trata-se precisamente disto: o confronto
de duas opinies, nenhuma delas comparecendo
como dogmtica em relao outra. So, observe-
mos, opinies que devem ser confrontadas e de-
monstradas, com todas as dificuldades a inerentes.
claro que, numa Questo Disputada desta
maneira, vai jogar a disposio e a convico pr-
pria de cada filsofo. No caso, sem deciso de prin-
cpio, valer o texto do Gnese: a opinio de nos-
so pai Abrao e de Moiss, nosso profeta. Eis por
que, dirigindo-se a seu discpulo Rabino Jos, Mai-
mnides salientar:
Quando tu tiveres, ento, compreendido a ideia (do propsito), tu reconhecers o quanto falso dizer que o mundo uma consequncia neces-sria da existncia de Deus, como o efeito o da causa, e (tu sabers) que ele veio da ao (livre) de Deus ou (que ele existe) por sua determinao. (MAIMNIDES, 1979, p.310)
O problema, porm, tem ainda um alcance
maior, pois, se fosse admitida a eternidade do mun-
do, a prpria Tor e os livros dos Profetas seriam
postos em questo. Os milagres desapareceriam no
conjunto da causalidade natural, o que terminaria
eliminado o livre arbtrio de Deus. Os prprios
fundamentos da religio seriam atingidos: admi-
tir a eternidade (do mundo) tal qual acreditava
Aristteles, isto , como uma necessidade, de mo-
do que nenhuma lei da natureza possa ser muda-
da, e que nada possa sair de seu curso habitual,
seria o equivalente a minar a religio por sua base,
qualificando necessariamente de mentira todos os
milagres. (MAIMNIDES, 1979, p.323) Note-se
que a razo, em seu procedimento metodolgico:
1) primeiro, confronta opinies mostrando os pro-
blemas de argumentao presentes em ambas; 2)
segundo, opera uma escolha em funo da mais
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verossmil e da que apresenta uma melhor soluo
argumentativa; 3) terceiro, ele passa a auxiliar, por
assim dizer, essa soluo encontrada, operando
em sua defesa contra todas as posies contrrias
derivadas. Ela se torna um instrumento da f.
Em relao ao cristianismo, a diferena con-
siste em que cristo uma forma sensvel de exis-
tncia do absoluto, filho de Deus, e, neste senti-
do, tornado imanente ao mundo. Ou seja: 1) cris-
to, na viso judaica,13 poderia ser visto, talvez, co-
mo um profeta, maneira de Moiss, por exem-
plo, porm jamais por uma forma de encarnao
de Deus, na medida em que, precisamente, se co-
locaria o problema da imanncia do Absoluto; 2)
o percurso de cristo no mundo, a partir de sua
morte e ressureio,14 termina por configurar o
processo do Absoluto no mundo sob a forma des-
ta imanncia, em um movimento de tipo hegelia-
no de dissoluo e engendramento, que Hegel
(2010, 31 e 32) define como sendo o prprio
conceito de dialtica. Eis por que Hegel preza, so-
bretudo, esse modo de existncia crist do Abso-
luto; 3) o Deus trinitrio tambm objeto de cr-
tica de Maimnides por introduzir a pluralidade
no conceito de Deus, o que contraria a concepo
judaica do Deus uno. Ou seja, o Deus uno no
poderia se apresentar sob a forma de trs pessoas
ou entidades, pois isto significaria a fragmenta-
o da unidade indivisvel.
Para Maimnides, Deus no pode ser afetado
por nenhuma composio, por nenhuma adio,
por nenhum desmembramento, pois isto acarreta-
ria um afastamento da concepo do Deus nico
e transcendente. Do mesmo modo que a Deus no
se pode atribuir nenhum sentido de corporeidade,
tampouco pode ele ser compreendido sob o modo
de um atributo essencial. Atributos so, em sua
perspectiva, faculdades humanas a ele transpostas.
Seria uma forma totalmente imperfeita e finita
de abordagem de Deus. Nesta perspectiva, a fr-
mula trinitria seria inadequada para dizer o ser
de Deus, pois o nico seria pensado enquanto
mltiplo. Isto seria semelhante ao que dizem os
cristos: Ele um, porm ele trs e os trs so
um. (MAIMNIDES, 1979, p.112)
O Deus judaico, na concepo de Maimnides,
sendo de uma forma de existncia totalmente di-
ferente da existncia de coisas corpreas, que po-
dem funcionar enquanto substncias que sejam
receptculos de atributos ou acidentes, no se pres-
ta a essa forma de atribuio. Por exemplo, em
substncias materiais podemos lhes atribuir quan-
tidade, qualidade, localizao espao-temporal e
outras formas de relao. contudo, quando con-
frontados existncia necessria, transcendente e
nica de Deus, o processo lgico de atribuio, por
assim dizer, perde o seu p, perde a sua prpria
base de sustentao.
Mais ainda, a essncia de Deus, radicalmente
incognoscvel e incompreensvel, no comporta
que, desde a exterioridade do seu conhecimento,
atributos possam lhe ser conferidos. Deus se eleva
para alm de toda descrio (MAIMNIDES, 1979,
p.121). Metafisicamente, isso equivaleria a uma in-
vaso de sua interioridade, um desbravamento hu-
mano de sua essncia, algo que se encontra para
alm de todo empreendimento racional, humano,
finito e mortal. A doutrina aristotlica da substn-
cia e de seus acidentes no lhe seria de nenhuma
valia. Logicamente, isto significaria a atribuio da
multiplicidade unicidade de Deus, o que seria
contraditrio com a prpria essncia divina. No
dizer de Abraham Heschel: o homem alcana a
mais sublime ideia quando contempla em sua al-
ma a unicidade de Deus. (HESCHEL, 1982, p.28)
No h nele, portanto, multiplicidade nem atri-
butos que sejam acrescentados sua essncia. con-
tudo, se os Livros Sagrados utilizam expresses que
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se assemelham a atributos que sejam dados a Deus,
isto se deve a que esses Livros se expressam segun-
do a linguagem dos homens (MAIMNIDES,
1979, p.120). Esses atributos devem ser considera-
dos como homnimos que designam em Deus a
multiplicidade de suas aes, e no uma multipli-
cidade em sua essncia (MAIMNIDES, 1979,
p.120). Aqueles que consideram a Tor e os livros
dos Profetas segundo os atributos, fazem apenas
uma leitura literal desses Livros, sem minimamen-
te perscrutar os seus segredos, permanecendo na
superfcie mesma dos textos.
Neste sentido, quando Moiss15 pede a Deus
que lhe seja permitido ver os seus atributos, a res-
posta divina foi a de que ele lhe permitiria conhe-
cer as suas vias, isto , os seus atributos por meio
de suas aes no mundo. Os atributos so aqui,
portanto, considerados alegoricamente. (MAI-
MNIDES, 1979, p.124) Conhecer os seus atribu-
tos significa conhecer as suas aes. Deus se deixa
conhecer praticamente, poderamos ainda acres-
centar, moralmente. O maior dos profetas, o prn-
cipe dos sbios no dizer de Maimnides, conhe-
ceu as aes que emanam de Deus (MAIMNI-
DES, 1979, p.124), aquilo que os Doutores consi-
deram como middth de Deus, que so quali-
dades ou maneiras de agir (MAIMNIDES, 1979,
p.125). Mais especificamente, so qualidades mo-
rais, como a de prestar caridade ao prximo. cla-
ro que isto no significa que Deus tenha qualida-
des morais, pois isto seria equivalente a reintrodu-
zir nele a multiplicidade, mesmo que moral. Sig-
nifica to somente que ele produz aes seme-
lhantes quelas que homens justos tomam por
morais, como as disposies de alma de uma pes-
soa reta. Est, ento, claro que as derakhm (vias)
e as middth (qualidades) so a mesma coisa: so
as aes que emanam de Deus (e se manifestam)
no universo (MAIMNIDES, 1979, p.125).
Nesta perspectiva, a filosofia se apropria, des-
de o interior, do contedo da revelao. Ora, is-
to significa, por outro lado, uma releitura do
prprio significado da f, que passa a ser com-
preendida enquanto uma forma de conhecimen-
to, uma forma, inclusive, racional de conheci-
mento (GUTTMANN, 1964, p.199). A f seria
amparada pela razo que a auxilia no desbrava-
mento de seus domnios. Ou no dizer de Mai-
mnides: S pode haver crena quando h con-
cepo, pois a crena consiste em admitir como
verdadeiro o que foi concebido (e a crer) que isto
est fora do esprito tal como foi concebido no
esprito (MAIMNIDES, 1979, p.112). A con-
cepo do verdadeiro foi dada pela Tor, que a
base a partir da qual a crena encontra condies
de operar tendo como fundamento a revelao.
Ocorre que a adeso exige todo um esforo ra-
cional de reproduo na interioridade mesma do
esprito daquilo que lhe foi apresentado como
revelado. Ou seja, haveria conformidade entre a
filosofia aristotlica e a revelao bblica, cada
uma delas, unida outra, oferecendo e apresen-
tando uma perspectiva do Absoluto.
Conhecimento religioso e metafsica
isto faz com que Maimnides recupere a noo
aristotlica de Eudaimonia, de felicidade, con-
ferindo-lhe uma significao conforme a Tor. A
felicidade seria uma forma de acesso a Deus, de
pavimentao de seu caminho. A razo ascenderia
contemplao do divino: ela daria acesso a outra
forma de existncia. Isto significa que a felicida-
de no pode ser compreendida no sentido corri-
queiro de satisfao do desejo, de contentamento
com os bens materiais, nem, muito menos, iden-
tificada a nenhuma forma de hedonismo. com-
preender a felicidade de uma destas maneiras con-
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duziria necessariamente ao afastamento de Deus e
a uma espcie de descarrilamento da razo.
A felicidade no deveria, pois, ser compreendi-
da no sentido material, sensvel e corpreo, mas
no sentido espiritual, proveniente da comunho
com Deus mediante o conhecimento racional. Nes-
te sentido, o conhecimento metafsico viria a se
identificar ao conhecimento religioso. A piedade,
sob esta tica, para alm de sua acepo moral, ga-
nharia uma conotao contemplativa, a da con-
templao racional do mundo em sua totalidade.
O esprito se conhece enquanto criatura conhecen-
do racionalmente Deus. A perfeio aristotlica,
enquanto ato supremo do conhecimento, se iden-
tificaria contemplao religiosa.
Poder-se-ia, inclusive, considerar que haveria
uma tenso, em Maimnides, entre o conhecimen-
to racional e o conhecimento religioso, por mais
que ele procure harmoniz-los, demonstrando a
sua coincidncia ltima. Esse esforo de concilia-
o, poderamos acrescentar, prprio de todo
homem devotado simultaneamente razo e f,
ou ainda, s relaes entre filosofia e teologia. Eis
por que, a propsito da anlise do significado da
palavra hebraica Hokma (sabedoria), Maimnides
salienta que ela considerada como a percepo
das verdades (filosficas), que tm como fim lti-
mo a percepo de Deus. (MAIMNIDES, 1979,
p.629) Haveria, portanto, uma coincidncia, me-
lhor uma identidade, entre os conceitos de sabe-
doria, no sentido judaico do termo, e de conhe-
cimento metafsico, na sua acepo aristotlica.
Ambos esto ancorados no exerccio da razo que
se ala percepo do inteligvel, do que se subtrai
ao conhecimento emprico. O fim ltimo da razo
seria, ento, o conhecimento de Deus (MAIM-
NIDES, 1979, p.634). Isso faz com que Guttmann
escreva que as ideias de Maimnides sobre os fins
ltimos da existncia humana so muito prximas
do aristotelismo e, religiosidade tica da Bblia,
ele substitui uma religiosidade da contemplao
interior. (GUTTMANN, 1964, p.223; TWERSKY,
2006, p.27; LAMM, 2006, p.53)
Na perspectiva moral de um Deus transcenden-
te, a razo conheceria as aes divinas, apresentan-
do ao homem padres de comportamento que so
os da revelao, dados pelos rituais e renncias ao
desejo prprios do judasmo. convm aqui atentar
para as proibies alimentares, sexuais e de devoo
ao servio divino, na observncia mesmo dos man-
damentos religiosos. Haveria uma repetio deste
conhecimento moral que se traduziria nas aes
humanas. A ao de Deus torna-se o modelo das
aes humanas, obrigando um ser finito e mortal
a agir segundo regras ancoradas na revelao.
coloca-se, assim, um problema da maior rele-
vncia, relativo aos limites mesmos da interpreta-
o, ou seja, at onde pode ir a razo na reviso dos
mandamentos bblicos, de origem revelada. vimos
que os sacrifcios animais seriam, segundo Maim-
nides, uma concesso mentalidade pag e, mesmo,
escrava. Apesar de aparecerem na Tor como sendo
um mandamento divino, este deveria ser compreen-
dido enquanto transitrio, no possuindo uma va-
lidade absoluta. Ou seja, a sua origem seria absolu-
ta naquelas circunstncias e a validade dela decor-
rente seria limitada. Tratar-se-ia de um caminho
necessrio para a elevao espiritual ao Deus nico,
cuja mediao, por assim dizer, seria posterior-
mente descartada. Ocorre que teramos um dos li-
mites da crena na origem divina da lei, abrindo
as portas para uma explicao histrica dos man-
damentos bblicos. (GUTTMANN, 1964, p.231)
A questo consistiria, portanto, nos limites da
reviso racional dos mandamentos revelados. At
onde poderia ir a razo neste trabalho de reviso?
Onde se situaria a fronteira que ela no poderia
ultrapassar? O alerta de Maimnides claro: ns,
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homens de religio, devemos evitar dizer claramen-
te coisas cuja inteligncia difcil para o vulgo ou
em relao s quais pode ser figurada a verdade em
um sentido contrrio ao que pretendamos (MAI-
MNIDES, 1979, p.50) O trabalho de reviso dos
mandamentos bblicos deveria ser feito com extre-
mo cuidado, pois ele exige um grau supremo de
conhecimento, no podendo ser identificado a me-
ras opinies ou a concesses ao esprito do tempo.
No haveria acomodao aos costumes, porm exi-
gncia suprema de conhecimento. Seria necessria
uma extrema erudio para empreender tal esforo
de reviso e, mais ainda, para operar uma mudan-
a na forma dos rituais e liturgias religiosas.
caberia, inclusive, uma analogia com uma obra
de teologia catlica do sculo Xvii, que retoma es-
sencialmente a formulao de Maimnides. Refiro-
me ao clebre telogo e filsofo Antoine Arnauld,
tambm conhecido como um dos objetores das Me-
ditaes Metafsicas de Descartes. Diga-se, de pas-
sagem, que o filsofo francs o tinha em grande
estima, muito maior, por exemplo, daquela, pouca,
que devotava a Hobbes. Em sua obra a Frequente
Comunho (ARNAULD, 1643), ele se coloca o pro-
blema do ritual da comunho feito por atos mec-
nicos, desprovidos de qualquer dimenso espiritual.
Atos sem convico que afastariam o homem de
Deus, em vez Dele se aproximar. Seria uma forma
de observncia ritualizada de um mandamento ca-
rente, na verdade, de qualquer significao religiosa.
Arnauld enfrenta essa questo perguntando-se se
deveria haver uma adaptao qualquer desse ritual
religioso, acomodando-o ao esprito do tempo, por
exemplo, de tendncia religiosa enfraquecida. A sua
resposta consiste em um contundente no. Segundo
ele, os homens e mulheres deveriam se alar aos
mandamentos religiosos, e estes no se rebaixariam
a seres humanos de pouca fibra. Os mandamentos
religiosos no deveriam, simplesmente, acompanhar
as mudanas de costumes, pois a sua temporalidade
de outro tipo. A sua validade situa-se no domnio
da existncia espiritual e no em qualquer tipo de
acomodao s exigncias histricas da existncia
desejante, material, finita e corprea.
Eis por que Maimnides considera que os es-
tudos mais profundos da Tor somente devem ser
empreendidos por um pequeno grupo de elite, no
estando destinados ao vulgo. Os segredos da Tor
so inacessveis por definio, e um conhecimento
aproximativo deles exige um acesso progressivo,
feito por partes, em uma espcie de afunilamento.
Evita-se, desta maneira, que mudanas abruptas na
concepo religiosa e nos mandamentos religiosos
sejam levadas aleatoriamente a cabo. Ademais, co-
mo observa o prprio Maimnides, na carta intro-
dutria dirigida a seu discpulo Rabino Jos: e
quando fizeste sob minha direo teus estudos de
lgica, minha esperana se ligou a ti e te julguei
digno de te revelar os mistrios dos livros profti-
cos, a fim de que tu compreendas o que devem
compreender os homens perfeitos (MAIMNI-
DES, 1979, p.9). Note-se a vinculao estabelecida
por Maimnides entre a revelao (pelo estudo)
dos mistrios dos livros profticos e homens (mo-
ralmente e racionalmente) perfeitos, capazes de se
elevar a tal inteligibilidade do Absoluto.
conhecimento terico e razo prtica devem
caminhar conjuntamente, sob pena de o privile-
giamento de um levar ao desvirtuamento de outro.
Filosofia e religio de um lado, e moralidade de
outro, no constituem esferas de conhecimento
independentes, pois uma se coloca, precisamente,
enquanto condio da outra. Ou seja, os estudos
de lgica, filosofia e religio revelada esto dirigi-
dos aos homens perfeitos, cujo comportamento
reto os coloca na condio de abordarem esses te-
mas mais intricados, cuja compreenso os eleva a
Deus. Os aprendizados das virtudes morais seriam,
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neste sentido, uma preliminar necessria e incon-
tornvel de acesso s virtudes racionais. Maimni-
des procura, com isto, evitar uma separao entre
os estudos de filosofia, da revelao, e o agir mo-
ralmente justificado, baseado em valores morais
que sejam absolutos.16
Evita-se, ainda, as mais distintas formas de in-
compreenso, submetendo esse trabalho tempo-
ralidade do Absoluto e no s circunstncias das
distintas pocas. Nossa poca, por exemplo, sobre-
maneira acostumada a uma validade rasteira e igua-
litria de qualquer opinio, particularmente ex-
posta ao arbtrio da reviso conceitual e religiosa.
cuidado extremo deveria ser dedicado s opinies
no formadas e, diria mesmo, superficiais de cada
um. No seu mais alto sentido, racional e moral, o
judasmo seria, conforme Hermann cohen, uma
Religio da Razo: Religion der Vernunft.
Na perspectiva teolgica, somos aqui novamen-
te remetidos questo da forma de acesso racional
ao ser absoluto, o que equivaleria a dizer ao modo
mediante o qual o ser nico pode ser nomeado.
Acesso, segundo Maimnides, no significa prova
da existncia de Deus, na medida em que a exis-
tncia no pode ser objeto de prova, mas to so-
mente de nomeao de uma existncia anterior
previamente reconhecida. Ou seja, o trabalho da
razo ao se inserir no interior da revelao da To-
r aceita as premissas desta, o que significa dizer
que a existncia de Deus tida preliminarmente
enquanto verdadeira. No se se trata de uma ideia
sobre a qual a razo se debruaria de uma forma
autnoma, sem nenhuma precondio, o que, na
tradio filosfica, corresponderia a um estudo de
teologia natural, independentemente das condies
apresentadas pela revelao. Um ateu pode fazer
teologia natural; um crente, por sua vez, aceita os
pressupostos da f.
A distino entre nomear e provar central.
Nomeio uma coisa previamente tida por existente.
O nome aposto coisa dada, que no objeto
de questionamento. A existncia deste algo nomea-
do no se constitui como um problema propria-
mente dito. Neste sentido, a existncia de Deus
funcionaria como um estado de coisas existente,
reconhecido enquanto tal. Ou ainda, Deus, do pon-
to de vista da existncia, seria equivalente a coisas
dadas, empricas, admitidas como existentes. Deus
seria presena, apresentando-se, contudo, a outro
tipo de percepo, a saber, a percepo intelectual.
A percepo intelectual funcionaria maneira de
captao de algo dado, reconhecido previamente
em sua presena. Um filsofo cristo do sculo Xii,
Santo Anselmo, tambm conhecido por ter formu-
lado o argumento ontolgico, situa-se, igualmen-
te, na mesma tradio dos nomes divinos, cujo
ponto de partida da reflexo filosfica consiste pre-
cisamente em tomar como verdadeiro a presena
de Deus, o estado de coisas existente dado pela re-
velao. esse estado de coisas dado que ser ob-
jeto de uma nomeao particular, uma expresso
racional, um nome, capaz de resistir aos embates
filosficos (ROSENFiELD, 1996; BARTH, 1958).
O argumento ontolgico enuncia-se da se-
guinte maneira: algo tal que nada de maior pode
ser pensado.17 No se trata, como Santo Anselmo
tem o cuidado de nos advertir, de um trabalho au-
tnomo da razo, mas de uma meditao que se
faz sob a gide da razo da f (ratione fidei),18
supondo, portanto, como verdadeira, a prpria
existncia de Deus, que se situa acima da razo.
Deve esta, precisamente, elevar-se a algo que lhe
transcende, partindo de uma posio subordinada
que a sua. Ou seja, a mente humana deve elevar-
se contemplao de Deus, cuja existncia no
objeto de dvida. Na perspectiva de Maimnides,
conviria, ainda, acrescentar que essa tentativa an-
selmiana se caracterizaria, aristotelicamente, pela
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aplicao a Deus da categoria da quantidade, sob
a forma a grandeza e do maior, o que seria um
procedimento analgico prprio da razo finita.
Esta aplicaria a Deus uma categoria utilizada para
a atribuio de propriedades a seres finitos.
Este j no o caso de uma prova da existncia
de Deus, empreendida por Descartes no Discurso
do Mtodo e nas Meditaes Metafsicas. Nestes
livros, Deus tomado como uma ideia que ser
submetida ao exame, uma ideia que ser submeti-
da prova. Trata-se de um exerccio de Teologia
Natural ou de Filosofia primeira, sujeito s inda-
gaes cticas e de ateus. Note-se que no h o re-
conhecimento preliminar de nenhuma existncia
dada. A prpria existncia torna-se uma questo.
A razo vai se colocar o problema de como o con-
ceito de existncia pode ser atribudo a uma ideia,
no caso a ideia de Deus, de perfeio ou de infini-
to. A existncia vista como um atributo a ser pre-
dicado de uma ideia e no algo tido por dado em
sua exterioridade.19
Observe-se, ainda, que a ideia do Deus cartesia-
no a do Deus judaico, nico, recebendo todas as
propriedades da tradio bblica, como a onipo-
tncia, a suprema bondade e a oniscincia, com
destaque para a primeira dessas propriedades. No
se trata do Deus trinitrio, mas do Deus nico.
cabe ainda ressaltar que a filosofia cartesiana cai
naquilo que poderamos considerar como a sober-
ba da razo, a saber, a de pretender desvelar a es-
sncia de Deus, a razo adentrando-se completa-
mente no terreno da f, no mais reconhecendo os
seus limites, nem, muito menos, curvando-se dian-
te dela. Para Descartes, a razo pode conhecer a
essncia de Deus, caracterizada por sua onipotn-
cia, embora continue incapaz de compreender os
seus desgnios, ou seja, saber a finalidade das coisas
ou a de por que Deus faz isto ou aquilo.
Para Maimnides, esses atributos normalmente
aplicados a Deus so nada mais do que formas hu-
manas de atribuio, consideradas na perspectiva
mesma da finitude. Mais especificamente, so for-
mas de atribuio negativa, pois, ao atribuirmos a
Deus a potncia, a cincia e a vontade, nada mais
fazemos que dizer que Deus no impotente, nem
ignorante, nem tonto, nem negligente. (MAIM-
NIDES, 1979, p.136) Se dissermos que Deus no
impotente, significamos, com isso, que sua for-
ma de existncia faz nascer outras coisas de sua
prpria essncia; se dissermos no ignorante, sig-
nificamos que ele percebe, embora sua percepo
seja totalmente distinta da humana; se dissermos
nem tonto, nem negligente, significamos que a
ordem dos seres possui uma lgica, uma razo de
ser, tudo correspondendo sua inteno.
Logo, se compreendermos, ento, que o ser di-
vino no possui nada que lhe seja semelhante, es-
taremos designando o seu ser como nico. (MAI-
MNIDES, 1979, p.136; ZAC, 1984) Maimnides
insiste sobre este ponto, pois dizer que Deus ni-
co, ou mesmo uno, no significa que lhe esteja-
mos atribuindo a unidade, como seria a unidade
do mltiplo, em cujo caso estaramos introduzindo
em Deus a multiplicidade e a pluralidade. O ser
nico significa o ser radicalmente no semelhan-
te a todas as coisas finitas, no podendo ser aqui
confundida essa forma de nomeao com a atribui-
o de uma forma da quantidade, como o so as
formas numricas. Ou seja, no se trata da atribui-
o aristotlica da categoria da quantidade, pois
estaramos, ento, recaindo na atribuio a Deus
em propriedades lgicas da finitude. Essas questes
so, segundo Maimnides, sujeitos sutis, que qua-
se escapam aos espritos, no seriam expressos pela
linguagem habitual, que uma das grandes causas
do erro. (MAIMNIDES, 1979, p.133)
Maimnides, ao seguir a teoria dos nomes di-
vinos, tendo o Deus revelado como condio do
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ato mesmo de nomeao, partindo de sua exis-
tncia necessria e conceitual, vai, ento, se colo-
car diante do problema de como um intelecto
humano, finito e imperfeito, tentar empreender
essa tarefa. isto , Deus s pode ser dito negati-
vamente, sendo, assim, caracterizado enquanto
negao de qualidades humanas imperfeitas, le-
vadas, ento, a uma forma de perfeio. S se po-
de falar negativamente de Deus, o que Ele no .
So os problemas mesmos de uma razo finita
quando confrontada nomeao de um ser infi-
nito. Neste sentido, Deus visto e falado na
perspectiva da finitude, o que francamente ina-
dequado para designar um ser que foge de todos
os parmetros da existncia humana. Seria uma
soberba inaceitvel de a razo pretender conhecer
a essncia de Deus. O mundo suprassensvel, o
da existncia divina, situa-se para alm do dom-
nio da razo e, portanto, da filosofia. Ou ainda,
no dizer de Guttmann: Deus aparece como a
causa essencialmente incompreensvel das aes
mais perfeitas. (GUTTMANN, 1964, p.202)
Na vida cotidiana, esta na qual est imersa a
razo humana e finita, os nomes normalmente
atribudos a Deus so derivados das aes huma-
nas. Assim, a bondade dita uma virtude no ho-
mem e, a partir da ideia de um ser moralmente
perfeito, ela transposta a esse ser por via da deri-
vao e da negao de suas limitaes. Em conse-
quncia, Deus passa a ser nomeado um ser suma-
mente bondoso, por intermdio de uma operao
intelectual consistente em lhe atribuir uma pro-
priedade das aes humanas ou, mesmo, de relatos
das aes divinas no mundo humano, tal como
aparecem na Tor. Da mesma maneira, poder fazer
uma coisa, humanamente falando, considerado
como uma propriedade positiva da ao dos ho-
mens. Tanto mais fora ter um homem quanto
maior for o seu poder.
Tal caracterizao aparece igualmente no modo
de considerao das aes dos governantes, tidos
por poderosos e situados acima dos homens em
geral. vejam-se as propriedades dos Reis, segundo
a monarquia do Direito Divino, capazes, inclusive,
de, milagrosamente, curarem doenas. (BLOcH,
1983) Ora, a considerao de Deus enquanto oni-
potente segue o mesmo procedimento visto no ca-
so do atributo da bondade, isto , se mesmo os Reis
podem mais do que os homens comuns, Deus se
caracterizaria por poder infinitamente mais, sendo
ele considerado o Criador por excelncia, criador
do mundo e do homem. Ser criador e todo pode-
roso, cuja propriedade de Poder nega as limitaes
dos poderes humanos e, inclusive, monrquicos.
O nico caso que foge regra da nomeao por
via da negao das propriedades humanas tomadas
na perspectiva da finitude o do tetragrama (chem
mephorach): constitudo pelas letras yod, he, waw,
he (MAIMNIDES, 1979, p.146). Trata-se, bem
entendido, de um nome improvisado, que tem,
porm, a virtude de escapar da perspectiva da ho-
monmia e, de modo mais geral, das formas deri-
vadas da experincia humana levadas a um grau
mximo de potencializao e de negao de suas
limitaes prprias da finitude. com o tetragrama,
Maimnides segue a tradio da Tor e, desta ma-
neira, consegue guardar todos os seus segredos, que
permanecem inacessveis razo. O tetragrama fun-
ciona maneira de uma fronteira intransponvel
da transcendncia, diante da qual a razo se curva,
reconhecendo a sua prpria impotncia, embora
seja capaz de explicitar todas as suas virtualidades.
notas1 Maimnides nasceu em Crdoba, Espanha, em 1135, e morreu no Egito, em 1204. Terminou juiz supremo e chefe poltico da comunidade judaica do Egito. Em Hebraico:
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Michn Tor (Repetio da Lei); em rabe: Comentrio da Michna e O Guia dos Perplexos.2 Jos tambm rabino, filho de outro rabino, o Rabino Yehuda.3 Eis por que, escreve Maimnides, chamei este tratado de Daltat al-Hyirn (o guia dos que so indecisos ou esto perdidos).4 A poca de Maimnides seria um exemplo do deplorvel estado cultural e religioso do judasmo, com falta, at mesmo, de rabinos cultos. As comunidades judaicas estavam, em vrios lugares, como Espanha, Marrocos, Imem e Palestina, em franco declnio, alm da situao no estar muito melhor em Bagd.5 Os Rabinos atribuem ao versculo 126, do Salmo 119, o seguinte sentido: quando o momento de agir por Deus, mesmo permitido transgredir a lei. Ou seja, permitido violar alguns preceitos secundrios quando se trata de consolidar o edifcio religioso em geral. (MAIMNIDES, 1979, pp.22-23)6 Segundo observa Maimnides (2012, p.29), sempre necessrio seguir o contexto das palavras.7 A palavra existncia, nestes dois empregos totalmente diferentes, configura um caso de homonmia.8 H toda uma discusso histrica sobre Onkelos, que, segundo a fonte, poderia ser outro nobre romano, Aquilas, cujo nome, vertido para o hebraico, daria Akelos, do qual a palavra Onkelos poderia ser uma corruptela. Ademais, segundo determinadas verses, Adriano, que, alm de amante das artes, era um perseguidor sistemtico dos judeus, no conformado com a converso de seu sobrinho, tentou trs vezes obrig-lo a voltar a Roma. O exrcito incumbido dessas misses fracassou nas trs ocasies, pois a persuaso de Onkelos seria de tal ordem que os soldados envolvidos nessas operaes foram convertidos ao judasmo. Para uma viso embelezada de Adriano, h um livro da escritora francesa, Marguerite Yourcenar, intitulado, precisamente, Memrias de Adriano.9 Maimnides considera Adriano um rei idlatra, que colocou, como seu objetivo, a destruio da Tor, utilizando-se da fora, da violncia e da espada. Epstola do Imen (MAIMNIDES, 2012, p.8).
10 Segundo Cohen (1995, p.160): Desde o incio, a especulao judaica combate o antropomorfismo da Bblica. Maimnides chama o proslito Onkelos de lder deste movimento.11 Maimnides utiliza igualmente o conceito de evidncia na Epstola do Imen (MAIMNIDES, 2012, p.18).12 A palavra anjo seria uma forma de denominao bblica do que Aristteles denomina de Inteligncia separada. Haveria, portanto, uma significao prpria da cincia fsica, de tal maneira que Deus o dominador dos dominadores, isto , dos anjos e o senhor das esferas celestes.13 Trata-se, evidentemente, de uma formulao ecumnica de minha parte, pois, segundo Maimnides, Cristo teria interpretado a Tor visando a aboli-la. Como se sabe, a Tor, para o judasmo, nica e insubstituvel, sendo de origem revelada. Seria, portanto, uma estratgia de converso por argumentao (MAIMNIDES, 2012, p.8-10). Ademais, Moiss o profeta maior dentre os profetas, no podendo ser igualado.14 Joseph Ratzinger/Benot XVI. Jsus de Nazareth. De lentre Jrusalem la Rssurrection. Paris, ditions du Rocher, 2011. O papa, embora no cite Hegel, apresenta a vida de Jesus, em sua morte e ressureio, como constituindo o movimento lgico do Absoluto em sua imanncia.15 xodo 33:13. Bblia Hebraica. So Paulo: Sfer, 2012.16 Pense-se em separaes abruptas, como as de um filsofo como Heidegger, que era um grande pensador e uma pessoa moralmente abjeta. Poder-se-ia pensar, igualmente, em avanos cientficos cujo desenvolvimento independente de questes ticas podem levar a impasses civilizatrios, pondo em questo aquilo que se considera como sendo o humano. Tratar-se-ia daquilo que Maimnides (1993, p.86) chama de sbio para o mal, no Comentrio da Mishn.17 Santo Anselmo, 1988; Rosenfield, 1996, pp.57-104.18 Santo Anselmo (1988), Prembulo.19 Rosenfield (1996), captulo sobre Descartes.
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