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  1. 1. PIAGET, VYGOTSKY, WALLON Teorias Psicogenticas em Discusso Yves de La Taille Marta Kohl de Oliveira Heloysa Dantas Escrito por professores da Universidade de So Paulo, especialistas no pensamento de Piaget, Vygotsky e Wallon, este livro traz um dilogo entre os trs principais tericos da psicologia que buscam compreender o funcionamento psicolgico luz de sua gnese e evoluo. Os textos tratam das relaes entre fatores biolgicos e sociais no desenvolvimento psicolgico e entre aspectos cognitivos e afetivos da psicologia humana. Permitem assim, ao leitor, realizar sua prpria sntese das vrias abordagens em psicologia gentica, em benefcio tanto do aprofundamento terico quanto do aperfeioamento da prtica pedaggica. SUMRIO Apresentao ... 7 Parte I - Fatores Biolgicos e Sociais O lugar da interao social na concepo de Piaget ... 11 Yves de La Taille Vygotsky e o processo de formao de conceitos ....... 23 Marta Kohl de Oliveira Do ato motor ao ato mental: a gnese da inteligncia segundo Wallon ... 35 Heloysa Dantas Parte II - Afetividade e cognio Desenvolvimento do juzo moral e afetividade na teoria de Jean Piaget ... 47 Yves de La Taille O problema da afetividade em Vygotsky ... 75 Marta Kohl de Oliveira A afetividade e a construo do sujeito na psicogentica de Wallon ... 85 Heloysa Dantas Apndice - Trs perguntas a vygotskianos, wallonianos e
  2. 2. piagetianos ... 101 Yves de La Taille, Heloysa Dantas, Marta Kohl de Oliveira p.7 Apresentao Este livro resultado de dois anos consecutivos (1989-1990) de participao nas Reunies Anuais da Sociedade de Psicologia de Ribeiro Preto, agora Sociedade Brasileira de Psicologia. Somos devedores de Maria Clotilde Rossetti Ferreira, professora titular da Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras da USP de Ribeiro Preto, pela idia de publicar o contedo dos cursos e mesas-redondas que realizamos nessas reunies. A receptividade que os temas apresentados, encontraram deve ser interpretada como um indicador seguro da necessidade que havia de abord-los, tanto no plano da teoria, quanto no do embasamento da prxis pedaggica. Ela sinaliza tambm um processo de filtragem, que vem conferindo psicogentica um lugar de destaque cada vez maior. Estudar as funes psquicas a luz de sua gnese e evoluo tem dado frutos muito ricos: aqueles que decorreram da teoria piagetiana, que tem se mostrado capaz de absorver as concepes cognitivistas no genticas, o demonstram saciedade. Seu avano, no entanto, requer faz-la entrar em dilogo com interlocutores de peso: dai a escolha de Vygotsky e Wallon, que vm cumprindo esta funo ativadora e dinamognica. O confronto, em profundidade, desses trs pontos de vista pode colocar o investigador na chamada "zona crtica" da cincia psicolgica, nos seus confins, a regio onde se travam as polmicas e se geram os avanos. Neste sentido, o interesse pelo dilogo entre eles representa a utilizao de uma das duas formas possveis de progresso em cincia, aquela que alterna seus efeitos com os que procedem da confrontao com os dados. Confrontam-se teorias com fatos, ou teorias com teorias. Essa ltima talvez seja a nica forma possvel de evoluo para um sistema da solidez do piagetiano, que corre o risco de imobilizar-se, vtima de sua prpria hegemonia. Esse papel de confrontao terica tem sido cumprido, nos ltimos anos, pelas idias de Vygotsky, em sua instigante abordagem sobre a dimenso social no desenvolvimento psicolgico. Um outro tiro de necessidade presidiu a escolha dos temas. Os educadores pedem que as teorias psicolgicas expliquem o funcionamento da inteligncia e da afetividade: mas disso elas no tm dado conta. No cenrio atual, a psicanlise e a psicogentica construtivista tm dividido essa tarefa, o que tornou aquelas dimenses paralelas e exteriores. A demanda reflete ento o desejo -- muito justificado -- de pedir psicogentica, aquela mais prxima da teoria acadmica e da prxis pedaggica, que d soluo a este impasse. Dai o acerto de incluir a perspectiva walloniana, que tem uma contribuio especifica para esse tema. Em suma, a escolha dos autores reflete a necessidade de fazer amadurecer, pelo confronto, a psicologia gentica; a seleo dos
  3. 3. assuntos, a de integrar, em benefcio tanto da teoria quanto da prtica, o estudo dos dois grandes eixos da pessoa. Nossa contribuio foi a de aproxim-los; ao leitor a tarefa de instaurar o dialogo entre eles. p.9 PARTE I Fatores biolgicos e sociais p.10 (em branco) p.11 O Lugar da Interao Social na Concepo de Jean Piaget Yves de La Taille Em seu livro, _Biologie _et _Connaissance, Piaget escreveu que "a inteligncia humana somente se desenvolve no indivduo em funo de interaes sociais que so, em geral, demasiadamente negligenciadas."1 (1. Piaget, J. Biologie et Connaissance. Paris, 1967, p.314 (em portugus, Biologia e Conhecimento: ensaio sobre as relaes entre as regulaes orgnicas e os processos cognoscitivos. Petrpolis, Vozes, 1973) Tal afirmao, num livro cujo ttulo resume o tema central da obra do autor, talvez cause estranheza em alguns leitores, pois, como e notrio, Piaget costuma ser criticado justamente por "desprezar" o papel dos fatores sociais no desenvolvimento humano. Todavia, nada seria mais injusto do que acreditar que tal desprezo realmente existiu. O mximo que se pode dizer que, de fato, Piaget no se deteve longamente sobre a questo, contentando-se em situar as influncias e determinaes da interao social sobre o desenvolvimento da inteligncia. Em compensao, as poucas balizas que colocou nesta rea so de suma importncia, no somente para sua teoria, como tambm para o tema. Para introduzir a questo, analisemos a seguinte afirmao: o homem um ser essencialmente social, impossvel, portanto, de ser pensado fora do contexto da sociedade em que nasce e vive. Em outras palavras, o homem no social, o homem considerado como molcula isolada do resto de seus semelhantes, o homem visto como independente das influncias dos diversos grupos que freqenta, o homem visto como imune aos legados da histria e da tradio, este homem simplesmente no existe. Tal postulado segundo o qual o homem , como dizia Wallon, _geneticamente _social vale para a teoria de Piaget. Escreve ele: Se tomarmos a noo do social nos diferentes sentidos do termo, isto , englobando tanto as tendncias hereditrias que nos levam vida em comum e imitao, com as relaes "exteriores" ( no sentido de Durkheim) dos indivduos entre eles no se pode negar, que desde o nascimento, o desenvolvimento intelectual , simultaneamente, obra da sociedade e do indivduo.2 (2. Piaget, J. tudes Sociologiques. Genebra - Paris, Droz, 1977, p.242 ( em Portugus, Estudos Sociolgicos. Rio de Janeiro, Forense, 1973).
  4. 4. p.12 Todavia, como escreve Piaget em seguida, tal postulado demasiadamente amplo e, por conseguinte, vago. Uma interpretao possvel seria afirmar que o porvir da razo individual erguer-se acima desta base social comum, de lhe ser superior. Outra seria pensar que, no seu desenvolvimento, a razo incessantemente esculpida pelas diversas determinaes sociais. Em suma, afirmar que o homem ser social ainda no significa optar por uma teoria que explique como este "social" interfere no desenvolvimento e nas capacidades da inteligncia humana. O equacionamento que Piaget d a essa questo passa por dois momentos. O primeiro: definir de forma mais precisa o que se deve entender por ser social". O segundo: verificar como os fatores sociais comparecem para explicar o desenvolvimento intelectual. O HOMEM COMO SER SOCIAL Escreve Piaget: O homem normal no social da mesma maneira aos seis meses ou aos vinte anos de idade, e, por conseguinte, sua individualidade no pode ser da mesma qualidade nesses dois diferentes nveis.3 (3. Piaget, J. tudes Sociologiques. Genebra - Paris, Droz, 1977, p. 242 ( em Portugus, Estudos Sociolgicos. Rio de Janeiro, Forense, 1973). Para melhor compreender esta afirmao, vamos ver como Piaget define em que sentido um adulto _ _social. Seu critrio a qualidade da "troca intelectual" entre dois indivduos _a e _a'. O grau timo de socializao se d quando tal troca atinge o equilbrio. Uma equao permite descrever tal equilbrio: (Ra = Sa') + (Sa' = Ta') + (Ta' = Va) = (Ra = Va) onde: Ra = ao de _a exercida sobre _a' (Ra', a recproca); Sa' = satisfao (positiva, negativa ou nula) sentida por _a' em funo da ao de _a (Sa, a recproca); Ta' = dvida de _a' em relao a _a em funo da ao precedente Ra (Ta, a recproca); Va = valor virtual, para _a, correspondendo divida Ta'. p.13 Piaget explica como aplicar essa equao para as trocas intelectuais: 1) O indivduo _a enuncia uma proposio Ra (verdadeira ou falsa em graus diversos); 2) O interlocutor _a' est de acordo (ou no, em graus diversos), este acordo designado por S; 3) o acordo (ou o desacordo) de _a' o liga para a seqncia das
  5. 5. trocas entre _a' e _a, donde Ta'; 4) esse engajamento de _a' confere proposio Ra um valor Va (positivo ou negativo) no que tange s trocas futuras.4 (4. Piaget, J. tudes Sociologiques. Genebra - Paris, Droz, 1977, p. 160 ( em Portugus, Estudos Sociolgicos. Rio de Janeiro, Forense, 1973). Imaginemos este pequeno dilogo entre _a e _a': _a - Na minha opinio, a obra de Freud a mais importante em Psicologia; _a' - Admiro que seja importante; todavia no diria que a mais importante de todas, porque no aborda todas as facetas do comportamento humano. _a - Mas eu no estava pensando nesse aspecto quando falei da Psicanlise; estava pensando apenas no fato de que a obra de Freud reformulou totalmente as concepes de homem que antes eram dominantes. _a' - Deste ponto de vista, faz sentido. Mas acho que no devemos esquecer que a importncia de uma teoria tambm depende de sua abrangncia e ... Vejamos agora o que significam as igualdades da equao elaborada por Piaget, partindo da proposio de _a: Ra =Sa': poderia significar que os dois interlocutores esto de acordo sobre uma mesma proposio, enunciada por _a. No bem o caso no exemplo que demos. Todavia, a igualdade Ra = Sa' permanece vlida porque os dois chegaram a uma verdade comum que justifica seus diferentes pontos de vista: cada um entende que o outro entende a palavra _importante de modo diferente, e tambm entende que definio atribuda pelo outro. Vale dizer que essa diferena de ponto de vista no impede a comunicao intelectual, pois cada um _se _situa em relao ao outro, e a discusso pode acontecer e prosseguir. Sa' = Ta': o interlocutor _a' se sente obrigado pela proposio que reconheceu como vlida. Ou seja, ele no vai se contradizer em seguida. Este sentimento de obrigao se verifica quando _a' diz que o que afirmou seu interlocutor _faz _sentido, mas que no se deve esquecer que a irnportncia de uma teoria _tambm depende de sua abrangncia. O emprego de _mas, de _tambm mostra que _a' considera o fato de ter levado em conta (ou seja, conservado) a definio de _importante dada por _a. Da equivalncia Sa' = Ta' decorre outra Ta' = Ra', ou seja, a proposio de _a'(Ra') o produto desta dvida Ta'. p.14 Ta' = Va: vimos que, por Ta', _a' se engajou a reconhecer como vlida, de um certo ponto de vista, a proposio de _a; vale dizer que _a lhe atribui um valor (Va, positivo embora relativizado no nosso exemplo) que dever se manter no resto da conversa (ou ento, se houver mudana de opinio por parte de _a', este dever claramente atribuir um valor
  6. 6. negativo a proposio inicial de _a). Pode-se fazer a mesma equao partindo de _a' (Ra'), ou seja, pesando pela reciprocidade. Em sntese, escreve Piaget: No total, o equilbrio de uma troca de pensamentos supe 1) um sistema comum de signos e de definies, 2) uma conservao das proposies vlidas obrigando aquele que as reconhe como tal e 3) uma reciprocidade de pensamento entre os interloculores.5 (5. Idem, ibidem, p.162) Para que este equilbrio ocorra, so necessrios interlocutores que possam cumprir essas regras e um determinado tipo de relao social em que elas sejam possveis. Veremos adiante qual tipo de relao social essa. Por enquanto, continuemos a pensar a definio de "ser social". Para Piaget, o "ser social" de mais alto nvel justamente aquele que consegue relacionar-se com seus semelhantes da forma _equilibrada. Como a equao elaborada por Piaget um _agrupamento, os interlocutores devero tambm, cada um de seu lado, ser capazes de pensar seguindo a mesma operao. Como o _agrupamento a formalizao dada por Piaget para descrever o pensamento operatrio, decorre que tal equilbrio das relaes sociais somente e possvel entre sujeitos que tenham atingido este estgio de desenvolvimento. Dito de outra forma, a maneira de _ser _social de um adolescente uma, porque capaz de participar de relaes como aquela descrita pela equao, e a maneira de _ser _social de uma criana de cinco anos outra, justamente porque ainda no capaz de participar de relaes sociais que expressam um equilbrio de trocas intelectuais. V-se portanto que -- para Piaget -- no se trata de traar uma fronteira entre o social e o no social, mas sim de, a partir de uma caracterstica importante das relaes possveis entre pessoas de nvel operatrio -- que representa o grau mnimo de socializao do pensamento --, comparar graus anteriores de socializao. "As principais etapas do desenvolvimento das operaes lgicas, escreve ele, correspondem, de maneira relativamente simples, estgios correlativos do desenvolvimento social (...)"6 (6. Idem ibidem, p.155) p.15 Vamos ver essa correspondncia, comeando pela criana no estgio sensrio-motor. Nesse estgio, Piaget considera abusivo falar em real socializao da inteligncia. Essa essencialmente individual, pouco ou nada devendo s trocas sociais. Em compensao, a partir da aquisio da linguagem, inicia-se uma socializao efetiva da inteligncia. Contudo, durante a fase pr-operatria, algumas caractersticas ainda limitam a possibilidade de a criana estabelecer trocas intelectuais equilibradas. Falta-lhe, em primeiro lugar, a capacidade de aderir a uma escala comum de referncia, condio necessria ao verdadeiro dilogo. Vendo,
  7. 7. por exemplo, crianas de 4 anos conversando entre elas, verifica-se que cada uma pode emprestar definies diferentes s mesmas palavras, e que no procuram avaliar essa diferena. Verifica-se a mesma coisa no jogo de regras: cada uma segue as suas prprias, sem parecer sentir necessidade de regular as diferentes condutas a partir de uma referncia nica. Em segundo lugar, a criana pr-operatria no conserva necessariamente, durante uma conversa, as definies que ela mesma deu e as afirmaes que ela mesma fez. Esse fato se verifica facilmente quando se entrevistam crianas de at 8 anos em mdia sobre um tema qualquer. Elas afirmam certas idias, e, em seguida, sem nada comentar, afirmam o contrrio, no parecendo achar que tais contradies representam um fator complicador para o dilogo. Escreve Piaget: "Tudo se passa como se faltasse uma regulao essencial ao raciocnio: aquela que obriga o indivduo a levar em conta o que admitiu ou disse, e a conservar esse valor nas construes ulteriores".7 (7. Idem, ibidem, p.163) Finalmente, a criana pequena tem extrema dificuldade em se colocar no ponto de vista do outro, fato que a impede de estabelecer relaes de reciprocidade. As trs caractersticas juntas representam o que Piaget chamou de _pensamento _egocntrico. Tal pensamento, como seu nome indica, est "centrado" no "eu". Exemplos clssicos podem nos ajudar a relembrar esse fenmeno psquico. Pede-se a uma criana, colocada de um lado de uma mesa sobre a qual esto diversos objetos, que desenhe ou descreva como uma outra pessoa, sentada do lado oposto, veria os mesmos objetos. As crianas do estgio pr-operatrio tm extrema dificuldade em realizar essa tarefa -- tendem a desenhar o que elas mesmas vem -- porque, justamente, isto exige que o sujeito se descentre, ou seja, se coloque do ponto de vista (espacial, no caso) de outrem. Outro exemplo: uma criana pequena afirma que _a _lua _a _segue _e _segue _as _pessoas _de _modo _geral -- pois esta a iluso ptica normal -- e quando lhe perguntam como fica quando duas pessoas seguem direes opostas, no sabe responder mas no abdica da afirmao inicial. p.16 Um ltimo exemplo: solicitadas a descobrirem qual o fator que determina a maior freqncia de oscilaes de um pndulo (tamanho da corda, peso na extremidade, impulso etc.) crianas de at 7 anos sistematicamente costumam atribuir esse fenmeno fora com a qual impulsionam o pndulo. Esses exemplos ilustram a tendncia de crianas pequenas de elegerem o ponto de vista prprio como absoluto. Todavia, o conceito de egocentrismo quer dizer mais. Pensssemos apenas nesse privilgio dado ao ponto de vista prprio, chegaramos errnea concluso de que -- na pequena infncia -- h uma hipertrofia do "eu" e uma autonomia da decorrente. Dito de outra forma, chegaramos concluso de que a criana pequena est plenamente consciente de seu "eu", consciente das fronteiras que a separam do meio social e fsico em que vive. Mas, pensar assim seria esquecer a dialtica que preside a construo do
  8. 8. "eu". Na verdade, a esta centralizao corresponde uma ignorncia a respeito do prprio "eu" . o que se verifica quando, por exemplo, crianas pequenas mostram-se influenciveis pelas idias dos adultos, e as repetem, algumas acreditando piamente que elas mesmas as criaram. Essa falta de autonomia tambm se faz presente quando crianas de 6, 7 anos acreditar que as regras morais so imutveis como leis fsicas e que, mesmo em se tratando de regras de jogos infantis (como bola de gude), nenhuma modificao permitida. Em suma, egocentrismo significa tambm que a criana ainda no tem domnio de seu "eu" e que, longe de ser autnoma, ainda heternoma nos seus modos de pensar e agir. Basta lembrar que, para Piaget e muitos outros, as noes do Eu e do Outro so construdas conjuntamente, num longo processo de diferenciao. E justamente esta relativa indiferenciao que determina o tipo de _ser _social que uma criana ainda no estgio pr-operatrio. A qualidade de suas trocas intelectuais com outrem ainda define um grau de socializao precrio, onde ela se encontra ainda isolada dos outros, no por estar plenamente consciente de si e fechada em si mesma por alguma deciso autnoma, mas por no conseguir usufruir da riqueza que essas trocas lhe traro mais tarde. A partir do estgio operatrio, as trocas intelectuais comearo a se efetuar como ilustrado pela equao anteriormente descrita. E, paralelamente, a criana alcanar o que Piaget denomina de _personalidade. Escreve ele: A _personalidade no o "eu" enquanto diferente dos outros "eus" e refratrio a socializao, mas o indivduo se submetendo voluntariamente s normas de reciprocidade e de universalidade. Como tal, longe de estar margem da sociedade, a personalidade constitui o produto mais refinado da socializao. Com efeito, na medida em que o "eu" renuncia a si mesmo para inserir seu ponto de vista prprio entre os outros e se curvar assim as regras da reciprocidade que o indivduo torna-se personalidade (...) Em oposio ao egocentrismo inicial, o qual consiste em tomar o ponto de vistas prprio como absoluto, por falta de poder perceber seu carter particular, a personalidade consiste em tomar conscincia desta relatividade da perspectiva individual e a coloc-la em relao com o conjunto das outras perspectivas possveis: a personalidade , pois, uma coordenao da individualidade com o universal.8 (8. Idem, ibidem, p.245) p.17 O PROCESSO DE SOCIALIZAO Acabamos de ver como Piaget definiu diversos graus de socializao, partindo do "grau zero" (recm-nascido) para o grau mximo representado pelo conceito de personalidade. Vimos que tal evoluo passa por diferenas de qualidade das trocas intelectuais, podendo o indivduo mais evoludo usufruir plenamente tanto de sua autonomia quanto dos aportes dos outros. Assim, longe de significar isolamento e impermeabilidade s idias presentes na cultura, autonomia significa ser
  9. 9. capaz de se situar consciente e competentemente na rede dos diversos pontos de vista e conflitos presentes numa sociedade. Vimos, finalmente, que as diversas etapas que definem qualidades diferenciadas do "ser social" acompanham as etapas do desenvolvimento cognitivo. Cabe perguntar agora que influncia tm as interaes sociais sobre esse desenvolvimento. Relembremos, em poucas palavras, o caminho deste desenvolvimento. Em seguida, veremos como esse se articula com as interaes sociais. Como sabido, a lgica representa para Piaget a forma final do equilbrio das aes. Ela "um sistema de operaes, isto , de aes que se tornaram reversveis e passveis de serem compostas entre si".9 (9. Idem, ibidem, p.150) As razes desta "marcha para o equilbrio" encontram-se no perodo sensrio-motor, durante o qual a criana constri esquemas de ao que constituem uma espcie de lgica das aes e das percepes. Essa primeira organizao da inteligncia sensrio-motora anuncia a ulterior, na qual as aes sero interiorizadas -- ou seja, efetuadas mentalmente. De dois a sete anos -- perodo pr-operatrio -- embora a inteligncia j seja capaz de empregar smbolos e signos, ainda lhe falta a reversibilidade, ou seja, a capacidade de pensar simultaneamente o estado inicial e o estado final de alguma transformao efetuada sobre os objetos (por exemplo, a ausncia de conservao da quantidade quando se transvaza o contedo de um copo A para outro B, de dimetro menor). Tal reversibilidade ser construda nos perodos operatrio concreto e formal. No primeiro, a criana raciocina de forma coerente, contanto que possa manipular os objetos ou imaginar-se nessa situao de manipulao; no segundo, j capaz de raciocinar sobre simples hipteses. p.18 Para Piaget, essa "marcha para o equilbrio" tem bases biolgicas no sentido de que prprio de todo sistema vivo procurar o equilbrio que lhe permite a adaptao; e tambm no sentido em que existem processos de auto-regulao que garantem a conquista deste equilbrio. Nesse processo de desenvolvimento so essenciais as aes do sujeito sobre os objetos, j que sobre os ltimos que se vo construir conhecimentos, e que atravs de uma tomada de conscincia da organizao das primeiras (abstrao reflexiva) que novas estruturas mentais vo sendo construdas. Mas, ento, se tudo parece se resumir relao sujeito-objeto, que papel tem os fatores interindividuais no desenvolvimento cognitivo? Neste ponto, devemos nos perguntar para que servem as operaes mentais. Sem dvida alguma, elas cumprem o papel de permitir um conhecimento objetivo dos diversos elementos presentes na natureza e na cultura. Dito de outra forma, permitem inteligncia chegar coerncia, objetividade, mas tanto a busca do conhecimento como da coerncia no representam necessidades quase poderiam atribuir a um indivduo isolado: so, antes de mais nada, necessidades decorrentes da vida social. De fato, cada um de nos precisa construir conhecimentos em resposta a uma derramada social de algum tipo, e tambm precisa comunicar seu pensamento, cuja correo e coerncia sero avaliadas pelos outros.
  10. 10. Portanto, embora existam leis funcionais de equilbrio irredutveis a padres lingsticos interiorizados, a busca desse equilbrio -- no plano do pensamento -- permaneceria inexplicvel se no fossem evocadas as relaes interindividuais. Pode-se afirmar, porm, que _todo _tipo _de _relao _interindividual _pede, _por _parte _de _seus _membros, _um _pensamento _coerente _e _objetivo? Responder afirmativamente a essa questo significaria acreditar que as relaes sociais sempre favorecem o desenvolvimento! Ora, Piaget no compartilha desse "otimismo social". Para ele, necessrio fazer uma clara distino entre dois tipos de relao social: a _coao e a _cooperao. "Chamamos de _coao _social, escreve Piaget, toda relao entre dois ou _n indivduos na qual intervm um elemento de autoridade ou de prestgio".10 (10. Idem, ibidem, p.225) Vamos a dois exemplos. Um professor afirma determinada proposio, e seu aluno, que nele v um homem de prestgio -- seja pelo simples fato de ser professor, seja pelo fato de ser professor de uma academia famosa --, acredita "piamente" na proposio afirmada. Vale dizer que o aluno em questo toma como verdade o que lhe foi dito, no porque tenha sido convencido por provas e argumentos, mas porque a "fonte" da afirmao vista por ele como digna de confiana ou como lugar de poder. ao que a linguagem popular se p.19 refere com a expresso "_falou _t _falado"(em geral empregada para se referir aos mandos ou opinies de alguma autoridade). Outro exemplo: todo um grupo acredita que a _masturbao _faz _mal _a _sade, porque tal opinio foi e veiculada pela tradio. Aqui, no se trata mais de uma autoridade ou prestgio individuais: mesmo assim, reencontramos esses termos porque tradio e freqentemente atribuda autoridade (_sempre _foi _assim) e prestgio (sabedoria _dos _mais _velhos). Verifica-se que o indivduo coagido tem pouca participao racional na produo, conservao e divulgao das idias. No caso da produo, dela simplesmente no participa, contentando-se em aceitar o produto final como vlido. Uma vez aceito esse produto, o indivduo coagido o conserva, limitando se a repetir o que lhe impuseram. E desta mesma forma que ele acaba por se tornar um divulgador dessas idias: ensina-as a outros da mesma forma coercitiva como as recebeu. Em uma palavra: ele passa a impor o que -- num primeiro momento -- lhe impuseram. Da decorre que a coao corresponde a um nvel baixo de socializao no sentido explicitado acima. Em primeiro lugar, no h verdadeiro dilogo, uma vez que um fala e o outro limita-se a ouvir e a memorizar. O indivduo coagido deve atribuir valor s proposies daquele reconhecido como prestigioso, _mas _a _recproca _no _ _verdadeira. Em segundo lugar, nenhum dos participantes do dilogo necessita se descentrar: o coagido, porque lhe basta aceitar as "verdades" impostas -- portanto, sem fazer o esforo de verificar a partir de que perspectiva foram elaboradas (o que o leva freqentemente, alis, a acabar distorcendo o que lhe foi imposto por falta de real compreenso), e a "autoridade", porque nem precisa ouvir o outro, pois no lhe foi atribuda a tarefa de
  11. 11. elaborao racional e de crtica. No somente a coao leva ao empobrecimento das relaes sociais, fazendo com que na prtica tanto o coagido quanto o autor da coao permaneam _isolados, cada um no seu respectivo ponto de vista, mas tambm ela representa um freio ao desenvolvimento da inteligncia. De fato, sendo a Razo um processo ativo de busca e produo da verdade (deter pura e simplesmente uma verdade, mas sem poder prov-la ou demonstr-la, ainda no ser racional), a relao de coao fecha toda e qualquer possibilidade para que tal processo possa acontecer. Logo, refora o egocentrismo, impossibilitando o desenvolvimento das operaes mentais, uma vez que esse desenvolvimento somente ocorre se representar uma necessidade sentida pelo sujeito. As relaes de _cooperao representam justamente aquelas que vo pedir e possibilitar esse desenvolvimento. Como se indica, a cooperao pressupe a coordenao das operaes de dois ou mais sujeitos. Agora, no h mais assimetria, imposio, repetio, crena etc. H discusso, troca de pontos de vista, controle mtuo dos argumentos e das provas. p.20 V-se que a cooperao o tipo de relao interindividual que representa o mais alto nvel de socializao. E tambm o tipo de relao interindividual que promove o desenvolvimento. Escreve Piaget: Quando eu discuto e procuro sinceramente compreender outrem, comprometo-me no somente a no me contradizer, a no jogar com as palavras etc., mas ainda comprometo-me a entrar numa srie indefinida de pontos de vista que no so os meus. A cooperao no , portanto, um sistema de equilbrio esttico, como ocorre no regime da coao. um equilbrio mvel. Os compromissos que assumo em relao coao podem ser penosos, mas sei aonde me levam. Aqueles que assumo em relao cooperao me levam no sei aonde. Eles so formais e no materiais.11 (11. Idem, ibidem, p.237) Em resumo, a cooperao um _mtodo. Ela possibilidade de se chegar a verdades. A coao s possibilita a permanncia de crenas e dogmas. claro que as relaes de coao e de cooperao ocorrem em qualquer sociedade, notadamente entre adultos. Mas Piaget emprega essa distino sobretudo em relao ao desenvolvimento das crianas. A coao representa o tipo de relao dominante na vida da criana pequena. Nem poderia ser diferente, dada a assimetria da relao pai/filho ou adulto/criana. Portanto, a coao representa uma etapa obrigatria e necessria da socializao da criana. Todavia, se somente houvesse coao, no se compreenderia o desenvolvimento das operaes mentais. A cooperao necessria a esse desenvolvimento tem seu incio, segundo Piaget, nas relaes entre crianas, da a simpatia que ele sempre teve pelos trabalhos em grupo como alternativa pedaggica. Mas por que as relaes entre crianas representam o ponto de partida da cooperao? Ora, simplesmente pelo fato de que no h hierarquias
  12. 12. preestabelecidas entre as crianas, que se concebem iguais umas as outras. E se uma criana de 7 anos tende a acreditar em tudo que um adulto diz, em relao a um colega de classe ser mais exigente quanto a "provas" e "demonstraes". Escreve Piaget: " a procura da reciprocidade entre os pontos de vista individuais que permite inteligncia construir este instrumento lgico que comanda os outros, e que "lgica das relaes"12. (12. Idem, ibidem, p.238) E, naturalmente, uma vez "iniciada" a cooperao pela sua convivncia com iguais, a criana tender a exigir cada vez mais e de todos que se relacionem com ela desta forma -- contanto, evidentemente, que na sociedade em que vive sejam valorizadas as noes de igualdade e respeito mtuo. Para finalizar? acreditamos valer a pena fazer a apreciao que se segue. p.21 interessante notar uma peculiaridade da teoria de Piaget no que se refere s influncias da interao social no desenvolvimento cognitivo. Em geral, quando se pensa em tais influncias, aborda-se a questo da cultura determinadas ideologias, religies, classes sociais, sistema econmico, presena ou ausncia de escolarizao, caractersticas da linguagem, riqueza ou pobreza do meio etc. Piaget pouco se remete a fatores dessa ordem, o que certamente limita sua teoria. Como vimos, a alternativa determinante por ele assinalada aquela que ope a coao cooperao. Ora, isso significa que Piaget pensa o social e suas influncias sobre os indivduos pela perspectiva da tica! De fato, ser coercitivo ou ser cooperativo, via de regra, depende de uma atitude moral. O indivduo _deve _querer _ser _cooperativo. Podemos perfeitamente conceber que algum com todas as condies intelectuais para ser cooperativo resolva no o ser porque o poder da coao lhe interessa de alguma forma. Vale dizer que o desenvolvimento cognitivo condio necessria ao pleno exerccio da cooperao, mas no condio suficiente, pois uma postura tica dever completar o quadro. Desta dimenso tica, que acabamos de avaliar do ponto de vista individual, camos imediatamente no campo poltico: o regime, as instituies devem valorizar a igualdade e a democracia. Em suma, a teoria de Piaget uma grande defesa do ideal democrtico. Mas trata-se de uma defesa de carter cientfico, uma vez que ele procura demonstrar que a democracia condio necessria ao desenvolvimento e construo da personalidade. O resgate da dimenso tica e poltica para a elaborao de uma teoria do desenvolvimento cognitivo do homem representa certamente uma grande riqueza para as Cincias Humanas. Representa a busca de integrar o _homo _sapiens ao _animal _poltico. Freqentemente vemos teorias sobre cognio limitarem-se a pensar a inteligncia somente sob seus aspectos lgicos e biolgicos, sem lembrar seu carter social. Mas tambm, quando pensamos o social, freqentemente limitamo-nos a analisar processos de educao escolar ou de aquisio de linguagem. Ora, a dimenso tica est sempre presente, uma vez que qualquer relao interindividual pressupe regras. O mrito de Piaget foi o de integrar
  13. 13. essas regras ao prprio processo de desenvolvimento, embora sua teoria corra o risco de pretender demonstrar o que era, na verdade, pressuposto: o valor tico da igualdade, da liberdade, da democracia. Em uma palavra, o valor dos direitos humanos. p.22 (em branco) p.23 Vygotsky e o Processo de Formao de Conceitos Marta Kohl de Oliveira Lev S. Vygotsky (1896-1934) um autor que tem despertado grande interesse nas reas de psicologia e educao no Brasil nos ltimos anos, mas cuja obra tem sido relativamente pouco divulgada, seja por meio de tradues de seus prprios trabalhos, seja atravs de textos de outros autores. O objetivo principal do presente texto, no mbito desta coletnea, o de discutir a concepo de Vygotsky a respeito dos fatores biolgicos e sociais no desenvolvimento psicolgico. Isso realizado na primeira parte do artigo. Buscando ir alm de suas proposies mais gerais sobre essas questes, no entanto, j aprofundadas em algumas das poucas publicaes nacionais sobre esse autor (cf. especialmente Oliveira, 1993), optamos por abordar, na segunda parte, um tpico mais especfico explorado por Vygotsky e no muito freqentemente associado a seu nome entre nos: a questo da formao de conceitos.1 (1. interessante observar que nos Estados Unidos, onde as idias de Vygotsky tambm esto sendo muito discutidas atualmente, a questo de formao de conceitos um dos tpicos mais difundidos de sua teoria (Van der Veer e Valsiner, 1991; Weinstein, 1990). No h uma razo clara para essa relativa ausncia de interesse, no Brasil, no que se refere obra de Vygotsky, a respeito de um tpico tradicional dentro da Psicologia e de certa forma retomado na literatura contempornea, principalmente a partir de sedimentao da cincia cognitiva como rea de pesquisa.) Vygotsky dedica dois longos captulos de seu livro _Pensamento _e _Linguagem a essa questo, que podemos considerar como um tema de pesquisa que estrutura e concretiza vrias de suas idias mais tericas, sintetizando suas principais concepes sobre o processo de desenvolvimento. As proposies de Vygotsky acerca do processo de formao de conceitos nos remetem discusso das relaes entre pensamento e linguagem, questo da mediao cultural no processo de construo de significados por parte do indivduo, ao processo de internalizao e ao papel da escola na transmisso de conhecimentos de natureza diferente daqueles aprendidos na vida cotidiana. p.24 SUBSTRATO BIOLGICO E CONSTRUO CULTURAL NO DESENVOLVIMENTO HUMANO
  14. 14. Falar da perspectiva de Vygotsky falar da dimenso social do desenvolvimento humano. Interessado fundamentalmente no que chamamos de funes psicolgicas superiores, e tendo produzido seus trabalhos dentro das concepes materialistas predominantes na Unio Sovitica ps-revoluo de 1917, Vygotsky tem como um de seus pressupostos bsicos a idia de que o ser humano constitui-se enquanto tal na sua relao com o outro social. A cultura torna-se parte da natureza humana num processo histrico que, ao longo do desenvolvimento da espcie e do indivduo, molda o funcionamento psicolgico do homem. Esse terico multidisciplinar, contudo, que chegou a estudar medicina depois de formado em direito e literatura, deu grande importncia ao substrato material do desenvolvimento psicolgico, especialmente o crebro, tendo realizado estudos sobre leses cerebrais, perturbaes da linguagem e organizao de funes psicolgicas em condies normais e patolgicas. Suas proposies contemplam, assim, a dupla natureza do ser humano, membro de uma espcie biolgica que s se desenvolve no interior de um grupo cultural. As propostas de Vygotsky sobre a base biolgica do funcionamento psicolgico foram aprofundadas e estruturadas sob forma de uma teoria neuropsicolgica por A. R. Luria, seu discpulo e colaborador. Luria trabalhou durante mais de quarenta anos com diversos tipos de dados empricos, que subsidiaram a produo de uma vasta obra sobre os mecanismos cerebrais subjacentes aos processos mentais. principalmente atravs dessa obra que podemos tomar conhecimento das concepes de Vygotsky sobre a base biolgica do desenvolvimento psicolgico. As concepes de Vygotsky sobre o funcionamento do crebro humano fundamentam-se em sua idia de que as funes psicolgicas superiores so construdas ao longo da histria social do homem. Na sua relao com o mundo, mediada pelos instrumentos e smbolos desenvolvidos culturalmente, o ser humano cria as formas de ao que o distinguem de outros animais. Sendo assim, a compreenso do desenvolvimento psicolgico no pode ser buscada em propriedades naturais do sistema nervoso. Vygotsky rejeitou, portanto, a idia de funes mentais fixas e imutveis, trabalhando com a noo do crebro como um sistema aberto, de grande plasticidade, cuja estrutura e modos de funcionamento so moldados ao longo da histria da espcie e do desenvolvimento individual. Dada as imensas possibilidades de realizao humana, essa plasticidade essencial: o crebro pode servir a novas funes, criadas na histria do homem, sem que sejam necessrias transformaes morfolgicas no rgo fsico. p.25 "Uma idia fundamental para que compreenda essa concepo sobre o funcionamento cerebral e a idia de _sistema, _funcional. As funes mentais no podem ser localizadas em pontos especficos do crebro ou em grupos isolados de clulas. Elas so, isso sim, organizadas a partir da ao de diversos elementos que atuam de forma articulada, cada um desempenhando um papel naquilo que se constituiu como um sistema funcional complexo. Esses elementos podem estar localizados em reas
  15. 15. diferentes do crebro, freqentemente distantes umas das outras. Alm dessa estrutura complexa, os sistemas funcionais podem utilizar componentes diferentes, dependendo da situao. Numa determinada tarefa (por exemplo, a respirao) um certo resultado final (no caso da respirao, o suprimento do oxignio aos pulmes e sua posterior absoro pela corrente sangnea) pode ser atingido de diversas maneiras alternativas. Se o principal grupo de msculos que funciona durante a respirao pra de atuar, os msculos intercostais so chamados a trabalhar, mas se por alguma razo eles estiverem prejudicados, os msculos da laringe so mobilizados e o animal ou pessoa comea a engolir ar, que ento chega aos alvolos pulmonares por uma rota completamente diferente. A presena de uma tarefa constante desempenhada por mecanismos variveis, produzindo um resultado constante, uma das caractersticas bsicas que distingue o funcionamento de cada sistema funcional. (Luria, 1981.) "O exemplo acima mostra como at mesmo uma tarefa bsica como a respirao possibilitada por sistemas complexos, que podem se utilizar de rotas diversas e de diferentes combinaes de seus componentes. Quando pensamos em tarefas mais distantes do funcionamento psicolgico bsico e mais ligadas relao do indivduo com o meio scio-cultural onde ele vive, mais fundamental se torna a idia da complexidade dos sistemas funcionais que dirigem a realizao dessas tarefas. Uma pessoa pode responder corretamente quanto 15 - 7, por exemplo, contando nos dedos, fazendo um clculo mental, usando uma mquina de calcular, fazendo a operao com lpis e papel ou simplesmente lembrando-se de uma informao j armazenada anteriormente em sua memria. fcil imaginar como cada uma dessas rotas para a soluo de um mesmo problema mobilizar diferentes partes de seu aparato cognitivo e, portanto, de seu funcionamento cerebral. Contar nos dedos implica uma atividade motora que est ausente nas outras estratgias; usar a mquina de calcular exige o uso de uma informao 'tcnica' sobre o uso da mquina; lembrar de um resultado previamente memorizado exige uma operao especfica ligada memria, e assim por diante." (Oliveira, 1993.) Essa concepo da organizao cerebral como sendo baseada em sistemas funcionais que se estabelecem num processo filogentico e ontogentico tem duas implicaes diretas para a questo do desenvolvimento psicolgico. Por um lado, supe uma organizao bsica do crebro p.26 humano, resultante da evoluo da espcie. Isto , a postulao da plasticidade cerebral no supe um caos inicial, mas a presena de uma estrutura bsica estabelecida ao longo da histria da espcie, que cada membro dela traz consigo ao nascer.2 (2. Luria aprofunda em sua obra a questo da estrutura bsica do crebro, distinguindo trs grandes unidades de funcionamento cerebral cuja participao necessria em qualquer tipo de atividade mental: unidade de regulao do tnus cortical e do estado de viglia; unidade de obteno, processamento e armazenamento de informaes; unidade de programao, regulao e avaliao da atividade mental. (Luria,1981)) Por outro lado, conduz a
  16. 16. idia de que a estrutura dos processos mentais e as relaes entre os vrios sistemas funcionais transformam-se ao longo do desenvolvimento individual. Nos estgios iniciais do desenvolvimento as atividades mentais apoiam-se principalmente em funes mais elementares, enquanto em estgios subsequentes a participao de funes superiores torna-se mais importante. Essa diferena gentica na atividade mental tem uma correspondncia na organizao cortical. Na criana pequena as regies do crebro responsveis por processos mais elementares so mais fundamentais para seu funcionamento psicolgico; no adulto, ao contrrio, a importncia maior das reas ligadas a processamentos mais complexos. Assim sendo, leses em determinadas reas corticais podem levar a sndromes completamente diferentes, dependendo do estgio de desenvolvimento psicolgico do indivduo em que a leso ocorra. As postulaes de Vygotsky sobre o substrato biolgico do funcionamento psicolgico evidenciam a forte ligao entre os processos psicolgicos humanos e a insero do indivduo num contexto scio-histrico especfico. Instrumentos e smbolos construdos socialmente definem quais das inmeras possibilidades de funcionamento cerebral sero efetivamente concretizadas ao longo do desenvolvimento e mobilizadas na realizao de diferentes tarefas. "Uma idia central para a compreenso das concepes de Vygotsky sobre o desenvolvimento humano como processo scio-histrico a idia de mediao. Enquanto sujeito de conhecimento o homem no tem acesso direto aos objetos, mas um acesso mediado, isto , feito atravs dos recortes do real operados pelos sistemas simblicos de que dispe. O conceito de mediao inclui dois aspectos complementares. Por um lado refere-se ao processo de representao mental: a prpria idia de que o homem capaz de operar mentalmente sobre o mundo supe, necessariamente, a existncia de algum tipo de contedo mental de natureza simblica, isto , que representa os objetos, situaes e eventos do mundo real no universo psicolgico do indivduo. Essa capacidade de lidar com representaes que substituem o real que possibilita que o ser humano faa relaes mentais na ausncia dos referentes concretos, imagine coisas jamais vivenciadas, faa planos p.27 para um tempo futuro, enfim, transcenda o espao e o tempo presentes, libertando-se dos limites dados pelo mundo fisicamente perceptvel e pelas aes motoras abertas. A operao com sistemas simblicos -- e o conseqente desenvolvimento da abstrao e da generalizao -- permite a realizao de formas de pensamento que no seriam passveis sem esses processos de representao e define o salto para os chamados processos psicolgicos superiores, tipicamente humanos. O desenvolvimento da linguagem -- sistema simblico bsico de todos os grupos humanos -- representa, pois, um salto qualitativo na evoluo da espcie e do indivduo." "Se por um lado a idia de mediao remete a processo de representao mental, por outro lado refere-se ao fato de que os
  17. 17. sistemas simblicos que se interpem entre sujeito e objeto de conhecimento tm origem social. Isto , a cultura que fornece ao indivduo os sistemas simblicos de representao da realidade e, por meio deles, o universo de significaes que permite construir uma ordenao, uma interpretao, dos dados do mundo real. Ao longo de seu desenvolvimento o indivduo internaliza formas culturalmente dadas de comportamento, num processo em que atividades externas, funes interpessoais, transformam-se em atividades internas, intrapsicolgicas. As funes psicolgicas superiores, baseadas na operao com sistemas simblicos, so, pois, construdas de fora para dentro do indivduo. O processo de internalizao , assim, fundamental no desenvolvimento do funcionamento psicolgico humano." (Oliveira, 1991.) O PROCESSO DE FORMAO DE CONCEITOS A linguagem humana, sistema simblico fundamental na mediao entre sujeito e objeto de conhecimento, tem, para Vygotsky, duas funes bsicas: a de intercmbio social e a de pensamento generalizante. Isto , alm de servir ao propsito de comunicao entre indivduos, a linguagem simplifica e generaliza a experincia, ordenando as instncias do mundo real em categorias conceituais cujo significado compartilhado pelos usurios dessa linguagem. Ao utilizar a linguagem para nomear determinado objeto estamos, na verdade, classificando esse objeto numa categoria, numa classe de objetos que tm em comum certos atributos. A utilizao da linguagem favorece, assim, processos de abstrao e generalizao. Os atributos relevantes tm de ser abstrados da totalidade da experincia (para que um objeto seja denominado "tringulo" e deve ter trs lados, independentemente de sua cor ou tamanho, por exemplo) e a presena de um mesmo conjunto de atributos relevantes permite a aplicao de um mesmo nome a objetos diversos (um pastor alemo e um pequins so ambos cachorros, apesar de suas diferenas: p.28 os atributos de que compartilham permitem que sejam classificados numa mesma categoria conceitual). As palavras, portanto, como signos mediadores na relao do homem com o mundo so, em si, generalizaes: cada palavra refere-se a uma classe de objetos, consistindo num signo, numa forma de representao dessa categoria de objetos, desse conceito. Entretanto, o "pensamento verbal no uma forma de comportamento natural e inata, mas determinado por um processo histrico-cultural e tem propriedades e leis especficas que no podem ser encontradas nas formas naturais de pensamento e fala". (Vygotsky, 1989, p.44.) Isto , os conceitos so construes culturais, internalizadas pelos indivduos ao longo de seu processo de desenvolvimento. Os atributos necessrios e suficientes para definir um conceito so estabelecidos por caractersticas dos elementos encontrados no mundo real, selecionados como relevantes pelos diversos grupos culturais. o grupo cultural onde o indivduo se desenvolve que vai lhe fornecer, pois, o universo de significados que ordena o real em categorias (conceitos), nomeadas por
  18. 18. palavras da lngua desse grupo. Com base nessas concepes, e coerente com sua abordagem gentica, Vygotsky focaliza seu interesse pela questo dos conceitos no processo _deformao dos conceitos, isto , em como se transforma, ao longo do desenvolvimento, o sistema de relaes e generalizaes contido numa palavra: "Como as tarefas de compreender e comunicar-se so essencialmente as mesmas para o adulto e para a criana, esta desenvolve equivalentes funcionais de conceitos numa idade extremamente precoce, mas as formas de pensamento que ela utiliza ao lidar com essas tarefas diferem profundamente das do adulto, em sua composio, estrutura e modo de operao". (Vygotsky, 1989, p.48.) Para estudar o processo de formao de conceitos, Vygotsky utilizou uma tarefa experimental3 (3. Essa tarefa foi desenvolvida por Vygotsky em colaborao com L. S. Sakharov, a partir de experimentos de N. Ach. Como em outros casos de apresentao de resultados de pesquisa, Vygotsky no traz, em seu texto, informaes muito precisas sobre seus procedimentos experimentais. Para algumas informaes adicionais sobre essa tarefa, veja nota de editor pgina 49 do livro _Pensamento e _Linguagem (Vygotsky,1989). Veja-se tambm discusso aprofundada em Van der Veer e Valsiner,1991.) na qual apresentava-se aos sujeitos vrios objetos de diferentes cores, formas, alturas e larguras, cujos nomes estavam escritos na face inferior de cada objeto. Esses nomes designavam "conceitos artificiais", isto , combinaes de atributos rotulados por palavras no existentes na lngua natural ("mur" para objetos estreitos e altos, "bik" para objetos largos e baixos, por exemplo). Os objetos eram colocados num tabuleiro diante do sujeito e o experimentador virava um dos blocos, lendo seu nome em voz alta. Esse bloco era colocado, com o nome visvel, p.29 numa parte separada do tabuleiro e o experimentador explicava que esse era um brinquedo de uma criana de outra cultura, que havia mais brinquedos desse tipo entre os objetos do tabuleiro e que a criana deveria encontr-los. Ao longo do experimento, conforme a criana escolhia diferentes objetos como instncias do conceito em questo, o pesquisador ia interferindo e revelando o nome de outros objetos, como forma de fornecer informaes adicionais criana. A partir dos objetos escolhidos, e de sua seqncia, que Vygotsky props um percurso gentico do desenvolvimento do pensamento conceitual. Vygotsky divide esse percurso em trs grandes estgios, subdivididos em vrias fases. No primeiro estgio a criana forma conjuntos sincrticos, agrupando objetos com base em nexos vagos, subjetivos e baseados em fatores perceptuais, como a proximidade espacial, por exemplo. Esses nexos so instveis e no relacionados aos atributos relevantes dos objetos. O segundo estgio e chamado por Vygotsky de "pensamento por complexos". "Em um complexo, as ligaes entre seus componentes so _concretas e _factuais, e no abstratas e lgicas (...) As ligaes factuais subjacentes aos complexos so descobertas por meio da experincia direta. Portanto, um complexo , antes de mais nada, um
  19. 19. agrupamento concreto de objetos unidos por ligaes factuais. Uma vez que um complexo no formado no plano do pensamento lgico abstrato, as ligaes que o criam, assim como as que ele ajuda a criar, carecem de unidade lgica: podem ser de muitos tipos diferentes. _Qualquer _conexo _factualmente _presente pode levar incluso de um determinado elemento em um complexo. esta a diferena principal entre um complexo e um conceito. Enquanto um conceito agrupa os objetos de acordo com um atributo, as ligaes que unem os elementos de um complexo ao todo, e entre si, podem ser to diversas quanto os contatos e as relaes que de fato existem entre os elementos." (Vygotsky, 1989, p. 53.) A formao de complexos exige a combinao de objetos com base em sua similaridade, a unificao de impresses dispersas. No terceiro estgio, que levar formao dos conceitos propriamente ditos, a criana agrupa objetos com base num nico atributo, sendo capaz de abstrair caractersticas isoladas da totalidade da experincia concreta. O percurso gentico proposto por Vygotsky para o desenvolvimento do pensamento conceitual no um percurso linear. Isto , embora Vygotsky se refira ao primeiro, segundo e terceiro estgios desse percurso, ele afirma que, na verdade, o terceiro estgio no aparece, necessariamente, s depois que o pensamento por complexos (segundo estgios completou todo o curso de seu desenvolvimento. como se houvesse duas linhas genticas, duas razes independentes, que se unem num momento avanado do desenvolvimento para possibilitar a emergncia dos conceitos genunos. Uma raiz, a do pensamento por complexos, estabelece ligaes e relaes: p.30 "O pensamento por complexos d incio a unificao das impresses desordenadas: ao organizar elementos discretos da experincia em grupos, cria uma base para generalizaes posteriores" (Vygotsky, 1989, p.66). A outra raiz realiza o processo de anlise, de abstrao: "Mas o conceito desenvolvido pressupe algo alm da unificao. Para formar esse conceito tambm necessrio abstrair, isolar elementos, e examinar os elementos abstratos separadamente da totalidade da experincia concreta de que fazem parte. Na verdadeira formao de conceitos, e igualmente importante unir e separar: a sntese deve combinar-se com a anlise. O pensamento por complexos no capaz de realizar essas duas operaes. A sua essncia mesma o excesso, a superproduo de conexes e a debilidade da abstrao. A funo do processo que s amadure e durante a terceira fase do desenvolvimento da formao de conceitos a que preenche o segundo requisito, embora sua fase inicial remonte a perodos bem anteriores" (_ibidem). interessante observar que a idia da convergncia de duas linhas de desenvolvimento independentes na formao de processos psicolgicos superiores bastante caracterstica de Vygotsky: sua postulao para as relaes entre pensamento e linguagem tambm inclui a idia de duas trajetrias genticas separadas, que num determinado momento do desenvolvimento se unem, dando origem a um processo qualitativamente diferente. Vygotsky afirma que a questo principal quanto ao processo de
  20. 20. formao de conceitos a questo dos meios pelos quais essa operao realizada, j que "todas as funes psquicas superiores so processos mediados, e os signos constituem o meio bsico para domin-las e dirigi-las. O signo mediador incorporado sua estrutura como uma parte indispensvel, na verdade a parte central do processo como um todo. Na formao de conceitos esse signo a _palavra, que em princpio tem o papel de meio na formao de um conceito e, posteriormente, torna-se o seu smbolo." (Vygotsky, 1989, p.48.) A linguagem do grupo cultural onde a criana se desenvolve dirige o processo de formao de conceitos: a trajetria de desenvolvimento de um conceito j est predeterminada pelo significado que a palavra que o designa tem na linguagem dos adultos. nesse sentido que a questo dos conceitos concretiza as concepes de Vygotsky sobre o processo de desenvolvimento: o indivduo humano, dotado de um aparato biolgico que estabelece limites e possibilidades para seu funcionamento psicolgico, interage simultaneamente com o mundo real em que vive e com as formas de organizao desse real dadas pela cultura. Essas formas culturalmente dadas sero, ao longo do processo de desenvolvimento, internalizadas pelo indivduo e se constituiro no material simblico que far a mediao entre o sujeito e o objeto de conhecimento. No caso de formao dos conceitos, fundamental no desenvolvimento dos processos psicolgicos superiores, a criana p.31 interage com os atributos presentes nos elementos do mundo real, sendo essa interao direcionada pelas palavras que designam categorias culturalmente organizadas. A linguagem, internalizada, passa a representar essas categorias e a funcionar como instrumento de organizao do conhecimento. O processo de formao de conceitos at aqui discutido refere-se aos conceitos "cotidianos" ou "espontneos", isto , aos conceitos desenvolvidos no decorrer da atividade prtica da criana, de suas interaes sociais imediatas. Vygotsky distingue esse tipo de conceitos dos chamados "conceitos cientficos", que so aqueles adquiridos por meio do ensino, como parte de um sistema organizado de conhecimentos, particularmente relevantes nas sociedades letradas, onde as crianas so submetidas a processos deliberados de instruo escolar. Suas consideraes a respeito da aquisio dos conceitos cientficos tambm elucidam suas concepes mais gerais acerca do processo de desenvolvimento. Os conceitos cientficos, embora transmitidos em situaes formais de ensino-aprendizagem, tambm passam por um processo de desenvolvimento, isto , no so apreendidos em sua forma final, definitiva. Mas "... os conceitos cientficos e espontneos da criana -- por exemplo, os conceitos de 'explorao' e de 'irmo'-- se desenvolvem em direes contrrias: inicialmente afastados, a sua evoluo faz com que terminem por se encontrar. Esse e o ponto fundamental da nossa hiptese." "A criana adquire conscincia dos seus conceitos espontneos
  21. 21. relativamente tarde: a capacidade de defini-los por meio de palavras, de operar com eles vontade, aparece muito tempo depois de ter adquirido os conceitos. Ela possui o conceito (isto , conhece o objeto ao qual o conceito se refere), mas no est consciente do seu prprio ato de pensamento. O desenvolvimento de um conceito cientfico, por outro lado, geralmente _comea com sua definio verbal e com sua aplicao em operaes no-espontneas -- ao se operar com o prprio conceito, cuja existncia na mente da criana tem incio a um nvel que s posteriormente ser atingido pelos conceitos espontneos." "Um conceito cotidiano da criana, como por exemplo 'irmo', algo irnpregnado de experincia. No entanto, quando lhe pedimos para resolver um problema abstrato sobre o irmo de um irmo, como nos experimentos de Piaget, ela fica confusa. Por outro lado, embora consiga responder corretamente a questes sobre 'escravido', 'explorao' ou 'guerra civil', esses conceitos so esquemticos e carecem da riqueza de contedo proveniente da experincia pessoal. Vo sendo gradualmente expandidos no decorrer das leituras e dos trabalhos escolares posteriores. Poder-se-ia dizer que o _desenvolvimento _dos _conceitos _espontneos _da _criana _ascendente, _enquanto _o _desenvolvimento _dos _seus _conceitos _cientficos _ _descendente, para um nvel mais elementar e concreto. Isso decorre das diferentes formas pelas quais os p.32 dois tipos de conceitos surgem. Pode-se remontar a origem de um conceito espontneo a um confronto com uma situao concreta, ao passo que um conceito cientfico envolve, desde o incio, uma atitude 'mediada' em relao a seu objeto." "Embora os conceitos cientficos e espontneos se desenvolvam em direes opostas, os dois processos esto intimamente relacionados. preciso que o desenvolvimento de um conceito espontneo tenha alcanado um certo nvel para que a criana possa absorver um conceito cientfico correlato. Por exemplo, os conceitos histricos s podem comear a se desenvolver quando o conceito cotidiano que a criana tem do passado estiver suficientemente diferenciado -- quando a sua prpria vida e a vida dos que a cercam puder adaptar-se generalizao elementar 'no passado e agora'; os seus conceitos geogrficos e sociolgicos devem se desenvolver a partir do esquema simples 'aqui e em outro lugar'. Ao forar a sua lenta trajetria para cima, um conceito cotidiano abre o caminho para um conceito cientfico e o seu desenvolvimento descendente. Cria uma srie de estruturas necessrias para a evoluo dos aspectos mais primitivos e elementares de um conceito, que lhe do corpo e vitalidade. Os conceitos cientficos, por sua vez, fornecem estruturas para o desenvolvimento ascendente dos conceitos espontneos da criana em relao conscincia e ao uso deliberado. Os conceitos cientficos desenvolvem-se para baixo por meio dos conceitos espontneos; os conceitos espontneos desenvolvem-se para cima por meio dos conceitos cientficos." (Vygotsky, 1989, p.93-94) Essa longa citao de Vygotsky, selecionada por sintetizar claramente sua concepo acerca do desenvolvimento dos conceitos
  22. 22. cientficos, apresenta as idias que fundamentam sua posio de que os conceitos cientficos, diferentemente dos cotidianos, esto organizados em sistemas consistentes de inter-relaes. Por sua incluso num sistema e por envolver uma atitude mediada desde o incio de sua construo, os conceitos cientficos implicam uma atitude metacognitiva, isto , de conscincia e controle deliberado por parte do indivduo, que domina seu contedo no nvel de sua definio e de sua relao com outros conceitos. Do mesmo modo que as postulaes de Vygotsky sobre a formao dos conceitos cotidianos, conforme discutido anteriormente, concretizam suas concepes sobre o processo de desenvolvimento psicolgico, suas concepes sobre o processo de formao de conceitos cientficos remetem a idias mais gerais acerca do desenvolvimento humano. Em primeiro lugar, a particular importncia dst instituio escola nas sociedades letradas: os procedimentos de instruo deliberada que nela ocorrem (e aqui destaca-se a transmisso de conceitos inseridos em sistemas de conhecimento articulados pelas diversas disciplinas cientficas) so fundamentais na construo dos processos psicolgicos dos indivduos dessas sociedades. p.33 A interveno pedaggica provoca avanos que no ocorreriam espontaneamente. A importncia da interveno deliberada de um indivduo sobre outros como forma de promover desenvolvimento articula-se com um postulado bsico de Vygotsky: a aprendizagem fundamental para o desenvolvimento desde o nascimento da criana. A aprendizagem desperta processos internos de desenvolvimento que s podem ocorrer quando o indivduo interage com outras pessoas. O processo de ensino-aprendizagem que ocorre na escola propicia o acesso dos membros imaturos da cultura letrada ao conhecimento construdo e acumulado pela cincia e a procedimentos metacognitivos, centrais prprio modo de articulao dos conceitos cientficos. Outra idia geral sobre o desenvolvimento humano, que pode ser explorada a partir das consideraes de Vygotsky a respeito Nd formao de conceitos cientficos, e a idia de que diferentes culturas produzem modos diversos de funcionamento psicolgico. Grupos culturais que no dispem da cincia como forma de construo de conhecimento no tm, por definio, acesso aos chamados conceitos cientficos. Assim sendo, os membros desses grupos culturais funcionariam intelectualmente com base em conceitos espontneos, gerados nas situaes concretas e nas experincias pessoais. Seu processo de formao de conceitos no inclui, pois, a atitude medida e a atividade metacognitiva tpicas de uma exposio sistemtica ao conhecimento estruturado da cincia. As diferenas qualitativas no modo de pensamento de indivduos provenientes de diferentes grupos culturais estariam baseadas, assim, no instrumental psicolgico advindo do prprio modo de organizao das atividades de cada grupo. As postulaes de Vygotsky sobre os fatores biolgicos e sociais no desenvolvimento psicolgico apontam para dois caminhos complementares de
  23. 23. investigao: de um lado, o conhecimento do crebro como substrato material da atividade psicolgica e, de outro lado, a cultura como parte essencial da constituio do ser humano, num processo em que o biolgico transforma-se no scio-histrico. A construo de uma concepo que constitua uma sntese entre o homem enquanto corpo e o homem enquanto mente, objetivo explcito do projeto intelectual de Vygotsky e seus colaboradores, permanece um desafio para a pesquisa e a reflexo contemporneas, sendo ainda uma questo epistemolgica central nas investigaes sobre o funcionamento psicolgico do homem. p.34 BIBLIOGRAFIA p.35 Do Ato Motor ao Ato Mental: a Gnese da Inteligncia Segundo Wallon Heloysa Dantas INTRODUO Wallon foi to parisiense quanto Freud foi vienense; passou sua longa existncia de oitenta e trs anos (1879-1962) em Paris. Foi mdico de batalho durante a primeira guerra e trabalhou para a Resistncia na segunda; filiou-se ao partido comunista algumas semanas depois que os nazistas fuzilaram Politzer. Depois da libertao, presidiu a comisso que elaborou um projeto de reforma de ensino para a Frana de teor to avanado que permanece parcialmente irrealizado: maneira socialista de Makarenko, Wallon concebe o estudo como trabalho social mediato, e prev para os estudantes a partir do segundo grau um sistema de pr-salrios e salrios. Sua formao traz a marca da filosofia e da medicina: da as freqentes inseres da psicologia na corrente do pensamento ocidental at s suas origens gregas, e tambm a preocupao permanente com a infra-estrutura orgnica de todas as funes psquicas que investiga. Tendo se ocupado, durante a guerra, de leses cerebrais, no poderia jamais esquecer que a atividade mental tem sua sede em um rgo de cuja higidez depende. Esse fato o aproxima de Luria, cujos procedimentos e concluses confirmam e completam muitas das suas hipteses neurolgicas. A matria-prima de que partiu foram mais de duzentas observaes de crianas doentes, casos de retardo, epilepsia, anomalias motoras em geral. Este material, colhido entre 1909 e 1912, s foi apresentado como tese e publicado depois da guerra (1925), quando a experincia clnica com os adultos traumatizados renovou e aprofundou as suas concluses. Resultou disso _L'enfant _turbulent, republicado recentemente na Frana p.36 (1984) com um excelente prefcio de Tran-Thong, que insere suas
  24. 24. concluses no cenrio dos trabalhos neurolgicos recentes. Sua psicogentica (ela o foi desde o princpio -- _L'enfant _turbulent contm, em sua primeira parte, uma descrio das primeiras etapas do desenvolvimento psicomotor: os estgios impulsivo, emocional, sensrio-motor e projetivo, e s depois a apresentao das sndromes psicomotoras) tem, por conseguinte, como ponto de partida o patolgico. A utilizao da doena como um (dos muitos) elemento necessrio compreenso da normalidade fica assentada desde o incio. Ele no atua apenas como mdico preocupado em curar, mas tambm como investigador que considera a doena, maneira de Claude Bernard, uma experincia natural, a forma de experimentao mais apropriada psicologia. As bases da sua concepo metodolgica esto lanadas: psicologia convm um tratamento histrico (gentico), neurofuncional, multidimensional, _comparativo. As funes devem ser estudadas evolutiva e involutivamente (dai o interesse pela doena e pela velhice), partindo das suas bases neurolgicas, e comparando-as com as suas equivalentes em diferentes espcies animais, em diferentes momentos da histria humana individual e coletiva. O equvoco de classificar de organicista a sua proposta vem da incompreenso de dois fatores fundamentais: em primeiro lugar, que _gentico abrange a dimenso da espcie e abre espao para a incorporao dos resultados da "psicologia histria", to prolfica recentemente. E em segundo lugar, do fato de que, para Wallon, o ser humano organicamente social, isto , sua estrutura orgnica supe a interveno da cultura para se atualizar. Ele seguramente endossaria e aproveitaria a expresso vygotskiana de "extracortical" para significar aquela parte do crebro humano que est fora do crebro, isto , o conhecimento. O mtodo adequado para a psicologia e a observao; tal como a astronomia, que no perde o seu rigor por no poder intervir no seu objeto, o psiclogo deveria aguardar "os eclipses", representados pelos desaparecimentos mrbidos das funes. Suas observaes em _L'enfant _turbulent so constitudas essencialmente pelo relato da conduta da criana em seu ambiente (no caso o hospital), e alguns testes so utilizados, parcimoniosamente, apenas como forma de completar as informaes retiradas da observao. Wallon concebe a psicologia como cincia qualitativa: no h preocupao nenhuma com a quantificao de resultados. Se ela no quantitativa e sinttica como a psicomtrica, que resume os seus resultados em um escore, seria ento qualitativa e analtica? Qualitativa certamente: quanto anlise, Wallon opta pela anlise gentica, nica forma, a seu ver, de no deixar perder a inteiridade do objeto. A base para essas decises metodolgicas muito maduras reside numa atitude que se poderia qualificar de "visceralmente" dialtica se no fosse concreta e objetivamente sustentada pela experincia mdica. p.37 Confrontado com o anablico e o catablico do metabolismo celular; com a sstole e a distole da atuao cardaca, com a dinmica de controles alternativos que caracteriza o funcionamento subcortical e cortical do
  25. 25. crebro, Wallon foi naturalmente levado a conceber a vida dos organismos como uma pulsao permanente, uma alternncia de opostos. Quando a escolha do materialismo dialtico se tornou explcita e assumiu a posio de sede das decises metodolgicas, ela no correspondeu, por conseguinte, a um apriorismo. Representou, para Wallon, uma soluo epistemolgica. Cincia hbrida, situada na interseco de dois mundos, o da natureza e o da cultura, a psicologia a dimenso nova que resulta do encontro, e mantm a tenso permanente do seu jogo de foras. _L'enfant _turbulent ilustra os procedimentos metodolgicos que sero explicitados mais tarde. Obra germinal, contm em embrio todos os grandes temas que sero retomados e aprofundados: movimento, emoo, inteligncia e personalidade. Falta apenas a perspectiva pedaggica, que mais tarde vira a pesar muito. A MOTRICIDADE: DO ATO MOTOR AO ATO MENTAL Mas o grande eixo a questo da motricidade; os outros surgem porque Wallon no consegue dissoci-lo do conjunto do funcionamento da pessoa. A psicognese da motricidade (no se estranhe a expresso, porque, em Wallon, "motor" sempre sinnimo de "psicomotor") se confunde com a psicognese da pessoa, e a patologia do movimento com a patologia do funcionamento da personalidade. Por esse motivo foi to aproveitado por Le Boulch, cuja psicocintica e propostas de educao psicomotora se caracterizam pela abrangncia da sua compreenso do significado psicolgico do movimento. Fiel sua disposio infra-estrutural, Wallon busca os rgos do movimento: a musculatura e as estruturas cerebrais responsveis pela sua organizao. Na atividade muscular identifica duas funes: cintica, ou clnica, e postural, ou tnica. A primeira responde pelo movimento visvel, pela _mudana de posio do corpo ou de segmentos do corpo no espao, a segunda, pela _manuteno da posio assumida (atitude), e pela mmica. A primeira a atividade do msculo em movimento; a segunda, a do msculo parado. Este relevo dado funo tnica, identificada como o substrato da funo cintica, de cuja higidez depende a sua realizao adequada, caracteristicamente walloniano. Wallon encontra nela a mais arcaica atividade muscular, presente antes de a motricidade adquirir sua eficcia, atuando durante a imobilidade, que vista no como negatividade, mas como sede de uma atividade tnica que pode ser intensa; p.38 presente na emoo, cujas flutuaes acompanha e modula, residual quando a funo simblica vem a internalizar o ato motor. No antagonismo entre motor e mental, ao longo do processo de fortalecimento deste ltimo, por ocasio da aquisio crescente do domnio dos signos culturais, a motricidade em sua dimenso cintica tende a se reduzir, a se virtualizar em ato mental. A sensrio-motricidade incontinente do segundo ano de vida tende --
  26. 26. lentamente -- a diminuir, dando lugar a perodos cada vez maiores de imobilidade possvel; este enfraquecimento da funo cintica e proporcional ao fortalecimento do processo ideativo. Mas a quietao assim obtida um produto difcil, dependente da maturao dos centros corticais de inibio assim como das estruturas responsveis pelo controle automtico do tnus (em particular, o cerebelo). Ela corresponde reduo da atividade muscular sua funo tnico-postural. Embora imobilizada no esforo mental, a musculatura permanece envolvida em atividade tnica que pode ser intensa; pensa-se com o corpo em sentido duplo -- com o crebro e com os msculos. Esse fato foi intuitivamente compreendido por Rodin: sua representao plstica do "Pensador" apresenta um homem intensamente contrado, com a musculatura retesada pelo esforo. Assim que, para Wallon, o ato mental -- que se desenvolve a partir do ato motor -- passa em seguida a inibi-lo, sem deixar de ser atividade corprea. Do relevo dado funo tnica, resulta a percepo da importncia de um tipo de movimento associado a ela, e que normalmente ignorado, obscurecido pelo movimento prxico. a motricidade expressiva da mmica, inteiramente ineficaz do ponto de vista instrumental: no tem efeitos transformadores sobre o ambiente fsico. Mas o mesmo no acontece em relao ao ambiente social: pela expressividade o indivduo humano atua sobre o outro, e isto que lhe permite sobreviver, durante o seu prolongado perodo de dependncia. A motricidade humana, descobre Wallon em sua anlise gentica, comea pela atuao sobre o meio social, antes de poder modificar o meio fsico. O contato com este, na espcie humana, nunca direto: sempre intermediado pelo social, tanto em sua dimenso interpessoal quanto cultural. Antagonismo, descontinuidade entre ato motor e ato mental, anterioridade da modificao do meio social em relao ao meio fsico: estes so elementos essenciais compreenso da concepo walloniana. A sua tipologia do movimento, baseada nas sedes de controle, praticamente consensual. H os movimentos reflexos, controlados no nvel da medula; h os movimentos involuntrios, automticos, controlados em nvel subcortical pelo sistema extrapiramidal; e h os movimentos voluntrios ou praxias, controlados no nvel cortical pelo sistema piramidal. Entre eles, embora haja sucesso cronolgica de aparecimento, no h derivao funcional. Eles correspondem emergncia de estruturas p.39 nervosas diferentes, entre as quais se estabelece subordinao funcional. O sistema cortical impe seu controle sobre o sistema subcortical, e, estabelece-se entre ambos uma relao de reciprocidade, mas tambm de subordinao do sistema mais antigo (o subcortical) ao mais recente. Praxias bem estabelecidas automatizam-se, liberando o crtex para novas utilizaes; automatismos podem ser conscientizados, embora isto exija enorme esforo. Entre os movimentos involuntrios, incluem-se os expressivos (mmica, atitude) que permanecem inconscientes a ponto de, por vezes, a pessoa no se reconhecer na descrio de um bordo motor, os
  27. 27. automatismos subsidirios das praxias, como o balano dos braos no andar, ou os movimentos complementares do resto do corpo nos gestos de preenso, e ainda -- como j se disse -- aquelas praxias que o uso automatizou, como os gestos de dirigir um automvel. A incompatibilidade funcional entre os nveis manifesta-se no antagonismo entre atividade automtica e representao. A conscientizao dos automatismos tende a produzir um efeito desagregador sobre eles. Comece-se a "pensar" os gestos, j automatizados, de guiar um automvel, e o desempenho imediatamente se desarticula. Este fenmeno est na base do que Wallon denomina reaes de "prestance" (presena), isto , a canhestria provocada pela sensao de estar sendo observado. A seqncia psicogentica de aparecimento dos diferentes tipos de movimento acompanha a marcha, que se faz de baixo para cima, do amadurecimento das estruturas nervosas. Imediatamente aps o nascimento, perodo que se poderia denominar medulobulbar, a motricidade disponvel consiste, alm dos reflexos, apenas em movimentos impulsivos, globais, incoordenados. Sua completa ineficcia (so incapazes sequer de fazer o recm-nascido sair de uma posio incomoda) os fez ignorados. A partir deles, porm, evoluiro os movimentos expressivos, forma primeira, mediada, de atuao. Esta etapa impulsiva da motricidade dura aproximadamente trs meses; da at o final do primeiro ano, o amadurecimento das estruturas mesoenceflicas do sistema extrapiramidal, aliado resposta social do ambiente, sob a forma de interpretao do significado (bem-estar e mal-estar) dos movimentos, introduziro a etapa expressivo-emocional. A maior parte das manifestaes motoras consistiro em gestos dirigidos s pessoas (apelo): manifestaes, agora cheias de nuances, de alegria, surpresa, tristeza, desapontamento, expectativa etc. A predominncia dos gestos instrumentais, prxicos, no cenrio do comportamento infantil comea a se estabelecer no segundo semestre, e se impe verdadeiramente apenas no final do primeiro ano, quando o amadurecimento cortical torna aptos os sistemas necessrios explorao direta sensrio-motora da realidade: a marcha, a preenso, a capacidade de investigao ocular sistemtica, em especial. Wallon faz lembrar como p.40 lento o amadurecimento dessas competncias: no incio do primeiro ano, o ser est merc das suas sensaes internas, viscerais e posturais. A explorao da realidade exterior s ser possvel quando o olho e a mo adquirirem a capacidade de pegar e olhar praxicamente. O reflexo de preenso ser substitudo, por volta do segundo trimestre, por uma preeso voluntria, ainda muito tosca: a chamada preenso palmar, em que a mo se fecha em torno do objeto sem fazer uso da oposio entre o polegar e os outros dedos, vantagem da espcie humana. Alguns meses depois, esta oposio se inicia, mas ainda de forma tosca. A chamada preenso em pina, em que polegar e indicador se opem e complementam, s adquirida por volta dos nove meses. interessante notar que a preenso voluntria antecede a abertura voluntria da mo no ato de soltar o objeto. possvel assistir ao dilema de uma criana com as
  28. 28. duas mos ocupadas, diante de um terceiro objeto interessante: a dificuldade para "largar parece ser eonsideravelmente maior do que a de "pegar". Mas a competncia no uso das mos, faz notar Wallon, s est completa quando, por volta do final do primeiro ano, se forma a bilateralidade, e as duas mos deixam de atuar indiferenciadamente para adotarem uma ao complementar, em que cabe dominante a iniciativa, e no dominante uma atividade auxiliar. igualmente lento o despertar da competncia visual: depois dos reflexos pupilares com os quais se nasce, nota-se o aparecimento da capacidade de fixar e acompanhar voluntariamente um mvel . A princpio, apenas as trajetrias mais simples, horizontais; alguns meses depois, as verticais, e, prximo do final do primeiro ano, as circulares. Essas so apenas as praxias bsicas; as especiais, prprias de cada cultura, como segurar adequadamente um lpis ou um pincel para escrever, percorrer uma pgina a partir do alto, esquerda, ou de baixo, direita, ou ainda segurar um garfo ou manusear pauzinhos para comer, no podem obviamente ser consideradas produto do amadurecimento cortical. Ajuria-guerra, beneficiando-se da contribuio terica walloniana, realizou com um grupo de colaboradores uma minuciosa investigao sobre a praxia da escrita, pondo a nu a complexidade tnico-postural de uma atividade que requer a imobilizao e a movimentao rpida de diferentes segmentos corporais simultaneamente. Mas as competncias bsicas de pegar e olhar no bastariam ainda para a explorao autnoma da realidade, desacompanhadas da possibilidade de andar: por isso Wallon realiza a o corte que d entrada ao perodo sensrio-motor, e -- com ele -- etapa dominantemente prxica da motridade. Quase ao mesmo tempo, porm, a influncia ambiental, aliada ao amadurecimento da regio temporal do crtex, dar lugar fase simblica e semitica. Ao lado dos movimentos instrumentais, assiste-se entrada p.41 em cena de movimentos de natureza diversa, veiculadores de imagens: so os movimentos simblicos ou ideomovimentos, expresso peculiar a Wallon: indica que se trata de movimentos que contm idias, assim como a dependncia inicial destas em relao queles. O processo ideativo inicialmente projetivo (e pode permanecer assim em certos quadros patolgicos, como a epilepsia). Isto , exterioriza-se, projeta-se, em atos, sejam eles mmicos, na fala, ou mesmo nos gestos da escrita. Imobilize-se uma criana de dois anos que fala e gesticula e atrofia-se o seu fluxo mental. Inversamente, experincia trivial no adulto o poder da palavra, oral ou escrita, de adiantar-se, quase conduzir o pensamento, por vezes, ilustrando a persistncia desta ideomotricidade. O movimento, a princpio, desencadeia e conduz o pensamento. O gesto grfico, inicialmente condutor da idia, s depois e conduzido por ela "Como posso saber o que estou desenhando se ainda no terminei?" -- dir uma criana de trs ou quatro anos. O controle do gesto pela idia inverte-se ao longo do desenvolvimento.
  29. 29. Esta transio do ato motor para o mental, ruptura e descontinuidade que assinalam a entrada em cena de um novo sistema, o cortical, pode ser acompanhada na evoluo das condutas imitativas. Longe de ampliar esta noo para abarcar a chamada imitao sensrio-motora ou pr-simblica, Wallon restringe o termo s suas formas superiores, corticais, porque supe nas outras a ao de mecanismos mais primitivos. Distingue assim os "contgios" motores, ecocinesias, ecolalias, ecopraxias, simples mimetismo, da chamada imitao diferida, onde a ausncia do modelo torna inquestionvel a sua natureza simblica. "Imitao diferida" e "imitao simblica" constituem, na sua linguagem, redundncias. Mas a imitao realiza, ele concorda, a passagem do sensrio-motor ao mental. A reproduo dos gestos do modelo acaba por se reduzir a uma impregnao postural: o ato se torna simples atitude. Este congelamento corporal da ao constituiria o seu resduo ltimo antes de se virtualizar em imagem mental. seqncia bem conhecida que leva do sinal ao smbolo e deste ao signo, Wallon acrescenta o "simulacro, representao do objeto sem nenhum objeto substitutivo, pura mmica onde o significante o prprio gesto. Assim, a imitao d lugar representao que lhe far antagonismo: enquanto ato motor, ela tender a ser reduzida e desorganizada pela interferncia do ato mental. AS FASES DA INTELIGNCIA Nesta concepo do desenvolvimento da pessoa, a inteligncia ocupa o lugar de meio, de instrumento colocado disposio da ampliao daquela. p.42 Construindo-se mutuamente, sujeito e objeto, afetividade e inteligncia, alternam-se na preponderncia do consumo da energia psicogentica. Na primeira etapa, correspondente ao primeiro ano de vida, dominam as relaes emocionais com o ambiente e o acabamento da embriognese: trata-se nitidamente de uma fase de construo do sujeito, onde o trabalho cognitivo est latente e ainda indiferenciado da atividade afetiva. Ele consiste essencialmente na preparao das condies sensrio- motoras (olhar, pegar, andar) que permitiro, ao longo do segundo ano de vida, a explorao intensa e sistemtica do ambiente. Este sim, ser o momento em que a inteligncia poder dedicar-se a construo da realidade; tendo obtido uma certa diferenciao, tomar-se- aquilo que Wallon chamou de inteligncia prtica ou das situaes, e cuja extrema visibilidade a tornou to bem conhecida com o nome de sensrio-motora. Quase simultaneamente, a funo simblica, alimentada pelo meio humano, vem despontando: no final do segundo ano a fala e as condutas representativas so inegveis, confirmando uma nova forma de relao com o real, que emancipar a inteligncia do quadro preceptivo imediato. Esta funo frgil no incio, apoia-se ainda muito tempo nos gestos que a transportam, "projeta-se em atos: por isso Wallon a chama de
  30. 30. _projetiva. Com a funo simblica e a linguagem, inaugurar-se- o pensamento discursivo, que mantm com aquela uma relao de construo reciproca. Suas primeiras manifestaes, captveis em dilogos sustentados, Wallon as obteve a partir de cinco anos, revestidas de caractersticas que sintetizou com a denominao de _sincretismo. O pensamento discursivo , pois, sincrtico em sua origem; sua forma mais elementar, ao contrrio do que julgaram os associacionistas, uma molcula, o par. Este parece ser mais um exemplo de como a anlise gentica e a anlise estrutural podem levar a resultados diversos. A anlise gentica encontra no par duas idias fundidas de maneira indissocivel, porque sincrtica. O sincretismo alcana no s os contedos como os processos do pensamento inicial: os prprios mecanismos de assimilao e oposio so indiferenciados, de maneira que duas coisas so simultaneamente assimiladas e opostas: O sol e o cu, mas no so a mesma coisa. Depois da latncia cognitiva que acompanha os anos pr-escolares, ocupados com a tarefa de reconstruir o eu no plano simblico, a inteligncia poder, se aquele processo foi bem-sucedido, beneficiar-se com o resultado da reduo do sincretismo da pessoa. Seu trabalho ser uma nova superao do sincretismo agora no plano do pensamento, do discurso, do objeto. A funo da inteligncia, para o adulto como para a criana, Wallon a entende como residindo na explicao da realidade. Explicar supe definir: so estas, pois, as duas grandes dimenses em torno das quais se organizam os dilogos que compem sua investigao. p.43 Seu entendimento sobre definio quase clssico: a atribuio das qualidades especficas de um objeto, resultando em integr-lo a uma classe maior, e diferenci-lo das vizinhas. Diferenciao e integrao constituem os processos bsicos envolvidos. Este recorte ntido permitir subtrair os objetos confuso sincrtica, e por conseguinte estabelecer entre eles uma rede de relaes ntidas. esta trama relacional que, para Wallon, constitui a explicao das coisas: aqui ele se afasta da noo clssica, onde explicar estabelecer as condies de necessidade de um fato. Para Wallon, explicar determinar condies de existncia, entendimento que abarca os mais variados tipos de relaes: espaciais, temporais, modais, dinmicas, alm das causais _strictu _sensu. Ele conseqncia da opo epistemolgica walloniana: para a sua concepo dialtica da natureza, tudo esta ligado a tudo, alm de estar em permanente devir. Essas opes determinam o tipo de interrogatrio a que submete as crianas: O que ...?, para a definio; por qu? como? quando? onde? etc, para a explicao. Os temas so os da experincia vivida e os da percepo direta: o sol, o cu, a noite, a lua, o vento, o frio, as rvores, a neve, o rio. Mediante este tipo de dilogo, em entrevistas cujo contedo foi inteiramente aproveitado, sem nenhum tipo de seleo do material, Wallon constatou, entre os cinco e nove anos de idade, uma tendncia reduo
  31. 31. do sincretismo, permitindo o aparecimento de uma forma mais diferenciada de pensamento a que chamou de "categorial". Prxima da noo de "conceitual", ela contm aquilo que, para Wallon, e a sua condio: a qualidade diferenciada da coisa em que se apresenta, tornada "categoria" abstrata, exigncia _sine _qua _non para a definio, e, por conseguinte, para a elaborao do conceito. De todas as diferenciaes que se processam, esta a mais fundamental: s ela permitira a atribuio das qualidades especficas de um objeto, tornando-o assim distinto de outros, sem carregar consigo os demais atributos do objeto em que aparece. Enquanto o "pesado" do barco estiver confundido com as suas outras caractersticas, como "grande", ser impossvel chegar soluo do problema do afundamento da faca. Enquanto ela no se processar, o pensamento binrio permanecer ao sabor das contradies, corolrio inevitvel do sincretismo. (O estudo minucioso das suas formas foi realizado em _As _origens _do _pensamento _na _criana.) Este sincretismo comea por ser o do sujeito com o objeto do discurso: mistura afetiva, pessoal, que refaz, no plano do pensamento, a indiferenciao inicial entre inteligncia e afetividade. Wallon recusa persistentemente dar o passo que transforma sincretismo em egocentrao: s explicaes autocentradas, contrape outras de tendncia inversa, encontrando na extrema instabilidade, e no em um eixo firmemente autocentrado, a caracterstica maior da ideao infantil. p.44 As relaes que mantm com a linguagem so recprocas e extremamente sutis. No incio, longe de conduzir a escolha da palavra, o pensamento , pelo contrrio, conduzido por ela em seus nveis mais primitivos: a musicalidade das assonncias e rimas, os automatismos da lngua. A palavra carrega a idia, como o gesto carrega a inteno. A reconquista da dimenso meldica da linguagem, como a emancipao do gesto ao controle da vontade constituem objetivos de certas modalidades artsticas. Sua existncia demonstra que o desenvolvimento representa tambm perda ou atrofia de possibilidades, que precisam ser recuperadas e resgatadas. Esta noo, compatvel apenas com concepes paradoxais, no lineares, de desenvolvimento, esta implcita no alerta feito por Wallon em relao ao sincretismo: preciso ser capaz de preserv-lo, tanto quanto disciplin-lo, uma vez que dele depende a possibilidade de combinaes inteiramente novas e originais de idias. Nele est a raiz do pensamento criador. A linguagem, capaz de conduzir o pensamento, tambm capaz de nutri-lo e aliment-lo; estruturam-se reciprocamente: produto da razo humana, ela acaba, no curso da histria, por se tornar sua fabricante. Razo constituinte razo constituda, concluso inevitvel que resulta de v-la em perspectiva histrica. p.45 PARTE II
  32. 32. Afetividade e Cognio p.46 (pgina em branco) p.47 Desenvolvimento do Juzo Moral e Afetividade na Teoria de Jean Piaget Yves de La Taille Uma boa maneira de se compreender e avaliar a articulao, feita por um determinado autor, entre afetividade e inteligncia analisar as concepes deste acerca do tema do juzo moral. De fato, a moralidade humana o palco por excelncia onde afetividade e Razo se encontram, via de regra sob a forma do confronto. A idia deste confronto perpassa toda a filosofia e a literatura, como o ilustra a oposio freqentemente apontada entre as personagens de Racine e Corneille, dois grandes autores dramticos franceses do sculo XVII. Para o primeiro, a paixo uma fora avassaladora, uma "fatalidade interna" que arrasa as vs tentativas da Razo para salvaguardar a retido moral das aes. O amor culposo de Fedra por Hiplito, filho de um primeiro casamento de seu marido, o legendrio rei Teseu, desencadeia irresistivelmente os cimes, as mentiras, as perfdia e finalmente a humilhao e a morte. Diz ela: Eu o vejo, eu lhe falo; e meu corao... eu me perco Senhor, meu louco amor, minha revelia, se declara. Para o heri corneilliano, ao contrrio, a Razo e seus princpios morais devem e podem vencer. Assim, o que poderia fazer Rodrigo (na tragdia _Le _Cid), momentaneamente dilacerado entre seu amor por Ximena e o dever de matar o pai dela para vingar a desonra que este infligiu a Dom Diego (pai de Rodrigo)? No ser, como para Fedra, sacrificar a honra ao amor, mas sim, sacrificar as vontades do corao aos imperativos da Razo1: (1. Estou aqui aceitando a interpretao tradicional da personagem Rodrigo. Mas h outras, em que lhe so atribudos sentimentos como paixo, orgulho, generosidade, onde, portanto, v-se em Rodrigo uma feliz aliana entre afeto e Razo. Ler, a esse respeito, o livro de Paul Benichou _Morales _do _Grand _Sicle. Paris Gallimard, 1948.) ele mata o pai de Ximena. E tambm para ela no poderia haver outra soluo, seno desprezaria Rodrigo por ser um "fraco". Diz ele, pensando em sua amada: p.48 Vingando-me, suscito seu dio e sua clera; Em no o fazendo, suscito seu desprezo. O psiclogo pode se perguntar qual ser, das duas personagens, a mais real ou, pelo menos, a mais verossmil. A rigor, para responder a
  33. 33. esta pergunta, dever ter uma certa concepo de como se articulam a afetividade e a Razo, de como convivem suas respectivas caractersticas e exigncias. Longe de esgotar o tema desta articulao (que no pode ser somente vista como confronto), acredito que o tema do juzo e da ao morais pode ajudar-nos a elucidar a questo. o que me proponho a fazer em relao a teoria de Jean Piaget, emrito pesquisador da cognio humana, mas tambm autor de um importante livro sobre a moralidade. O DESENVOLVIMENTO DO JUIZO MORAL NA CRI

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