Download - OMENELICK2ATO ED. 07
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ano ii # 07 disTribUiÇÃo GraTUiTa
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“...Só penso na liberdade de palmares, ainda há senzalas por todos os lados. Não se trata somente viver livre, mas sim de libertar os ainda escravos”.
Trecho da música O Rei Zumbi,
presente no álbum “Antigamente Quilombos,
Hoje Periferia” (2003) do grupo Z´África Brasil.
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11 DEClaMa-tE ou tE DEVoro06 ZuMbi
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16 DEMoCraCia MoçaMbiCaNa
34 bEM ME QuEr, Mal ME QuEr
a revista o MENEliCK 2º ato é uma publicação trimestral da MaNDElaCrEW CoMuNiCação E FotoGraFiarua roma, 80 – sala 144. são Caetano do sul/ sPCEP: 09571-220 • Tel. (11) 9651 8199
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Por renata Felinto
Homem guerreiro mito
ZUMBIZumbi dos Palmares é o nome que vêm à cabeça de qualquer brasilei-
ro quando se pensa em população negra e na luta contra a opressão
pautada na questão racial. Tornou-se sinônimo de liberdade, união e
solidariedade. No imaginário popular ele foi uma espécie de Robin
Hood brasileiro e negro: tirava dos senhores de engenho para dar aos
irmãos negros ex-cativos. Como se seu papel à frente do quilombo
mais importante das Américas, Palmares, fundado em 1590 na Serra
da Barriga, fosse o de garantir que todos os bens fossem igualmente
repartidos; de ser benevolente e justo com todos e, ao mesmo tempo,
demonstrar uma atitude guerreira; ou que se sacrificava pelos demais,
quase tendo a sua figura relacionada à de Cristo neste sentido do al-
truísmo. Ou seja, o grande salvador dos irmãos negros.
Pois bem, a pessoa física Zumbi dos Palmares difere, em alguns as-
pectos, da do mito fortalecido pela oralidade. Por exemplo, ele teve
escravos e foi coroinha! Calma, tudo pode ser contextualizado... Ele
é reconhecido mundialmente como herói e comparado aos maiores
estrategistas bélicos da História (Napoleão Bonaparte e Alexandre,
“O Grande”, dentre outros). Mas, talvez este mito tenha se sedimen-
tado desta forma também porque, como população marginalizada,
negligenciada e desprestigiada pelos poderes públicos, há pouquís-
simas figuras negras registradas pela historiografia oficial brasileira
que sejam referenciais para a construção de autoestimas positivas de
crianças e jovens negros, futuros adultos, cidadãos. Não que elas não
tenham existido, sabemos que existiram e que a escolha dos saberes
que se ensinam é realizada com o objetivo de se manter a hegemo-
nia de certo segmento étnico e socioeconômico dentro da sociedade
brasileira a partir de pressupostos ideológicos e políticos. Para citar
um exemplo, o líder da Revolta da Chibata (1910), João Candido (1880
- 1969), nem aparece citado na maioria dos livros escolares.
Mas, voltando a Zumbi, quem terá sido este homem?
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FRANCISCO: A EDUCAÇÃO DO HOMEMEra descendente de guerreiros imbangalas ou jagas, de Angola.
Nasceu livre no ano de 1655 em um dos mocambos do Quilom-
bo de Palmares que, estima-se, tenha tido 30 mil habitantes! Era a
Confederação de Palmares, constituída por vários mocambos me-
nores no atual Estado de Alagoas, então capitania de Pernambuco.
Mantinha relações econômicas com as comunidades de seu entor-
no pautadas no escambo de sua produção de forma organizada. Tal
capacidade de autogestão, autonomia e de estruturação socioeco-
nômica, abalou as autoridades coloniais motivando, ao longo de
sua existência, o envio de 66 expedições militares que objetivaram
destruir a Confederação, entre os anos de 1596 e 1716.
Os pais de Zumbi são desconhecidos, porém, ainda criança foi cap-
turado por soldados e entregue ao Padre Antonio Melo, com quem
aprendeu a língua portuguesa, o latim e os preceitos do Catolicis-
mo chegando, inclusive, a atuar como coroinha em algumas mis-
sas. Foi batizado com o nome católico de Francisco.
O SURGIMENTO DO GUERREIROCom 15 anos de idade, fugiu e retornou a Palmares, adotando o
nome de Zumbi (Zambi, do termo nzumbe, do idioma africano
quimbundo que significa fantasma, espectro, alma de pessoa fa-
lecida). Passou a trabalhar na liderança dos quilombolas. Palmares
teve vários líderes, porém, os nomes que chegaram até a atuali-
dade são o de Zumbi e de seu tio Ganga Zumba, cujas datas de
nascimento e de morte deste último são desconhecidas. Foi seu
tio que reconheceu seu talento bélico ao vê-lo em combate contra
portugueses que tentavam dizimar o quilombo. Zumbi tinha então
20 anos de idade. É neste momento que sua figura destaca-se como
a de um provável sucessor na liderança do quilombo.
Em 1675, Zumbi não aceita o acordo feito entre Ganga Zumba e
Pedro de Almeida, então Governador Geral, no qual Palmares se
submeteria à colônia e todos seus habitantes seriam alforriados.
Zumbi não admitia que se tornassem livres somente os negros ha-
bitantes da Confederação, desejava a liberdade para todos. Neste
impasse, Zumbi rompe com Ganga Zumba e assume a posição de
líder por mais de uma década contando com o apoio da maioria
dos quilombolas. Alguns historiadores especulam que Ganga Zum-
ba teria sido assassinado por envenenamento. Em 1694, a expe-
dição militar liderada pelo bandeirante paulista Domingos Jorge
Velho (1641 – 1705), formada por dois mil homens, consegue dar
início ao processo de destruição de Palmares. A corajosa resistên-
cia de Palmares durou 22 dias até o momento em que Zumbi se viu
obrigado a recuar e se esconder. Foi capturado e morto em 20 de
novembro de 1695, devido à traição de alguns companheiros qui-
lombolas. Seu corpo foi mutilado e a cabeça enviada para o Recife,
onde ficou exposta em praça pública.
O MITOO dia 20 de novembro é reivindicado como dia da Consciência Ne-
gra, em contraponto à data de 13 de maio, dia da assinatura da Lei
Aurea pela Princesa Isabel. Para o historiador Flávio Gomes, do De-
partamento de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ), a escolha do 20 de novembro foi muito mais do que uma
simples oposição ao 13 de maio: “os movimentos sociais escolhe-
ram essa data para mostrar o quanto o país está marcado por dife-
renças e discriminações raciais. Foi também uma luta pela visibili-
dade do problema. Isso não é pouca coisa, pois o tema do racismo
sempre foi negado, dentro e fora do Brasil. Como se não existisse”.
O episódio histórico de Palmares e a biografia singular de Zumbi,
reforçados pela oralidade popular vêm sendo rememorados e re-
verenciados pelas mais diversas expressões artísticas. As homena-
gens vão desde tema de música até nome de faculdade.
Nas artes visuais, em 1917, o artista nascido no Estado do Rio de
Janeiro, Antônio Parreiras (1890 – 1967), pinta um retrato de Zumbi
dos Palmares como um sujeito altivo, como se estivesse em estado
de vigilância, a observar o entorno. O pintor formado pela Aca-
demia Imperial de Belas Artes tinha visível interesse pelos temas
históricos, e em 1914, pintou também a prisão de Tiradentes. A obra
de Parreiras traz claras influências impressionistas a partir de suas
largas e coloridas pinceladas por meio das quais, fica nítida a inten-
ção do artista em destacar a figura de Zumbi, devido ao contraste
MOCAMBO
Moradia construída artesanalmente e muitas vezes de frágil constituição. ZuMBI • ANTôNIo PARREIRAs (1890 - 1967)
IMBANGALAS OU JAGAS
Nome que os Portugueses deram, no final do sec. xVi e durante o sec. xVii, a grupos de nativos africanos originários do Norte e, mais tarde, do Centro e sul de angola.
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Imagine uma semana em Paris, na França, na companhia dos 15
melhores slammers do mundo, no maior evento de poetry slam da
Europa, a Coupe du Mounde de Poesie Slam?
Poetry slam? slammers? Coupe du Mounde?
Nunca ouviu falar?
Ok! Vamos do começo.
Basicamente, slams, ou poetry slams são encontros de poesia fa-
lada (spoken word) e performática, geralmente em forma de com-
petição, onde um júri popular, escolhido espontaneamente entre
o público, dá nota aos slammers (os poetas), levando em consi-
deração principalmente dois critérios: a poesia e a desempenho.
Resumindo: o slam é o “esporte” da poesia falada.
Até aí não há tanta novidade, uma vez que a ideia de competição
entre poetas é “mais velha que andar pra frente” e, de maneiras
diferentes, sempre esteve presente em vários contextos culturais,
desde a Grécia antiga, passando pelos cantadores medievais, che-
gando ao repente brasileiro e ao ritmo e poesia das batalhas de
MCs, só pra citar alguns exemplos.
Mas além de seu aspecto competitivo, o poetry slam vem ga-
nhando espaço e popularidade mundial e tem conquistando
cada vez mais adeptos por conta de seu caráter comunitário e
inclusivo. Idealizado nos anos 80, em Chicago, Estados Unidos,
por Marc Kelly Smith, um trabalhador da construção civil e po-
eta, o poetry slam trouxe uma renovação para os maçantes en-
contros de leitura de poesia, popularizando-se rapidamente pelo
país e logo se propagando por todo o mundo. Estima-se hoje que
existam pelo menos 500 comunidades de slam em países como
Irlanda, Inglaterra, Austrália, Zimbábue, Madagascar, Israel, Sin-
gapura, Polônia, Itália e até mesmo no Pólo Sul e no Havaí, sen-
do que as maiores comunidades fora dos Estados Unidos estão
na França e na Alemanha.
A diversidade é característica marcante em um encontro de poetry
slam, onde pessoas das mais diferentes idades, crenças, orientações
políticas e filosóficas reúnem-se em comunhão para ouvir e falar
entre as cores quentes na representação do personagem e oposição às
frias para composição do fundo.
No cinema pode ser citado o filme Quilombo (1984), uma co-produção Brasil
e França, dirigido por Cacá Diegues e baseado nos livros Ganga Zumba, de
João Felício dos Santos e Palmares, de Décio de Freitas. O filme tenta narrar
como seria o cotidiano no Quilombo de Palmares e a relação entre Ganga
Zumba e seu sobrinho Zumbi até o rompimento de ambos. Uma questão
muito controversa é que as gravuras do artista francês Jean-Baptiste Debret
(1768- 1848), foram uma das principais bases para a composição deste dia
a dia (vestimentas, construções etc.). Entretanto, é sabido que as mesmas
foram produzidas na primeira metade do século 19, na cidade do Rio de
Janeiro. Ou seja, o contexto visualizado é bem diferente do que seria o real.
Nas artes cênicas, o espetáculo Arena conta Zumbi, (1965), montado em
São Paulo e idealizado por Augusto Boal (1931 - 2009) e por Gianfrancesco
Guarnieri (1934 - 2006) objetivava tratar da recente história do Brasil pós-
-golpe militar de 1964 e rememorar os heróis da nação. Nesta montagem
eram oito atores em cena se revezando em vários papéis. A saga foi ideali-
zada como uma narrativa, deste modo, mais de um ator interpretou a figura
de Zumbi dos Palmares, exibindo uma técnica inovadora e eficaz. Edu Lobo
(1943) assinou a trilha sonora do espetáculo.
Na literatura, Zumbi dos Palmares é uma referência muito presente no que
diz respeito à evocação de um antepassado que representa o espírito da luta
que é ainda travada cotidianamente por seus descendentes. Tanto ele quanto
a ideia de África, ainda que idealizada, são basilares na construção de uma
poética que localize e identifique o indivíduo negro, periférico e urbano. Não
foram poucos os poetas que tiveram referência em seus feitos como o mo-
dernista Solano Trindade (1908 – 1974) com o poema Sou Negro (1961).
Na música, as referências ao líder são inúmeras. De Gilberto Gil ao nome da
Banda que acompanhou Chico Science, Nação Zumbi. O MC Gaspar (grupo
Z’África Brasil) compôs O Rei Zumbi, reverenciando este guerreiro. Gaspar
que é galego, porém, periférico, traz em sua música a ideia do Zumbi Reden-
tor que duela contra o conflito identitário e pela luta de classes e de cores na
paulicéia desvairada. Abaixo seguem alguns versos desta música. Lembran-
do que como já diziam nossos ancestrais africanos, “a palavra tem poder”:
E com a morte de zumbi, poriam fim as lutas, mas não a escravidão.
Negros e brancos se perderam por entre o vermelho do sangue derramado
em Palmares
(...)
O deus negro não pode estar morto, ele é eterno.
Rezaremos pela sua salvação, pela sua ressurreição.
Zumbi vive, ele é eterno, e pro bem da nação, o rei de palmares irá voltar.
Salve o rei zumbi, salve...salve!
DECLAMA-TE OU TE DEVORO
O POETRy SLAM E A CELEBRAçãO URBANA DA POESIA fALADAPor roberta Estrela D´alva
ReNAtA FeLINtO é MEstrE EM artEs Visuais PEla uNEsP, PEsQuisaDora, artista PlÁstiCa E EDuCaDora.
PARA LeR
Homens de Ferro: os ferreiros da África central no século XIXJuliana ribeiro da silvaEditora alameda são Paulo, 2011
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poesia. Uma grande celebração coletiva, uma verdadeira “zona autô-
noma da palavra”, onde o sagrado direito à expressão é exercido e o
tempo cronológico é suspenso e substituído por um “tempo poético”.
Zona Autônoma da Palavra, aliás, é o nome do primeiro slam do
Brasil, que acontece em São Paulo promovido pelo coletivo Nú-
cleo Bartolomeu de Depoimentos. Apelidado de ZAP!, esse slam
acontece toda segunda quinta-feira do mês e não há limitação de
tema, nem critério seletivo para participar. As únicas regras são
as mesmas dos slams internacionais: os poemas devem ser de
autoria própria, com no máximo três minutos, e não pode haver
acompanhamento musical, figurinos ou adereços.
E onde entra Paris, os 15 melhores slammers do mundo e a “Cou-
pe du Monde de Poesie Slam nisso tudo?
Desde que soube da existência do poetry slam comecei a pesquisar
sobre o assunto e quando tive conhecimento da existência de cam-
peonatos internacionais quis muito participar. Um dos mais impor-
tantes desses campeonatos gringos é a Copa do Mundo de Poesia
Slam, que acontece em Paris, promovido pela Federação Francesa
de Poesia Slam (sim, uma federação! eles realmente levam isso
bem a sério por lá).
Através de um toque sobre o evento, dado por uma amiga slam-
mer que mora na Bélgica, minha participação começou a ficar
concreta e uma semana depois de ter entrado em contato com a
organização e enviado meu material para ser avaliado, eu era a re-
presentante do Brasil na Copa do Mundo de Slam! E então minha
aventura começou...
O evento acontece juntamente com o Grande Slam Nacional, sem-
pre durante o mês de junho. A esquina da Rua Julien Lacroix, no
bairro de Belleville, onde fica o Culture Rapide, um dos mais tradi-
cionais bares de slam de Paris e “QG” do festival, foi o ponto de
encontro dos poetas onde a língua falada era a poesia 24 horas
por dia. Além dos 64 (!) slammers dos “times” franceses que de-
sembarcam para campeonato nacional, 16 slammers internacionais
também circularam por ali.
Brasil, França, Inglaterra, Gabão, Ilhas Maurício, Dinamarca, Su-
écia, Portugal, Finlândia, EUA, Holanda, Bélgica, Rússia, Escó-
cia e Canadá foram os países participantes da edição deste ano.
Durante os cinco dias de duração do evento, quando não estáva-
mos assistindo (e competindo) nos torneios, invariavelmente es-
távamos: 1) falando sobre poesia, ou 2) declamando poesia, ou
3) assistindo alguém declamar poesia. O bar, o parque, a rua, a
lanchonete, a praça do centro cultural Pompidou, as escadarias
da basílica Sacré Coeur, o metrô... qualquer espaço se trans-
formava em arena para os slammers em questão de segundos.
Deu pra imaginar agora?
No primeiro dia do campeonato fui só pra assistir, pois fazia parte da
chave do dia seguinte. Eu esperava que os caras fossem bons, mas
fiquei chocada com o altíssimo nível das performances e das poe-
sias (que o público acompanhava com traduções em inglês e francês
numa legenda que ia sendo projetada ao vivo atrás dos poetas).
Logo vi que não iria ser fácil. E de fato não foi. Na verdade, no meio
de tanta energia, de tanta pressão e de tanta poesia posso dizer que
essa foi uma das coisas mais difíceis e mais emocionantes que já fiz
na vida. Passei pelos primeiros quatro monstrões, por mais quatro
na semifinal e chegamos à grande final!
No último dia, o tradicional “Le Marroquinerie” estava lotado e eu
tinha uma torcida grande. O público gritava “Robertááá” cada vez
que eu era chamada. Eu era a favorita! Mas, enfim, jogo é jogo.
Por um triz acabei ficando em terceiro lugar, atrás do Chris Tse, do
Canadá, segundo colocado, e do David Goudreault (também do Ca-
nadá, mas representando Quebéc – o lado francês), que foi o cam-
peão. Um resultado prá lá de bom, considerando que não temos
tradição de slams por aqui e que, embora eu tivesse experiência
como slammaster (apresentador e organizador dos slams) esse foi
NÚCLeO BARtOLOMeU De DePOIMeNtOS
Grupo criado em 1999, tem como foco de sua pesquisa de linguagem o diálogo entre a cultura hip-hop e o teatro épico.nucleobartolomeu.com.br
ZAP! ZONA AUtÔNOMA DA PALAVRA
zapslam.blogspot.com
PARA ASSIStIR
vídeo da Copa do Mundo de Poesia slam 2011 omenelicksegundoato.blogspot.com
FlYErs DE slaMs ao rEDor Do MuNDo
o primeiro campeonato do qual participei na vida como slammer
de fato (ou seja, estreei direto numa copa do mundo!).
Enfim, cheguei à final e estou – o Brasil está! – entre os quatro me-
lhores slammers do mundo, pelo menos neste ano.
E tirando o slam em si e a competição, o mais incrível dessa experi-
ência toda foi o encontro e a troca com todas aquelas pessoas inacre-
ditáveis, com todos aqueles contadores de história urbanos, vindos
cada um de um país totalmente diferente, com culturas diferentes,
com ideias e experiências tão diversas. Depois ainda segui para Lon-
dres, onde fizemos, em parceria com o coletivo Braziality, um ZAP!
London (nos moldes do que o Núcleo Bartolomeu promove no Brasil),
e pro Festival Silêncio em Portugal, onde me apresentei com um slam-
mer português e outros vindos da Alemanha, Espanha e Itália.
Encontros. Muitos encontros poéticos e diversos.
É o que fica dessa incrível experiência.
Sinto que muito ainda há para ser desbravado, e num país que é
tão rico no campo das oralidades como o Brasil, o poetry slam tem
muito a crescer. Por tudo que vi e conheci (e por tudo que ainda
quero conhecer e ver), sou cada vez mais uma entusiasta e divulga-
dora do slam, pois realmente vejo nessa modalidade uma maneira
eficaz para que o livre pensamento e a livre expressão tenham mais
um espaço garantido. Vislumbro nesse “esporte” uma maneira po-
tente de se relacionar, e posso afirmar por experiência própria que,
num mundo onde cada vez mais nos é exigido jogo de cintura, o
slam tem me ensinado a jogar.
ROBeRtA eStReLA D’ALVAatriz- MC, diretora, cantora, pesquisadora e slammer, é também membro-fundadora do Núcleo Bartolomeu de Depoimentos, da Frente 3 de Fevereiro e idealizadora e apresentadora do ZaP!. atualmente desenvolve projeto de mestrado sobre voz, oralidade e performance na PuC-sP.
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Quando criança, ela gostava de cantar e dançar as músicas características de
sua aldeia, o que era severamente reprimido na época. A língua a ser fala-
da, as músicas a serem cantadas e dançadas deveriam ser as do colonizador
português. Estamos no começo dos anos 70, em Moçambique, África. Desde
então, muita água passou por baixo dessa ponte. Em 1975, o país conquistou
a independência, se libertando do domínio de Portugal. Foi aí que a arte se
transformou em ferramenta, usada pelo novo governo socialista, para unificar
uma nação que falava 24 línguas diferentes, fora os dialetos. A menina podia,
enfim, ser livre para ser o que era.
Mas isso durou pouco. Em 1976, as disputas internas levaram o país a uma
sangrenta guerra civil que, além de arrasar o país, deixou mais de 900 mil
mortos. O conflito se estendeu até 1992. Foram anos difíceis. Mas a arte se-
guia sendo instrumento de conscientização e conhecimento para o povo mo-
çambicano. E a menina que gostava de celebrar sua cultura através da dança
e da música, escolheu o teatro como forma de ação política e de descoberta
da vida que iria seguir.
A história do teatro contemporâneo em Moçambique se mistura com a história
de vida de Lucrécia Paco. Em meio à guerra civil, a linguagem teatral se desen-
volvia para criar um teatro genuinamente moçambicano. Para isso, Lucrécia
foi uma das fundadoras do grupo Mutumbela Gogo, em 1986, primeiro grupo
profissional de teatro de Moçambique e que segue em plena atividade até hoje.
Uma das mais conhecidas atrizes moçambicanas, Lucrécia já percorreu mun-
do afora apresentando seu trabalho. No Brasil, esteve pela primeira vez em
2009, quando a convite do Instituto Itaú Cultural participou do projeto Antído-
to - Seminário Internacional de Ações Culturais em Zonas de Conflito, com a
peça Mulher Asfalto. De volta ao país em 2011 para novas apresentações do
mesmo espetáculo, Lucrécia, em passagem por São Paulo, recebeu O Mene-
lick 2ºAto para uma troca de idéias. Na conversa, permeada por diferentes
sotaques da língua portuguesa, falamos sobre a força social do teatro em
Moçambique, suas características, a influência da oralidade e o trabalho de-
senvolvido em parceria com autores moçambicanos como Mia Couto.
Democracia moçambicanaLucrécia Paco e o teatro como ferramenta De transformação sociaLPor Cristiane Gomes
O Menelick 2ºAto – Como nasceu à artista Lucrécia Paco?
Lucrécia Paco – Sempre gostei muito de acompanhar as
festas e os ritos de minha aldeia. Quando entrei para escola,
tive um choque muito grande. O que era a minha vida, lá, era
proibido. Nesta época meu país ainda não tinha conquistado a
independência e o sistema educacional era muito repressivo.
A palmatória era usada constantemente e eu apanhava muito
por usar o meu verdadeiro nome, ou seja, o nome dado em
minha aldeia. Quando o país conquista a independência, em
1975, o novo governo adota o conceito de homem novo; a cria-
ção de uma consciência nacional através da cultura. É quando
começam a surgir grupos artísticos polivalentes. E eu, que an-
tes tinha sido repreendida por cantar e dançar as minhas can-
ções, também entrei nesse movimento. E foi neste momento
que voltei a cultivar minha cultura sem medo. Grupos artís-
ticos se criavam nos bairros e a idéia de unificação do povo
moçambicano através da cultura fez com que houvesse um in-
tenso intercâmbio entre as práticas culturais do norte e do sul
do país. Daí comecei a cantar, a dançar, a declamar poemas.
Entretanto, logo após a independência tivemos mais uma
guerra que durou anos. Voltamos à estaca zero. Nessa fase a
gente não cantava, não dançava, a comida era escassa.
OM2ºATO – Houve então um retrocesso. Como você lidou com isso, no momento em que sua liberdade ar-tística estava brotando?
LP – Assistia a muitos filmes soviéticos. Havia uma grande
importação de filmes socialistas. De tanto ir ao cinema ver
esses filmes, me despertou ainda mais a vontade de ser atriz.
Nessa época tinha uns 12 anos e ficava muito entusiasma-
da com o cinema. A gente, ou melhor, esses movimentos de
exaltação da independência, tinham uma necessidade de criar
também uma imagem, uma figura de um anti-herói. Esse per-
sonagem, que era representado em pequenas esquetes tea-
trais, se chamava Chico Nhoca. Algo que pode ter uma simila-
ridade no Brasil com o Macunaíma. Então, fazíamos pequenas
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GUeRRA CIVIL MOÇAMBICANA
Conflito armado que opôs o exército de Moçambique ao movimento resistência Nacional Moçambicana (rENaMo), entre os anos de 1976 e 1992, tendo terminado com a assinatura do acordo Geral de Paz, a 4 de outubro de 1992.
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peças sobre o que era ser moçambicano. Esses grupos, nos anos 80,
trabalhavam nas fábricas, nas empresas. Claro que antes disso havia
teatro no país, mas era um teatro que não falava da realidade, que
não contava as nossas histórias. A primeira vez que tive acesso a um
teatro próximo a mim optei por entrar para a vida teatral. Isso foi
em 1984, quando Manuela Soeiro me convida para integrar o grupo
Mutumbela Gogo, onde estou até hoje.
OM2ºATO – Nós aqui no Brasil temos pouca informação sobre a cena cultural africana. Fale um pouco da realidade do teatro em Moçambique.
LP – Com a independência em Moçambique, o teatro ganhou essa
função (que continua tendo até hoje) de fazer a crítica social, de
conscientizar o povo. Como já contei, surgem então os grupos nas
empresas, nos bairros. Entretanto a Manuela Soeiro tinha a preo-
cupação de que esses grupos tivessem uma continuidade. Como
eram amadores, acabavam caindo no esquecimento. O maior de-
safio então era fazer um teatro profissional. Para isso, criamos uma
padaria para sustentar nossa arte. Havia momentos em que, ao
mesmo tempo em que estávamos ensaiando uma peça, havia gente
trabalhando fazendo pão.
OM2ºATO – Como assim, fazendo pão?
LP – Manuela Soeiro, diretora do Mutumbela Gogo, teve a idéia de
montarmos uma padaria, no momento em que vivíamos um con-
texto de guerra e de muita carência de comida. Daí surgiu essa
fusão do pão com o teatro: poder fazer nossa arte de maneira con-
tínua, ao mesmo tempo em que alimentávamos nossos artistas.
A padaria foi então construída no balcão do teatro. E era sempre
muito bom ensaiar sentindo o cheiro de pão todos os dias. E os
padeiros cantavam enquanto amassavam a massa.
OM2ºATO – Voltando ao teatro que você desenvolve no gru-po Mutumbela Gogo, conte mais sobre as características desse trabalho.
LP - Nosso teatro não é de escrita, porque a tradição africana é base-
ada na oralidade. Nosso grupo opta por fazer adaptações de obras,
contos, crônicas. Trabalhamos muito com Mia Couto, por exemplo.
Buscamos e adotamos um processo de retextualização, passando
esses textos escritos, para o teatro. Trabalhamos também com im-
provisação e, mais tarde, com a dramatização. Quando ainda havia
guerra, fizemos uma adaptação de Lisístrata que, em seu texto origi-
nal, conta a história de mulheres que fazem greve de sexo para aca-
bar com a guerra. Mas sempre que nós abordamos um tema, mesmo
que ele seja uma adaptação, é preciso que ele toque a sensibilidade
do público. Por isso, saímos a campo para pesquisar. Nesse caso,
conversamos com as mulheres que trabalhavam nos mercados. As
opiniões ficaram divididas, mas no fim a gente viu que foi geral a
opinião de que não se fizesse uma greve de sexo. Nossa peça então
teve outro final. Fizemos as adaptações necessárias de acordo com a
realidade de nosso país, porque estamos contando nossas histórias.
Foi um trabalho muito interessante. Chamamos essa peça de Amor
Vem e coincidentemente fizemos nos bairros e mercados no momen-
to em que se iniciavam as discussões para os acordos de paz.
OM2ºATO – Você contou da proximidade que seu grupo tea-tral tem com Mia Couto e outros escritores nacionais. Como é transpor estes textos literários para o palco?
LP - Estes autores sempre se inspiram em uma determinada reali-
dade e acompanham essa história. Então, a escolha ou não de um
autor, de um tema, de um texto, tem muito a ver com isso. A primei-
ra obra de Mia Couto que nós adaptamos era uma forte crítica ao
sistema burocrático e à corrupção em Moçambique. Nossos políti-
cos foram ver essa peça e riram muito (era uma sátira) e ali estava
uma forma que o Mia tem de falar dos problemas com arte. Outro
texto dele, adaptado por mim, foi o Vôo dos Flamingos, que tam-
bém traz esse tema da corrupção, escândalos, crimes. É preciso dar
vida ao livro, tornar visível o que autor quis dizer ali, tornar público.
OM2ºATO – O teatro está fortemente ligado à escrita. Ao mesmo tempo, a oralidade é uma característica intrínseca das culturas africanas. Como você vê essa relação?
LP - Nós vamos buscar outras formas de representação, seja ba-
seada na oralidade, em nossas danças, no nosso gestual, na nossa
tradição. Também buscamos esses elementos tradicionais. Temos
uma dança, o Mapiko que é puro teatro. Nós nos apropriamos dele
para usar em cena. Tudo que é linguagem teatral a gente busca.
OM2ºATO – Do que viu aqui na área do teatro o que mais te chamou a atenção?
LP – Fiz um intercâmbio com as meninas da Cia As Capulanas.
Gostei muito da proposta que vi e essa vivência me deixou bas-
tante inspirada. Tenho um projeto que chama Palco Aberto, que é
levar o teatro para lugares onde as pessoas não tem acesso a ele.
E o projeto delas o Pé no Quintal, pra mim foi uma importante
fonte de inspiração.
CRIStIANe GOMeSJornalista de formação e dançarina por paixão, é mestra em Comunicação e Cultura pela usP, é coordenadora da área de dança do grupo Ilú obá de Min e, se pudesse, só dançava nessa vida.
ANtóNIO eMíLIO LeIte COUtO (1955)
ou simplesmente Mia Couto, é biólogo e um dos principais escritores moçambicanos da contemporaneidade. seu romance Terra Sonâmbula (1992) foi considerado um dos dez melhores livros africanos do século XX.
MANUeLA SOeIRO (1945)
Nascida no ibo, uma ilha na província de Cabo Delgado, em Moçambique, é diretora e fundadora do grupo de teatro Mutumbela Gogo
20 | omenelick 2º aTo | afrobrasilidades & afins
CANTO AfROPERUANOPor Danielle almeida Maria Lando. Lembro como se tivesse acontecido agora. Foi no
final de uma manhã com sol ainda tímido que ouvi os versos
dessa canção pela primeira vez:
“Maria no tiene tiempo (Maria Lando)
de alzar los ojos
Maria de alzar los ojos (Maria Lando)
rotos de sueño
Maria rotos de sueño (Maria Lando)
de andar sufriendo
Maria de andar sufriendo (Maria Lando)
sólo trabaja...”.
Ainda não entendia bem esses sonidos e “pescava” os sentidos das
palavras que não eram familiares. Contudo, o que me arrebatou
verdadeiramente foi aquela voz que entrou pelos meus poros junto
com o som da guitarra que a acompanhava. Um tanto confusa e ex-
citada pela novidade, mesmo sem entender o que dizia boa parte da
letra, me chega a segunda canção, ainda mais avassaladora, ainda
mais penetrante, ainda mais...
“Negra, negra que te quiero,
Goza, negra presuntuosa,
Mira, que me estoy muriendo,
Dame, vida de tu boca...”
Eu nunca tinha ouvido nada igual. Aqueles ritmos e melodias me to-
maram e me levaram ao encontro da obra de Susana Baca, a gran-
de cantora afro-peruana. Susana Esther Baca de La Colina nasceu
em 1944, em Chorrilos, bairro negro situado no entorno da capital
Lima. De família pobre, desde muito cedo Susana Baca foi rodeada
por artistas. Filha de um violonista e de uma bailarina, com ambos
aprendeu seus primeiros versos de canção e seus primeiros passos
de dança, fatores determinantes para a construção da artista que é.
Herdeira da tradição de uma das mais importantes famílias negras
do Peru, os de la Colina (conhecidos por dar à cultura nacional ex-
celentes músicos e bailarinos, como o grande percussionista Caitro
Soto, entre outros), desde o início da carreira Susana optou por interpretar
um repertório marginalizado e em processo de invisibilidade e esqueci-
mento, indo totalmente contra a corrente do mercado fonográfico peru-
ano. Sobre essa escolha, em entrevistas concedidas a diversos meios de
comunicação nacionais e internacionais, Susana relembra a quantidade de
oportunidades que lhe foram negadas:
“Ninguém me abria uma só porta. Eu batia nelas e sempre me respondiam
que poesia não vendia”. As gravadoras diziam que não havia público para
as suas canções e que a ninguém interessaria aquele repertório baseado
em temas afro e em poesias musicadas. Entretanto, precisamente o poema
Maria Lando, de César Calvo, musicado por Chabuca Granda, foi a válvula
propulsora de sua brilhante carreira.
Em 1986, foi apresentado ao músico britânico David Byrne, dono do selo
Lauka Bop, filiado a Warner Bros, o vídeo de um concerto em que uma das
principais atrações era Susana Baca interpretando Maria Lando. Byrne se
encantou tanto por aquela voz tão singular, que alguns anos depois, Susana
foi surpreendida pela visita de David, nascendo assim uma profícua parceria.
Em 1992, após 11 anos de trabalho investigativo com seu companheiro e em-
presário, o sociólogo Ricardo Pereira, Susana Baca lança o disco/livro Del
Fuego y Água, resultado da coleta de canções e testemunhos encontrados
nas cidades costeiras do Peru, região onde permanecem o maior contingente
de afrodescendentes e as mais antigas famílias negras do país que, segundo
censos demográficos, correspondem a 3% da população total. Ainda como re-
sultado desse trabalho, em 1995, funda o Instituto Negro Continuo, um centro
de pesquisa e manutenção da memória afro-peruana, voltado para o ensino
de música e outros saberes às crianças e aos jovens da comunidade de Lima.
Ironicamente e apesar de todos os trabalhos desenvolvidos por Susana em
prol de um povo e de sua história, o reconhecimento de seus compatriotas
só chegou com a conquista do Grammy, na categoria The Best Folk Album,
por seu disco Lamento Negro. Muito embora o prêmio tenha chegado no
ano de 2002, segundo consta na imprensa nacional peruana, o disco foi
editado em 1986 sem autorização da cantora, após ter sido gravado em
Havana (Cuba), curiosamente, no mesmo estúdio onde foram reunidos os
músicos do projeto Buena Vista Social Club. Passados mais de 26 anos, o
brilhantismo do trabalho continua o mesmo, Lamento Negro nos apresenta
música e poesia, nos apresenta história e arte. É uma reunião de poemas
musicados de grandes nomes como Pablo Neruda (Chile), César Calvo e
Chabuca Granda (Peru), entre outros.
Para a felicidade dos apreciadores de sua obra, Susana Baca acaba de lançar
o disco Afrodiaspora, sugestivamente no ano decretado pela ONU (Organi-
zação das Nações Unidas) como o Ano Internacional dos Afrodescendentes.
GUItARRA
Denominação que se dá ao violão nos países de língua espanhola.
afrobrasilidades & afins | omenelick 2º aTo | 23 22 | omenelick 2º aTo | afrobrasilidades & afins
Nesse disco o repertório escolhido presta homenagens à herança
musical afroamericana, onde, entre outras homenageadas estão as
cantoras Celia Cruz (Cuba) e Amparo Ochoa (México). Nós brasileiros
também fomos contemplados e temos a oportunidade de ouvir um
pout-pourri de canções nordestinas, denominado Coco y Forro. Uma
das canções é a No balanço da Canoa, do compositor Toinho de Ala-
goas, difundidas na voz de Alceu Valença e do Trio Sabiá.
Assim, já se vão mais de dez anos desde que ouvi Susana Baca pela
primeira vez. Como cantora, me impressiono com a delicadeza e
qualidade técnica do repertório apresentado a cada disco. Todavia
a admiro para além de uma exímia artista, compositora e dona de
uma voz de cores e calores incomparáveis. A admiro pelo grande es-
forço de pesquisa ao qual tem se dedicado e pelo compromisso que
assumiu com a herança negra em seu país, compromisso esse reco-
nhecido pela mais alta esfera da política peruana. No dia 28 de julho
deste ano, Susana Baca foi nomeada ministra da cultura pelo recém-
-eleito presidente Ollanta Humala. Susana Baca é a primeira ministra
negra do Peru desde sua independência em 1821. Emocionada, em
entrevista após os atos de nomeação, Susana Baca declarou que os
afro-peruanos têm que participar da política e que trabalhará para
que a cultura não seja somente para aqueles que possuem meios
econômicos para adquiri-la, mas que seja democrática.
Graças ao trabalho de Susana Baca e outros grandes nomes da
cultura afro-peruana, como os Santa Cruz e os de La Colina, nós,
outros filhos da diáspora, temos podido compartilhar e apreender
com um dos mais ricos resultados da produção músico-cultural e
histórico-social do negro nas Américas.
DANIeLLe ALMeIDAGraduada em música pela universidade Federal de Pelotas (uFPel), é tutora do Curso de Aperfeiçoamento uNIAFRo IV e membro do Núcleo de Apoio Pedagógico da Casa das Áfricas (sP).
MãE PRETA
Por Alexandre Bispo
susaNa baCa, FiGura CHaVE Na rEVitaliZação Da MúsiCa aFroPEruaNa E PriMEira MiNistra NEGra Do PEru DEsDE a iNDEPENDêNCia Do PaÍs, EM 1821
ilu
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ção
ViC
toro
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M.C
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)
de reconhecimento e visibilidade política, social e cutural. Curiosa-
mente, ao mesmo tempo em que o samba tornava-se um símbolo
nacional, casas de candomblé sofriam com a repressão policial, e
os capoeiristas não raro eram vistos também como malandros, de-
sempregados e perigosos na visão das elites.
Segundo a historiadora Maria Aparecida de Oliveira Lopes que
estudou a atuação da imprensa negra em São Paulo, “Os negros
paulistas que escreviam nos jornais alternativos, entre 1940 e
1960, escolheram como figura central da história do negro brasi-
leiro uma representante da ala feminina: a mãe negra”. As muitas
mães negras foram mulheres compradas, ainda moças entre 13 e
15 anos de idade para desempenhar serviços domésticos: lavar,
passar, arrumar a casa e ser a mãe das crianças ricas. Em 1953,
ainda, segundo Lopes, a Folha da Noite informou que o Clube 220,
entidade que reunia a “família de cor” de São Paulo, por meio de
seu presidente o Sr. Frederico Penteado Junior, sugeriu à Câmara
Municipal a ereção do busto da Mãe Preta em uma das praças
públicas da cidade. Novamente como nos anos 20 houve resis-
tência do prefeito, mas depois de apelações seguidas e a reunião
de mais de 500 assinaturas o pedido foi aceito. O lugar escolhido
para abrigar a escultura foi o Largo do Paissandu, local já bem
conhecido à época por sua igreja dos negros que ali se instalou
em 1903, após a irmandade do Rosário de Nossa Senhora dos
Homens Pretos ser obrigada a desapropriar o terreno no Largo
do Rosário ocupado desde o século 18, onde hoje é a BMF. A pre-
sença dessa igreja na zona central nunca foi algo tranquilo, sua
inauguração em 22 de abril de 1908 ocorreu, embora os mora-
dores protestassem que com a construção a praça perderia sua
beleza original. Mais tarde, em 1940, a igreja sofreria ameaças de
demolição, especialmente com o desenvolvimento da Cinelândia
cujo público dos cinemas eram as elites. O prefeito Prestes Maia
intencionou substituir a igreja por um monumento a Duque de
Caxias, mas sem sucesso. A igreja foi e é um templo modesto com
dificuldades de se manter, de alocar recursos para restauração do
seu edifício e da praça como um todo.
IV CENTENÁRIOEm 1954 São Paulo comemorava seu IV aniversário. Esse evento
foi muito importante na história da cidade que tinha em torno de
três milhões de habitantes. Grande parte dessa população mo-
rava nos subúrbios e as ruas da zona central concentravam o
comércio e os serviços, educação e cultura. As celebrações dura-
Na cidade de São Paulo não são muitos os monumentos que ho-
menageiam personalidades, eventos e datas históricas relativas à
presença dos negros. Talvez o monumento mais antigo seja o bus-
to de Luiz Gama, no Largo do Arouche, feito em 1931 por Yolando
Mallozzi e que foi encomendado por uma comissão de intelectuais
negros liderados por José Benedito Correia Leite (1900-1989). Essa
quantidade diminuta de monumentos reflete assim, a forma pela
qual a participação dos negros e afrodescendentes na formação
do país por pouco passaria invisível não fossem os esforços de
antigos militantes negros, que já nas primeiras décadas do século
20 intentaram convencer o Estado a reconhecer publicamente, por
meio da construção de uma escultura, a importância de seus ante-
passados para a construção da nação.
Em meados dos anos 1920 alguns militantes negros, dentre os
quais vários jornalistas e intelectuais, tiveram a idéia de fazer
uma escultura representando a Mãe Preta. O objetivo era chamar
a atenção para a importância dos negros na formação do país.
Tratava-se de justa homenagem à imagem da mulher negra que
conheceu e geriu como ninguém o mundo doméstico, que deu a
vida por bebê alheio, que ensinou as primeiras palavras, cantou
para dormir as moças apaixonadas, tirou piolhos e deixou dengo-
so os futuros donos do poder.
Essas mulheres seriam a representação do trabalho, do amor e da
negação de si próprias e, estavam eternizadas na memória de mui-
tos brasileiros negros e brancos naquele inicio de século. Embora
não faltassem, desde a idéia inicial, os contrários a esse elogio a
um passado que para alguns devia ser esquecido.
O plano daqueles militantes era que a escultura fosse erigida no
Rio de Janeiro, então capital federal, mas houve recusas e com o
advento da Revolução de 1930 a idéia foi abortada. Os anos 1930
no Brasil foram marcados pela eleição de alguns símbolos nacio-
nais como o samba, a mulata, a feijoada o culto a Nossa Senhora
Aparecida. Essa foi uma estratégia populista do governo Getúlio
Vargas para conter a pressão que muitos negros faziam em favor
luiZ GaMaYolaNDo MalloZi 1931
Para VEr
Alguns dos trabalhos da artista plástica rosana Paulino retratam a mulher negra, em especial as amas de leite e o modo como são representadas.rosanapaulino.blogspot.com
26 | omenelick 2º aTo | afrobrasilidades & afins
ram um ano e com ela não só o monumento a Mãe
Preta foi inaugurado, mas também o Monumento às
Bandeiras de Victor Brecheret, que estava na fila de
espera desde os anos 20.
Inaugurada em 1955, no fim das celebrações do ani-
versário da cidade, após concurso venceu o escultor
Ibirapuera, pseudônimo de Julio Guerra (1912-2001),
artista descendente de família nobre de Santo Amaro,
formado na Escola de Belas Artes. A aparência de estilo
moderno da escultura desagradou militantes, como o
jornalista e escritor negro José Benedito Correia Leite.
Em sua opinião a escultura não representava a mulher
negra bonita, educada e arrumada que foram as amas
de leite. O que desagradou Correia Leite foram os exa-
geros comuns ao traço modernista: os pés e as mãos
enormes como símbolos da atividade produtiva da
Mãe. Basta lembrarmos que A negra da artista Tarsila
do Amaral tem a boca e o seio enormes e figuras negras
como o homem da tela Café, de Candido Portinari tem
seus pés e mãos arranjadamente desproporcionais.
FLORESA partir de 1960 o Clube 220 com auxilio de fiéis do
candomblé começou a comemorar o Dia da Mãe Preta
em 13 de maio, realizando festividades em torno da
estátua. Em 1970 tanto o prefeito de São Paulo quan-
to o arcebispo assistiram ao evento anual e, em 1972,
o 220 conseguiu trazer à capital paulista o presidente
Médici. Durante a festividade, que reuniu em torno de
10 mil pessoas, o presidente, em gesto que também
foi acompanhado pelo então Governador de São Pau-
lo, Laudo Natel, depositou flores aos pés da estátua.
Essa atitude ocorre ainda hoje, e diante ou em cima da
estátua são feitas oferendas de flores, cigarros, bilhe-
tes com pedidos, o que tornou a imagem uma evoca-
ção da Preta Velha do imaginário popular.
Mas foi ainda nos anos 1970, com o fortalecimen-
to da militância negra na forma de um expressivo
movimento social, que a figura da Mãe Preta sofreu
críticas contundentes. Para alguns militantes essa
imagem só servia para a elite. Certos ativistas cha-
mavam a atenção para o fato de que a Mãe era um agente, um
sujeito histórico e biográfico não apenas a empregada submissa
e passiva, cuidando da elite desde a mais tenra infância.
TRANSFORMAÇÕES DE SIGNIFICADO E NOVAS FORMAS DE MONUMENTOOs significados de um monumento se modificam ao longo dos anos
e, nem sempre as intenções que lhe deram origem permanecem,
pelo contrário, o que ocorre é uma sobreposição de sentidos. Isso
acontece com o monumento à Mãe Preta que tanto simbolizou a
Ama de Leite, quanto a Preta Velha, tanto a mãe de todos quanto a
doadora de vida para as elites. Nos dias atuais a praça que abriga
esses dois símbolos (Estátua e Igreja) da história dos negros em
São Paulo está entregue pelo poder público à sujeira e, longe do
perfume das flores que poderiam ser depositadas aos pés da está-
tua predomina o cheiro forte de urina e miséria que deteriora tanto
as paredes da igreja quanto a base do monumento.
A escultura foi reconhecida como patrimônio histórico em 2004,
lá se vão sete anos e, pouco ainda foi feito para garantir a perma-
nência e integridade dessa escultura que faz parte dos esforços de
militantes negros por reconhecimento e participação da população
negra nos destinos da cidade.
Atualmente há outras formas de chamar a atenção para a impor-
tância da memória de acontecimentos marcantes relacionados à
memória negra e afro-brasileira. O grupo Frente 3 de Fevereiro por
exemplo, fez uma ação monumentalizante para relembrar a memó-
ria do jovem dentista Flavio Santana, negro, 28 anos, morto pela
polícia de São Paulo por racismo em 3 de fevereiro de 2004. A atitu-
de do grupo sofreu represálias como a destruição da obra, espécie
de lápide que fizeram em homenagem ao jovem assassinado, no
local mesmo da tragédia. Conto este episódio para mostrar que a
memória dos eventos deve ser construída e que se não for registra-
da ou preservada de alguma forma se perderá na noite escura do
tempo que a tudo encobre.
Fica um desafio para todos nós, que é erigir outros monumentos
que lembrem a memória afro-brasileira: nomes de ruas, templos re-
ligiosos, casas de antigos moradores de bairros periféricos, lugares
de realização de saraus literários, que daqui a alguns anos se torna-
rão referências para os jovens do futuro, e mesmo os registros da
memória oral, porque a cidade é também a memória sentimental
que temos dela. O hoje um dia será lembrado como algo antigo.
PARA LeR
artigo: as representações sociais da Mãe Negra na cidade de são PauloMaria aparecida De oliveira lopes, 2007Disponível em: www.assis.unesp.br
ALexANDRe ARAUJO BISPOGraduado em ciências sociais e mestrando em antropologia social, ambos pela usP, atua como educador em museus e em curadoria de exposições desde 1998, entre as quais destacam-se É nóis na fita (2010) e Negro Imaginário (2008). Atualmente é pesquisador e educador do projeto artistas Viajantes da Nossa Goma.
MãE PrEtaJulio GuErra 1955
afrobrasilidades & afins | omenelick 2º aTo | 29 28 | omenelick 2º aTo | afrobrasilidades & afins
SER, REPRESENTARE RECONHECERativismo visuaL na África Do suL Pós aPartHeiD
Por luciane ramos silva Em setembro de 2010, mês de abertura da 29ª Bienal de Artes de
São Paulo, a fotógrafa Zanele Muholi (1972) acompanhada do ar-
tista nigeriano Andrew Esiebo (1978), compartilharam um pouco
de suas motivações e percepções artísticas, num bate papo na
Casa das Áfricas, espaço cultural e de estudos sobre sociedades
do continente africano.
Apesar das múltiplas identidades e estéticas africanas, há cami-
nhos que se cruzam na experiência de ser negro/negra e africano/
africana no mundo atual. Essas confluências são refletidas em prá-
ticas artísticas evidentemente políticas, que engolem, mastigam e
vertem novas realidades. A trajetória da sul africana Zanele Muholi
nos mostra isso. Nascida na Township de Umlazi, Durban, durante
o Apartheid (regime de segregação racial que perdurou de 1948 a
1994), a artista traz na retina críticas a marginalidades e exclusões
compulsórias legitimadas por políticas de estado que pregavam
um eufemístico “desenvolvimento em separado”. Tal separação,
concretizada em precárias reservas territoriais para a população
negra nas áreas urbanas, valia não apenas para a terra, mas tam-
bém para educação, saúde e direitos civis – desigualdades oficiais
que privilegiavam a minoria branca.
Zanele traz em sua trajetória artística uma maneira afiada de abor-
dar questões complexas. Gênero, raça e sexualidade se entrecru-
zam e transbordam em imagens poderosas. Sua produção visual,
entre fotografia e documentário, revela universos duramente dis-
criminados pela sociedade contemporânea. Atuando no campo da
militância queer (grupos LGBT – Lésbicas, Gays, Bissexuais e Trans-
gêneros – que questionam a ordem homogênea das relações de
gênero), seu bravo ativismo visual documenta traços de uma África
do Sul pós-apartheid que ainda tem à frente o desafio de graves de-
sigualdades e expressões de intolerância, entre elas, a homofobia.
QUeeR
termo originalmente pejorativo usado para ofender homossexuais nos Estados unidos. Na década de 80 ganha outros sentidos desmistificando a homossexualidade e rompendo com percepções homogêneas do masculino e feminino reivindicando a multiplicidade de identidades de gênero.
NoMoNDE MbusibErEa / JoHaNNEsburG2007
30 | omenelick 2º aTo | afrobrasilidades & afins
A conversa com Zanele nos transporta diretamente a contextos
africanos - petrificados no imaginário ocidental como espaços da
barbárie. Mas vale lembrar que aqui mesmo na terra brasilis teste-
munhamos manifestações, oficiais inclusive, de hostilidade e ódio,
a gays, lésbicas e outras identidades que destoam dos modelos
hegemônicos. Aqui as políticas públicas em prol da diversidade de
gênero ainda caminham a passos lentos. No Brasil e nas socieda-
des africanas que buscam consolidar suas jovens democracias a
real igualdade de direitos ainda é uma ilha distante do olhar.
Vencedora de prêmios como o Casa África de melhor fotógrafa
(2009) e Fundação Blachère no 8º Encontro Bienal de Fotografia
Africana em Bamako, Zanele tem frente à sua lente a proposta de-
safiadora de documentar o que foi historicamente invisibilizado ou
retratado por enquadros coloniais eurocentristas. Seus trabalhos
nos mostram “Faces e Fases” de pessoas - sujeitos de seus desti-
nos. Invertendo a chave da representação, Zanele realiza a intenção
de muitos artistas africanos – a de contar suas próprias histórias.
Que a África fale por ela mesma.
Ngiyabonga, Zanele!
OMENELICK2ºATO - Como artista africana, o que você quer no Brasil?ZANELE MUHOLI - Estar nesta 29ª Bienal é excitante por um lado
e decepcionante de outro. Porque torna-se algo mais sério quando
não vemos muitas pessoas da tua cor de pele.( Referência à entre-
vistadora). Meu trabalho interroga a presença de lésbicas negras,
transgêneros e gays na África do Sul e o espaço para o qual olho
é o das townships, que podem ser percebidos ou definidos como
“guetos” em termos comuns. O que estou procurando no Brasil é
reunir mulheres, que não precisam necessariamente se identifica-
rem como lésbicas, mas como mulheres negras. Meu mote é a ne-
gritude e a ausência de mulheres artistas. Quando falo de artistas
ou ativistas, refiro- me as que estão fazendo trabalhos relacionados
aos universos queer ou fazendo trabalhos políticos - ocupando
espaços que nunca foram concebidos para nós. Assim, para mim,
estar neste espaço significa muito porque tenho a oportunidade de
apresentar, representar, reescrever e projetar imagens que podem
aparecer em espaços específicos. Eu falo também sobre a neces-
sidade de termos colaborações entre artistas de raça negra para
entendermos nossas existências. Quem estava aqui antes de nós.
O que significa que nós somos gerações que irão informar futuras
gerações a partir de nossas existências neste espaço. Os livros que
tOwNShIPS
sharpeville e soweto são outros exemplos de townships (áreas urbanas criadas com o propósito de manter a população negra afastada dos brancos) fortemente noticiadas por terem sido palco de protestos e rebeliões durante o apartheid.
NGIyABONGA
significa obrigado, em zulu, uma das 11 línguas oficiais da África do sul.
baKHaMbilE sKHosaNaNatalsPruit2010
afrobrasilidades & afins | omenelick 2º aTo | 33 32 | omenelick 2º aTo | afrobrasilidades & afins
são escritos sobre pessoas negras não foram escritos por nós. Os
filmes que foram feitos sobre pessoas e comunidades negras foram
explorados por etnógrafos e antropólogos europeus e nunca feitos
por nós. É nossa geração que pode provocar mudanças e mostrar o
que veio antes de nós e ter oportunidade de processar e consumir
o que tem sido feito por nós, pessoas negras, e especialmente mu-
lheres. Sei da felicidade de ser um ser que sangra, que tem sangue
e menstruação. Sei o que isso representa e provoca.
Pessoas transgêneros, especialmente mulheres trans, tornaram-se
alvos de crimes de ódio no Brasil. E na África do Sul, as mulheres
lésbicas viraram alvo de estupros corretivos, onde pessoas tem a
idéia de que se você estupra uma lésbica ela se tornará uma mulher
hetero. Assim, falando como uma pessoa lésbica por identidade,
eu sei a dor de perder amigos, de testemunhar e ver que crimes de
ódio acontecem dentro de minha comunidade.
OM2ºATO - A realidade da África do sul é imprescindível em seu trabalho?ZM - Falando de onde eu venho, dos últimos anos, pessoas de ou-
tros países tem testemunhado ações xenofóbicas, lesbianfóbicas
e queerfóbicas. O que é importante para nós, para projetar África
para pessoas de outros espaços é sustentar encontros que falam
sobre as ideias falsas de nós mesmos nesses espaços que distor-
cem a história. É realmente importante captar o que nós conhece-
mos porque isso é imediato e vem de nós. E depois vem de fora.
Isto é o numero um. Relatar historias que fazem sentido para nós. E
elementos para as pessoas entenderem o que é Africa. Não importa
para nós criar mais barreiras. África nunca teve fronteiras. As fron-
teiras foram impostas contra nós em contextos de diferentes lín-
guas e diferentes tipos de significado do que somos nós. (...) Quan-
do vemos pessoas negras ficamos instigados porque assumimos
nosso passado de África mesmo diante de diferenças de língua. Há
diversas relações que falam de todos os lugares. Interessa-me par-
ticularmente perguntar de onde você é, de onde você vem. Talvez
nós dividiremos existências que não sabemos, porque as pessoas
se deslocaram. Nós somos um só povo, nós somos uma nação.
OM2ºATO - Estar no Brasil, na bienal e não ver pessoas ne-gras. Como você sente isso?ZM - Há inda muito trabalho, muita coisa a ser feita. Eu acho que
pessoas como nós têm a oportunidade de estar nessa bienal para
dizer “não é isso que queremos ver”. Nós queremos ver mais pes-
soas negras presentes, nós queremos ter convergências com os
locais. Coisas que tragam educação para as escolas. Nós quere-
mos ter oportunidade de ver as comunidades porque os trabalhos
que nós produzimos estão muito relacionados com as realidades
de nossas vidas. Então, isso é, de certa maneira artificial.
OM2ºATO - O que é artificial? ZM - Em primeiro lugar nós não conhecemos o Brasil. Eu conheço
o hotel e a avenida da exposição. E esta é minha primeira vez no
país. Acredito fortemente na necessidade de dividir, de comparti-
lhar, de dar acesso aos que estão marginalizados, os que não têm
oportunidades. Nós também sabemos que nem todos tem acesso
à internet, nós sabemos sobre as burocracias. Podemos, como
fotógrafos vindos de fora, dar workshops em comunidades, em
espaços particulares e então propor trabalhos, agregar e produzir
com as pessoas para que eles tenham acesso.
Eu quero ter conversas com outras mulheres, que podem saber
sobre o país de onde eu venho para além das informações pela
internet que estão aí. Também vou ouvir mais vozes de mulheres
brasileiras e temos que falar sobre possibilidades de como essas
mulheres, vindo de outros espaços, podem a partir de alianças,
enriquecer, trazer colaborações e trocas que nos possibilitem co-
mandar. Eu quero ver mulheres reais. Eu não estou falando do
tipo de mulher “Porshe cinco estrelas” . Não estou falando de
sofisticação. Estou falando de mulheres reais. Mulheres reais ar-
tistas, mulheres reais que não têm medo de falar sobre política,
políticas de exclusão, políticas de exploração, políticas de auto
representação, políticas de todas as formas.
FACeS AND PhASeS
os retratos dispostos pela entrevista integram o projeto Faces and Phases, nome da série, iniciada em 2006 e ainda em curso, de retratos em preto e branco produzidos pela fotógrafa Zanele Muholi. As imagens concentram-se na comemoração e na celebração da vida de mulheres negras lésbicas e apresentam imagens de mulheres habitantes das townships, na África do sul. Em 2008, após os ataques xenófobos e homofóbicos que levou ao deslocamento em massa de pessoas naquele país, Muholi decidiu expandir a série para incluir fotografias de mulheres de diferentes países.
AGRADeCIMeNtO eSPeCIALstEVENsoN GallErYwww.stevenson.info
LUCIANe RAMOS SILVA
Doutoranda em artes da cena pela uNiCaMP,
mestre em antropologia também pela uNi-
CAMP, atua na área de estudos africanos,
educação e artes do corpo. É antropóloga
da Casa das Áfricas, professora de estudos
africanos na FACAMP e de dança afro na
sala Crisantempo (sP).
ZANeLe
zanelemuholi.com
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BEM ME QUER“OOOO SAMMMBA PEDE PASSAGEM! Dispara com entusiasmo o simpático
e ainda jovem locutor Moisés da Rocha (1942), pontualmente ao meio-dia,
no comando dos microfones da Rádio USP. A frase, que mais tarde viria tor-
nar-se tradicional no rádio paulistano, naqueles anos de 1978, ecoava como
um canhão pelas bordas, subúrbios e comunidades negras da cidade.
Não por menos. Foram necessários mais de 50 anos (a primeira transmissão
radiofônica do país ocorreu em 1922, durante as comemorações do Centená-
rio da Independência) para que o ainda então principal veículo de massa do
Brasil (já ao lado da TV), enfim dedicasse um dos quadros da sua programação
às tradições culturais verdadeiramente de origem periféricas e afrobrasileiras.
Apesar do momento político turbulento, o país vivia sobre o fardo e as san-
grentas consequências das intolerâncias do regime militar (1964 – 1985), que
refletiam em uma repressão ainda mais rígida sobre as manifestações artís-
ticas - como poeticamente retrata o samba Delegado Chico Palha (1938) de
Nilton Campolino e Tio Hélio - surge na Rádio USP O Samba Pede Passagem.
Pela primeira vez, de fato, uma emissora em FM (Frequência Modulada)
buscava estreitar a relação dos negros e suburbanos com o rádio, mas
não somente através da música, seu carro chefe. Informações, entrevis-
tas, notícias e produções das beiras da cidade eram o diferencial do pro-
grama, apontado como o pioneiro no rádio brasileiro em FM especifica-
mente dedicado ao samba.
“O Leonardo de Castro é que me levou para a Rádio USP. Ele era locutor da
Rádio Bandeirantes e também responsável pela narração do Samba Pede
Passagem. Não demorou muito e ele saiu. Pro lugar dele foi pra lá um ex-
-parceiro meu da Rádio Jovem Pan, o diretor de criação Mário Fanucchi. Na
época eu era tipo um “bam bam bam” na Jovem Pan como locutor, mas na
rádio USP eu havia sido convidado para fazer a programação de samba, e
BEM ME QUER, MAL ME QUERum PeQueno caPÍtuLo Da História Do negro e o rÁDio em são PauLo
Por Nabor Jr
só. Fazia a seleção das músicas e dava para o narrador falar. Aí o Fanucchi
me deu uma oportunidade como locutor. Quando eu começo a falar o pro-
grama estoura!”, lembra Moisés da Rocha.
Produtor, pesquisador e locutor (oriundo de uma das primeiras, se não a
primeira, geração de locutores negros do país), Moisés da Rocha, nascido
em Ourinhos, interior de São Paulo, é a voz por trás do programa. “O Samba
Pede Passagem surgiu em 1978, já com este nome. Antes era um programa
de samba qualquer, que tocava músicas e ponto. Mas quando eu entro aí é
que vira o verdadeiro O Samba Pede Passagem. Porque eu começo a falar
com a periferia, tocar os sambas da periferia. O programa nunca foi só ouvir
por ouvir”, conta Moisés, que iniciou sua carreira de radialista em 1967, na
Rádio Cometa, em São Paulo, tendo passado mais tarde pelos microfones
das rádios Jovem Pan, Gazeta, Cultura, Carioca, entre outras.
Até então vistos e representados por periódicos próprios ou, no máximo,
em escassos, quando não também pejorativos e negativos, “flashes” em
emissoras de rádio e TV da época, os negros viam no programa a possibi-
lidade de ressurgimento da Imprensa Negra Paulista (movimento iniciado
em 1915, com o surgimento do jornal O Menelick e interrompido em 1964,
pelo regime militar, que censurou os órgãos de imprensa em todo o país,
fechando assim o jornal Correio d´Ébano, última tentativa de dar voz as
manifestações negras).
Foi somente em 1978, mesmo ano da criação do O Samba Pede Passagem,
com o ressurgimento do Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação
Racial (MNU), que mais tarde deu origem a veículos de comunicação pró-
prios, que a Imprensa Negra Paulista retomou suas atividades.
“O Samba Pede Passagem nunca foi meramente um vitrolão pra tocar
música. Tocar música o cara bota em casa! Nós falamos com a periferia.
Anteriormente ao Samba Pede Passagem não existia um programa com
o qual a comunidade negra se identificasse, muito pelo contrário. Até
com a conivência de atores negros sem consciência, o rádio serviu muito
até para mostrar a inferioridade do negro diante as demais etnias, com
piadas preconceituosas, tipos caricatos”, diz Moisés, referindo-se ao hu-
morista e compositor carioca Dorival Silva (1923 – 1989), conhecido como
Chocolate, comediante que ao longo das décadas de 1950 e 1960 teve
muito sucesso em emissoras de rádio e televisão do Rio de Janeiro e de
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São Paulo. Chocolate foi muito criticado pala militân-
cia negra do período pelo modo como se comportava,
fazendo piadas com os negros.
“Uma coisa é certa. O que essa molecada de hoje não
faz na FM, nós fazíamos no AM”, relembra Moisés, fa-
zendo-nos lembrar dos áureos tempos do programa,
vivido nos anos 80 e início dos anos 90, quando foi
diretamente responsável pelo sucesso do samba e do
pagode em São Paulo ao apresentar, em muitos casos
pela primeira vez aos ouvintes da capital, nomes como
Zeca Pagodinho, Jovelina Pérola Negra, Fundo de
Quintal, Oswaldinho da Cuíca, Geraldo Filme, Talismã,
Zeca da Casa Verde, Germano Mathias, Eduardo Gu-
din, grupo Redenção, Dona Inah, grupo Pé de Moleque.
“Esse pessoal não tinha espaço na rádio, no máximo a
coluna do Plínio Marcos no jornal. Com o samba Pede
passagem os nêgo veio também começam a aparecer”.
O Samba Pede Passagem alcançou tamanha influência e
prestígio entre seus ouvintes, que Moisés da Rocha aca-
bou sendo convidado para ser programador na Rádio
Carioca, onde fez as seleções do primeiro programa ex-
clusivamente de samba de uma rádio no Rio de Janeiro.
“A história da veiculação do samba nas emissoras de
rádio paulista, não pode ser contada sem o pioneirismo
do Samba Pede Passagem e nem do radialista Moisés da
Rocha. Todos os principais sambistas dos Brasil devem
muito ao programa. Sua ajuda em divulgar os projetos,
os artistas, as músicas. Gostaria que eles se lembrassem
disto”, afirma a professora aposentada Clarice Pereira,
de 75 anos, ouvinte do programa desde os anos 80.
Símbolo da resistência cultural afrobrasileira, O Samba
Pede Passagem pode ser conferido aos sábados e do-
mingos, nas rádios USP e Capital.
MAL ME QUERSe nos dias atuais, apesar das mudanças e transformações dos
meios, já é possível observar algumas dezenas de programas e
projetos de rádio dedicados a cultura afrobrasileira e suburbana,
bem como radialistas e locutores negros (em sua maioria con-
centrados na mídia digital), no início da radiodifusão no Brasil o
cenário era outro.
É o que revelou o pioneiro estudo Cor, Profissão e Mobilidade: O
Negro e o Rádio de São Paulo, publicado em 1977, pelo antropólogo
e professor emérito da Universidade de São Paulo, João Baptista
Borges Pereira (1929). A pesquisa, realizada entre os anos de 1959 e
1964, apresenta a inserção profissional do negro no mundo empresa-
rial do rádio em São Paulo nos primeiros 40 anos de sua existência.
Segundo Borges foi, indiretamente, apenas após a chegada da pu-
blicidade no rádio, em 1932, depois de um decreto estabelecido
durante o governo Getúlio Vargas, que o negro passou a ter espaço
no rádio. “Num primeiro momento, os criadores do rádio no Brasil
o idealizaram com a expectativa de que ele modernizasse o país
através da educação. O rádio seria o mestre dos que não sabiam
ler. Esse modelo de rádio, contudo, se mostrou erudito. Depois
veio a publicidade que tomou conta do rádio, somente aí o rádio
se abriu para o público em geral e incorporou definitivamente a
música popular”, diz.
Com a mudança, a música negra, até então observada como lazer e
praticada apenas em espaços específicos, como ao redor das casas
de mãe de santo em manifestações que eram uma espécie de so-
ciabilidade banhada a música, acaba sendo incorporada aos novos
tempos e passa a ter vez nas rádios brasileiras.
Por outro lado, o negro como profissional, continuou sendo excluí-
do das cadeiras da estrutura empresarial do rádio. “No meu traba-
lho isso está muito claro (a não presença do negro no corpo de fun-
cionários da rádio) o negro nunca está na cúpula. Cortando de cabo
PARA LeR
Cor, profissão e mobilidade: o negro e o rádio em são Paulo.João baptista borges PereiraEditora: EDusP 2001 (segunda edição)
PRÊMIOS
o samba Pede Passagem recebeu nos anos de 1990 e 2005 o prêmio de Melhor Programa de Rádio Musical concedido pela aPCa (associação Paulista dos Críticos de arte).
“Atualmente de 87.5 a 107.9, eu ouço Seu Jorge, Marvin Gaye, Areta Franklin, Exaltasamba, Barry White. O que falta são mais programas específicos no dial, mas pra isso temos que ou captar patrocinadores ou acreditar mais em nossos planos para assim incluirmos mais musica negra nas rádios que se simpatizam timidamente pela gente”. Fábio Rogério, apresentador dos programas Espaço Rap, Festa da 105 e repórter do programa balanço rap.
leia a entrevista com o apresentador em omenelicksegundoato.blogspot.com
Moisés Da roCHa
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a rabo o rádio, de maneira verticalizada, tem o setor administrativo,
o setor artístico, onde está o setor musical. O negro estava dentro
do rádio segregado dentro do musical só. Ele não tinha nenhuma
credibilidade fora daí”, conta Borges.
De acordo com Baptista, o rádio era, e continua sendo, um reflexo
da sociedade brasileira: “Digamos que o rádio era excepcional a
medida que incorporava o negro dentro de um lócus de trabalho
. Mas ao mesmo tempo, esse lócus, que aparentemente era favo-
rável ao negro, não era tão favorável assim. Em linhas gerais ele
refletia como estava a sociedade. Assim como acontece hoje”.
As conclusões do estudo Cor, profissão e mobilidade, mesmo após
mais de 40 anos da sua publicação, infelizmente seguem atuais.
A intensa e constante produção cultural afrobrasileira apesar de
hoje já encontrar espaços em algumas das rádios do país, continua
reprimida. Os negros oriundos das cadeiras de comunicação das
universidades brasileiras ainda sofrem com as poucas possibilida-
des nas grandes (e muitas vezes nas pequenas também) emissoras.
Mas se o samba pede passagem, o negro, por outro lado, aos pou-
cos aprendeu a impor a sua, criando novas oportunidades radiofô-
nicas e dando voz à rica produção artística afrobrasileira, a revelia
de uma elite que, mesmo se apropriando desta mesma produção,
insiste em ignorar a fundamental importância da contribuição ne-
gra na construção da identidade cultural do Brasil.
NABOR JR.
Jornalista, fotógrafo e editor da revista
o Menelick 2o ato
PARA OUVIR
o saMba PEDE PassaGEMRádio usP FM 93,7 MHzsábados e domingos das 12h às 14hRádio Capital AM 1040 MHzsábado, das 23h às 6h da manhã de domingo
EDiçÕEs torÓ: Nas ruas Da litEratura edicoestoro.net
rÁDio HEliÓPolis 87,5 FMheliopolisfm.com.br
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