1
U N I V E R S I D A D E D E S O PA U L O FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE GEOGRAFIA PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM GEOGRAFIA HUMANA
AA nn tt oo nn ii oo MM aa rr cc oo ss RR oo ss ee ii rr aa
NNOOVVAA OORRDDEEMM SSUULL--AAMMEERRIICCAANNAA RREEOORRGGAANNIIZZAAOO GGEEOOPPOOLLTTIICCAA DDOO EESSPPAAOO
MMUUNNDDIIAALL EE PPRROOJJEEOO IINNTTEERRNNAACCIIOONNAALL DDOO BBRRAASSIILL
SS oo PP aa uu ll oo ,, 22 00 11 11
2
AA nn tt oo nn ii oo MM aa rr cc oo ss RR oo ss ee ii rr aa
NNOOVVAA OORRDDEEMM SSUULL--AAMMEERRIICCAANNAA RREEOORRGGAANNIIZZAAOO GGEEOOPPOOLLTTIICCAA DDOO EESSPPAAOO
MMUUNNDDIIAALL EE PPRROOJJEEOO IINNTTEERRNNAACCIIOONNAALL DDOO BBRRAASSIILL
Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Geografia Humana do Departamento de Geografia, da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo, como Requisito Parcial para Obteno do Ttulo de Doutor em Geografia Humana. Orientador: Prof. Dr. Wanderley Messias da Costa.
SS oo PP aa uu ll oo ,, 22 00 11 11
3
AUTORIZO A REPRODUO E DIVULGAO TOTAL OU PARCIAL DESTE TRABALHO, POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETRNICO, PARA FINS DE ESTUDO E PESQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE.
4
FOLHA DE APROVAO
Antonio Marcos Roseira Nova Ordem Sul-Americana: Reorganizao Geopoltica do Espao Mundial e Projeo Internacional do Brasil Aprovado em:
Banca Examinadora
Prof. Dr.(a) ____________________________________________________________
Instituio: _________________________Assinatura__________________________
Prof. Dr.(a) ____________________________________________________________
Instituio: _________________________Assinatura__________________________
Prof. Dr.(a) ____________________________________________________________
Instituio: _________________________Assinatura__________________________
Prof. Dr.(a) ____________________________________________________________
Instituio: _________________________Assinatura__________________________
Prof. Dr.(a) ____________________________________________________________
Instituio: _________________________Assinatura__________________________
5
Maria Roseira e Augusto Marques Gouveia
(In Memoriam)
6
OO ccoonnssttrruuiirr eexxiissttee eennttrree uumm pprroojjeettoo oouu uummaa vviissoo ddeetteerrmmiinnaaddaa ee ooss mmaatteerriiaaiiss qquuee eessccoollhheemmooss..
SSuubbssttiittuuii--ssee uummaa oorrddeemm iinniicciiaall ppoorr oouuttrraa,, qquuaaiissqquueerr qquuee sseejjaamm ooss oobbjjeettooss qquuee oorrddeennaammooss..
PPaauull VVaallrryy
7
AGRADECIMENTOS Este trabalho encerra um longo perodo da minha vida, marcado pela dedicao exclusiva ps-graduao e pesquisa em Geografia Humana. A concluso desta tese somente tornou-se possvel com a colaborao de amigos e familiares e com o suporte de instituies de ensino e fomento do Estado de So Paulo e do Brasil. Agradeo aos funcionrios da Biblioteca Florestan Fernandes, da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas (FFLCH), e da Biblioteca da Faculdade de Administrao, Economia e Contabilidade (FEA), cuja colaborao foi indispensvel nesses ltimos anos. A todos os funcionrios do Departamento de Geografia. Especialmente Jurema, Rosngela e Ana. Aos professores da banca de qualificao, Mnica Arroyo e Ricardo Mendes. O exame rigoroso foi fundamental para o desenvolvimento final da pesquisa. Aos colegas do Laboratrio de Geografia Poltica e Planejamento Territorial e Ambiental (LABOPLAN) pela eterna disposio de auxlio, e por ter me acolhido como praticamente um dos seus. Especialmente Ana Elisa Pereira pela prestatividade, esprito de colaborao e boas conversas. Aos amigos feitos para o resto da vida, e que apesar de distantes do cotidiano, mantm uma firme presena nos campo das idias e dos valores. Refiro-me especialmente a Pedro Mezgravis, Herodes B. Cavalcanti e Eliza Pinto de Almeida. Terezinha Serafim Gomes, pela agradvel presena de esprito, amizade, e companheirismo. As nossas conversas so fontes de inspirao. Ao Z Fonseca, muitssimo obrigado pelo apoio num momento determinante. O agradecimento se estende para muito alm da correo ortogrfica. Sua ajuda comprovou a famosa mxima: os amigos de nossos amigos so nossos amigos! Esses agradecimentos se estendem ao Mateus Sampaio, que aceitou o trabalho cartogrfico nos ltimos dias. Nesse momento preciso lembrar-se daqueles com quem caminhamos em momentos decisivos. Devo muito Elisa Pinheiro Freitas, uma mulher cuja
8
tenacidade e empenho na busca por um lugar ao sol resultaro em muitas conquistas. Sou profundamente grato a Branca Couto e Aline Lima Santos por esses dez anos de companheirismo. Que nossas diferenas e semelhanas nos mantenham sempre unidos. No momento mais delicado, quando a ampulheta do tempo se mostrava invencvel, em vocs duas eu encontrei amparo. Carinhosamente a Elisngela e ao Renato. Nossos encontros e conversas so momentos de muita alegria. Ao Loildo, amigo dileto e irmo. A ele eu devo muito das minhas escolhas. Agradeo especialmente a Osvaldo Moyano Marin, cuja generosidade e disposio para ajudar em momentos delicados permitiram que esse trabalho chegasse ao final. Pacincia, paz interior, humildade, tranqilidade e inteligncia revelam um ser superior. Sou eternamente grato Zueleide Casagrande de Paula e Rosa Ester Rossini, mulheres que mudaram minha vida. Carinhosamente ao Pr. Dr. Wanderley Messias da Costa, meu orientador. Minha admirao e respeito s tm crescido durante todos esses anos. Sua cultura, erudio e conhecimento tornam a pesquisa em Geografia Poltica um prazeroso desafio.
9
RESUMO
Esta pesquisa trata da relao entre Brasil e Amrica do Sul, bem como das
polticas de projeo regional e mundial envolvendo o pas e seus vizinhos. O fio
condutor uma abordagem geopoltica que busca o entendimento dos principais
fatores que constituem a ordem regional sul-americana. Estabeleceu-se uma
periodizao em duas grandes conjunturas regionais. A primeira, que se constitui
com o incio da Guerra Fria e perdura at 1991, caracterizada pelo equilbrio de
poder e pelas rivalidades geopolticas intra-regionais. Internamente assinalada
pela polarizao do continente em torno de Brasil e Argentina e suas geopolticas
expansionistas. Externamente, foi definida pela projeo internacional brasileira a
partir da dependncia aos Estados Unidos e seus principais aliados. A segunda se
refere a uma nova ordem sul-americana a partir de 1991, com a assinatura do
Tratado de Assuno. A criao do Mercosul estabelece um cenrio marcado pela
diminuio das rivalidades, e ampliao da integrao poltica, econmica e
territorial. Essa conjuntura tem dois principais perodos. O primeiro, que se estende
de 1991 at 2002, caracteriza-se por uma perspectiva mercantilista de ampliao
da cooperao regional. Termina com a diminuio do intercmbio comercial
iniciada com as crises internacionais do final dos anos 1990. O segundo ocorre
com a aproximao poltica entre os pases a partir de 2003, sendo distinguido
pela recuperao da economia. Na ltima dcada, essa ordem regional passou por
grandes transformaes devido a retomada do crescimento econmico e por
novas ambies internacionais. Em conjunto, esses fatores acompanham uma
tendncia de re-insero internacional da Amrica do Sul.
Palavras-chave: Brasil, Amrica do Sul, Integrao Regional, Geopoltica.
10
ABSTRACT The present research deals with the relation between Brazil and South America, as
well as with the policies of regional and world projection involving the country and
its neighbors in the continent. The guiding principle of this study is a geopolitical
approach which aims at the understanding of the main factors that constitute the
South American regional order. A periodization in two great regional conjunctures
was established. The first, which is formed with the beginning of the Cold War and
remains until 1991, is characterized by the power balance and by the intra-regional
geopolitical rivalries. Internally, this period was marked mainly by the polarization of
the entire continent around Brazil and Argentina and their expansionist geopolitics.
Externally, it was defined by the international projection of Brazil from a relation of
dependence on The United States and their main allies. The second refers to a
new South American order since 1991, with the signature of the Asuncion Treaty.
The creation of Mercosul starts a scenario marked by the decrease of rivalries, and
the enlargement of the territorial, commercial and political integration. This order
has two main periods. The first which extends from 1991 to 2002 is defined by a
mercantilist perspective of increase of the regional cooperation. It ends with the
diminishing of the commercial interchange after the international crises at the end
of the 1990s. The second begins with the political approximation between
countries since 2003, and extends throughout the 2000s decade, being
distinguished by the recuperation of the economy. In the last decade, this regional
order went through great transformations due to the economic recuperation and
new international ambitions. As a whole, these factors follow a tendency of
international reinsertion of South America.
Keywords: Brazil, South America, Regional Integration, Geopolitics.
11
NDICE
Agradecimentos ..................................................................................................... 07
Resumo ................................................................................................................. 09
Abstract ................................................................................................................ 10
ndice de Grficos ................................................................................................. 14
ndice de Mapas ........ .......................................................................................... 16
Apresentao ........................................................................................................ 17
Introduo ........................................ .................................................................... 19
PARTE 1 GEOPOLTICA SUL-AMERICANA DO BRASIL NA GUERRA FRIA
CAPTULO 1. O Brasil e a Amrica do Sul no Contexto da Guerra Fria ......... 28
1.1. O Brasil, o seu Continente e as Ordens Geopolticas ................................ 28
1.1.1. Abordagem do Contexto internacional ....................................................... 31
1.2. As Primeiras Iniciativas de Integrao ....................................................... 39
1.3. A Amrica do Sul na Geoestratgia Norte-Americana ............................... 43
CAPTULO 2. Concepes Sobre a Projeo Internacion al do Brasil ............ 52
2.1. Ascenso Regional do Brasil ......................................................................... 52
2.2. O Containment e o Territorialismo Sul-Americano ......................................... 56
2.3. Origens e Caractersticas dos Discursos Geopolticos Continentais do Brasil
................................................................................................................... 61
2.4. Visualizao do Espao Mundial e Concepes da Projeo Mundial do Brasil
................................................................................................................... 69
12
Capitulo 3. Colapso da Geopoltica Militar e Origen s da Integrao Regional
.............................................................................................................................. 78
3.1. Inter-Relao entre as Conjunturas Regional e Mundial ................................. 78
3.2. Rivalidades Geopolticas e Fragmentao do Continente ............................. 83
3.3. A Importncia dos Buffer States na Rivalidade entre Brasil e Argentina ........ 92
3.4. A Economia Geopoltica e os Limites da Projeo Internacional do Brasil. .............................................................................................................................. 99
INTERMEZZO. Apontamentos de Transio Nova Geopoltica Conti nental ............................................................................................................................ 110
PARTE 2 OS FUNDAMENTOS DA INTEGRAO SUL-AMERICANA
CAPITULO 4. Espaos de Integrao e a Nova Ordem G eopoltica ............ 119
4.1. Integrao Regional no Contexto de Reorganizao do Espao Mundial ... 119
4.2. Elementos Preliminares da Nova Ordem Geopoltica Mundial .................... 128
4.3. Legitimao da Nova Ordem Geopoltica e a Amrica do Sul ..................... 137
Captulo 5. Constituio da Nova Ordem Regional Sul -Americana .............. 149
5.1. Fundamentos da Regio Geopoltica e a Ordem Contempornea .............. 149
5.2. Mercosul, o Ncleo Duro da Integrao Continental ................................. 157
5.3. Fundamentos da Nova Ordem Regional ...................................................... 165
Capitulo 6. Transformaes Econmicas e Territoriai s ................................ 175
6.1. Economia Geopoltica Regional Contempornea ........................................ 175
6.2. Fundamentos das Novas Relaes Territoriais ........................................... 188
6.3. Reordenao Territorial Sul-Americana ....................................................... 197
13
INTERMEZZO. Apontamentos de Transio a (Re) Inser o Mundial da Amrica do Sul ................................... .............................................................. 212
PARTE 3 OS DESAFIOS REGIONAIS E GLOBAIS INTEGRAO SUL-
AMERICANA
Capitulo 7. Assimetrias Econmicas e Conflitos Geop olticos .................... 219
7.1. Instabilidades Econmicas e Assimetrias Regionais: Aspectos Preliminares
............................................................................................................................ 219
7.2. Assimetrias Econmicas: um Novo Hegemon Regional? ............................. 229
7.3. Frices Territoriais e o Retorno da Geopoltica .......................................... 241
CAPITULO 8. Desafios Globais a Nova Ordem Sul-Ameri cana .................... 257
8.1. Soberania Globalista e a Nova Ordem Sul-Americana ................................ 257
8.2. Rupturas na Economia Geopoltica: O Lugar da Amrica do Sul no Mundo I
............................................................................................................................ 274
8.3. Reorganizao do Espao Mundial: O Lugar da Amrica do Sul no Mundo II.
............................................................................................................................ 292
CONSIDERAES FINAIS .......................................................................... 306
Amrica do Sul, um Constructo Geopoltico para o Futuro ........................... ..307
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ........................................................... 317
14
NDICE DE GRFICOS [GRFICO 1] Crescimento do PIB: Argentina, Brasil, Chile, Colmbia e Venezuela
(1962-1979) ....................................................................................... 55 [GRFICO 2] Crescimento do PIB: Argentina, Brasil, Chile, Colmbia e Venezuela
(1980-1989)................................................................. ..................... 102 [GRFICO 3] Mdia Anual de Crescimento do PIB: Argentina, Brasil, Chile,
Colmbia e Venezuela (1970-1989)................................................. 102 [GRFICO 4] Crescimento da Dvida Externa: Argentina, Brasil, Chile, Colmbia,
Venezuela (1970-1989) ................................................................... 104 [GRFICO 5] Relao Dvida Externa PIB: Brasil, Argentina, Chile, Venezuela e
Colmbia (1970-1989) ..................................................................... 104 [GRFICO 6] Intercmbio Comercial Brasil Mercosul (1989-2010) ................. 184 [GRFICO 7] Intercmbio Comercial Brasil Mercosul: Variao Percentual
(1989-2010) ..................................................................................... 184 [GRFICO 8] Intercmbio Comercial Brasil Argentina (1989-2010) ................ 185 [GRFICO 9] Intercmbio Comercial Brasil Chile (1989-2010) ....................... 185 [GRFICO 10] Intercmbio Comercial Brasil Bolvia (1989-2010). .................. 186 [GRFICO 11] Intercmbio Comercial Brasil - Colmbia, Venezuela e Equador
(1989-2010) ..................................................................................... 186 [GRFICO 12] Intercmbio Comercial Brasil - Amrica do Sul (1989-2010) ...... 187 [GRFICO 13] Intercmbio Comercial Brasil - Amrica do Sul: Variao Percentual
(1989-2010) ..................................................................................... 187 [GRFICO 14] Crescimento do PIB: Argentina, Brasil, Chile, Colmbia
e Venezuela (1990-2010)................................................................. 224 [GRFICO 15] Mdia Anual de Crescimento do PIB: Argentina, Brasil,
Chile, Colmbia e Venezuela (1990-2010) ... .............................224
15
[GRFICO 16] Intercmbio Comercial Brasil Paraguai (1989-2010) ................ 231 [GRFICO 17] Intercmbio Comercial Brasil Uruguai (1989-2010).................. 232 [GRFICO 18] Exportaes Brasileiras para a Amrica do Sul: Produtos
Industrializados e Bsicos (1989-2010) ..................................... 233 [GRFICO 19] Exportaes Brasileiras ao G8: Produtos Industrializados e Bsicos
(1989-2010) ............................................................................... 233 [GRFICO 20] Evoluo dos Gastos Militares na Amrica do Sul (2001-2010).. 252 [GRFICO 21] Entrada de Investimentos Estrangeiros Diretos (1980-2010)........
.................................................................................................. 281 [GRFICO 22] Estoque de Investimento Estrangeiro Direto: Sada (1990 / 2000 /
2010) ......................................................................................... 284 [GRFICO 23] Estoque de Investimento Estrangeiro Direto: Entrada(1990 / 2000/
2010) ......................................................................................... 284 [GRFICO 24] Intercmbio Comercial Brasileiro com a China (1990-
2010)................... ............................................................................. 286 [GRFICO 25] Intercmbio Comercial Brasileiro: China e Blocos Econmicos
(1989-2010) .......................................................................... ..... 286 [GRFICO 26] Exportaes Brasileiras China (1989-2010) ............................. 287 [GRFICO 27] Crescimento do PIB: Bolvia, Equador, Guiana, Paraguai, Peru,
Suriname e Uruguai (2001-2010) .............................................. 288 [GRFICO 28] Intercmbio Comercial Brasil - Unio Europia (1989-2010).........
......................................................................................................... 291
16
NDICE DE MAPAS [MAPA 1] Amrica do Sul: Macro-reas .............................................................. 90 [MAPA 2] Eixos de Integrao e Desenvolvimento da IIRSA ............................. 201 [MAPA 3] Articulaes Territoriais dos Eixos de Integrao e Desenvolvimento 203 [MAPA 4] Redes Geogrficas Sul-Americanas .................................................. 206 [MAPA 5] Amrica do Sul: Produto Interno Bruto - PIB (2008) ........................... 230 [MAPA 6] Conflitos na Amrica do Sul. ............................................................... 243 [MAPA 7] Rede Territorial da Bolvia ................................................................. 249 [MAPA 8] Amrica do Sul: Gastos com Defesa (2008 ........................................ 253
17
APRESENTAO
Este estudo examina a relao entre Brasil e Amrica do Sul a partir das
conjunturas regionais estabelecidas do incio da Guerra Fria at o perodo
contemporneo. A tese est dividida em: Parte 1, Geopoltica Sul-Americana do
Brasil na Guerra Fria; Parte 2, Os Fundamentos da Integrao Sul-Americana;
Parte 3, Os Desafios Regionais e Globais Integrao Sul-Americana.
A introduo discute os aspectos relacionados metodologia
empregada, assim como a relao da pesquisa com estudos atuais sobre a
Amrica do Sul. Faz-se uma discusso introdutria sobre as transformaes em
andamento no campo da Geografia Poltica e como estas so incorporadas pelo
trabalho.
A Parte 1, dividida em trs captulos, dedica-se ao exame da poltica sul-
americana durante a Guerra Fria e do equilbrio de poder em torno de Brasil e
Argentina. A discusso conduzida considerando o papel dos Estados Unidos na
ascenso regional do Brasil. Avalia-se o modelo militar de projeo internacional
do pas bem como os seus limites perante s transformaes globais desde os
anos 1970.
A Parte 2, dividida em trs captulos, analisa a emergncia de uma nova
ordem regional sul-americana segundo o imperativo da cooperao regional
fundado com a assinatura do Tratado de Assuno (1991) e a constituio do
Mercosul. Procura-se compreender o novo modelo de poltica continental bem
como seus efeitos nas relaes polticas, econmicas e territoriais entre os pases
da regio. Os principais acordos regionais, a ampliao geogrfica da integrao
fundada no Cone Sul, a evoluo nas relaes comerciais, e as transformaes
das conexes territoriais so examinados luz da emergncia da nova ordem sul-
americana.
A Parte 3, dividida em dois captulos, busca traar os principais desafios
regionais e globais da nova ordem continental. As frices internas, os conflitos
geopolticos, os desafios econmicos e os limites e alcances do atual modelo de
projeo internacional so os temas centrais que orientam as anlises que
18
perpassam os dois captulos. So consideradas as recentes transformaes
globais e as possibilidades e desafios frente emergncia de um eixo de
desenvolvimento representado pelas maiores economias emergentes.
As consideraes finais apresentam uma sntese dos temas que
desafiam a atual ordem sul-americana e suas maiores lideranas.
Simultaneamente, so elaborados alguns apontamentos acerca das prioridades
estratgicas do Brasil e de todo continente perante as transformaes geopolticas
globais.
19
INTRODUO
O RETORNO DA GEOPOLTICA E A AMRICA DO SUL
The primary function of the geopolitical process is to analyse, if necessary, the links between the external and internal
components of a concrete localized situation.
Michel Foucher
Ao longo do sculo XX, as mais influentes anlises geopolticas da relao
entre Brasil e Amrica do Sul foram concebidas por militares com uma viso de
projeo continental baseada no equilbrio regional de poder. Essa tendncia, que
foi predominante dos anos 1920 at o incio dos 1980, foi substituda nas ltimas
dcadas por novas abordagens envolvendo a inter-relao entre as escalas
nacional e continental. O interesse pela Amrica do Sul rompeu os crculos
militares, estando presente em policy makers, diplomatas, empresrios e
pesquisadores das principais universidades do pas. Grande parte dos trabalhos
contemporneos, empreendidos por diferentes abordagens e disciplinas, foram
catalisados pela regionalizao retomada no incio da dcada de 1990 com a
criao do Mercosul.
Conseqncia da formao territorial, os interesses brasileiros em relao
Amrica do Sul passaram a se concentrar no Cone Sul. Esse caminho retoma,
20
por outros meios e concepes, a diretiva da diplomacia conduzida pelo Baro do
Rio Branco no incio do sculo XX, ao buscar cooperao poltica entre os pases
dessa regio. A assinatura do Tratado do ABC em 1915 tem origem na linha de
ao instituda por Rio Branco entre 1909 e 1912, baseada na idia de que um alto
nvel de dilogo diplomtico entre os pases vizinhos era necessrio para garantir a
paz (CONDURU, 1998, p. 65). As polticas de integrao iniciadas no final dos
anos 1980 refletiam, por outro lado, intenes de diminuir as rivalidades
continentais e fortalecer a regio perante um mundo em profundas transformaes
geopolticas.
As iniciativas do comeo do sculo XX deflagraram uma era de
experincias de aproximao regional, malograda com a ascenso das ditaduras
militares nos anos 1960. Apesar dos primeiros esforos de cooperao regional a
partir de 1915, o realismo poltico, a geopoltica territorialista, e o alinhamento
subordinado do Brasil s potncias mundiais marcaram sua poltica sul-americana
at o inicio dos anos 1980.
At esse perodo, as preocupaes do Brasil com a Amrica do Sul
estavam impregnadas de discursos geopolticos forjados na Europa e nos Estados
Unidos. A conteno das fronteiras, os conflitos diplomticos e tenses
geopolticas generalizadas eram foras que definiam o entendimento acerca do
continente.
A geografia brasileira clssica nunca se ocupou de modo exaustivo do
entendimento do entorno regional do Brasil. Primeiro, porque o campo da
Geografia Poltica comea a se desenvolver nas universidades brasileiras apenas
na dcada de 1980. At ento, as relaes entre conhecimento geogrfico e
poltica externa estavam subordinadas aos interesses da elite militar (e seus
idelogos) que comandava o pas. No sculo XX os militares arraigaram
concepes da Amrica do Sul segundo um vis territorialista voltado
legitimao da projeo continental. O territrio, as fronteiras, os transportes, os
recursos e a populao foram submetidos a discursos organicistas e
expansionistas.
O enfraquecimento dessa concepo ocorre com o retorno da geopoltica
aos meios acadmicos. Esse processo foi liderado por gegrafos determinados a
resgatar a disciplina invertendo os principais preceitos que definiam os estudos em
torno da relao entre sociedade, territrio e poder. A geopoltica, como tcnica de
21
controle do espao e da sociedade, passou a ser substituda por exames crticos e
abordagens que buscavam compreender mecanismos de poder em torno do
espao geogrfico empreendidos por atores estatais e no estatais. Concepes
de poder estadocntricas e unidimensionais deram lugar a perspectivas
multidimensionais como prope Bertha Becker em A Geografia e o Resgate da
Geopoltica (1988).
Essa concepo parte de uma renovao terica mais ampla,
desencadeada com a publicao em 1976 na Frana da obra clssica de Yves
Lacoste, A Geografia, Isso Serve Antes de Mais Nada para Fazer a Guerra.
preciso reconhecer que gegrafos norte-americanos como Isaiah Bowman (1935)
e Richard Hartshorne (1950) j tinham se ocupado da crtica instrumentalizao
do conhecimento geogrfico pela geopoltica de Estados totalitrios. Mas a crtica
lacostiana atinge o mago de todo conhecimento geogrfico, e no somente os
discursos estabelecidos pela Geopolitik que prevaleceu na primeira metade do
sculo XX.
A relao entre conhecimento geogrfico e poder se desdobra entre a
Geografia dos estados maiores, praticada pelos Estados e grandes corporaes, e
a dos professores, responsvel por discursos sobre o espao geogrfico e os
lugares. O gegrafo francs estabelece uma perspectiva, que consiste em inverter
a lgica dos discursos geopolticos tradicionais e direcion-los contra o estado
maior.
No incio dos anos 1980, Por Uma Geografia do Poder de Claude
Raffestin representa a primeira busca efetiva de fundar uma nova base
epistemolgica a Geografia Poltica. Essa disciplina, na forma como inaugurada
por Ratzel, tem sua legitimidade atrelada ao Estado (FARINELLI, 2000). Raffestin
contrape o Poder do Estado ao poder exercido territorialmente por atores no
estatais. O seu alvo a priso metodolgica da Geografia Poltica, isto , a
delimitao da abordagem aos temas da populao, da morfologia territorial e dos
recursos.
A ciso operada por Raffestin est na descentralizao da abordagem
poltica em Geografia, revelando a multidimensionalidade nas relaes entre o
poder entendido a partir de uma perspectiva relacional foucaultiana e o
territrio. Em grande medida, seu trabalho reflete transformaes do capitalismo,
com a ampliao dos fluxos transnacionais, a emergncia das multinacionais como
22
atores globais, e a consolidao de novos atores e escalas polticas e econmicas
que desarranjam o cenrio estadocntrico que condicionava toda Geografia
Poltica.
Um terceiro processo de transformao da Geografia Poltica ocorre nos
Estados Unidos e Inglaterra a partir do final da dcada de 1980 e incio da de
1990. Autores como John Agnew, Simon Dalby, Klaus Dodds, Gearid Tuathail,
dentre outros, tm promovido um resgate dessa disciplina, procurando
fundament-la como um campo de anlise das conjunturas geopolticas (regionais
e globais) a partir de discursos e prticas que abrangem uma diversidade de
atores estatais e no estatais. Esses tericos integram a Escola de Geopoltica
Crtica (Critical Geopolitics), caracterizada por estudos sobre a transformao no
modo de relao entre poder poltico e econmico, e territrio na era da
globalizao.
Essa escola assimila tanto a tendncia crtica estabelecida a partir da
dcada de 1970, quanto as novas concepes centradas na globalizao que
consolidou os fluxos transnacionais, colocando em cheque conceitos tradicionais
da Geografia Poltica. O territrio, a soberania e as relaes internacionais so re-
examinados a partir de conexo entre a abordagem geopoltica e a economia
poltica internacional.
O marco nesse resgate da Geopoltica Mastering Space (1995) de John
Agnew & Stuart Corbridge. Nesse trabalho, a disciplina entendida como diviso
do espao global por instituies (Estados, firmas, movimentos sociais,
organizaes internacionais, foras armadas, grupos terroristas) em territrios e
esferas de influncia poltica e econmica (Op. Cit., p. 01-10). Atravs dessa
diviso, a economia poltica internacional seria regulada materialmente e
representada intelectualmente como uma ordem natural de reas desenvolvidas e
subdesenvolvidas, amigas e inimigas etc. (Op. Cit.). A geopoltica est implcita
tanto na prtica quando nos escritos sobre todos os tipos de relaes
internacionais. Agnew & Corbridge constroem uma teoria geral da geopoltica,
considerando-a simultaneamente enquanto prtica e discurso, isto , como uma
ordem mundial material e um entendimento discursivo normativo ( TUATHAIL,
1998, p. 18).
Assim como Agnew & Corbridge (1995) e Agnew (1998), Gearid
Tuathail (1997) e John Loughlin (2000) tm se empenhado no resgate da
23
Geopoltica como campo de estudos das relaes internacionais. A anlise da
poltica internacional retomada mediante reviso crtica de conceitos que
monopolizavam a compreenso da relao entre sociedade e territrio at as
transformaes econmicas e tecnolgicas desencadeadas nas ltimas dcadas.
Os fluxos transnacionais e as novas coletividades globais tornadas possveis com
os meios informacionais esto, segundo Timothy Luke (1998, p. 274), debilitando
princpios como nacionalidade, territorialidade e soberania. Para Agnew &
Corbridge (1995) e Agnew (1998; 2008) surgem novas escalas de poder e
soberania.
O retorno da Geopoltica nessa sua nova configurao terica est
relacionado s transformaes da globalizao em escala mundial e regional, que
impactam a economia poltica internacional, assim como os fatores que
determinam as relaes interestatais. Os conflitos tornam-se menos centralizados
nas relaes entre Estados, e cada vez mais difusos e flexveis atravs da atuao
de foras no estatais como movimentos polticos internacionais organizaes
terroristas, crimes transfronteirios etc. Da mesma forma, a nova escala poltica
representada pela emergncia dos blocos regionais nas duas ltimas dcadas
institui um cenrio internacional muito distinto daqueles em que floresceram os
discursos territorialistas.
Esses fatores so determinantes para a compreenso da condio
internacional do Brasil e da Amrica do Sul. O resgate da Geopoltica no Brasil
abriu caminho para ampliao dos estudos de cenrios trazidos pela integrao
regional. Exames sobre a integrao territorial, as interaes espaciais fronteirias
etc., tem definido o escopo dessa disciplina. As pesquisas tm investigado a
relao entre Brasil e Amrica do Sul a partir de uma abordagem inversa daquela
que caracterizou as anlises empreendidas pela geopoltica militar no Brasil.
O presente trabalho visa examinar as configuraes internas e externas
da Amrica do Sul a partir de uma perspectiva que tem como foco a geopoltica
internacional do Brasil. A projeo continental e mundial do pas vem sendo
buscada desde a ordem bipolar at o perodo atual, que caracterizado por
iniciativas de integrao regional. consecuo desse objetivo, busca-se
incorporar as transformaes da Geografia Poltica nas ltimas dcadas, evitando,
todavia, incorrer no erro de descartar o arcabouo terico tradicional. Apesar dos
avanos trazidos pela reviso crtica, conceitos e categorias da Geopoltica
24
Clssica continuam essenciais compreenso dos processos que impulsionam as
relaes internacionais contemporneas.
Tanto as teorias tradicionais quanto as contemporneas esto associadas
a conjunturas maiores que definem a relao da sociedade com o espao
geogrfico. Contudo, no h substituio linear de uma vertente por outra. Durante
o predomnio da geopoltica territorialista existiam importantes foras
transnacionais; ainda que no constitussem o mago das estratgias direcionadas
ao territrio e o poder. Da mesma forma, as transformaes tornadas possveis
com a globalizao no eliminam tendncias tradicionais. A principal mudana
est na perda do monoplio que dispunha o Estado no comando das relaes
internacionais.
A posio interna e externa da Amrica do Sul est condicionada a
diferentes conjunturas internacionais. As mais antigas, que predominaram at os
anos 1980, so caracterizadas pelo territorialismo como fora determinante das
relaes regionais e globais. As mais recentes esto assentadas na emergncia
da transnacionalizao dos fenmenos polticos e econmicos, seja atravs do
multilateralismo que predominou na dcada de 1990 ou do neorealismo a partir de
2001.
Esse estudo se insere no amplo debate atual sobre a integrao sul-
americana. Apesar disso, no objetiva examinar exclusivamente o continente a
partir da formao do Mercosul e Unasul. Ainda que essas duas iniciativas ocupem
grande parte da investigao, a pesquisa tem como escopo essencial o
entendimento da nova ordem regional sul-americana a partir de uma periodizao
que busca destacar dois processos opostos e complementares. O primeiro se
refere s dinmicas geopolticas estadocntricas (globais e regionais) que
definiram a relao do Brasil com o restante da Amrica do Sul. A partir disso,
examina-se a situao geopoltica interna e externa do continente. O segundo est
atrelado ruptura empreendida no final dos anos 1980, estabelecendo a base
daquilo que chamamos de nova ordem sul-americana. A anlise dessa ordem
guiada pelo imperativo da cooperao e da integrao regional consolidado a partir
da dcada de 1990. Em conjunto, o perodo precedente e o atual permitem uma
viso maior das diferentes geopolticas voltadas projeo do Brasil e da Amrica
do Sul.
25
A nova ordem sul-americana se relaciona com duas escalas distintas, mas
indissociveis. A primeira interna, definida por dinmicas polticas e econmicas
especficas. A segunda externa, posta por transformaes da conjuntura
internacional que impactam diretamente contextos locais. A condio internacional
do continente est atrelada a organizao do espao mundial, entendido enquanto
conjunto constitudo por diferentes escalas geogrficas de poder poltico e
econmico: reas subnacionais, Estados, blocos regionais etc.
necessrio considerar que a escala a medida que confere visibilidade
ao fenmeno (CASTRO, 1995, p. 123). Mas o fenmeno em torno da geopoltica
sul-americana no , de modo algum, monotemtico. Como ensina Hartshorne
(1950), a singularidade da Geografia Poltica est na capacidade de proporcionar
anlises de conjunturas. Para tanto, faz-se necessrio a articulao e integrao
dos diversos temas que em conjunto conferem uma determinada caracterstica
geogrfica.
Grosso modo, possvel diferenciar quatro abordagens de estudos sobre
a Amrica do Sul. A primeira territorialista: estuda a regio a partir da Geopoltica
Tradicional. Uma vertente do realismo, essa linha privilegia os recursos naturais, a
fora militar, os conflitos e o equilbrio de poder etc. A segunda define-se pelo
institucionalismo: foca as instituies multilaterais (Mercosul, Unasul, e os diversos
mecanismos polticos, jurdicos e diplomticos) para anlise do continente e suas
diferentes reas. A terceira geoeconmica: examina o espao a partir da
economia e da integrao comercial. A quarta geogrfico-poltica e regional:
esfora-se para apreender diferentes dimenses da escala continental e as
interseces com a global. Inspirada na abordagem multidimensional, integra
aspectos das trs anteriores.
A partir dessas consideraes, a presente pesquisa se divide em trs
planos: a) uma anlise da poltica regional e da projeo continental do Brasil a
partir do equilbrio de poder; b) um exame dos fundamentos e das estruturas que
integram a nova ordem regional; c) uma investigao sobre os limites e alcances
do processo contemporneo de insero mundial do Brasil e da Amrica do Sul.
Da maneira como foi estruturado, esse trabalho concebe a ordem regional
de duas formas. Na primeira, a ordem entendida apenas como conjuntura
regional, isto , uma situao geogrfica marcada tanto pela presena ou pela
ausncia de um sistema institucional de relaes interestatais ou transnacionais.
26
Mesmo na ausncia de um contedo normativo, possvel falar em ordem regional
condicionada ao territorialismo, equilbrio regional de poder, conteno fronteiria
etc.
Na segunda, a ordem definida a partir de um contedo normativo, isto ,
por um arranjo institucional que busca regular as interaes polticas, econmicas
e territoriais. O perodo dominado pelo equilbrio de poder, apesar de no constituir
uma ordem no sentido normativo, forma uma conjuntura singular aos pases da
regio. A nova ordem sul-americana, ao contrrio, a primeira que constitui um
arranjo institucional capaz de transformar as relaes polticas, econmicas e
territoriais.
Por fim, preciso destacar que esse estudo faz parte do esforo
empreendido em diversos pases, de devolver Geografia Poltica sua vocao
inicial. Trata-se de um campo de anlise das relaes internacionais que surgiu no
final do sculo XIX quando disciplinas mainstream estavam aprisionadas em
contextos regionais. Significa resgatar os estudos da geopoltica como parte
indissocivel das relaes polticas e econmicas que fazem funcionar a ordem
mundial.
27
PARTE 1 __________________
GEOPOLTICA SUL-AMERICANA DO BRASIL NA GUERRA FRIA
________________
28
CAPTULO 1 O Brasil e a Amrica do Sul no Contexto da Guerra F ria
Historicamente, e at nossos dias, a
ordem internacional tem sido sempre territorial, consagrando um acordo entre
soberanias, e compartimentalizando o espao.
Raymond Aron
1.1. O Brasil, o seu Continente e as Ordens Geopol ticas
Definir a Amrica do Sul em termos geopolticos uma tarefa bastante
complexa. No existe um continente sul-americano stricto sensu, visto que a rea
oficialmente uma subdiviso das Amricas. Enquanto espao homogneo, a
Amrica do Sul no se distingue apenas por suas florestas, cadeias orogrficas,
bacias hidrogrficas e diversidade cultural; fatores examinados detalhadamente
por Isaiah Bowman (1915). Alm da condio de gigantesca massa contnua
dotada de caractersticas fsicas e humanas singulares, h importantes aspectos
histricos e polticos que do especificidade ao continente no contexto
internacional.
A partir desses fatores, o presente estudo pretende examinar as
condies internacionais da Amrica do Sul guiando-se por duas hipteses
principais. Primeiro, a ascenso dos Estados Unidos como grande potncia
internacional na segunda metade do sculo XIX trouxe conseqncias para todo o
continente americano. Mas apesar do carter continental da Doutrina Monroe, o
29
pas se consolidou essencialmente como uma potncia dominante na Amrica
Central aps a Guerra Hispano-Americana (1898). Ainda que ao longo do sculo
XX, a Inglaterra visse erodir lentamente o seu poder na Amrica do Sul com a
ascenso da nova potncia, os Estados Unidos no foram capazes de projetar
nesse continente um poder imperial na mesma dimenso daquele imposto sobre a
Amrica Central. A Amrica do Sul mais perifrica aos interesses norte-
americanos (KELLY, 1997).
Segundo, apesar de Colmbia e Venezuela terem sido mais expostas ao
domnio americano no Caribe, h, como observa Srgio Danese (2001, pp. 49-71),
uma histria comum aos pases sul-americanos influenciada, em parte pela
geografia. Aps a onda de independncia que transformou o continente no sculo
XIX, as tenses territoriais resultaram em conflitos armados, desencadeando um
modelo de relaes polticas fundamentado essencialmente no equilbrio regional
de poder. medida que seus pases estabeleceram inter-relaes geogrficas,
polticas, econmicas e culturais singulares ao longo da histria, a Amrica do Sul
se consolidou como regio caracterizada por uma especificidade no contexto
internacional.
A influncia dos conflitos territoriais na poltica sul-americana anterior
aos processos de independncia. Essa questo se destaca, desde o sculo XVI,
como a razo fundamental das rivalidades polticas internas. Ainda que Portugal
empreendesse uma ocupao voltada primeiramente para a costa atlntica
(PRADO Jr., 1970), a sua expanso a oeste estabeleceu um padro de conflito
que se estenderia at meados do sculo XX. Em cinco sculos, as polticas
territoriais luso-brasileiras, base da articulao interna e projeo externa do Brasil
(COSTA, 1999, p. 25), destacam-se como ponte da interao poltica do pas com
seus vizinhos. Esse modelo de relao envolvendo o Brasil e as demais naes
sul-americanas funcionava como fora centrfuga s relaes polticas no
continente.
Simultaneamente, as rivalidades regionais faziam com que os interesses
diplomticos estivessem voltados para a Europa. Apesar da Amrica do Sul ser
uma circunstncia inexorvel aos seus pases, tal condio no se refletia
diretamente nas prioridades externas do Brasil. Durante todo o perodo imperial, a
diplomacia do pas, voltada Europa, abordava a Amrica como uma unidade
30
homognea, sem pesar a importncia de suas variaes subcontinentais poltica
externa.1
Para melhor compreenso dessas caractersticas, necessrio
considerar as diferentes conjunturas internacionais que predominaram do sculo
XIX ao XX. As relaes internas e a posio externa do continente esto
condicionadas a geopoltica das relaes internacionais. Esta nasce com as
grandes descobertas, que influenciaram a cosmografia e a cartografia do sculo
XV (AGNEW, 1998).
As grandes navegaes desconstruram as representaes mundiais
geogrfico-crist. No sculo XVIII, o alargamento do mundo se completou,
evidenciando a totalidade das massas continentais da Amrica e Oceania. Halford
Mackinder (1904; 1935; 1942) no se refere outra coisa quando chama ateno
para a interdependncia poltica planetria, aps o fim do ciclo das grandes
descobertas e a modernizao dos meios de transporte na segunda metade do
sculo XIX. Por um lado, essa modernizao permitiu a existncia de um espao
mundial. Mas, por outro, a conseqente expanso das redes territoriais contribuiu
para a intensificao dos atritos geopolticos entre os grandes imprios coloniais
europeus.2
Enquanto disciplina acadmica, a geopoltica passa a existir somente na
virada do sculo XIX para o XX, perodo em que ganha um discurso cientfico.
Entretanto, ela existe como dimenso da poltica mundial desde a expanso do
modelo civilizacional europeu. Fatores relacionados a territrio e poder so
inerentes tanto as relaes interestatais, quanto aquelas envolvendo atores no-
estatais.
1 No perodo imperial, o Brasil, ao conservar o princpio dinstico como fonte de legitimao, diferenciou-se decisivamente de seus vizinhos americanos, que passaram a representar para o imprio o outro irreconcilivel. Na metafrica ruptura entre a Amrica e a Europa, o Brasil colocava-se ideologicamente ao lado das potncias europias. A chave para permitir essa operao ideolgica foi o conceito de civilizao. Durante o Imprio, o Brasil construiu sua auto-imagem a partir da percepo de uma suposta superioridade em termos de civilizao que seu regime poltico representava, ao aproxim-lo das monarquias europias. Ainda que atrasado, escravista e distante, essa monarquia tropical sentia-se acima de seus vizinhos, que entendia anrquicos e selvagens [...]. Essa percepo foi refletida no discurso diplomtico. Nos Relatrios da Secretaria de Estado dos Negcios Estrangeiros (RSNE), durante todo o Imprio, est sempre presente a dicotomia entre as relaes com os pases da Europa e com os demais pases americanos. So constantes as referncias, por exemplo, s potncias da Amrica e da Europa (RSNE, 1832, p. 11 e p. 21; 1833, p. 12; 1834, p.16), aos governos da Europa e Amrica (RSNE, 1835, p. 5; 1845, p. 8), aos Estados da Europa e Amrica (RSNE, 1837, p. 4), s naes da Europa e da Amrica (RSNE, 1855, p. 4) e s ligaes brasileiras na Europa e Amrica (RSNE, 1870, p. 28). O continente americano , nesses Relatrios, tratado como unidade. So esparsas e pouco consistentes as eventuais referncias s partes que o compem. Luis Cludio Villafae G. Santos, 2005, p. 2. 2 A principal tese da geopoltica clssica a esse respeito encontra-se em The Geographical Pivot of History (Mackinder, 1904) que destaca o fim da era das grandes descobertas a chamada Era Colombiana ampliando as possibilidades de novos atritos por domnio de territrios entre as grandes potncias. A modernizao dos meios de comunicao e transporte proporciona novas formas de controle do espao-tempo, fazendo com que atritos que eram apenas regionais se tornarem mundiais.
31
Todos os discursos geopolticos so em sua essncia determinados pelas
caractersticas da modernidade. Segundo Agnew (1998.), os estudos de relaes
internacionais so de modo geral, estruturados segundo trs hipteses: os Estados
tm um poder exclusivo sobre seu territrio; as questes domsticas e
internacionais constituem-se em campos essencialmente separados; os limites de
um Estado definem os limites de uma sociedade.3 Para Agnew (1994; 1998;
2008a; 2008b; 2008c), o pensamento social est preso a uma armadilha territorial.
Predomina um paradigma onde o mundo interpretado por uma diviso em blocos
de espao.
1.1.1 Abordagem do Contexto internacional
A condio geopoltica sul-americana determinada por sua relao
inextricvel com diferentes contextos histrico-geogrficos mundiais. Se do
descobrimento at o incio do sculo XIX a regio estava subordinada ao poder da
Espanha e Portugal no contexto internacional, com os processos de independncia
os pases sul-americanos se tornam parte de uma nova conjuntura. O sculo XIX
foi caracterizado pela acelerao na expanso do capital, resultando na
globalizao da economia-mundo capitalista (ARRIGHI, 2008, p. 165). Neste
perodo, todas as regies tornaram-se parte de uma ordem poltica e econmica
comandada pela Gr-Bretanha, que reorganizou a relao espao-tempo em
escala global.
Com a ascenso da Gr-Bretanha como a maior potncia mundial, o
poder geopoltico global passou a pressupor a hegemonia sobre as condies
histricas e sociais, e, por conseguinte, sobre a espacialidade das relaes
internacionais. A modernidade se define a partir da Revoluo Industrial, como
uma contnua transformao da experincia do espao-tempo (BERMAN, 1986;
HARVEY, 1989). Uma potncia, ao comandar transformaes polticas,
econmicas e tecnolgicas, reorganiza as relaes sociais (valores, sistemas de 3 Em relao primeira hiptese, Agnew (Op. Cit.) ressalta que a soberania foi deslocada na passagem da Idade Media para a Idade Moderna, da figura do soberano para o Estado territorial. A soberania o poder do Estado e da sociedade hierarquicamente organizados, sobre uma determinada rea, o territrio nacional. A defesa e a segurana da sociedade em um territrio o objetivo principal de um Estado. Em relao segunda hiptese, Agnew (Op. Cit.) entende que h na poltica uma diviso entre uma esfera interna e outra externa. Na interna prevalece o debate e os conflitos polticos enquanto que na externa predomina de maneira mais direta a imposio pelo poder do mais forte. A terceira hiptese expressa o Estado territorial como container da sociedade. Desde Westfalia, a idia de modernidade est conectada ao invlucro do Estado territorial.
32
produo, diviso do trabalho etc.) e espaciais (fluidez material e informacional,
topologia das redes de produo e distribuio, hierarquia dos lugares etc.) em
todas as regies.
O alcance dessas transformaes no est circunscrito ao invlucro
territorial do Estado soberano, sendo necessariamente transnacional.
Estabelece-se um arranjo poltico e econmico mundial, resultado de uma
configurao espao-temporal. As potncias hegemnicas reorganizam o espao-
tempo (e por conseguinte as relaes internacionais) a partir dos seus interesses
polticos, econmicos e culturais. Em sua totalidade, o arranjo internacional
engendrado a partir do poder de uma potncia mundial, constitui uma Ordem
Geopoltica.
Em nosso uso ordem se refere a regras rotinizadas, instituies, atividades e estratgias atravs das quais a economia poltica internacional opera em diferentes perodos histricos. O termo qualificador geopoltico chama ateno para os elementos geopolticos de uma ordem mundial. Este no um trao especial ou extra de uma ordem abstrata. Antes, intrnseco a ela. Ordens tm necessariamente caractersticas geogrficas. Estas incluem o grau relativo de centralidade da territorialidade do estado em relao a atividades sociais e econmicas, a natureza da hierarquia dos estados (dominada por um estado apenas ou um nmeros deles, o grau de igualdade do estado), o mbito espacial das atividades de diferentes estados e outros atores como as organizaes internacionais e comrcios, a conexividade ou desconexividade entre vrios atores, os efeitos condicionantes de tecnologias informacionais e militares sobre a interao espacial, e o ranqueamento de regies mundiais e estados particulares pelos estados dominantes em termos de ameaas sua segurana militar e econmica. (AGNEW & CORBRIDGE, 1995, p. 15) [Traduo livre a partir do original do autor].
Na interdependncia entre a escala continental e global, os aspectos
geogrficos (tradicionais ou contemporneos) esto alm de uma mera condio
metafrica. Ao contrrio, destacam-se como constituintes da economia poltica
internacional. Esse conceito, largamente utilizado por Agnew & Corbridge (1995) e
Agnew (1998), reflete uma busca pela compreenso da indissociabilidade entre
economia e poltica nas diferentes ordens internacionais. Assim, nas teorias
geopolticas surgidas nos anos 1980, esse conceito empregado num esforo
visando romper a dicotomia na anlise das ordens internacionais econmica e
poltica.
As potncias hegemnicas, como mostra Aglietta (1982) no caso britnico
e americano, estabelecem um sistema internacional de regulao econmica.
Passam a existir instituies (nacionais e internacionais) e procedimentos
33
tacitamente reconhecidos pelos Estados capitalistas lderes, que regulam o
comrcio, as finanas, a moeda etc. As relaes econmicas mundiais esto
associadas a um modo de regulao em consonncia com o poder poltico de uma
hegemonia. Por outro lado, esta concepo de poder torna o Estado dependente
da expanso internacional das redes de produo e distribuio das grandes
empresas.
A partir dessa premissa, a economia poltica internacional possui uma
dimenso geopoltica. Existe uma indissociabilidade entre os discursos
geopolticos que engendram regras, normas, valores etc. e as prticas
econmicas da ordem internacional. Como resultado, configura-se uma economia
geopoltica, que pode ser definida como um hbrido formado pela geopoltica e a
economia poltica (AGNEW & CORBRIDGE, 1988). Ao envolver idias e prticas
de uma ordem internacional ( TUATHAIL, 1998, p. 18), a economia geopoltica
abrange desde o modo de regulao at fatores geogrficos tradicionais, como
recursos naturais, populao, circulao territorial etc. Dessa forma, no impacta
apenas nos fatores tradicionais de produo, ou seja, terra, trabalho e capital. Tem
reflexos na inovao tecnolgica, na economia de servios, nos fluxos financeiros
etc.
A economia geopoltica est relacionada com a espacialidade
indissocivel das relaes econmicas. De forma mais ampla, esta espacialidade,
associada ao modo de regulao, aos valores, as crenas e as diversas normas
que regem as relaes internacionais, um dos fatores estruturantes da ordem
geopoltica.
Em Agnew & Corbridge (1995) e Agnew (1998) a ordem geopoltica uma
conjuntura onde a geografia, a poltica e a economia so componentes
inseparveis. A economia geopoltica organizada de acordo com os interesses
de uma potncia mundial e seus aliados. Este poder garantido atravs do
monoplio da moeda internacional, do comando sobre o modo de regulao, da
liderana sobre a liquidez mundial e, em casos de frices e conflitos, pelo uso da
fora blica.
A partir dessas observaes preliminares possvel traar trs
fundamentos da economia geopoltica. Primeiro, constitui-se muitas vezes, tal qual
demonstra Giovanni Arrighi (2008), uma afluncia entre as polticas do Estado e os
interesses das redes de produo e distribuio do capital. A organizao de um
34
mercado nacional foi uma das bases de consolidao dos Estados modernos
(POLANYI, 2001). Esta interdependncia transcende a escala nacional, pois desde
as grandes navegaes, o poder internacional de um pas no pode ser
desassociado dos fluxos mercadolgicos organizados em consonncia com os
interesses de sua elite econmica. Segundo, o desenvolvimento econmico um
fator entrelaado a polticas territoriais. O planejamento regional, os circuitos
espaciais de inovao tecnolgica, a fluidez territorial da produo etc., so
aspectos dessa condio. Terceiro, as relaes econmicas contribuem para a
hierarquia internacional dos Estados. A capacidade financeira e comercial molda a
topologia das redes de poder internacional de um pas, permitindo a imposio dos
seus interesses polticos e econmicos sobre outras naes numa determinada
ordem geopoltica.
Agnew & Corbridge (1995) dividem historicamente as relaes
internacionais em quatro ordens. A Ordem Geopoltica Britnica (1815-1875) foi
marcada pelo Concerto da Europa no plano regional e pela hegemonia da Gr-
Bretanha na escala global. A Ordem Geopoltica da Rivalidade Inter-Imperial
(1875-1945) caracterizou-se pela ascenso de potncias como Alemanha, Estados
Unidos e Japo. A Ordem Geopoltica da Guerra Fria (1945-1990) foi comandada
por duas superpotncias: Estados Unidos e Unio Sovitica. A Ordem Geopoltica
do Ps Guerra Fria (1990-?) identificada por meio da emergncia de trs foras
globais o livre-mercado, o choque de civilizaes e a unipolaridade dos Estados
Unidos.4
A independncia dos pases sul-americanos est ligada ao surgimento da
primeira ordem geopoltica mundial. A independncia do Brasil fez parte de uma
estratgia britnica para controlar a Amrica do Sul pelo livre comrcio (BECKER
& EGLER, 1992, p. 53). Os interesses do capitalismo industrial entraram em
contradio com o pacto colonial ... baseado no monoplio metropolitano sobre o
comrcio... (Op. Cit.). Com os processos de independncia, o continente foi
inserido na ordem geopoltica por meio de uma diviso internacional do trabalho
que Aglietta (1982, p. 09) caracteriza como vertical. Diferente da hegemonia norte-
4 Agnew (Op. Cit.) concebe esta ordem apenas como hiptese que traada a partir das trs tendncias predominantes de anlise das relaes internacionais. Em nosso trabalho, sero seguidas estritamente apenas as concepes sobre as trs primeiras ordens geopolticas. A quarta ordem ser interpretada seguindo as proposies do gegrafo britnico somente enquanto periodizao. Dessa forma, as suas caractersticas principais sero levantadas de acordo com as necessidades do tema da pesquisa. Por fim, a anlise dos fatores que envolvem esse perodo ser realizada apenas na segunda parte do trabalho.
35
americana, que estimulou uma diviso internacional do trabalho horizontal (com a
competitividade industrial e tecnolgica), a Gr-Bretanha incorporou a Amrica do
Sul em sua ordem forando a especializao em atividades econmicas primrio-
exportadoras.
Para a Amrica do Sul, o surgimento de novas potncias mundiais a partir
de 1875 significou outras possibilidades polticas e econmicas. Na ordem
multipolar, os Estados Unidos e a Alemanha se tornaram junto Inglaterra, os
principais parceiros comerciais dos pases sul-americanos. Esta tendncia se
fortaleceu ainda mais com a poltica bilateral alem, que colocou o pas como
principal parceiro comercial do Brasil na dcada de 1930.5 Mas as relaes da
Amrica do Sul com os EUA, que vinham se consolidando desde o final do sculo
XIX, ganharam ainda mais fora com o final dessa ordem geopoltica e a derrota
da Alemanha.
Na Ordem Geopoltica da Guerra Fria, Brasil e Argentina modificaram sua
insero internacional. John Kennedy e Richard Nixon transformam os interesses
norte-americanos em relao a todos os pases do Cone Sul. Segundo Bertha
Becker & Claudio Egler (1992), o crescimento econmico do Brasil nesse perodo
o projeta como uma importante potncia regional na economia-mundo. O
anticomunismo foi o meio predominante de aproximao do pas com as maiores
potncias.
Uma ordem vinculada a discursos produzidos em todos os mbitos
sociais. A problemtica geopoltica necessariamente discursiva, pois se
estabelece ao mesmo tempo como interpretao e poltica do espao (
TUATHAIL & AGNEW, 1992; TUATHAIL, 1996). Ao tomar como referncia
principal autores clssicos da disciplina, Gearid Tuathail (Op. Cit.) defende que
o discurso no antecede ou sucede, mas est simultaneamente entrelaado a
visualizao do espao geogrfico. Como , a uma s vez, linguagem e prtica,
5 Segundo Moniz Bandeira (2006, p. 102), a Alemanha instaurou um conjunto de polticas bilaterais para romper as barreiras
econmicas e o sistema de comrcio desfavorvel imposto pelas potncias da Trplice Aliana, vencedoras da Primeira Guerra Mundial. A poltica bilateral visava tirar a Alemanha do sistema multilateral imposto pelos Estados Unidos que a colocou em condies desfavorvel devido ao nus da perda da Primeira Grande Guerra. Sem divisas internacionais, o pas instalou por meio dos acordos um sistema de compensao, baseado na exportao de manufaturas e importao de matrias primas e produtos alimentcios de primeira necessidade. A poltica de relaes bilaterais posta em prtica pela Alemanha revigorou a posio do pas no cenrio internacional e o fez ameaar a condio de primeira potncia econmica dos Estados Unidos e suas influncias nas vrias regies do mundo. A poltica alem foi capaz de ameaar at mesmo a posio conquistada pelos americanos na Amrica Latina com a Doutrina Monroe. As relaes comerciais do pas com o Brasil atingiram um montante muito mais elevado durante a dcada de 1930, superando at mesmo o comrcio brasileiro com os Estados Unidos. A participao da Alemanha nas importaes brasileiras saltou de 14,02% em 1934 para 25% em 1938. No mesmo perodo as importaes brasileiras dos Estados Unidos subiram de 23,67% para 24,02%, e as importaes da Gr-Bretanha caram de 17,14% para 10,04% (Op. Ci.).
36
ele no est limitado ao indivduo, mas abrange todo espao social (MLLER,
2008). indissocivel do exerccio da hegemonia, estando presente nos valores e
prticas sociais. Dessa forma, os discursos sobre o territrio e o poder surgidos
entre o final do sculo XIX e o incio do XX so sistematizaes acadmicas que
revelam e pertencem a um contexto geopoltico maior. As prticas espaciais
presentes na ordem internacional so firmadas concomitantemente ao discurso
geopoltico.
Segundo Michel Foucher (2000, p. 163) os discursos geopolticos
acadmicos so percepes, racionalizaes e representaes ex post facto.
Esto, portanto, impregnados por concepes geopolticas mais amplas e por
ideologias imbricadas em todo espao social. Os discursos produzidos por escolas
da Geografia e das Cincias Sociais diferenciam-se principalmente pela ambio
ao statecraft, isto , arte de governo. Por trs das insistentes referncias ao
carter cientfico de suas abordagens est tambm a pretenso de se destacar
como tcnica e suporte as polticas de Estado. Essas construes tericas
refletem a forma como a economia poltica internacional incorporada e
interpretada.
O termo discurso geopoltico se refere aqui a como a geografia da economia poltica internacional tem sido escrita e lida nas prticas de polticas internacionais e econmicas durante os diferentes perodos da ordem geopoltica. Escrita porque diz respeito ao modo como as representaes geogrficas so incorporadas s prticas das elites polticas. Lida porque alude s formas como essas representaes so comunicadas. Antes de fazer uma apreciao dessas representaes de espao em cada perodo, importante descrever o modo pelo qual o termo discurso est sendo usado. No temos em mente a idia tpica de textualidade, atravs da qual um grupo de textos ou documentos escrutinado, tampouco o que o termo possa dizer sobre prticas ou comportamento, mas sua peculiaridade, estilo ou aspecto performativo. Antes, o que pretendemos, o que poderia se chamar discursividade em geral, est relacionado a um contexto (...) O que escrito ou dito pela elite poltica se d como resultado de adoes inconscientes de regras de vivncia, falas e pensamentos que esto implcitos em textos, discursos ou documentos que so produzidos. Mas as regras so tambm constitudas desta forma como agentes epistemolgicos ou indicadores para as pessoas em geral de como deveriam viver, pensar e falar. O aspecto criador de um consenso de hegemonia no sentido gramsciano corresponde essencialmente a este significado de discurso. Mas os discursos geopolticos so apenas uma parte do tecido complexo de discursos (econmico, institucional) que formam cada hegemonia intrnseca s trs ordens geopolticas (Agnew & Corbridge, 1995, pp. 46-47) [Traduo livre a partir do original do autor]
37
Os autores denominam os discursos que caracterizaram a Ordem
Geopoltica Britnica de geopolticas civilizacionais. Como centro do mundo, os
europeus tm como arcabouo de sua hegemonia a concepo de superioridade
civilizacional. O continente organizava-se a partir da herana das grandes
civilizaes, estruturando seu poder em torno da consolidao dos Estados
territoriais.
A economia poltica internacional era o meio de poder da Inglaterra que,
como conseqncia da Revoluo Industrial, tinha cada vez mais interesses em
colnias ou reas de influncia como a Amrica do Sul. A concepo de
superioridade civilizacional apoiava-se ainda nos valores estabelecidos pelo
cristianismo, sendo os processos de interveno uma providncia divina
(AGNEW, 1998). No caso brasileiro, deve-se reiterar que a independncia em
1922, e sua consolidao como imprio mercantil estavam subordinadas a
ascenso da Inglaterra no comando da economia-mundo (BECKER & EGLER,
1992).
Na Ordem Geopoltica da Rivalidade Inter-Imperial, prevaleceram as
geopolticas naturalizadas. Nestas, houve a construo de um discurso acadmico
sobre a superioridade europia em relao ao restante do mundo. A religio foi
substituda pela crena no cientificismo puro. A geopoltica acadmica surge e se
desenvolve segundo concepes epistemolgicas fundadas em teorias das
cincias naturais. Mesclando o naturalismo s filosofias de Hegel e Fichte, esta
geopoltica desenvolveu uma concepo de Estado enquanto um organismo
territorial.
A partir das proposies terico-metodolgicas da geografia alem,
Mackinder realizou o primeiro diagnstico geopoltico da organizao espacial do
poder mundial. O texto The Geographical Pivot of History (1904) foi a primeira
formalizao geopoltica a delinear as principais dinmicas mundiais (RETAILL,
2000, pp. 35-51). Nele, propunha um modelo geogrfico onde a Amrica do Sul
embora lembrada pelo vasto potencial de desenvolvimento futuro aparece sem
relevncia e distante do centro geoestratgico global.6 Apesar de ser influenciado
pela ascenso da Rssia e da Alemanha, e de ser elaborado na Era dos
6 Geoestratgia envolve a aplicao do raciocnio geogrfico na conduo da guerra e/ou no estabelecimento de um esquema de defesa nacional (FOUCHER, 2000, p. 165). Em muitos casos como aqueles que envolvem alianas e coalizes entre vrios pases, esse esquema pode ser tambm multinacional, com alcance continental ou transcontinental. No que tange aos blocos regionais, esse conceito adquire maior dimenso, como discutiremos de forma mais apropriada na segunda parte da tese.
38
Imprios, o modelo geopoltico de Mackinder j antevia diversos aspectos da
poltica internacional que ser tornariam preponderantes aps a Segunda Guerra
Mundial.
Segundo Leslie Hepple (2004), Mackinder, ao considerar o continente sul-
americano sob a esfera de influncia norte-americana no final do sculo XIX,
entendia que essa situao poderia ser desafiada com a consolidao da
Alemanha como uma potncia mundial. De fato, segundo Luiz Alberto Moniz
Bandeira (2006), a Alemanha promoveu uma investida comercial na Amrica do
Sul na dcada de 1930, chegando a ameaar a primazia econmica dos Estados
Unidos e Inglaterra na regio. Com a ecloso da guerra, os pases do Cone Sul
foram os ltimos em todo o continente a migrarem de forma definitiva do campo
hegemnico britnico para o americano, consolidando, assim, a supremacia dos
Estados Unidos na regio.
A mudana hegemnica ocorrida no continente que se deu
primeiramente entre os pases da poro setentrional sul-americana, passando
posteriormente pela vertente pacfica at chegar ao Cone Sul (MELLO, 1997)
uma manifestao regional de uma transio de alcance global. Assim como no
restante do mundo, esse processo se torna completo na Amrica do Sul aps o
final da Segunda Guerra Mundial e o incio da era bipolar que resultou na oposio
entre dois discursos.
A Ordem Geopoltica da Guerra Fria foi marcada pelo que Agnew &
Corbridge (1995) e Agnew (1998) definem como geopolticas ideolgicas (1945-
1990). Nesse caso, de uma forma mais radicalizada do que em relao s ordens
anteriores, grande parte das frices entre os dois modelos deu-se no campo
discursivo. O conceito de ideologia aqui empregado se refere a um amlgama de
idias, smbolos e estratgias postas por um confronto de iderios entre os dois
lados. Ao consolidarem sua hegemonia em todo continente sul-americano durante
a Guerra Fria, os Estados Unidos foram cruciais na transformao da poltica
regional.
Esses discursos foram fundamentais no delineamento da poltica externa
e no alinhamento dos pases da regio com as potncias ocidentais. A primeira
iniciativa visando o estreitamento das relaes interestatais na Amrica do Sul
ocorreu no incio do sculo XX, aps dcadas de acirramento das rivalidades
39
(especialmente no Cone Sul) que resultaram em grandes guerras no final do
sculo XIX.
As primeiras iniciativas de cooperao entre o Brasil e os demais pases
do Cone Sul, embrionrias para todo o processo futuro de integrao regional no
continente, deu-se numa era de transio da hegemonia inglesa para a americana.
Esse fato resultou em caractersticas bastante especficas para as polticas
regionais.
A ascenso do pan-americanismo como o mais importante valor a nortear
a poltica em todo continente, expressava mais a transformao dos Estados
Unidos em nova potncia mundial, do que uma tendncia de cooperao
multilateral. Nesse caso, contribui relao Brasil - Estados Unidos, a resistncia
da elite poltica nacional em se empenhar no fortalecimento dos laos regionais
sul-americanos.
1.2. As Primeiras Iniciativas de Integrao
A Amrica do Sul somente passa a ser introduzida no discurso oficial da
poltica externa brasileira com a proclamao da repblica.7 Segundo Santos
(2005, p. 4), nos primeiros vinte e cinco anos da era republicana, a diplomacia
estabeleceu uma diviso do continente em duas reas: a Amrica do Norte,
comandada pelos Estados Unidos, e a Amrica do Sul, onde Brasil, Argentina e
Chile dispunham de autonomia relativa.8 Nesse perodo, havia uma concepo de
Amrica do Sul restrita ao Cone Sul. Essa limitao estava em conformidade com
os interesses da diplomacia comandada por Rio Branco, que visava o
estabelecimento do Tratado do ABC entre Argentina, Brasil e Chile (Op. Cit.).9
Durante toda Republica Velha, a poltica externa brasileira ... seguiu as linhas
7 A proclamao da repblica representou a reverso imediata do distanciamento em relao ao americanismo. A delegao brasileira Conferncia de Washington de 1889-1889 teve sua chefia mudada e foi orientada a dar um esprito americano s instrues que haviam sido preparadas ainda pela diplomacia imperial. Aps tentar, sem sucesso, negociar uma aliana ofensiva e defensiva com os Estados Unidos, o Brasil acabou por contentar-se com um acordo comercial, firmado em janeiro de 1891. Com a Repblica, o discurso da chancelaria brasileira passou, ainda que timidamente, a incorporar as expresses como Amrica Latina, Amrica do Norte, Amrica Central e Amrica do Sul. Luis Cludio Villafae G. Santos, 2005, pp. 3-4. 8 Vale lembrar que esse subsistema sul-americano no englobava, na prtica, o que hoje entendemos como Amrica do Sul. A disputa de limites entre a Venezuela e a Guiana inglesa, a secesso do Panam (que Roosevelt resumiu com a frase: eu tomei o Panam) e todos os outros assuntos dos pases situados ao norte da Amrica do Sul eram tratados como questes da rea de influncia abertamente imperial dos Estados Unidos. Op. Cit., p. 4. 9 O Baro de Rio Branco, frente da pasta das relaes exteriores, procurou equilbrio em dois eixos de atuao: uma aliana tcita com o parceiro hegemnico da regio, os Estados Unidos da Amrica, para em seguida buscar a conformao de um espao de paz e relaes privilegiadas com seus parceiros sul-americanos. De fato, com Rio Branco, o continente sul-americano tem sua importncia colocada sobre novas bases na diplomacia brasileira [...]. Thiago Gehre Galvo, 2009, p. 64.
40
delineadas por Rio Branco: voltada por um lado, para os Estados Unidos na forma
de aliana no escrita, e, por outro, dotada de uma ativa poltica sul-
americana... (Op. Cit., p. 08).
Essas primeiras tendncias rumo a Amrica do Sul foram importantes
para introduzir o continente enquanto regio de atuao da diplomacia brasileira.
Da mesma forma, a diretriz estabelecida pelo Baro de Rio Branco, de uma
aliana entre as principais foras do Cone Sul, foi retomada nas ltimas dcadas
do sculo XX enquanto base da regionalizao no continente. A concepo de
regionalizao aqui empregada se difere daquela utilizada por tericos, cujo
entendimento do conceito repousa exclusivamente na interao econmica em
uma rea internacional que acontece sem a atuao direta dos Estados.10 A partir
de uma perspectiva oposta, a regionalizao um modelo poltico de relao
interestatal, visando o alargamento ou a criao de um processo de coeso
regional.
Assim como em outras reas do globo, na Amrica do Sul esse modelo de
poltica internacional engloba o aprofundamento das interaes econmicas e
territoriais. A ampliao dessas interaes manifestao imanente de um novo
modelo de poltica regional. A fase embrionria da regionalizao como
inaugurada por Rio Branco, ganha o primeiro impulso somente dcadas mais
tarde. Ainda que no tenha ocupado oficialmente espao em negociaes
multilaterais, a primeira tentativa de formalizar uma poltica regional entre os trs
pases deu-se na dcada de 1940, durante os governos Juan Pern e Getlio
Vargas (MONIZ BANDEIRA, 1992). A retomada do Pacto do ABC, principalmente
para o presidente Pern e a sua averso a hegemonia norte-americana, significou
10 Regionalizao diz respeito ao crescimento da integrao da sociedade em uma regio e aos processos muitas vezes no dirigidos de interao social. A isto, os primeiros estudiosos do regionalismo descreviam como integrao informal e alguns analistas contemporneos se referem como regionalismo suave (soft regionalism). O termo atribui um peso especial a processos econmicos autnomos que conduzem a nveis mais elevados de interdependncia econmica em determinadas reas geogrficas do que entre essas reas e o resto do mundo. Ainda que muitas vezes no sejam afetadas pelas polticas estatais, as foras propulsoras mais importantes da regionalizao econmica provem dos mercados, do comrcio privado e dos fluxos de investimento e das polticas e decises empresariais. So de particular importncia o aumento do comrcio entre empresas, o nmero crescente de incorporaes e aquisies internacionais e a emergncia de redes cada vez mais densas de alianas estratgicas entre empresas [...]. Regionalizao tambm envolve a circulao de pessoas, o desenvolvimento de mltiplos canais e complexas redes sociais, por meio dos quais idias, atitudes polticas e maneiras de pensar se espalham de uma rea para outra, criando sociedades civis regionais transnacionais. Conseqentemente, a regionalizao com freqncia conceituada em termos de complexos, fluxos, redes ou mosaicos. Trs pontos devem ser destacados: (1) os processos envolvidos na regionalizao so, pelos menos em princpio, mensurveis embora, como a obra de Deutsch sugere, o que se mede e o que se infere dos dados coletados permaneam questes profundamente problemticas; (2) a regionalizao no se baseia em polticas concretas de Estados ou de grupos de Estados nem pressupe qualquer impacto particular nas relaes entre os Estados da regio; e (3) os padres de regionalizao no coincidem necessariamente com as fronteiras dos Estados. Migrao, mercados e redes sociais podem levar ao aumento da interao e interconectividade que vinculam alguns dos Estados existentes e criam novas regies entre fronteiras. A essncia desse regionalismo transnacional pode ser econmica, como nos plos de desenvolvimento transfronteirio, de corredores industriais ou de redes cada vez mais densas unindo os principais centros industriais, ou pode ser construda com base em elevados nveis de interpenetrao humana, como acontece atualmente entre a Califrnia e o Mxico. Andrew Hurrell, 1995, pp. 26-27.
41
a primeira tentativa sistemtica de maior autonomia frente aos Estados Unidos e
Europa.
Devido falta de entusiasmo de Vargas, e, principalmente, pela
resistncia existente em setores conservadores da poltica brasileira a qualquer
proposta que no fosse pan-americanista, essa expectativa de construo de uma
poltica continental fundamentada na cooperao regional no se concretizou em
acordo formal (Op. Cit.). Todavia, essa tendncia tornou-se recorrente no Cone Sul
e no dilogo diplomtico entre Brasil, Chile e Argentina, visando a cooperao
poltica que perdurou at o incio da dcada de 1960. At a queda de Joo Goulart,
prevaleceu propostas de cooperao poltica, liderada pelas principais foras do
Cone Sul.
Portanto, desde a diplomacia liderada por Rio Branco, passando pelo
governo Vargas at o golpe militar, a Amrica do Sul foi paulatinamente se
tornando uma regio essencial para a diplomacia brasileira. O modelo americano
de primazia na Amrica Latina torna a aproximao entre os pases sul-
americanos uma alternativa em termos de poltica internacional. Nesse sentido, as
foras que impulsionaram os pases sul-americanos relaes polticas
preferencialmente exgenas ao continente, lentamente se arrefeceram. O
estreitamento dos laos polticos e econmicos se tornaria meio de fortalecimento
regional frente a condio de subordinao perante as potncias mundiais. Essa
percepo se tornou o principal aspecto para a construo dos primeiros discursos
de cooperao.
Alm da diplomacia, h uma geografia implcita na aproximao poltica
entre os pases. Se a histria diplomtica fornece o embasamento das relaes
interestatais, caracterizando o continente como regio dotada de especificidade
poltica, aspectos geogrficos tradicionais como posio e circulao esto
subjacentes ao processo. Histrica e geograficamente, as relaes interestatais
sul-americanas se diferem daquelas que seus pases mantm com outras naes
e regies.11
Em princpio, isso ocorre porque existe uma agenda em comum, posta por
uma geografia que se manifesta por questes vitais. Temas como localizao,
11 ... [O] conceito de Amrica do Sul, como uma categoria atualizada das relaes internacionais, se vincula consolidao da entidade geogrfica com uma dinmica prpria na sociedade internacional. Com isso, a Amrica do Sul acopla-se aos debates sobre regionalizao e globalizao. Por um lado, a contigidade geogrfica elemento determinante para impulsionar a cooperao internacional na rea de infra-estrutura de integrao e em contraposio ao ideolgico latino-americano emerge a noo de um espao sul-americano integrado. Thiago Gehre Galvo, 2009, p. 65.
42
circulao natural e artificial, fronteiras e recursos naturais foram centrais no
apenas durante os perodos de formao territorial. O lento processo de
aproximao no sculo XX entre os pases mantm esses tpicos como cruciais
na cena sul-americana.
Contudo, o alargamento da agenda sul-americana desde Rio Branco,
permitiu o estreitamento das relaes polticas entre os pases sem resultar
diretamente em projetos slidos. inegvel que, apesar de a Amrica do Sul
passar a existir diplomaticamente para os seus prprios pases principalmente
para as trs grandes foras do Cone Sul durante dcadas essa interao poltica
pouco contribuiu para uma regionalizao efetiva e para o fortalecimento
internacional. De 1945 em diante, embora haja uma aproximao regional, a
Amrica do Sul no se projeta com identidade poltica prpria na comunidade
internacional.
Numa concepo que se tornou mainstream entre as grandes potncias
ao logo do sculo XX, os pases de origem ibrica foram meramente definidos
como latino-americanos. A Amrica Latina enquanto expresso geogrfica ganha
fora no sculo XX, principalmente pelo fato de agrupar um conjunto de pases que
comungam de condies polticas, econmicas e sociais relativamente
semelhantes.12
As generalizaes contidas nessa viso exgena a respeito do que seria a
Amrica latina tm implicaes no apenas para a identidade de seus pases,
mas, sobretudo, para o lugar que ocupam no cenrio poltico internacional. Do
mesmo modo que as heranas deixadas pelas concepes geopolticas de
tradio anglo-americana, a percepo internacional de uma rea hispano-
portuguesa pobre e subordinada aos Estados Unidos ser crucial para a definio
de um lugar especfico para seus pases nas alianas ocidentais durante a Guerra
Fria.
12 A Amrica Latina como abstrao geogrfica desenvolveu-se e ganhou fora com o passar do tempo, chegando a caracterizar linhas de estudos nas principais universidades estadunidenses e vertentes de poltica externa direcionadas para uma regio como se essa fosse um s pas. Entretanto, as similitudes no que concerne a um passado histrico colonial e a necessidade de superao do subdesenvolvimento simplificam demasiadamente a complexidade dos pases que compartilham, dentro de uma rea de dimenses vastas, elementos culturais prprios e, conseqentemente, interesses nacionais distintos. De fato, a evoluo latino-americana, como uma regio historicamente fragmentada no quadro da diviso internacional do trabalho, o processo de industrializao tardio, bem como a forma particular de dependncia que se estabeleceu entre os pases da regio e os Estados Unidos catalisaram a construo mental de uma realidade histrica: a diferenciao entre duas Amricas, uma anglo-sax integrada economia mundial; e outra, com origens ibricas relegadas a periferia desse sistema. Thiago Gehre Galvo, 2009, pp. 64-65.
43
1.3. A Amrica do Sul na Geoestratgia Norte-Americ ana
A posio internacional dos pases sul-americanos apresenta
singularidades que os diferenciam no somente em relao a outras reas do
continente americano, mas tambm no que se refere a outras regies do globo.
Desde a era da diplomacia comandada pelo Baro de Rio Branco, as relaes
internacionais do Brasil passaram a ser orientadas em direo aos Estados
Unidos.13
Contudo, esse movimento de aproximao entre os dois maiores pases
do continente nem sempre se refletir num alargamento progressivo da projeo
internacional do Brasil ou dos demais pases da Amrica do Sul. A partir de 1945,
com o novo impulso internacionalista da poltica norte-americana traado por
Franklin D. Roosevelt nas duas dcadas anteriores o Brasil e a Amrica do Sul
perdem relevncia para os Estados Unidos. Isso ocorre como uma conseqncia
direta do surgimento de novas reas de valor geoestratgico global para a nova
potncia mundial.
Aps o fim da Segunda Guerra Mundial, algumas regies perifricas do
globo, at ento de pouca relevncia diplomtica, adquiriram importncia vital nos
desdobramentos da poltica internacional. Entre 1945 e 1991, diversas reas do
Leste Asitico, que eram exclusivamente dependentes da industrializao
japonesa (ARRIGHI, 2008, p. 345), tornaram-se foco de um imenso esforo
poltico, econmico e militar, por parte dos Estados Unidos. O Japo e o seu
entorno adquiriram importncia estratgica para a poltica de segurana nacional
dos Estados Unidos, medida que essa rea passou a ser entendida como
fundamental para as polticas de conteno ao comunismo sovitico (GADDIS,
2005b).
De forma muito semelhante Europa Ocidental, foram adotadas duas
medidas cardinais visando conter a expanso da Unio Sovitica no Leste
Asitico. Por um lado, os Estados Unidos se encarregaram de promover uma forte
13 A diplomacia de Rio Branco, paradigmtica para o perodo, estruturou o discurso sobre o americanismo e a Amrica do Sul para atender seus trs principais objetivos: a definio das fronteiras, o aumento do prestgio internacional do pas e a afirmao da liderana brasileira na Amrica do Sul [...]. Para a consecuo desses objetivos, de modo bastante realista, Rio Branco optou pela poltica de aliana no escrita com os Estados Unidos. O Baro deslocou o eixo da poltica externa brasileira em direo a Washington, com gestos simblicos, como a elevao das respectivas delegaes ao status de embaixadas e a realizao da Terceira Conferncia Americana no Rio de Janeiro; e polticas concretas como o reconhecimento da soberania do Panam, a aprovao tcita do Corolrio Roosevelt, a indiferena ante as intervenes estadunidenses na Amrica Central e no Caribe, o repdio a Doutrina Drago, etc. Luis Cludio Villafae G. Santos, 2005, p. 04.
44
militarizao da regio com a instalao de bases militares, principalmente no
Japo;14 simultaneamente estabelecendo uma barreira blica aos soviticos e
ampliando sua posio estratgica. Por outro lado, aps o incio da Guerra da
Coria em 1950, houve um esforo poltico e econmico, que resultou na
transferncia de dezenas de bilhes de dlares ao Japo e Coria do Sul
(ARRIGHI, 2008); um processo que sustentou a influncia norte-americana.
Mesmo com o fim da Guerra Fria, os dois pases ainda se destacam junto
Austrlia, como as maiores ncoras da hegemonia norte-americana em toda a
regio do Pacfico Asitico (BISLEY, 2007).
O empenho poltico e financeiro dos Estados Unidos no Leste Asitico e
na Europa Ocidental contrasta com a irrelevncia da Amrica do Sul em sua
poltica de segurana nacional. Os Estados Unidos, ao atribuir como prioridade
estratgica e econmica a reconstruo europia, e obter por meio do Plano
Marshall uma forma de sada para s