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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ
SETOR DE CIÊNCIAS JURÍDICAS
FACULDADE DE DIREITO
DISCIPLINA DE DIREITO FINANCEIRO
PROFESSOR Dr RODRIGO LUÍS KANAYAMA
ORÇAMENTO PARTICIPATIVO: Bases para um modelo orçamentário adequado
à atual ordem constitucional
Caetano Pires Tossulino
Estela de Souza Basso
Luiz Fernando Araujo Junior
Paulo Henrique Piá de Andrade
CURITIBA
2013
2
Ø. ANTELÓQUIO
Recentemente, o orçamento público ganhou grande atenção na mídia devido
à votação, na Câmara dos Deputados, da PEC que propõe torná-lo impositivo. O
debate instaurado contrapôs os que acreditam contribuir, com a mudança, para o
solucionar tanto da problemática relação de clientelismo entre o Executivo e o
Legislativo que preside o atual sistema de emendas parlamentares, bem como do
problema relativo ao efetivo atendimento dos direitos sociais, para além de
considerações quanto a conveniência e oportunidade; e aqueles que entendem se
tratar de uma solução que, por bem intencionada que seja, contribuirá
principalmente para a ineficiência do orçamento público, e criará ainda dificuldades
imprevistas que podem mesmo bloquear a efetivação dos direitos sociais.
Este artigo, diferentemente, tem em vista a proposta alternativa e popular de
orçamento, à qual faltou lugar, no recente regabofe midiático, para figurar como
possível solução a muitas contradições que pesam sobre a prática orçamentária: o
orçamento participativo. Compreendemos que este não apenas melhor se
harmoniza com os princípios e normativas da vigente ordem constitucional, tomando
em sério o direito fundamental à participação popular na Administração, como
também é o que mais faz jus a uma concepção de orçamento que não escamoteie o
caráter eminentemente político da decisão que aloca recursos.
Com o fim de expormos a já de antemão anunciada maior pertinência do
orçamento participativo ao quadro constitucional contemporâneo, percorreremos –
após as palavras do pórtico, naturalmente – as linhas-mestras do desenvolvimento
histórico do orçamento em geral;passando,então, a uma análise mais detida do
orçamento participativo, em especial de sua experiência gaúcha; e, por fim,
minudearemos o échafaudage legislativo atinente à questão, procurando demonstrar
de que modo o orçamento participativo pode melhor efetivar princípios e diretrizes
constitucionais.
I. PÓRTICO
O pressuposto de toda discussão sobre o orçamento público é o seu caráter
inegavelmente político: “[a] elaboração do plano orçamentário – que resulta numa
3
das leis orçamentárias – é uma decisão política”1. O porquê é claro: a destinação de
recursos escassos a fim de suprir necessidades – sempre extravasantes – envolve
escolhas que nunca se esgotam em critérios meramente técnicos, mas se baseiam
em prioridades acertadas politicamente. É comum que o administrador se encontre
frente a uma escolha trágica: quando, dada a escassez de recursos, deve optar por
atender apenas uma dentre várias demandas concomitantes e passíveis de
suprimento, de modo que o benefício de um implica, como consequência inevitável,
o prejuízo de outro2. Isso não ocorre apenas naquelas situações dramáticas em que
a urgência é clara e pulsante, mas no dia-a-dia da administração: se o dinheiro não
é o bastante para atender o grupo social A e o grupo social B, um deles saíra
perdendo3.
Daí a necessidade de mecanismos de escolha que permitam cotejar e
hierarquizar os interesses contrapostos, no momento de elaborar as despesas
orçamentárias, sem se prestar às distorções do poder político e econômico dos
envolvidos (capazes de engendrar quiméricas situações em que a calçada de
mármore de um é equalizada, em importância e interesse, aos mais básicos direitos
sociais do outro). Estas reflexões ganham maior relevo se lembrarmos, com Marcelo
Minghelli, que o orçamento público é hoje “o principal instrumento formal de
importância administrativa, econômica e contábil das instituições do Estado”, é a
“norma que gera a totalidade das ações governamentais”4. Tendo em conta sua
enorme relevância, não se afigura razoável confiar seu controle e fiscalização tão
somente à competência técnica e esclarecimento do administrador, como parece
querer Aliomar Baleeiro: “[...] tanto mais lúcidos, cultos e moralizados sejam os
governantes quanto mais probabilidades existem de que se realize aquele cálculo da
máxima vantagem social”5. Estando de acordo que a onisciência do administrador
melhor serviria ao interesse público que sua demência – e, mesmo assim, não com
tamanha convicção e certeza –, não podemos esposar, no entanto, a tese de que é
1 KANAYAMA, Rodrigo Luís. A ineficiência do orçamento público impositivo. Revista de Direito
Público da Economia – RDPE, Belo Horizonte, ano 7, n. 28, out./dez. 2009, p. 141. 2 KANAYAMA, Rodrigo Luís. Direito, política e consenso: a escolha eficiente de políticas públicas.
Curitiba, 2012. 218f. Tese (Doutorado) – Setor de Ciências Jurídicas, Universidade Federal do Paraná, p. 151-152. 3 Idem, p. 153.
4 MINGHELLI, Marcelo. Estado e orçamento: uma cartografia jurídico-política para a consolidação de
um orçamento democrático. Curitiba, 2009. 216f. Tese (Doutorado) – Setor de Ciências Jurídicas, Universidade Federal do Paraná, p.114. 5 OLIVEIRA, Regis Fernandes de; HORVATH, Estevão. Manual de direito financeiro. 6. ed. rev. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 111.
4
nesta contingência que restam as maiores esperanças com relação à eficiência,
tanto econômica como democrática, do orçamento.
Não se trata, aqui, de mera desconfiança para com o establishment político-
jurídico brasileiro, mas da constatação de que, afastadas do povo que lhes delega
poder e em favor do qual devem exercê-lo, as instituições dobram-se sobre si
mesmas, em um processo de “fetichização” e autorreferencialidade, até o ponto em
que “as reivindicações populares nunca poderão ser cumpridas, porque o poder
funciona como uma instância separada, extrínseca, dominadora „de cima‟ sobre o
povo”6. Com isso, o “âmbito formal de meios-fins se autonomiza, se totaliza, e o que
pode-fazer com „eficácia‟ (técnico-economicamente) determina o que se operará,
como critério último de „verdade‟ e „validade‟ teórico-poiética”7. A racionalidade
instrumental acaba por fechar o espaço público no qual, em harmonia com os
princípios da democracia participativa, as decisões estatais deveriam se compartilhar
entre Estado e sociedade civil. Daí o diagnóstico de que o Estado brasileiro – mas
não só o brasileiro – enfrenta hoje “uma crise de legitimidade, por se estabelecer
numa estrutura fechada, uma estrutura racional-legal burocratizada, sobre a qual
predomina a racionalidade sistêmica”8.
Não é outra a realidade do orçamento público no Brasil, cuja “elaboração e
execução são controladas por uma tecnoburocracia, [...] o que ocasiona uma
centralização das informações e dos documentos nas cúpulas de governo, tornando-
os inacessíveis à população”9. Além disso, a real prática orçamentária distancia-se
do modelo de escolha racional do orçamento-programa, consolidado pela Lei
Federal 4.320/64 – modelo que, mesmo em seu funcionamento ótimo, apresenta
ainda um inaceitável déficit de participação popular e, em consequência, de
legitimação material das decisões orçamentárias10 –, na medida em que
6 DUSSEL, Enrique D. 20 teses de política. Buenos Aires; São Paulo: CLACSO: Expressao Popular,
2007, p. 47. Cf. BONAVIDES, Paulo. Teoria constitucional da democracia participativa: por um direito constitucional de luta e resistência, por uma nova hermenêutica, por uma repolitizaçao da legitimidade. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 25: “[...] o poder popular, sempre objeto das alienações e descumprimento de sua vontade por outra vontade que, ocupando e dominando as Casas representativas, posto que derivadas daquela, invariavelmente o tem negado, destroçado ou atraiçoado”. 7 DUSSEL, Enrique D. Ética da libertação: na idade da globalização e da exclusão. 3. ed. Petropolis,
RJ: Vozes, 2007, p.266. 8 MINGHELLI, Marcelo. Estado e orçamento: uma cartografia jurídico-política para a consolidação de
um orçamento democrático, p.10. 9 Idem, p.94.
10Idem, p. 149.
5
[q]uase todas as escolhas orçamentárias [...] não resultam de avaliações técnicas de custos, benefícios e oportunidades entre alternativas concorrentes. [...] [De modo que] acaba restando ao Executivo decidir sobre as prioridades com base em valores pessoais, avaliações políticas, interesses particulares, pressões de grupos de interesse, etc.
11.
Neste contexto, mais interessante que acompanhar as trocas de cócegas
entre Executivo e Legislativo para assentar quem decide por último e fica com a
imposição,é avançar uma “reformulação nos procedimentos institucionalizados de
apropriação e redistribuição dos recursos públicos”12, tendo como norte e mote a
democracia participativa – a qual, segundo Bonavides, além de “transcender a
noção obscura, abstrata e irreal de povo nos sistemas representativos, transcende,
por igual, os horizontes jurídicos da clássica separação de poderes”13. O orçamento
participativo – experiência nacional, construída a partir e para a realidade local
brasileira, à prescindência de arrojadas importações teóricas – parece, assim,
“resgatar a potencialidade da peça orçamentária”14, tanto no que diz respeito ao
controle da gestão dos recursos públicos, bem como quanto à democratização de
sua elaboração.
II. ESCORÇO HISTÓRICO
Impende, antes de analisarmos o orçamento participativo propriamente
dito,proceder a breve excurso histórico, a fim de melhor visualizarmos, adiante, a
especificidade do modelo de que tratamos. Vale lembrar que o orçamento –
semantema que, como todos, não guarda univocidade ao longo do tempo – aparece
historicamente sempre como categoria jurídico-política, ainda que sua exposição
aqui se dê sob formas abstratas.
II.I.
Durante a Antiguidade, o orçamento, tal como o concebemos hoje (como
peça fundamental do Estado, que contém a previsão de receitas e a autorização de
11
GIACOMONI, James. Orçamento Público. 3ª Ed. São Paulo: Atlas, 1989, apud MINGUELLI Estado e orçamento: uma cartografia jurídico-política para a consolidação de um orçamento democrático tese 94 12
MINGHELLI, Marcelo; GOMES, Roger Kessler. Orçamento participativo: uma leitura jurídico-política., p. 115 13
BONAVIDES, Paulo. Teoria constitucional da democracia participativa: por um direito constitucional de luta e resistência, por uma nova hermenêutica, por uma repolitização da legitimidade, p.27. 14
MINGHELLI, Marcelo; GOMES, Roger Kessler. Orçamento participativo: uma leitura jurídico-política., p.66
6
despesas), não existia. O Imperador administrava os recursos públicos como se sua
propriedade fosse, confundindo-se os recursos do Estado com a riqueza pessoal do
Imperador, e o seu orçamento com o do Estado.15
Para Baleeiro, a origem dos orçamentos está na origem do poder de tributar,
estabelecido durante o Medievo com a chamada “cúria régia”, que era um conselho
de nobres e sacerdotes que auxiliavam o poder Régio em certas decisões
importantes, inclusive em relação à tributação. Porém, segundo Regis Fernandes de
Oliveira e grande parte da doutrina, o primeiro marco do Orçamento como instituto é
a elaboração da Magna Carta em 1215 que, em seu art. 12, estabelece: “Nenhum
tributo ou auxílio será instituído no Reino, senão pelo seu conselho comum, exceto
com o fim de resgatar a pessoa do Rei, fazer seu primogênito cavaleiro e casar sua
filha mais velha uma vez, e os auxílios para esse fim serão razoáveis em seu
montante”. Mesmo não envolvendo a despesa pública, este artigo estabeleceu o
princípio tributário do consentimento, sendo a primeira forma de controle da
monarquia absoluta pelo Parlamento, reforçado em 1689 pelo Bill of Rigths, que
reafirmava que um tributo só seria legítimo se fosse aprovado pelo órgão de
representação16.
Na Europa continental, mais especificamente na França, um certo limite de
tributar começa a surgir em 1313 nos Estados Provinciais, quando uma espécie de
assembleia, composta por nobres, clérigos e camponeses, estabelece um imposto
sobre aqueles que não faziam parte da nobreza, para a manutenção do exército. No
decorrer da história continental percebe-se também alguns esparsos episódios em
que houve limitação ao poder de tributar, porém os grandes marcos do orçamento
são a Revolução Francesa, que em 1789 estabeleceu o princípio de periodicidade
da votação e a autorização pelo Parlamento para arrecadação de impostos, e a
Constituição de 1791 que outorgou a este Poder a competência exclusiva de definir
as despesas públicas.17 Porém, em decorrência do desrespeito ao controle
representativo na criação de impostos ocorrido durante o período Napoleônico, o
controle total do orçamento pelo Parlamento só se deu em 1831. A experiência
francesa e a consolidação do Estado Liberal, através da percepção da necessidade
15
OLIVEIRA, Regis Fernando de, Curso de Direito Financeiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p.344. 16
GIACOMANI, James. Orçamento Público, p. 39. 17
ROSA JÚNIOR, Luiz Emygdio Franco da. Manual de direito financeiro & tributário. 16 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 75.
7
de controlar os gastos públicos, nos delegaram princípios orçamentários básicos,
tais como a anualidade do orçamento, a votação do orçamento antes do início do
exercício, a universalidade do orçamento, contendo todas as previsões financeiras
do exercício e a não afetação de receitas18.
Já nos Estados Unidos da América a falta de participação dos colonos no
processo decisório sobre a tributação imposta pelo Parlamento inglês foi um dos
fatores fundamentais para a guerra da independência, tanto é que já em 1778
(apenas 16 anos após o conflito, e apenas 2 após a Declaração de Independência
dos Estados Unidos) a Constituição norte americana delegou ao Congresso a tarefa
de orçar gastos, criar tributos e tomar empréstimos. Desta forma fica evidente que as
questões referentes ao Orçamento Público e à Finanças Públicas foram basilares na
afirmação do Parlamento (como representação da classe burguesa em ascensão)
em frente ao poder absoluto.
A elaboração do Orçamento Público se deu devido à tensão política originada
pelo aumento do poder econômico e político da burguesia, e da necessidade desta
em, através de um aparato institucional protegido juridicamente, limitar o poder de
quem estivesse no Governo, a fim de proteger as liberdades individuais, apregoadas
pela classe.19
II.II.
No Brasil, a tensão entre a crescente burguesia e a tributação ilegítima e não
consensual pode ser notada a partir de 1720 na Revolta de Felipe dos Santos, e
também em outros conflitos, tais como a Inconfidência Mineira, em 1789; a Revolta
Farroupilha, em 1820; e a Revolta do Quebra-Quilo, em 1896. Porém a organização
das finanças públicas iniciou-se somente em 1808 com a vinda de Dom João VI, a
abertura dos portos e a criação do Tesouro Público. As primeiras exigências de
elaboração de um orçamento datam da Constituição de 1824 que em seu art. 172
dispunha: “o Ministro de Estado da Fazenda, havendo recebido dos outros ministros
os orçamentos relativos às despesas das suas repartições, apresentará na Câmara
dos Deputados anualmente, logo que esta estiver reunida, um balanço geral da
receita e despesa do Tesouro Nacional do ano antecedente, e igualmente o
18
BURKHEAD, Jesse. Orçamento Público. Rio de Janeiro: FGV, Serv. de Publicações, 1971. 19
MINGHELLI, Marcelo. Estado e Orçamento: uma cartografia jurídico-política para a consolidação de um orçamento democrático, (falta página)
8
orçamento geral de todas as despesas públicas do ano futuro, e da importância de
todas as contribuições, e rendas públicas”, e nos artigos 36, inciso I e 15 n. 13 e 14,
estabelecia a competência do Poder Legislativo para: a iniciativa sobre impostos,
autorizar a contrair empréstimos e estabelecer meios convenientes para pagamento
da dívida pública. Entretanto tais dispositivos tiveram muita dificuldade em ser
implementados em seus primeiros anos, sendo efetivado o primeiro orçamento
somente no exercício de 1931-193220.
Durante a 1° República a Constituição deixou a cargo do Congresso “orçar
receita e fixar a despesa federal anualmente” sendo o Ministério da Fazenda
responsável por “centralizar, harmonizar, alterar ou reduzir os orçamentos parciais
dos Ministérios para organizar a proposta”. A Constituição de 1934 disciplinou a
estrutura do orçamento em seu art. 50, definindo o como uno, contendo todas as
receitas e despesas. Em 1937 a Constituição dispôs detalhadamente sobre o
orçamento nos art. 67 a 72, porém submeteu a proposta do Legislativo às emendas
feitas pelo Conselho Federal, composto por membros do Estado e de dez membros
indicados pelo Presidente da República, já os orçamentos estaduais e municipais
ficavam à mercê da aprovação do Conselho Administrativo. O Orçamento só ganhou
aparência democrática com a Constituição de 1946, e contornos de transparência
em 1964 com a lei 4.320.
O modelo de Orçamento adotado no Brasil, desde 1960, pode ser classificado
como orçamento-programa, cujas características são, como exposto por Marcelo
Minghelli, “o planejamento, a programação de execução e o orçamento”21 sendo
este último elemento a exibição dos recursos disponíveis e dos fins propostos pelo
governo. Pode ainda ser definido o orçamento-programa como:
[...] aquele tipo de orçamento que apresenta, em primeiro plano, as metas ou os objetivos que a Administração decide levar a efeito em determinado exercício financeiro. [...] O Orçamento-programa[...] põe em realce metas, intentos, objetivos e propósitos, inseridos em uma estrutura de programas a realizar em um período financeiro. A grande vantagem, pois, do orçamento-programa é que faz a ligação entre os sistemas de planejamento e finanças, permitindo que planos expressos em unidades fiscais – quilômetros de estrada a construir, número de doentes a atender, etc. – sejam concomitantemente expressos em termos de dinheiro, possibilitando assim levar os planos à execução prática. Isso significa que a característica fundamental do orçamento-programa é a mensuração, em termos físicos, das ações administrativas.
20
BALEEIRO, Aliomar. Uma Introdução à Ciência das Finanças. 13 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1981, p. 393 21
MINGHELLI, Estado e Orçamento: uma cartografia jurídico-política para a consolidação de um orçamento democrático, p. 88.
9
Difere-se do orçamento por funções, vigente até início do século XX nos EUA, que
classificava as despesas pelas funções do Estado, dando a liberdade para a
alocação das receitas dentro das funções determinadas, sem a aparente
preocupação com o objetivo do gasto.
II.III.
A análise histórica do orçamento público evidencia que sua função varia e
está intimamente relacionada à concepção de Estado em que ele se encontra. Até
porque o orçamento é o principal meio de planejamento do Estado e de intervenção
política e econômica, sendo assim é possível perceber diversos aspectos do
orçamento público, constituindo se os quatros principais, segundo Baleeiro, em
técnico, jurídico, econômico e político.
O aspecto técnico evidencia-se pelo caráter contábil do orçamento, e,
segundo Oliveira, nesse aspecto “aliam-se os princípios orçamentários com a
técnica de elaboração da peça”. É inegável que o orçamento, na função de
coordenar receitas e despesas, se apresente como instrumento técnico. O aspecto
jurídico do orçamento se exterioriza (no Brasil) em sua natureza de lei formal, e não
material por não obrigar o Estado, mas o vincular. Há quem defenda que a natureza
do orçamento seja de ato administrativo ou até de ato condição, mas a hipótese que
melhor se adapta à Constituição brasileira é a de lei formal, assim a lei orçamentária
aprovada pelo Legislativo autoriza uma conduta do administrador público. “No
entanto, a aprovação do plano, a sua conversão em lei, não o obriga. Não vincula a
administração pública, (...) apenas delimita a atuação, mas não impõe uma ação.”22
Pelo aspecto econômico pode se dizer que o orçamento deve estar coerente
com a conjuntura econômica, impondo-se, pelas regras do mercado, o equilíbrio
entre as despesas e as receitas. “É regra da economia que todo aquele que gasta
além do que pode tende a ter dificuldades financeiras, endividando-se a ponto de
não poder cumprir suas obrigações”23. No prisma econômico o orçamento pode ser
visto também como um importante meio de intervenção do governo na economia,
através das políticas fiscais, impõe-se dessa forma que o Estado deva planejar o
crescimento da economia, Oliveira ressalta que um orçamento bem planejado pode
22
KANAYAMA, Rodrigo Luís. A ineficiência do orçamento público impositivo, p.133. 23
OLIVEIRA, op. cit., p.351
10
até amenizar efeitos de choques econômicos, dentro ou fora do país. O caráter
intervencionista do orçamento (orçamento como instrumento de estabilização e
ampliação da economia) foi visto com repugnância durante o período clássico da
análise orçamentária, sendo superada tal visão somente com o desenvolvimento da
teoria keneysiana, no pós Primeira Guerra Mundial.
III. O ORÇAMENTO PARTICIPATIVO
III.I.
Não precisaríamos ir tão longe para constatarmos que não existe apenas uma
democracia, mas diversas experiência democráticas - sobretudo ao longo do século
XX. Tal forma de organização política têm causado muitos revolveres, resultantes e
resultado de transformações substanciais no que propriamente se entende por
democracia, tanto em sua teoria quanto em sua prática.
Se há apenas dois séculos falava-se em democracia apenas como privilégio
de uns tantos países da Europa e da América do Norte, hoje o que verificamos é
uma notável emergência não só de focos democráticos, como diversas tentativas e
aprendizados em termos de democracia.
No chamado “Consenso de Washington”, em 1989, a democracia
representativa é edificada como um de seus alicerces, passando a ser o modelo
recomendado e seguido - platô em que vão ocorrer inúmeros ensaios de
esperançosos projetos. Ironicamente, será até mesmo imposta por programas como
o de ajustamento estrutural ao Fundo Monetário Internacional, vez que passa a ser
parte integrante de tais propostas. Ainda também como quesito de acesso a
empréstimos dos países centrais, do Banco Mundial e demais agências multilaterais.
Podemos ressaltar, contudo, que uma vez perfilhada por vários países, as
suas promessas não foram de todo compatíveis aos seus efeitos. Paralelamente às
escolhas pelo regime democrático, os processos globais assomaram à miscelânea
de problemas outros mais, senão contribuíram para a intensificação daqueles tantos
já conhecidos: exclusão social e pauperização de parcelas da população mundial.
11
Em âmbito local, no que tange à distribuição de riquezas, à proteção social e
à transparência do poder público24, as respostas não foram imediatas, tampouco
favoráveis às demandas existentes. De acordo com Boaventura de Sousa Santos:
Se nalguns casos tal frustação resultou em instabilidade política, noutros fez com que as expectativas democráticas fossem canalizadas, sobretudo a nível local, para uma outra forma de democracia, a democracia participativa, a qual passou a vigorar segundo diferentes sistemas de complementaridade com a democracia representativa
25.
Isso quer dizer que o enfrentamento de tais processos por bem trouxe para
perto novas formas e tentativas de lidar com as imperfeições inerentes a qualquer
regime político. Iniciativas de base, iniciativas públicas, inovações comunitárias e
movimentos populares reinventam maneiras de atuar politicamente. Muitos desses
projetos figuram como formas de atuação contra-hegemônicos, vez que são
protagonizados por grupos que estão sujeitos mais fortemente à vulnerabilidade de
suas condições de vida.
Nesse sentido, torna-se mais claro o fato de que a democracia não é apenas
um fato histórico, um dado da realidade ou um mero regalo: trata-se de um
processo, um projeto que, antes de ser prontamente democracia em si mesma, mais
nos convém tratá-la como construção democrática.
III.II.
Dito isso, antes de entrarmos no mérito do Orçamento participativo, é preciso
considerá-lo como uma emanação da teoria da democracia participativa26. Esta, por
sua vez, apoia-se na compreensão de que os cidadãos possuem o dever de
participar de forma direta das decisões políticas. Aqui, cabe, por oportuno, trazer a
diferença fundamental entre participar diretamente das escolhas políticas e atuar na
escolha dos decisores políticos, pressuposto do qual emerge a democracia em sua
forma representativa: participação e representação, deliberação e delegação sempre
estiveram em tensão no debate acerca da construção democrática.
Nada obstante tal possível conflito, muito mais se afigura crível, hoje, a
possibilidade de que ambos os sistemas possam vigir, ressalvadas suas diferenças,
de maneira a se complementarem.
24
SANTOS, Boaventura de Sousa. Democracia e Participação. O caso do orçamento participativo de Porto Alegre. 1.ed. Porto, Portugal: Edições Afrontamento, 2002. 25
Idem, p. 7. 26
Idem, p. 8.
12
III.III.
O orçamento participativo é uma iniciativa urbana, um processo regularizado
de intervenção permanente dos cidadãos na gestão municipal27. Tem,na experiência
de Porto Alegre, que mantém tal modelo desde 1989, sua mais bem-acabada
expressão – o que já rendeu à capital gaúcha considerações da ONU, que o
considerou como uma prática de gestão urbana diferenciada. Não à toa, de acordo
com Leonardo Avritzer28 no ano de 2005, cento e três municípios brasileiros já
haviam adotado o orçamento participativo.
O orçamento participativo procura dar suporte ao funcionamento de um
mecanismo de “gestão conjunta dos recursos públicos, através de decisões
partilhadas sobre a distribuição dos fundos orçamentais e de responsabilização
governativa no que respeita à efectiva implementação dessas decisões”29. Além
disso, trata-se de um processo constante de tomada de decisão, amparado em
regras gerais de justiça distributiva, votadas e aprovadas por órgãos institucionais de
participação - desses órgaos participam as classes populares com representação
majoritária, vez que para tanto legitimam-se através de suas próprias reivindicações.
Sua estrutura básica, como definida na experiência gaúcha,configura-se em
16 assembleias regionais (de acordo com regionalização da cidade que não leva em
conta somente critérios administrativos, mas também a tradição organizativa dos
movimentos de moradores) e 6 assembleias temáticas, através das quais os
cidadãos se reúnem a fim de formular exigências e elencar prioridades temáticas
para a distribuição dos investimentos municipais, a partir de critérios objetivos que
possibilitam o estabelecimento de hierarquias quantificadas30.
Ademais, o orçamento participativo se orienta por meio de princípios e através
de um conjunto de instituições “que funcionam como mecanismos ou canais de
participação popular regular (...) sustentada no proceso de tomada das decisões do
governo municipal31”. Os três princípios, de acordo com Boaventura de Sousa
Santos, são:
27
Ibidem. p. 8. 28
KANAYAMA, Rodrigo Luís. Direito, política e consenso: a escolha eficiente de políticas públicas. p.34. 29
SANTOS, Boaventura de Sousa, op. cit., p. 29 30
Idem, p. 8. 31
Idem. p. 25.
13
i. Todos os cidadãos têm o direito de participar, sendo que as organizações comunitárias não detêm, a este respeito, formalmente, pelo menos, um estatuto ou prerrogativa especiais;
ii. A participação é dirigida por uma combinação de regras de democracia direta e de democracia representativa, e realiza-se através de instituições de funcionamento regular cujo regimento interno é determinado pelos participantes;
iii. Os recursos de investimento são distribuídos de acordo com um método objetivo baseado numa combinação de “critérios gerais” – critérios substantivos, estabelecidos pelas instituições participativas com vista a definir prioridades – e de “critérios técnicos” – critérios de viabilidade técnica ou econômica, definidos pelo Executivo, e normas jurídicas federais, estaduais ou da própria cidade, cuja implementação cabe ao Executivo.
Ainda de acordo com o autor, quanto às instituições, é possível elencar a
seguinte estrutura:
i. As instituições que abrangem as unidades administrativas do Executivo Municipal: são responsáveis por gerir o debate sobre o orçamento junto aos cidadãos. É nesse âmbito que ocorre a “tradução” das exigências dos cidadãos em ações municipais, técnica e economicamente viáveis, a partir da apreciação de critérios gerais e técnicos.
ii. As intituições que consistem em organizações comunitárias: possuem autonomia frente ao governo municipal e são integradas por organizações de base regional, que realizam a mediação entre a “participação dos cidadãos e a decisão acerca das prioridades para diferentes regiões da cidade”.
iii. As instituições que estabelecem a mediação e a interação permanentes entre as duas primeiras formas de instituição acima; esta terceira é organizada por instituições de participação comunitária com funcionamento regular. Ex. Conselho do Plano do Governo e Orçamento, ou Conselho do Orçamento Participativo, Assembleias Plenárias Regionais, etc.
As assembleias elegem os conselheiros do orçamento participativo,
responsáveis por apreciar e votar a proposta orçamental elaborada pelo Executivo
municipal, de acordo com as prioridades estabelecidas nas demais assembleias.
Também nesta instância são eleitos os delegados, cujo número é proporcional
quanto à participação, e cuja incumbência é hierarquizar investimentos viáveis
dentro de cada prioridade, acompanhando a execução das decisões tomadas.
A metodologia concebida para classificar as prioridades e e calcular
investimentos foi o sistema de atribuição de pontos: cada região expressa através de
uma pontuação obtida o peso de suas prioridades e, a partir disso, define-se o
percentual de recursos a ser direcionado para cada uma.
A complexidade do sistema de atribuição de pontos reside no facto de que ele procura articular a mediação da participação, por um lado, com a mediação de prioridades e de necessidades reconhecidas, por outro. A mediação da participação garante a legitimidade democrática das decisões políticas, enquanto que a mediação das prioridades e das necessidades
14
garante a fidelidade, a objetividade e a transparência com que é feita a conversão das decisões políticas em recursos distribuídos
32.
A participação dos cidadãos configura-se de maneira muito próxima à
articulação realizada pelos autarcas (Prefeito e Vice-prefeito) eleitos por via direta.
Trata-se, pois, de um sistema de co-governação em que a sociedade civil, longe de ser um refúgio de sobrevivência ante um Estado ausente ou hostil, é um processo regular e organizado de exercer o controlo público do Estado através de formas de cooperação e de conflito institucionalizadas
33.
Nesse ponto, cabe destacarmos o fato de que o orçamento participativo e sua
moldura institucional não possuem caráter jurídico formal, pois tal prerrogativa
apenas poderia ser da competência da Câmara dos Vereadores. No caso de Porto
Alegre, a Prefeitura remete à Câmara a proposta orçamental que pode ser aceita,
modificada ou rejeitada. Entretanto, dada a proveniência da proposta do Executivo –
que é sancionada pelas instituições do orçamento participativo, as comunidades e
os cidadãos nele envolvidos -, o Legislativo termina por aceitá-la. De acordo com
Rodrigo Kanayama34:
Não somente serve a participação popular à direção das decisões do governo – embora toda decisão popular não seja vinculativa, mas opinativa, consultiva –, mas também tem como finalidade dar publicidade – accountability e responsividade – às escolhas realizadas
35. Tal coletividade
como um todo. É o controle das decisões políticas que ocorrem no momento elaboração (...)
Há que se reconhecer, entretanto, que as limitações existem. O
aperfeiçoamento da autonomia das instituições do orçamento participativo, bem
como a eficiência nas escolhas pautadas pela justiça distributiva (eficácia no manejo
dos recursos) e a responsabilidade do Executivo municipal dependem da
observância de seus princípios e constante melhoria de seus aparatos técnicos.
IV. DISSONÂNCIAS E HARMONIAS
Conforme mencionou-se ao longo deste artigo, o orçamento participativo – e
os seus princípios regentes, claramente expostos na experiência de Porto Alegre –
tem o condão de suprir muitos dos déficits e dissonâncias do atual modelo
32
Ibidem, p. 75. 33
Idem, p. 8. 34
KANAYAMA, Rodrigo Luís. Direito, política e consenso: a escolha eficiente de políticas públicas. p.35. 35
LOMBA, Pedro. Teoria da Responsabilidade Política, p. 89 apud KANAYAMA, Rodrigo Luís. Direito, política e consenso: a escolha eficiente de políticas públicas. p.35.
15
orçamentário, constituindo-se, deste modo, em possível base para um Orçamento
Democrático – entendido como “um processo orçamentário adaptado ao
ordenamento constitucional da Carta de 1988, que instituiu o Estado Democrático de
Direito, mas, sobretudo, adaptado e construído para a resolução dos problemas
sociais brasileiros”36. Cumpre abordar, neste momento, de que modo se dá a
adequação entre os pressupostos do orçamento participativo e a normativa
constitucional (e infraconstitucional).
Na leitura de Bonavides acerca dos direitos fundamentais encontramos a
primeira escora para uma teoria da democracia participativa como direito
fundamental e fonte de legitimidade. Segundo o autor, o direito à democracia –
acompanhado dos direitos à informação e ao pluralismo – compõe a “quarta geração
de direitos fundamentais”37, configurando o coroamento subsuntivo das outras três
gerações. Os direitos da quarta geração “compendiam o futuro da cidadania e o
porvir da liberdade de todos os povos”38, e é na sua concretização que reside o
princípio de legitimidade da nova ordem política que surge sob o assomo da
globalização. Anota Bonavides ainda que “a democracia positivada enquanto direito
da quarta geração há de ser, de necessidade, uma democracia direta”39.
Com base nisso, Bonavides afirma que o direito à democracia já está parcial e
germinalmente positivado na Constituição Federal de 1988 – em especial, no
parágrafo único do art. 1º (“Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de
representantes ou diretamente [...]”) e no art. 14, onde se enunciam técnicas de
participação popular (o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular)40. (Podem-se, é
claro, elencar outros dispositivos em que a participação popular protagoniza: o art.
34, § 3º, que dispõe poder qualquer contribuinte questionar a legitimidade das
contas municipais; o art. 204, II, que prevê a participação popular na formulação das
políticas assistenciais, etc.). Através de um processo hermenêutico assentado em
elementos valorativos – que tem no Preâmbulo “a convergência de todos os
princípios e todas as cláusulas constitucionais”41 –, chega-se à democracia
36
MINGHELLI, Marcelo; GOMES, Roger Kessler. Orçamento participativo: uma leitura jurídico-política., p.153 37
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 25.ed. atual. São Paulo, SP: Malheiros, 2010, p. 571. 38
Idem, p. 572. 39
Idem, p. 571. 40
BONAVIDES, Paulo. Teoria constitucional da democracia participativa: por um direito constitucional de luta e resistência, por uma nova hermenêutica, por uma repolitização da legitimidade, p. 40. 41
Ibidem, p.40
16
participativa como o mais bem-acabado instrumento de realização dos direitos de
terceira e quarta gerações42.
Com o espraiar-se da força normativa dos preceitos constitucionais pela
totalidade do ordenamento jurídico, a Administração Pública também recebe nova
orientação, segundo a qual o direito de participação ganha em densidade o que a
anterior tradição autoritária perde em consistência43. A participação popular vem
concretizar o princípio democrático, cujas bases estão já lançadas na
Constituição,no sentido de assegurar ao cidadão a interferência nas atividades do
poder público44. Em outras palavras, o direito de participação popular consigna uma
obrigatoriedade em se firmar diálogo entre o Estado e a sociedade civil45.
Se o direito de participação do cidadão no orçamento público já se justificava,
pois, com base no texto constitucional, na última década outros diplomas legislativos
vieram corroborá-lo, de modo que se pode afirmar que, hoje, um mínimo de
participação é definitivamente obrigatório na elaboração de uma lei orçamentária
para que esta seja válida46. São estes novos diplomas a Lei de Responsabilidade
Fiscal (LC 101/2000) – que, em seus artigos 48 e 49, estabelece uma gestão fiscal
democrática e transparente, além de incentivar a participação popular e audiências
públicas quando da elaboração do orçamento –, e o Estatuto da Cidade (Lei Nº
10.257/2001) – que prevê em vários de seus artigos a gestão democrática da
política urbana, e, no art. 44, dispõe ser obrigatória a realização de audiências e
consultas públicas para a aprovação das leis orçamentárias, em âmbito municipal.
Palmilhados estes traçados legislativos, fica claro que o orçamento
participativo encontra grande acolhida, e mesmo estímulo, na orientação do atual
ordenamento jurídico, haja vista a maior efetividade que é capaz de garantir aos
princípios constitucionais, em especial àqueles ligados à participação e soberania
42
Idem Cf. também Id., p. 36: “A nova legitimidade assenta, pois, a democracia participativa em instrumentos ou órgãos de concretização como a Nova Hermenêutica Constitucional, indubitavelmente sua mais sólida coluna de sustentação e efetivação”. 43
MINGHELLI, Marcelo. Estado e orçamento: uma cartografia jurídico-política para a consolidação de um orçamento democrático, p.141. 44
Idem, p. 143. 45
VINOSKI, Christiane Sans. O direito fundamental de participação popular na administração pública. 2006. 113 f Monografia (graduação) - Universidade Federal do Paraná, Setor de Ciências Jurídicas, p.88. 46
TAMAIO, Thaíze Gôngora. Orçamento participativo: a contribuição a ser prestada. Curitiba, 2004. 45f. Monografia (Graduação) - Setor de Ciências Jurídicas, Universidade Federal do Paraná, p. 13-14. No mesmo sentido, KANAYAMA, Rodrigo Luís. A ineficiência do orçamento público impositivo, p. 141: “a participação popular é indispensável e é condição à aprovação [do plano orçamentário]”.
17
populares, dando corpo mais consistente inclusive à concepção que aqui se faça de
Estado Democrático de Direito47.
Contudo, como anota Kanayama, as experiências do gênero – de amplo e
aberto processo deliberativo quanto à destinação dos recursos orçamentários – não
são, ainda, prática comum48. De fato: em regra, os municípios seguem o modelo de
orçamento-programa instituído pela Lei 4.320/64, que apresenta, além de um déficit
em participação popular que o mantém em contradição com a normativa
constitucional contemporânea, uma problemática cisão entre teoria e prática
orçamentária – levando às distorções que apresentamos no antelóquio a este
trabalho. A permanência sub-reptícia da legislação de 1964 sob a nova ordem
constitucional faz ecoar o dito weimariano lembrado por Gilberto Bercovici: “O direito
constitucional passa, o direito administrativo permanece”49.
Marcelo Minghelli aposta no orçamento participativo como forma de resgatar a
potencialidade – e contemporaneidade – da peça orçamentária. A sistematização,
pelo direito positivo, das categorias e princípios deste modelo, colhidos em suas
diferentes experiências, pode “definir um novo procedimento orçamentário, um
procedimento mais democrático e que seja eficiente no controle dos gastos”50.
Segundo o autor, “[c]om a adoção desses princípios [...] seria possível uma
complementação aos procedimentos formais estabelecidos pela Lei 4.320/64, ou
mesmo sua substituição”. E continua: “Sem essas reformulações, não será possível
ajustar o orçamento público à nova orientação normativa substancial exigida pela
Constituição de 1988 e por legislação complementar, como a LRF e o Estatuto da
Cidade”51.
V. FECHAMENTO
Diante do exposto, pode-se afirmar – como já havíamos feito ao início do
texto, porém agora com maior propriedade – que as experiências de orçamento
47
MINGHELLI, Marcelo. Estado e orçamento: uma cartografia jurídico-política para a consolidação de um orçamento democrático, p.146 48
KANAYAMA, Rodrigo Luís. Direito, política e consenso: a escolha eficiente de políticas públicas. p.25. 49
BERCOVICI, Gilberto. “O Direito Administrativo Passa, o Direito Administrativo Permanece”: a Persistência da Estrutura Administrativa de 1967. In.: TELES, Edson. SAFATLE, Vladimir (orgs.). O que resta da ditadura. São Paulo: Boitempo, 2010, p. 77 50
MINGHELLI, Marcelo. Estado e orçamento: uma cartografia jurídico-política para a consolidação de um orçamento democrático, p.148 51
Idem, p. 149.
18
participativo estão na base de um possível Orçamento Democrático, materialmente
mais acordado a um Estado Democrático de Direito e à Constituição de 1988 que o
atual modelo52. A participação popular na elaboração e execução do orçamento não
é fruto de envergonhados permissivos constitucionais – como sustenta Tarso Genro
em obra de 199953 –, mas sim enfeixa-se, fortalecendo-o, no direcionamento geral
da atual ordem normativa brasileira, em direção a práticas democráticas que mais
jus façam ao epíteto. E, neste movimento, faz-se necessário que cada vez menos
existam dissonâncias entre antiquados diplomas legislativos e os princípios
fundamentais do ordenamento.
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Boitempo, 2010.
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52
Ibidem, p.165. 53
Idem, p. 144.
19
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20
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