artigo dto financeiro - orçamento participativo -2013

20
1 UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS JURÍDICAS FACULDADE DE DIREITO DISCIPLINA DE DIREITO FINANCEIRO PROFESSOR Dr RODRIGO LUÍS KANAYAMA ORÇAMENTO PARTICIPATIVO: Bases para um modelo orçamentário adequado à atual ordem constitucional Caetano Pires Tossulino Estela de Souza Basso Luiz Fernando Araujo Junior Paulo Henrique Piá de Andrade CURITIBA 2013

Upload: paulo-pia-de-andrade

Post on 29-Nov-2015

27 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Artigo Dto Financeiro - Orçamento participativo -2013

1

UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ

SETOR DE CIÊNCIAS JURÍDICAS

FACULDADE DE DIREITO

DISCIPLINA DE DIREITO FINANCEIRO

PROFESSOR Dr RODRIGO LUÍS KANAYAMA

ORÇAMENTO PARTICIPATIVO: Bases para um modelo orçamentário adequado

à atual ordem constitucional

Caetano Pires Tossulino

Estela de Souza Basso

Luiz Fernando Araujo Junior

Paulo Henrique Piá de Andrade

CURITIBA

2013

Page 2: Artigo Dto Financeiro - Orçamento participativo -2013

2

Ø. ANTELÓQUIO

Recentemente, o orçamento público ganhou grande atenção na mídia devido

à votação, na Câmara dos Deputados, da PEC que propõe torná-lo impositivo. O

debate instaurado contrapôs os que acreditam contribuir, com a mudança, para o

solucionar tanto da problemática relação de clientelismo entre o Executivo e o

Legislativo que preside o atual sistema de emendas parlamentares, bem como do

problema relativo ao efetivo atendimento dos direitos sociais, para além de

considerações quanto a conveniência e oportunidade; e aqueles que entendem se

tratar de uma solução que, por bem intencionada que seja, contribuirá

principalmente para a ineficiência do orçamento público, e criará ainda dificuldades

imprevistas que podem mesmo bloquear a efetivação dos direitos sociais.

Este artigo, diferentemente, tem em vista a proposta alternativa e popular de

orçamento, à qual faltou lugar, no recente regabofe midiático, para figurar como

possível solução a muitas contradições que pesam sobre a prática orçamentária: o

orçamento participativo. Compreendemos que este não apenas melhor se

harmoniza com os princípios e normativas da vigente ordem constitucional, tomando

em sério o direito fundamental à participação popular na Administração, como

também é o que mais faz jus a uma concepção de orçamento que não escamoteie o

caráter eminentemente político da decisão que aloca recursos.

Com o fim de expormos a já de antemão anunciada maior pertinência do

orçamento participativo ao quadro constitucional contemporâneo, percorreremos –

após as palavras do pórtico, naturalmente – as linhas-mestras do desenvolvimento

histórico do orçamento em geral;passando,então, a uma análise mais detida do

orçamento participativo, em especial de sua experiência gaúcha; e, por fim,

minudearemos o échafaudage legislativo atinente à questão, procurando demonstrar

de que modo o orçamento participativo pode melhor efetivar princípios e diretrizes

constitucionais.

I. PÓRTICO

O pressuposto de toda discussão sobre o orçamento público é o seu caráter

inegavelmente político: “[a] elaboração do plano orçamentário – que resulta numa

Page 3: Artigo Dto Financeiro - Orçamento participativo -2013

3

das leis orçamentárias – é uma decisão política”1. O porquê é claro: a destinação de

recursos escassos a fim de suprir necessidades – sempre extravasantes – envolve

escolhas que nunca se esgotam em critérios meramente técnicos, mas se baseiam

em prioridades acertadas politicamente. É comum que o administrador se encontre

frente a uma escolha trágica: quando, dada a escassez de recursos, deve optar por

atender apenas uma dentre várias demandas concomitantes e passíveis de

suprimento, de modo que o benefício de um implica, como consequência inevitável,

o prejuízo de outro2. Isso não ocorre apenas naquelas situações dramáticas em que

a urgência é clara e pulsante, mas no dia-a-dia da administração: se o dinheiro não

é o bastante para atender o grupo social A e o grupo social B, um deles saíra

perdendo3.

Daí a necessidade de mecanismos de escolha que permitam cotejar e

hierarquizar os interesses contrapostos, no momento de elaborar as despesas

orçamentárias, sem se prestar às distorções do poder político e econômico dos

envolvidos (capazes de engendrar quiméricas situações em que a calçada de

mármore de um é equalizada, em importância e interesse, aos mais básicos direitos

sociais do outro). Estas reflexões ganham maior relevo se lembrarmos, com Marcelo

Minghelli, que o orçamento público é hoje “o principal instrumento formal de

importância administrativa, econômica e contábil das instituições do Estado”, é a

“norma que gera a totalidade das ações governamentais”4. Tendo em conta sua

enorme relevância, não se afigura razoável confiar seu controle e fiscalização tão

somente à competência técnica e esclarecimento do administrador, como parece

querer Aliomar Baleeiro: “[...] tanto mais lúcidos, cultos e moralizados sejam os

governantes quanto mais probabilidades existem de que se realize aquele cálculo da

máxima vantagem social”5. Estando de acordo que a onisciência do administrador

melhor serviria ao interesse público que sua demência – e, mesmo assim, não com

tamanha convicção e certeza –, não podemos esposar, no entanto, a tese de que é

1 KANAYAMA, Rodrigo Luís. A ineficiência do orçamento público impositivo. Revista de Direito

Público da Economia – RDPE, Belo Horizonte, ano 7, n. 28, out./dez. 2009, p. 141. 2 KANAYAMA, Rodrigo Luís. Direito, política e consenso: a escolha eficiente de políticas públicas.

Curitiba, 2012. 218f. Tese (Doutorado) – Setor de Ciências Jurídicas, Universidade Federal do Paraná, p. 151-152. 3 Idem, p. 153.

4 MINGHELLI, Marcelo. Estado e orçamento: uma cartografia jurídico-política para a consolidação de

um orçamento democrático. Curitiba, 2009. 216f. Tese (Doutorado) – Setor de Ciências Jurídicas, Universidade Federal do Paraná, p.114. 5 OLIVEIRA, Regis Fernandes de; HORVATH, Estevão. Manual de direito financeiro. 6. ed. rev. São

Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 111.

Page 4: Artigo Dto Financeiro - Orçamento participativo -2013

4

nesta contingência que restam as maiores esperanças com relação à eficiência,

tanto econômica como democrática, do orçamento.

Não se trata, aqui, de mera desconfiança para com o establishment político-

jurídico brasileiro, mas da constatação de que, afastadas do povo que lhes delega

poder e em favor do qual devem exercê-lo, as instituições dobram-se sobre si

mesmas, em um processo de “fetichização” e autorreferencialidade, até o ponto em

que “as reivindicações populares nunca poderão ser cumpridas, porque o poder

funciona como uma instância separada, extrínseca, dominadora „de cima‟ sobre o

povo”6. Com isso, o “âmbito formal de meios-fins se autonomiza, se totaliza, e o que

pode-fazer com „eficácia‟ (técnico-economicamente) determina o que se operará,

como critério último de „verdade‟ e „validade‟ teórico-poiética”7. A racionalidade

instrumental acaba por fechar o espaço público no qual, em harmonia com os

princípios da democracia participativa, as decisões estatais deveriam se compartilhar

entre Estado e sociedade civil. Daí o diagnóstico de que o Estado brasileiro – mas

não só o brasileiro – enfrenta hoje “uma crise de legitimidade, por se estabelecer

numa estrutura fechada, uma estrutura racional-legal burocratizada, sobre a qual

predomina a racionalidade sistêmica”8.

Não é outra a realidade do orçamento público no Brasil, cuja “elaboração e

execução são controladas por uma tecnoburocracia, [...] o que ocasiona uma

centralização das informações e dos documentos nas cúpulas de governo, tornando-

os inacessíveis à população”9. Além disso, a real prática orçamentária distancia-se

do modelo de escolha racional do orçamento-programa, consolidado pela Lei

Federal 4.320/64 – modelo que, mesmo em seu funcionamento ótimo, apresenta

ainda um inaceitável déficit de participação popular e, em consequência, de

legitimação material das decisões orçamentárias10 –, na medida em que

6 DUSSEL, Enrique D. 20 teses de política. Buenos Aires; São Paulo: CLACSO: Expressao Popular,

2007, p. 47. Cf. BONAVIDES, Paulo. Teoria constitucional da democracia participativa: por um direito constitucional de luta e resistência, por uma nova hermenêutica, por uma repolitizaçao da legitimidade. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 25: “[...] o poder popular, sempre objeto das alienações e descumprimento de sua vontade por outra vontade que, ocupando e dominando as Casas representativas, posto que derivadas daquela, invariavelmente o tem negado, destroçado ou atraiçoado”. 7 DUSSEL, Enrique D. Ética da libertação: na idade da globalização e da exclusão. 3. ed. Petropolis,

RJ: Vozes, 2007, p.266. 8 MINGHELLI, Marcelo. Estado e orçamento: uma cartografia jurídico-política para a consolidação de

um orçamento democrático, p.10. 9 Idem, p.94.

10Idem, p. 149.

Page 5: Artigo Dto Financeiro - Orçamento participativo -2013

5

[q]uase todas as escolhas orçamentárias [...] não resultam de avaliações técnicas de custos, benefícios e oportunidades entre alternativas concorrentes. [...] [De modo que] acaba restando ao Executivo decidir sobre as prioridades com base em valores pessoais, avaliações políticas, interesses particulares, pressões de grupos de interesse, etc.

11.

Neste contexto, mais interessante que acompanhar as trocas de cócegas

entre Executivo e Legislativo para assentar quem decide por último e fica com a

imposição,é avançar uma “reformulação nos procedimentos institucionalizados de

apropriação e redistribuição dos recursos públicos”12, tendo como norte e mote a

democracia participativa – a qual, segundo Bonavides, além de “transcender a

noção obscura, abstrata e irreal de povo nos sistemas representativos, transcende,

por igual, os horizontes jurídicos da clássica separação de poderes”13. O orçamento

participativo – experiência nacional, construída a partir e para a realidade local

brasileira, à prescindência de arrojadas importações teóricas – parece, assim,

“resgatar a potencialidade da peça orçamentária”14, tanto no que diz respeito ao

controle da gestão dos recursos públicos, bem como quanto à democratização de

sua elaboração.

II. ESCORÇO HISTÓRICO

Impende, antes de analisarmos o orçamento participativo propriamente

dito,proceder a breve excurso histórico, a fim de melhor visualizarmos, adiante, a

especificidade do modelo de que tratamos. Vale lembrar que o orçamento –

semantema que, como todos, não guarda univocidade ao longo do tempo – aparece

historicamente sempre como categoria jurídico-política, ainda que sua exposição

aqui se dê sob formas abstratas.

II.I.

Durante a Antiguidade, o orçamento, tal como o concebemos hoje (como

peça fundamental do Estado, que contém a previsão de receitas e a autorização de

11

GIACOMONI, James. Orçamento Público. 3ª Ed. São Paulo: Atlas, 1989, apud MINGUELLI Estado e orçamento: uma cartografia jurídico-política para a consolidação de um orçamento democrático tese 94 12

MINGHELLI, Marcelo; GOMES, Roger Kessler. Orçamento participativo: uma leitura jurídico-política., p. 115 13

BONAVIDES, Paulo. Teoria constitucional da democracia participativa: por um direito constitucional de luta e resistência, por uma nova hermenêutica, por uma repolitização da legitimidade, p.27. 14

MINGHELLI, Marcelo; GOMES, Roger Kessler. Orçamento participativo: uma leitura jurídico-política., p.66

Page 6: Artigo Dto Financeiro - Orçamento participativo -2013

6

despesas), não existia. O Imperador administrava os recursos públicos como se sua

propriedade fosse, confundindo-se os recursos do Estado com a riqueza pessoal do

Imperador, e o seu orçamento com o do Estado.15

Para Baleeiro, a origem dos orçamentos está na origem do poder de tributar,

estabelecido durante o Medievo com a chamada “cúria régia”, que era um conselho

de nobres e sacerdotes que auxiliavam o poder Régio em certas decisões

importantes, inclusive em relação à tributação. Porém, segundo Regis Fernandes de

Oliveira e grande parte da doutrina, o primeiro marco do Orçamento como instituto é

a elaboração da Magna Carta em 1215 que, em seu art. 12, estabelece: “Nenhum

tributo ou auxílio será instituído no Reino, senão pelo seu conselho comum, exceto

com o fim de resgatar a pessoa do Rei, fazer seu primogênito cavaleiro e casar sua

filha mais velha uma vez, e os auxílios para esse fim serão razoáveis em seu

montante”. Mesmo não envolvendo a despesa pública, este artigo estabeleceu o

princípio tributário do consentimento, sendo a primeira forma de controle da

monarquia absoluta pelo Parlamento, reforçado em 1689 pelo Bill of Rigths, que

reafirmava que um tributo só seria legítimo se fosse aprovado pelo órgão de

representação16.

Na Europa continental, mais especificamente na França, um certo limite de

tributar começa a surgir em 1313 nos Estados Provinciais, quando uma espécie de

assembleia, composta por nobres, clérigos e camponeses, estabelece um imposto

sobre aqueles que não faziam parte da nobreza, para a manutenção do exército. No

decorrer da história continental percebe-se também alguns esparsos episódios em

que houve limitação ao poder de tributar, porém os grandes marcos do orçamento

são a Revolução Francesa, que em 1789 estabeleceu o princípio de periodicidade

da votação e a autorização pelo Parlamento para arrecadação de impostos, e a

Constituição de 1791 que outorgou a este Poder a competência exclusiva de definir

as despesas públicas.17 Porém, em decorrência do desrespeito ao controle

representativo na criação de impostos ocorrido durante o período Napoleônico, o

controle total do orçamento pelo Parlamento só se deu em 1831. A experiência

francesa e a consolidação do Estado Liberal, através da percepção da necessidade

15

OLIVEIRA, Regis Fernando de, Curso de Direito Financeiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p.344. 16

GIACOMANI, James. Orçamento Público, p. 39. 17

ROSA JÚNIOR, Luiz Emygdio Franco da. Manual de direito financeiro & tributário. 16 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 75.

Page 7: Artigo Dto Financeiro - Orçamento participativo -2013

7

de controlar os gastos públicos, nos delegaram princípios orçamentários básicos,

tais como a anualidade do orçamento, a votação do orçamento antes do início do

exercício, a universalidade do orçamento, contendo todas as previsões financeiras

do exercício e a não afetação de receitas18.

Já nos Estados Unidos da América a falta de participação dos colonos no

processo decisório sobre a tributação imposta pelo Parlamento inglês foi um dos

fatores fundamentais para a guerra da independência, tanto é que já em 1778

(apenas 16 anos após o conflito, e apenas 2 após a Declaração de Independência

dos Estados Unidos) a Constituição norte americana delegou ao Congresso a tarefa

de orçar gastos, criar tributos e tomar empréstimos. Desta forma fica evidente que as

questões referentes ao Orçamento Público e à Finanças Públicas foram basilares na

afirmação do Parlamento (como representação da classe burguesa em ascensão)

em frente ao poder absoluto.

A elaboração do Orçamento Público se deu devido à tensão política originada

pelo aumento do poder econômico e político da burguesia, e da necessidade desta

em, através de um aparato institucional protegido juridicamente, limitar o poder de

quem estivesse no Governo, a fim de proteger as liberdades individuais, apregoadas

pela classe.19

II.II.

No Brasil, a tensão entre a crescente burguesia e a tributação ilegítima e não

consensual pode ser notada a partir de 1720 na Revolta de Felipe dos Santos, e

também em outros conflitos, tais como a Inconfidência Mineira, em 1789; a Revolta

Farroupilha, em 1820; e a Revolta do Quebra-Quilo, em 1896. Porém a organização

das finanças públicas iniciou-se somente em 1808 com a vinda de Dom João VI, a

abertura dos portos e a criação do Tesouro Público. As primeiras exigências de

elaboração de um orçamento datam da Constituição de 1824 que em seu art. 172

dispunha: “o Ministro de Estado da Fazenda, havendo recebido dos outros ministros

os orçamentos relativos às despesas das suas repartições, apresentará na Câmara

dos Deputados anualmente, logo que esta estiver reunida, um balanço geral da

receita e despesa do Tesouro Nacional do ano antecedente, e igualmente o

18

BURKHEAD, Jesse. Orçamento Público. Rio de Janeiro: FGV, Serv. de Publicações, 1971. 19

MINGHELLI, Marcelo. Estado e Orçamento: uma cartografia jurídico-política para a consolidação de um orçamento democrático, (falta página)

Page 8: Artigo Dto Financeiro - Orçamento participativo -2013

8

orçamento geral de todas as despesas públicas do ano futuro, e da importância de

todas as contribuições, e rendas públicas”, e nos artigos 36, inciso I e 15 n. 13 e 14,

estabelecia a competência do Poder Legislativo para: a iniciativa sobre impostos,

autorizar a contrair empréstimos e estabelecer meios convenientes para pagamento

da dívida pública. Entretanto tais dispositivos tiveram muita dificuldade em ser

implementados em seus primeiros anos, sendo efetivado o primeiro orçamento

somente no exercício de 1931-193220.

Durante a 1° República a Constituição deixou a cargo do Congresso “orçar

receita e fixar a despesa federal anualmente” sendo o Ministério da Fazenda

responsável por “centralizar, harmonizar, alterar ou reduzir os orçamentos parciais

dos Ministérios para organizar a proposta”. A Constituição de 1934 disciplinou a

estrutura do orçamento em seu art. 50, definindo o como uno, contendo todas as

receitas e despesas. Em 1937 a Constituição dispôs detalhadamente sobre o

orçamento nos art. 67 a 72, porém submeteu a proposta do Legislativo às emendas

feitas pelo Conselho Federal, composto por membros do Estado e de dez membros

indicados pelo Presidente da República, já os orçamentos estaduais e municipais

ficavam à mercê da aprovação do Conselho Administrativo. O Orçamento só ganhou

aparência democrática com a Constituição de 1946, e contornos de transparência

em 1964 com a lei 4.320.

O modelo de Orçamento adotado no Brasil, desde 1960, pode ser classificado

como orçamento-programa, cujas características são, como exposto por Marcelo

Minghelli, “o planejamento, a programação de execução e o orçamento”21 sendo

este último elemento a exibição dos recursos disponíveis e dos fins propostos pelo

governo. Pode ainda ser definido o orçamento-programa como:

[...] aquele tipo de orçamento que apresenta, em primeiro plano, as metas ou os objetivos que a Administração decide levar a efeito em determinado exercício financeiro. [...] O Orçamento-programa[...] põe em realce metas, intentos, objetivos e propósitos, inseridos em uma estrutura de programas a realizar em um período financeiro. A grande vantagem, pois, do orçamento-programa é que faz a ligação entre os sistemas de planejamento e finanças, permitindo que planos expressos em unidades fiscais – quilômetros de estrada a construir, número de doentes a atender, etc. – sejam concomitantemente expressos em termos de dinheiro, possibilitando assim levar os planos à execução prática. Isso significa que a característica fundamental do orçamento-programa é a mensuração, em termos físicos, das ações administrativas.

20

BALEEIRO, Aliomar. Uma Introdução à Ciência das Finanças. 13 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1981, p. 393 21

MINGHELLI, Estado e Orçamento: uma cartografia jurídico-política para a consolidação de um orçamento democrático, p. 88.

Page 9: Artigo Dto Financeiro - Orçamento participativo -2013

9

Difere-se do orçamento por funções, vigente até início do século XX nos EUA, que

classificava as despesas pelas funções do Estado, dando a liberdade para a

alocação das receitas dentro das funções determinadas, sem a aparente

preocupação com o objetivo do gasto.

II.III.

A análise histórica do orçamento público evidencia que sua função varia e

está intimamente relacionada à concepção de Estado em que ele se encontra. Até

porque o orçamento é o principal meio de planejamento do Estado e de intervenção

política e econômica, sendo assim é possível perceber diversos aspectos do

orçamento público, constituindo se os quatros principais, segundo Baleeiro, em

técnico, jurídico, econômico e político.

O aspecto técnico evidencia-se pelo caráter contábil do orçamento, e,

segundo Oliveira, nesse aspecto “aliam-se os princípios orçamentários com a

técnica de elaboração da peça”. É inegável que o orçamento, na função de

coordenar receitas e despesas, se apresente como instrumento técnico. O aspecto

jurídico do orçamento se exterioriza (no Brasil) em sua natureza de lei formal, e não

material por não obrigar o Estado, mas o vincular. Há quem defenda que a natureza

do orçamento seja de ato administrativo ou até de ato condição, mas a hipótese que

melhor se adapta à Constituição brasileira é a de lei formal, assim a lei orçamentária

aprovada pelo Legislativo autoriza uma conduta do administrador público. “No

entanto, a aprovação do plano, a sua conversão em lei, não o obriga. Não vincula a

administração pública, (...) apenas delimita a atuação, mas não impõe uma ação.”22

Pelo aspecto econômico pode se dizer que o orçamento deve estar coerente

com a conjuntura econômica, impondo-se, pelas regras do mercado, o equilíbrio

entre as despesas e as receitas. “É regra da economia que todo aquele que gasta

além do que pode tende a ter dificuldades financeiras, endividando-se a ponto de

não poder cumprir suas obrigações”23. No prisma econômico o orçamento pode ser

visto também como um importante meio de intervenção do governo na economia,

através das políticas fiscais, impõe-se dessa forma que o Estado deva planejar o

crescimento da economia, Oliveira ressalta que um orçamento bem planejado pode

22

KANAYAMA, Rodrigo Luís. A ineficiência do orçamento público impositivo, p.133. 23

OLIVEIRA, op. cit., p.351

Page 10: Artigo Dto Financeiro - Orçamento participativo -2013

10

até amenizar efeitos de choques econômicos, dentro ou fora do país. O caráter

intervencionista do orçamento (orçamento como instrumento de estabilização e

ampliação da economia) foi visto com repugnância durante o período clássico da

análise orçamentária, sendo superada tal visão somente com o desenvolvimento da

teoria keneysiana, no pós Primeira Guerra Mundial.

III. O ORÇAMENTO PARTICIPATIVO

III.I.

Não precisaríamos ir tão longe para constatarmos que não existe apenas uma

democracia, mas diversas experiência democráticas - sobretudo ao longo do século

XX. Tal forma de organização política têm causado muitos revolveres, resultantes e

resultado de transformações substanciais no que propriamente se entende por

democracia, tanto em sua teoria quanto em sua prática.

Se há apenas dois séculos falava-se em democracia apenas como privilégio

de uns tantos países da Europa e da América do Norte, hoje o que verificamos é

uma notável emergência não só de focos democráticos, como diversas tentativas e

aprendizados em termos de democracia.

No chamado “Consenso de Washington”, em 1989, a democracia

representativa é edificada como um de seus alicerces, passando a ser o modelo

recomendado e seguido - platô em que vão ocorrer inúmeros ensaios de

esperançosos projetos. Ironicamente, será até mesmo imposta por programas como

o de ajustamento estrutural ao Fundo Monetário Internacional, vez que passa a ser

parte integrante de tais propostas. Ainda também como quesito de acesso a

empréstimos dos países centrais, do Banco Mundial e demais agências multilaterais.

Podemos ressaltar, contudo, que uma vez perfilhada por vários países, as

suas promessas não foram de todo compatíveis aos seus efeitos. Paralelamente às

escolhas pelo regime democrático, os processos globais assomaram à miscelânea

de problemas outros mais, senão contribuíram para a intensificação daqueles tantos

já conhecidos: exclusão social e pauperização de parcelas da população mundial.

Page 11: Artigo Dto Financeiro - Orçamento participativo -2013

11

Em âmbito local, no que tange à distribuição de riquezas, à proteção social e

à transparência do poder público24, as respostas não foram imediatas, tampouco

favoráveis às demandas existentes. De acordo com Boaventura de Sousa Santos:

Se nalguns casos tal frustação resultou em instabilidade política, noutros fez com que as expectativas democráticas fossem canalizadas, sobretudo a nível local, para uma outra forma de democracia, a democracia participativa, a qual passou a vigorar segundo diferentes sistemas de complementaridade com a democracia representativa

25.

Isso quer dizer que o enfrentamento de tais processos por bem trouxe para

perto novas formas e tentativas de lidar com as imperfeições inerentes a qualquer

regime político. Iniciativas de base, iniciativas públicas, inovações comunitárias e

movimentos populares reinventam maneiras de atuar politicamente. Muitos desses

projetos figuram como formas de atuação contra-hegemônicos, vez que são

protagonizados por grupos que estão sujeitos mais fortemente à vulnerabilidade de

suas condições de vida.

Nesse sentido, torna-se mais claro o fato de que a democracia não é apenas

um fato histórico, um dado da realidade ou um mero regalo: trata-se de um

processo, um projeto que, antes de ser prontamente democracia em si mesma, mais

nos convém tratá-la como construção democrática.

III.II.

Dito isso, antes de entrarmos no mérito do Orçamento participativo, é preciso

considerá-lo como uma emanação da teoria da democracia participativa26. Esta, por

sua vez, apoia-se na compreensão de que os cidadãos possuem o dever de

participar de forma direta das decisões políticas. Aqui, cabe, por oportuno, trazer a

diferença fundamental entre participar diretamente das escolhas políticas e atuar na

escolha dos decisores políticos, pressuposto do qual emerge a democracia em sua

forma representativa: participação e representação, deliberação e delegação sempre

estiveram em tensão no debate acerca da construção democrática.

Nada obstante tal possível conflito, muito mais se afigura crível, hoje, a

possibilidade de que ambos os sistemas possam vigir, ressalvadas suas diferenças,

de maneira a se complementarem.

24

SANTOS, Boaventura de Sousa. Democracia e Participação. O caso do orçamento participativo de Porto Alegre. 1.ed. Porto, Portugal: Edições Afrontamento, 2002. 25

Idem, p. 7. 26

Idem, p. 8.

Page 12: Artigo Dto Financeiro - Orçamento participativo -2013

12

III.III.

O orçamento participativo é uma iniciativa urbana, um processo regularizado

de intervenção permanente dos cidadãos na gestão municipal27. Tem,na experiência

de Porto Alegre, que mantém tal modelo desde 1989, sua mais bem-acabada

expressão – o que já rendeu à capital gaúcha considerações da ONU, que o

considerou como uma prática de gestão urbana diferenciada. Não à toa, de acordo

com Leonardo Avritzer28 no ano de 2005, cento e três municípios brasileiros já

haviam adotado o orçamento participativo.

O orçamento participativo procura dar suporte ao funcionamento de um

mecanismo de “gestão conjunta dos recursos públicos, através de decisões

partilhadas sobre a distribuição dos fundos orçamentais e de responsabilização

governativa no que respeita à efectiva implementação dessas decisões”29. Além

disso, trata-se de um processo constante de tomada de decisão, amparado em

regras gerais de justiça distributiva, votadas e aprovadas por órgãos institucionais de

participação - desses órgaos participam as classes populares com representação

majoritária, vez que para tanto legitimam-se através de suas próprias reivindicações.

Sua estrutura básica, como definida na experiência gaúcha,configura-se em

16 assembleias regionais (de acordo com regionalização da cidade que não leva em

conta somente critérios administrativos, mas também a tradição organizativa dos

movimentos de moradores) e 6 assembleias temáticas, através das quais os

cidadãos se reúnem a fim de formular exigências e elencar prioridades temáticas

para a distribuição dos investimentos municipais, a partir de critérios objetivos que

possibilitam o estabelecimento de hierarquias quantificadas30.

Ademais, o orçamento participativo se orienta por meio de princípios e através

de um conjunto de instituições “que funcionam como mecanismos ou canais de

participação popular regular (...) sustentada no proceso de tomada das decisões do

governo municipal31”. Os três princípios, de acordo com Boaventura de Sousa

Santos, são:

27

Ibidem. p. 8. 28

KANAYAMA, Rodrigo Luís. Direito, política e consenso: a escolha eficiente de políticas públicas. p.34. 29

SANTOS, Boaventura de Sousa, op. cit., p. 29 30

Idem, p. 8. 31

Idem. p. 25.

Page 13: Artigo Dto Financeiro - Orçamento participativo -2013

13

i. Todos os cidadãos têm o direito de participar, sendo que as organizações comunitárias não detêm, a este respeito, formalmente, pelo menos, um estatuto ou prerrogativa especiais;

ii. A participação é dirigida por uma combinação de regras de democracia direta e de democracia representativa, e realiza-se através de instituições de funcionamento regular cujo regimento interno é determinado pelos participantes;

iii. Os recursos de investimento são distribuídos de acordo com um método objetivo baseado numa combinação de “critérios gerais” – critérios substantivos, estabelecidos pelas instituições participativas com vista a definir prioridades – e de “critérios técnicos” – critérios de viabilidade técnica ou econômica, definidos pelo Executivo, e normas jurídicas federais, estaduais ou da própria cidade, cuja implementação cabe ao Executivo.

Ainda de acordo com o autor, quanto às instituições, é possível elencar a

seguinte estrutura:

i. As instituições que abrangem as unidades administrativas do Executivo Municipal: são responsáveis por gerir o debate sobre o orçamento junto aos cidadãos. É nesse âmbito que ocorre a “tradução” das exigências dos cidadãos em ações municipais, técnica e economicamente viáveis, a partir da apreciação de critérios gerais e técnicos.

ii. As intituições que consistem em organizações comunitárias: possuem autonomia frente ao governo municipal e são integradas por organizações de base regional, que realizam a mediação entre a “participação dos cidadãos e a decisão acerca das prioridades para diferentes regiões da cidade”.

iii. As instituições que estabelecem a mediação e a interação permanentes entre as duas primeiras formas de instituição acima; esta terceira é organizada por instituições de participação comunitária com funcionamento regular. Ex. Conselho do Plano do Governo e Orçamento, ou Conselho do Orçamento Participativo, Assembleias Plenárias Regionais, etc.

As assembleias elegem os conselheiros do orçamento participativo,

responsáveis por apreciar e votar a proposta orçamental elaborada pelo Executivo

municipal, de acordo com as prioridades estabelecidas nas demais assembleias.

Também nesta instância são eleitos os delegados, cujo número é proporcional

quanto à participação, e cuja incumbência é hierarquizar investimentos viáveis

dentro de cada prioridade, acompanhando a execução das decisões tomadas.

A metodologia concebida para classificar as prioridades e e calcular

investimentos foi o sistema de atribuição de pontos: cada região expressa através de

uma pontuação obtida o peso de suas prioridades e, a partir disso, define-se o

percentual de recursos a ser direcionado para cada uma.

A complexidade do sistema de atribuição de pontos reside no facto de que ele procura articular a mediação da participação, por um lado, com a mediação de prioridades e de necessidades reconhecidas, por outro. A mediação da participação garante a legitimidade democrática das decisões políticas, enquanto que a mediação das prioridades e das necessidades

Page 14: Artigo Dto Financeiro - Orçamento participativo -2013

14

garante a fidelidade, a objetividade e a transparência com que é feita a conversão das decisões políticas em recursos distribuídos

32.

A participação dos cidadãos configura-se de maneira muito próxima à

articulação realizada pelos autarcas (Prefeito e Vice-prefeito) eleitos por via direta.

Trata-se, pois, de um sistema de co-governação em que a sociedade civil, longe de ser um refúgio de sobrevivência ante um Estado ausente ou hostil, é um processo regular e organizado de exercer o controlo público do Estado através de formas de cooperação e de conflito institucionalizadas

33.

Nesse ponto, cabe destacarmos o fato de que o orçamento participativo e sua

moldura institucional não possuem caráter jurídico formal, pois tal prerrogativa

apenas poderia ser da competência da Câmara dos Vereadores. No caso de Porto

Alegre, a Prefeitura remete à Câmara a proposta orçamental que pode ser aceita,

modificada ou rejeitada. Entretanto, dada a proveniência da proposta do Executivo –

que é sancionada pelas instituições do orçamento participativo, as comunidades e

os cidadãos nele envolvidos -, o Legislativo termina por aceitá-la. De acordo com

Rodrigo Kanayama34:

Não somente serve a participação popular à direção das decisões do governo – embora toda decisão popular não seja vinculativa, mas opinativa, consultiva –, mas também tem como finalidade dar publicidade – accountability e responsividade – às escolhas realizadas

35. Tal coletividade

como um todo. É o controle das decisões políticas que ocorrem no momento elaboração (...)

Há que se reconhecer, entretanto, que as limitações existem. O

aperfeiçoamento da autonomia das instituições do orçamento participativo, bem

como a eficiência nas escolhas pautadas pela justiça distributiva (eficácia no manejo

dos recursos) e a responsabilidade do Executivo municipal dependem da

observância de seus princípios e constante melhoria de seus aparatos técnicos.

IV. DISSONÂNCIAS E HARMONIAS

Conforme mencionou-se ao longo deste artigo, o orçamento participativo – e

os seus princípios regentes, claramente expostos na experiência de Porto Alegre –

tem o condão de suprir muitos dos déficits e dissonâncias do atual modelo

32

Ibidem, p. 75. 33

Idem, p. 8. 34

KANAYAMA, Rodrigo Luís. Direito, política e consenso: a escolha eficiente de políticas públicas. p.35. 35

LOMBA, Pedro. Teoria da Responsabilidade Política, p. 89 apud KANAYAMA, Rodrigo Luís. Direito, política e consenso: a escolha eficiente de políticas públicas. p.35.

Page 15: Artigo Dto Financeiro - Orçamento participativo -2013

15

orçamentário, constituindo-se, deste modo, em possível base para um Orçamento

Democrático – entendido como “um processo orçamentário adaptado ao

ordenamento constitucional da Carta de 1988, que instituiu o Estado Democrático de

Direito, mas, sobretudo, adaptado e construído para a resolução dos problemas

sociais brasileiros”36. Cumpre abordar, neste momento, de que modo se dá a

adequação entre os pressupostos do orçamento participativo e a normativa

constitucional (e infraconstitucional).

Na leitura de Bonavides acerca dos direitos fundamentais encontramos a

primeira escora para uma teoria da democracia participativa como direito

fundamental e fonte de legitimidade. Segundo o autor, o direito à democracia –

acompanhado dos direitos à informação e ao pluralismo – compõe a “quarta geração

de direitos fundamentais”37, configurando o coroamento subsuntivo das outras três

gerações. Os direitos da quarta geração “compendiam o futuro da cidadania e o

porvir da liberdade de todos os povos”38, e é na sua concretização que reside o

princípio de legitimidade da nova ordem política que surge sob o assomo da

globalização. Anota Bonavides ainda que “a democracia positivada enquanto direito

da quarta geração há de ser, de necessidade, uma democracia direta”39.

Com base nisso, Bonavides afirma que o direito à democracia já está parcial e

germinalmente positivado na Constituição Federal de 1988 – em especial, no

parágrafo único do art. 1º (“Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de

representantes ou diretamente [...]”) e no art. 14, onde se enunciam técnicas de

participação popular (o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular)40. (Podem-se, é

claro, elencar outros dispositivos em que a participação popular protagoniza: o art.

34, § 3º, que dispõe poder qualquer contribuinte questionar a legitimidade das

contas municipais; o art. 204, II, que prevê a participação popular na formulação das

políticas assistenciais, etc.). Através de um processo hermenêutico assentado em

elementos valorativos – que tem no Preâmbulo “a convergência de todos os

princípios e todas as cláusulas constitucionais”41 –, chega-se à democracia

36

MINGHELLI, Marcelo; GOMES, Roger Kessler. Orçamento participativo: uma leitura jurídico-política., p.153 37

BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 25.ed. atual. São Paulo, SP: Malheiros, 2010, p. 571. 38

Idem, p. 572. 39

Idem, p. 571. 40

BONAVIDES, Paulo. Teoria constitucional da democracia participativa: por um direito constitucional de luta e resistência, por uma nova hermenêutica, por uma repolitização da legitimidade, p. 40. 41

Ibidem, p.40

Page 16: Artigo Dto Financeiro - Orçamento participativo -2013

16

participativa como o mais bem-acabado instrumento de realização dos direitos de

terceira e quarta gerações42.

Com o espraiar-se da força normativa dos preceitos constitucionais pela

totalidade do ordenamento jurídico, a Administração Pública também recebe nova

orientação, segundo a qual o direito de participação ganha em densidade o que a

anterior tradição autoritária perde em consistência43. A participação popular vem

concretizar o princípio democrático, cujas bases estão já lançadas na

Constituição,no sentido de assegurar ao cidadão a interferência nas atividades do

poder público44. Em outras palavras, o direito de participação popular consigna uma

obrigatoriedade em se firmar diálogo entre o Estado e a sociedade civil45.

Se o direito de participação do cidadão no orçamento público já se justificava,

pois, com base no texto constitucional, na última década outros diplomas legislativos

vieram corroborá-lo, de modo que se pode afirmar que, hoje, um mínimo de

participação é definitivamente obrigatório na elaboração de uma lei orçamentária

para que esta seja válida46. São estes novos diplomas a Lei de Responsabilidade

Fiscal (LC 101/2000) – que, em seus artigos 48 e 49, estabelece uma gestão fiscal

democrática e transparente, além de incentivar a participação popular e audiências

públicas quando da elaboração do orçamento –, e o Estatuto da Cidade (Lei Nº

10.257/2001) – que prevê em vários de seus artigos a gestão democrática da

política urbana, e, no art. 44, dispõe ser obrigatória a realização de audiências e

consultas públicas para a aprovação das leis orçamentárias, em âmbito municipal.

Palmilhados estes traçados legislativos, fica claro que o orçamento

participativo encontra grande acolhida, e mesmo estímulo, na orientação do atual

ordenamento jurídico, haja vista a maior efetividade que é capaz de garantir aos

princípios constitucionais, em especial àqueles ligados à participação e soberania

42

Idem Cf. também Id., p. 36: “A nova legitimidade assenta, pois, a democracia participativa em instrumentos ou órgãos de concretização como a Nova Hermenêutica Constitucional, indubitavelmente sua mais sólida coluna de sustentação e efetivação”. 43

MINGHELLI, Marcelo. Estado e orçamento: uma cartografia jurídico-política para a consolidação de um orçamento democrático, p.141. 44

Idem, p. 143. 45

VINOSKI, Christiane Sans. O direito fundamental de participação popular na administração pública. 2006. 113 f Monografia (graduação) - Universidade Federal do Paraná, Setor de Ciências Jurídicas, p.88. 46

TAMAIO, Thaíze Gôngora. Orçamento participativo: a contribuição a ser prestada. Curitiba, 2004. 45f. Monografia (Graduação) - Setor de Ciências Jurídicas, Universidade Federal do Paraná, p. 13-14. No mesmo sentido, KANAYAMA, Rodrigo Luís. A ineficiência do orçamento público impositivo, p. 141: “a participação popular é indispensável e é condição à aprovação [do plano orçamentário]”.

Page 17: Artigo Dto Financeiro - Orçamento participativo -2013

17

populares, dando corpo mais consistente inclusive à concepção que aqui se faça de

Estado Democrático de Direito47.

Contudo, como anota Kanayama, as experiências do gênero – de amplo e

aberto processo deliberativo quanto à destinação dos recursos orçamentários – não

são, ainda, prática comum48. De fato: em regra, os municípios seguem o modelo de

orçamento-programa instituído pela Lei 4.320/64, que apresenta, além de um déficit

em participação popular que o mantém em contradição com a normativa

constitucional contemporânea, uma problemática cisão entre teoria e prática

orçamentária – levando às distorções que apresentamos no antelóquio a este

trabalho. A permanência sub-reptícia da legislação de 1964 sob a nova ordem

constitucional faz ecoar o dito weimariano lembrado por Gilberto Bercovici: “O direito

constitucional passa, o direito administrativo permanece”49.

Marcelo Minghelli aposta no orçamento participativo como forma de resgatar a

potencialidade – e contemporaneidade – da peça orçamentária. A sistematização,

pelo direito positivo, das categorias e princípios deste modelo, colhidos em suas

diferentes experiências, pode “definir um novo procedimento orçamentário, um

procedimento mais democrático e que seja eficiente no controle dos gastos”50.

Segundo o autor, “[c]om a adoção desses princípios [...] seria possível uma

complementação aos procedimentos formais estabelecidos pela Lei 4.320/64, ou

mesmo sua substituição”. E continua: “Sem essas reformulações, não será possível

ajustar o orçamento público à nova orientação normativa substancial exigida pela

Constituição de 1988 e por legislação complementar, como a LRF e o Estatuto da

Cidade”51.

V. FECHAMENTO

Diante do exposto, pode-se afirmar – como já havíamos feito ao início do

texto, porém agora com maior propriedade – que as experiências de orçamento

47

MINGHELLI, Marcelo. Estado e orçamento: uma cartografia jurídico-política para a consolidação de um orçamento democrático, p.146 48

KANAYAMA, Rodrigo Luís. Direito, política e consenso: a escolha eficiente de políticas públicas. p.25. 49

BERCOVICI, Gilberto. “O Direito Administrativo Passa, o Direito Administrativo Permanece”: a Persistência da Estrutura Administrativa de 1967. In.: TELES, Edson. SAFATLE, Vladimir (orgs.). O que resta da ditadura. São Paulo: Boitempo, 2010, p. 77 50

MINGHELLI, Marcelo. Estado e orçamento: uma cartografia jurídico-política para a consolidação de um orçamento democrático, p.148 51

Idem, p. 149.

Page 18: Artigo Dto Financeiro - Orçamento participativo -2013

18

participativo estão na base de um possível Orçamento Democrático, materialmente

mais acordado a um Estado Democrático de Direito e à Constituição de 1988 que o

atual modelo52. A participação popular na elaboração e execução do orçamento não

é fruto de envergonhados permissivos constitucionais – como sustenta Tarso Genro

em obra de 199953 –, mas sim enfeixa-se, fortalecendo-o, no direcionamento geral

da atual ordem normativa brasileira, em direção a práticas democráticas que mais

jus façam ao epíteto. E, neste movimento, faz-se necessário que cada vez menos

existam dissonâncias entre antiquados diplomas legislativos e os princípios

fundamentais do ordenamento.

BIBLIOGRAFIA

BALEEIRO, Aliomar. Uma Introdução à Ciência das Finanças. 13 ed. Rio de Janeiro:

Forense, 1981

BERCOVICI, Gilberto. “O Direito Administrativo Passa, o Direito Administrativo

Permanece”: a Persistência da Estrutura Administrativa de 1967. In.: TELES,

Edson. SAFATLE, Vladimir (orgs.). O que resta da ditadura. São Paulo:

Boitempo, 2010.

BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 25.ed. atual. São Paulo, SP:

Malheiros, 2010.

______. Teoria constitucional da democracia participativa: por um direito

constitucional de luta e resistencia, por uma nova hermeneutica, por uma

repolitizaçao da legitimidade. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2003.

BURKHEAD, Jesse. Orçamento Público. Rio de Janeiro: FGV, Serv. de Publicações,

1971.

52

Ibidem, p.165. 53

Idem, p. 144.

Page 19: Artigo Dto Financeiro - Orçamento participativo -2013

19

DUSSEL, Enrique D. 20 teses de política. Buenos Aires; São Paulo: CLACSO:

Expressao Popular, 2007.

______. Ética da libertação: na idade da globalização e da exclusão. 3. ed.

Petropolis, RJ: Vozes, 2007.

GIACOMANI, James. Orçamento Público. 3ª ed. São Paulo: Atlas, 1989

KANAYAMA, Rodrigo Luís. A ineficiência do orçamento público impositivo. Revista

de Direito Público da Economia – RDPE, Belo Horizonte, ano 7, n. 28, p. 127-144,

out./dez. 2009.

______. Direito, política e consenso: a escolha eficiente de políticas públicas. Curitiba, 2012. 218f. Tese (Doutorado) – Setor de Ciências Jurídicas, Universidade Federal do Paraná

MINGHELLI, Marcelo. Estado e orçamento: uma cartografia jurídico-política para a

consolidação de um orçamento democrático. Curitiba, 2009. 216f. Tese (Doutorado)

– Setor de Ciências Jurídicas, Universidade Federal do Paraná.

MINGHELLI, Marcelo; GOMES, Roger Kessler. Orçamento participativo: uma leitura

jurídico-política. Canoas: ULBRA, 2005.

OLIVEIRA, Regis Fernandes de. Curso de Direito Financeiro. 4.ed. São Paulo:

Revista dos Tribunais, 2011.

OLIVEIRA, Regis Fernandes de; HORVATH, Estevão. Manual de direito financeiro.

6. ed. rev. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003.

ROSA JÚNIOR, Luiz Emygdio Franco da. Manual de direito financeiro & tributário. 16

ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002

TAMAIO, Thaíze Gôngora. Orçamento participativo: a contribuição a ser prestada.

Curitiba, 2004. 45f. Monografia (Graduação) - Setor de Ciências Jurídicas,

Universidade Federal do Paraná

Page 20: Artigo Dto Financeiro - Orçamento participativo -2013

20

VINOSKI, Christiane Sans. O direito fundamental de participação popular na

administração pública. 2006. 113 f Monografia (graduação) - Universidade Federal

do Paraná, Setor de Ciências Jurídicas.