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    Vida e Percepo de Si.Figuras da Subjectividade no

    sc. XVII

    Adelino Cardoso

    2008

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    Ora, foroso constatar que a experincia da subjectividade stricto

    sensu (na medida em que o adjectivo subjectivo serve parasignificar alguma coisa) antes de mais a de uma distncia e de umafalta de identidade. Distncia em relao a outrem evidentemente (o

    que subjectivo o no-universal, aquilo em que tal ou tal difereinsubstituivelmente de outrem), mas tambm em relao a mim

    mesmo, na afirmao de uma particularidade irrecupervel que negao de identidade, lgica ou ontolgica, do eu.

    J. BENOIST, La subjectivit, in

    D. KAMBOUCHNER, Notions de Philosophie II,Paris, Gallimard, 1995, p. 546

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    APRESENTAO

    (da obra Vida e Percepo de Si.Figuras da subjectividade no sc. XVII

    Edies Colibri, Lisboa, 2008)

    O conhecimento de si uma perfeioG. W. LEIBNIZ

    No se pode atribuir conscincia, enquanto tal, conhecimentodas dificuldades inerentes forma da sua relao consigo.

    D.HENRICH1

    O eu s existe quando invisvel ao seu prprio olhar.Alain TOURAINE2

    1 D. HENRICH, Self-Consciousness and Speculative Thinking, in E.DAVIDand G. ZLLER, Figuring the Self, University of New York, 1997, p. 118.

    2 A. TOURAINE, Critique de la Modernit, Paris, Fayard, 1992, p. 316

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    O eu est no cerne do pensamento mdico-filosfico no sculo XVII.O seu estatuto e significado, porm, variam substancialmente, ge-rando clivagens e tenses entre correntes e, mesmo, no interior de

    uma mesma corrente filosfica. O eu revela-se, ento, como umponto fulcral de divergncia. O que um eu? Uma estrutura originalou uma coisa, entre outras, constituda por uma essncia determi-nada? Uma entidade simples ou uma estrutura altamente complexa?Um sujeito autnomo e fundador ou o membro de uma comunidade?A unidade subjacente a uma multiplicidade de estados ou a mera su-cesso destes? Uma interioridade fechada sobre si mesma ou umaabertura ao outro e ao mundo?

    A tenso fundamental imanente subjectividade no sculo XVII entre a posio de um cogito fundador e uma conscincia afectada

    por uma descontinuidade intransponvel entre o pensamento espon-taneamente dado e o acto reflexivo pelo qual esse pensamento refe-rido ao eu pensante. A posio de si acompanhada por um questio-namento radical, que Leibniz formulou em termos insuperveis: E,dado que a conscincia da minha percepo envolve a memria e,consequentemente, o passado, e com efeito eu no penso e no per-cebo o meu pensar no mesmo momento [it. meu], ser falso dizer quenos experienciamos a ns prprios, se nem aquele que percebe nemaquele que percebido o que agora pensa ou recorda3. A pretensasimplicidade do cogito, que lhe confere um suplemento de evidncia,

    revela-se altamente problemtica.O cartesianismo paradigmtico sob este aspecto, ao erigir o co-gito no estatuto de fundamento inabalvel, colocando-o no cerne da

    3 G. W. LEIBNIZ, Divisio terminorum ac enumeratio attributorum, A VI, IV,p. 563.

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    inteligibilidade. Ora, se a certeza do cogito no levanta problemas,o mesmo no se pode dizer da sua significao, que se revela pro-blemtica no prprio Descartes. De facto, no perodo subsequente publicao das Meditaes (1641), o Filsofo confronta-se com difi-culdades que afectam a dinmica da sua evoluo intelectual, eviden-ciando a insuficincia dos procedimentos analticos para apreender aefectividade do eu.

    As dificuldades inscrevem-se no ncleo do sistema, no ponto de

    articulao entre cogito e cogitatio: o brilho ofuscante do cogito temum efeito de ocultao da cogitatio. De facto, o cogito o resultadode uma depurao do olhar cuja ateno se orienta para o pensar en-quanto tal, como fenomenalidade pura ou conscincia em acto. Oque a se revela no uma verdade de razo ou uma proposio uni-versal, mas o pensar como experincia, a afeco do pensante peloprprio pensar: Quando, porm, nos apercebemos de que o facto desermos coisas pensantes uma certa noo primitiva (prima quae-dam notio) que no tirada de nenhum silogismo; e quando algumdiz: Eu penso, logo sou ou existo, no deduz a existncia do pensa-

    mento atravs de um silogismo, mas conhece-a como uma coisa evi-dente por simples intuio intelectual (simplici mentis intuitu), comoresulta evidente de que se deduzisse a existncia mediante um si-logismo, ento deveria ter conhecido antecedentemente a premissamaior tudo aquilo que pensa ou existe ; ora seguramente antes aaprende do facto de que experimenta em si (apud se experiatur) queno possvel que pense, a menos que exista.4. Eu penso , ento,uma verdade de facto cuja validade garantida pela imanncia daconscincia de si ou pela intuio, que consiste numa auto-afecoda inteligncia pelos seus fenmenos internos5. Por conseguinte, no

    vivel nem faria sentido erradicar a dimenso experiencial destaverdade, reduzindo-a a um mero enunciado lgico.

    4 Secundae Responsiones, AT VII, p. 140.5 Assim cada um pode ver dentro do seu prprio esprito (animo intueri) que

    existe, que pensa (Regulae ad directionem ingenii, III, AT X, p. 368).

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    O pensar como experincia que o eu faz de si, exprime-se na lin-guagem do sculo XVII pelo termo percepo: esta qualifica o estilode relao com o mundo, com o outro e consigo prprio6. A percep-o a primeira das operaes intelectuais, que est implicada emtodo o exerccio da inteligncia. Ela adquire, inclusive, uma signi-ficao mais ampla enquanto caracterstica originariamente constitu-tiva da vida, pela qual se marca a diferena entre o vivo e o no-vivo. assim no prprio Descartes, em Glisson e Leibniz. Sob este as-

    pecto, a percepo designa o modo pelo qual o vivo se ajusta a cadamomento s condies do mundo em presena.

    A cogitatio no reveste a aurola da universalidade. Julgo seressa a deciso crucial que Descartes assume em resposta a uma bemenredada questo colocada pelo fino Arnauld7 a deciso pela sin-gularidade: Portanto, pelo pensamento eu no entendo algo de uni-

    6 Acerca da primordialidade da percepo, vide A. CARDOSO, O paradigmada percepo, in IDEM, O envolvimento do infinito do finito, Lisboa, Centro deFilosofia da UL, 2005, pp. 83-94.

    7 Concordo sumamente com o que dizeis, que o esprito pensa sempre em

    acto, e mediante isso resolve-se muito bem a dvida que eu propusera acerca dadurao do esprito. No entanto, a este respeito, movem-me ainda algumas outras.1. Como possvel que o pensamento constitua a essncia do esprito, uma vez queo esprito uma substncia e o pensamento parece ser to-s uma entidade modal?2. dado que os nossos pensamentos ora so uns ora so outros, pareceria que entotambm a essncia do nosso esprito seria outra. 3. Porque no devo negar queeu prprio sou o autor do pensamento que agora tenho, se a essncia do espritoconsiste no pensamento, poderia parecer-me que sou o autor dessa essncia e que,portanto, eu posso conservar-me a mim mesmo. Vejo, porm, o que se poderiaresponder aqui: que Deus a causa de que ns pensamos, mas que ns prprios,se bem que com a ajuda divina, somos a causa de pensarmos nisto ou naquilo.Mas que muito difcil de entender como que o pensamento em geral pode serseparado de tal ou tal pensamento, a no ser pelo entendimento. Pelo que se oesprito a causa de pensar nisto ou naquilo, parece ser igualmente a causa de quepensa simplesmente e, portanto, daquilo que . Alm disso, uma coisa singular ecuja essncia singular deve ser determinada e, portanto, se a essncia do espritofosse, no o pensamento em geral, mas tal ou tal pensamento, ento ele constituiriaa sua essncia, o que todavia se no pode dizer (Carta a Descartes, Julho de 1648,AT V, pp. 213-214).

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    versal que compreenda todos os modos do pensar, mas uma naturezaparticular, que recebe todos aqueles modos [it. meu], tal como a ex-tenso tambm uma natureza que recebe todas as figuras8. Muitoexpressamente, a cogitatio no uma estrutura formal e abstracta,mas o pensar em acto, necessariamente situado, particular.

    O cogito d-se numa fraco do tempo, no agora em que souafectado pelo meu acto pensante. Trata-se de uma conscincia pon-tual, que representa um momento da vida anmica no seu fluxo inces-

    sante: ... a proposio Eu sou, eu existo, necessariamente verda-deira todas as vezes [itlico meu] que a profiro ou a concebo no meuesprito9. Na formulao dos Princpios, artigo VII, absurdo quese admita que aquele que pensa, no prprio momento em que pensa[it. meu], no exista10. A relao entre cogito e sum no estrita-mente necessria; ela s vlida enquanto referida ao pensar-em-actotemporalmente circunscrito: quandiu cogito (enquanto penso)11. Atemporalidade est inscrita na experincia originria de si: experin-cia de si e vivncia da temporalidade so indissociveis. A unidadedo eu correlativa de uma temporalidade nica, ininterrupta. Da

    a relevncia da tese cartesiana segundo a qual a alma pensa sem-pre, inclusive durante o sono: deixar de pensar significaria deixarde existir. Com efeito, a persistncia da alma no seu ser enquantopensante implica a continuidade do pensar em acto: Exprimes atua perplexidade em face da minha tese de que a alma pensa sem-pre. Mas por que no pensaria ela sempre dado que uma substnciapensante?12

    Desde a formao do feto que o ser humano tem uma percepo,mesmo que embrionria e confusa, dos seus fenmenos. Os termos

    8 Carta a Arnauldde 29. 07. 1648, op. cit., p. 88, AT V, p. 221.9 Meditationes, II, AT VII, p. 25.10 DESCARTES, Princpios da Filosofia, apresentao, traduo e comentrio

    por Leonel Ribeiro dos Santos, Lisboa, Editorial Presena, 1995, p. 55.11Meditationes, II, AT VII, p. 27.12 Respostas s quintas Objeces, AT VII, p. 356. Cf. Carta a Arnauld, de

    Junho-Julho 1648, AT V, p. 193.

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    da carta a Chanut de 1. 02. 1647 so elucidativos: Eis as qua-tro paixes [amor-dio, alegria-tristeza] que creio terem sido em nsas primeiras e as nicas que tivemos antes do nascimento; e creioigualmente que elas apenas foram ento sentimentos ou pensamen-tos confusos; porque a alma estava de tal modo ligada matria queno era capaz de se ocupar de outra coisa do que a receber dela asdiversas impresses13.

    A alma a sede de um fluxo sucessivo de pensamentos que ocor-

    rem no seu interior. Esse fluxo constitui uma srie dotada de coern-cia interna ou uma sucesso sem qualquer princpio ordenador? Hverdadeira continuidade da vida anmica ou estamos em face de umarealidade fragmentria e descontnua? O eu identifica-se totalmentecom os seus fenmenos ou um substrato imutvel e de algum modoindependente deles? A posio cartesiana no uma s, constatando-se uma tenso produtiva entre a substancializao do pensamento e asua forma enquanto eu, cujo modo peculiar o de uma ipseidade.

    Ao invs de uma tradio interpretativa muito influente e que temem Heidegger um dos seus expoentes14, o estatuto do eu no o

    de um correlato objectal do acto pelo qual o pensante se apreendea si mesmo, mas um requisito desse acto, segundo o adgio da me-tafsica em voga no sculo XVII: as aces pertencem aos sujeitossubstanciais (actiones sunt suppositorum). A resposta de Descartesa Hobbes subentende tal metafsica: Mas, para dar uma explica-o sucinta, certo que o pensamento (cogitatio) no pode existirsem uma coisa pensante (res cogitans), nem em geral nenhum actoou acidente pode existir sem a substncia qual inere. Como, to-davia, no conhecemos imediatamente a prpria substncia por si

    prpria (Cum autem ipsam substantiam non immediate per ipsam

    13 Carta a Chanut, de 1. 02. 1647, AT IV, p. 605.14 Foi porventura Heidegger quem mais longe levou a interpretao representa-

    cional do cogito: eu penso significa eu represento-me. Mais genericamente, pensar colocar-se em face de si mesmo como um ob-stante (vor-gestellt). (M. HEIDEG-GER, Nietzsche, Gesaumasgabe, vol. 6.1-6.2, Frankfurt am Main, V. Kostermann,pp. 135-144).

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    cognoscimus), mas to-s pelo facto de que ela sujeito de certosactos[...]15.

    A substncia, isto , o ser efectivamente real apreende-se na di-nmica interna sua actividade, de uma maneira oblqua, segundo afrmula de Davidson16. Assim, o cogitante no se coloca imediata-mente diante de si como um cogitatum. De facto, a afirmao souuma coisa que pensa no se situa no mesmo plano que aqueloutra:eu penso. A instantaneidade do eu penso desenvolve-se numa dura-

    o com uma lgica imanente. Tal como dito nos Princpios daFilosofia (artigos 57 e 62), a noo de durao introduz um modo detemporalidade distinto do tempo sucessivo e uniforme dos relgios:a durao relativa coisa que dura, da qual indissocivel. Du-rar subsistir, afirmar-se como substncia: A substncia um sercapaz de subsistir por si17. O trao distintivo da substncia no ,pois, a imutabilidade, mas a identidade dinmica de um percurso. Noque respeita especificamente ao eu, a sua unidade uma construopermanente. Como que se realiza essa unidade? Trata-se de umaquesto central da filosofia no sculo XVII: o eu constitui um mundo

    parte ou a sua realizao implica forosamente a habitao de umcorpo e a vinculao ao outro?

    Tu. O Primado da relao na arte mdica segundo F. Sanchesretoma o pensamento do mdico-filsofo bracarense no ponto em queele fora deixado no final de Fulguraes do Eu: o acto mdico incluiuma dimenso moral na qual est implicada a passagem pelo lugar dooutro. No seu estilo acutilante, o autor acentua o carcter relacionalda arte mdica, a exigncia de tratar o outro na sua subjectividadeirredutvel. O eu constitui-se no interior da relao com o outro; o

    15 DESCARTES, Terceiras Respostas, AT VII, pp. 175-176.16 Os filsofos introduzem o self quando querem discutir certos tpicos como

    sejam a conscincia ou aquilo que unifica as mltiplas experincias de uma pessoa.Por conseguinte, a minha abordagem ser necessariamente oblqua. (D. DAVID-SON, Subjective, intersubjective, objective, Oxford, Clarendon Press, 2001, p. 85).

    17 DESCARTES, Princpios da Filosofia, artigo 51.

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    solipsismo s poderia acompanhar uma interioridade vazia ou umsujeito abstractamente tomado.

    Psicologia e Moral em Descartes incide sobre a articulao entrevontade e afecto, que constitui a encruzilhada mais densamente pro-blemtica do cartesianismo e um dos tpicos marcantes da reflexomoral no sculo XVII. A este respeito, Descartes est em sintoniacom a corrente mais significativa do seu tempo, expressa na valori-zao do sentimento e na assumida demarcao em relao ao ideal

    estico da apatheia, que imprimiu o seu cunho ao intento de reno-vao moral protagonizado por P. Charron, Justo Lpsio e Guillaumedu Vair, na transio do sculo XVI ao XVII.

    O elo de ligao entre psicologia e moral a paixo, no sen-tido amplo de uma afeco que se experimenta na alma enquanto elaest unida a um corpo. Efectivamente, a moral uma arte da regu-lao das paixes no intuito de intensificar aquelas que reforam avontade e promovem a felicidade. A perfeio moral alcana-se me-diante o excesso das paixes favorveis plena realizao de si e acompanhada de um estado subjectivo de exaltao do eu alegria.

    Conscincia e inevidncia do eu em Malebranche coloca-nos emface de uma filosofia original, que se forma atravs da reformulaodas doutrinas emblemticas do cartesianismo: estatuto fundador docogito, imanncia das ideias ao sujeito pensante, criao das verda-des eternas. A posio justa do eu a de acolhimento e receptividadeda Razo universal, no a de centro e fundamento do saber. A cinciada alma no a primeira, a mais simples e evidente de todas. Maisdo que isso, no h cincia da alma. O filsofo oratoriano , assim,levado a inverter a ordem cartesiana das razes: a alma, que umasubstncia espiritual, s se apreende sensivelmente (por experincia

    ou sentimento de si), ao passo que o corpo, que uma substncia ma-terial, passvel de apreenso inteligvel (atravs da extenso inteli-gvel). Ao proceder desta maneira, Malebranche inaugura a distinomoderna entre cincia e conscincia.

    A representatividade do pensar na controvrsia entre Malebran-

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    che e Arnauldfoca um episdio altamente revelador das tenses ine-rentes inteligibilidade cartesiana, nomeadamente no que respeita natureza do pensar. O cerne do diferendo reside no significado eestatuto da ideia. O que uma ideia: uma entidade inteligvel ouo produto da inteleco humana? Qual a relao entre o pensar e aideia e entre esta e a coisa a que ela se refere? A ambiguidade car-tesiana reside em que a ideia definida como a forma dos nossospensamentos, identificados como os fenmenos imanentes consci-

    ncia, mas simultaneamente Descartes defende que a ideia contmrealidade objectiva.

    Malebranche distingue claramente pensamento, ou percepo, eideia. A ideia algo de real, uma entidade ou essncia inteligvel,que tem a funo de fornecer ao esprito a luz necessria para a visodos objectos materiais, invisveis por si mesmos. A inteleco con-siste, pois, basicamente na recepo da ideia, que tem a funo derepresentar as coisas materiais, distintas e heterogneas em relaoa ela. Por conseguinte, no h ideia daquilo que o esprito apreendeimediatamente, seja por intuio (Deus e as ideias matemticas), seja

    por sentimento ou conscincia (o eu). A teoria malebrancheana darepresentao supe uma assimetria entre pensamento e ideia. En-quanto tal, o pensamento uma afeco do esprito, que pode serapreendida por sentimento, no por uma ideia inteligvel.

    Arnauld opera a simplificao do cartesianismo, reduzindo-o aum ncleo sistemtico de verdades cuja evidncia lhe parece inques-tionvel18. A sua obra Des vraies et des fausses ides (1684) umaverso original da gnosiologia cartesiana, sistematicamente ordenadasegundo a ordem das razes, margem de consideraes metafsicase morais. O esprito reduzido sua dimenso cognitiva e inves-

    tido de um poder demirgico, expresso no seu poder de representar.Ao passo que, para Malebranche, a percepo ou acto de pensar re-velava a passividade do esprito e a eficcia da ideia sobre ele, para

    18 Como obra de sntese sobre Arnauld, veja-se A. R. NDYAYE, La philosophiedAntoine Arnauld, Paris, Vrin, 1991.

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    Arnauld, a percepo essencialmente activa, produzindo as ideiasmediante as quais representamos as coisas. As ideias so as nossaspercepes enquanto referidas aos objectos, donde resulta que todaa percepo intelectual, logo, apangio do esprito. A representa-tividade intrnseca ao pensar, que apreende imediatamente os seusobjectos, que so nada mais nada menos que as prprias coisas visa-das. Demarcando-se do uso tradicional e, inclusive, do uso cartesianodo termo objectividade, Arnauld identifica esta com a inteligibilidade

    da prpria coisa que se apresenta ao pensante.Percursos da individualidade: do indivduo ao sujeito aborda

    um tpico controverso o da articulao entre duas noes fulcraisda racionalidade moderna, indivduo e sujeito. Numa interpretaoque teve um certo impacto, inclusive entre ns, A. Renaut delineiaum percurso inaugurado pela posio moderna da subjectividade eculminando numa individualidade fechada e auto-suficiente. A l-gica inscrita na histria filosfica da subjectividade conduziria a umaidentidade assente na referncia exclusiva a si: Fantstica dissolu-o paralela da subjectividade e da intersubjectividade, a monado-

    logia neste sentido o acto de nascimento filosfico do indivduo edo individualismo19. A leitura segundo a qual a monadologia deLeibniz consuma a tendncia moderna a sobrepor a noo de indi-vduo de sujeito, desajustada no s compreenso da evoluointerna e significado do leibnizianismo, mas tambm da dinmicainterna do pensamento no sculo XVII, que vai de uma filosofia doindivduo como entidade que se autoconstitui e efectiva por si a umasubjectividade relacional e aberta, marcada pela desinerncia a si.

    A este respeito, a transio para a modernidade feita por F. Su-rez (1548-1647), ao elaborar uma metafsica em que o indivduo a

    realidade bsica e prima sobre a espcie, no s no plano ontolgicomas tambm no gnosiolgico: o indivduo o todo, no qual se incluia espcie e o gnero. Seguindo a matriz suareziana, F. Glisson (1599-1677) e G. W. Leibniz (1646-1716) desenvolvem uma reflexo origi-

    19 A. RENAUT, Lre de lindividu, Paris, Gallimard, 1989, p. 140.

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    nal sobre a temtica do indivduo em que, cada um sua maneira,orientam o indivduo na direco do sujeito. Glisson marca esseponto muito vigorosamente: a individuao opera-se por subjecti-vao. Leibniz assume igualmente essa orientao, inscrevendo-a nombito de uma metafsica da expresso que acentua o carcter relaci-onal e o vnculo comunitrio inerentes ao ser individual: o indivduono um fragmento, mas um ponto de vista do mundo actual.

    O inconsciente leibniziano da vida apresenta uma figura da sub-

    jectividade em que o si primordial pertence a uma camada arcaicado psiquismo, situada aqum da conscincia e da intencionalidade.A experincia de si faz parte intrnseca do vivo, a subjectividade ocomo da vida, que se d atravs do fluxo espontneo de percepesinsensveis que marcam a continuidade da vida anmica, o modo devinculao ao mundo e o carcter prprio do si.

    A conscincia uma modalidade da vida, a sua expresso culmi-nante, mas no a camada fundadora. Tal como em Freud, o incon-sciente em Leibniz o fundo incontrolvel e imperceptvel de umdinamismo inesgotvel. A marca mais tipicamente leibniziana reside

    na relevncia do corpo prprio enquanto agente de ipseizao, ao in-vs da concepo lockeana de um eu que se constitui na esfera daconscincia, abstraindo inteiramente do plano da corporeidade.

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    O INCONSCIENTE

    LEIBNIZIANO DA VIDA

    1. Introduo

    A primeira dificuldade que se apresenta a da pertinncia dotema. Com efeito, se consultarmos enciclopdias prestigiadas, cons-tatamos que o inconsciente reenviado exclusivamente para o m-bito da psicanlise20. A reivindicao do inconsciente como domnio

    especfico da psicanlise revela-se, desde logo, no procedimento deFreud e seus continuadores, ao denegarem a proto-histria da suadescoberta, visando assim marcar bem a ruptura instaurada peloempreendimento psicanaltico: Ao apresentar-se como ruptura ra-dical, a psicanlise denegava a sua ancoragem na histria e recalca-va a sua genealogia particular, gerando o mito da sua autoproduomgica21.

    J.-M. Vaysse recoloca a questo da gnese histrica do inconsci-ente, afirmando a existncia de uma forte cumplicidade entre a ins-taurao moderna da conscincia como tema filosfico central e a

    20 Este captulo reproduz o texto da conferncia proferida no Planetrio do Porto,a 20. 04. 2002, no mbito do ciclo Questes que se repetem, organizado por PauloTunhas.

    21 J-M. VAYSSE, Linconscient des modernes. Essai sur lorigine mtaphysiquede la psychanalyse, Paris, Gallimard, 1999, p. 10.

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    presena larvar e subtreptcia do inconsciente: A apario do in-consciente a emergncia da verdade do mundo da conscincia so-berana, de maneira que conscincia e inconsciente sejam como asduas faces de Jano da subjectividade moderna22. Do ponto de vistada minha prpria investigao, Vaysse aponta no bom sentido, masem termos que me parecem claramente insuficientes. Porque, se certo que o inconsciente se encontra em estado de latncia na metaf-sica de inspirao cartesiana, no menos verdade que o trabalho do

    inconsciente expressamente reconhecido pela subjectividade renas-centista, muito especialmente nos Ensaios de Montaigne. Longe dese deixar ofuscar pelo brilho fugaz de um pensamento que se toma asi mesmo como objecto na procura de uma total transparncia, Mon-taigne segue o curso vagabundo de uma cogitao em que o eu revelaa sua impotncia para controlar e dirigir os impulsos que o sacodem eincitam: Acontecem em mim mil agitaes indiscretas e casuais23.

    No quadro do pensamento clssico, h toda uma corrente espiri-tual e moralista, que assume o lado abissal das nossas motivaesmais ntimas. A dualidade corao/razo, justamente celebrizada

    pela mxima de Pascal o corao tem as suas razes, que a razodesconhece, trabalha igualmente as Mximas de La Rochefoucauld,onde se pode ler: todos aqueles que conhecem o seu esprito noconhecem o seu corao24, ou ainda: Se h amor puro e isento damistura das nossas outras paixes, aquele que est escondido nofundo do corao, e que ns prprios ignoramos25.

    Leibniz no o nico do seu tempo a reconhecer a fora doinconsciente, mas , sem dvida, aquele que lhe concede um lugarprimordial e uma presena mais alargada. O objectivo deste trabalhoconsiste precisamente em focar a concepo leibniziana de incons-

    22 Op. cit., p. 13.23 MONTAIGNE, Essais, Paris, ed. Garnier-Flammarion, 1969, livro II, cap. 12,

    p. 231.24 F. de la ROCHEFOUCAULD, Rflexions ou sentences et maximes morales,

    in uvres compltes, Paris, Gallimard, 1964, p. 417.25 Op. cit., p. 412.

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    ciente, evidenciando a sua capacidade de interpelar a posteridade deFreud no seio da qual pensamos esta temtica.

    Leibnizianamente, o inconsciente o modo de presena da vidano vivo. O seu estatuto o de um estrato arcaico, um fundo de passi-vidade originria no sentido que Michel Henry d a esta locuo26.Mais explicitamente, o inconsciente leibniziano qualifica o modo de

    fenomenalidade de um si primordial, situado aqum do eu e da cons-cincia, operando mediante percepes e inclinaes insensveis, que

    no so passveis de apreenso objectal em virtude da confuso queas habita. Leibniz denomina-as insensveis ou imperceptveis a fimde marcar bem que essas inclinaes e percepes so inencontrveisno grande teatro da percepo e da linguagem vulgar e, contudo, elasso absolutamente requeridas a um olhar mais penetrante, visandoapreender as disposies e predisposies que predeterminam o sernuma ou noutra direco.

    A significao e estatuto do inconsciente leibniziano parece-merevelar uma afinidade profunda com o inconsciente freudiano, na in-terpretao de A. Green, segundo a qual o percurso de Freud tende a

    sobrepor o isso (das Es) ao inconsciente27, reconhecendo o fundo depassividade no qual se inscreve o eu28. A afinidade de Leibniz com

    26 Florinda Martins foca muito pertinentemente este tpico (F. MARTINS, Re-cuperar o humanismo. Para uma fenomenologia da alteridade em Michel Henry,Cascais, Principia, 2002).

    27 Pode-se falar, sem exagero, de uma desafeco crescente de Freud a res-peito do inconsciente na segunda metade da sua obra. Aquilo que nas descobertasiniciais da psicanlise era um dos mais belos ornamentos da coroa do seu criadordesvalorizou-se progressivamente. Ao ponto de em 1939, no Resumo de psican-lise, lhe no ser consagrado nenhum captulo em particular e de sistema o conceitopassa ao nvel de adjectivo. O inconsciente mais no do que uma qualidade

    psquica. A viragem estava esboada h muito. Se a seguirmos, remontando aoAbrg, encontramos a sua confirmao em O eu e o isso, onde o isso destronao inconsciente. (A. GREEN, Le discours vivant, Paris, PUF, 1973, reimp. 2001,p. 243).

    28 A expresso das Es atrai Freud na medida em que ilustra a ideia desenvolvidapor Groddeck de que ... aquilo a que chamamos o nosso ego se comporta na vida

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    uma figurao do inconsciente que de algum modo o desclassifica ereduz forma adjectiva reside em que, leibnizianamente, o incons-ciente no assimilvel a uma entidade substancial, sendo antes oqualificativo de um nvel e modo da realizao do ser.

    Numa obra cujo trao mais saliente a diversidade, a temticado inconsciente encontra-se dispersa por uma quantidade imensa detextos que esto longe de formar um bloco homogneo tanto no planodas doutrinas como ao nvel do lxico utilizado. Ainda assim, julgo

    que uma carta a Remond, de 1715, ilustra exemplarmente a posioleibniziana da questo: Concedo aos cartesianos que a alma pensasempre, mas de modo nenhum concedo que ela se apercebe de todosos seus pensamentos. Com efeito, as nossas grandes percepes e osnossos grandes apetites, dos quais nos apercebemos, so compostosde uma infinidade de pequenas percepes e de pequenas inclinaes,de que no poderamos aperceber-nos. E nas percepes insensveisque se encontra a razo daquilo que se passa em ns; como a razodaquilo que se passa nos corpos sensveis, consiste nos movimentosinsensveis.29

    A questo fundamental que o texto leibniziano suscita esta: aconscincia de si um acto simples, que se esgota na actualidadeda presena a si ou ela pressupe o fluxo interminvel de uma vidapensante inextricavelmente mltipla? Por seu lado, a questo da sim-plicidade do acto aperceptivo arrasta a pergunta pela autonomia etransparncia da conscincia.

    2. O significado da conscincia: o paradigma lockeano

    A conscincia o ncleo de um novo paradigma filosfico, que

    corresponde a uma das orientaes fundamentais da modernidade,de uma forma totalmente passiva e [...] somos vividos por foras desconhecidase indomveis (LAPLANCHE-PONTALIS, Vocabulrio de Psicanlise, entradaId).

    29G. W. LEIBNIZ, Opera Philosophica Omnia, ed. J. Erdmann, 1840, p. 736.

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    originando as chamadas filosofias da conscincia. A noo de con-scincia faz a sua proto-apario filosfica nos Ensaios de Montaigne,onde assume o estatuto de esforo maravilhoso, gerador de uma cisodentro do eu, ao confront-lo com a zona obscura dos seus desejose pensamentos abissalmente inconfessveis, que o sujeito se revelaincapaz de dirigir e controlar30.

    Descartes assume a conscincia como o teatro do eu na relaode si consigo: a imediatez da referncia a si, pela qual se define car-

    tesianamente o pensamento, outro modo de dizer a conscincia31.No entanto, a substancializao da conscincia, necessariamente re-querida pelo procedimento cartesiano32, impede o autor de consti-tuir uma verdadeira filosofia da conscincia. Tal ser o contributo depensadores como Malebranche e Locke, que assumem a conscinciacomo uma estrutura original irredutvel forma metafsica do entesubstancial.

    Vou prestar uma ateno particular a Locke, que, no cap. 27 dolivro II do Ensaio sobre o entendimento humano, escrito por suges-to do seu amigo irlands Wiliam Molineux e inserido na 2a edi-

    o da obra (1694), onde o autor desenvolve uma teoria da iden-tidade pessoal, dissociando-a da identidade substancial e da identi-dade do homem33, considerada como a permanncia de uma mesma

    30Quo maravilhoso o esforo da conscincia! Ela faz-nos trair, acusar ecombater a ns prprios e, na ausncia de testemunho alheio, produz-nos contrans. (MONTAIGNE, Essais, livro II, cap. 5, p. 39).

    31 A sinonmia pensamento/conscincia est bem patente no confronto entre averso latina e a francesa (revista por Descartes) do incio do art. IX dos Princpiosda filosofia: Pelo termo pensamento entendo todas aquelas coisas que ocorrem emns quando estamos conscientes, na medida em que h em ns conscincia delas;Pela palavra pensamento entendo tudo o que ocorre em ns de tal maneira que o

    apercebemos imediatamente por ns prprios.32 A este respeito, cf. A. CARDOSO, Fulguraes do eu. Indivduo e singula-ridade no pensamento do Renascimento, Lisboa, Ed. Colibri, 2002, pp. 14-15.

    33Por conseguinte, no a unidade da substncia que compreende todos ostipos de identidade ou que a determinar em cada caso. Mas para a concebere julgar correctamente a seu respeito, deve considerar-se a ideia a que ideia se

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    vida, expressa na subsistncia do mesmo corpo organizado (the sameorganized body)34. O interesse dos estudiosos actuais por este ca-ptulo do Ensaio justifica-se inteiramente pelo modo de posio daquesto, pelo impacto histrico e, ouso diz-lo, pela sua actualidade.Nele, o mdico e filsofo ingls delineia uma filosofia da conscin-cia que se constitui expressamente contra a metafsica que suportaas egologias fundadoras. Como bem escreve Yves Zarka: Todo oesforo do cap. XXVII visa realizar uma desontologizao da ques-

    to do si pondo em causa a relao estabelecida por Descartes entrepensamento e substncia35.

    A identidade pessoal no implica referncia alma enquanto uni-dade previamente dada que se desenrola numa multiplicidade de es-tados e aces. A pessoa no tem essncia, um trabalho de reu-nio de uma srie de actos passados e futuros, construindo o tipode identidade dinmica que habitualmente designamos como ipsei-

    aplica a palavra: de facto, uma coisa ser a mesma substncia, outra ser o mesmohomem, e uma terceira ser a mesma pessoa, se pessoa, homem e substncia sotrs nomes que representam trs ideias diferentes. Com efeito, a identidade deve

    ser tal qual a ideia que pertence a esse nome. (J. LOCKE, An essay concerninghuman understanding, livro II, cap. XXVII, 7, Oxford, Oxford University Press,1975, p. 332).

    As citaes do Ensaio de Locke sero feitas a partir da edio referida, em tra-dues minhas. No que se refere especificamente a este captulo, a traduo portu-guesa, editada pela F. C. Gulbenkian (1999), assinada por E. Abranches de Soverale revista por Gualter Cunha e Ana Lusa Amaral, deturpa o original em aspectosfilosoficamente relevantes. A ttulo de exemplo, veja-se a traduo do 9 ( 11da edio da F. Gulbenkian, pp. 442-443). Para l da muito problemtica traduode self (si) por eu termo que julgo dever ser reservado para traduzir o pronome

    I, substantivado ( 20) e de sameness (mesmidade) por singularidade, traduz-se It being impossible for any one to perceive, without perceiving, that he does

    perceive (Sendo impossvel a qualquer um perceber sem perceber que percebe):sendo impossvel para qualquer um compreender sem apreenderque conseguecompreender (p. 443). assim ocultado ao leitor portugus que, como tpico dosculo XVII, a percepo designa aqui o modo de relao de si consigo.

    34Essay, II, XXVII, 6, p. 332.35Yves ZARKA, Lautre voie de la subjectivit, Paris, Beauchesne, 2000, p. 21.

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    dade. A pessoa a unidade de uma histria singular, o centro deuma narrativa que se desenrola temporalmente. A conscincia oagente da personalizao, introduzindo a durao no fluxo sucessivodos acontecimentos.

    O termo correlativo da conscincia no um eu interior que sedesdobra em sujeito e objecto: ela correlativa de um si (Self) quese gera na auto-afeco originria. O si a qualidade moral da acodo ser pensante, que assume como seus os estados que o afectam.

    Por seu lado, a conscincia o operador da constituio do si oua efectividade da auto-afeco: Depois destes preliminares no in-tuito de determinar em que consiste a identidade pessoal, importaconsiderar o que representa a pessoa; , penso, um ser pensante einteligente, dotado de razo e de reflexo, e que pode considerar-sea si mesmo como si mesmo (and can consider it self as it self), umamesma coisa em diferentes tempos e lugares; o que se faz unica-mente atravs desta conscincia, que inseparvel do pensamento, e,segundo me parece, lhe essencial: sendo impossvel a qualquer umperceber sem perceber que percebe (it being impossible for any one

    to perceive, without perceiving, that he does perceive).36 Percepoe conscincia so indissociveis: a conscincia acompanha todos osnossos actos realizando a sua pertena a um mesmo si.

    No quadro intelectual assim delineado, conscincia e pessoa sotermos coextensivos ( 10 e 14), pelo que duas substncias distintaspodem formar uma nica pessoa, se persistir a mesma conscincia (13), tal como a descontinuidade da conscincia faz surgir uma novapessoa, apesar da permanncia de uma mesma substncia: porisso que eu digo que em todos esses casos, sendo a nossa conscinciainterrompida e tendo ns perdido de vista os nossos si passados (and

    we losing the sight of our pastselves

    ), motivo de dvida se somosverdadeiramente a mesma coisa pensante, isto , a mesma substncia,ou no. Que isso seja ou no racional, no afecta nada a identidadepessoal. Porque a questo consiste em saber o que faz a mesma pes-

    36Essay, II, XXVII, 9.

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    soa, e no se a mesma substncia idntica que pensa sempre no seioda mesma pessoa, o que na ocorrncia no tem nenhuma importn-cia. Diferentes substncias podem estar unidas numa s pessoa pelamesma conscincia (quando participam nela) exactamente como di-ferentes corpos podem estar reunidos num s animal, cuja identidade preservada, nessa mudana de substncias, pela continuidade deuma vida continuada (by the continuity of one continued life). Pois,dado que a mesma conscincia que faz com que um homem seja ele

    mesmo para si mesmo (himself to himself), a identidade pessoal de-pende to-s disso (personal identity depends on that only), quer elaesteja ligada a uma nica substncia individual quer seja continuadapela sucesso de mltiplas substncias. ( 10).

    A tematizao lockeana da identidade pessoal apresenta dificul-dades intrnsecas que no passaram despercebidas ao seu autor, aprimeira das quais reside na impossibilidade da percepo do si en-quanto tal, mediante um olhar omnicompreensivo. Efectivamente,dado o carcter pontual da conscincia, a durao ou continuidadetemporal do si comporta necessariamente lacunas que so atesta-

    das pelas falhas da memria ( 25). Da que a disposio do sipara a personalidade jamais alcance a identidade plena e a coinci-dncia efectiva de si consigo. Permanece sempre algum desajusta-mento, indiciando uma zona de penumbra, qualquer coisa como uminfra-consciente, que, todavia, s faz sentido na medida em que oreferirmos conscincia37. O inconsciente extravasa o mbito da

    37Essa zona obscura ser manifestada conscincia no dia do Juzo final. Numareveladora inovao teolgica, Locke defende que a justia divina se legitima pelaconscincia plena que a pessoa ento recebe da totalidade dos seus actos: E, por-tanto, de acordo com isto, o Apstolo diz-nos que no dia do Juzo, quando cadaum for recompensado conforme aos seus actos, os segredos de todos os Coraes

    sero desvendados. O veredito ser justificado pela conscincia que todas as pes-soas ento tero [it. meu] de que elas prprias so precisamente as mesmas quecometeram esses actos e merecem ser punidas por eles, sejam quais forem os cor-pos em que elas se manifestam ou as substncias s quais se liga essa conscincia.(Essay, II, XXVII, 26).

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    reinterpretao to excitante que Locke faz do eu: no o eu do ho-mem38, mas um eu que se define como trnsito de si a si mesmo aipseizao empreendida pela conscincia.

    O confronto com a teoria lockeana da identidade pessoal fornecea Leibniz a oportunidade para explicitar e aprofundar a sua metaf-sica do inconsciente. O ponto nuclear de divergncia entre os doisfilsofos diz respeito relao entre o si e a conscincia: ao passoque para o autor do Ensaio o si o resultado da operao da cons-

    cincia, para o autor dos Novos Ensaios a conscincia a expressoculminante do si, mas no a sua gnese e mbito prprio: No quese refere ao si (soi), ser bom distingui-lo da aparncia do si e daconscincia. O si faz a identidade real e fsica, e a aparncia do si,acompanhada pela verdade, acrescenta-lhe a identidade pessoal39.Em termos leibnizianos, o si o ser vivo enquanto portador de umavivncia prpria, isto , na medida em que ele assume a vida comosua. O si dinamismo de autoconstituio do ser vivo, a sua funoconsiste em realizar a pertena da vida ao vivo, situando-a na esferada imanncia radical. A sua qualidade basicamente afectiva, no

    moral, como em Locke.Leibniz concorda com Locke num ponto decisivo: a conscincia

    desempenha uma funo essencial na gnese e constituio da pes-

    38Mas poder-se- ainda objectar: suponhamos que eu tenha perdido comple-tamente a memria de certas partes da minha vida, bem como a possibilidade deas reencontrar, de tal maneira que talvez eu nunca mais venha a estar conscientedelas. Todavia, no sou eu a mesma pessoa que fez essas aces, que teve essespensamentos, de que eu estive consciente uma vez, se bem que agora os esqueci?Ao que eu respondo que se deve prestar aqui ateno quilo a que se aplica a pala-vra eu, que neste caso meramente o homem. E, presumindo que o mesmo homem a mesma pessoa, facilmente se supe aqui que eu significa tambm a mesma pes-

    soa. Mas, se possvel que o mesmo homem tenha, em diferentes momentos dotempo, conscincias distintas sem nada de comum entre elas, no h dvida de queo mesmo homem constituiria em momentos diferentes pessoas diferentes. (Essay,II, XXVII, 20, p. 342).

    39G. W. LEIBNIZ, Novos Ensaios sobre o Entendimento Humano, trad. A. Car-doso, Lisboa, Colibri, 1993, livro II, XXVII, p. 161.

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    soa ou do eu moral. A conscincia prova suficiente da presenada pessoa: Tambm sou dessa opinio escreve Leibniz , que aconscincia ou sentimento do eu (moi) prova uma identidade moralou pessoal. (ibid.). O cogito, interpretado como sentimento de si, uma certeza indubitvel, posto que uma percepo ntima e imediatano pode enganar naturalmente (ibid.). O estatuto do cogito comouma evidncia sensvel, uma experincia originria, uma verdade defacto, no uma proposio universal e necessria, uma tese lapidar-

    mente expressa em carta a J. Gallois40, de finais de 1672, e que semanter como uma das constantes do leibnizianismo41.

    Se a experincia imediata de si o prottipo das verdades a nossorespeito, por que razo utiliza Leibniz as expresses aparncia de sie identidade aparente, por contraposio ao si e identidade real?Leibniz joga na dualidade que ope o real e a aparncia, mas numsentido distinto do vulgar: o si aparente no um si diminudo,qual duplo enfraquecido do si real. Ao invs, o si aparente acrescentaalguma coisa ao si real, eleva-o a uma nova dimenso: Esta conti-nuao e ligao de percepes faz o mesmo indivduo realmente,

    mas as apercepes (isto , quando nos apercebemos dos sentimen-tos passados) provam alm disso uma identidade moral e fazem apa-

    40Considerando dois tipos de verdades evidentes, cuja certeza internamente ga-rantida, as verdades sensveis imediatas e as proposies idnticas, Leibniz pros-segue: Com efeito, em primeiro lugar, devem ser aceites aquelas que assentamnos sentidos, como seja que eu me sinto a mim mesmo sensiente (me me sentirisentientem). (...) eu sou um ser que sente (ego sum sensiens) (Carta a J. Gallois,A II, I, p. 227).

    41Os Novos Ensaios (1704) so tpicos a este respeito: Estou inteiramente deacordo com tudo isso. E acrescento que a apercepo imediata da nossa existn-cia e dos nossos pensamentos nos fornece as primeiras verdades a posteriori, ou

    de facto, isto , as primeiras experincias, do mesmo modo que as proposiesidnticas contm as primeiras verdades a priori, ou de razo, isto , as primeirasluzes. Umas e outras no carecem de prova e podem ser chamadas imediatas: aque-las porque h uma imediao entre o entendimento e o seu objecto, estas porqueexiste imediao entre o sujeito e o predicado. (Novos Ensaios, IV, IX, 2, p. 309).

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    recer a identidade real42. O movimento do si real ao si aparente um movimento de concreo: um si confusamente envolvido apelaa um estdio superior que o desenvolva e realize plenamente. Naformulao leibniziana, a aparncia significa apario a si prprio,no uma simples percepo, mas a apercepo de si: a identidademoral aparente a ns prprios ou aparente prpria pessoa. Aaparncia tem, pois, a significao fenomenolgica daquilo que semanifesta conscincia.

    A conscincia de si uma modalidade original do ser, irredutvel simples percepo nua ou percepo animal, mas que se ancorano si vivo: a conscincia supe o si biolgico, que se constitui aqumda conscincia. A conscincia pertena de um si que a extravasa.Por conseguinte, a pessoa unidade integradora de uma multiplici-dade de estratos da aco, dentre os quais se destaca o pensamentoconsciente. Pessoa o cume da escala da vida. Do ponto de vistanatural, no possvel a existncia de um esprito separado da mat-ria: Parece-me que defendeis, Senhor, que essa identidade aparentese poderia conservar, quando no houvesse nenhuma identidade real.

    Eu creria que isso talvez fosse possvel mediante a potncia absolutade Deus, mas segundo a ordem das coisas, a identidade aparente

    prpria pessoa, que se sente a mesma, supe a identidade real emcada passagem prxima, acompanhada de reflexo e sentimento doeu: no podendo uma percepo ntima e imediata enganar natural-mente. Se o homem pudesse ser apenas mquina e com isso ter cons-cincia , deveria ser-se da vossa opinio, Senhor; mas eu defendoque esse caso no possvel, pelo menos naturalmente.43 [itlicosmeus].

    Se o homem pudesse ser apenas mquina e com isso ter conscin-

    cia... Mas no pode. A dissociao lockiana entre homem e pessoa artificial. No logicamente absurda, mas fsica e moralmenteimpossvel: um esprito puro seria qualquer coisa de extra-ordinrio,

    42Novos Ensaios, II, XXVII, p. 162.43Novos Ensaios, II, XXVII, p. 160.

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    um prodgio cuja existncia reclamaria uma interveno especial deDeus, um verdadeiro milagre, no sentido de que algo incompatvelcom a ordem natural. Um esprito desencarnado seria um monstro eum mundo de espritos seria uma multido constituda por entidadesatmicas, sem qualquer vnculo que estabelecesse entre elas um prin-cpio de comunidade: Se houvesse apenas espritos, eles careceriamde ligao necessria44.

    No quadro do leibnizianismo, no h comunicao imediata entre

    os espritos, toda a comunicao se exercendo atravs da mediaodos rgos, ao invs da orientao tpica do cartesianismo, que tendea excluir o corpo da comunicao intersubjectiva. O mdico ocasi-onalista G. Cordemoy leva ao limite essa orientao: Pois, final-mente, o esprito deve aperceber mais facilmente um pensamento,que uma coisa espiritual, do que o signo desse pensamento, jque esse signo uma coisa corporal. Assim, julgo que para os es-pritos muito mais natural manifestarem-se (se manifester), isto, comunicarem-se os seus pensamentos por si mesmos e sem ne-nhuns signos, do que falarem-se (se parler), isto , comunicarem-

    se os seus pensamentos atravs de signos, que so de uma naturezamuito diferente da dos pensamentos45.

    O estilo de relao entre a alma e o corpo um dos pontos maiscaracteristicamente leibnizianos e onde melhor se evidencia a pro-cura de uma via original entre monismo e dualismo. Corpo e almacopertencem-se originariamente. A alma princpio imanente de

    44Ensaios de Teodiceia, art. 120. Leibniz reafirma a mesma ideia no art. 200desta obra: Mas o Sr. Diroys pretende que, se Deus produzisse sempre o melhor,produzir outros deuses; a no ser assim, cada substncia que ele produzisse noseria nunca a melhor nem a mais perfeita. Mas ele engana-se, em virtude de noconsiderar a ordem e a ligao das coisas. Se cada substncia isoladamente tomadafosse perfeita, elas seriam todas semelhantes, o que no conveniente nem poss-vel. Se fossem deuses, no teria sido possvel produzi-los. Logo, o melhor sistemadas coisas no conter deuses; ser sempre um sistema de corpos, isto , de coisasdispostas segundo os lugares e os tempos, e de almas que representam e apercebmos corpos, e segundo as quais os corpos so em boa parte governados.

    45G. CORDEMOY, Discours physique de la parole, p. 61.

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    composio de um organismo dotado de espontaneidade e finalidadeintrnseca; pela ligao a um corpo singular que a alma se deter-mina e que ela representa o mundo exterior: Alm disso, sendo maisproximamente expressa a massa organizada, na qual est o ponto devista da alma, e encontrando-se reciprocamente pronta a agir por simesma, segundo as leis da mquina corporal, no momento em quea alma o quer, sem que uma perturbe as leis da outra, tendo entoos espritos e o sangue justamente os movimentos que lhes so ne-

    cessrios para responder s paixes e s percepes da alma, essarelao mtua previamente regulada em cada substncia do universo,que produz aquilo a que chamamos a sua comunicao e s ela operaa unio entre a alma e o corpo46. O corpo mediador universalde ordem, sem a ligao a um corpo, os espritos seriam como quedesertores da ordem geral47.

    A unio entre o corpo e a alma um caso especial do exerccioda expresso que regula todo o universo leibniziano. A universali-dade da expresso significa que h uma correspondncia entre todasas coisas, que tudo conspira: Uma coisa exprime uma outra (na mi-

    nha linguagem) quando h uma relao constante e regrada entre oque se pode dizer duma e da outra. assim que uma projeco deperspectiva exprime o seu geometral. A expresso comum a todasas formas, e um gnero do qual a percepo natural, o sentimentoanimal e o conhecimento intelectual so espcies.48

    Todos os seres exprimem um mesmo mundo, que fazem variarsegundo o modo peculiar da sua expresso. No que respeita entre-expresso do corpo e da alma, eles simbolizam um com o outro. Maisexplicitamente, a operao do corpo e da alma uma s (tudo o quese passa na alma se exprime igualmente nos rgos), comportando

    duas dimenses distintas: ... as funes da alma so sempre acom-panhadas pelas funes dos rgos, que lhes devem responder, e isso

    46Systme nouveau, 14.47GP VI, p. 546.48Carta a Arnauld, 9. 10. 1687, GP II, p. 112.

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    e ser sempre recproco49.O acto da vida a percepo, entendida como dinamismo de

    ajustamento e entre-expresso. conscincia da sua prpria percep-o chama Leibniz apercepo e um atributo dos seres racionais.No entanto, o si um estrato mais arcaico e que apangio de todosos seres. A vida subjectividade, isto , experincia de si. Desde oseu nvel mais elementar, o ser vivo afectado pelo mundo do qualparticipa e tambm pelo seu prprio acto, que integra no campo da

    sua vivncia. A auto-afeco originria do vivo d-se sob a formapassiva do afecto. No h percepo afectivamente neutra, toda apercepo comporta uma tonalidade afectiva: Creio que no h per-cepes que nos sejam completamente indiferentes, mas basta queo seu efeito no seja notvel para que as possamos chamar assim,j que o prazer ou a dor parece consistir numa ajuda ou num im-pedimento notvel50. O sentimento de prazer-dor desempenha umpapel fundamental na regulao da actividade do percipiente e no seumodo de adeso vida, originando resistncias e bloqueamentos ouestimulando a aco.

    Somos levados, assim, a uma nervura fundamental do pensa-mento leibniziano: o modo de articulao entre percepo e apetio.Numa primeira leitura, a apetio parece vazia, sem uma significaoe funo especfica, designando a simples transio de percepo empercepo. A exegese leibniziana inclinou-se nessa direco, mastrata-se, julgo, de uma leitura dificilmente sustentvel. Com efeito, aapetio a aco do princpio interno segundo o qual as percepesnascem do fundo do prprio ser: A aco do princpio interno queopera a mudana ou a passagem de percepo em percepo podechamar-se apetio51. A apetio opera a mediao entre estado e

    processo, um aspecto intrnseco da percepo, o seu aspecto ten-dencial. A apetio o lado invisvel da operao, inapreensvel a

    49GP VI, p. 533.50Novos Ensaios, II, XX, pp. 109-110.51Monadologia, 15.

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    um olhar objectal, pr-intencional, a orientao do fluxo perceptivosegundo uma dinmica prpria.

    Tomemos um exemplo banal: aconteceu-me agora fixar esta ca-neta, a minha caneta mais habitual. Algo me levou a fixar o olharnela e no em tantos outros objectos possveis da minha ateno. En-quanto a fixo, a cor do meu mundo torna-se mais viva e diversificada,pelo que a minha experincia actual ganha uma nova intensidade. Apercepo da minha caneta no se esgota na pura actualidade da pre-

    sena. Mesmo sabendo que a minha caneta mais do que um objectofsico, que ela transporta uma carga emocional, h no fenmeno dasua percepo algo mais do que eu posso tematicamente apreender.De facto, cada um dos nossos actos perceptivos apoia-se em camadasde ns mesmos e da nossa vivncia, que so invisveis percepovulgar. Como Leibniz bem viu, a percepo de um determinado ob-jecto no um acontecimento pontual, o seu modo particular e a suaqualidade so o resultado de uma teia complexa de pequenas per-cepes insensveis que envolvem todo o pequeno mundo que mesingulariza.

    No prefcio dos Novos Ensaios, Leibniz evidencia a fora dessaspercepes insensveis que ocorrem permanentemente em ns e cujafuno absolutamente relevante. Elas ocupam um lugar mediadorentre o acto e a pura potncia, so o nvel disposicional do agir, onde

    fora e sentido entroncam um no outro.As pequenas percepes insensveis so a efectividade da vida

    no seu fluxo espontneo. Conferem unidade srie das nossas per-cepes, superando o carcter pontual e descontnuo da apercepoconsciente. Por seu intermdio, gera-se a unidade de tal modo que opresente condensa os diferentes momentos de uma mesma vida per-

    ceptiva e rene a infinidade de relaes que a atravessam: Estaspequenas percepes, mediante as suas sequncias, tm uma efic-cia maior do que se pensa. So elas que formam este no sei qu,estes gostos, estas imagens das qualidades dos sentidos, claras noconjunto, mas confusas nas partes, estas impresses que corpos cir-

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    cundantes exercem sobre ns, que envolvem o infinito, esta ligaoque cada ser tem com todo o resto do universo. Pode inclusivamentedizer-se que, em consequncia destas pequenas percepes, o pre-sente est grvido do futuro e carregado do passado, que tudo cons-pirante (

    s m p n o i a p n t a , como dizia Hipcrates) e que na menor das

    substncias, dois olhos to penetrantes como os de Deus poderiamler toda a sequncia das coisas do universo52.

    A espontaneidade do acto perceptivo exprime-se atravs de uma

    reflexividade mediante a qual uma percepo percepo de outrapercepo ao infinito. Esta reflexo natural pela qual se conservauma mesma vida, objecto de um verdadeiro espanto por parte deLeibniz: Parece-me sumamente admirvel a operao do espritoquando penso que penso e, no decurso do pensamento, noto logoque penso a respeito do meu pensamento, e pouco depois admiroesta triplicao da reflexo: seguidamente apercebo-me de que meadmiro e no sei como admiro a prpria admirao, e maravilhadocom uma nica contemplao, entro cada vez mais em mim mesmoe eu prprio elevo ao esprito os meus pensamentos53.

    A reflexividade, porm, no tudo: por si s, ela no gera novi-dade e poderia significar a reiterao indefinida de uma mesma per-cepo, uma metonmia interminvel e incomodamente montona.Continuidade, mas tambm mudana. As pequenas percepes soigualmente denominadas variaes insensveis porque, ao opera-rem o acomodamento entre a alma e o corpo e o seu ajustamento aomundo circundante, elas representam a determinabilidade do ser, oafecto em estado puro, no sentido leibniziano de uma protodetermi-nao originariamente diferenciadora dos seres: Notei ainda que,em virtude das variaes insensveis, duas coisas individuais no po-

    deriam ser perfeitamente semelhantes, e que devem diferir mais doque numero, o que destri as tabuinhas vazias da alma, uma alma sempensamento, uma substncia sem aco (...) e mil outras fices que

    52Novos Ensaios, prefcio, p. 30.53De reminiscentia, A VI, III, p. 516.

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    derivam das suas noes incompletas54.Uma dessas muitas fices que derivam das noes incompletas

    a de uma liberdade abstracta e ideal, como se a vontade se deter-minasse no vazio. No lxico leibniziano, uma noo incompleta aquela que decorre da definio nominal de uma coisa, sem elucidara sua gnese e o modo efectivo do seu exerccio. Assim, a com-preenso da liberdade exige a elucidao da gnese da vontade e doseu modo de determinao. A focagem leibniziana no incide, pois,

    sobre uma faculdade nua e indiferente, mas sobre uma potncia dis-posta a agir e permanentemente solicitada pela representao de umainfinidade de bens. Por conseguinte, a noo de livre arbtrio, consi-derado como a possibilidade de a vontade se decidir indiferentementepor tal ou tal acto, inteiramente quimrica e absurda.

    A vontade uma potncia que se encontra s no ser racional, masela no surge do nada: responde ao apetite natural do vivo, que lhe anlogo e a antecipa. Consequentemente, a vontade aprofunda eintensifica a espontaneidade natural, que eleva ao plano da liberdade,definida como espontaneidade do ser racional (spontaneitas intelli-

    gentis). Adequadamente considerada, a liberdade real no assenta naabsoluta indeterminao da vontade, mas em disposies internas:A raiz da liberdade est nas disposies originrias55.

    Demarcando-se da tendncia para elaborar uma moral de tipogeomtrico-dedutivo, Leibniz funda-a em dispositivos intrnsecos aosujeito moral e que respondem a uma finalidade imanente. Dentre es-ses dispositivos que so denominados instintos , Leibniz relevaa tendncia para seguir a alegria e evitar a tristeza56.

    54Novos Ensaios, prefcio, p. 31.55Radix libertatis est in dispositionibus primitivis. (De dispositionibus inter-

    nis, Grua I, p. 327).56 absolutamente impossvel que haja verdades de razo to evidentes como asidnticas ou imediatas. E, se bem que se possa dizer verdadeiramente que a moraltem princpios indemonstrveis e que um dos primeiros e mais prticos que sedeve seguir a alegria e evitar a tristeza, preciso acrescentar que isso no umaverdade que seja conhecida puramente de razo, j que ela se funda na experincia

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    Enquanto tal, a vontade inclinao para o que se lhe apresentacomo bem57. Pela prpria natureza, a vontade segue sempre a re-presentao mais vantajosa, a qual, porm, no meramente intelec-tual, para ela concorrendo mltiplas percepes confusas, que nocontrolamos: Pela minha parte, no obrigo a vontade a seguir sem-pre o juzo do entendimento, j que distingo esse juzo dos moti-vos que derivam das percepes e inclinaes insensveis. Mas de-fendo que a vontade segue sempre a representao mais vantajosa,

    distinta ou confusa, do bem e do mal, que resulta das razes, paixese inclinaes58.

    Ser livre determinar-se a si mesmo por razes, paixes e incli-naes. O sujeito moral age pela conscincia que tem da situao eda qual faz parte o modo de implicao do sujeito nessa mesma situ-ao. A conscincia, e designadamente a conscincia moral, tudomenos transparente a si mesma, revelando-se incapaz de se aperceberdo jogo completo pelo qual o esprito se determina internamente: Ese nem sempre notamos a razo que nos determina, ou antes, pelaqual ns nos determinamos, isso deve-se a que somos igualmente

    incapazes de nos apercebermos de todo o jogo do nosso esprito edos seus pensamentos, o mais das vezes imperceptveis e confusos,quanto somos incapazes de destrinar todas as mquinas que a na-tureza faz jogar no corpo59. Reside a o carcter labirntico da li-berdade: a conscincia pela qual o sujeito moral orienta a sua ac-o forma-se nele insensvel e inconscientemente, incorporando todauma zona obscura ligada ao corpo e aos automatismos psquicos. Aconscincia no consciente de si, do modo como progressivamenteela prpria se forma. O solo no qual se desenvolve a conscincia

    interna, ou em conhecimentos confusos, pois no se sente o que a alegria ou a

    tristeza. (Novos Ensaios, I, II, p. 57)57(...) neste sentido geral, pode dizer-se que a vontade consiste na inclinaopara fazer alguma coisa na proporo do bem que encerra. (Teodiceia, art. 22, GPVI, p. 116).

    58Teodiceia, GP VI, p. 413.59Novos Ensaios, II, XXI, p. 120.

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    o da crena, que incorpora a memria vivida do sujeito e no ape-nas os argumentos racionais: Contudo, v-se por a que, consistindotoda a crena na memria da vida passada, das provas e das razes,no est no nosso poder nem no nosso livre arbtrio crer ou no crer,dado que a memria no uma coisa que dependa da vontade60. Talcomo a memria, tambm a conscincia no depende do sujeito: estno nosso poder fazer o que queremos, mas no querer o que que-remos, porquanto a crena escapa ao controle da vontade racional.

    Na expresso lapidar de Leibniz, a conscincia no est no nossopoder61.

    3. Concluso

    Leibniz apresenta-nos uma concepo dinmica do inconsciente,identificado com um plano incessante de actividade irreprimvel, pri-mordial e prvia conscincia. Tal concepo solidria do es-foro leibniziano de reforma da metafsica, em especial da noo desubstncia, que reinterpretada luz da analogia com o eu.

    A questo do eu longamente debatida entre Leibniz e Arnauldna correspondncia subsequente redaco do Discurso de Metaf-sica (1686). Para o telogo e gramtico de Port-Royal, o eu significaa permanncia de uma mesma identidade substancial, que no afec-tada pelas mudanas que possam ocorrer nela. Que eu seja padre ecelibatrio ou mdico e pai de filhos, que faa ou no uma certa vi-agem, so acidentes extrnsecos que em nada alteram a substnciado eu62. Seria assim, replica Leibniz, se o eu fosse uma noo in-

    60Novos Ensaios, IV, I, p. 253.61(...) conscientia non est in potestate (Definitiones cogitationesque metaphy-

    sicae, A VI, IV, p. 1394).62Estou seguro de que, enquanto penso, eu sou eu. Mas posso pensar que farei

    tal viagem ou que no a farei, permanecendo seguro de que nem uma coisa nema outra impedir que eu seja eu. Considero, portanto, muito seguro que nenhumadelas est includa na noo individual do meu eu. (Carta de Arnauld a Leibniz,13. 05. 1686, GP II, p. 33).

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    completa, isto , uma entidade abstracta dotada de uma essncia fixa, maneira das entidades matemticas, v. g. a esfera, cuja anlisepode ser levada at ao fim: incompleta porque inefectiva63 . O eu o prottipo do ser completo: uma substncia com a totalidade dosacidentes de que pode ser sujeito activo ou passivo. O eu contm en-volvidamente o infinito, um ponto de vista singular de um mesmouniverso comum. Por conseguinte, a definio do eu como um esp-rito leibnizianamente insuficiente porque ela no elucida o que faz

    a singularidade de cada eu: Para entender o que o eu, no bastaque eu me sinta uma coisa que pensa, seria preciso conceber distin-tamente o que me diferencia de todos os outros espritos possveis;mas disso tenho apenas uma experincia confusa64.

    Mas disso eu tenho s uma experincia confusa, porque me sinto,mas no tenho uma ideia distinta de mim prprio. A ipseidade do eu de um tipo diferente da identidade substancial: consiste em peque-nas variaes insensveis, que escapam percepo e conscincia.Essas variaes so imperceptveis e inconscientes porque se situamnum plano arcaico, so pura energia disponvel, pronta a responder

    ao modo de afeco do si, qualidade da sua vivncia subjectiva.Afecto a designao leibniziana para esse ponto de variao: Oafecto a determinao do esprito (animi) a pensar uma coisa depreferncia a outras65.

    Dizer eu nascer, assumir como sua uma vida que se desenrolaem ns e cuja vibrao mais ntima se revela como surpresa, transioinexplicvel, aparente desordem. Mesmo no mbito do pensar raci-

    63 Finalmente, estou de acordo que, para julgar acerca da noo de uma subs-tncia individual, bom consultar a que eu tenho de mim mesmo, tal como sedeve consultar a noo especfica da esfera para julgar acerca das suas proprieda-

    des. Se bem que se trate de casos muito diferentes, porque a noo de eu e dequalquer outra substncia individual infinitamente mais extensa e mais difcil decompreender do que uma noo especfica como a da esfera, que meramenteincompleta. (Carta a Arnauld, GP II, p. 45).

    64Carta a Arnauld, de Junho de 1686, GP II, pp. 52-53.65De affectibus, Grua II, p. 525.

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    onal, o mais decisivo passa-se em ns como que apesar de ns mes-mos. Leibniz exprime lapidarmente esta condio passiva do sujeitodo saber, arrastado no fluxo de uma vida pensante labirinticamenteexuberante: ... fui insensivelmente conduzido a um sentimento queme surpreendeu, mas que se apresenta como inevitvel e que tem, defacto, grandes vantagens e belezas muito considerveis66.

    66Systme Nouveau, 14.

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    SIGLAS E ABREVIATURAS

    A LEIBNIZ, Gottfried Wilhelm Smtliche Schriften und Briefe.Herausgegeben von der Deutschen Akademie der Wissenschaften zuBerlin, Darmstadt, 1923 segs, Leipzig, 1938 segs, Berlin, 1950 segs.(A referncia ser feita em trs nmeros: srie, tomo, pgina).

    GP LEIBNIZ, Gottfried Wilhelm Die philosophischen Schriften.Ed. C. I. Gerhardt, 7 vols. Berlin, 1857-1890. Reimp. Hildesheim,1965.

    Grua LEIBNIZ, Gottfried Wilhelm Textes indits daprs lesmanuscrits de la Bibliothque provinciale de Hanovre. Ed. G. Grua,2 vols. Paris, 1948.

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