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NÚMERO 48 * AGOSTO DE 2014 ARTIGOS * ENSAIO SOBRE OS REQUISITOS SUBSTANTIVOS DA OPA CONCORRENTE * RECONFIGURAÇÃO DO CONSENSUALISMO CONTRATUAL: AS AÇÕES TITULADAS NOMINATIVAS E OS LIMITES À TRANSMISSÃO ANOTAÇÃO A ACÓRDÃO * CONTRATO DE SWAP E ALTERAÇÃO DE CIRCUNSTÂNCIAS CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS

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1 : CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS

NÚMERO 48 * AGOSTO DE 2014

ARTIGOS

* ENSAIO SOBRE OS REQUISITOS SUBSTANTIVOS

DA OPA CONCORRENTE

* RECONFIGURAÇÃO DO CONSENSUALISMO CONTRATUAL:

AS AÇÕES TITULADAS NOMINATIVAS

E OS LIMITES À TRANSMISSÃO

ANOTAÇÃO A ACÓRDÃO

* CONTRATO DE SWAP E ALTERAÇÃO DE CIRCUNSTÂNCIAS

CADERNOS

DO MERCADO

DE VALORES

MOBILIÁRIOS

2 : CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS

CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS

N.º 48

AGOSTO DE 2014

3 : CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS

EDITORIAL 05

ARTIGOS:

ENSAIO SOBRE OS REQUISITOS SUBSTANTIVOS DA OPA CONCORRENTE 09

Miguel Stokes

RECONFIGURAÇÃO DO CONSENSUALISMO CONTRATUAL:

AS AÇÕES TITULADAS NOMINATIVAS E OS LIMITES À TRANSMISSÃO 35

Maria Mimoso e Ricardo Rodrigues

ANOTAÇÃO A ACÓRDÃO:

CONTRATO DE SWAP E ALTERAÇÃO DE CIRCUNSTÂNCIAS

- ANOTAÇÃO AO ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA,

PROCESSO N.º 1387/11.5TBBCL.G1.S1 63

Pedro Gonzalez e João Ventura

ÍNDICE

4 : CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS

EDITORIAL

5 : CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS

EDITORIAL

A edição n.º 48 dos Cadernos do Mercado de

Valores Mobiliários contém dois artigos de na-

tureza jurídica e uma anotação a um Acórdão

do Supremo Tribunal de Justiça.

O primeiro artigo aborda a matéria dos requisi-

tos substantivos das ofertas públicas de aquisi-

ção (OPA) concorrentes, sendo identificados o

conceito de OPA concorrente e os diversos re-

quisitos substantivos inerentes ao seu lança-

mento, designadamente os de natureza proces-

sual e material. Os fundamentos do regime

substantivo de lançamento de OPA concorrente

são discutidos, nomeadamente a dicotomia en-

tre a doutrina que estipula total liberdade subs-

tantiva da OPA concorrente face àquela em que

se impõem termos mais favoráveis para os acio-

nistas do que os da OPA original (dado que se-

rão menores os custos que os oferentes têm nu-

ma OPA concorrente em virtude de a oportuni-

dade ter sido descoberta a expensas do oferente

original). O autor não deixa de referir que a es-

tipulação de regimes muito restritos para o caso

de lançamento de OPAs concorrentes (através

da fixação de restrições ao nível do objeto da

oferta, das condições da oferta e da contraparti-

da oferecida) poderá desincentivar os potenciais

oferentes concorrentes.

No que respeita aos requisitos de natureza pro-

cessual, são descritos os diversos passos que

terão de ser percorridos desde o momento do

anúncio preliminar de OPA concorrente até à

conclusão do processo das ofertas, e que se en-

contram previstos nos artigos 185.ºA e 185.º-B

do Código dos Valores Mobiliários (Cód.VM).

Quanto aos requisitos de natureza material, o

autor identifica quatro: (i) identidade do oferen-

te; (ii) objeto da oferta; (iii) condições da oferta

e (iv) contrapartida. Assim, estão impedidas de

lançar OPA concorrente as pessoas que estejam

com o oferente inicial ou com o oferente con-

corrente em alguma das situações previstas no

artigo 20.º, n.º 1 do Cód.VM, salvo autorização

da CMVM a conceder caso a situação que de-

termina a imputação de direitos de voto cesse

antes do registo da oferta. O autor discorda com

esta disposição por não vislumbrar o incentivo

de um oferente inicial em recorrer a uma enti-

dade com ela concertada para os efeitos previs-

tos no artigo 20.º, n.º 1 do Cód.VM para, atra-

vés desta, lançar uma OPA concorrente, ao in-

vés de simplesmente rever a sua oferta inicial.

Quanto ao objeto da oferta, para o qual estipula

o Cód.VM que “as ofertas concorrentes não

podem incidir sobre quantidade de valores mo-

biliários inferior àquela que é objeto da oferta

inicial”, o autor refere que este preceito não

concretiza o princípio da melhoria progressiva

das ofertas concorrentes, sendo no entanto um

auxiliar precioso ao garantir, pelo menos, a ma-

nutenção do status quo no que concerne ao

objeto da oferta inicial. Aliás, pode até gerar

situações em que uma segunda OPA concorren-

te apresente como objeto um menor número de

ações (por exemplo as mesmas da oferta inicial)

face a uma primeira OPA concorrente, sendo

por isso mais desfavorável para a generalidade

dos acionistas (isto sem prejuízo de um preço –

contrapartida - necessariamente superior ao das

demais OPA).

No que respeita às respetivas condições, uma

oferta concorrente não pode fazer depender a

sua eficácia de uma percentagem de aceitação

por titulares de valores mobiliários ou de direi-

tos de voto em quantidade superior ao constante

da oferta inicial ou de oferta concorrente ante-

rior, salvo se essa percentagem se justificar em

função dos direitos de voto na sociedade visada

6 : CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS

EDITORIAL

já detidos pelo oferente e por pessoas que com

este estejam em alguma das situações previstas

no n.º 1 do artigo 20.º do Cód.VM. O autor re-

fere que o legislador tomou aqui uma opção

diferente da relativa ao objeto da oferta uma

vez que, ao determinar que a OPA concorrente

não deverá conter condições de sucesso menos

favoráveis do que as da oferta anterior, estabe-

lece como bitola a ter em conta pelo oferente

concorrente as condições da oferta antecedente

e não as da oferta inicial. Por fim, o autor consi-

dera que a contrapartida é o requisito principal

da OPA concorrente, por ser o principal fator de

diferenciação face à OPA original. Com efeito,

se nos demais três requisitos o legislador dispõe

no sentido de eles não serem menos favoráveis

do que os da OPA original ou os da OPA ante-

cedente, já na contrapartida o critério seguido

foi o de exigir uma melhoria do preço, pelo que

a contrapartida funciona como verdadeiro cen-

tro nevrálgico da OPA concorrente.

O segundo texto salienta a importância do con-

trato que subjaz à transmissão de direitos reais,

em particular, sobre valores mobiliários. Após

analisarem a evolução histórica do consensua-

lismo contratual, explorarem os fundamentos

dogmáticos do modelo de transmissão contratu-

al assumido pelo legislador e a sua viabilidade

no sistema jurídico global, os autores descre-

vem os principais aspetos do regime jurídico

aplicável às ações tituladas nominativas fora do

mercado regulado, em particular, os principais

limites à transmissão, enquanto instrumentos ou

barreiras ao consensualismo contratual.

Os autores referem que as ações tituladas nomi-

nativas são endereçadas pelo emitente a uma

pessoa determinada e apresentam um regime de

circulação particularmente complexo, “exigindo

a intervenção do emitente do título e do seu

titular.” Em jeito de comparação, os títulos à

ordem diferem daqueles quanto ao modo de

circulação pois circulam mediante declaração

assinada pelo titular (endosso). Os títulos ao

portador diferem dos restantes pelo facto de não

identificarem um titular; a posse define a titula-

ridade, estando, por efeito disso, a circulação

dependente da traditio – será o caso das ações

(ao portador) não depositadas.

Aplica-se à transmissão das ações – tituladas:

nominativas ou ao portador –, quando integra-

das em sistema centralizado, o disposto para as

ações escriturais integradas em sistema centrali-

zado. Nestes casos, as ações circulam – como

os escriturais – dentro do sistema através das

transferências, as vicissitudes dos valores ocor-

rem através do sistema e a legitimação decorre

do próprio sistema. Os autores destacam este

aspeto pois, na sua opinião, promana do

Cód.VM um princípio de relativa irrelevância

da forma de representação. Dito de outro modo,

independentemente da natureza jurídica do va-

lor mobiliário e correspondente forma de repre-

sentação, o que releva para efeitos de regime

aplicável é se os respetivos valores estão ou não

integrados em sistema centralizado.

O texto identifica dois tipos de limitações à

transmissibilidade das ações. As de natureza

legal, por exemplo quando o legislador, por

razões de política legislativa e procurando a

idoneidade do potencial transmissário, pode

restringir a transmissibilidade das ações. São os

casos da aquisição de participações qualificadas

em instituições de crédito ou sociedades finan-

ceiras quando sujeitas à oposição do Banco de

Portugal, e da aquisição de ações próprias.

Existem também as limitações convencionais,

7 : CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS

EDITORIAL

que podem apresentar, quanto à sua eficácia,

natureza real (resultam diretamente do contrato

de sociedade) ou meramente obrigacional

(resultam de acordos particulares celebrados

entre acionistas - acordos parassociais).

Esta edição contém ainda uma anotação a um

Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça que,

relativamente a um contrato de swap entre uma

empresa e uma instituição financeira, confir-

mou as decisões do Tribunal de 1.ª Instância

(que proferiu sentença condenatória com funda-

mento na alteração anormal das circunstâncias

em que as partes fundaram a decisão de contra-

tar) e do Tribunal da Relação de Guimarães

que, na improcedência da apelação, confirmou,

por unanimidade, a sentença recorrida da 1.ª

Instância.

8 : CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS

ARTIGOS

* ENSAIO SOBRE OS REQUISITOS SUBSTANTIVOS

DA OPA CONCORRENTE

* RECONFIGURAÇÃO DO CONSENSUALISMO

CONTRATUAL: AS AÇÕES TITULADAS NOMINATIVAS

E OS LIMITES À TRANSMISSÃO

9 : CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS

ENSAIO SOBRE OS REQUISITOS SUBSTANTIVOS

DA OPA CONCORRENTE

MIGUEL STOKES *

1. INTRODUÇÃO

O presente ensaio incide sobre a matéria da

OPA Concorrente, regulada nos artigos 185.º,

185.º-A e 185.º-B do Código dos Valores Mobi-

liários, cujo regime legal foi objeto de análise

na sessão lecionada pelo Dr. António Soares,

subordinada ao tema “OPA Concorrente” no

dia 19 de março de 2013.

Apesar de haver já, na doutrina portuguesa, au-

tores que se pronunciaram, uns com maior pro-

fundidade, outros com menor, sobre o regime

geral da OPA Concorrente em Portugal1, enten-

di, dado o interesse que esta temática me susci-

tou, bem como o conjunto de interpretações que

o regime tem levantado, debruçar-me sobre ela,

em particular, sobre os requisitos de substância

da oferta concorrente, almejando assim, de al-

gum modo, contribuir para o debate jurídico

nesta matéria.

Como ponto de partida, e como passo introdu-

tório, cumpre em primeiro lugar recordar os

conceitos de Oferta Pública, de Oferta Pública

de Aquisição e, finalmente, o conceito de OPA

Concorrente.

O conceito de oferta pública encontra-se defini-

do no artigo 109.º do Código dos Valores Mo-

biliários, que considera pública a oferta relativa

a valores mobiliários dirigida, no todo ou em

parte, a destinatários indeterminados, sendo que

esta indeterminação de destinatários não é pre-

judicada pela circunstância de a oferta se verifi-

car através de múltiplas comunicações padroni-

zadas, ainda que endereçadas a destinatários

individualmente identificados.

Adicionalmente, considera-se também pública

(i) a oferta dirigida à generalidade dos

* - Advogado, Uría Menéndez – Proença de Carvalho. Este texto foi originalmente preparado no âmbito da XVII edição da Pós-Graduação de Valores Mobiliários, organizada pelo Instituto dos Valores Mobiliários, para efeitos de obtenção do certificado de “Pós-Graduação”,

conforme estabelecido no artigo 6.º, n.º 1 do respetivo Regulamento.

A primeira referência bibliográfica será feita com indicação de autor, título, local de publicação, ano e página, sendo que as referências

posteriores serão sempre remetidas com o nome do autor e a expressão ob. cit., acompanhada do número da página correspondente.

1- Em particular, MANUEL REQUICHA FERREIRA in OPA Concorrente, Caderno dos Valores Mobiliários, Volume X, Coimbra Editora,

Lisboa, 1999; HUGO MOREDO SANTOS in Ofertas Concorrentes, Coimbra Editora, Lisboa, 2008 e PAULO CÂMARA, in, Manual da Direito dos Valores Mobiliários, II Edição, Almedina, Coimbra, 2011.

10 : CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS

acionistas de sociedade aberta2, ainda que o

respetivo capital social esteja representado por

ações nominativas; (ii) a oferta que, no todo ou

em parte, seja precedida ou acompanhada de

prospeção ou de recolha de intenções de inves-

timento junto de destinatários indeterminados

ou de promoção publicitária; e (iii) a oferta diri-

gida a, pelo menos, 150 pessoas que sejam in-

vestidores não qualificados com residência ou

estabelecimento em Portugal.

A oferta pública de aquisição, por sua vez, é a

oferta dirigida à aquisição dos valores mobiliá-

rios que dela são objeto, nos termos definidos

no artigo 173.º do Código dos Valores Mobiliá-

rios.

Finalmente, a definição de OPA Concorrente é

dada pelo artigo 185.º, n.º 1 do Código dos Va-

lores Mobiliários, quando prescreve que “a par-

tir da publicação do anúncio preliminar de

oferta pública de aquisição de valores mobiliá-

rios admitidos à negociação em mercado regu-

lamentado, qualquer outra oferta pública de

aquisição de valores mobiliários da mesma ca-

tegoria só pode ser lançada através de oferta

concorrente” , conforme regulada pelos artigos

185.º, 185.º-A e 185.º-B do Código dos Valores

Mobiliários.

2. A OPA CONCORRENTE

Conforme se pode constatar pela definição

constante do artigo 185.º, n.º 1 do Código dos

Valores Mobiliários, a OPA Concorrente cor-

responde à oferta lançada sobre (i) valores mo-

biliários de uma sociedade aberta; (ii) admitidos

à negociação em mercado regulamentado3; (iii)

quando tenha sido publicado anteriormente o

anúncio preliminar de oferta por parte de um

outro oferente; (iv) que incida sobre valores

mobiliários do mesmo emitente; e (v) com a

especificidade de serem da mesma categoria

dos valores mobiliários referido em (i).

É relativamente unânime a razão pela qual o

momento a partir do qual uma oferta pública de

aquisição se submete ao regime da Oferta Con-

corrente é o da publicação do anúncio prelimi-

nar da oferta previsto no artigo 175.º do Código

dos Valores Mobiliários.

De acordo com o citado preceito, “logo que o

oferente tome a decisão de lançamento de

oferta pública de aquisição, deve enviar

anúncio preliminar à CMVM, à sociedade

visada e às entidades gestoras dos mercados

regulamentados em que os valores mobiliários

que são objeto da oferta ou que integrem a

2- De acordo com o artigo 13.º do Código dos Valores Mobiliários, considera-se sociedade aberta “(a) a sociedade que se tenha constituído através de oferta pública de subscrição dirigida especificamente a pessoas com residência ou estabelecimento em Portugal; (b) a socieda-

de emitente de ações ou de outros valores mobiliários que confiram o direito à subscrição ou à aquisição de ações que tenham sido objeto

de oferta pública de subscrição dirigida especificamente a pessoas com residência ou estabelecimento em Portugal; (c) a sociedade emitente de ações ou de outros valores mobiliários que confiram direito à sua subscrição ou aquisição, que estejam ou tenham estado

admitidas à negociação em mercado regulamentado situado ou a funcionar em Portugal; (d) a sociedade emitente de ações que tenham

sido alienadas em oferta pública de venda ou de troca em quantidade superior a 10% do capital social dirigida especificamente a pessoas com residência ou estabelecimento em Portugal e (e) a sociedade resultante de cisão de uma sociedade aberta ou que incorpore, por

fusão, a totalidade ou parte do seu património.”

3- Não se compreende a opção do legislador em limitar a aplicação do regime da OPA Concorrente às ofertas sobre valores mobiliários

admitidos à negociação em mercado regulamentado quando o regime das OPAs se aplica a qualquer sociedade aberta. Sem nos querer-

mos alongar sobre este tema, o qual foge ao objeto específico do presente Ensaio, aproveitamos para remeter para a posição sufragada por HUGO MOREDO SANTOS, ob. cit. pp 75-76, em particular quando sustenta que “(...) não parece existir qualquer razão para que os titulares de

valores mobiliários admitidos à negociação em mercado regulamentado sejam, no que a este aspeto respeita, mais e melhor tutelados do

que os titulares da outros valores mobiliários” .

11 : CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS

contrapartida a propor estejam admitidos à

negociação, procedendo de imediato à respeti-

va publicação” .

O publicação do anúncio preliminar, por sua

vez, obriga o oferente a (i) lançar a oferta em

termos não menos favoráveis para os destinatá-

rios do que as constantes do anúncio; (ii) reque-

rer o registo da oferta no prazo de 20 dias, pror-

rogável pela CMVM até 60 dias nas oferta pú-

blicas de troca e (c) informar os representantes

dos trabalhadores ou, na sua falta, os trabalha-

dores, sobre o conteúdo dos documentos em

falta, assim que estes sejam tornados públicos.

Ora, uma vez que a publicação do anúncio pre-

liminar de oferta pública de aquisição implica,

para o oferente, a obrigação de lançar efetiva-

mente a oferta em termos não menos favoráveis

do que os constantes do anúncio preliminar,

facilmente se compreende que qualquer oferta

subsequente a esta que incida sobre a mesma

categoria de valores mobiliários da sociedade

visada seja submetida ao regime da OPA Con-

corrente, tendo o legislador, e bem, definido

como momento de desencadeamento do regime

da OPA Concorrente o da publicação do anún-

cio preliminar e não, por exemplo, o do anúncio

de lançamento, previsto no artigo 183.º do Có-

digo dos Valores Mobiliários, momento a partir

do qual a oferta fica efetivamente cristalizada4.

Com efeito, defender-se-á que, caso outra tives-

se sido a solução do legislador, se cairia no ris-

co de, após a publicação do anúncio preliminar

de oferta a lançar pelo oferente A, o oferente B

procedesse imediatamente à publicação também

do seu anúncio preliminar, beneficiando segui-

damente de condições mais favoráveis para ob-

tenção do registo da oferta - inter alia, da não

sujeição a autorizações regulatórias - para, ob-

tendo o registo da oferta mais rapidamente do

que A, adiantar-se a este no anúncio de lança-

mento da oferta, assim transferindo para A a

sujeição ao regime da Oferta Concorrente

(figurando assim B como oferente inicial).

Esta situação poderia dar-se caso, por exemplo,

B estivesse sujeito a um menor número, ou a

um conjunto menos complexo de autorizações

regulatórias - maxime, caso não estivesse sujei-

to à emissão de decisão de não oposição por

parte da Autoridade da Concorrência - que lhe

permitissem um procedimento mais célere para

o registo da oferta, assim prejudicando o ofe-

rente A, que se veria, a meio do jogo, deparado

com um regime mais restrito para o lançamento

da sua oferta, com o qual teria necessariamente

de se conformar5.

O limite temporal até ao qual será aplicável a

uma oferta subsequente o regime da OPA Con-

corrente está, por sua vez, estabelecido no arti-

go 185.º-A, n.º 1 do Código dos Valores Mobi-

liários, que estipula que “a oferta concorrente

deve ser lançada até ao 5.º dia anterior àquele

em que termine o prazo da oferta inicial” , pres-

crevendo, por sua vez, o n.º 2 do mesmo artigo

que “é proibida a publicação de anúncio preli-

minar em momento que não permita o cumpri-

mento do prazo referido no número anterior” .

Verifica-se, assim, que o anúncio de lançamen-

to da OPA Concorrente deve ser publicado no

4- Com efeito, é com a publicação do anúncio de lançamento que a oferta é efetivamente lançada, passando o oferente a encontrar-se numa situação de sujeição (ao invés da situação de obrigação de lançamento da oferta em que se encontra desde a publicação do anúncio prelimi-

nar e até à publicação do anúncio de lançamento, fruto da promessa pública de que procederia ao lançamento de uma OPA em termos não

menos favoráveis do que os vertidos no anúncio preliminar), apenas lhe sendo possível revogar a oferta nos casos restritos previstos no artigo 128.º do Código dos Valores Mobiliários. No entanto, dado o grau de vinculação que o oferente desde logo assume com o anúncio

preliminar, é este o momento escolhido para o desencadeamento do regime da Oferta Concorrente.

5- Sem prejuízo, naturalmente, da aplicabilidade ao caso do artigo 128.º, ex vi artigo 185.º-B, n.º 4 do Código dos Valores Mobiliários.

ENSAIO SOBRE OS REQUISITOS SUBSTANTIVOS DA OPA CONCORRENTE : 11

12 : CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS

prazo acima referido, o que obrigará assim a

que todos os passos anteriores a este - publica-

ção de anúncio preliminar, entrega de pedido de

registo e registo da OPA Concorrente - terão de

ser obtidos em momento tal que assegure o

cumprimento deste prazo por parte do oferente

concorrente.

Feita esta exposição inicial acerca da opção do

legislador quanto às circunstâncias em que uma

oferta pública de aquisição ficará sujeita ao re-

gime da OPA Concorrente, cumprirá agora

avançar para a análise detalhada de cada um

dos requisitos substantivos da Oferta Concor-

rente, bem como tecer conclusões acerca da

viabilidade dos mesmos para a maximização do

bem-estar dos sujeitos envolvidos, designada-

mente, os acionistas da sociedade visada, a pró-

pria sociedade visada e o mercado em geral.

Para este efeito, distinguimos os requisitos da

OPA Concorrente de acordo com a seguinte

dicotomia: por um lado, os requisitos

“processuais” - relativos ao conjunto de passos

que terão de ser percorridos, desde o momento

do anúncio preliminar de OPA Concorrente até

à conclusão do processo das ofertas, e que se

encontra previsto nos artigos 185.ºA e 185.º-B

do Código dos Valores Mobiliários -, que não

serão tratados no presente ensaio -; e os requisi-

tos substantivos da oferta - que respeitam aos

elementos “materiais” da OPA Concorrente -,

previstos no artigo 185.º, n.ºs 2 a 6 do Código

dos Valores Mobiliários, e a cuja análise proce-

deremos em 5 infra.

3. OS FUNDAMENTOS DO REGIME

SUBSTANTIVO DA OPA CONCORRENTE

Antes de passarmos à parte nuclear do ensaio,

importa previamente refletir sobre os funda-

mentos que estão na base da definição de um

regime jurídico específico para a OPA Concor-

rente.

Muitos autores portugueses já se debruçaram

sobre esta temática, inspirados em parte pela

análise económica do direito e por opiniões de

autores estrangeiros, por forma a determinarem

quais os vetores principais que devem presidir à

arquitetura de um regime de OPA Concorrente,

e àquele que terá - ou deveria ter - sido o pensa-

mento do legislador português na definição do

regime aplicável.

A este respeito, o primeiro vetor a considerar

concerne a valores constitucionais como a liber-

dade de iniciativa privada, a livre concorrência

e a igualdade, princípios basilares do capitalis-

mo, nos quais se alicerçam as raízes do Estado

de Direito.

À luz destes princípios, tende a defender-se

uma regulamentação mínima da OPA Concor-

rente ao nível da substância, defendendo-se as-

sim que a mesma tenha o conteúdo que o ofe-

rente concorrente lhe queira atribuir, por sua

conta e risco6, sem qualquer tipo de imposição

legal em matéria de objeto da oferta, condições

de eficácia, sucesso ou contrapartida.

Por outra banda, argumentos existem a favor da

definição de um regime legal que promova o

caráter mais favorável de qualquer OPA Con-

corrente em relação à oferta inicial, não só com

fundamento na promoção do valor para os acio-

nistas da sociedade visada, mas também com o

fundamento de que os menores custos que os

oferentes concorrentes têm no lançamento da

OPA Concorrente, por a oportunidade ter sido

descoberta às custas oferente inicial - com os

custos de monitorização e auditoria que lhe te-

rão estado associados -, e que justificam que

qualquer oferente concorrente tenha o ónus de,

6- Pois, caso a sua oferta for menos favorável que a antecedente, as hipóteses de sucesso serão objetivamente inferiores.

13 : CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS

em compensação pelos menores custos com o

lançamento da oferta, lançar uma OPA Concor-

rente que importe uma melhoria objetiva das

condições da oferta inicial, desde logo ao nível

da contrapartida oferecida, assim restabelecen-

do o equilíbrio entre as posições do oferente

inicial e do oferente concorrente.

Ambas as doutrinas terão razão de ser. A pri-

meira, por se basear no princípio da livre con-

corrência, tem sido recebida com maior apreço.

Porém, é inegável que tal liberdade de estipula-

ção dos termos da OPA Concorrente poderá

enfraquecer a posição do oferente inicial e con-

sequentemente servir de desincentivo ao lança-

mento de OPAs, com o correspondente prejuízo

para os acionistas da sociedade visada, para a

própria sociedade visada e para o mercado em

geral7.

Com efeito, se o oferente inicial souber, no mo-

mento em que vai lançar a oferta inicial, que se

encontra sujeito ao lançamento de uma OPA

Concorrente sem qualquer limite quanto ao

objeto, condições e contrapartida, terá com cer-

teza menos incentivos a avançar com a oferta,

face à maior probabilidade de esta vir a ser

“desafiada”.

Em oposição, a estipulação de regimes muito

restritos para o caso de lançamento de OPAs

Concorrentes, com a fixação de restrições ao

nível do objeto da oferta, das condições da ofer-

ta e da contrapartida oferecida, poderão, por seu

turno, desincentivar os potenciais oferentes

concorrentes, que poderão, em função da exi-

gência do regime que lhes é imposto, optar por

não lançar uma OPA Concorrente, a qual seria

certamente lançada se tal regime restritivo não

se aplicasse.

4. REQUISITOS SUBSTANTIVOS DA OPA

CONCORRENTE

Conforme já enunciado no ponto 3 supra, a de-

finição de OPA Concorrente que nos é dada

pelo artigo 185.º, n.º 1 do Código dos Valores

Mobiliários tem um caráter formal/

procedimental, determinando um momento a

partir do qual o lançamento de uma oferta pú-

blica de aquisição está sujeito a um conjunto

adicional de regras que visam acomodar a situa-

ção de concorrência que se criou.

Podemos identificar quatro requisitos substanci-

ais da OPA Concorrente, quanto a (i) identidade

do oferente; (ii) objeto da oferta; (iii) condições

da oferta e (iv) contrapartida.

No que concerne à (i) identidade do oferente,

preceitua o artigo 185.º, n.º 3 do Código dos

Valores Mobiliários que “não podem lançar

OPA Concorrente as pessoas que estejam com

o oferente inicial ou com o oferente concorren-

te anterior em alguma das situações previstas

no artigo 20.º, n.º 1 do Código dos Valores Mo-

biliários, salvo autorização da CMVM a conce-

der caso a situação que determina a imputação

dos direitos de voto cesse antes do registo da

oferta” .

No que tange o (ii) objeto da oferta, determina

o artigo 185.º, n.º 4 do Código dos Valores Mo-

biliários que “as ofertas concorrentes não po-

dem incidir sobre quantidade de valores mobi-

liários inferior àquela que é objeto da oferta

inicial” .

No que respeita, por sua vez, a (iii) condições

da oferta, o artigo 185.º, n.º 6 do Código dos

Valores Mobiliários estipula que “a oferta

concorrente não pode fazer depender a sua

7- Com efeito, a não se potenciar o lançamento de OPAs, está automaticamente a restringir-se a existência de OPAs Concorrentes que, estando dependentes das primeiras, beneficiarão com um regime favorável ao lançamento de OPAs.

ENSAIO SOBRE OS REQUISITOS SUBSTANTIVOS DA OPA CONCORRENTE : 13

14 : CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS

eficácia de uma percentagem de aceitações por

titulares de valores mobiliários ou de direitos

de voto em quantidade superior à constante da

oferta inicial ou de oferta concorrente anterior,

salvo se essa percentagem se justificar em fun-

ção dos direitos de voto na sociedade visada já

detidos pelo oferente e por pessoas que com

este estejam em alguma das situações previstas

no artigo 20.º, n.º 1 do Código dos Valores Mo-

biliários” . Adicionalmente, o artigo 185.º, n.º 5

determina que a OPA Concorrente não pode

conter condições que a tornem menos favorável

do que a oferta antecedente, seja ela a oferta

inicial ou uma OPA Concorrente anterior.

Finalmente, e talvez o mais importante dos re-

quisitos, pelo menos pela visibilidade que tem e

pela importância que lhe é dada pelos destinatá-

rios da oferta, em particular dos investidores

não qualificados8, temos a (iv) contrapartida,

em relação à qual o artigo 185.º, n.º 5 do Códi-

go dos Valores Mobiliários estipula que a mes-

ma deverá ser superior à da oferta antecedente

em pelo menos 2% do respetivo valor.

4.1 A Identidade do Oferente Concorrente

4.1.1 O artigo 20.º, n.º 1 do Código dos Valores

Mobiliários

O regime da OPA Concorrente fixa uma impor-

tante limitação subjetiva quanto à habilitação

para o lançamento de OPA Concorrente, ao de-

terminar que ficam impedidos de lançar OPA

Concorrente as pessoas que estejam com o ofe-

rente inicial ou com o oferente concorrente em

alguma das situações previstas no artigo 20.º,

n.º 1 do Código dos Valores Mobiliários, salvo

autorização da CMVM, a conceder caso a situa-

ção que determina a imputação de direitos de

voto cesse antes do registo da oferta.

O artigo 20.º, n.º 1, conforme descrito infra,

tem o propósito de “imputar ao participante os

direitos de voto cujo exercício se considere ser

por ele influenciado ou influenciável, já no uso

de alguma faculdade jurídica, já num plano

puramente fático” 9.

Cumpre, no entanto, suscitar se a opção do le-

gislador nesta matéria faz sentido, ou se a mera

remissão para as causas de imputação do artigo

20.º, n.º 1 do Código dos Valores Mobiliários

correspondam uma excessivo zelo do legislador

no estabelecimento de restrições relativas à

identidade do oferente concorrente.

De acordo com o citado artigo, no cômputo das

participações qualificadas consideram-se, além

das inerentes às ações de que o participante te-

nha a titularidade ou o usufruto, os direitos de

voto:

a) Detidos por terceiros em nome próprio,

mas por conta do participante;

b) Detidos por sociedade que com o partici-

pante se encontre em relação de domínio

ou de grupo;

c) Detidos por titulares do direito de voto,

com os quais o participante tenha

celebrado acordo para o seu exercício,

salvo se, pelo mesmo acordo, estiver

vinculado a seguir instruções de terceiro;

d) Detidos, se o participante for uma socie-

dade, pelos membros dos seus órgãos de

administração e de fiscalização;

e) Que o participante possa adquirir em

virtude de acordo celebrado com os

respetivos titulares;

8– O conceito de “investidor não qualificado” resulta da interpretação a contrario do artigo 30.º do Código dos Valores Mobiliários.

9- CARLOS OSÓRIO DE CASTRO, Imputação de Direitos de Voto no Código dos Valores Mobiliários, in Cadernos do Mercado de Valores

Mobiliários, n.º 7, Lisboa, abril de 2000.

15 : CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS

f) Inerentes a ações detidas em garantia pe-

lo participante ou por este administradas

ou depositadas junto dele, se os direitos

de voto lhe tiverem sido atribuídos;

g) Detidos por titulares do direito de voto

que tenham conferido ao participante

poderes discricionários para o seu exercí-

cio;

h) Detidos por pessoas que tenham celebra-

do algum acordo com o participante que

vise adquirir o domínio da sociedade ou

frustrar a alteração de domínio ou que, de

outro modo, constitua um instrumento de

exercício concertado de influência sobre

a sociedade participada;

i) Imputáveis a qualquer das pessoas referi-

das numa das alíneas anteriores por apli-

cação, com as devidas adaptações, de

critério constante de alguma das outras

alíneas.

Antes de nos debruçarmos sobre esta temática,

cumpre referir que a interpretação que a doutri-

na portuguesa tem feito deste artigo tem sido

tendencialmente restritiva10, havendo uma efeti-

va propensão para limitar a aplicação dos fato-

res de imputação do referido preceito àquelas

em que a imputação se dê a título subjetivo, e,

dentro desta área, às causas de imputação cons-

tantes dos pares de alíneas c), h) e b), d).

Esta questão acaba por ser tanto mais importan-

te se verificarmos que a autorização da CMVM

para o lançamento de OPA Concorrente, nos

casos em que o oferente concorrente esteja com

o oferente inicial em algum dos casos previsto

no artigo 20.º, n.º 1 do Código dos Valores

Mobiliários, apenas pode ser conferida caso “a

situação que determina a imputação de direitos

de voto cesse antes do registo da oferta” 11.

Esta solução legal, da qual discordamos, está

aliás em contraposição com o seu antecedente

artigo 561.º, n.º 3 do saudoso Código do Merca-

do dos Valores Mobiliários, o qual atribuía à

CMVM a faculdade de fazer, in casu, um juízo

de razoabilidade da inibição de lançamento de

OPA Concorrente por serem imputados ao ofe-

rente concorrente os votos do oferente inicial na

sociedade visada12.

(A) Razão de Ordem

Permitimo-nos, relativamente à limitação subje-

tiva constante do artigo 185.º, n.º 3 do Código

dos Valores Mobiliários, chamar ao presente

ensaio as palavras de MANUEL REQUICHA

FERREIRA, quando refere que “o telos do actual

artigo 185.º, n.º 3, funda-se não só na necessi-

dade de evitar uma revisão encapotada da ofer-

ta, tal como postulavam AUGUSTO TEIXEIRA GAR-

CIA e RAÚL VENTURA GARCIA à luz do Cód.MVM,

mas também no intuito de assegurar a transpa-

rência e bom funcionamento do processo de

OPA, uma vez que, para os acionistas, em

particular para os pequenos investidores da

sociedade visada, seria confuso, pouco claro e

destituído de sentido que a mesma pessoa, sin-

gular ou colectiva, estivesse, de forma directa

ou indirecta, a avaliar a empresa por valores

díspares13”.

10- MANUEL REQUICHA FERREIRA, ob. cit, pp 231 e ss.; JOÃO SOARES DA SILVA, Algumas Observações em Torno da Tripla Funcionalidade da Técnica de Imputação de Votos no código dos Valores Mobiliários, in Caderno dos Valores Mobiliários, n.º 7, abril de 2007, pp. 55-57.

11- Parece-nos altamente discutível o mérito de se retirar à CMVM o poder de determinar se, no caso concreto, se justifica a aplicação da presente limitação. Com efeito, ao conferir à CMVM esta possibilidade de escrutínio, o legislador teria conferido à norma uma plasticidade

que lhe permitiria adaptar-se mais facilmente a cada caso concreto, sendo o oferente subsequente admitido a lançar OPA Concorrente

quando a CMVM concluísse não estar verificada qualquer circunstância que o devesse impedir, com todos os benefícios daí resultantes para acionistas da sociedade visada, própria sociedade visada e mercado em geral.

12- De acordo com o artigo 561.º, n.º 3 do Código do Mercado de Valores Mobiliários “salvo autorização devidamente fundamentada da CMVM, que só concederá em casos excepcionais em que o considere justificado, não podem lançar uma oferta concorrente as pessoas que

actuem em concertação com o oferente, ou como mandatários do oferente, da oferta inicial ou de uma oferta concorrente anterior” .

13- MANUEL REQUICHA FERREIRA, ob. cit. pp. 231.

ENSAIO SOBRE OS REQUISITOS SUBSTANTIVOS DA OPA CONCORRENTE : 15

16 : CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS

O objetivo que subjaz à norma é assim o de evi-

tar que o oferente inicial procure, ardilosamen-

te, chamar a si o regime jurídico da OPA Con-

corrente, ao invés de se sujeitar às regras que

regulam a OPA em termos estritos14.

Para este efeito, o legislador, à cautela, recorreu

à cláusula que lhe dava maiores garantias quan-

to a este aspeto - o artigo 20.º, n.º 1 do Código

dos Valores Mobiliários, aqui, na sua terceira

funcionalidade técnica15 - sem ter cuidado de

verificar se cada uma das alíneas aí previstas

justificava a sua aplicação na presente matéria.

(B) A lógica de as causas de imputação do

artigo 20.º, n.º 1 do Código dos Valores

Mobiliários constituírem restrição subjetiva ao

lançamento de OPA Concorrente

Como nota preliminar, podemos desde já afian-

çar que, em nossa opinião, não se justifica que

todas as cláusulas de imputação de direitos de

voto vertidas no artigo 20.º, n.º 1 do Código dos

Valores Mobiliários sirvam de restrição ao lan-

çamento de uma OPA Concorrente, ainda para

mais nos termos absolutos em que tal inibição é

definida, sem que a CMVM possa fazer, in

casu, um juízo quanto à suscetibilidade de a

OPA Concorrente constituir uma manobra en-

genhosa do oferente inicial para recorrer, por

intermédio de um terceiro, ao regime legal pre-

visto no artigo 185.º, 185.º-A e 185.º-B do

Código dos Valores Mobiliários.

Com efeito, os prejuízos que o legislador visou

evitar com a consagração desta restrição: (i) a

tentativa de manipulação, pelo oferente inicial,

das regras da revisão da oferta, através da utili-

zação de entidade com quem está conluiada,

para o lançamento de OPA Concorrente e (ii) a

eventual confusão criada nos destinatários da

oferta, que se veriam perante a circunstância de

terem uma oferta inicial e uma OPA Concorren-

te lançadas por duas entidades que estão con-

certadas; não se fazem sentir na esmagadora

maioria dos casos previstos nas alíneas do arti-

go 20.º, n.º 1 do Código dos Valores Mobiliá-

rios.

Este excessivo número de fatores de restrição

subjetiva do lançamento de OPAs Concorrentes

é tanto mais nefasto se se atender a que os be-

nefícios para os acionistas da sociedade, para a

própria sociedade visada e para o mercado em

geral do lançamento de OPAs Concorrentes em

muito ultrapassam os prejuízos resultantes da

eventual manipulação de regime e da confusão

criada nos destinatários da OPA Concorrente

relativamente à identidade dos oferentes.

Relativamente à questão da manipulação do

regime legal, não vemos qual possa ser o inte-

resse objetivo do oferente inicial em lançar uma

OPA Concorrente através do participante em

nome do qual detém as ações, para fugir ao re-

gime “geral” da OPA, em particular ao regime

de revisão da oferta previsto no artigo 184.º.

Com efeito, atendendo ao regime de revisão da

oferta estabelecido nos artigos 184.º e 185.º, n.º

1-B - este último aplicável apenas quando haja

ofertas em concorrência - conclui-se que o lan-

çamento de uma OPA Concorrente implicará

até um conjunto de ónus adicionais em relação

à revisão da oferta inicial, como sejam o da ela-

boração e publicação de um prospeto adicional

e da ultrapassagem de uma nova fase de registo

da oferta, o que torna a OPA Concorrente num

14- Analisaremos mais adiante que motivações (se algumas) poderão existir para que um oferente inicial procure recorrer ao regime da OPA Concorrente ao invés de atuar de acordo com as regras aplicáveis à oferta inicial (sobretudo, em matéria de revisão da oferta).

15- A este respeito, ver JOÃO SOARES DA SILVA, ob. cit., pp. 55-57.

17 : CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS

procedimento que não se coaduna com tentati-

vas de manipulação do regime da oferta inicial

(designadamente, da sua revisão), a qual benefi-

cia de regras menos rígidas do que a OPA Con-

corrente, inutilizando assim, em termos lógicos,

a proibição de lançamento da OPA Concorrente

àqueles que estejam com o oferente inicial em

qualquer das situações de imputação de direitos

de voto previstas no artigo 20.º, n.º 1 do Código

dos Valores Mobiliários.

Pelo exposto, não se descortina qual poderá ser

o incentivo de um oferente inicial em recorrer a

uma entidade com ele concertada para os efei-

tos previstos no artigo 20.º, n.º 1 do Código dos

Valores Mobiliários para, através desta, lançar

uma OPA Concorrente, ao invés de simples-

mente rever a sua oferta inicial.

Cumpre referir, no entanto, que o presente

entendimento assenta no facto de, em nossa

opinião, o artigo 184.º n.º 1 do Código dos

Valores Mobiliários não estabelecer limites ao

número de vezes que a oferta inicial pode ser

revista16. Caso o entendimento fosse o de que o

artigo 184.º, n.º 1 do Código dos Valores Mobi-

liários apenas permite uma revisão, a utilização

pelo oferente inicial de um terceiro para, atra-

vés dele, recorrer ao regime de OPA Concor-

rente permitiria “ultrapassar” a limitação ao

número de revisões da oferta estabelecida no

artigo 184.º, n.º 1 do Código dos Valores Mobi-

liários, havendo assim uma razão lógica para se

promover uma manipulação do regime da OPA

Concorrente. Sem prejuízo do exposto, entende-

mos que esta interpretação não encontra, hoje

em dia, qualquer apoio na letra da lei.

Tendo em consideração o sobredito, e fazendo a

análise autónoma de cada uma das alíneas do

artigo 20.º, n.º 1 do Código dos Valores Mobi-

liários como fatores de inibição subjetiva do

lançamento de OPAs Concorrentes, extraímos

as seguintes conclusões:

a) Direitos de voto detidos por terceiros em

nome próprio, mas por conta do partici-

pante

A presente causa de imputação dirige-se,

primacialmente, aos casos em que uma pes-

soa jurídica detenha ações em nome de ou-

tra, sempre com o propósito de conceder

primazia à titularidade fático-económica e

de frustrar a manobra consistente na disper-

são das ações por vários sujeitos17.

Será este o caso, por exemplo, de alguém

assumir a qualidade de sócio de uma socie-

dade votando em assembleia-geral e rece-

bendo os dividendos por conta e no interesse

de outrem, verdadeiro beneficiário económi-

co da participação18.

Não vemos que a presente causa de imputa-

ção justifique, à luz do artigo 185.º, n.º 3 do

Código dos Valores Mobiliários, que o bene-

ficiário económico das ações da sociedade

visada seja impedido de lançar uma OPA

Concorrente caso o oferente inicial seja o

detentor das referidas ações, reproduzindo-

se para este efeito o nosso entendimento

16- Neste sentido, MANUEL REQUICHA FERREIRA ob. cit. pp. 397 e ss.

17- CARLOS OSÓRIO DE CASTRO, ob. cit. pp 188-190.

18- JOÃO MATTAMOUROS REZENDE, A Imputação de Direitos de Voto no Mercado de Capitais, in Cadernos do Mercado de Valores

Mobiliários, n.º 7, Lisboa, abril de 2006.

ENSAIO SOBRE OS REQUISITOS SUBSTANTIVOS DA OPA CONCORRENTE : 17

18 : CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS

expresso em 4.1.1 (B).

b) Direitos de voto detidos por sociedade

que com o participante se encontre em rela-

ção de domínio ou de grupo

A presente causa de imputação será aquela

que, a nosso ver, mais facilmente será aceite

como causa de inibição de um participante

de lançamento de uma OPA Concorrente.

De acordo com o artigo 21.º, n.º 1 do Código

dos Valores Mobiliários “considera-se rela-

ção de domínio a relação existente entre

uma pessoa singular ou coletiva e uma soci-

edade quando, independentemente de o do-

micílio ou a sede se situar em Portugal ou

no estrangeiro, aquela possa exercer sobre

esta, direta ou indiretamente, uma influência

dominante” . De acordo com o n.º 2 do mes-

mo artigo “existe, em qualquer caso, relação

de domínio quando uma pessoa singular ou

colectiva (a) disponha da maioria dos direi-

tos de voto; (b) possa exercer a maioria dos

direitos de voto, nos termos de acordo pa-

rassocial; (c) possa nomear ou destituir a

maioria dos titulares dos órgãos de adminis-

tração ou de fiscalização” . Finalmente, o n.º

3 do mesmo artigo determina que

“consideram-se em relação de grupo as so-

ciedades como tal qualificadas pelo Código

das Sociedades Comerciais, independente-

mente de as respetivas sedes se situarem em

Portugal ou no estrangeiro” .

Caso o oferente concorrente seja uma socie-

dade que se encontra em relação de domínio

ou grupo com o oferente inicial, existe, com

efeito, uma relação de identidade entre am-

bas as entidades, a qual pode assim ser en-

tendida como um método de subversão das

regras relativas à revisão da oferta inicial,

com a consequência adicional de poder con-

fundir os destinatários da oferta, os quais se

verão perante duas ofertas distintas apresen-

tadas, em termos substanciais, pela mesma

entidade jurídica19.

Consideramos assim ser justificável, à luz da

presente alínea, a inibição, por parte do par-

ticipante, da faculdade de lançamento de

OPA Concorrente, devendo neste caso, em

contrário, ser promovida a revisão da oferta

por parte do oferente inicial, nos termos do

artigo 184.º do Código dos Valores Mobiliá-

rios, sem prejuízo do que já referimos a

respeito da (i)lógica de se preferir o regime

da OPA Concorrente ao regime da oferta

inicial.

c) Direitos de voto detidos por titulares do

direito de voto com os quais o participante

tenha celebrado acordo para o seu exercí-

cio, salvo se, pelo mesmo acordo, estiver

vinculado a seguir instruções de terceiros

Quanto a esta causa de imputação, que parte

da doutrina tem considerado que não deverá

constituir fator de inibição do lançamento,

pelo participante, de uma OPA Concorren-

te20, a nossa posição vai também no sentido

da sua irrelevância para efeitos do artigo

185.º, n.º 3 do Código dos Valores Mobiliá-

rios.

Com efeito, não vemos de que modo é que

um acordo de voto celebrado entre oferente

inicial e oferente concorrente relativamente

ao exercício de direitos de voto em assem-

bleias gerais da sociedade visada deverá

constituir fator de inibição de lançamento,

por este último, de OPA Concorrente.

19- Em certos casos essa confusão poderá existirá inclusivamente ao nível da firma.

20- MANUEL REQUICHA FERREIRA, ob. cit pp 232.

19 : CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS

Atente-se no seguinte exemplo: os direitos

de voto de A na sociedade B estão imputa-

dos a C por força de um acordo de voto para

designação dos administradores. Fará senti-

do que C seja impossibilitado, pela existên-

cia desse acordo, de lançar uma OPA Con-

corrente sobre a sociedade B quando esteja

pendente uma oferta de A?

Não se vê qual o prejuízo que daí poderia

resultar para os acionistas da sociedade visa-

da. Bem pelo contrário, o estabelecimento

desta restrição impossibilitaria os acionistas

da sociedade visada de obterem uma contra-

partida superior pelas suas ações, e de a pró-

pria sociedade visada vir a ser controlada por

um acionista que, atribuindo à sociedade um

valor superior, teria a expetativa de, obtido o

controlo, alcançar uma produtividade, ou

sinergias, superiores às que o oferente inicial

poderia obter.

Note-se que, a não se interpretar o artigo

185.º, n.º 3, no sentido de excluir a alínea c)

do artigo 20.º, n.º 1 do Código dos Valores

Mobiliários, um acordo de voto entre o ofe-

rente inicial e um acionista da sociedade vi-

sada que disponham, por absurdo que possa

ser, de 0,01% dos direitos de voto cada, se-

rão suficientes para inibir o referido acionis-

ta de lançar uma OPA Concorrente21.

A conclusão a que se chega neste ponto é

assim a mesma a que se chegou quanto à

alínea (a) supra, a de que não se justifica que

a presente causa de imputação desencadeie a

inibição de lançamento, pelo participante, de

OPA Concorrente, quando lhe sejam imputa-

dos os votos do oferente inicial.

d) Direitos de voto detidos, se o participante

for uma sociedade, pelos membros dos seus

órgãos de administração e de fiscalização

Relativamente à presente causa de imputa-

ção, consideramos, uma vez mais, que não

se justifica que a mesma implique a impossi-

bilidade de lançamento, por um administra-

dor ou membro do conselho de fiscalização

do oferente inicial, de uma OPA Concorren-

te.

Com efeito, uma vez mais deverão ser feitos

valer os argumentos expostos em 4.1.1 (B),

bem como a posição vertida supra relativa-

mente à causa de imputação (c).

Admitimos contudo, neste ponto, que a iden-

tidade do oferente possa, neste caso, gerar

confusão nos destinatários da oferta, que se

veriam perante (i) uma oferta inicial lançada

pela sociedade e (ii) uma OPA Concorrente

lançada pelo seu administrador ou membro

do órgão de fiscalização22.

Ainda assim, com base nos argumentos ex-

postos em 4.1.1 (B), somos levados a con-

cluir no sentido da aceitação da OPA Con-

corrente que seja lançada por quem esteja

com o oferente inicial em relação de imputa-

ção ao abrigo da alínea d) do artigo 20.º, n.º

1, sem prejuízo das cautelas levantadas su-

pra quanto à confusão que tal situação po-

derá criar nos destinatários da oferta.

e) Direitos de voto que o participante possa

adquirir em virtude de acordo celebrado

com os respetivos titulares

Relativamente à presente alínea, não nos

parece razoável que o facto de um partici-

21- Este argumento é meramente acessório, pois que a nossa conclusão é a de que independentemente da percentagem de direitos de voto

objeto de imputação, as mesmas não deverão servir de entrave ao lançamento de uma OPA Concorrente.

22- Sobretudo pela falta de nexo que representará um membro de um órgão de administração ou fiscalização da sociedade estar a concorrer com esta no processo de oferta para aquisição da sociedade visada, sem prejuízo da violação dos deveres fundamentais de administradores

e membro do órgão de fiscalização que muito provavelmente resultaria dessa conduta.

ENSAIO SOBRE OS REQUISITOS SUBSTANTIVOS DA OPA CONCORRENTE : 19

20 : CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS

parece razoável que o facto de um partici-

pante ter celebrado com o oferente inicial,

por exemplo, um contrato de opção de com-

pra de ações da sociedade visada - ou um

contrato-promessa de compra e venda23 -,

possa servir de inibição do lançamento, por

este último, de uma OPA Concorrente, cujos

benefícios foram já elucidados em 4 supra.

A existência, por exemplo, de uma opção de

compra, não obstante gerar a imputação de

direitos de voto, por se assumir que o titular

de opção poderá influenciar, de algum mo-

do, o exercício dos direitos de voto da con-

traparte, não parece justificar a inibição do

optante de lançar uma OPA Concorrente.

No nosso entendimento, não há qualquer

razão de regime que justifique que se iniba

um optante, promitente-comprador ou com-

prador com reserva de propriedade de lançar

uma OPA Concorrente quando a sua contra-

parte tenha lançado a oferta inicial.

f) Direitos de voto inerentes a ações detidas

em garantia pelo participante ou por este

administradas ou depositadas junto dele, se

os direitos de voto lhe tiverem sido atribuí-

dos

No presente caso, não vemos por que razão a

causa de imputação deverá constituir fator

de inibição, por parte do participante, do

lançamento de OPA Concorrente.

Atente-se no presente exemplo: A, com uma

participação numa sociedade X com ações

admitidas à negociação em mercado regula-

mentado, contrai um financiamento junto do

banco B, em garantia do qual constitui pe-

nhor sobre ações correspondentes a 1%24 do

capital social da sociedade X, sendo o direito

de voto sobre essas ações atribuído ao banco

B.

Caso A lance uma OPA sobre a sociedade de

telecomunicações, B deverá ficar impedido

de lançar OPA Concorrente? De acordo com

a interpretação declarativa do artigo 185.º,

n.º 3 do Código dos Valores Mobiliários, B

estaria, à luz do artigo 185.º, n.º 3 do Código

dos Valores Mobiliários, efetivamente inibi-

do de lançar OPA Concorrente.

Ora estamos em crer que, nesta circunstân-

cia, como nas circunstâncias tratadas em (a),

(c), (d) e (e), a aplicação tout court da restri-

ção subjetiva constante do artigo 185.º, n.º 3

do Código dos Valores Mobiliários tem co-

mo consequência o prejuízo (i) para os acio-

nistas da sociedade visada, que vêm negada

a possibilidade de venderem as suas partici-

pações a um oferente diferente por uma con-

trapartida superior, (ii) da sociedade visada,

que poderia ser gerida pelo oferente concor-

rente, com os potenciais benefícios daí de-

correntes conforme referido em (C) supra e

(iii) para o próprio mercado em geral, sem

que, em contrapartida, a aplicação da restri-

ção permita algum tipo de benefício para os

sujeitos envolvidos.

A conclusão quanto a este ponto será assim a

de que a presente causa de imputação de di-

reitos de voto não deverá servir de restrição

ao participante para o lançamento de OPA

Concorrente.

23- CARLOS OSÓRIO DE CASTRO, ob. cit, pp. 188-190.

24- A escolha da percentagem de 1% é meramente aleatória, pois, o nosso entendimento é o mesmo, independente da percentagem de

direitos de voto objeto de imputação.

21 : CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS

g) Direitos de voto detidos por titulares do

direito de voto que tenham conferido ao par-

ticipante poderes discricionários para o seu

exercício

Aplica-se, mutatis mutandis, o raciocínio

explanado em (A) supra, dando-se por repro-

duzida a conclusão a que chegámos nesse

ponto.

h) Direitos de voto detidos por pessoas que

tenham celebrado algum acordo com o par-

ticipante que vise adquirir o domínio da so-

ciedade ou frustrar a alteração de domínio

ou que, de outro modo, constitua um instru-

mento de exercício concertado de influência

sobre a sociedade participada

Quanto à presente causa de imputação, re-

metemos para o que foi dito quanto à alínea

(c) supra, sendo assim nossa opinião que a

existência deste fator de imputação não justi-

fica a inibição de um participante, que com o

oferente tenha celebrado um acordo com

uma das finalidades aqui referidas relativa-

mente à sociedade visada, vir a lançar uma

OPA Concorrente.

Com efeito, apesar de no presente caso esta-

rem em causa, designadamente, acordos pa-

rassociais, bem como a concertação de com-

portamentos, nomeadamente na convocató-

ria, aposição de pontos à ordem de trabalhos

e exercício de sentido de direito de voto em

deliberações da assembleia geral, ou em ou-

tros atos sociais nos quais os acionistas con-

certados intervenham, consideramos que se

poderá aplicar o mesmo raciocínio exposto

em (c) supra, por estar em causa a definição

de comportamentos futuros com relevância

para a sociedade, pelo que a presente alínea

deverá igualmente ser excluída da limitação

genérica que se encontra prescrita no artigo

185.º, n.º 3 do Código dos Valores Mobiliá-

rios.

i) Direitos de voto imputáveis a qualquer

das pessoas referidas numa das alíneas

anteriores por aplicação, com as devidas

adaptações, do critério constante de alguma

das outras alíneas

Relativamente a esta última alínea, a conclu-

são será, na maioria dos casos, negativa, pois

apenas uma das causas de imputação supra

referidas foi identificada como fator razoá-

vel de inibição da possibilidade de lança-

mento de OPA Concorrente - a causa de im-

putação constantes da alínea (b) do artigo

20.º, n.º 1 do Código dos Valores Mobiliá-

rios.

4.1.2 A OPA Concorrente à luz do artigo 186.º

do Código dos Valores Mobiliários

Ultrapassada a análise do requisito subjetivo

imposto pelo regime da OPA Concorrente, e

com conclusões que postulam por uma interpre-

tação mais lata ou, idealmente, uma alteração

da redação do preceito legal em causa, e que

têm o condão de favorecer a proliferação de

OPAs Concorrentes; cumpre agora analisar ou-

tra questão que se pode colocar nesta temática,

e que diz respeito à aplicabilidade, ao oferente

concorrente, da limitação imposta pelo artigo

186.º do Código dos Valores Mobiliários.

De acordo com o referido preceito “salvo auto-

rização concedida pela CMVM para proteção

dos interesses da sociedade visada ou dos des-

tinatários da oferta, nem o oferente nem qual-

quer das pessoas que com este estejam em al-

guma das situações previstas no n.º 1 do artigo

20.º podem, nos 12 meses seguintes à publica-

ção do apuramento do resultado da oferta, lan-

çar, diretamente, por intermédio de terceiro ou

por conta de terceiro, qualquer oferta pública

de aquisição sobre os valores mobiliários per-

tencentes à mesma categoria dos que foram

objeto da oferta ou que confiram direito à sua

ENSAIO SOBRE OS REQUISITOS SUBSTANTIVOS DA OPA CONCORRENTE : 21

22 : CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS

subscrição ou aquisição” .

Cumpre saber, contudo, se esta limitação se

aplica em caso de OPA Concorrente, isto é, se

uma pessoa que caia na previsão do artigo 186.º

poderá, caso um outro oferente lance uma OPA

sobre a mesma sociedade visada, lançar OPA

Concorrente sobre essa mesma sociedade.

A questão não parece ser de resposta fácil. Com

efeito, a ratio que subjaz a esta limitação tem

por objetivo evitar distorções de mercado, no-

meadamente que o oferente, através de um con-

junto de OPAs sucessivas e sem qualquer sus-

cetibilidade de sucesso, limite sucessivamente a

atuação da sociedade visada, subjugando-a aos

deveres e limitações impostos pelos artigos

181.º e 182.º do Código dos Valores Mobiliá-

rios, respetivamente, ao mesmo tempo que cria

confusão nos acionistas da sociedade, presente-

ados sucessivamente com ofertas que poderão

ser completamente descabidas em termos de

contrapartida oferecida.

Ora, atenta a ratio da disposição, conclui-se que

a aplicação da mesma não reveste lógica no

caso de o “inibido” pretender lançar uma OPA

Concorrente.

Com efeito, na medida em que (i) o oferente

inicial não está sujeito à regra do artigo 186.º do

Código dos Valores Mobiliários e que (ii) o

regime da oferta concorrente obriga a OPA

Concorrente a ser lançada em termos não me-

nos favoráveis do que a oferta inicial, e com

uma contrapartida superior em pelo menos 2%

à oferta antecedente; não se justifica impedir

que seja lançada OPA Concorrente por quem já

tenha lançado nos últimos 12 meses uma OPA

sobre a mesma sociedade visada.

Admitimos que este entendimento, visto de de-

terminados prismas, possa parecer desprovido

de sentido. Com efeito, a aceitar-se esta possibi-

lidade, criar-se-ia a circunstância de o “inibido”

ficar dependente do lançamento de uma oferta

por outro oferente para poder, através de OPA

Concorrente, escapar às “amarras” do artigo

186.º do Código dos Valores Mobiliários. Ade-

mais, poder-se-ia dar o caso de o valor ofereci-

do pelo oferente na OPA Concorrente ser inferi-

or ao que havia sido oferecido na oferta lançada

nos doze meses anteriores - mas conforme com

o artigo 185.º, n.º 5 do Código dos Valores Mo-

biliários -, o que constituiria um desvirtuamento

do sentido material da própria norma.

Parece-nos, no entanto, que, à falta de regras

que regulem especificamente esta circunstância,

a faculdade de um oferente “inibido” poder lan-

çar uma OPA Concorrente estará dependente de

autorização da CMVM, a conceder casuistica-

mente caso conclua que a OPA Concorrente

permitiria “proteger os interesses da sociedade

visada ou dos destinatários da oferta”25.

Caberá assim à CMVM, caso o oferente

“inibido” nos termos do artigo 186.º do Código

dos Valores Mobiliários pretenda lançar uma

OPA Concorrente, avaliar se esta será benéfica

para os sujeitos supra referidos, concedendo a

autorização se a conclusão for positiva26.

Por último, importa alertar que a presente con-

clusão se encontrará, necessariamente, sujeita a

um limite, que é o de garantir que oferente ini-

cial e oferente concorrente não tiveram como

mero propósito fazer cair a limitação imposta

25- Conforme artigo 186.º do Código dos Valores Mobiliários.

26- À luz do que foi já explicado acerca do regime da OPA Concorrente, a tendência é que a resposta da CMVM seja afirmativa. Mais

dúvidas se colocam nos casos em que a contrapartida oferecida na OPA Concorrente seja inferior à contrapartida oferecida pelo oferente concorrente na oferta que realizara nos doze meses anteriores.

23 : CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS

pelo artigo 186.º do Código dos Valores Mobi-

liários.

A existência de um tal conluio será tanto mais

provável quando o oferente inicial e oferente

concorrente estejam ligados por algum dos cri-

térios de imputação de direitos de voto constan-

tes do artigo 20.º, n.º 1 do Código dos Valores

Mobiliários, ou quando exista um mero acordo

pelo qual A se comprometa perante B a lançar

uma OPA sobre C, numa altura em que B esteja

impedido de lançar OPA sobre C por efeito do

artigo 186.º do Código dos Valores Mobiliários,

com o exclusivo intuito de beneficiar da inter-

pretação por nós supra defendida.

4.2 O OBJETO DA OFERTA

4.2.1 Bitola uniforme para todos os oferentes

concorrentes

Os requisitos quanto ao objeto da OPA Concor-

rente encontram-se estabelecidos no artigo

185.º, n.º 4 do Código dos Valores Mobiliários,

o qual determina que “as ofertas concorrentes

não podem incidir sobre quantidade de valores

mobiliários inferior àquela que é objeto da

oferta inicial” .

Independentemente das razões que lhe subja-

zam, entendemos que o preceito é claro: a bitola

a tomar em consideração pelo oferente concor-

rente será sempre a oferta inicial, o que signifi-

ca que todos os oferentes concorrentes estarão,

em termos de objeto da oferta, balizados pela

mesma cifra - o objeto da oferta tal como deli-

neado pelo oferente inicial27.

Esta circunstância vem permitir, no entanto, e

como bem nota MANUEL REQUICHA FERREIRA,

que se possam gerar situações que desvirtuem o

propalado princípio da melhoria progressiva das

ofertas concorrentes28.

De acordo com este princípio, só se justifica

que uma OPA Concorrente seja admitida con-

quanto traduza uma melhoria objetiva em rela-

ção à oferta anterior, aumentando assim o po-

tencial retorno para os acionistas da sociedade

visada que vendam as suas ações.

A este argumento acrescentaríamos um outro,

que parece ter estado na mente do legislador

quando edificou o regime substantivo da OPA

Concorrente: assegurar que qualquer OPA Con-

corrente corresponderá a uma melhoria substan-

cial da oferta inicial, por forma a, de certa for-

ma, proteger a posição do oferente inicial, cuja

oferta apenas poderá ser “desafiada” por outra

que apresente termos objetivamente mais favo-

ráveis, representando um verdadeiro compro-

misso do oferente concorrente na aquisição da

sociedade visada, e não uma mera intenção

emulativa, de destruição dos objetivos do ofe-

rente inicial.

O preceito em análise, da forma como está redi-

gido, não concretiza, de per se, o princípio da

melhoria progressiva das ofertas concorrentes,

sendo no entanto um auxiliar precioso do mes-

mo, ao garantir, pelo menos, a manutenção do

status quo no que concerne ao objeto da oferta

inicial.

Note-se, no entanto, que em virtude da redação

27- Note-se, aliás, que se quisesse utilizar como bitola a oferta antecedente, como no caso do artigo 185.º, n.º 5 e 6, o legislador tê-lo-ia referido expressamente. Em sentido contrário, HUGO MOREDO SANTOS, ob. cit pp 94-95.

28- MANUEL REQUICHA FERREIRA, ob. cit pp 226-227.

ENSAIO SOBRE OS REQUISITOS SUBSTANTIVOS DA OPA CONCORRENTE : 23

24 : CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS

do preceito, poderá suceder, por exemplo, que

um primeiro oferente concorrente aumente o

objeto da oferta em 20% dos valores mobiliá-

rios, com o correspondente aumento da contra-

partida em 2%29 e que, em momento posterior,

um segundo oferente venha lançar OPA Con-

corrente sobre o mesmo objeto da oferta inicial,

acompanhada da necessária subida da contra-

partida de 2% em relação à primeira OPA Con-

corrente. Neste caso, a segunda OPA Concor-

rente será tendencialmente menos favorável do

que a primeira OPA Concorrente, pois apesar

de aumentar ligeiramente a contrapartida, dimi-

nuiria o objeto da oferta de tal modo que have-

ria um número considerável de acionistas da

sociedade visada que no caso da primeira OPA

Concorrente conseguiriam vender as suas

ações, mas que no caso da segunda OPA Con-

corrente veriam gorada essa intenção.

Sem prejuízo de, teoricamente, poder haver um

prejuízo para os acionistas pelo facto de a se-

gunda OPA Concorrente ser à partida menos

favorável do que a primeira OPA Concorrente,

a verdade é que a existência desta segunda OPA

Concorrente teoricamente não prejudica, mas

antes alarga, o leque de opções dos acionistas

da sociedade visada - que podem aceitar uma

ou outra oferta -, com os benefícios daí ineren-

tes, sem prejuízo, naturalmente, de este alarga-

mento do leque de ofertas poder implicar que,

em uma delas, ou em ambas, a condição de su-

cesso estabelecida não se verifique30.

Apesar de o preceito em análise não correspon-

der à aplicação material do princípio da melho-

ria progressiva das ofertas concorrentes, a ver-

dade é que a forma como o preceito está redigi-

do permite cumprir alguns dos desígnios do

regime da OPA Concorrente, como sejam (i) a

promoção da existência de OPAs; (ii) a promo-

ção da existência de OPAs Concorrentes e (iii)

a melhoria31 da posição dos acionistas da socie-

dade visada, da sociedade visada e do mercado

em geral.

Em relação a (i) supra, o modo como o preceito

está construído salvaguarda a posição do ofe-

rente inicial, impondo que uma OPA Concor-

rente apenas seja admitida se não for objetiva-

mente menos favorável, protegendo assim, den-

tro do possível, a posição de quem deu origem à

OPA, com os custos com a descoberta da opor-

tunidade e de auditoria prévia à sociedade visa-

da que lhe terão estado associados.

No que concerne a (ii), a promoção da existên-

cia de OPAs Concorrentes funda-se no facto de

não ser exigido o aumento do objeto da oferta,

mas somente a manutenção do objeto constante

da oferta inicial. Com esta construção, permite-

se aos oferentes concorrentes, independente-

mente da ordem por que surjam, ter como bitola

o objeto da oferta inicial, podendo assim esco-

lher qual o modo de estruturação da sua oferta

que mais facilmente captará o interesse dos aci-

onistas da sociedade visada32.

29- Conforme exigido pelo artigo 185.º, n.º 5 do Código dos Valores Mobiliários, que analisaremos infra.

30- Em última análise, o surgimento da OPA Concorrente poderá impedir que se verifiquem as condições de sucesso da oferta inicial.

Nessa circunstância, caso a OPA Concorrente não atinga, também, a condição de sucesso, as duas ofertas terão o efeito de se anularem a si mesmas.

31- Ou, pelo menos, a manutenção do status quo.

32- Isto é, se apostam em manter o objeto da oferta inicial e aumentar a contrapartida acima dos 2% exigidos pelo artigo 185.º, n.º 5 do

Código dos Valores Mobiliários ou se, ao invés, apostam, por exemplo, na extensão do objeto, acompanhada do aumento mínimo da contrapartida.

25 : CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS

Finalmente, no que diz respeito a (iii), a melho-

ria da posição dos acionistas da sociedade visa-

da, da própria sociedade visada, e do mercado

em geral é uma decorrência do referido em (i) e

(ii). Com efeito, é um dado inequívoco que a

existência de OPAs e de OPAs Concorrentes

tem o condão de melhorar a posição relativa

dos sujeitos supra identificados: (i) no caso dos

acionistas da sociedade visada, por permitir

optar entre manter a participação ou aliená-la

(muito provavelmente com um prémio face ao

valor de cotação ou valor contabilístico, conso-

ante as ações estejam ou não admitidas à nego-

ciação em mercado); (ii) no caso da sociedade

visada, por significar que há quem se proponha

adquirir essa sociedade, por a considerar um

substrato capaz de criar valor33, e (iii) no caso

do mercado em geral, por a existência de OPAs

e OPAs Concorrentes permitir a melhoria da

posição dos sujeitos supra identificados sem

implicar um correspondente prejuízo para outro

sujeito de mercado - o chamado movimento de

Pareto34.

4.2.2 Os casos em que o oferente concorrente

seja acionista da sociedade visada

Finalmente, cumpre analisar uma situação que

poderá representar uma exceção - ou, pelo me-

nos, adaptação - do que foi referido em 4.2.1

acerca do objeto da oferta.

Conforme se concluiu supra, qualquer OPA

Concorrente poderá ser lançada desde que não

incida sobre uma quantidade inferior de valores

mobiliários, ou seja, desde que o objeto seja,

pelo menos, igual.

Coloca-se, porém, a questão de saber qual o

modo de aferir do cumprimento desta disposi-

ção legal nos casos em que um dado oferente

concorrente detenha já uma participação social

na sociedade visada.

Com efeito, se o objeto de uma oferta inicial for

90% do capital social da sociedade, e um ofe-

rente concorrente detiver 10%, o objeto da sua

oferta deverá corresponder (i) a 90% do capital

social (ou seja, 100% do capital social que não

detém)? a 90% do capital social que ele não

detém, ou seja, a 81% do capital social? Ou

deverá somente ter como objeto uma percenta-

gem tal do capital social que, a final, lhe possa

granjear a mesma participação com que o ofe-

rente inicial ficaria adquirisse 90% do capital

social - i.e. 80% (a que se somam os seus

10%)?

Cremos que, para este efeito, deverá considerar-

se que o objeto da oferta inicial, para efeitos da

determinação do objeto mínimo da oferta con-

corrente, corresponde a uma percentagem do

capital social, já deduzido da participação deti-

da pelo oferente. Ou seja, se a oferta inicial in-

cidiu sobre 90% dos valores mobiliários, e o

oferente concorrente detém uma participação de

10% no capital social, considera-se a priori que

o oferente concorrente rejeitará a oferta inicial,

a qual terá assim um objeto real de 100% do

capital social adquirível. Será esta a percenta-

gem que deverá constituir objeto da OPA Con-

corrente, 100% do capital social que este não

detém, que nesta hipótese corresponde a 90%

do capital social.

Pela aplicação do mesmo método, resultará que

se o oferente concorrente detiver 20% do capi-

tal social da sociedade visada, o objeto real da

oferta inicial será somente 80% do capital soci-

al, que corresponde a 100% do capital social

33- Daí que, por regra, as sociedades cujas ações estejam admitidas à negociação em mercado, quando sejam objeto de OPA, tendem a ver a sua cotação aumentar após a publicação do anúncio preliminar, frequentemente acima do valor da contrapartida fixado no referido

anúncio.

34- PINTO BARBOSA, ANTÓNIO, in Economia Pública, McGraw Hill, Lisboa, 1997, pp. 2-3.

ENSAIO SOBRE OS REQUISITOS SUBSTANTIVOS DA OPA CONCORRENTE : 25

26 : CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS

adquirível, pois assume-se que o oferente con-

corrente rejeitaria a oferta inicial. Neste sentido,

também a OPA Concorrente deverá ter por

objeto 100% do capital social que ainda não

detém, ou seja, 80% do capital social.

Caso, por exemplo, o oferente concorrente deti-

vesse 5% do capital social e o objeto da oferta

inicial fosse 90%, o modelo de cálculo acima

proposto levaria a que o objeto da oferta inicial

fosse pelo menos 94,73% do capital social ad-

quirível35. O oferente concorrente deveria as-

sim, para que a sua OPA Concorrente fosse ad-

mitida, abranger 94,74% do capital social que

não detém, ou seja, 90% da totalidade do capi-

tal social.

Em suma, a aplicação do presente método per-

mite alcançar duas conclusões alternativas: (i)

ou o oferente concorrente detém uma participa-

ção que é igual ou inferior à diferença entre

100% e o objeto da oferta inicial (aplicável, no

caso de o objeto da oferta inicial ser de 90%, se

a participação do oferente concorrente for de

até 10%, inclusive), caso em que o objeto da

OPA Concorrente deverá ser, pelo menos, igual

ao da oferta inicial; ou (ii) o oferente concor-

rente detém um participação na sociedade visa-

da superior à diferença entre 100% e o objeto

da oferta inicial (aplicável, no caso de o objeto

da oferta inicial ser 90%, se a participação do

oferente concorrente na sociedade visada for

superior a 10%), caso em que o objeto da oferta

será a totalidade do capital social que o oferente

concorrente não detém.

Este parece ser o método que reproduz de modo

mais fidedigno os requisitos do artigo 185.º, n.º

4 do Código dos Valores Mobiliários, sendo

aquele que melhor salvaguarda a posição dos

acionistas da sociedade.

Em conclusão, o artigo 185.º, n.º 4 deverá

ser interpretado no sentido de, à semelhança

do referido no artigo 185.º, n.º 6, mutatis

mutandis36, permitir que o objeto da OPA Con-

corrente seja, em absoluto, inferior ao da oferta

inicial, quando o oferente concorrente detenha

uma participação na sociedade visada que seja

superior à diferença entre 100% do capital soci-

al e a percentagem de capital social objeto da

oferta inicial. Este raciocínio acaba por se re-

conduzir a uma conclusão simples: a de que ao

oferente concorrente não será vedado lançar

OPA Concorrente se, em virtude de ter uma

participação na sociedade visada, o objeto desta

for necessariamente inferior ao objeto da oferta

inicial.

4.3 CONDIÇÕES DA OFERTA

4.3.1 As condições de sucesso do artigo 185.º,

n.º 6 do Código dos Valores Mobiliários

No que concerne ao terceiro dos requisitos

substanciais da OPA Concorrente, relativo às

condições da oferta, estipula o artigo 185.º, n.º

6 do Código dos Valores Mobiliários que “a

oferta concorrente não pode fazer depender a

sua eficácia de uma percentagem de aceitações

por titulares de valores mobiliários ou de direi-

tos de voto em quantidade superior ao constan-

te da oferta inicial ou de oferta concorrente

anterior, salvo se, para efeitos do número ante-

rior, essa percentagem se justificar em função

dos direitos de voto na sociedade visada já de-

tidos pelo oferente e por pessoas que com este

estejam em alguma das situações previstas no

35- Pois o oferente concorrente rejeitaria a oferta na parte que incidisse sobre os 5%.

36- No caso do artigo 185.º, n.º 6 trata-se de um caso em que é o oferente inicial que já detém uma participação no capital social da socie-

dade visada, assim se permitindo que o oferente concorrente estabeleça uma percentagem mais elevada de aceitações como condição de sucesso.

27 : CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS

n.º 1 do artigo 20.º.

No presente artigo, o legislador seguiu uma ló-

gica ligeiramente diferente da descrita em 5.2

supra quanto ao objeto mínimo da OPA Con-

corrente.

Com efeito, não obstante determinar que a OPA

Concorrente não deverá conter condições de

sucesso menos favoráveis do que as da oferta

anterior, não obrigando assim a uma melhoria

substancial da oferta no que a este requisito diz

respeito, vem estabelecer como bitola a ter em

conta pelo oferente concorrente, não as condi-

ções tais como definidas na oferta inicial, mas

sim na oferta antecedente.

O legislador parece neste caso ter estado mais

de acordo com as matrizes do princípio da me-

lhoria progressiva das ofertas concorrentes, em

comparação com o regime do objeto da OPA

Concorrente, ao obrigar cada oferente concor-

rente a apresentar condições pelo menos tão

favoráveis como as da oferta antecedente, a

qual possivelmente incluirá condições mais fa-

voráveis do que as definidas na oferta inicial.

O artigo 185.º, n.º 6 do Código dos Valores

Mobiliários faz referência, em concreto, às cha-

madas condições de sucesso da OPA, que con-

substanciam percentagens mínimas da aceitação

da OPA a partir da qual esta produzirá concreti-

zar os seus efeitos.

Neste sentido, se o oferente inicial estabelecer

como condição de sucesso a obtenção de 50,1%

do capital social, nenhum oferente concorrente

poderá estabelecer uma condição de sucesso

mais elevada - i.e. tornando menos provável o

sucesso da OPA Concorrente.

Perguntar-se-á37, no entanto, se o presente pre-

ceito deve ser interpretado literalmente, ou se,

pelo contrário, deve ser interpretado no sentido

de salvaguardar o princípio da melhoria pro-

gressiva das ofertas concorrentes. Referimo-

nos, em particular, à circunstância de, em al-

guns casos, uma oferta concorrente poder inclu-

ir como condição de sucesso uma percentagem

superior de aceitações, e mesmo assim ser obje-

tivamente mais favorável do que a oferta inici-

al, como seja o caso extremo em que a oferta

inicial tenha por objeto 30% do capital e uma

condição de sucesso de 30% e uma oferta con-

corrente que tenha por objeto 100% do capital e

uma condição de sucesso de 31%.

Neste exemplo, em que a OPA Concorrente

será em princípio considerada mais favorável,

por abranger mais do triplo dos acionistas da

sociedade visada, o requisito de manutenção

das condições de sucesso da oferta antecedente

previsto no artigo 185.º, n.º 3 do Código dos

Valores Mobiliários não se encontraria cumpri-

do, com a consequente rejeição do registo da

OPA Concorrente. Cremos, contudo, que a so-

lução legal deveria permitir uma maior flexibi-

lidade na aferição do cumprimento destes requi-

sitos, nomeadamente atribuindo à CMVM a

faculdade de determinar se, em cada caso con-

creto, se justifica a sua admissão à luz da globa-

lidade dos elementos da OPA Concorrente.

Finalmente, fazemos notar que o presente pre-

ceito prevê, como exceção à obrigatoriedade de

o oferente concorrente apresentar condições de

sucesso que não sejam menos favoráveis que as

previstas em oferta antecedente, aquelas em que

uma percentagem mais elevada se justificar em

função dos direitos de voto na sociedade visada

já detidos pelo oferente ou por pessoas que com

37- Ver, neste sentido, HUGO MOREDO SANTOS, ob. cit, pp. 101.

ENSAIO SOBRE OS REQUISITOS SUBSTANTIVOS DA OPA CONCORRENTE : 27

28 : CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS

este estejam em alguma das situações de impu-

tação de direitos de voto previstas no artigo

185.º, n.º 6 do Código dos Valores Mobiliários.

Com efeito, se o oferente inicial já detinha, por

exemplo, 10% do capital social da sociedade

visada, e lança uma oferta em que a condição

de sucesso é de 40,01% de aceitações, deve ser

admitido ao oferente concorrente sujeitar a efi-

cácia da OPA Concorrente a 50,01% de aceita-

ções, percentagem que se parece justificar face

ao provável objetivo de ambos os oferentes: a

obtenção do controlo da sociedade visada.

4.3.2 As condições previstas no artigo 185.º,

n.º 5 do Código dos Valores Mobiliários

A acrescer às condições de sucesso, tratadas no

artigo 185.º, n.º 6 do Código dos Valores

Mobiliários, prevê ainda o artigo 185.º, n.º 5 do

Código dos Valores Mobiliários que a oferta

concorrente “não contenha condições que a

tornem menos favorável” .

Este número vem assim fixar um leque adicio-

nal de limitações em matéria de condições da

OPA Concorrente, determinando que, a acres-

cer às condições de sucesso, a oferta concorren-

te não poderá conter outras condições menos

favoráveis do que as estipuladas na oferta inici-

al.

As referidas condições deverão, em qualquer

caso, ser em primeiro lugar compatíveis com os

pressupostos ínsitos no artigo 124.º, n.º 3 do

Código dos Valores Mobiliários, o qual estipula

que “a oferta só pode ser sujeita a condições

que correspondam a um interesse legítimo do

oferente e que não afetem o funcionamento nor-

mal do mercado” .

Relativamente a estas condições, destacamos a

aprovação de alterações estatutárias, designada-

mente, a supressão de tetos de voto - a chamada

desblindagem de estatutos - ou a obtenção pré-

via de uma decisão de não oposição por parte

de uma entidade administrativa, designadamen-

te da Autoridade Concorrência38 ou da Comis-

são Europeia.

Fazemos notar, no entanto, que a aposição, no

anúncio preliminar de OPA Concorrente, das

condições supra referidas, apenas estará - ou só

fará sentido estar - sujeita à restrição imposta

pelo artigo 185.º, n.º 5 do Código dos Valores

Mobiliários na medida em que a sua verificação

se dê após o registo e lançamento da OPA Con-

corrente.

Com efeito, caso as referidas condições sejam

condições de lançamento39, de cuja eficácia

depende o registo e lançamento da OPA Con-

corrente, e não a eficácia da própria OPA Con-

corrente - que apenas se considera efetivamente

lançada com a publicação do anúncio de lança-

mento, após o registo da oferta - não deverão

ser sujeitas à restrição supra referida, por se

situarem em momento cronológico que ainda

não justifica a aplicação do meio de tutela pre-

visto do artigo 185.º, n.º 5 do Código dos Valo-

res Mobiliários, por não haver ainda concreta-

mente uma OPA Concorrente, mas somente

uma promessa pública do seu lançamento.

As condições relevantes para efeitos do artigo

185.º, n.º 5 do Código dos Valores Mobiliários

deverão, assim, ser somente as condições de

aquisição40, ou seja, aquelas cuja verificação

deva ocorrer em momento posterior ao anúncio

de lançamento da OPA Concorrente, apenas aí

se justificando, à luz do princípio da melhoria

38- Ver, neste sentido, HUGO MOREDO SANTOS, ob. cit. página 104, ob. cit.

39- PAULO CÂMARA, ob. cit. pág. 609.

40- Idem.

29 : CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS

progressiva das ofertas concorrentes, a proibi-

ção de aposição de condições menos favorá-

veis41.

4.4 A CONTRAPARTIDA

4.4.1 A relevância da contrapartida na OPA

Concorrente

Chegamos, por fim, ao requisito “rei” em maté-

ria de OPA Concorrente, a contrapartida.

Este requisito constitui o principal fator de dife-

renciação dos termos da OPA Concorrente em

relação à oferta inicial, por traduzir especifica-

mente o benefício que os acionistas da socieda-

de visada poderão retirar da OPA Concorrente.

Com efeito, as condições analisadas em 5.1, 5.2

e 5.3 supra mais do que não são do que meros

acessórios do verdadeiro fator de atratividade

para os acionistas da sociedade visada - a con-

trapartida que poderão obter pela venda das

suas ações na OPA.

O tratamento que é dado pelo legislador parece

ter em conta esta diferença, ao determinar, rela-

tivamente ao critério (i) da identidade do ofe-

rente concorrente; (ii) do objeto da oferta e (iii)

das condições da oferta; que estas não deverão

ser menos favoráveis do que as definidas na

oferta antecedente (exceto no caso do objeto da

oferta, em que a bitola é a oferta inicial), i.e., o

legislador procura assegurar o status quo relati-

vamente a estes elementos, sem prejuízo da

possibilidade de melhoria da oferta relativa-

mente a qualquer um deles.

Já a contrapartida funciona como verdadeiro

centro nevrálgico da OPA Concorrente, admi-

tindo assim o legislador que a contrapartida é o

principal fator a ter em consideração pelos acio-

nistas da sociedade visada, que ficam a saber

que, na medida em que os requisitos se encon-

trem preenchidos, poderão vir a obter, no míni-

mo, uma majoração da contrapartida em 2%

face à da oferta inicial42.

4.4.2 O regime da contrapartida

A regra da contrapartida na OPA Concorrente

encontra-se prevista no artigo 185.º, n.º 5 do

Código dos Valores Mobiliários, o qual prevê

que “a contrapartida da oferta concorrente deve

ser superior à antecedente em pelo menos 2%

do seu valor e não pode conter condições que a

tornem menos favorável” .

Esta exigência de majoração face à oferta inici-

al terá algumas razões de ser.

Em primeiro lugar, a necessária majoração da

contrapartida corresponde ao expoente máximo

do princípio da melhoria progressiva das ofertas

subsequentes, sinalizando assim a melhoria

objetiva da OPA Concorrente em relação à

oferta inicial.

Em segundo lugar, obriga o oferente concorren-

te a ponderar fortemente a viabilidade do lança-

mento da oferta naqueles termos, excluindo

assim - ou pelo menos mitigando - o risco de

lançamento de OPAs Concorrentes com o ex-

clusivo objetivo de (i) prejudicar o oferente ini-

cial ou (ii) de aumentar o período das ofertas,

41- Com efeito, não faz sentido contemplar no artigo 185.º, n.º 5 do Código dos Valores mobiliários condições de cuja verificação depende o registo da oferta, pois caso estas não se verifiquem não haverá lugar ao lançamento da oferta pública de aquisição concorrente, não se

chegando sequer a aplicar o regime do artigo 185.º, n.º 5 (sem prejuízo, naturalmente, do que referimos em 3 supra).

42- O valor da contrapartida, que logo no anúncio preliminar deverá corresponder a uma créscimo de 2% relativamente á oferta inicial,

poderá entretanto ser aumentado até ao anúncio de lançamento, não podendo contudo, tornar-se inferior (nos termos do artigo 176.º, n.º 2 a)

do Código dos Valores Mobiliários). Adicionalmente, este valor poderá vir a ser aumentado na pendência da oferta nos termos previstos no artigo 185.º-B, n.º 1 do Código dos Valores Mobiliários.

ENSAIO SOBRE OS REQUISITOS SUBSTANTIVOS DA OPA CONCORRENTE : 29

30 : CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS

com a correspondente extensão do período em

que a sociedade visada se encontra sujeita aos

deveres e limitações impostos pelos artigos

181.º e 182.º do Código dos Valores Mobiliá-

rios, respetivamente, com os prejuízos daí de-

correntes para a sociedade visada.

Em terceiro lugar, este regime permite tutelar

de alguma forma a posição do oferente inicial,

que teve maiores custos na identificação da

oportunidade de aquisição da sociedade visada,

com os custos de auditoria que lhe terão estado

associados, assegurando assim o legislador que

a sua oferta só terá concorrência se esta com-

portar uma contrapartida substancialmente su-

perior. A tutela do oferente inicial, que frequen-

temente tem sido criticada por implicar limita-

ções ao princípio da liberdade de iniciativa pri-

vada e de livre concorrência no mercado do

controlo societário43, tem no entanto o condão

de favorecer o lançamento de ofertas iniciais, as

quais constituem pressuposto lógico da existên-

cia de OPAs Concorrentes, cuja proliferação

não poderá ser potenciada se não for acompa-

nhada de medidas de regime que assegurem que

os incentivos ao lançamento de ofertas iniciais

não sejam comprimidos44.

O facto de o legislador exigir um aumento da

contrapartida da OPA Concorrente em pelo me-

nos 2% tem sido objeto de numerosas críticas

na doutrina que se tem pronunciado sobre o

tema, a qual tem genericamente considerado

que esta cifra poderá tornar demasiado oneroso

o lançamento da OPA Concorrente, criando-se

o risco de em alguns casos a OPA Concorrente

acabar por não ser lançada por o aumento da

contrapartida não compensar ao oferente con-

corrente, o qual até poderia estar disposto a lan-

çar uma OPA Concorrente que envolvesse a

mesma contrapartida da oferta inicial ou um

aumento da mesma em percentagem inferior

aos 2% definidos na lei ou, alternativamente,

disposto a abranger um objeto mais alargado,

mas com a contrapartida limitada à da oferta

inicial45.

Admite-se, nesta sede, que o aumento do objeto

da oferta poderá por vezes ser mais viável do

que o aumento da contrapartida. Com efeito, a

partir da avaliação que o oferente faz da socie-

dade visada, estabelece-se um limite ao mon-

tante de contrapartida que este estará disposto a

oferecer por cada ação, pois que a certo ponto a

contrapartida oferecida não será compensada

pela avaliação que o oferente concorrente faz da

ação da sociedade visada. Já no que respeita ao

aumento do objeto da oferta, o mesmo apenas

implica uma maior despesa inicial do oferente,

que será compensada pela maior participação

granjeada na sociedade visada, e na correspon-

dente maior parcela de lucros que lhe caberão.

Sem prejuízo do acima exposto, tendemos a não

concordar com as críticas feitas ao regime tal

como se encontra delineado.

Com efeito, o legislador terá partido do pressu-

posto de que até à cifra de 2%, a melhoria que

poderia advir para os acionistas da sociedade

visada pela possibilidade de venderem mais

caro, não compensaria o prejuízo que tal causa-

ria para a sociedade visada, em função do au-

mento do prazo das ofertas, nos termos do arti-

go 185.º-A do Código dos Valores Mobiliários,

com a consequente extensão dos deveres e limi-

tações impostos à sociedade visada nos termos

dos artigos 181.º e 182 do Código dos Valores

Mobiliários, respetivamente.

43- Neste sentido, MANUEL REQUICHA FERREIRA, ob. cit. pág. 248.

44- Neste sentido, PAUL DAVIES e KLAUS HOPT, in “Control Transactions, The anatomy of corporate law - a comparative and functional

approach”, Oxford University Press, Nova Iorque, 2004, pp. 137 e ss.

45- MANUEL REQUICHA FERREIRA, ob.cit., pp. 137 e ss e HUGO MOREDO SANTOS, ob.cit. pp. 105 e ss.

31 : CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS

Adicionalmente, terá também o legislador con-

siderado que a exigência deste “intervalo” míni-

mo de 2% corresponderia a uma compensação

atribuída ao oferente inicial por ter tido o esfor-

ço (financeiro) de lançamento da oferta inicial -

com os correspondentes custos de identificação

da oportunidade e de auditoria à sociedade -,

estimando em cerca de 2% do valor da oferta os

custos acrescidos em que incorreu com o lança-

mento da oferta inicial, e que deverão assim ser

também suportados pelos oferentes concorren-

tes, sob a forma de majoração obrigatória da

contrapartida da OPA Concorrente face à cifra

inscrita na oferta inicial.

A definição de uma majoração mínima compor-

ta sempre o risco de a mesma não refletir corre-

tamente o valor económico da tutela conferida

ao oferente inicial. No entanto, entendemos que

a cifra de 2% representa uma percentagem razo-

ável e adequada face aos diferentes interesses

que são dignos de tutela, os quais serão idóneos

a maximizar os benefícios gerados por estas

operações de aquisição do controlo societário.

4.4.3 A natureza da contrapartida

Uma última questão que caberá colocar-se a

respeito do requisito da contrapartida na OPA

Concorrente é se o artigo 177.º do Código dos

Valores Mobiliários, cujo n.º 1 estipula que “A

contrapartida pode consistir em dinheiro, em

valores mobiliários, emitidos ou a emitir, ou ser

mista” se aplica em toda a sua extensão ao re-

gime da OPA Concorrente por efeito do 185.º,

n.º 2, podendo a OPA Concorrente apresentar

uma contrapartida em valores mobiliários quan-

do a oferta inicial seja em dinheiro.

Esta questão é tanto mais relevante quando é

frequente a contrapartida oferecida ser total ou

parcialmente assente em valores mobiliários,

dispensando assim o oferente de transformar

esses valores mobiliários em liquidez para efei-

tos do lançamento da oferta.

Como argumentos a favor desta possibilidade

temos (i) o facto de a oferta de valores mobiliá-

rios ser uma contrapartida lícita; (ii) ser possí-

vel determinar o valor dos valores mobiliários,

nomeadamente com base nos critérios definidos

no artigo 188.º do Código dos Valores Mobiliá-

rios46 e de (iii) respeitado o aumento de 2% face

à oferta antecedente, estar preenchido o requisi-

to quantitativo definido por lei para a contrapar-

tida, com a consequente salvaguarda dos princí-

pios que lhe subjazem e que se encontram me-

lhor descritos em 5.4.2 supra.

O argumento contra seria, aqui, o de a contra-

partida em espécie poder ser considerada menos

favorável do que em dinheiro, dada a menor

liquidez que está associada aos valores mobiliá-

rios. De qualquer modo, o artigo 177.º, n.º 3 do

Código dos Valores Mobiliários, ao fixar que

“se a contrapartida consistir em valores mobi-

liários, estes devem ser de adequada liquidez e

ser de fácil avaliação” , parece aceitar que a

contrapartida em valores mobiliários, na medi-

da em que preencha estes requisitos, não deverá

ser considerada menos favorável do que a con-

trapartida em dinheiro, não procedendo assim o

argumento contra a possibilidade de a contra-

partida da OPA Concorrente ser em valores

mobiliários.

Finalmente, face ao supra exposto, concluímos

46- Com efeito, apesar de integrante do regime das ofertas públicas obrigatórias, cremos que as ferramentas de cálculo do valor equitativo da contrapartida definidas nos n.º 1 e 2 do artigo 188.º do Código dos Valores Mobiliários deverão ser aplicáveis caso se aceite, como

parece fazer sentido, que a contrapartida da OPA Concorrente seja em valores mobiliários.

ENSAIO SOBRE OS REQUISITOS SUBSTANTIVOS DA OPA CONCORRENTE : 31

32 : CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS

por maioria de razão que nada obstará a que,

sendo a oferta inicial em valores mobiliários, a

OPA Concorrente seja em dinheiro.

5. CONCLUSÃO

Feita a análise, ainda que sumária, dos quatro

requisitos substantivos da OPA Concorrente,

concluímos que, apesar das críticas que os mes-

mos têm suscitado, o modo como os mesmos

estão construídos se justifica face ao conjunto

de sujeitos cuja posição se visa tutelar.

Sem prejuízo do exposto, foram identificadas

algumas situações que, na nossa opinião, care-

ceriam de uma interpretação mais restritiva ou

extensiva - conforme os casos - do que a que

resulta da mera análise das normas relevantes

de um ponto de vista declarativo e, noutros ca-

sos, se justificaria uma revisão da própria reda-

ção das normas, por forma a melhor tutelar os

interesses da multiplicidade de sujeitos envolvi-

dos nos procedimentos de ofertas em concor-

rência.

Não pretendendo ser exaustivos, podemos sin-

tetizar alguns dos pontos que nos mereceram

reparos no regime da OPA Concorrente:

(i) Relativamente ao requisito da identidade

do oferente, concluímos que a limitação sub-

jetiva de lançamento de OPA Concorrente a

todos aqueles que se encontrem com o ofe-

rente inicial ligados, relativamente à socie-

dade visada, por alguma das causas de impu-

tação do artigo 20.º, n.º 1 do Código dos Va-

lores Mobiliários, se revela excessiva e ina-

propriada e, consequentemente, lesiva de um

regime de OPAs Concorrentes que se preten-

de o mais favorável possível ao lançamento

das mesmas. Na nossa opinião, apenas a alí-

nea b) do referido artigo constitui uma causa

de imputação que justifica a restrição de lan-

çamento de OPA Concorrente;

(ii) Ainda quanto ao ponto supra referido,

consideramos que se deveria ponderar, na

redação do preceito, a atribuição à CMVM

da capacidade de fazer, in casu, um juízo de

razoabilidade quanto à inibição de lança-

mento de uma OPA Concorrente, por estar

verificada uma das causas de imputação su-

pra referidas;

(iii) No que concerne ao requisito do objeto

da oferta, concluímos que nos casos em que

o oferente concorrente seja já acionista da

sociedade visada, se deverá ter em conta esta

especial circunstância na interpretação dos

requisitos em matéria de objeto da oferta.

Para este efeito, entendemos que: (a) no caso

em que o oferente concorrente detenha uma

participação na sociedade visada igual ou

inferior à diferença entre 100% do capital

social e o objeto da oferta inicial, o objeto da

OPA Concorrente deverá ser, pelo menos,

igual ao da oferta inicial; e (b) no caso em

que o oferente concorrente detenha uma par-

ticipação na sociedade visada superior à di-

ferença entre 100% do capital social e o

objeto da oferta inicial, o objeto da OPA

Concorrente será a totalidade do capital soci-

al restante;

(iv) Relativamente às condições de sucesso,

concluímos que em alguns casos a aplicação

literal do artigo 185.º, n.º 6 do Código dos

Valores Mobiliários poderá levar à não ad-

missão de propostas objetivamente mais fa-

voráveis, nomeadamente quando a OPA

Concorrente englobe um objeto mais alarga-

do, ao qual depois associe uma condição de

sucesso ligeiramente mais elevada. Nestas

situações, consideramos que se justificaria a

atribuição à CMVM do poder de, em cada

caso concreto, verificar se é razoável a ad-

missão da OPA Concorrente, ainda que sem

conformidade estrita com as exigências do

artigo 186.º, n.º 6 do Código dos Valores

Mobiliários;

33 : CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS

(v) Ainda relativamente às condições da

oferta, mas agora às estipuladas no artigo

185.º, n.º 5 do Código dos Valores Mobiliá-

rios, entendemos que o preceito legal apenas

se refere às condições de aquisição, e não às

condições de lançamento, uma vez que estas

últimas terão necessariamente de se verificar

antes da publicação do anúncio de lança-

mento, devendo assim considerar-se subtraí-

das às restrições impostas pelo referido pre-

ceito legal;

(vi) No que tange ao principal requisito de

substância da OPA Concorrente - a contra-

partida - entendemos que a exigência de ma-

joração da contrapartida na OPA Concorren-

te em 2% relativamente à oferta inicial se

justifica face aos diferentes sujeitos que es-

tão em causa e aos diferentes interesses que

são dignos de tutela, os quais serão idóneos a

maximizar os benefícios gerados por estas

operações de aquisição do controlo societá-

rio;

(vii) Finalmente, concluímos que, à luz do

artigo 177.º do Código dos Valores mobiliá-

rios, ex vi artigo 185.º n.º 2, se aceita a pos-

sibilidade de a contrapartida da OPA Con-

corrente ser em valores mobiliários se a

oferta inicial tiver sido em dinheiro, na me-

dida em que os mesmos cumpram os requisi-

tos impostos pelo artigo 177.º, n.º 3 do Códi-

go dos Valores Mobiliários. Adicionalmente,

propomos que a avaliação dos valores mobi-

liários dados em contrapartida seja feita com

base no método previsto nos n.ºs 1 e 2 do

artigo 188.º do Código dos Valores Mobiliá-

rios.

Terminado este breve ensaio, o qual apenas se

deteve sobre uma parcela do regime da OPA

Concorrente, resta agora aguardar pelo apareci-

mento de mais OPAs, e com elas, OPAs Con-

correntes, no mercado de capitais português,

para que o debate sobre esta temática se possa

desenvolver, e se possam “fechar” alguns dos

pontos em aberto e algumas incongruências

que permanecem, por forma a que o regime

legal permita a maximização dos benefícios

gerados nos intervenientes do mercado de

controlo societário.

ENSAIO SOBRE OS REQUISITOS SUBSTANTIVOS DA OPA CONCORRENTE : 33

34 : CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS

BIBLIOGRAFIA

António Pinto Barbosa, in “Economia Pública”, McGraw Hill, Lisboa, 1997

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do Mercado de Valores Mobiliários, n.º 7, Lisboa, abril de 2007;

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Paulo Câmara, “Manual da Direito dos Valores Mobiliários”, II Edição, Almedina, Coimbra, 2011.

35 : CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS

RESUMO

Partimos da evolução histórica do consensualis-

mo contratual salientando os principais carate-

res que, nos diversos momentos históricos, se

foram evidenciando. Numa segunda etapa ex-

ploramos os fundamentos dogmáticos do mode-

lo de transmissão contratual assumido pelo le-

gislador e a sua viabilidade no sistema jurídico

global, em particular, no direito dos valores

mobiliários. Constatamos a crescente necessida-

de na prática mercantil e inevitabilidade no sis-

tema jurídico global da admissibilidade da exis-

tência de contratos de compra e venda de natu-

reza meramente obrigacional. Num terceiro mo-

mento desenvolvemos os principais aspetos do

regime jurídico aplicável às ações tituladas no-

minativas fora do mercado regulado, em parti-

cular, os principais limites à transmissão, en-

quanto instrumentos/ barreiras ao consensualis-

mo contratual.

RECONFIGURAÇÃO DO CONSENSUALISMO CONTRATUAL:

AS AÇÕES TITULADAS NOMINATIVAS E OS LIMITES

À TRANSMISSÃO*

MARIA JOÃO MIMOSO

**

E RICARDO ALEXANDRE CARDOSO RODRIGUES***

* - A legislação a que se faz alusão no presente estudo é a vigente no ordenamento jurídico português.

** - Doutora em Direito. Professora associada. Docente do Departamento de Direito UPT.

*** - Mestre em Direito. Investigador. Membro do Instituto Jurídico Portucalense.

36 : CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS

1. INTRODUÇÃO

Pretende-se neste trabalho salientar a importân-

cia do contrato que subjaz à transmissão de di-

reitos reais, ex máxime, sobre valores mobiliá-

rios. A compreensão dos seus efeitos implica

uma incursão histórica sobre o consensualismo

contratual, cujo regime se encontra tipificado

no Código Civil Português.

Por outro lado, os particularismos emergentes

do regime relativo ao modo de transmissão de

valores mobiliários impõem uma reconfigura-

ção do consensualismo acolhido pelo legislador

no art. 408.º n.º 1 do Código Civil.

O modo de transmissão de valores mobiliários

pressupõe, hipoteticamente, um contrato ou,

quiçá, em algumas situações, um negócio jurí-

dico unilateral, com efeitos meramente obriga-

cionais, verificando-se a eficácia translativa,

apenas e só, através da integração com um ato

posterior complementar.

De facto, o contrato, fruto do ideário voluntaris-

ta, enquanto mecanismo agilizador da transmis-

são de direitos reais exibe, no contexto dos va-

lores mobiliários, fragilidades, só ultrapassáveis

por via da concretização dos pressupostos e

requisitos tipificados pelo legislador no Código

dos Valores Mobiliários, inquestionavelmente,

em prol da tutela da segurança jurídica.

Em sede de Valores Mobiliários daremos um

especial enfoque sobre as ações, em particular

as tituladas nominativas de sociedades anóni-

mas, atento à sua transmissibilidade funcional

ou operativa, os seus principais aspetos: natu-

reza, modelo de transmissão, limites legais e

convencionais e, por fim, a recuperação dos

títulos extraviados ou destruídos, enquanto li-

mites ao consensualismo contratual.

Entendemos que a estas temáticas, não obstan-

te, terem já sido equacionadas, merecem, por-

que dissonantes, algumas reflexões no contexto

do nosso ordenamento jurídico.

É nosso ensejo dar solução à transmissibilidade

das ações tituladas nominativas de sociedades

anonimas fora do mercado regulamentado, pro-

curando traçar os contornos da reconfiguração

do modelo acolhido pelo nosso Código Civil

face à necessidade da sua readaptação a outros

instrumentos legais, mais evoluídos.

2. CONSENSUALISMO CONTRATUAL

O regime da transmissão de direitos reais não

operou, sempre, segundo os mesmos contornos.

No entanto, e não obstante as diversas constru-

ções dogmáticas, todas as opções legislativas

apontam, estruturalmente, num sentido: a prote-

ção da segurança jurídica das partes e de

terceiros no tráfico jurídico.

Na Antiguidade1 a “transmissão” (da proprieda-

de) concretizava-se através da prática de atos

translativos típicos: a mancipatio, a in iuri

cessio e a traditio.2 O contrato produzia, per se,

1- Reportamo-nos ao direito romano clássico.

2- “ (…) (A) transferência da propriedade não dependia da celebração do contrato de compra e venda – emptio et venditio , considerado

como titulus adquirendi – uma vez que este tinha efeitos meramente obrigacionais, mas antes da celebração de um segundo negócio poste-rior – o modus adquirendi- como a mancipatio, a in iuri cessio, mas principalmente a traditio. Este era um negócio que implicava um acto

real ou material, correspondente à entrega física do bem pelo tradens. No entanto, posteriormente admitiu-se que em lugar de ser real ou

material, a traditio pudesse ser apenas simbólica (como a entrega das chaves – traditio clavium – ou a entrega dos documentos ou do

título da propriedade – traditio instrumentorum) ou mesmo ficta (como nos casos da traditio brevi manu e do constituto possessó-

rio” in LEITÃO, Menezes, Direito Das Obrigações - Vol. III – Contratos Em Especial, 7.ª Edição, Coimbra: Almedina, 2010, pág. 23

(Negrito nosso)

37 : CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS

somente efeitos obrigacionais, constituía obri-

gações, mas não desencadeava a transmissão da

propriedade.3

Com soluções muito próximas das acolhidas

pelo direito romano clássico, encontramos, de-

signadamente, as ordens jurídicas espanhola e

austríaca, consagrando ambas um sistema de

título e modo. O negócio jurídico, em si mes-

mo, não transmite o direito real, sendo necessá-

rio um segundo negócio, este real. Todavia, e

diferentemente do que ocorre no sistema de

modo, a validade e eficácia do segundo negócio

jurídico (negócio real) depende, necessariamen-

te, da validade do primeiro.4, 5

O Direito português, até às Ordenações Filipi-

nas, acolhera a solução jurídica do Direito Ro-

mano. Estipulava-se a propósito da venda, que

se “o senhor de alguma coisa a vende duas ve-

zes a desvairadas pessoas, o que primeiro hou-

ver a entregar dela será dela feito verdadeiro

senhor, se dela pagou o preço por que lhe foi

vendida.” 6

O primeiro Código Civil português seguiu, por

influência da escola jusracionalista (Grotius,

Puffendorf), a corrente favorável ao consenso

translativo. Com efeito, o art. 715º do Código

de Seabra consubstanciava que “nas alienações

de cousas certas e determinadas, a transferên-

cia da propriedade opera-se entre os contraen-

tes por mero efeito do contrato, sem dependên-

cia de tradição ou de posse, quer material, quer

simbólica, salvo havendo acordo das partes em

contrário” . Demonstra, no entanto, Pedro de

Albuquerque “ (…) que ainda nos anos 30 do

séc. XX, as escrituras notariais faziam referên-

cia expressa à prática da dessaisine – saisine

pelo vendedor, que assim efetuaria a tradição

no próprio contrato. Porém, e na esteira de

Cunha Gonçalves, a doutrina aceitava,

“pacificamente a eficácia real do contrato,

(…)”.7

Certo é que o art. 1578.º do mesmo código pre-

ceituava: “se a mesma coisa for vendida pelo

mesmo vendedor a diversas pessoas observar-

se-á o seguinte: se a coisa vendida for mobiliá-

ria prevalecerá a venda mais antiga em data;

se não for possível verificar a prioridade de

data prevalecerá a venda feita ao que se achar

de posse da coisa” .8 Observando-se uma certa

reminiscência romanística a favor da traditio:

a entrega da coisa funcionava a favor do

comprador caso a data da venda não se

3- VIEIRA, José Alberto C., Direitos Reais Coimbra: Coimbra Editora, 2008, pág. 231. Já “no período pré-justinianeu, com o declínio da

mancipatio e da in iure cessio, acompanhado pelo desaparecimento da distinção das coisas em mancipi e nec mancipi, a compra e venda e

a doação tornaram-se simultaneamente reais e obrigacionais, transmitindo igualmente a propriedade. Com Justiniano, porém, ocorreu um

regresso à solução do período clássico e a traditio foi requerida novamente para a transmissão do direito real.” Ibidem, pág. 232

4- Ibidem, pág. 234

5- “No sistema do título e modo, vigente na Áustria (§425 ABGB) e na Espanha (art. 609 C. C. esp.) para que o efeito real se produza, é

necessária a presença simultânea de um titulus et modus adquirendi, ou seja, não basta que exista uma justa causa ou fundamento jurídico

de aquisição (como o contrato de compra e venda), sendo ainda necessária a realização de um segundo acto de transmissão (como a traditio ou o registo). Trata-se de um sistema de transmissão causal dos direitos reais, dado que embora o negócio causal e a transmissão sejam dois

negócios distintos, a validade da transmissão depende do negócio causal. Assim, o título só por si é insuficiente para produzir o efeito real

exigindo necessariamente um modo. Mas também o modo de aquisição só por si é insuficiente, pressupondo igualmente um título. Por isso, a realização da traditio só permite transmitir o direito real se tiver sido precedida de um negócio jurídico que fundamente essa transmissão

(como o contrato de compra e venda). Se houver só título (como na hipótese de apenas a compra e venda ter sido celebrada), o negócio terá

valor meramente obrigacional, sem produzir efeitos reais.” in Direito Das Obrigações - Vol. III – Contratos Em Especial, 2010, pág. 24 -25

6- VIEIRA, José Alberto C. ob. cit, pág. 234.

7- Vide nota 29. LEITÃO, Meneses, ob. cit., 2010, p. 24.

8- O atual Código Civil Português apresenta regras semelhantes, tais como: art. 407.º, no âmbito dos direitos pessoais de gozo; art. 697.º, sobre a hipoteca.

RECONFIGURAÇÃO DO CONSENSUALISMO CONTRATUAL...: 37

38 : CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS

provasse.9

O consensualismo apresentava-se mitigado re-

lativamente à transmissão de imóveis. Assim, e

nos termos do art. 1580.º do Código de Seabra,

“se a coisa vendida for imobiliária, prevalecerá

a venda primeiramente registada, e se nenhuma

se achar registada o que fica disposto no artigo

1578.º ” . Notável a influência dominante de

raiz francesa.

Relativamente às coisas imóveis o consensua-

lismo operava somente inter partes; no que res-

peita à oponibilidade a terceiros do direito do

comprador, “tudo dependeria de o terceiro be-

neficiário de uma segunda venda ter ou não

registo. O comprador que não registasse não

teria qualquer direito contra o comprador da

segunda venda, caso este houvesse registado a

sua aquisição, o que parece configurar à parti-

da um sistema em que o registo funciona como

condição de oponibilidade do direito real con-

tra terceiros, solução que levou alguns autores

italianos a falarem numa propriedade relativa

no âmbito da ordem jurídica italiana, que pre-

via um regime semelhante”.10

O princípio da consensualidade ou do consen-

sualismo11 ou “princípio” da eficácia real ime-

diata12 veio a ser consagrado, sem sofismas, no

art. 408.º n.º1,” do Código Civil de 66. Embora

em sede de contratos, e não no Livro III, dedi-

cado aos Direitos Reais, ainda que com remis-

são para os momentos da aquisição. Cf. Art.

1317.º a) Código Civil.

O suposto princípio surge, também, a propósito

da compra e venda, artigos 874.º e 879.º, alínea

a)13, e da doação, art.954.º, alínea a), todos do

Código Civil. Estes, os dois paradigmas de con-

trato real quoad effectum.14

Na esteira daquele, o direito real constitui-se ou

transfere-se, solo consensu,15 no momento da

celebração do contrato causal. Essa transmissão

operaria, instantânea e automaticamente, sem

necessidade de entrega da coisa ou do registo,

quanto a imóveis, e independentemente do

cumprimento das obrigações assumidas pelas

partes, ex: na compra e venda, o pagamento do

preço.16, 17, 18

Deste modo, a constituição ou transferência dos

9- Neste sentido Vide VIEIRA, José Alberto C. ob. cit, p. 235.

10- Ibidem, pp. 235-236.

11- In LEITÃO, Menezes, 2010, pp. 25 -26.

12- DUARTE, Rui Pinto Curso de Direitos Reais 2.ª Edição, revista e aumentada, Principia Editora, 2007, p. 41

13- “ I Resulta do tipo legal da compra e venda configurado nos artigos 874º e 879º do Código Civil que a propriedade da coisa vendida se

transmite para o adquirente pelo contrato, constituindo a transmissão do domínio um dos efeitos essenciais do negócio jurídico, ao lado das obrigações de entrega da coisa e de pagamento do preço respectivo; II “Trata-se, pois, de um contrato consensual (…), em que o

aperfeiçoamento do vínculo se atinge mediante o acordo de vontades (…)”; III “Flui igualmente da tipicidade legal da compra e venda a

sua natureza de contrato real quoad effectum, na medida em que determina a produção imediata do efeito real de transmissão do direito de propriedade [cfr., aliás, os artigos 1317º, alínea a), e 408º, nº. 1, do mesmo Código] e, ainda, de contrato obrigacional, segundo o

mesmo critério, na perspectiva dos efeitos obrigacionais da entrega da coisa e do pagamento do preço que dele derivam” . Acórdão STJ de

18-09-2003 (Lucas Coelho), in <http://www.dgsi.pt> (15.04.2013).

14- VIEIRA, José Alberto C. ob. cit, p. 236.

15- Consensus parit proprietatem - PIRES DE LIMA & ANTUNES VARELA, Código Civil anotado, vol. I, 4.ª ed., Coimbra, 1987, p. 375;

ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, Vol. I, 9.ª Edição, Coimbra, 1996, 310 ss; ALMEIDA COSTA, Direito das Obrigações,

9ª Edição, Coimbra, 2001, o. 258 ss.

16- VIEIRA, José Alberto C. ob. cit, p. 236.

17- LEITÃO, Menezes, ob cit., pág. 26.

18- V “O contrato aperfeiçoa-se em todo o caso, independentemente da produção dos efeitos aludidos, mercê do mútuo consenso dos con-

traentes, de modo que a obrigação de pagar o preço, nomeadamente, em nada influi na sua perfeição, e tão-pouco condiciona a eficácia

translativa na falta de semelhantes estipulações” . Acórdão STJ de 18-09-2003 (Lucas Coelho), in <http://www.dgsi.pt> (15.04.2013).

39 : CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS

direitos reais depende apenas da existência de

um título de aquisição - titulus adquirendi.19,20

Facto que revela vantagem em virtude da sua

simplicidade.21

Em suma, e à primeira vista, o art. 408.º n.º 1,

consagra, em pleno, o sistema de título.22

Não obstante o que ora se anuncia e a boa in-

tensão do legislador, antecipamos que este sis-

tema apresenta algumas particularidades, que

atenuam, profundamente, os propósitos da

transmissão solo consensu. Aliás, no seguimen-

to do padrão encontrado no devir histórico e,

também, marcado pelas sucessivas transforma-

ções financeiras, económicas e sociais que im-

plicaram a criação de outros mecanismos legis-

lativos e uma necessária adaptação dos instru-

mentos negociais à realidade hodierna.

3. RECONFIGURAÇÃO

DO MODELO DE TRANSMISSÃO

Impõe-se, preliminarmente, nesta sede, empre-

ender, em termos concetuais, uma correção ter-

minológica, que nos parece essencial para a

temática que cuidamos. Trata-se de saber se o

artigo 408º, n.º 1 quando refere “as exceções

previstas na lei” reporta-se, efetivamente, a

verdadeiras exceções a um princípio ou se con-

substancia um verdadeiro regime contraposto a

uma regra.

Distinguir, no âmbito de um conceito norma,

regras de princípios constitui uma tarefa es-

pecialmente complexa e delicada. Os critérios

sugeridos por Gomes Canotilho – embora em

sede de Direito Constitucional – que integramos

na dogmática do Direito Cível através da analo-

gia doutrinária, são os seguintes23:

“Grau de abstração: os princípios são nor-

mas com um grau de abstração relativamen-

te elevado; de modo diverso, as regras pos-

suem uma abstração relativamente reduzi-

da;

Grau de determinabilidade na aplicação do

caso concreto: os princípios, por serem va-

gos e indeterminados, carecem de media-

ções concretizadoras (do legislador, do

juiz), enquanto as regras são suscetíveis de

aplicação direta;

Carácter de fundamentalidade no sistema

das fontes de direito: os princípios são nor-

mas de natureza estruturante ou com um

papel fundamental no ordenamento jurídico

devido à sua posição hierárquica no sistema

das fontes (ex.: princípios constitucionais)

ou à sua importância dentro do sistema jurí-

dico (ex.: princípio do Estado de Direito);

«Proximidade» da ideia de direito: os prin-

cípios são «standards» juridicamente vincu-

lantes radicados nas exigências de justiça

(Dwokin) ou na «ideia de direito» (Larenz);

as regras podem ser normas vinculativas

com um conteúdo meramente funcional;

19- Ibidem, pp. 25 - 26

20- É necessária uma justa causa de aquisição para o direito real se constituir ou transmitir validamente (principio da causalidade que

vigora no sistema de título [e no título modo]). No sistema de modo, regula-se pelo princípio da abstração, facto que impede os vícios do negócio causal afetarem a transferência da propriedade. In Ibidem, pág. 26

21- In ibidem, pp. 26

22- Assim, entre nós, veio a consagrar-se a caracterização do contrato de compra e venda no âmbito da venda real. Neste sistema, o

adquirente após a celebração do contrato adquire imediatamente a propriedade da coisa vendida que pode, imediatamente, opor erga omnes, nos casos de bens não sujeitos a registo, ficando, no caso de bens sujeitos a registo, a oponibilidade a terceiros dependente do

cumprimento do ónus registal. A transmissão da propriedade aparece, assim, ligada à celebração do contrato, da qual depende como efeito

automático. In Ibidem, p. 26 -27

23- In CANOTILHO, J. J., Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 2003, pp. 1160-1161 (reimpressão 2012).

Negrito nosso.

RECONFIGURAÇÃO DO CONSENSUALISMO CONTRATUAL...: 39

40 : CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS

Natureza normogenética: os princípios são

fundamento de regras, isto é, são normas

que estão na base ou constituem a ratio de

regras jurídicas, desempenhando, por isso,

uma função normogenética fundamentante.”

Partindo dos carateres assinalados, e contextua-

lizando-os no âmbito do direito civil, diremos

que o consensualismo, por decorrência e con-

cretização do princípio da autonomia da vonta-

de, consubstancia uma verdadeira regra prag-

mática, aquilo a que chamaremos regime regra.

Consequentemente, este cederá perante disposi-

tivos legais, que por força daquele princípio, ou

de um outro estruturante do sistema jurídico,

disponham em sentido inverso.24

O consensualismo, não sendo um verdadeiro

princípio estruturante do sistema, não apresen-

tando o grau de abstração e natureza normoge-

nética, essenciais aos princípios estruturantes,

assume-se como disciplina regra em sede

contratual.

Constitui, desta feita, uma regra – base e não

uma verdadeira inevitabilidade dentro do siste-

ma jurídico nacional.25

Concretizando:

Somente os princípios pelas características fun-

damentais que apresentam, porque constituem

uma inevitabilidade no sistema, poderão ser

excecionados, tendo como fundamento valores

ou outros princípios essenciais de caráter mais

geral.

Por outro lado, os regimes contrapostos às re-

gras gerais apresentam-se, tal como aquelas,

com um propósito fundamental, o de conferir

pragmaticidade ao direito. A sua aplicação tem

por base, a maior parte das vezes, princípios

fundamentais do sistema onde se inserem.

Densificamos, de seguida, o substrato

essencial da anunciada regra, dentro

do seu micro sistema, conformando

veementemente o entendimento acolhido.

Podemos, desde logo, identificar alguns desvios

à regra da consensualidade no art. 408.º nº 2, no

que tange ao momento da aquisição do direito

real.26 O contrato deixa, assim, de ser o único

título de aquisição da propriedade [do direito

real]. O momento da aquisição não é o da con-

clusão do contrato, diferindo-se, nas hipóteses

contempladas no preceito, para momento poste-

rior.27

Na esteira de Menezes Leitão,28 seguindo uma

visão geral e linear do regime jurídico aplicável

à compra e venda, “(o) fenómeno translativo é

transferido para momento posterior, mas não

24- Vide, Baptista Machado quando trata a questão de saber se o conteúdo dos artigos 17.º e 18.º do C. Civil são exceções ou desvios ao principio ou regra constante do artigo 16.º. In MACHADO, J. B., Lições de Direito Internacional Privado. 3.ª edição (reimpressão),

Coimbra, (1985) 2002, p. 193. Segundo este autor, tratar-se de uma regra geral que cede aos desvios sempre que princípios estruturantes de

direito internacional privado reclamam aplicação.

25- In DUARTE, Rui Pinto, ob. cit., 2007, p. 58.

26- Reforçando firmamos acolher a regra da consensualidade (por decorrência do princípio da autonomia da vontade) que cede aos desvios

sempre que outros princípios jurídicos reclamem aplicação.

27- Segundo o autor Raúl Ventura a transmissão do direito real constituiria um “efeito produzido pelo contrato mas não só por ele, isto é,

não (…) efeito mero do contrato, mas (…) efeito do contrato, acompanhado por algum outro ato ou facto”. RAÚL VENTURA, «Contrato

de compra e venda no Código Civil. Efeitos essenciais: transmissão da propriedade da coisa ou da titularidade do direito; a obrigação de entregar a coisa», Revista da Ordem dos Advogados, 1983, III, pp. 587 ss (p. 593). “ A transmissão da propriedade opera-se sempre por

efeito do contrato, mas nem sempre no momento do contrato”. In ibidem, p. 618. Entendimento que não acolhemos, conforme poderemos

desenvolver mais adiante no presente estudo.

28- Que, aliás, conserva o cerne do entendimento da doutrina maioritária que reconduz ao contrato a eficácia translativa da coisa ou do

direito. Neste sentido. Cfr. EIRÓ, Vera, «A transmissão de valores mobiliários – as ações em especial», Themis, Revista da faculdade de direito da UNL, ano VI.º, n.º 11, 2005, Coimbra: Almedina, p.158.

41 : CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS

fica dependente do cumprimento de uma obri-

gação de transferir (dare), em sentido técnico.29

Ainda que possam surgir obrigações associa-

das a essa transmissão, não são elas que pro-

duzem o efeito translativo, mas antes este vem a

ocorrer automaticamente em consequência da

verificação de um facto posterior. Esse facto,

aliás, vem concretizar em definitivo uma atri-

buição patrimonial, que já tinha sido, pelo me-

nos, provisoriamente estabelecida com a cele-

bração do contrato30 entre o alienante e o ad-

quirente.” 31,32 A nosso ver, o tema carece de

uma análise, crítica, sistemática e global do sis-

tema jurídico e da evolução económica e social.

Segundo o mesmo autor, a regra da consensua-

lidade “tem o mesmo significado tanto para as

coisas móveis como para as imóveis. Mesmo no

tocante a estas últimas, o direito real deve con-

siderar-se constituído ou transmitido por força

do contrato e com a conclusão deste. A este

respeito, art.408.º, n.º1, e os art.879.º, alínea

a), e 954.º, alínea a), todos do CC, não permi-

tem fundamentar qualquer distinção”.33

29- Ver mais adiante a propósito do contrato de compra e venda com eficácia meramente obrigacional.

30- Aspeto que não afasta a natureza causal do facto ou ato complementar.

31- In LEITÃO, Menezes, ob. cit.., p. 29

32- Do mesmo autor: “mesmo nas hipóteses em que a venda possui uma eficácia translativa não imediata ou dependente da eventual verificação de certos [atos] ou factos, a verdade é que o contrato integra sempre um esquema negocial translativo, situação distinta da

venda obrigatória presente no Direito Romano e no atual Direito alemão. Parece, por isso, que se pode afirmar a inexistência, no Direito

Português da figura da venda obrigatória”. Ibidem, pp. 27 – 29. Ver mais adiante o contrato de compra e venda com efeitos meramente obrigacionais.

33- Mas, segundo o entendimento de Antunes Varela “a aquisição do direito real sobre imóveis apenas estaria concluída com o registo da aquisição, invocando para o efeito o art.5.º, n.º1, do Código do Registo Predial (efeito declarativo). O adquirente do direito real apenas o

poderia opor a terceiro caso houvesse registado a sua aquisição (efeito declarativo do registo predial). O contrato teria assim eficácia

entre as partes, mas não relativamente a terceiros, que só o registo predial atribuiria, uma tese de proveniência original francesa, embora exportada depois igualmente para Itália no domínio do Codice Civile de 1865, por força da influência da doutrina francesa do Code

Civil”. VIEIRA, José Alberto C. ob. cit, pp. 236-237. Em sentido contrário [por todos, Vide ASCENÇÃO, Oliveira, Direito Civil: Reais,

Coimbra, 1993, pp. 359 e ss],“o principio da consensualidade (art.408.º, nº1) desencadeia a aquisição do direito real sobre o imóvel com a conclusão do contrato (venda, doação, etc.), não tendo a omissão da inscrição registal do facto aquisitivo qualquer interferência na

eficácia real do contrato. O contrato determina por si só a constituição ou transmissão do direito real, mesmo relativamente a coisas

imóveis. O proprietário, o usufrutuário, o superficiário, o titular de uma servidão predial não estão, por conseguinte, inibidos de reivindicar a coisa de terceiro ou, em geral, de defender o seu direito contra terceiros só porque não registaram a sua aquisição.” “Na

verdade, o art. 5.º, n.º1,do CRP nada tem a ver com o princípio da consensualidade, mas com um dos efeitos substantivos da publicidade

registal: a aquisição tabular ou efeito atributivo do registo predial. Debaixo da verificação cumulativa de determinados requisitos, um terceiro de boa-fé que haja adquirido o seu “direito” do pseudo titular inscrito, que alienara previamente o direito a quem não fez o

registo da sua aquisição, pode ficar protegido contra o verdadeiro titular na ordem substantiva, contando que registe antes dele o seu contrato. Essa proteção consiste na atribuição do direito a que se refere o contrato registado, não obstante a nulidade do mesmo por falta

de legitimidade do disponente [em sentido diferente, Menezes Leitão defende “a validade da venda com falta de legitimidade do

vendedor” (nota 814)] e tem o seu fundamento na fé pública registal.”. “O titular do direito, cujo facto aquisitivo não foi registado, pode ver o seu direito extinguir-se ou ficar onerado como contrapartida da aquisição tabular do terceiro. Seja como for, esta matéria, que se

liga diretamente ao princípio da publicidade em Direitos Reais, não tem qualquer relação com o princípio da consensualidade, nem

constitui qualquer restrição a ele”. VIEIRA, José Alberto C. ob. cit, pp. 237-238 e respetivas referências. Ainda que incidindo sobre domínios distintos, a ordem substantiva e a ordem registal, entrelaçam-se, cominando-se, restringindo-se, limitando-se, em cumprimento de

princípios jurídicos de grandeza superior que apelam um severo condicionalismo à validade e à eficácia jurídica. Na temática em questão, e

seguindo a terminologia, ora, adotada, somos da opinião de que o condicionalismo operado tem incidência sobre a eficácia, e não sobre a validade do negócio. A entendermos como um problema de validade dever-se-á distinguir eficácia invalidante absoluta de eficácia

invalidante relativa, cindindo-se dos casos estritos de invalidade que implicam a destruição de todos os efeitos típicos do ato ou negócio

jurídico, de todos os outros cujos interesses jurídicos em jogo apelam a que se preservem alguns dos efeitos típicos até à declaração de invalidade ou convalidação pela conformação registal. Resulta do nosso entendimento que o registo (por si) – seja de bens imóveis ou

móveis sujeitos a registo [Neste sentido, ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, Vol. I, ob. cit. pp. 315-316] - é um elemento

que consolida a posição do adquirente, complementando, por razões de eficácia - ex máxime em relação a terceiros -, a sua aquisição (efeito consolidativo ou confirmativo). Finalmente, reforçando, lembramos, a título excecional, o registo constitutivo ou registo com

eficácia constitutiva - que interfere com a eficácia inter partes dos factos jurídicos a registar. Como exemplo de registo com eficácia

constitutiva expressa damos a hipoteca, cfr. art. 687.º do CC, Não obstante tratar-se de um contrato acessório, garantia de uma obrigação. São exemplos de registo com eficácia constitutiva quase expressa, os que passamos a expor: transmissão de direitos reais sobre frações

autónomas em regime de propriedade horizontal – o instrumento negocial não “pode ser lavrado sem que se exiba documento

comprovativo da inscrição do [respetivo] título constitutivo no registo predial”, cfr, n.º 1 do art. 62.º do Código do Notariado; operações de

loteamento urbano - a obrigatoriedade do licenciamento das respetivas operações e comprovação da autonomização da descrição predial do

lote. Por sua vez, a autonomização e respetiva descrição decorrem da inscrição registal da autorização de loteamento, cfr. (n.º 3 do art.º 80º

do Código do Registo Predial). Não será de admitir a usucapião neste caso, pois constituiria uma flagrante violação de normas administrativas sobre o loteamento urbano. Neste sentido, GUERREIRO, J., A., G., M., A posse o registo e os seus efeitos, IRN, BRN,

11/2003, pp. 7-8.

RECONFIGURAÇÃO DO CONSENSUALISMO CONTRATUAL...: 41

42 : CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS

Não acolhemos a presente construção doutriná-

ria do normativo. Entendemos, antes, que

devem ser feitas sérias ressalvas, mormente,

quando se trate de imóveis ou móveis sujeitos a

registo.34

Ponto de situação:

Esclareça-se que, entre nós, a configuração do

atual modelo de eficácia decorre do regime jurí-

dico da compra e venda, do seu carácter impe-

rativo.

Em princípio, estar-nos-ia vedada a possibilida-

de de celebrar contratos de compra e venda de

natureza, apenas, obrigacional.35, 36

Esta perspetiva, no entanto, inviabiliza a unida-

de e a coerência do sistema, pois não toma em

consideração todo o direito aplicável, ex máxi-

me, a legislação extravagante e seus respetivos

particularismos.

Aliás, atente-se o seguinte:

A lei fornece-nos a regra da transmissão da pro-

priedade por mero efeito do contrato. Todavia,

o legislador apresenta-nos um conjunto ex-

ponencial de desvios, denominando-os de

“exceções”.

A respeito do momento translativo enuncia-

mos os seguintes blocos de exemplos:37,38

1- na venda de coisa futura39 (a produzir) -

com o termo do ato de produção ou com a acei-

tação (da entrega) [este último entendimento,

por aplicação analógica do disposto no art.

1212.º do CC]; na venda de coisa alheia – com

a aquisição da propriedade pelo vendedor; na

venda de coisa genérica - com a concentração

ou especificação; na venda de coisa indetermi-

nada - com a determinação; na venda com

prestação alternativa - com a escolha40; na

venda de parte integrante - com a separação;

na venda de frutos naturais ainda não colhi-

dos - com a colheita; na empreitada com mate-

riais a fornecer pelo empreiteiro - com a acei-

tação da coisa móvel entregue ou à medida que

os materiais são incorporados no solo.

2- contratos celebrados com reserva de do-

mínio/ propriedade para o vendedor: com-

pra e venda a prestações com a propriedade

condicionada pela concretização da última pres-

tação pelo comprador; compra e venda com

transmissão a termo inicial; compra e venda

com transmissão dependente da ocorrência de

qualquer evento (ex. a entrega da coisa vendida

ou mesmo o registo da propriedade sobre essa

mesma coisa).

34- Ver nota anterior.

35- “(U)m contrato que torne translativo da propriedade um ato dispositivo do vendedor não pode ser qualificado como compra e venda,

porque (…) falta o efeito essencial da compra e venda”. RAÚL VENTURA, «Contrato de compra e venda no Código Civil», ob . cit., p. 595. (Entre outros)

36- Veja-se da sua inevitabilidade, mais adiante.

37- No mesmo sentido (pontos 1, 2 e 3). Vide FERREIRA DE ALMEIDA, Carlos, «Transmissão contratual da propriedade – entre o mito

da consensualidade e a realidade de múltiplos regimes», Themis, Revista da faculdade de direito da UNL, ano VI.º, n.º 11, 2005, Coimbra: Almedina, pp. 7-9.

38- Ver a propósito, nosso entendimento a respeito da eficácia consolidativa e constitutiva do registo na nota de rodapé número 34.

39- Entenda-se coisa futura como aquela inexistente à data da celebração do contrato.

40- A respeito Vide CARVALHO, Jorge Morais «Transmissão da propriedade e transferência do risco na compra e venda de coisas

genéricas», Themis, Revista da faculdade de direito da UNL, ano VI.º, n.º 11, 2005.

43 : CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS

3- a cessão de créditos41 – eficácia translativa

(externa) do crédito depende da notificação ao

devedor42,43 (por integração analógica do dis-

posto no art.º 584.º44 do CC para suprir a lacuna

do presente regime).45

4- nas relações privadas absolutamente inter-

nacionais – no âmbito da escolha de lei - com

a abertura a um sistema que não o do título, por

aplicação do art. 46.º do CC, em articulação

com o regime jurídico aplicável à forma e per-

feição da declaração negocial [art.s 35.º e 36.º

do CC] e substância dos negócios jurídicos

(eficácia obrigacional) [Regulamento (CE)

n.º 593/2008 do Parlamento Europeu e do Con-

selho, de 17 de Junho de 2008, sobre a lei apli-

cável às obrigações contratuais (Roma I)].46

5- o caso particular dos contratos monoloca-

lizados [n.º 3.º do ar t.º 3.º de Roma I] – quan-

do o regime jurídico de natureza obrigacional,

conflitua, com o de natureza real, cominando

com nulidade ou inexistência jurídica determi-

nado negocio jurídico pela exigência da incor-

poração de algum elemento ou pela ocorrência

de algum evento que não se verificou, e em se-

de de resolução de conflitos de normas se optar

pelo cumprimento daquelas exigências normati-

vas.

6- outras regras sobre transmissão negocial

da propriedade, entre outros efeitos jurídi-

cos, tais como, a transferência do risco - seto-

res do direito comercial transnacional (usos,

costumes e modelos regulativos) - a lex ele-

trónica, informática ou numérica; no setor dos

derivados do petróleo, gás e carvão, a lex petró-

lia, também, no setor bancário, a lex argenta-

rium, no que tange aos assuntos relacionados

com o mar, a lex marítima.47

Cremos que a evolução da realidade48 provoca,

desta feita, uma reconfiguração dos contornos

da regra. Invertendo-se a relação existente entre

esta e aquela exceção.

Entendemos, assim, que a regra contida no

artigo 408.º do Código Civil possui caráter resi-

dual, porque circunscrita “aos casos, agora os

41- Cfr. “Art. 577.º (Admissibilidade da cessão). 1. O credor pode ceder a terceiro uma parte ou a totalidade do crédito, independentemente do consentimengto do devedor, contando que a cessão não seja interdita por determinação da lei ou convenção das partes e o crédito não

esteja, pela própria natureza da prestação, ligado à pessoa do credor. 2- A convenção pela qual ase proíba pu restrinja a possibilidade da

cessão não é oponível ao cessionário, salvo se este a conhecia no momento da cessão. “

42- Neste sentido. Vide COSTA, Almeida, Direito das Obrigações, 9ª Edição, Coimbra, 2001, pp. 760 e ss.

43- Contra este entendimento. Vide CRISTAS, Assunção, Transmissão contratual do direito de crédito. Do carácter real do direito de

crédito, Coimbra, 2005.

44- Cfr. “ Art. 584.º (Cessão a várias pessoas). Se o mesmo crédito for cedido a várias pessoas, prevalece a cessão que primeiro for

notificada ao devedor ou que este tiver sido aceita.”

45- Vide art. 789.º do Código de Seabra, que dispõe no seguinte sentido: “ Pelo que respeita ao cedente, o direito cedido passa ao cessio-

nário pelo facto do contracto; mas em relação ao devedor ou a terceiro, a cessão só pode produzir o seu efeito, desde que foi notificada ao

devedor, ou por outro modo levado ao seu conhecimento, com tanto que o fosse por forma authentica.” Regime que garante os interesses em jogo nos negócios jurídicos celebrados, nomeadamente, o principio da confiança, pela imposição transparência. Entendemos, ser de

acolher, na ausência, constatada, de normativo a mesma configuração dogmática, afastando, por efeito, a aplicação do disposto no n.º 1 do

art. 408.º do CC.

46- Para mais desenvolvimentos sobre o sistema jurídico conflitual. FERNANDES, Carlos Da Natureza e Função das Normas de Conflitos

de Leis, Coimbra: Coimbra Editora, 1992. MACHADO, J. B. Lições de Direito Internacional Privado, ob. cit. LIMA PINHEIRO, Luís de Direito internacional privado, Vol I, Introdução e direito de conflitos, Parte Geral, Coimbra: Almedina, 2009; Direito internacional priva-

do, Vol II, Direito de conflitos, Parte Especial, Coimbra: Almedina, 2013. MIMOSO, Maria João; SOUSA, Sandra C. Nótulas de Direito

Internacional Privado, Quid juris, 2009.

47- Sobre as fontes da Nova Lex Mercatória vide RODRIGUES, Ricardo Alexandre C., A regulação apositiva da Contratação Internacio-nal – The New Law Merchant, Tese de mestrado, Repositório da Universidade Lusíada do Porto, 2012, pp. 73 -90 e respetivas referências.

Sobre a autonomia nocional de direito comercial internacional vide LIMA PINHEIRO, Luís de, Direito Comercial Internacional. Contratos

Comerciais Internacionais. Convenção de Viena sobre a Venda Internacional de Mercadorias. Arbitragem Transnacional. Almedina, 2005; Direito comercial internacional. O direito privado da globalização económica : relatório sobre o programa, os conteúdos e os

métodos de ensino do direito comercial internacional. Coimbra : Coimbra Editora, 2006.

48- Relembre-se, também, a tendência histórica, in concreto, as raízes fundamentantes.

RECONFIGURAÇÃO DO CONSENSUALISMO CONTRATUAL...: 43

44 : CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS

menos frequentes, em que nenhuma outra re-

gra” tem aplicação.49 Neste sentido, não consti-

tui, na realidade jurídico ontológica – quadro

normativo, social, económico e financeiro - um

comando jurídico regra, regra-base ou um regi-

me regra. Antes, e cada vez mais, um desvio

decorrente da excecional aplicação.

As regras vertidas nos artigos 408.º e 409.º, am-

bos do Código Civil, assim como outras relati-

vas à transmissão negocial da propriedade ou

algum dos seus efeitos, ex maxime, a transfe-

rência do risco, têm natureza supletiva.50

Não se vislumbra qualquer interesse geral

digno em contrário, resultando tal entendi-

mento, diretamente e por inferência, da pró-

pria lei (ex: a reserva de propr iedade pode

ser acordada com referência a qualquer tipo de

evento).51

Não podemos olvidar que a atual prática jurídi-

ca portuguesa limita a reserva de propriedade “à

função de garantia do vendedor”. No entanto,

esse facto não obstaculiza “a amplitude da nor-

ma permissiva, que não exclui outros eventos

determinantes da transmissão da propriedade,

como o decurso do tempo, a entrega da coisa

vendida ou o registo da propriedade sobre essa

coisa.” 52,53

Urge relembrar, que a suposta regra da consen-

sualidade decorre de uma das densificações do

princípio da autonomia da vontade, tal como o

princípio da liberdade de estipulação, in concre-

to, a liberdade de auto limitar os efeitos jurídi-

co-legais, do princípio solo consensu obligat

(escola jusracionalista e ideologia individualis-

ta).54

Na verdade, o Código Civil no que respeita a

matérias como a transmissão da propriedade foi

edificado segundo premissas do ideário volun-

tarista.

Todavia, o Código Civil não regula integral-

mente a transmissão negocial da propriedade,

outros diplomas existem com outros modelos

de transmissão que se impuseram porque mais

práticos, mais adequados às exigências do mo-

dus operandi do sistema económico e financei-

ro que, enquanto realidade dinâmica, consubs-

tancia forças motrizes irresistíveis para o pró-

prio direito civil.

Estamos convictos que aquilo a que o legislador

chama de princípio da consensualidade ou con-

sensualismo, no ordenamento jurídico portu-

guês, não passa de uma regra lógica, supletiva,

e residual.55 Em termos práticos, um desvio

com aplicação excecional.

49- FERREIRA DE ALMEIDA, Carlos, «Transmissão contratual da propriedade – entre o mito da consensualidade e a realidade de múltiplos regimes», Themis, Revista da faculdade de direito da UNL, ano VI.º, n.º 11, 2005, Coimbra: Almedina, p. 9.

50- Neste sentido. Vide ASCENÇÃO, Oliveira, Direito Civil: Reais, ob. cit. , p. 312; DUARTE, Rui Pinto, ob. cit., 2007, p. 55 e ss.

51- No mesmo sentido. FERREIRA DE ALMEIDA, In ibidem. pp. 9-10.

52- In ibidem, pp.9-10

53- Os dois últimos casos correspondem a atos posteriores, devidos pelo vendedor, a um contrato de compra e venda, conferindo-lhe eficácia real.

54- Sobre o princípio vide FERNANDES, Luís A. Carvalho, Teoria Geral do Direito Civil -Vol. I – Introdução; Pressupostos da Relação Jurídica, 5ª Ed., Universidade Católica, 2009, pág. 94.

55- No mesmo sentido, o acolhido pelo Autor Ferreira de Almeida na obra citada (Transmissão contratual da propriedade – entre o mito da consensualidade e a realidade de múltiplos regimes”, Themis, Revista da faculdade de direito da UNL, ano VI.º, n.º 11, 2005, Coimbra:

Almedina)

45 : CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS

Entendemos frutuoso o reforço da obrigatorie-

dade do ato complementar ao contrato, enquan-

to ato necessário para a transmissão da proprie-

dade (ato verdadeiramente causal ou real).56

4. COMPRA E VENDA

COM EFICÁCIA MERAMENTE OBRIGACIONAL57

O direito português demonstra que, para além

de uma necessidade, o contrato de compra e

venda obrigacional, é uma inevitabilidade em

termos de regime jurídico. Basta, atentarmos na

transmissão de títulos de crédito em suporte

papel - letras e livranças, ações, obrigações,

conhecimentos de carga (…). Nestes casos, o

efeito translativo do direito real depende de um

ato posterior integrado (autónomo58 ou não au-

tónomo) que o vendedor (transmitente) se obri-

ga a realizar (obrigação complementar): seja, a

entrega do título ao comprador (transmissário

ou depositário), se for o caso nos títulos ao por-

tador e, adicionalmente, o endosso, nos títulos à

ordem, ou a declaração de transmissão, nos títu-

los nominativos.59 Outros exemplos, designada-

mente, o registo constitutivo dos valores mobi-

liários escriturais60 e equiparados, na ausência

de documento bastante,61 ainda que com algu-

mas reservas, a venda de coisa alheia; os atos

convalidantes do negócio (que promovam a

legitimidade)62, na venda com reserva de pro-

priedade o efeito translativo opera, apenas, pe-

rante um ato do transmitente (entrega da coisa

ou registo da propriedade a favor do transmissá-

rio).

Na ausência da integração daqueles atos no

contrato translativo, a transmissão não opera. O

mesmo se passando se o contrato ou o ato com-

plementar forem, um ou outro, inválidos ou

ineficazes. Todavia, sempre que haja um ato

autónomo, a invalidade ou ineficácia não

“perturba diretamente a produção da eficácia

transmissiva, decorrente apenas da validade e

eficácia da tradição, da declaração de trans-

missão ou do registo.” Aproximando-nos, as-

sim, do sistema germânico da separação. “A

principal diferença de regime em relação aos

modelos concorrentes incide sobre a mais forte

proteção dos direitos de terceiros legitimados

por aquisições sucessivas.”

De facto, a doutrina portuguesa maioritária con-

serva o entendimento de que por força do art.

874.º, articulado com o art. 408.º, todos do CC,

o contrato de compra e venda tem natureza real.

A transmissão da coisa ou do direito têm como

causa (“própria e única”) o contrato.63

56- In ibidem, p. 16 -17.

57- In ibidem p. 12, 13, 14 e 15. E respetivas referências.

58- O ato é a causa única da atribuição patrimonial. Verifica-se na transmissão de direitos incorporados em títulos de crédito e em

valores mobiliários.

59- Vide, art. 11.º da Lei uniforme sobre letras e livranças; art. 5.º, 14.º e ss da Lei uniforme sobre cheques; finalmente o n.º 1 do art. 101,

e n.º 1 do art. 102 do Código dos Valores mobiliários (de ora em diante CVM).

60- As ações escriturais transmitem-se através do registo na conta do adquirente nos termos do n.º 1 do art. 80.º do CVM. O mesmo regime

é aplicável às ações tituladas integradas em sistema centralizado, conforme o art. 105.º do mesmo código.

61- Vide, art. 67.º do CVM.

62- Vide, n.º 2 do art. 467.º do C. Comercial e o art. 897.º do CC.

63- EIRÓ, Vera, «A transmissão de valores mobiliários – as ações em especial», Themis, Revista da faculdade de direito da UNL, ano VI.º,

n.º 11, 2005, Coimbra: Almedina, p.158.

RECONFIGURAÇÃO DO CONSENSUALISMO CONTRATUAL...: 45

46 : CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS

Este entendimento, conforme podemos consta-

tar, não se compadece com a natureza supletiva

e residual do preceituado no art. 408.º do CC

que, ao que se sabe, não tem carácter injuntivo.

Na verdade, as partes dentro do espaço de liber-

dade permitida podem atribuir ao contrato de

compra e venda eficácia meramente obrigacio-

nal.

Por outro lado, o Código Civil não se encontra

juridicamente “configurado” para novas reali-

dades, ex maxime, a transmissão de valores

mobiliários, ainda que possamos considera-las

coisas móveis corpóreas. O próprio Código re-

mete para outras disposições que consubstanci-

am desvios à regra da consensualidade, cf. art.

408 do Código Civil.

Em especial, e ainda no âmbito da aplicação do

Código Comercial, o endosso exigido para a

transmissão das ações tituladas nominativas,

art. 483.º.64

Com o Código do Mercado dos Valores Mobi-

liários65, onde no seu art. 89.º dispunha que a

transmissão de títulos fungíveis depositados se

dava através do lançamento a débito na conta

do transmitente e a crédito na conta do trans-

missário.66 Entendemos que, somente, a concre-

tização formal da operação nas contas consolida

a posição jurídica do adquirente, independente-

mente do contrato subjacente.

Finalmente, o regime jurídico do Código dos

Valores Mobiliários, em especial, os arts. 80.º e

101.º que determinam o regime aplicável à

transmissão das ações, que mais adiante será

desenvolvido, o qual, institucionaliza, por for-

ma mais acentuada um sistema de transmissão

avesso ao consensualismo contratual.

O Código dos Valores Mobiliários (de ora em

diante designado pela sigla CVM) concretiza

uma adaptação em sede de valores mobiliários.

Enfatiza, exaustivamente, uma dogmática espe-

cial em contraposição com as regras e princí-

pios gerais do Código Civil, pelo que, merecerá

prioritária aplicação.

Nesta esteira, consolidamos o entendimento de

que, o contrato, em sede de transmissão de

valores mobiliários, não tem natureza causal

64- Em sentido contrário, VAZ SERRA entendia que este ato autónomo consubstanciava uma declaração de transmissão, e que esta resultava do contrato celebrado. Vide VAZ SERRA, Adriano, « Anotação ao Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16 de Junho de

1972», in Revista de Legislação e Jurisprudência, 3503 e 3504, Lisboa, pp. 215 ss.

65- Decreto-Lei n.º 142-A/91 de 10 de Abril.

66- Segundo Paula Costa e Silva esta disposição refere-se, apenas, “às operações materiais que deverão ter lugar na sequência da celebra-ção de um negócio translativo. Donde resulta que a transmissão dos valores não tem em conta os lançamentos previstos no art. 89/1, mas

um negócio jurídico adequado à transmissão da titularidade dos valores”. COSTA E SILVA, Paula, «A transmissão de valores mobiliários

fora do mercado secundário», in AA VV Direito dos Valores Mobiliários Vol. I, Coimbra: Coimbra Editora, 1999, p. 240. No mesmo sentido, a mesma autora, agora a propósito das ações escriturais, nos termos do art. 65.º do mesmo diploma, entende que “ a causa da

transmissão é o negócio subjacente e prévio aos lançamentos (…). Os efeitos substantivos da transmissão produzem-se por mero efeito do

negócio”. In ibidem, p. 249

47 : CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS

eficiente67, correspondendo, somente, a uma

causa final. Esta construção assemelha-se ao

sistema de título e modo em vigor no ordena-

mento jurídico espanhol.

Da integração da compra e venda obrigacional

com o ato causal complementar resulta a trans-

missão in pleno do valor mobiliário. Atente-se

para o facto de a transmissão do mesmo pressu-

por a transmissão da posição jurídica causal

inerente.

5. OBJETO DA TRANSMISSÃO: DAS AÇÕES

Entendemos, por bem, adotar, no panorama

nocional, uma postura jus valorativa de título e

de valor transacionável, que, certamente, permi-

tirá uma visão mais clara dos respetivos instru-

mentos e, consequentemente, do regime jurídi-

co aplicável.

Acolhendo uma noção ampla de título de crédi-

to ou de título de valor como suporte, forma

(materializável), ou expressão (inicial e final),

necessário(a) à constituição, exercício e trans-

missão do direito literal e autónomo nele incor-

porado68, diremos que o título de valor inclui

múltiplas realidades com formas, expressões e

valias distintas. Inclusive, modos distintos de

incorporação do direito a que o respetivo título

atribuiu forma externa.69

Decorre do conteúdo da noção que “ (o) título

desempenha uma função de legitimação do pos-

suidor” .70 Consequentemente, a inseparabilida-

de do direito relativamente ao respetivo título71,

67- Como desvio a esta regra apresentamos, no entanto, a venda de valores mobiliários escriturais em mercado regulamentado. Que, de acordo com o preceituado no n.º 2 do art. 80.º do CVM, “confere ao comprador, independentemente do registo e a partir da realização da

operação, legitimidade para a sua venda nesse mercado” (fundamental à eficácia translativa). (Sublinhado nosso) Nesta situação e no

caso de negociação em sistema de negociação multilateral, os direitos patrimoniais correspondentes pertencem ao transmissário desde a data da respetiva operação, cfr. art 210 .º do CVM. No entanto, entendemos ainda assim estar perante um desvio ao consensualismo. De

facto, e no limite, temos sempre associado à transmissão um verdadeiro sistema de controlo (próprio dos valores mobiliários) que desempe-

nha uma função preventiva ainda mais forte e complexa que o suporte cartular, dirigindo-se, juridicamente, ao estado, quantidade, qualida-de e regularidade dos valores, agora, desmaterializados. Constituindo, assim, os limites normativos a sua circulação, estabelecendo os

níveis de circulação. Este sistema veio substituir a necessária intervenção cartular nas operações, constituindo um método que cumpre

muito mais funções que as desempenhadas por aquele suporte documental (ex máxime a garantia de qualidade e segurança através da au-tenticidade cartular e das normas de segurança na construção documental e a adequação ao conteúdo pela ideia de literalidade). Sobre os

sistemas de controlo Vide VEIGA, Alexandre Brandão da Sistemas de “Controlo de Valores no Novo Código dos Valores Mobiliários”, in

Cadernos do Mercado de valores Mobiliários, n.º7, abril, 2000. Atente-se, mais uma vez, para o facto de a instantaneidade nas operações envolver mais riscos, implicando, necessariamente, maior segurança jurídica. Finalmente ressaltamos o seguinte caso anómalo, a aquisição

a non domino. Nos termos do disposto no art. 58.º do CVM, estando nós perante um valor mobiliários, titulado ou escritural, geneticamente

perfeito, adquirido segundo as regras de transmissão aplicadas, a ilegitimidade substancial do alienante não poderá ser oponível ao adqui-rente de boa fé. O comando jurídico opera se estiverem preenchidos os seguintes requisitos: a realização de uma operação translativa; o

transmitente não ter legitimidade substancial para alienar; o transmitente ter um registo a seu favor (com base no qual operou a transmis-

são); o adquirente estar de boa fé (tendo em linha de conta os estritos deveres de confidencialidade a que está adstrito o registo de valores mobiliários (art. 304.º, n.º 1 e art. 86.º) (Vide COSTA E SILVA, Paula Efeitos do Registo e Valores Mobiliários. A protecção conferida ao

terceiro adquirente, in ROA, ano 58, II, julho, 1998, p. 464.) e o modus operandi do funcionamento do mercado, muito ágil e em constante

mutação, não poderíamos exigir uma boa fé segundo critérios éticos estritos (que implicam deveres de cuidado e indagação segundo uma perspetiva paternalista vide CORDEIRO, Menezes, Da Boa Fé no Direito Civil, Coimbra: Almedina, 1984, pp. 407-660 e in passim) mas

uma boa fé psicológica, permitindo a tutela sempre que o adquirente desconheça da ilegitimidade, ainda que não mova esforços no sentido

de a confirmar [mesmo no caso de transmissão através de intermediário financeiro]). Neste sentido vide CÂMARA, Paulo, Manual de Direito dos Valores Mobiliários, Coimbra: Almedina, 2011, pp. 330-333. Resulta do exposto uma clara evidência de uma tutela do registo,

tendo como desiderato fundamental a tutela do mercado, e não a tutela da aparência. Sobre esta temática vide o conteúdo explicativo. FER-REIRA DE ALMEIDA, Carlos, Valores Mobiliários Escriturais. Um novo modo de representação e circulação de direitos, Coimbra:

Almedina, 1997, pp. 119-201, 322. GUILLERMO CABALLERO GERMAIN, La adquisicíon a non domino de valores anotados en cuenta,

Madrid, 2010, pp. 135-223 e in passim. O reforço de tutela demarca os contornos de principio do direito dos valores mobiliários, confir-mando, consolidando, a nosso ver, o nosso entendimento no que tange ao suposto desvio.

68- “(O) documento necessário à constituição, exercício e transmissão do direito literal e autónomo nele incorporado. ENGRÁCIA ANTUNES, José A., Os títulos de crédito – uma introdução Coimbra: Coimbra editora, 2009, pp. 7-25. E respetivas referências.

69- “A ideia de incorporação surgiu precisamente para exprimir a conexão apontada entre o documento e o direito”. In Ibidem, pp. 14 e ss.

70- CORREIA, Ferrer, Lições de Direito Comercial, Vol III, Letra de Cambio, Universidade de Coimbra, 1975 (edição policopiada), pp. 4

e ss. Atente-se para o facto de, para além do instrumento de legitimação, ser necessário, salvo nos títulos de valor ao portador, a comprovação da posição jurídica.

71- O direito adere ao título.

RECONFIGURAÇÃO DO CONSENSUALISMO CONTRATUAL...: 47

48 : CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS

não obstante a titularidade do mesmo, enquanto

corolário fundamental do princípio da incorpo-

ração ou imanência, que traduz a intrínseca li-

gação entre o direito e a respetiva cartula, ou

melhor, a sua correspondente expressão física,

enquanto instrumento de legitimação, mais evi-

denciado nos títulos que têm correspondência

com o próprio valor que lhes dá conteúdo jurí-

dico. Ex: letras, livranças, cheques, títulos va-

lor. Caso sejam ao portador, atente-se ao am-

plo grau de circulabilidade.72

O caráter, intrinsecamente, jurígeno do títu-

lo original inviabiliza a transmissão sempre

que este, porque fora extraviado ou destruí-

do ou porque não se encontra na disponibili-

dade do transmitente, não consubstancie o

objeto da relação jurídica translativa ou o

ato ou atos que de facto e de direito cominam

com a transmissão.

Incidindo o nosso estudo sobre bens jurídicos

próprios e complexos, os valores mobiliários, e

correspondentes posições jurídicas, urge definir

valor negociável ou transacionável. Assume

esta qualidade se conferente de posição (ões)

jurídica (s) simples ou creditícia (s) e complexa

(s), quando constituído por representações, es-

criturais ou em títulos (consoante se assuma

esta dicotomia, ou somente títulos de forma a

abranger as duas realidades), suscetíveis de ava-

liação e conversão pecuniárias.

O CVM enuncia uma lista de valores mobiliá-

rios conferentes de posições jurídicas comple-

xas, que possuem uma autonomia dogmática,

um regime jurídico próprio. Assim, e nos ter-

mos do art. 1.º, o legislador apresenta-nos: a) as

ações; b) as obrigações; c) os títulos de partici-

pação; d) as unidades de participação em insti-

tuições de investimento coletivo; e) os warrants

autónomos; f) os direitos destacados dos valo-

res mobiliários referidos nas alíneas a) a d),73

desde que o destaque abranja toda a emissão ou

série ou esteja previsto no ato de emissão; g)

outros documentos representativos de situações

jurídicas homogéneas, desde que sejam suscetí-

veis de transmissão em mercado.” 74

Decorre do exposto, que o legislador procurou

elencar - socorrendo-se de uma cláusula aberta -

os valores mobiliários típicos, admitindo, a par

destes, outros valores mobiliários, resultantes

da autonomia privada, falamos os inominados

72- Vide. In ibidem

73- A par dos certificados (regulamento CMVM n.º 7/2002, de 24 de Maio), os valores mobiliários convertíveis (regulamento CMVM n.º

15/2002, de 21 de Novembro) e os valores mobiliários condicionados por eventos de crédito (regulamento CMVM n.º 16/2002, de 21 de Novembro. Constituem o leque de valores mobiliários típicos, porque expressamente previsto na lei, nos termos do art. 1.º, n.º 2 do CC.

Lembre-se, porém, que se trata de um leque de conteúdo aberto.

74- Partindo da noção que se infere do CVM. “ (V) alores negociáveis, titulados ou escriturais, emitidos por entidades públicas ou privadas

em conjuntos homogéneos que conferem aos seus titulares direitos idênticos e suscetíveis de negociação em mercado organizado, por um

preço que pode ser diferente do seu valor nominal. ”PINTO FURTADO, Jorge Henrique da Cruz, Títulos de Crédito - Letra; Livrança; Cheque. Coimbra: Almedina, 2005, p. 12. Em termos comparativos, vide definição da lei francesa de 23 de dezembro de 1998: consideram

-se valores mobiliários, para os efeitos da presente lei, os títulos emitidos por pessoas coletivas públicas ou privadas, transmissíveis por

inscrição em conta ou por tradição, que conferem direitos idênticos por categoria e dão acesso, direta ou indiretamente, a uma participa-ção no capital da pessoa coletiva emissora ou a um direito de crédito geral sobre o seu património. No mesmo sentido de Pinto Furtado,

Vide ENGRÁCIA ANTUNES, José A., «Os valores mobiliários: conceito, espécies e regime jurídico» Revista da Faculdade de Direito da

Universidade do Porto, vol. 5, 2008, Coimbra: Coimbra Editora, 87-142, pp. 87 – 91. “Instrumentos financeiros representados num título ou registo em conta, que consubstanciam posições jurídicas homogéneas e fungíveis e são negociáveis em mercado organizado.” E respe-

tivas referências. Apresentando como elementos fundamentais: representabilidade, homogeneidade e fungibilidade, e negociabilidade.

49 : CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS

(tipos mistos)75 e dos atípicos76, 77.

Cingindo-nos à temática das ações:

A transmissibilidade das ações têm sido acolhi-

da, claramente, como fundamento essencial da

sua existência (traduz, intrinsecamente, uma

função social(78) 79, no entanto, como iremos

constatar, não se revela como obrigatório, visto

existirem condicionalismos / imposições legis-

lativas ou comandos jurídicos de autonomia

negocial.

As ações são valores mobiliários, emitidos por

sociedades anónimas, representativos da parti-

cipação social ou “socialidade” do acionista.80

E nascem para a realidade jurídico económica e

financeira por emissão e subscrição.81

A emissão corresponde ao ato decisório, através

do qual uma sociedade cria os respetivos valo-

res mobiliários. Podendo, também, promover a

sua constituição através do respetivo registo,

quando as ações não forem tituladas, conforme

o disposto no art. 61.º e ss. do CVM.

A subscrição é promovida pelo acionista quan-

do este concretiza juridicamente a vontade de

aquisição originária da titularidade de uma ou

mais ações.

A ação, enquanto participação social, corporiza

uma situação jurídica complexa, define a ampli-

tude de um status jurídico, constituído por posi-

ções ativas de natureza patrimonial ou corpora-

tiva, e posições passivas, o grau de participação

social numa empresa, habilitando o seu titular

para o exercício dos direitos sociais inerentes.82

O corpus mechanicum da ação possibilita “a

transmissão desse acervo de direitos com a en-

trega do seu suporte material e sem os requisi-

tos da cessão de créditos”.83, 84

Enquanto valor mobiliário: “integra-se em

conjuntos homogéneos que conferem aos seus

titulares direitos idênticos, como referia no art.

3.º-1, al. a), do revogado CMVM”; acrescenta-

va que era “(…) suscetível de negociação num

mercado organizado e de uma cotação ou

75- Resultantes da combinação de valores mobiliários típicos.

76- Valores mobiliários totalmente novos. Tais como: certificados de participação; títulos de fruição.

77- Sobre a temática. Vide VASCONCELOS, P. P., «O Problema da Tipicidade dos Valores Mobiliários», in: AAVV, “ Direito dos

Valores Mobiliários”, vol. III, 61-72, Coimbra: Coimbra Editora, 2001; BAPTISTA, D. F., «O Princípio da tipicidade e os Valores

Mobiliários» 87-121, in: AAVV, “ Jornadas sobre Sociedades Abertas, Valores Mobiliários e Intermediação Financeira”, Coimbra: Alme-dina, 2006. Sob a égide do princípio geral de liberdade de criação, marcado, cada vez mais, pela diversificação dos valores mobiliários.

Vide. BONNEAU, Thierry, «La Diversification des Valeurs Mobilières – Ses Implications en Droit Commercial», in : A. 41, (4) « Revue

Trimestrielle de Droit Commercial et de Droit Économique », Paris, Octobre-Décembre 1988, pp. 535-607.

78- Sobre a ação como título de investimento. Vide LABAREDA, João, Das ações das sociedades anónimas, AAFDL, Lisboa, 1988, pp.

228 e ss.

79- Podemos falar, numa transmissibilidade funcional ou operativa, ideia intrinsecamente relacionada com o principal motivo que moveu a

aquisição, o lucro. Trata-se assim de um investimento para um certo desiderato lucrativo.

80- Vide. MARTINS, A. S., Valores Mobiliários (Acções), Coimbra: Almedina: 2003; ASCENÇÃO, J. O, «As acções», in: AAVV, “ Direito

dos Valores Mobiliários”, Vol. II, pp. 57-90, Coimbra: Coimbra Editora, 2000. Vide, também, LABAREDA, J., Das Acções das Socieda-des Anónimas, AAFDL, Lisboa, 1988.

81- Podendo ser, até à sua extinção, objeto de titularidade, transmissão, oneração ou execução.

82- Não partilhamos do entendimento de que se trata de uma mera posição contratual. Aliás, salvo numa visão amplíssima do conceito,

apresenta um âmbito nocional limitado e estático, não acompanhando o dinamismo - jurídico e económico - institucional essencial à otimização do funcionamento da estrutura jurídica empresarial.

83- PINTO FURTADO, J. H. (…) ob. cit. pp. 9-12. E respetivas referências.

84- Como fundamento à transmissão podemos vislumbrar diversos tipos contratuais, com naturezas diversas (onerosos ou gratuitos), em circunstâncias várias (transmissões inter vivos ou mortis causa; definitivas e temporárias), com graus de complexidade maiores ou

menores, envolvendo múltiplos aspetos que nesta sede não poderíamos explorar convenientemente.

RECONFIGURAÇÃO DO CONSENSUALISMO CONTRATUAL...: 49

50 : CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS

preço, que podem ser diferentes do seu valor

nominal” ; podia ser titulada (ao portador ou

nominativa) ou “simplesmente escritural”85, era

indivisível ou infracionável (cf. n.º4 do art.

276.º do CSC)86; finalmente, agrupável, ex má-

xime, para o exercício de direitos sociais, (cf.

n.º 5 do art. 379.º do CSC).

As ações tituladas nominativas, enquanto título

(suporte documental clássico ou tradicional),

são endereçadas pelo emitente a uma pessoa

determinada e apresentam um regime de circu-

lação particularmente complexo, “exigindo a

intervenção do emitente do título e do seu titu-

lar.” Em jeito de comparação, os títulos à or-

dem (títulos valor) que diferem daqueles quanto

ao modus de circulação. Circulam mediante

declaração assinada pelo titular (endosso) – exs:

letra (n.º1 do art. 11.º, da LULL87; livrança (n.º

2 do art. 77.º da LULL); conhecimentos de de-

pósito (art.º 411.º do C. Com). Finalmente, os

títulos ao portador (títulos valor), diferem dos

restantes, pelo facto de não identificarem um

titular. A posse define, flagrantemente, a titula-

ridade, estando, por efeito disso, a circulação

dependente da traditio – será o caso das ações

(ao portador) não depositadas (1.ª parte do n.º 1

do art. 101 do CVM)88 e das notas de banco.89

Aplica-se à transmissão das ações – titula-

das: nominativas ou ao portador – quando

integradas em sistema centralizado, o dispos-

to para as ações escriturais integradas em

sistema centralizado (arts. 99.º, 105.º do

CVM). Nestes casos, as ações circulam – co-

mo os escriturais -dentro do sistema através

das transferências (art. 71.º do CVM), as vi-

cissitudes dos valores (art. 68.º n.º do CVM)

ocorrem através do sistema e a legitimação

decorre do próprio sistema (art. 74.º e 78.º do

CVM)

Aspeto que merece, sem dúvida, a nossa es-

pecial atenção, pois, ao que parece, promana

do CVM um princípio de relativa irrelevân-

cia da forma de representação, isto é, inde-

pendentemente da natureza jurídica do valor

mobiliário e correspondente forma de repre-

sentação o que releva para efeitos de regime

aplicável é se os respetivos valores estão ou

não integrados em sistema centralizado.90

Para ações fora do sistema centralizado

aplicam-se os seguintes normativos:

Nos termos do n.º 1 do art. 102 do CVM, a

transmissão das ações (tituladas) nominativas

de uma sociedade anónima, carece, necessaria-

mente, de declaração expressa a favor do adqui-

rente (endosso), exarada por escrito no título e

registada junto da sociedade emitente ou de

intermediário financeiro que a represente. A

transmissão opera os seus efeitos típicos a partir

da data da apresentação do requerimento de

registo – que é gratuito cf. n.º 6 do art. 102.º

85- In ibidem. E respetivas referências.

86- Não podemos confundir: com os títulos constituídos por mais de uma ação (cf. al. b), do n.º 1 do art.97.º do CVM) desdobráveis em

títulos com um menor número de ações; com a impossibilidade de uma ação ter mais do que um titular (cf. Art. 303.º do CSC) […]

87- Lei uniforme sobre as letras e as livranças.

88- Se depositados em intermediário financeiro (não integrados em sistema centralizado) transmitem-se pela entrega do título ao depositá-

rio ou por movimentação de registo, se o depositário também for depositário do alienante, cf. fim da 2.ª parte do n.º 1 e o n.º 2 art. 101.ºdo

CVM.

89- ENGRÁCIA ANTUNES, José A.,ob. cit, p. 29.

90- Neste sentido VIDAL, Isabel «Da (ir)relevância da forma de representação para efeitos da transmissão de valores mobiliários»,

Cadernos MVM n.º 15 (2002), 287-316. Sobre o sistema centralizado Vide VEIGA, Alexandre Brandão da, «O incumprimento do deves de

partidas dobradas nos sistemas de controlo dos valores mobiliários», Cadernos MVM 15 (2002), 167-172.

51 : CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS

CVM - à sociedade emitente (n.º 5 do art. 102

do CVM).91

O art. 102.º do CVM, nos seus n.ºs 2 e 3, densi-

fica por quem deverá ser realizada a declaração

de transmissão. Respetivamente, e intervivos –

a) pelo depositário, nos valores mobiliários em

depósito não centralizado, que lavra igualmen-

te o respectivo registo na conta do transmissá-

rio; b) pelo funcionário judicial competente,

quando a transmissão dos valores mobiliários

resulte de sentença ou de venda judicial; c) pe-

lo transmitente, em qualquer outra situação – e

mortis causa – a) havendo partilha judicial, nos

termos da alínea b) do número anterior; b)

nos restantes casos, pelo cabeça-de-casal ou

pelo notário que lavrou a escritura de partilha.

No n.º 4 do mesmo artigo o legislador confere

às entidades referidas nos n.ºs 2 e 3 legitimida-

de para requerer o correspondente registo junto

da entidade emitente.92

Conforme o disposto no n.º 1 do art. 101 do

CVM, as ações (tituladas) ao portador transmi-

tem-se por entrega do título ao adquirente ou ao

depositário por ele indicado.

Todavia, se os títulos já se encontrarem deposi-

tados no depositário indicado pelo adquirente,

a transmissão efetua-se por registo na conta

deste, dando-se como produzidos os efeitos

jurídicos típicos na data do requerimento do

registo (n.º 2 do art. 101.º do CVM).

À luz do n.º 1 do art. 80 do CVM, as ações es-

criturais (qualquer modalidade) transmitem-se

pelo registo na conta do adquirente, constituin-

do este o suporte (materializável) de legitima-

ção. Por sua vez, a inscrição nas contas do

registo é concretizada, tendo por base ordem

escrita ou em documento bastante para a prova

do facto a registar do alienante. Assim, a trans-

missão está dependente de um ato subsequente

ao negócio, o documento subscrito pelo trans-

mitente, r essaltando a simplicidade e anoni-

mato, essenciais, à sua natureza.

Razões de certeza e de segurança jurídicas leva-

ram o legislador - principalmente para a trans-

missão de ações fora do mercado regulamenta-

do - a exigir, para além de formas específicas e

especiais93, atos complementares (também de-

signados por formalidades essenciais ou com

natureza constitutiva94) causais, constitutivos,

de uma nova posição jurídica que teve origem

no negócio jurídico subjacente à transmissão.95

A conclusão de um contrato, típico ou atípico,

com a realização dos respetivos atos comple-

mentares translativos da titularidade do direito

sobre uma ação, opera uma modificação subje-

tiva na relação jurídica relativa ao documento

representativo e, em simultâneo, nos direitos ou

posições jurídicas inerentes.

91- Nos termos do n.º 7 do art. 102 “(o) emitente não pode, para qualquer efeito, opor ao interessado a falta de realização de um registo que devesse ter efectuado nos termos dos números anteriores.”

92- Sublinhados e negritos nossos.

93- Ofertas públicas de transmissão de ações, nas operações em massa; oferta pública de aquisição de ações (OPA) - na qual uma entidade,

seja ela singular ou coletiva, se propõe adquirir dos acionistas - ou aos titulares de uma certa e determinada categoria de ações - as suas ações, com a faculdade de condicionar a oferta à aceitação por titulares de um conjunto mínimo de ações ou restringi-la a um número

máximo de ações; Ofertas públicas de venda [dentro das ofertas de distribuição] (OPV) – na qual um determinado acionista coloca à venda,

no mercado (secundário), uma participação societária substancial. Vide OLAVO CUNHA, Paulo Direito das Sociedades Comerciais.

Coimbra: Almedina, 2007, pp.403-404

94- A nosso ver incorretamente, ainda que ad substância, atente-se à natureza intencionalmente causal dos mesmos.

95- As ações (tituladas) ao portador transmitem-se por entrega do título ao adquirente ou ao depositário por ele indicado (n.º 1 do art. 101.º

do CVM); as ações escriturais transmitem-se pelo registo na conta do adquirente (n.º 1 do art. 80.º do CVM).

RECONFIGURAÇÃO DO CONSENSUALISMO CONTRATUAL...: 51

52 : CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS

Este entendimento consolida a ideia da aderên-

cia do direito ao respetivo suporte de legitima-

ção.96 Alias, “(n)ão há um direito ou uma posi-

ção jurídica que tenha surgido com a ação e

que seja ulterior à posição jurídica causal”.97

6. LIMITES LEGAIS E CONVENCIONAIS

À TRANSMISSÃO DAS AÇÕES 98, 99

Nota introdutória

Conforme, pudemos constatar, diversos podem

ser os motivos que podem levar o legislador,

por um lado, a restringir o campo de liberdade

funcional dos operadores negociais, através da

criação de comandos jurídicos autónomos, por

outro lado, a permitir, em termos particulares,

aos mesmos operadores delimitar os efeitos ju-

rídicos das respetivas operações.

Tendo como fundamento valores e princípios

estruturais, tais como, o princípio da segurança

jurídica dos operadores no tráfico jurídico, o

princípio da estabilidade das relações jurídicas.

Como razões de ordem prática, tendo por base o

princípio da adequação, dirigidas a uma ideia

de equidade formal e justiça material.

6.1. Limites legais

O legislador, por razões de política legislativa,

procurando a idoneidade do potencial transmis-

sário, pode restringir a transmissibilidade das

ações, veja-se, a título exemplificativo, as aqui-

sições de participações qualificadas em institui-

ções de crédito (ou sociedades financeiras),

quando sujeitas à oposição do Banco de Portu-

gal, ou, atentando à natureza intuitu personae de

algumas ações, limitações que advêm, necessa-

riamente, da identidade do adquirente. É o caso

das ações próprias, art. 316.º, nº 1100 e 317.º do

CSC.101,102

6.2. Limites convencionais

As limitações podem apresentar uma de duas

naturezas quanto à sua eficácia: real ou

meramente obrigacional. As primeiras resultam

96- Situação mais flagrante, pelo menos em termos figurativos, nas ações tituladas ao portador.

97- VERA EIRÓ, ob. cit, p. 163. E as referências do autor. Entendimento diferente carece de qualquer sentido prático. In ibidem p. 163-165. E as referências do autor.

98- Vide OLAVO CUNHA, Paulo, ob cit, p. 405

99- Sobre os efeitos jurídicos das limitações à transmissão ver VEIGA Alexandre Brandão da, Transmissão de Valores Mobiliários. Coimbra: Almedina, 2004, pp. 177 ss.

100- Cfr. “art.º 316.º(Subscrição. Intervenção de terceiros) 1 - Uma sociedade não pode subscrever acções próprias, e, por outra causa, só

pode adquirir e deter acções próprias nos casos e nas condições previstos na lei. 2 - Uma sociedade não pode encarregar outrem de, em

nome deste mas por conta da sociedade, subscrever ou adquirir acções dela própria. 3 - As acções subscritas ou adquiridas com violação do

disposto no número anterior pertencem para todos os efeitos, incluindo a obrigação de as liberar, à pessoa que as subscreveu ou adquiriu. 4 - A sociedade não pode renunciar ao reembolso das importâncias que tenha adiantado a alguém para o fim mencionado no n.º 2 nem deixar

de proceder com toda a diligência para que tal reembolso se efective. 5 - Sem prejuízo da sua responsabilidade, nos termos gerais, os admi-

nistradores intervenientes nas operações proibidas pelo n.º 2 são pessoal e solidariamente responsáveis pela liberação das acções. 6 - São nulos os actos pelos quais uma sociedade adquira acções referidas no n.º 2 às pessoas ali mencionadas, excepto em execução de crédito e se

o devedor não tiver outros bens suficientes. 7 - Consideram-se suspensos os direitos inerentes às acções subscritas por terceiro por conta da

sociedade em violação deste preceito, enquanto não forem por ele cumpridas as obrigações de reembolso da sociedade e de restituição das quantias pagas pelos administradores para a sua liberação.”

101- Cfr. “art. 317.º (Casos de aquisição lícita de acções próprias) 1 - O contrato de sociedade pode proibir totalmente a aquisição de

acções próprias ou reduzir os casos em que ela é permitida por esta lei. 2 - Salvo o disposto no número seguinte e noutros preceitos legais,

uma sociedade não pode adquirir e deter acções próprias representativas de mais de 10% do seu capital. 3 - Uma sociedade pode adquirir acções próprias que ultrapassem o montante estabelecido no número anterior quando: a) A aquisição resulte do cumprimento pela socieda-

de de disposições da lei; b) A aquisição vise executar uma deliberação de redução de capital; c) Seja adquirido um património, a título

universal; d) A aquisição seja feita a título gratuito; e) A aquisição seja feita em processo executivo para cobrança de dívidas de terceiros ou por transacção em acção declarativa proposta para o mesmo fim; f) A aquisição decorra de processo estabelecido na lei ou no contrato

de sociedade para a falta de liberação de acções pelos seus subscritores. 4 - Como contrapartida da aquisição de acções próprias, uma socie-

dade só pode entregar bens que, nos termos dos artigos 32.º e 33.º, possam ser distribuídos aos sócios, devendo o valor dos bens distribuí-veis ser, pelo menos, igual ao dobro do valor a pagar por elas.”

102- A oneração de participações sociais constitui um obstáculo à respetiva transmissão (cf. art. 23 do CSC).

53 : CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS

diretamente do contrato de sociedade. Saliente-

se que, apenas, as ações nominativas podem ser

objeto dessas restrições, e nestes termos, de

acordo com o regime jurídico vertido no art.

328.º nº 2103 do CSC e ss.; as segundas, resul-

tam de acordos particulares celebrados entre

acionistas (acordos parassociais). A título de

exemplo: os pactos de preferência convencional

extra estatutário a favor de terceiro ou de algum

dos sócios; a convenção através da qual é atri-

buída a um sócio a faculdade de acompanhar

uma hipotética venda de participações sociais,

estendendo-se àquela todo o processo desta

aquisição.104

7. DA DESTRUIÇÃO OU EXTRAVIO DE TÍTULOS

NOMINATIVOS VERSUS TRANSMISSÃO:

A RECUPERAÇÃO DOS TÍTULOS NOMINATIVOS:

A RECONSTITUIÇÃO, A CONVERSÃO E A REFORMA

JUDICIAL

Decorre do anteriormente exposto, que os

títulos corporizam determinadas posições jurí-

dicas de índole económica e/ou financeira, sim-

ples ou complexas. Consubstanciando, o supor-

te/instrumento à constituição, exercício e respe-

tiva transmissão. O título medeia a relação soci-

al com o direito que de si promana ou, simples-

mente, reflete.

Sempre que, em virtude de destruição

(parcial ou total), o título deixe de reunir as

qualidades essenciais à sua função, ou no

caso de efetiva perda do título, o suporte/

instrumento, ou em termos figurativos, o

canal conducente à mediação esvai-se. Por

efeito, dá-se por, obstaculizada, em absoluto,

a realização de quaisquer atos dos acima

mencionados.

A destruição ou extravio do título não afeta, em

princípio, o direito subjacente105. O direito

permanece intacto,106 todavia, esvaziado das

suas fundamentais faculdades, ou seja, o direito

não se extingue, no entanto, não pode ser

exercido, o que, em termos práticos, redundará

na impossibilidade do seu exercício.

Parafraseando FERRER CORREIA “o que não

pode é tornar-se efetivo sem outra carta, em

que de novo se incorpore; sem outra carta

que seja como que um prolongamento ou uma

segunda via da primeira, um seu duplica-

do.”107

Outra solução, permitiria a livre circulação

de títulos originais, com títulos, denominados

de segundas vias, sobre os mesmos

valores e respetivos direitos. Frustrando, assim,

103- Cfr. “art. 328.º (Limitações à transmissão de acções) 1 - O contrato de sociedade não pode excluir a transmissibilidade das acções nem limitá-la além do que a lei permitir. 2 - O contrato de sociedade pode: a) Subordinar a transmissão das acções nominativas ao consentimen-

to da sociedade;;b) Estabelecer um direito de preferência dos outros accionistas e as condições do respectivo exercício, no caso de aliena-

ção de acções nominativas; c) Subordinar a transmissão de acções nominativas e a constituição de penhor ou usufruto sobre elas à existên-cia de determinados requisitos, subjectivos ou objectivos, que estejam de acordo com o interesse social. 3 - As limitações previstas no

número anterior só podem ser introduzidas por alteração do contrato de sociedade com o consentimento de todos os accionistas cujas ac-

ções sejam por elas afectadas, mas podem ser atenuadas ou extintas mediante alteração do contrato, nos termos gerais; as limitações podem respeitar apenas a acções correspondentes a certo aumento de capital, contanto que sejam deliberadas simultaneamente com este. 4 - As

cláusulas previstas neste artigo devem ser transcritas nos títulos ou nas contas de registo das acções, sob pena de serem inoponíveis a ad-

quirentes de boa fé. 5 - As cláusulas previstas nas alíneas a) e c) do n.º 2 não podem ser invocadas em processo executivo ou de liquidação de patrimónios.”

104- Para mais desenvolvimentos sobre os limites convencionais. TOMÉ, Maria João Carreiro Vaz, “Algumas notas sobre as restrições contratuais à livre transmissão de ações”, in Direito e Justiça, 4 – 5 de 1990/1991, Lisboa.

105- Situação diferente e a título de exemplo: os títulos valor [ex: cheques, letras de favor] quando não possa ser feita prova da relação jurídica causal.

106- “O direito (subjacente) não se esgota com a representação. Por isso sobrevive à própria destruição do papel”. ASCENÇÃO, Oliveira, Valor Mobiliário e Título de Crédito, in Revista da Ordem dos Advogados, ano 56, III, Dezembro 1996, p. 36.

107- CORREIA, Ferrer, ob. cit. p.15. (Negrito nosso)

RECONFIGURAÇÃO DO CONSENSUALISMO CONTRATUAL...: 53

54 : CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS

a confiança e segurança jurídicas no tráfico jurí-

dico dos valores negociáveis, principalmente,

aqueles que revelam um amplo grau de circula-

ção.

O princípio da legitimação, em caso de perda

ou destruição do título, determinará sempre a

necessidade de identificar o legitimo possuidor

do título antes da ocorrência. Não esqueçamos

que o direito inscrito no título fica suspenso.

Porém, admite-se, a reconstituição (um novo

mecanismo)108, a conversão e a reforma de títu-

los nominativos e à ordem, mas não daqueles

outros ao portador.

Admite-se a razoabilidade do regime anunciado

em virtude das legítimas expetativas de tercei-

ros de boa-fé, possuidores do título. Ferrer Cor-

reia acrescenta mesmo “(…) um sacrifício in-

justificável do subscritor, que seria obrigado a

pagar duas vezes”.109

Nos termos do art. 51.º do CVM, os “valores

mobiliários titulados ou escriturais depositados,

podem, em caso de destruição ou perda, ser re-

constituídos a partir dos documentos e registos

de segurança disponíveis.”

De acordo com o normativo, a reconstituição

extrajudicial opera quer para valores mobiliá-

rios titulados, quer para escriturais, visto ter

aplicação, respetivamente, em caso de destrui-

ção física dos documentos em suporte papel ou

quando se verifica uma perda ou dano do regis-

to informático onde consta representado o res-

petivo valor.110

No caso dos valores mobiliários titulados o nor-

mativo circunscreve esta possibilidade aos que

se encontram depositados, já, no que tange aos

escriturais, esta possibilidade liga-se, intrinse-

camente, “à necessidade de os intermediários

financeiros que procedem ao registo de valores

terem cópias de segurança dos registos informá-

ticos para que, havendo falha informática que

leve à destruição de dados, a reconstituição do

registo de titularidade seja feita com base nes-

sas cópias de segurança.”111

Assim, e circunscrevendo o âmbito abstrato do

normativo, o legislador opera, no fundo, uma

cisão preliminar dos valores mobiliários, a con-

siderar: os não depositados em intermediário

financeiro (seja fora de intermediário financeiro

ou guardados por este com contrato de aluguer

de cofre) e os restantes valores mobiliários inte-

grados em sistema. Aqueles obedecerão ao regi-

me jurídico da reforma judicial de títulos e to-

dos estes ao preceituado no art. 51.º, do CVM.

A figura do Intermediário Financeiro assume,

nos dias de hoje, uma importância fulcral na

otimização do funcionamento do mercado.

Perante “a crescente sofisticação dos mercados

e instrumentos financeiros, os intermediários

financeiros apresentam-se como elementos co-

adjuvantes decisivos na tomada de decisões

esclarecidas de investimento: avultam, a este

108- Vide VIDAL, Isabel «Da (ir)relevância da forma de representação para efeitos da transmissão de valores mobiliários», ob. cit., p. 294.

109- CORREIA, Ferrer, ob. cit. p.16.

110- Segundo Paolo Spada esta última situação configura uma nula probabilidade de verificação. La circolazione della “ricchezza assente”

alla fine del millennio (riflessioni sistematiche sulla dematerializzazione dei titoli di massa), in Banca Borsa, 1999, 4, p. 417.

111- CÂMARA, Paulo, Manual de Direito dos Valores Mobiliários, ob. cit. p. 181.

55 : CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS

propósito, os deveres de informação ao cliente e

o dever de adequação dos intermediários.112“

Por outro lado, “o acesso aos mercados e siste-

mas de negociação multilateral é necessaria-

mente intermediado (art. 206.º, n.º 1 [do

CVM]), o mesmo sucedendo com o acesso aos

sistemas de liquidação (art. 267.º [do CVM]):

a transmissão de ordem relativa a instrumentos

financeiros faz-se, assim, necessariamente pe-

rante intermediário financeiro habilitado à sua

recepção e/ou execução (arts. 290.º, n.º 1 a) e

325.º, n.º 1 [do CVM]).” Finalmente, a propósi-

to do tema em análise, como já pudemos cons-

tatar, os intermediários financeiros acabam por

estar intrinsecamente ligados à própria organi-

zação e exercício da titularidade mobiliária,

com a prestação de serviços de registo e depósi-

to relativos a valores mobiliários (arts. 291.º, a)

e 325.º, n.º 1 [do CVM]). “113

Sobre o modus operandi da reconstituição da

forma de representação:

Esta é efetuada extrajudicialmente pela entidade

que tem a seu cargo o registo ou o depósito dos

respetivos valores mobiliários, em colaboração

com o emitente, cf. art. 51.º, n.º 2, do CVM.

A sua efetivação é precedida “de uma prévia e

ampla divulgação e comunicação do respetivo

projeto", respetivamente: 45 dias antes da

reconstituição; sendo publicado e comunicado

a cada presumível titular, art. 51.º, n.º 3, do

CVM. Permitindo assim que qualquer interessa-

do, após a publicação e a comunicação, possa

deduzir oposição à reconstituição, inclusive

requerer a reforma judicial dos valores

mobiliários perdidos ou destruídos, cf. art. 51.º,

n.º 4.114

Para o caso especial dos valores mobiliários

titulados integrados – “obrigatória ou voluntari-

amente” - em sistema centralizado de valores e

que circulam mediante registos em conta, por

aplicação do art. 105, do CVM.115 “Sempre que

todos os títulos em depósito centralizado sejam

[“à margem da vontade do emitente”] destruí-

dos, sem que os correspondentes registos

tenham sido (afetados), consideram-se os mes-

mos convertidos [automaticamente] em valores

mobiliários” com forma de representação es-

critural (conversão legal da forma, de titulada

para escritural).116, 117 O mesmo não se passa se,

“no prazo de 90 dias após a comunicação da

entidade gestora do sistema de depósito centra-

lizado”, o emitente “requerer a reforma judici-

al” , cf. n.º 5 do art. 51.º CVM. Cujo processo

segue termos de acordo com o previsto para o

processo especial da reforma de documentos118

disciplinado pelo conteúdo do disposto nos arts.

112- Sobre os deveres do intermediário financeiro Vide SANTOS, Gonçalo Castilho dos, A Responsabilidade Civil do Intermediário Financeiro perante o Cliente, Coimbra, 2008, pp. 71-187. TEIXEIRA, Filipe Canabarro, Os Deveres de informação dos intermediários

financeiros em relação aos seus clientes e sua responsabilidade civil, Cad. MVM, n.º 31, 2008, pp. 50-87. Sobre a natureza empresarial dos

contratos de intermediação financeira Vide ENGRÁCIA ANTUNES, José A., Contratos Comerciais. Noções Fundamentais, Vol. Especial Direito e Justiça, 2007, pp. 25, 73-74.

113- CÂMARA, Paulo, Manual de Direito dos Valores Mobiliários, ob. cit. p. 345.

114- Vide. VIDAL, Isabel, «Da (ir)relevância da forma de representação para efeitos da transmissão de valores mobiliários», ob. cit.

p. 294.

115- In ibidem.

116- Em vez de se proceder à recuperação da forma inicial do título, a forma titulada.

117- O mesmo raciocínio aplica-se, mutatis mutandis, à parcela de títulos em sistema centralizado, no caso de haverem, também, títulos fora desse sistema.

118- A Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, retificada pela Declaração de Retificação n.º 36/2013, de 12 de agosto, que aprova o novo Código de Processo Civil (CPC), revoga o Decreto-Lei n.º 44129, de 28 de dezembro de 1961 (al. a), art. 4.º) e entra em vigor a partir do dia 1 de

setembro de 2013 (art. 8.º). O diploma extingue o processo especial da reforma de documentos, autos e livros. Mais adiante exporemos o

regime jurídico que entendemos figurável neste contexto.

RECONFIGURAÇÃO DO CONSENSUALISMO CONTRATUAL...: 55

56 : CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS

1069.º e seguintes do Código de Processo Civil,

com as necessárias adaptações, cf. n.º 6 do art.

51 do CVM.

O mecanismo de conversão (legal) automática

corresponde a uma solução de índole substanci-

almente prática, já que à circulação daqueles

valores era já aplicável o regime jurídico dos

valores mobiliários escriturais (art. 105.º). Por

outro lado trata-se de um regime de natureza

atípica, já que a iniciativa não pertence à entida-

de emitente, como se verifica no regime previs-

to no art. 48.º119, não obstante, por aplicação do

princípio do contraditório, ser-lhe facultada a

possibilidade de se opor à conversão.120

Entendemos, ademais, que o normativo cons-

tante do conteúdo do n.º 5 do art. 51.º do

CVM, no que tange à livre facultade cometi-

da à discricionariedade do emitente de socorrer-

se do instituto da reforma judicial dos títulos,

como forma de oposição à conversão automáti-

ca, deverá assegurar a tutela, necessária, dos

interesses legítimos e emergentes de outros

sujeitos, diga-se o titular, herdeiros ou mes-

mo credores interessados, aproveitando o

prazo de 90 dias a qualquer interessado.

O regime da conversão automática de títulos,

não obstante manter a coerência dogmática

entre os diversos preceitos legais intrassistemá-

ticos e o ordenamento jurídico global, trata-se,

de facto, de um instrumento ou mecanismo le-

gal cuja configuração operativa colide, nos pila-

res estruturantes, com o princípio da autonomia

privada, nomeadamente, a vontade funcional

dos operadores do mercado, todavia, enquanto

comando jurídico autónomo, entre outros, cum-

pre um desiderato específico, a concretização,

efetiva, do princípio da segurança jurídica dos

operadores no tráfico jurídico (emitente e titu-

lar), em particular, as legítimas expetativas dos

credores, ademais, promove a estabilização das

relações jurídicas, entenda-se numa acessão

ampla, estados ou posições jurídicas face aos

diversos sujeitos e coisas no plano material e

jurídico. Por outro lado, dá-se cumprimento ao

princípio da eficiência, tão fundamental neste

tipo de operações.

Esgotadas as vias extrajudiciais de recupera-

ção de títulos, segue-se o mecanismo jurisdi-

cional, a reforma judicial de títulos.

No art. 484 do C. Comercial, o legislador dis-

põe: “As letras, ações, obrigações e mais títulos

comerciais transmissíveis por endosso, que ti-

verem sido destruídos ou perdidos, podem ser

reformados judicialmente a requerimento do

respetivo proprietário, justificando o seu direi-

to e o facto que motiva a reforma.121

§. 1.° A reforma será requerida no tribunal de

comércio do lugar do pagamento do título, ou

119- “1 - Salvo proibição legal ou estatutária, o emitente pode decidir a conversão dos valores mobiliários quanto à sua forma de repre-sentação, estabelecendo para o efeito um prazo razoável, não superior a um ano. 2 - A decisão de conversão é objecto de publicação. 3 -

Os custos da conversão são suportados pelo emitente.”

120- Neste sentido. Vide CÂMARA, Paulo, Manual de Direito dos Valores Mobiliários, ob. cit. pp. 181-182

121- Entendemos frutuoso contextualizar o pensamento do legislador de acordo com os critério hermenêuticos utilizados (arts. 9.º e ss do Código Civil) e amplamente desenvolvidos na doutrina e na jurisprudência, procurando reconstruir os códigos concetuais delineados na

consciência daquele de acordo com a realidade hodierna. Daí urge uma interpretação atualista e teleológica, dirigida ao sentido das palavras

do legislador sem os conhecimentos da dogmática e da realidade material posterior à sua existência, a hodierna. Todavia, de facto, é neces-sário um mínimo de correspondência literal, por efeito, e tendo em consideração no normativo a expressão “endosso”, dever-se-á atender

ao seu sentido técnico. Agora, expressões que pelo decurso histórico perderam certas e determinadas qualidades, transmutando-se, por

exemplo, pela desmaterialização, como é o caso das ações tituladas nominativas (expressão figurada), não obstante, o seu sentido atualista não deverá ser afastado, operando-se a sua incorporação no texto legislativo. Isto, independentemente, de tratarem-se de valores mobiliá-

rios. Assim, entendemos que o regime ainda terá aplicação, conjuntamente, com o art. 51.º do CVM. Por outro lado, e sempre que o regime

jurídico permitir uma tutela adequada a legítimos interesses que por via de outros dispositivos legais não haja qualquer abrigo, entendemos que terá sempre aplicação, ainda que se tratem de valores mobiliários.

57 : CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS

no da sede da sociedade que tiver emitido a

ação ou obrigação, e não poderá ser decretada

sem prévio chamamento edital de incertos e

citação de todos os co-obrigados no título ou

dos representantes da sociedade a que ele res-

peitar.

§. 2.° Sendo a ação ou obrigação nominativa,

serão igualmente citados aquele em nome de

quem se achar averbada, e quaisquer outros

interessados, que forem certos.

§. 3.° Distribuída a ação, pode o autor exercer

todos os meios para conservação dos seus di-

reitos.

§. 4.° Transitada em julgado a sentença que

autorizar a reforma, deverão os co-obrigados

no título, ou a sociedade a que ele respeitar,

entregar ao autor novo título sob pena de lhe

ficar servindo de título a carta de sentença.

§. 5.° O aceitante e mais co-obrigados ao paga-

mento da letra e as sociedades emissoras das

ações, obrigações e mais títulos somente são

obrigados ao pagamento das respetivas quanti-

as e seus juros ou dividendos depois de venci-

dos, e prestando o proprietário no novo título

suficiente caução à restituição do que receber.

§. 6.° Esta caução caduca de direito passados

cinco anos depois de prestada, se neste período

não tiver sido proposta judicialmente contra

quem a prestou ação pedindo a restituição, ou

se a ação tiver sido julgada improcedente”.

Ora, conforme o preceituado, conclui-se que

será possível, somente a reforma de títulos pela

via judicial. Porém, tal limitar-se-á aos títulos

nominativos e à ordem. De acordo com o argu-

mento a contrario os títulos ao portador encon-

trar-se-ão excluídos, pois não se encontram se-

quer mencionados no citado preceito e, mesmo

que assim não fosse, a sua natureza e modo de

circulação impediria outra solução em razão da

proteção dos legítimos interesses e expetativas

de terceiros.

Quanto à temática supra indicada impõe-se-nos

tecer os seguintes considerandos:

1º - A reforma tem, necessariamente, de ser

solicitada junto das instâncias judiciais compe-

tentes;

2º - Em termos processuais é aplicável o regime

jurídico da reforma de documentos regulado

nos termos do art. 1069.º e seguintes do Código

do Processo Civil (CPC)122, em articulação com

as regras substantivas123;

122- O novo CPC revoga o processo especial da reforma de documentos, autos e livros (que apresenta um objeto mais amplo que o previs-to no art. 484.º do Código Comercial), deixando, apenas, o processo especial de reforma de autos, cujo regime jurídico constará do livro V,

título XII, do art. 959.º ao art. 966. Entendemos, que a integração analógica deste regime poderá ser uma opção, todavia, parca, e, manifes-

tamente insuficiente no que tange certas especificidades de regime. Atente-se, no regime processual, ainda, aplicável à reforma de títulos

perdidos ou desaparecidos, ora, a publicação de avisos no local com a indicação do título, a convidar quaisquer pessoas a apresenta-lo, se

possuidoras, e, por interpretação extensiva, a informarem do local onde o avistaram, art. 1072.º al. a) do CPC. Entendemos, que a solução

emanará dos poderes, agora, reforçados, de adequação formal e de gestão processual do juiz, enquanto intérprete e aplicador do Direito. Assim, decorre da exposição de motivos da Proposta de Lei 113/ XII: “Mantém-se e amplia-se o princípio da adequação formal, em termos

de permitir a prática dos atos que melhor se ajustem aos fins do processo, bem como as necessárias adaptações, quando a tramitação pro-

cessual prevista na lei não se adeque às especificidades da causa ou não seja a mais eficiente”; “ (O) princípio da gestão processual, (…) conferindo ao juiz um poder autónomo de direção ativa do processo, podendo determinar a adoção dos mecanismos de simplificação e

agilização processual que, respeitando os princípios fundamentais da igualdade das partes e do contraditório, garantam a composição do

litígio em prazo razoável.” Respetivamente, art. 547.º - “[o] juiz deve adotar a tramitação processual adequada às especificidades da causa e adaptar o conteúdo e a forma dos atos processuais ao fim que visam atingir, assegurando um processo equitativo” (Ver, em termos com-

parativos, o disposto no art. 265.º - A do atual código).; art. 6.º - “cumpre ao juiz, sem prejuízo do ónus de impulso especialmente imposto

pela lei às partes, dirigir ativamente o processo e providenciar pelo seu andamento célere, promovendo oficiosamente as diligências neces-sárias ao normal prosseguimento da ação, recusando o que for impertinente ou meramente dilatório e, ouvidas as partes, adotando mecanis-

mos de simplificação e agilização processual que garantam a justa composição do litígio em prazo razoável.(n.º 1.º); “[o] juiz providencia

oficiosamente pelo suprimento da falta de pressupostos processuais suscetíveis de sanação, determinando a realização dos atos necessários à regularização da instância ou, quando a sanação dependa de ato que deva ser praticado pelas partes, convidando estas a praticá-lo (n.º 2)

[ver o disposto no art. o 265.º do atual código]. Atente-se, para o facto de este poder atribuído ao juiz já existir, pelo menos, implicitamen-

te, na esfera de atribuições a ele cometidas em sede processual, promanando, também, enquanto concretização funcional do princípio de adequação formal, e ter sido consagrado literalmente no âmbito do regime processual experimental. De facto, as soluções de regime dei-

xam de estar legalmente positivadas, passando a constituir uma prática, relativamente modelável.

123- Regime jurídico aplicável, com as necessárias adaptações, à reforma de valores mobiliários escriturais, art. 51.º n.º 6 do CVM.

RECONFIGURAÇÃO DO CONSENSUALISMO CONTRATUAL...: 57

58 : CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS

3.º - O autor deverá descrever o título, justificar

sumariamente a causa da sua destruição, perda

ou desaparecimento, instruindo o pedido com as

provas disponíveis, e motivar a ação com o in-

teresse que tem na sua recuperação, art. 1069,

n.º 1, art. 1072.º e art. 1073.º, todos do Código

do Processo Civil (CPC).

4.º - Para a obtenção do título reformado o le-

gislador exige ao requerente a prestação de cau-

ção à restituição do seu valor, juros ou dividen-

dos, nos casos de perda ou desaparecido dos

títulos abrangidos pela previsão normativa do

art. 484.º do Código Comercial, nos termos do

art. 1072.º al. d).124 O mesmo não se justificaria

no caso de títulos destruídos. Quanto a estes, o

processo segue termos (apenas e só se, de acor-

do com os dados da experiência e, se for caso

disso, da técnica) se se constatar, em face da

prova produzida, a sua efetiva destruição, art.

1069.º n.º 1 e 2;

5.º Sempre que os meios de prova não revelem

a destruição do título, presumindo-se, o seu ex-

travio, os termos da ação devem seguir o regi-

me adequado, art. 1072.º al. d) do CPC;

6.º- Após o trânsito em julgado da sentença que

autorizar a reforma, existe, já, provisoriamente,

um título, a carta da sentença (certidão do au-

to), até os co-obrigados no título, ou a socieda-

de a que ele respeitar, entregar ao autor novo

título, facto que, a não se verificar, converterá

a carta da sentença em título permanente, art.

484.º n.º4.º do Código Comercial e o art. 1070.º

n.º 2 do CPC.

7º - Não obstante o supra indicado nos pontos

3.º e 4.º, em todo os caso, e após sentença, defi-

nitiva, que autorize a reforma, em sede de cum-

primento, o proprietário no novo título deve

prestar suficiente caução à restituição do que

receber das pessoas obrigadas, art. 484.º n.º 5

do Código Comercial.

8.º- A expressão suficiente caução deverá

abranger, o valor do título, respetivos juros ou

dividendos.

9.º - Caução que caduca de direito passados

cinco anos depois de prestada, se durante esse

período não tiver sido proposta judicialmente

contra quem a prestou ação pedindo a restitui-

ção, ou se esta ação tiver sido julgada improce-

dente.

Sublinhe-se, da nossa parte, que o regime não

poderia ser outro. A tutela da certeza e seguran-

ça jurídicas impõem que não seja possível, em

sede de valores mobiliários, no caso ações no-

minativas, outra solução que não a vertida nos

preceitos indicados.

Em suma, carecerá sempre de uma reforma pro-

porcionadora da incorporação do direito no no-

vo título. Renascerá um novo documento legiti-

mador da posição complexa do titular de ações.

124- Emana deste dispositivo como que uma solução de compromisso e prevenção.

59 : CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS

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ENSAIO SOBRE OS REQUISITOS SUBSTANTIVOS DA OPA CONCORRENTE : 61

62 : CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS

ANOTAÇÃO A ACÓRDÃO

* CONTRATO DE SWAP

E ALTERAÇÃO DE CIRCUNSTÂNCIAS

- ANOTAÇÃO AO ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL

DE JUSTIÇA, PROCESSO N.º 1387/11.5TBBCL.G1.S1

63 : CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS

SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

7.ª Secção

Processo 1387/11.5TBBCL.G1.S1

I. RELATÓRIO

A BB Lda. (Autora) intentou acção de condena-

ção, com a forma ordinária, contra o Banco AA

(Réu), alegando, em síntese, que, no 1.º semes-

tre de 2008, celebrou com o Réu um contrato de

locação financeira imobiliária que teve por ob-

jecto um pavilhão industrial e que, na sequência

da celebração desse contrato, um responsável

da dependência de Braga do Réu incentivou a

autora a celebrar um outro contrato, com vista a

fixar a taxa de juro dentro de determinados li-

mites/barreiras, pois a prestação paga pela auto-

ra no contrato de locação financeira estava in-

dexada à taxa Euribor e temia-se que essa taxa

continuasse a subir. Aquele responsável referiu

à autora que no contrato de taxa de juro que lhe

pretendia propor fixava-se um limite da taxa de

juro dentro da qual a autora apenas pagava a

taxa de juro prevista no contrato, ou seja 4,55%,

sendo que, se essa taxa aumentasse até ao limite

de 5,15%, a Autora pagaria sempre aquela taxa

inicial de 4,55% e, caso a taxa de juro ultrapas-

sasse aquele limite, a Autora teria que pagar a

taxa de juro correspondente, perdendo todo e

qualquer benefício. Nesse caso, o Réu poderia

fazer cessar o contrato.

Correspondentemente, caso a taxa de juro des-

cesse até aos 3,95%, a Autora continuaria a pa-

gar a taxa de 4,55%, retirando daí o Réu um

benefício de 0,60% e, caso a taxa de juro des-

cesse abaixo dos 3,95%, a Autora teria então

também o direito de fazer cessar de imediato o

contrato, por forma a pagar a taxa de juro real e

efectiva. Com esta explicação do Réu, a Autora

ficou convencida que o Réu podia denunciar o

contrato a partir da taxa de juro dos 5,15% e a

Autora, por sua vez, também o poderia fazer a

partir dos 3,95%, e só por isso aceitou celebrar

com o Réu o referido contrato, o que aconteceu

em 8/08/2008.

Acresce que o contrato em causa foi apresenta-

do à Autora, antecipadamente redigido pelo

Réu, com as condições que o Réu aí pretendeu

CONTRATO DE SWAP E ALTERAÇÃO DE CIRCUNSTÂNCIAS - ANOTAÇÃO AO ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL

DE JUSTIÇA, PROCESSO N.º 1387/11.5TBBCL.G1.S1*

PEDRO GONZALEZ

** E JOÃO VENTURA***

* - É apenas apresentado um excerto do Acórdão. A versão integral está disponível em

http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/83a1d4ae8a10876180257c0600300716?OpenDocument.

** - Advogado Associado, Cuatrecasas, Gonçalves Pereira & Associados, Sociedade de Advogados, R.L.

*** - Advogado Estagiário, Cuatrecasas, Gonçalves Pereira & Associados, Sociedade de Advogados, R.L.

64 : CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS

colocar. A Autora apenas se limitou a assinar,

nada lhe tendo sido lido, nem explicado. O le-

gal representante da Autora é pessoa muito sim-

ples, que tem apenas a instrução básica e nunca

tinha contratado qualquer operação bancária

especial ou complexa, sendo certo que nunca a

Autora se apercebeu que o contrato que assina-

va poderia acarretar qualquer risco e, conse-

quentemente, a perda de valores significativos.

Acontece que, a partir do mês de Janeiro de

2009, a taxa de juro começou a descer a um

ritmo acelerado, ultrapassando o limite de

3,95% e, em 29/06/2009, o Réu debitou à Auto-

ra o total de € 6.660,63. Nessa altura, a Autora

comunicou ao Réu que pretendia de imediato

pôr fim ao contrato, tendo o Réu esclarecido

que para o fazer teria de pagar um valor superi-

or a € 50.000,00.

Mais alegou a Autora que a crise económica e

financeira, que se instalou a partir de

15/09/2008, fez descer de forma acentuada as

taxas de juro, pelo que o contrato celebrado

sofreu um grande e repentino desequilíbrio,

sendo certo que as circunstâncias que despole-

taram a descrita crise financeira e económica

não eram de modo algum previsíveis e, por is-

so, não podiam estar cobertas pelos riscos pró-

prios do contrato.

Assim, a referida alteração anormal das circuns-

tâncias permitirá sempre à Autora pedir a reso-

lução do contrato de swap de taxa de juro em

discussão nestes autos.

Com estes fundamentos, a Autora pede que: (i)

se declare nulo e de nenhum efeito o contrato

objecto desta acção, condenando-se o Réu a

restituir a quantia de € 44.709,38, acrescida dos

juros de mora que se vencerem a partir da cita-

ção. Caso assim não se entenda, (ii) que se anu-

le o contrato de swap de taxa de juro por erro na

transmissão da declaração e erro sobre o objec-

to do negócio ou, caso assim não se entenda,

(iii) que se declare resolvido o contrato por alte-

ração anormal das circunstâncias em que as

partes fundaram a decisão de contratar e, em

qualquer um dos casos, ordenando-se a restitui-

ção à autora da quantia de € 44.709,38, acresci-

da de juros de mora desde a citação até integral

pagamento.

O Réu contestou, alegando que a celebração do

contrato foi precedida de vários contactos entre

Autora e Réu, com inúmeras trocas de corres-

pondência e uma reunião onde foram explica-

das à Autora as vantagens e desvantagens da

cobertura da taxa de juro, com a proposta de

várias soluções. Acresce que o legal represen-

tante da Autora sempre se fez acompanhar de

alguém que se apresentava como assessor para

estas matérias. Mais alega que o contrato de

swap em questão cobre, nos seus precisos ter-

mos, o risco de variação de taxa de juro, mas

não defende a Autora de qualquer variação da

taxa de juro, pelo que o Réu impugna tudo o

que a Autora alega em contrário, defendendo

que nunca fez crer à Autora que esta poderia

denunciar o contrato a partir dos 3,95%. Mais

defende o Réu que, atenta a natureza do contra-

to de swap, o risco de alteração das taxas de

juro não pode ser excluído do contrato, razão

pela qual deve improceder o pedido de resolu-

ção por alteração das circunstâncias. Mais alega

que a Autora aceitou as consequências benéfi-

cas do contrato que agora pretende declarar nu-

lo, pelo que a sua conduta excede os limites

impostos pela boa fé e pelos bons costumes,

representando um grosseiro exercício do direito

na modalidade de venire contra factum propri-

um. O Réu concluiu pela improcedência da ac-

ção e pediu a sua absolvição do pedido.

65 : CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS

O Tribunal de 1.ª Instância proferiu sentença

condenatória com fundamento na alteração

anormal das circunstâncias em que as partes

fundaram a decisão de contratar e julgou proce-

dente a acção movida pela Autora, declarando,

consequentemente a resolução do contrato de

swap de taxa de juro com barreira celebrado

pelas partes, condenando o Réu a restituir à Au-

tora a quantia de € 44.709,38 acrescida dos

juros de mora que se vencerem desde a citação

até efectivo cumprimento.

Da sentença condenatória o Réu interpôs recur-

so perante o Tribunal da Relação de Guimarães,

que, por Acórdão de 8/03/2012, na improcedên-

cia da apelação, confirmou, por unanimidade, a

sentença recorrida.

Do referido Acórdão interpôs o Réu recurso de

revista perante o Supremo Tribunal de Justiça,

que confirmou as duas decisões antecedentes.

II. FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA

Com relevância para a decisão da causa, em 1.ª

instância foi dada como provada a seguinte fac-

tualidade, que se encontra assente:

1. A Autora é uma empresa industrial que fa-

brica peúgas para exportação (Alínea A).

2. Em 2008, a Autora celebrou com o Réu um

contrato de locação financeira imobiliária

que teve por objecto um pavilhão industrial,

sito na freguesia da [●] Barcelos (Alínea B).

3. Em Julho de 2008, o responsável da depen-

dência de Braga do Réu, Dr. CC, apareceu

na sede da Autora, incentivando-a a celebrar

um outro contrato (Alínea C).

4. Esse responsável do réu referiu à Autora que

um tal contrato tinha a ver com o facto de a

taxa de juro dos empréstimos bancários se

encontrar nessa altura muito alta (4,40%)

(Alínea D).

5. E daí a conveniência em celebrar um contra-

to que fixasse essa taxa de juro dentro de

determinados limites/barreira, isto porque a

prestação referente ao contrato de locação se

encontrava indexada à taxa Euribor e, como

essa taxa estava alta (e temia-se que conti-

nuasse a subir), essa prestação tinha tendên-

cia também para subir (alínea E).

6. Ou seja, em vez de se correr o risco das suas

prestações do contrato de locação subirem

sem limite, por efeito desse contrato, fixar-se

-ia um limite/barreira dentro do qual a Auto-

ra pagaria sempre a mesma taxa de juro

(Alínea F).

7. Sendo que, caso a taxa de juro subisse para

além desse limite/barreira, a prestação da

autora referente ao contrato de locação man-

ter-se-ia exactamente no mesmo valor

(Alínea G).

8. Esse responsável do Réu referiu à Autora

que, no contrato de taxa de juro que lhe pre-

tendia propor, fixava-se um limite/barreira

da taxa de juro, dentro do qual a Autora ape-

nas pagava a taxa de juro base prevista no

contrato (Alínea H).

9. Em 8/08/2008, o Réu apresentou e solicitou

à Autora que assinasse o referido contrato de

taxa de juro, tendo ficado a constar do mes-

mo, designadamente, o seguinte:

CONTRATO DE SWAP

DE TAXA DE JURO COM BARREIRA

Entre:

a) - Primeiro Contratante: BANCO AA

(PORTUGAL), S.A. (…).

b) - Segundo Contratante: BB, L.da (…)

É celebrado e reciprocamente aceite de boa - fé,

CONTRATO DE SWAP E ALTERAÇÃO DE CIRCUNSTÂNCIAS...: 65

66 : CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS

o presente contrato de SWAP de taxa de juro

com barreira, o qual se rege pelo clausulado

subsequente (…):

CLÁUSULA PRIMEIRA

(Objecto)

Pelo presente contrato, acordam o Banco e a

Cliente, em contratar um instrumento financeiro

derivado denominado SWAP de taxa de juro

com barreira, ao abrigo do qual as partes ficam

obrigadas a efectuar entre si pagamentos, nos

termos e condições previstos na ficha técnica

que se transcreve infra e no contrato que ora se

celebra:

a) - Instrumento financeiro contratado: SWAP

de taxa de juro com barreira;

b) - Valor nocional inicial: € 600.000,00

(seiscentos mil euros); (…)

Sendo que:

1 - Se a Euribor a três meses for igual ou inferi-

or a 5,15%, a taxa variável cliente será de

4,55%;

2 - Se a Euribor a três meses for superior a

5,15%, a taxa variável cliente será a referida

Euribor a três meses; (…)

CLÁUSULA SEGUNDA

(Vigência)

1 - O presente contrato vigorará, por 5 anos,

com início em 8 de Agosto de 2008 e termo em

2 de Agosto de 2013;

2 - Não obstante o exposto no ponto anterior

desta cláusula, a cliente poderá solicitar ao Ban-

co o cancelamento antecipado total da operação

ora contratada, mediante comunicação escrita,

observando um pré-aviso de 10 dias úteis – com

referência à data em que pretenda que tal cance-

lamento se torne eficaz – devendo tal comuni-

cação ser entregue na agência 149-BEC Braga,

do Banco, aplicando-se neste caso, o disposto

nas cláusulas Terceira e Quarta infra.

CLÁUSULA TERCEIRA

(Processamento do cancelamento

do derivado financeiro)

1 - Na sequência do previsto na cláusula ante-

rior, o cancelamento antecipado da operação

nos termos do seu n.º 2 ou a actualização extra-

ordinária – por redução – do valor nocional im-

plicará o cancelamento total ou parcial desta

operação, sendo que tal cancelamento originará

o apuramento do correspondente “valor do mer-

cado”, com referência à data da cessação da

operação e que poderá ser negativo ou positivo

para a Cliente (…).

CLÁUSULA QUINTA

(Declarações da Cliente)

1 - A Cliente declara perante o Banco que:

a) - Celebra com o Banco este contrato com a

finalidade de cobrir o risco inerente a potenciais

aumentos de taxas de juro compensatórias (…)

DECLARAÇÃO FINAL

A Cliente declara que solicitou ao Banco a cele-

bração da presente operação de Derivado Fi-

nanceiro com as características que se encon-

tram plasmadas neste contrato, nomeadamente

as constantes nas Cláusulas Primeira, Terceira e

Quarta.

A Cliente declara ainda que realizou a sua

própria avaliação/valoração da operação objec-

to deste contrato, nomeadamente, sobre a con-

veniência e oportunidade de celebrar o mesmo -

tendo-se munido de assessoramento jurídico,

financeiro e fiscal externo ao Banco – reconhe-

cendo, expressamente, que as características da

operação se ajustam aos seus objectivos de

financiamento e que os riscos associados à

67 : CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS

mesma adaptam-se ao seu perfil.

Mais reconhece a Cliente ter sido informada das

condições associadas a eventuais cenários de

alteração de taxa de juro, pelo que é capaz de

avaliar as vantagens e inconvenientes financei-

ros do contrato e que, em consequência, enten-

de, assume e aceita plenamente os termos, con-

dições e riscos inerentes ao mesmo e à operação

que constitui o seu objecto. Em especial, a Cli-

ente assume e entende as consequências de um

eventual cancelamento antecipado do Derivado

Financeiro a que este contrato se refere - parti-

cularmente, as cláusulas Terceira, Quarta e Sé-

tima, cujo teor declara entender na íntegra –

estando consciente de que o mesmo, pode oca-

sionar-lhe um valor económico que implique

uma perda superior ao possível benefício obtido

até ao momento do referido cancelamento ante-

cipado (…) – cfr. documento n.º 1 junto com a

petição inicial que se reproduz para os devidos

efeitos (Alínea I).

10. Este contrato de taxa de juro foi apresentado

à Autora já antecipadamente redigido pelo Réu

e com todas as condições que o Réu entendeu aí

colocar (Alínea J).

11. A Autora nunca discutiu antes com o Réu

quaisquer das condições específicas desse con-

trato, a não ser a fixação da taxa de juro e o li-

mite/barreira a partir do qual o contrato podia

ser denunciado (Alínea K).

12. De Agosto a Dezembro de 2008, a Autora

pagou sempre a taxa de juro a 4,55% tal como

contratado (Alínea L).

13. Relativamente ao período de tempo em que

essa taxa ultrapassou os 5,15%, o Réu não cre-

ditou qualquer valor a favor da Autora, e tam-

bém não denunciou o contrato (Alínea M).

14. A partir do mês de Janeiro do ano de 2009,

a taxa de juro começou a descer a um ritmo

acelerado, ultrapassando mesmo o limite/

barreira dos 3,95% contratado (Alínea N).

15. Em 29/06/2009, o Réu debitou à Autora, de

uma só vez, os seguintes valores: € 331,90;

€ 353,57; € 352,35; € 1235,34; € 1362,89;

€ 92,95; € 1401,85 e € 1529,78, num total de

€ 6.660,63, cfr. documentos n.os 2 a 9 juntos

com a petição inicial, que se reproduzem para

os devidos efeitos (Alínea O).

16. Nessa mesma altura, o Réu enviou à Autora

oito notas de débito referentes a esses valores,

todas com a mesma data de 29/06/2009, sendo

as seis primeiras com data - valor de 2/04/2009

e duas com data de 4/05/2009 e 2/06/2009

(Alínea P).

17. Essas notas de débito não continham qual-

quer explicação sobre a forma como foram apu-

rados o respectivo valor, as taxas de juro tidas

em conta e os meses a que respeitavam (Alínea

Q).

18. A Autora questionou de imediato o Réu

sobre o débito destes valores, tendo-lhe este

respondido que esse débito tinha a ver com o

facto de a taxa de juro ter descido abaixo do

limite/barreira de 3,95% (Alínea R).

19. E que esses valores respeitavam aos meses

de Janeiro, Fevereiro e Março do ano de 2009

(Alínea S).

20. Estando por isso a Autora obrigada a pagar-

lhe a diferença entre a taxa de juro Euribor que

se foi verificando ao longo desses três meses e a

CONTRATO DE SWAP E ALTERAÇÃO DE CIRCUNSTÂNCIAS...: 67

68 : CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS

taxa de 4,55% fixada no contrato (Alínea T).

21. A Autora comunicou logo ao Réu que, ten-

do em conta esses débitos de valor considerável

e a tendência para a descida da taxa Euribor,

pretendia pôr de imediato fim ao contrato

(Alínea U).

22. O Réu informou a Autora de que o cancela-

mento antecipado desse contrato implicava pa-

gar ao Réu um valor superior a € 50.000,00

(cinquenta mil euros) (Alínea V).

23. Nos meses subsequentes, o Réu continuou a

debitar à Autora em cada mês a diferença entre

a taxa de juro Euribor em vigor e a taxa de

4,55% fixada no contrato, tendo debitado à au-

tora um total de € 38.048,75, referentes aos me-

ses de Abril de 2009 a Abril de 2011, conforme

documentos 10 a 29 da petição inicial, que se

reproduzem para os devidos efeitos (Alínea X).

24. A Autora tem pago esses valores apenas

para não incorrer numa situação formal de in-

cumprimento bancário, pois que, caso não pa-

gasse, o Réu comunicaria esse facto ao Banco

de Portugal, que por sua vez o difundiria por

todos os Bancos (Alínea W).

25. Essa informação, a ocorrer, poria de imedia-

to em causa a credibilidade da autora junto de

todos os Bancos e dos seus clientes, o que seria

absolutamente desastroso para a sua estabilida-

de económica (Alínea Y).

26. O contrato foi celebrado em 8/08/2008 sem

que fosse possível prever a crise económica e

financeira que se instalou a partir de 15/09/2008

(Alínea Z).

27. A partir desta última data, e por efeito da

falência do centenário e 4.º maior Banco de In-

vestimento dos EUA (LEHMAN BROTHERS),

percepcionou-se que muitos dos produtos ban-

cários não tinham contrapartida em valores re-

ais (Alínea AA).

28. O LEHMAN BROTHERS não resistiu à

crise do mercado de crédito imobiliário de alto

risco (subprime) (Alínea BB).

29. Tendo perdido 2,7 mil milhões de euros no

3.º trimestre de 2008, depois de ter sofrido for-

tes depreciações dos activos ao nível do seu

portefólio de créditos imobiliários (Alínea CC).

30. A queda deste Banco representa o momento

em que a crise financeira se transformou em

pânico global e ameaçou tornar-se numa Gran-

de Depressão comparável à de 1929 (Alínea

DD).

31. O sistema financeiro, na realidade, não dis-

punha do capital que era suposto ter, uma vez

que muito do crédito que concedia não tinha

contrapartida material (Alínea GG).

32. Ou seja e na prática, formalmente circulava

muito mais dinheiro do que na realidade existia

(Alínea HH).

33. A consciência de uma tal realidade fez com

que os Bancos repentinamente se contraíssem

na concessão de crédito, afectando os particula-

res e empresas que, sem crédito, não podiam

prosseguir a sua actividade (Alínea II).

34. Com o fim de combater a recessão e reto-

mar a concessão de crédito, os Bancos Centrais

69 : CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS

de todo o mundo passaram a injectar no sistema

bancário valores nunca até então imaginados

(Alínea JJ).

35. Provocando com isso uma repentina e acen-

tuada descida das taxas de juro (Alínea KK).

36. Ora, esse efeito reflectiu-se, directa e intrin-

secamente, no contrato de swap de taxa de juro

objecto desta acção, que tinha precisamente na

sua essência e base a taxa de juro (Alínea LL).

37. Por esse efeito, o referido contrato sofreu

um grande e repentino desequilíbrio, verifican-

do-se que a Autora, no curto espaço de três me-

ses, passou a ter um encargo e um prejuízo gra-

ve decorrente desse contrato (Alínea MM).

38. As circunstâncias que despoletaram a

descrita crise financeira e económica não eram

de modo algum previsíveis e continuam a ser

absolutamente anormais (Alínea NN).

39. O contrato referido no ponto 2.º foi assinado

no 2.º semestre de 2008 e marcou o início da

relação comercial/bancária entre Autora e Réu

(Resposta ao quesito 1.º).

40. O referido nos pontos 3.º a 8.º aconteceu

durante as negociações com vista à celebração

do contrato de locação (resposta ao quesito 2.º).

41. Em Julho de 2008, os responsáveis do Réu

que negociaram com a Autora a celebração do

contrato em causa referiram que se a taxa de

juro aumentasse até determinado limite/

barreira, a Autora pagaria sempre a taxa de juro

fixa prevista no contrato (resposta ao quesito

3.º).

42. Caso a taxa de juro ultrapassasse esse limi-

te/barreira, a Autora teria de pagar a taxa de

juro correspondente, perdendo pois todo e qual-

quer benefício (resposta ao quesito 4.º).

43. Caso a taxa de juro descesse abaixo da taxa

de juro contratada (fixa), a Autora continuaria a

pagar tal taxa, suportando a diferença (resposta

ao quesito 6.º).

44. Na sequência dos contactos mantidos com o

Réu, a Autora assinou o acordo referido no pon-

to 9.º (resposta ao quesito 9.º).

45. O Réu enviou o contrato à Autora para, no

dia seguinte, ser assinado, não lhe tendo lido a

totalidade das cláusulas que o compunham

(resposta ao quesito 10.º).

46. O representante da Autora é uma pessoa

simples, que trabalha no dia - a - dia na produ-

ção de peúgas e nunca antes tinha contratado

qualquer operação bancária complexa (resposta

ao quesito 11.º).

47. Na data da assinatura do referido contrato

(8/08/2008), a taxa de juro Euribor, a três me-

ses, encontrava-se no valor de 4,966% e no dia

30/09/2008 encontrava-se a 5,277%, tendo su-

bido até ao valor de 5,395% em 9/10/2008

(resposta ao quesito 18.º).

48. Na sequência do referido no ponto 22.º, a

Autora insistiu com o Réu para que encontrasse

uma solução para o problema, pedindo-lhe que

aceitasse a cessação do contrato (resposta ao

quesito 19.º).

49. O contrato de locação financeira e o referi-

do no ponto 9.º foram ambos assinados em

8/08/2008 e foram precedidos de vários contac-

tos, envolvendo troca de correspondência, três

reuniões (em 26/05/2008, 9/06/2008 e

13/06/2008) para tratar do contrato de locação

CONTRATO DE SWAP E ALTERAÇÃO DE CIRCUNSTÂNCIAS...: 69

70 : CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS

financeira e uma reunião (em 3/07/08) para

apresentar à Autora as várias modalidades de

taxas de juro por que a Autora poderia optar,

nomeadamente, por aquela que resultasse da

celebração de um contrato de swap de taxa de

juro com barreira, tendo sido explicadas as van-

tagens e desvantagens e conteúdo do referido

contrato ao representante da Autora, que se fa-

zia acompanhar por um amigo, ex-bancário

(resposta ao quesito 20.º).

(…)

III. DECISÃO

I – Contrato de swap, ou de permuta financeira,

é o contrato através do qual uma parte transfere

o risco económico inerente a um activo para

outra parte, em troca de uma remuneração; con-

cretamente as partes obrigam-se (i) ao paga-

mento recíproco e futuro de duas quantias pecu-

niárias, (ii) na mesma moeda ou em moedas

diferentes, (iii) numa ou várias datas predeter-

minadas, (iv) calculadas por referência a fluxos

financeiros associados a um activo subjacente,

geralmente, a uma determinada taxa de juro.

II – São seus caracteres o serem contratos a pra-

zo; consensuais, (não estando sujeitos a forma

legal obrigatória, excepto nos casos em que se

insiram em serviços de intermediação financei-

ra com o público investidor), não reais (cuja

formação requer a mera declaração das partes

contratantes), sinalagmáticos (sendo fonte para

ambas as partes de obrigações ligadas entre

si por um nexo de reciprocidade), patrimoniais

(onde está, em regra, afastado qualquer “intuitu

personae” , sendo irrelevante a pessoa ou

a qualidade dos contratantes), onerosos

(envolvendo atribuições patrimoniais para

ambas as partes) e aleatórios (no sentido em

que é o risco e incerteza que fornece a própria

causa e objecto contratuais).

III – Quanto ao seu objecto, dividem-se em du-

as modalidades fundamentais: os swaps de dívi-

das (as partes acordam permutar ou trocar entre

si quantias pecuniárias expressas em duas moe-

das diferentes, calculadas mediante a aplicação

de uma taxa de câmbio predeterminada) e os de

juros (as partes contratantes acordam trocar en-

tre si quantias pecuniárias expressas numa mes-

ma moeda, representativas de juros vencidos

sobre um determinado capital hipotético, calcu-

lados por referência a determinadas taxas de

juro fixas e/ou variáveis).

IV – A resolução ou modificação do contrato

por alteração das circunstâncias depende da

verificação dos seguintes requisitos: (i) que haja

alteração relevante das circunstâncias em que as

partes tenham fundado a decisão de contratar,

ou seja, que essas circunstâncias se hajam mo-

dificado de forma anormal, e que (ii) a exigên-

cia da obrigação à parte lesada afecte grave-

mente os princípios da boa fé contratual, não

estando coberta pelos riscos do negócio.

V – Nos contratos, como os referidos em I em

que as partes visam justamente negociar sobre a

incerteza, o risco fornece o próprio objecto con-

tratual pelo que a alteração das circunstâncias

tem de ser de apreciável vulto ou proporções

extraordinárias: o prejuízo só justifica a resolu-

ção ou modificação do contrato quando se veri-

fique um profundo desequilíbrio do contrato,

sendo intolerável com a boa - fé que o lesado o

suporte.

VI – Tal profundo desequilíbrio pode resultar

da significativa descida das taxas de juro (que

chegou abaixo dos 3,95%), provocada por gra-

ve crise financeira, com grande divergência da

taxa, superior, que as partes representaram

71 : CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS

como possível e a que o contrato pretendia as-

segurar (in casu, 5,15%).

VII – Os swaps, que conferem às partes posi-

ções jurídicas permutáveis relativas a determi-

nadas quantias pecuniárias em data ou datas

futuras previamente fixadas, são contratos de

execução sucessiva ou periódica – a sua realiza-

ção exige várias prestações, durante o tempo de

vigência do contrato – pelo que se lhes aplica o

n.º 2 do artigo 434.º do CC.

Pelo exposto, na improcedência da revista, con-

firma-se, embora com distintos fundamentos, o

Acórdão recorrido.

Custas pelo recorrente.

Lisboa, 10 de Outubro de 2013

Granja da Fonseca

Silva Gonçalves

Pires da Rosa.

CONTRATO DE SWAP E ALTERAÇÃO DE CIRCUNSTÂNCIAS...: 71

ANOTAÇÃO

As questões decididas pelo Acórdão que ora se

comenta são as de saber se:

1. A essência do contrato de swap reside no

risco subjacente à variação da taxa de juro,

independentemente do que a motivou, e, por

isso, o tribunal a quo interpretou e aplicou

incorrectamente o disposto no artigo 437.º

do Código Civil (doravante CC);

2. O prejuízo só justifica a resolução ou modi-

ficação do contrato quando se verifique um

profundo desequilíbrio do contrato e a exis-

tência de um dano grave;

3. O contrato de swap é um contrato de execu-

ção periódica e, como tal, a resolução do

mesmo não abrange as prestações já efectua-

das.

O Supremo Tribunal de Justiça, no Acórdão

transcrito, proferido a 10 de Outubro de 2013,

no processo n.º 1387/11.5TBBCL.G1.S1, deci-

diu-se pela negativa quanto à primeira questão e

pela afirmativa quanto às demais, determinando

a resolução do contrato de swap e a condenação

do Réu na restituição à Autora da quantia de €

44.709, 38 acrescida dos juros de mora que se

vencerem desde a citação até efectivo cumpri-

mento.

Na anotação deste Acórdão procurar-se-á – a

propósito desta posição do Tribunal, que enten-

demos não dever ser sufragada – fazer uma bre-

ve análise do regime da alteração de circunstân-

cias e do contrato de swap de taxa de juro, tal

como são configurados pelo CC e pelo Código

dos Valores Mobiliários (doravante CdVM),

respectivamente.

72 : CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS

1. O CONTRATO DE SWAP DE TAXA DE JURO

1.1 Enquadramento

O contrato de swap de taxa de juro (expressão

que traduzida à letra para português significa

troca, ou permuta, de taxa de juro) é uma das

espécies dos contratos de swaps1.

Os swaps são uma sub-espécie dos instrumen-

tos financeiros derivados, ou seja, aqueles cujo

valor depende, em maior ou menor medida,

do valor de um ou mais activos, instrumentos

financeiros ou índices que lhes estão subjacen-

tes2. Não significa isto que, a contrario, o valor

dos instrumentos financeiros não derivados seja

completamente autónomo de qualquer outro

activo, instrumento financeiro ou índice. O ele-

mento distintivo entre uns e outros consiste na

existência, nos instrumentos financeiros deriva-

dos, de uma ligação formal, mais do que econó-

mica, jurídica, com activo(s), instrumento(s)

financeiro(s) ou índice(s) determinado(s). Em

traços gerais, é esta ligação o elemento caracte-

rístico dos instrumentos financeiros derivados,

que os distingue dos instrumentos financeiros

não derivados.

Formalmente, os swaps são contratos bilaterais

através dos quais as partes permutam, por um

período de tempo predefinido, uma série de

prestações pecuniárias, cujo valor respectivo é

calculado com referência a factores fixos ou

variáveis e na mesma ou em diferentes moedas.

A celebração e negociação de contratos de

swaps combina dois aspectos aparentemente

paradoxais.

Um indicia autonomia: a negociação fora de

mercado (Over The Counter ou OTC na termi-

nologia anglo-saxónica), ou seja, fora do âmbi-

to do que tradicionalmente se entendia como

“mercado regulamentado” e que hoje corres-

ponde, grosso modo, à realidade das formas

organizadas de negociação3.

Outro indicia padronização: a negociação feita

tipicamente através do uso de documentação

desde há muito estandardizada.

Em qualquer caso, certo é que estamos perante

contratos atípicos, no sentido de não terem re-

gulação específica seja quanto à sua formação,

seja quanto ao seu conteúdo4. É por isso perti-

nente falar, a este respeito, de um tipo contratu-

al social5, cujo teor usual tem sido definido na

prática, pelos intermediários financeiros e ou-

tros agentes de forma estandardizada, em parti-

cular no seio da ISDA6.

No contrato de swap de taxa de juro as partes

acordam na permuta, durante determinado perí-

odo, de pagamentos periódicos calculados com

base em pressupostos distintos com referência a

um valor nocional acordado. Os pagamentos a

realizar pelas partes podem ser feitos na mesma

1-Para uma perspectiva genérica do tema, veja-se GONZALEZ, PEDRO BOULLOSA – Interest Rate Swaps: Perspectiva Jurídica, in Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários, Abril de 2013, n.º 44.

2- ANTUNES, JOSÉ A. ENGRÁCIA, Os Derivados, in Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários, número 30, Agosto de 2008. O Código dos Valores Mobiliários não contém uma definição de instrumento financeiro derivado.

3- GONZALEZ, op. cit., pp. 12-13.

4- Os swaps, em geral, estão previstos, enquanto categoria de instrumentos financeiros, no artigo 2.º, n.º 1, do CdVM, mas não são objecto

de regime específico no CdVM. A este respeito, veja-se COSTA, Mário Júlio de Almeida, Direito das Obrigações, 9.ª Edição Revista e Aumentada, Almedina, 2001, pp. 325 e ss., VARELA, João de Matos Antunes, Das Obrigações em Geral, Vol. I, 10.ª Edição, Almedina,

2004, pp. 272 e ss..

5- Cf., ainda que a propósito do contrato de depósito, FRADA, MANUEL CARNEIRO DA – Crise financeira mundial e alteração das circuns-

tâncias: contratos de depósito versus contratos de gestão de carteiras, in Revista da Ordem dos Advogados, Ano 69, n.º 3-4 (2009).

6- Sobre a ISDA e a padronização dos contratos de swap, ver GONZALEZ, op. cit., p. 13.

73 : CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS

moeda ou em moedas diferentes e ser calcula-

dos com referência a taxas fixas ou variáveis.

Na estrutura, em suma, o contrato de swap de

taxa de juro é atípico, sinalagmático, duradouro,

oneroso e aleatório7.

Dos referidos aspectos, dois assumem particular

importância na análise das questões decididas

pelo Acórdão em anotação. A natureza aleatória

e a vertente duradoura.

1.2 Natureza Aleatória

Uma das características intrínsecas do contrato

de swap de taxa de juro é a sua aleatoriedade.

Um contrato aleatório é uma espécie da catego-

ria mais vasta dos contratos onerosos, isto é,

aqueles que, em termos gerais, implicam um

sacrifício económico para ambas as partes.

Mais precisamente, no contrato aleatório “um

dos contraentes suporta o sacrifício patrimoni-

al certo, em vista de atribuição incerta, que

todavia, a verificar-se, será ou poderá ser de

valor superior; ou, então, há reciprocidade de

atribuições, mas o valor de ambas, ou de uma

delas, não é conhecido antecipadamente, e po-

de variar em função de determinado factor” 8.

Para além da álea normal de qualquer contrato,

que consiste no desconhecimento preciso da

medida das vantagens e desvantagens que dele

emergirão para cada uma das partes, verifica-se

no contrato aleatório uma álea específica, que

acresce ou reforça a álea contratual inerente.

Esta álea específica consiste na sujeição da

ocorrência ou da medida das obrigações de

prestar previstas no contrato a determinado(s)

evento(s) futuro(s) incerto(s).

Em particular, no contrato de swap (ao contrá-

rio do que ocorre nomeadamente no contrato de

seguro) a álea incide não sobre a obrigação de

prestar, que é certa, mas apenas sobre a sua me-

dida, que é incerta.

A álea específica integra a própria essência do

contrato aleatório e, em particular, do contrato

de swap de taxa de juro. Significa isto que é

elemento típico essencial do contrato a incerte-

za quanto à medida das obrigações a que as par-

tes estarão adstritas ao abrigo do contrato e con-

sequentemente o eventual desequilíbrio entre as

prestações. Por isso, quando celebram um con-

trato de swap de taxa de juro, necessariamente

as partes aceitam a possibilidade de ganho ou

perda no cômputo da relação contratual, aten-

dendo à álea específica inerente à figura contra-

tual em causa.

Com efeito, as partes de um contrato de swap

de taxa de juro acordam à partida na permuta,

durante a vigência da relação contratual, de

prestações periódicas de taxas de juro cujo va-

lor respectivo será calculado com base em pres-

supostos diferentes e cuja verificação ou medi-

da são, no momento da celebração, incertos. Ao

fazê-lo, as partes voluntariamente assumem os

riscos de variação desfavorável dos pressupos-

tos que irão determinar as prestações devidas

por cada uma delas.

A incerteza quanto à medida das prestações é

um elemento típico essencial do contrato de

swap de taxa de juro. Esta ideia é tão mais evi-

dente quanto mais se tiverem em consideração

CONTRATO DE SWAP E ALTERAÇÃO DE CIRCUNSTÂNCIAS...: 73

7- Em sentido diverso, ALMEIDA, ANTÓNIO PEREIRA de, Instrumentos Financeiros: Os Swaps, in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Carlos Ferreira de Almeida, Vol. II, Almedina, 2011.

8- Cf. TELLES, Inocêncio Galvão, Manual dos Contratos em Geral, Lisboa, 1995 (reimpressão da 3ª Edição de 1965), p. 405.

74 : CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS

os fins típicos de um contrato de swap de taxa

de juro. São essencialmente três: especulação,

cobertura de risco ou redução de custos de fi-

nanciamento.

Se bem se reparar, qualquer dos referidos fins

assenta precisamente, ainda que não em exclu-

sivo, na ideia de incerteza e risco. O especula-

dor aposta num determinado resultado, que o

pode beneficiar por haver quem acredite em

resultado diverso. Um resultado certo afasta por

completo qualquer hipótese de especulação. A

cobertura de risco, como o termo indicia, visa

acautelar um risco, ou seja, a ocorrência de um

evento futuro incerto. Por fim, a redução de

custos de financiamento obtém-se por via da

conjugação de um contrato de swap de taxa de

juro com outros documentos contratuais, como

um contrato de mútuo ou a compra e venda de

obrigações. A lógica inerente é a de acautelar

uma possível evolução desfavorável no âmbito

de uma qualquer outra relação contratual. Tam-

bém aqui, portanto, se visa acautelar a eventual

ocorrência de um evento futuro incerto. Tam-

bém aqui a inexistência de incerteza retira razão

de ser à celebração do contrato.

Em suma, a álea específica é indissociável do

contrato de swap de taxa de juro.

A questão que se coloca, a este respeito, é a de

saber até que ponto e em que medida este as-

pecto prejudica a possibilidade de aplicar a um

contrato de swap de taxa de juro o regime da

alteração de circunstâncias. Em particular, se

exclui de todo a aplicação do regime ou se per-

mite a sua aplicação a partir de determinados

limites, necessariamente quantitativos ou de

grau, atendendo à concreta relação entre as

prestações em causa. A esta questão daremos

resposta adiante.

1.3 Prestações Duradouras

Um outro aspecto que merece atenção na figura

do contrato de swap de taxa de juro tem que ver

com o objecto do contrato. As prestações pecu-

niárias abrangidas por um contrato de swap de

taxa de juro são prestações duradouras em sen-

tido amplo9, dado que se distendem no tempo e,

em particular, prestações com trato sucessivo

ou periódicas10, o que significa que o objecto

contratual é composto por diversas prestações, a

realizar em princípio de forma periódica regu-

lar, que derivam de uma só relação obrigacional

(mais precisamente, contratual). Consequente-

mente, um contrato de swap de taxa de juro, por

definição, é um contrato a prazo, cujo cumpri-

mento não coincide temporalmente com a as-

sunção das obrigações pelas partes.

Este aspecto assume relevância sob duas pers-

pectivas distintas.

Desde logo, de um ponto de vista negocial,

constitui um adicional factor de risco, dado que

a extensão temporal é naturalmente acompanha-

da da potencial insuficiência patrimonial futura

da contraparte para cumprir as prestações pecu-

niárias devidas, sobretudo quando não existem

garantias ou meios de conservação patrimonial.

De facto, quando as partes contratam prestações

às quais não vão aceder de imediato assumem o

risco inerente à possibilidade de a contraparte

não poder realizar as prestações no momento

em que forem devidas.

9- As prestações duradouras subdividem-se em dois tipos: aquelas em que existe apenas uma prestação, que é prolongada no tempo e aque-las que integram diversas prestações, a realizar periodicamente. As primeiras por sua vez integram duas categorias: as prestações fracciona-

das ou divididas, em que a prestação, única, é dividida ou fraccionada durante certo período de tempo e as continuativas ou de execução

continuada, que se traduzem numa actividade ou conduta única que se prolonga no tempo. Veja-se COSTA, Mário Júlio de Almeida, op. cit., pp. 643 e ss..

10- Na terminologia do mercado de capitais, no mais amplo sentido, e apesar de não constituir uma operação, pode dizer-se que o interest rate swap é um contrato a prazo (integrando o “ forward market”), em que as partes negoceiam activos para entrega futura, por oposição

aos contratos que se situam no mercado a contado (“spot market”) em que as partes negoceiam activos que são entregues de imediato.

75 : CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS

Mas também sob um ponto de vista estritamen-

te jurídico, há consequências relevantes da na-

tureza periódica das prestações inerentes aos

interest rate swaps, seja do ponto de vista do

direito civil ou até do direito criminal e contra-

ordenacional11.

Destacamos uma, com particular relevância

para a presente anotação, que respeita ao regi-

me da resolução do contrato, previsto no artigo

434.º do CC. O regime geral, previsto no n.º 1

do preceito, é o de que a resolução tem efeitos

retroactivos, salvo se a retroactividade contrari-

ar a vontade das partes ou a finalidade da reso-

lução. O n.º 2 do referido preceito estabelece,

porém, que nos contratos de execução continua-

da ou periódica a resolução não abrange as

prestações já efectuadas, excepto se entre estas

e a causa de resolução existir um vínculo que

legitime a resolução de todas elas. No exemplo

específico de um contrato de swap de taxa de

juro, em caso de resolução do contrato as pres-

tações já recebidas pelas partes não terão de ser

restituídas, uma vez que cada uma das presta-

ções periódicas é autónoma e devida por rela-

ção a um certo período de tempo ao qual está

ligada (tipicamente, um mês ou conjunto de

meses), pelo que os efeitos retroactivos da reso-

lução estão assim prejudicados. Com efeito, não

existe, no contrato de swap de taxa de juro,

qualquer vínculo entre as prestações e a causa

de resolução que legitime a eficácia retroactiva.

Os pagamentos (as taxas de juro) convenciona-

dos são autónomos entre si na medida em que

se reportam a períodos delimitados igualmente

autónomos.

Temos então que a resolução de um contrato de

swap de taxa de juro não terá efeitos retroacti-

vos, pelo que as prestações já realizadas não

serão afectadas. A este respeito, embora aparen-

temente corroborando esta conclusão, o Acór-

dão em anotação acaba por fazer retroagir a

resolução a momento prévio, alegando para tal

que a alteração das circunstâncias se reportaria

a momento anterior ao da decisão judicial em

causa.

2. A ALTERAÇÃO DAS CIRCUNSTÂNCIAS

2.1 Pressupostos

2.1.1 Risco / Aleatoriedade

O artigo n. 437.º do CC desenha o instituto ge-

ral da alteração das circunstâncias, de aplicação

transversal no ordenamento jurídico nacional.

Numa tentativa de “depuração” deste instituto,

impera precisar em que consiste a base negocial

do contrato. Este conceito equivale precisamen-

te às “circunstâncias em que as partes fundaram

a sua decisão de contratar” , isto é, as circuns-

tâncias, ou o estado de coisas previsível, que

comummente levaram as partes a contratar na-

quele momento e naqueles termos.12 Neste do-

mínio, deve igualmente ser reconhecida a inser-

ção do equilíbrio financeiro dos contratos en-

quanto dado objectivo assumido pelas partes,

não podendo deixar de ser considerado como

um elemento no qual se fundou a celebração do

mesmo – exige-se um conjunto de circunstân-

cias cuja existência ou manutenção é necessária

para salvaguardar o sentido contratual e o seu

respectivo escopo, cuja alteração imprevista

pode perturbar a equivalência das prestações e o

equilíbrio do próprio contrato, além dos riscos

contratuais assumidos – de tal modo que seria

CONTRATO DE SWAP E ALTERAÇÃO DE CIRCUNSTÂNCIAS...: 75

11- Quanto às consequências do ponto de vista do direito civil, veja-se COSTA, Mário Júlio de Almeida, op. cit., pp. 646-648. Veja-se também GONZALEZ, op. cit., pp. 24 e ss..

12- OLIVEIRA ASCENSÃO, José, Onerosidade excessiva por “alteração de circunstâncias”, in Revista da Ordem dos Advogados, Ano 65, vol. III, Dezembro de 2005

76 : CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS

injusto manter as partes vinculadas se essas cir-

cunstâncias sofressem uma modificação essen-

cial e (excessivamente) prejudicial.

É necessária igualmente uma cuidadosa gradua-

ção da sobrecarga ruinosa a suportar pelo con-

traente lesado: o cumprimento tem de ser ne-

vralgicamente colocado em causa, de tal forma

que, ainda que jurídica e materialmente possí-

vel, a sua concretização revelar-se-ia economi-

camente desastrosa.

Importa acrescentar que o desvio de representa-

ção ocorrido face às condições estabelecidas

pelas partes, o facto desestabilizador do equilí-

brio contratual, deve apenas ser considerado,

para o caso em apreço, quando ocorrido em

momento subsequente, e não anterior ou origi-

nário (i.e. contemporâneo à celebração do negó-

cio) uma vez que nesse caso estamos perante a

problemática do erro13, não operando evidente-

mente o instituto da alteração de circunstâncias.

Convém, nesta sequência, fazer referência à

teoria do risco, enquanto instrumento essencial

para o desenho e funcionamento dos mais di-

versos contratos. Como é sabido, numa relação

contratual, seja esta de carácter público ou pri-

vado, está presente um risco inerente e inevitá-

vel que dessa relação necessariamente decorre,

para a qual se consagra a formulação da regra

geral que define que “as circunstâncias que se

repercutem na esfera jurídica de uma parte

devem ser pela própria suportadas” 14.

Naturalmente, esta regra pressupõe a antece-

dência do princípio do pacta sunt servanda, uma

vez que seria difícil imaginar (para não dizer

impraticável) a hipótese de assegurar a estabili-

dade e a segurança jurídica de uma relação con-

tratual da qual cada parte se desvinculasse pe-

rante qualquer espécie de circunstância inespe-

rada e desfavorável que lhe sobreviesse. Ade-

rimos à constatação de que “suprimir o risco é

bloquear qualquer sociedade aberta, assente,

para mais, na iniciativa privada e na livre con-

corrência” 15, para além de que, historicamente,

o pacta sunt servanda personifica os ideiais de

eficácia e de validade dos negócios jurídicos.

No pólo oposto, também a ordem jurídica não

se poderá compaginar com a imperativa e

desajustada execução de um contrato que a

posteriori deixe de perfilhar o conjunto de re-

presentações a que as partes, no momento da

celebração, aderiram e conceberam – desta for-

ma, quando por razão de uma superveniência

que excede os riscos normais ou razoáveis se

verifique uma descaracterização do contrato,

este pode ser suprimido ou, pelo menos, ver o

seu conteúdo reajustado. Trata-se de uma autên-

tica “válvula de escape” que garante o respeito

pelo princípio basilar da boa fé, conformador

de todo o ordenamento, nomeadamente na sua

particular vertente da tutela da confiança legíti-

ma16.

Este mecanismo excepcional justifica a inexigi-

bilidade do cumprimento das obrigações contra-

tuais, com fundamento na alteração dos pressu-

postos presentes na estipulação e celebração do

negócio jurídico em virtude de facto superveni-

ente. Apesar de qualquer contrato, de acordo

com as condições normais das leis de mercado,

envolver um risco para as partes, colocar o seu

equilíbrio financeiro em causa por factos impre-

visíveis e que a nenhuma das partes podem ser

13- Desenvolvido infra no ponto 2.4.1

14- AMADO GOMES, Carla, apud FRANZ WIEACKERM, Geme inschaftlicher Irrtum der Vertragspartner

und Clausula rebus sic stantibus. Ein Beitrag zur Geschaftsgrundlage, pp. 250 e ss.

15- MENEZES CORDEIRO, António, Tratado de Direito Civil Português I, Parte Geral, Tomo I, 3ª Edição, 2007, p. 830.

16- MENEZES CORDEIRO, António, Da boa fé no Direito Civil, pp. 941 e ss.

77 : CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS

imputáveis ultrapassa largamente esse risco

natural, consubstanciando um risco despropor-

cionado na esfera do contraente lesado, que,

uma vez colocado nessa posição, deve ver asse-

gurada como contrapartida a reposição do equi-

líbrio financeiro, em consonância com o princí-

pio basilar da honesta equivalência das presta-

ções contratuais.

Trata-se portanto de um instrumento que, pe-

rante a evidência de excessos decorrentes da

volatilidade das relações negociais, realidade

que se manifesta paralelamente à evolução do

meio social, pretende encontrar os remédios

mais indicados para garantir o equilíbrio contra-

tual, através de uma solução que legitima, ex-

cepcionalmente, a revisão ou resolução do con-

trato em questão.

Assim sendo, facilmente se concretiza este raci-

ocínio assente na cláusula rebus sic stantibus,

ressuscitada no nosso ordenamento jurídico,

que vem definir que cada obrigação contratual

depende da manutenção substancial das cir-

cunstâncias sob as quais as partes decidiram

contratar. Na sua articulação prática, será lógico

admitir que o preenchimento desta cláusula fun-

damenta a excepção capaz de afastar a regra

geral pacta sunt servanda. Destarte, daqui se

retira que a cláusula rebus sic stantibus está

inevitavelmente integrada no âmago da relação

contratual - no âmbito geral do instituto consa-

grado no Código Civil, a alteração das circuns-

tâncias constitui um puro fundamento para a

resolução contratual.

Mas, insistindo, não sendo admissível a pura e

simples desvinculação nestes casos, também

apresentamos algumas reservas quanto à hipóte-

se de manutenção rígida e inalterada das condi-

ções contratuais, já que não será plausível a

execução do contrato com um clausulado ruino-

so perante a conjuntura vigente, sob pena de

ameaçar a sustentabilidade económica do con-

traente lesado, sujeito a avultados prejuízos.

Deve então ser encontrada a resposta que, pe-

rante o caso em concreto, mereça uma solução

equitativa considerando, por um lado, o respeito

pelo cumprimento das prestações contratuais, e

por, outro lado, a garantia de manutenção do

equilíbrio contratual das partes, numa fronteira

de delimitação ténue.

2.1.2 Crises económicas / financeiras

Perante o cenário de verificação de um conjunto

de circunstâncias externas da mais diversa or-

dem, decorrentes do fenómeno da crise econó-

mica, urge ao ordenamento jurídico apresentar

soluções capazes de pôr cobro a uma tão acen-

tuada modificação dos pressupostos em que

assentaram as declarações negociais dos opera-

dores económicos17.

Admitida, em abstracto, sem conceder e por

mera hipótese de raciocínio, a mobilização do

instituto num quadro de crise económica, enten-

demos que este acontecimento se enquadra, em

termos gerais, no escopo do art. 437º do CC.

Senão vejamos. Segundo o preceito, cumpre

observar que o desencadeamento de um direito

à modificação ou resolução contratual exige a

seguinte demonstração cumulativa: i) da referi-

da alteração de circunstâncias em que as partes

fundaram a decisão de contratar; ii) de que a

exigência das obrigações assumidas no contrato

afecte gravemente os princípios da boa fé e iii)

de que o cumprimento das obrigações exceda os

CONTRATO DE SWAP E ALTERAÇÃO DE CIRCUNSTÂNCIAS...: 77

17- Questão amplamente controvertida no domínio do direito administrativo, nomeadamente v. SÉRVULO CORREIA, LINO TORGAL e PEDRO FERNÁNDEZ SÁNCHEZ, Alteração de circunstâncias e modificação de propostas em procedimentos de contratação pública, in Estudos de

Contratação Pública III, obra colectiva, p. 166.

78 : CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS

riscos próprios contratuais.

Outros autores18, optam por conceber uma re-

partição mais exaustiva, mas fundamentalmen-

te, são estes os requisitos que decorrem do arti-

go.

Consideramos que demonstradas as três referi-

das condições, poderá uma das partes do con-

trato exigir a modificação ou resolução do mes-

mo, fundada no propósito de obter a reposição

do equilíbrio contratual.

Aparentemente, trata-se de uma consideração

ampla e sem especiais limitações, aprofun-

dando: resulta deste que, estando a base negoci-

al em risco por circunstâncias anormais e im-

previsíveis, não imputáveis às partes e em ter-

mos suficientemente graves que não justifiquem

a sua aceitação segundo os ditames da boa fé, o

instituto da alteração de circunstâncias pode

desencadear a modificação ou resolução do

contrato.

Posto isto, cumpre posicionarmo-nos no debate

acerca do momento em que se consubstancia a

ultrapassagem dos riscos próprios contratuais,

para além da lógica de “benefícios vs. prejuí-

zos” inerente a qualquer relação contratual.

Latu sensu, já aqui foi mencionada a teoria do

risco enquanto contribuição dogmática inesti-

mável para o entendimento do genérico concei-

to de equilíbrio negocial.

Porém, no caso em análise, cumpre aferir se a

crise económica, enquanto factor externo, exce-

de ou não os riscos contratuais previsíveis.

Parecem-nos razões atendíveis, a favor da tese

que sustenta esta ultrapassagem dos riscos con-

tratuais previsíveis, o facto de se tratar de uma

crise necessariamente inserida numa realidade

histórica, com antecedentes e precedentes rele-

vantes, independentemente de se concluir pela

incidência tendencialmente cíclica e decorrente

da flutuação (ainda que anormal) da actividade

dos mercados, resultante da génese da natureza

económica do evento. Acresce que a álea é es-

sencial ao contrato de swap de taxa de juro ao

qual necessariamente subjaz uma notória assun-

ção do risco pelas partes, que nele fazem basear

a evolução e a medida das prestações contratu-

ais. O risco e a imprevisibilidade são caracterís-

ticas inerentes ao contrato e aos seus fins típi-

cos.

Em sentido inverso, a favor da procedência do

raciocínio de a crise económica exceder os ris-

cos contratuais previsíveis, defende-se a verifi-

cação de uma destabilização completa e sem

precedentes de indicadores e operadores econó-

micos, expressa, entre outros aspectos na acen-

tuada descida das taxas de juro19, como verifi-

cado no caso sub judice. Este aspecto, conjuga-

do com um profundo desequilíbrio entre as

prestações das partes, tornaria insustentável que

a parte lesada o suportasse, sendo-lhe inexigível

o cumprimento da sua prestação.

Sob este ponto de vista, não chocaria afirmar

que, tendo em conta as proporções extraordiná-

rias atingidas pelo fenómeno da crise económi-

ca e a sua respectiva repercussão, de forma di-

recta e indiscutível no equilíbrio deste género

de contratos (dependentes das flutuações de

índices referência), admitir-se-ia a possibilidade

de a crise económica justificar a aplicação do

regime da alteração das circunstâncias.

18- Na formulação seguida pelo acórdão em análise, v. COSTA, Mário Júlio de Almeida, op. cit., pp. 265 e ss.

19- Apesar de não poder ser vista como um fenómeno sem precedente, esta crise demonstrou ser única nas causas e na rápida disseminação

à escala global. Nos efeitos, a depreciação acentuada de activos imobiliários e financeiros, diversos casos de falência de instituições finan-ceiras e formas inéditas de intervenção estatal acrescem às descidas das taxas de juro para níveis nunca antes registados.

79 : CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS

Por isso, e em termos meramente teóricos, a

crise económica inserir-se-ia no escopo do ins-

tituto da alteração das circunstâncias, visto que

se trataria de um evento imprevisível e anormal,

plenamente exterior e causador de desequilíbrio

na relação entre as partes.

No entanto, importa discutir se, perante o caso

analisado, se deve proceder a este mesmo racio-

cínio, na linha do que fez o douto Acórdão, algo

que já nos parece bastante discutível.

Se bem que a crise económica pode justificar,

por via de efeitos concretos devidamente com-

provados, a aplicação do regime da alteração de

circunstâncias nos seus termos gerais, já nos

parece duvidoso que este instituto seja uma via

admissível perante um contrato swap de taxa de

juro, no qual as características da aleatoriedade

e do risco são assumidas a priori pelas partes,

integrando a própria essência e natureza do con-

trato a que as partes livremente aderiram e os

fins visados por estas. Parece-nos que a exigên-

cia das prestações num cenário de alteração

(ainda que em concreto considerada elevada)

das taxas de juro, por estar coberta pelos riscos

próprios do tipo contratual em causa, afasta a

possibilidade de aplicação do regime do art.

437.º do CC, que expressamente limita a sua

aplicação aos casos em que a exigência das

obrigações assumidas “não esteja coberta pelos

riscos do negócio (…)” .

2.2 Efeitos

2.2.1 Modificação

A este respeito, convém antes de mais frisar

que, na linha da orientação prosseguida por PI-

RES DE LIMA e ANTUNES VARELA, para que

seja aplicável o regime da alteração de circuns-

tâncias, é necessário “que a exigência da obri-

gação à parte lesada afecte gravemente os

princípios da boa fé contratual” , e ainda que

“e não esteja coberta pelos riscos do negócio,

como no caso de se tratar de um negócio por

sua natureza aleatório” 20, raciocínio que impli-

ca uma liminar rejeição da aplicação do institu-

to aos contratos de swaps.

Pelo facto de o Tribunal não ter seguido esta

orientação, cumpre aferir quais os efeitos resul-

tantes da aplicação do instituto da alteração de

circunstâncias.

Relembremos o ponto de partida: de acordo

com o art. 437.º do CC, da aplicação do regime

de alteração de circunstâncias resulta, para a

parte lesada, “o direito à resolução do contrato,

ou à modificação dele segundo juízos de equi-

dade” .

Comecemos pela última hipótese, opção que

tendo em conta a inflexibilidade, e a ausência

de uma manifestação de vontade das partes em

proceder a uma modificação equitativa, não se

configurou como viável nesta situação, mere-

cendo por isso apenas uma menção sumária.

A modificação contratual obedece, naturalmen-

te, ao princípio da autonomia privada, relevan-

do convocar, no sentido de concretizar a alusão

à cláusula de equidade, o anteprojecto do Códi-

go Civil no qual se especificava que “A modifi-

cação do contrato só é admissível quando for

conforme com a presumível intenção das partes

ou com a boa fé” 21.

Caracteriza-se, por isso, como uma espécie de

acerto, com o propósito de restabelecer o equilí-

brio entre as prestações contratuais e de acaute-

lar da melhor forma possível as perturbações

CONTRATO DE SWAP E ALTERAÇÃO DE CIRCUNSTÂNCIAS...: 79

20- PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, 3. ª Edição revista e actualizada, 1982, p. 388.

21- Cfr. VAZ SERRA, João, Resolução ou modificação dos contratos, pp. 380-381.

80 : CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS

provocadas pela anomalia que fundamenta o

instituto da alteração de circunstâncias.

Trata-se de uma possibilidade de adaptação do

contrato, traduzindo-se na exigibilidade de as

partes procederem à mudança dos termos con-

tratuais com o intuito de reconstituir aquilo que

teriam querido se tivessem previsto a respectiva

alteração de circunstâncias22.

Esta via deve ser considerada num momento

prévio relativamente à resolução, não só porque

se trata de um instrumento que, ao contrário

daquele, possibilita a manutenção e a viabiliza-

ção do contrato vigente, não cessando os seus

efeitos e objectivos primários, mas também por-

que pode representar uma manifestação de opo-

sição à resolução, cabendo à parte não lesada a

hipótese de preferir suportar os efeitos da modi-

ficação (cf. n. º 2 do art. 437.º do CC) - existe

por isso uma manifesta preferência legal pela

solução da modificação contratual, a definir de

acordo com juízos de equidade e de harmonia

com os ditames da boa fé.

2.2.2 Resolução

A par do efeito modificativo, pode decorrer da

aplicação do instituto da alteração de circuns-

tâncias a possibilidade da parte lesada proceder

à resolução contratual - esta foi, aliás, a solução

encontrada pelo Supremo Tribunal de Justiça

no caso a quo.

Distinta da modificação, a resolução consiste

numa forma de extinção da relação contratual,

que opera através de uma declaração unilateral,

baseada num fundamento ocorrido em momen-

to posterior à celebração do contrato23 - não

sendo alheio o facto de comungar desta caracte-

rística nuclear do instituto da alteração de cir-

cunstâncias.

Consubstancia-se numa declaração dirigida à

contraparte no sentido de que o contrato se con-

sidere como não celebrado, declarando que tudo

se passa como se ele não tivesse sido realizado.

Nesta sequência, importa igualmente a análise

dos efeitos retroactivos da resolução, nomeada-

mente no domínio dos contratos de execução

periódica (art. 434.º do CC), uma classificação

concedida pelo douto Acórdão, mas que pelo

reduzido efeito útil para efeitos da pronúncia

judicial, é uma questão que aqui não será apro-

fundada24.

Defendemos que a resolução, pelo seu efeito

plenamente extintivo, e por se tratar de uma

medida de carácter irreversível, desempenha

um papel de ultima ratio, procedendo apenas

quando a parte contrária não aceite a modifica-

ção contratual segundo juízos de equidade, re-

cuperando o n. º 2 do art. 437.º do CC.

Caracteriza-se por ser normalmente de exercí-

cio vinculado, tendo em conta que se verifica

apenas quando ocorra um fundamento legal que

autorize o respectivo exercício, sendo neste ca-

so desencadeada pelo desequilíbrio nas presta-

ções contratuais provocado por um aconteci-

mento anormal e exterior às partes.

Uma questão altamente controvertida é igual-

mente a de saber se a resolução tem de operar

judicialmente ou, explorando uma via alternati-

va, pode também operar de forma extrajudicial.

Para dirimir esta dúvida, parece-nos necessário

recorrer ao art. 436.º do CC, que com a epígrafe

22- MENEZES CORDEIRO, António, A Modernização do Direito das Obrigações, in Revista da Ordem dos Advogados, Ano 62, vol. II, Abril de 2002.

23- MENEZES LEITÃO, Luis Manuel, Direito das Obrigações vol. II, 3.ª edição, 2005, p. 98.

24- Citando o Acórdão “Deste modo, embora (…) se considere o contrato de execução periódica, essa circunstância não assume relevância

nas prestações peticionadas” .

81 : CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS

“Como e quando se efectiva a resolução” se

configura como o preceito mais indicado para

obter a resposta que é dada pela lei.

Sustentando-nos na letra do preceito, nada pare-

ce indiciar que a resolução deva ser requerida

em juízo25, antes pelo contrário, limitando-se

este a descrever, no seu n. º 1, que a resolução

“pode fazer-se mediante declaração à outra

parte” , aditando, no seu n. º 2, no sentido de

proteger a outra parte, o ónus desta fixar um

prazo razoável para o exercício do direito de

resolução, sob pena de caducidade.

Se a resolução contratual for do interesse de

ambas as partes, não deve colocar-se a hipótese

da via judicial26. No entanto, quando os contra-

entes discordam - como no caso em análise -

poder-se-ia indagar sobre uma eventual obriga-

toriedade de recurso aos tribunais.

Não nos parece que assim seja, devendo por

isso justificar a improcedência dos argumentos

que sustentam posição diferente27.

Por um lado, a expressão “requerida a resolu-

ção” , utilizada no âmbito do n.º 2 do art. 437.º

do CC, não nos parece indicar que se trate ne-

cessariamente de um pedido que deva ser susci-

tado perante um tribunal, pela via judicial.

Por outro lado, discordamos que se defenda a

imposição de se proceder à verificação dos

pressupostos do regime da alteração de circuns-

tâncias, a menos que a parte lesada se oponha

ao direito de resolução, o que, se assim for, de-

sencadeará posteriormente um litígio que trará a

análise destes requisitos para a apreciação em

juízo - não faz por isso qualquer sentido preci-

pitar a via judicial, mais dispendiosa e formal,

quando esta nem sempre será necessária. Para

além de que não oferece, a nosso ver, mais ou

melhores garantias aos contraentes - de resto,

também a jurisprudência tem evoluído no senti-

do de defender a suficiência de uma solução

extrajudicial28.

Resumindo, a resolução pode fazer-se por acor-

do, ainda que o direito tenha sido conferido

apenas a uma das partes, e pode fazer-se judici-

almente, o que apenas se deve considerar peran-

te a existência de um conflito entre contraentes

e quando um destes não reconheça ao outro o

exercício do direito de resolução29.

Neste sentido, parece resultar claro que não é

exigível que a resolução contratual seja requeri-

da judicialmente30, recordando que esta deve

ser uma opção considerada apenas e somente

estando descartada a hipótese de modificação

contratual, um percurso em conformidade com

o princípio pacta sunt servanda e com a desejá-

vel intenção do ordenamento em providenciar

remédios que possibilitem o cumprimento das

prestações contratuais, ainda que o seu conteú-

do tenha sido posteriormente alterado.

CONTRATO DE SWAP E ALTERAÇÃO DE CIRCUNSTÂNCIAS...: 81

25- Como defende COSTA, Mário Júlio de Almeida, op. cit., p.313.

26- GONÇALVES CARVALHO, Ana Miguel, Resolução do Contrato por Alteração das Circunstâncias: Judicial ou Extrajudicial?, Tese de

Mestrado em Ciências Jurídico-Privatísticas, Faculdade de Direito da Universidade do Porto, 2011, p. 26.

27- v. VAZ SERRA, João, op. cit, p. 370.

28- Acórdão da Relação de Coimbra de 19/04/2005, sobre contrato promessa de compra e venda tendo por objecto um prédio rústico, que

refere: “a parte que se considerar lesada com uma alteração superveniente anormal das circunstâncias e não havendo acordo para se preve-

nir o litígio, pode provocar essa resolução mediante declaração (extrajudicial) dirigida à outra parte; o contrato deve considerar-se des-feito logo que a declaração chegue ao poder do destinatário ou seja dele conhecida” e Acórdão da Relação de Lisboa de 19/05/2005,

sobre uma questão ocorrida entre locador e locatário, que refere: “a resolução a que alude o artigo 437. º do CC tem por base a lei; dito isto

não se extrai da lei que o destinatário, que não respondeu à declaração extrajudicial de resolução (…)” reconhecendo desta forma a

possibilidade de resolução sem recurso a tribunal.

29- PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, op, cit., p.387.

30- Na mesma linha de CALVÃO DA SILVA, João, Estudos de Direito Civil e Processo Civil, Coimbra, Almedina, 1996, p. 181.

82 : CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS

2.3 O contrato de swap de taxa de juro e a

alteração de circunstâncias no contexto da

crise financeira

No caso em apreço, estamos, em traços gerais,

perante um litígio emergente de um contrato

swap de taxa de juro, através do qual uma em-

presa pretendia cobrir o risco de subida da taxa

de juro, de forma a acautelar o agravamento dos

custos inerentes a um contrato de locação finan-

ceira celebrado em momento prévio.

Neste momento importa esclarecer que, na hi-

pótese de a parte que celebrou o contrato de

swap com a instituição financeira ser classifi-

cada como investidor qualificado31 - o que, não

se verifica necessariamente na presente situa-

ção, embora a informação de que dispomos não

permita aferir com segurança a natureza da Au-

tora para estes efeitos – esta jamais poderia in-

vocar o argumento da imprevisibilidade do sis-

tema económico enquanto facto gerador do de-

sequilíbrio das partes, uma vez que, na qualida-

de de operador económico e financeiro, perten-

cente a um círculo de vida especial, especial-

mente previsto na lei, as flutuações do sistema

económico não podem constituir um evento

“imprevisível” para o investidor qualificado.

Assim, e na senda de alguma jurisprudência

recente, entendemos que a resolução contratual

com os fundamentos supra invocados, apenas

poderá ser equacionada quando em causa este-

jam investidores não qualificados.

Saliente-se, também, que a classificação do in-

vestidor em causa assumirá também relevância

na aferição da perda de sinalagmaticidade, ou

seja, na determinação do que constituirá um

desequilíbrio anormal entre as prestações para

efeitos de aplicação do regime em apreço. Com

efeito, a classificação do investidor acarreta

necessariamente consequências no plano da

disponibilidade e capacidade para correr riscos,

aspectos que naturalmente assumem relevância

na determinação do que seja um desequilíbrio

anormal entre prestações.

Retomando, convém relembrar que a celebra-

ção de um contrato swap de taxa de juro serviu

justamente o propósito de alterar a exposição ao

risco contratual que advém de uma situação

jurídica subjacente, podendo definir uma nova

forma de exposição ao risco, alterando-o mas

não eliminando-o, evidentemente, uma vez que

se trata de um elemento essencial inerente a

este tipo de relação jurídica.

É igualmente com base no confronto de expec-

tativas dos operadores económicos que as par-

tes acordam “sujeitar” a evolução do seu con-

trato a um facto ou evento que não pode classi-

ficar-se como previsível e que por isso, à parti-

da, não poderá antecipar-se quem irá favorecer

- neste caso, esse mesmo evento, é precisamen-

te a subida ou descida das taxas de juro, que

beneficiará ou a empresa, ou a instituição finan-

ceira, respectivamente.

Ora, daqui decorre que as partes assumiram a

priori as características de aleatoriedade e ris-

co próprias da génese do contrato de swap de

taxa de juro.

Não tem sentido permitir a modificação ou a

resolução de um contrato com base na alteração

de circunstâncias quando o próprio contrato

assume essa referida alteração como elemento

essencial. Por outras palavras, se as partes

tivessem previsto o sentido da alteração de

circunstâncias seguramente não teriam sequer

celebrado o contrato em causa, uma vez que é

pressuposto essencial do mesmo a incerteza

quanto às circunstâncias, em particular, quanto

31- Cf. art. 30.º do CdVM.

83 : CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS

aos valores futuros das taxas de juro de referên-

cia. Sem incerteza ou perante a certeza de ma-

nutenção do estado de coisas – relativo às taxas

de juro de referência – deixa de ter qualquer

sentido a celebração de um contrato de swap de

taxa de juro. Qualquer juízo de sindicância, no

sentido de determinar até que ponto será tolerá-

vel a modificação nas taxas de juro de referên-

cia ou a partir de que momento seria aplicável a

possibilidade de modificação ou resolução por

alteração das circunstâncias, será arbitrário e

por isso contrário aos fins da figura da alteração

de circunstâncias. Sendo esta uma excepção ao

princípio básico “pacta sunt servanda” não nos

parece que a sua aplicação se compadeça com

juízos puramente quantitativos. Concretizando,

parece-nos que a aplicação da figura deve limi-

tar-se aos casos em que não existe álea específi-

ca e a nos quais não se verifica esta inerente

incerteza.

No contrato de swap de taxa de juro este risco,

assente num evento variável, é próprio do con-

trato, constituindo a sua álea normal - sendo

este o elemento decisivo a partir do qual as par-

tes fizeram depender o desfecho do seu contra-

to. Discordamos por isso que, neste contexto, se

deva proceder ao incentivo da resolução contra-

tual pela mera e natural ocorrência de um risco

por definição coberto e assumido pelas próprias

partes, aquando do momento da celebração do

contrato swap de taxa de juro. O risco está co-

berto e foi previsto nos precisos termos do con-

trato. Não havendo motivo para colocar em

causa a validade das cláusulas em que as partes

expressamente previram o regime aplicável às

variações das taxas de juro de referência, e es-

tando as variações das taxas de juro de referên-

cia expressamente previstas e por isso cobertas

pelos riscos próprios do contrato, não nos pare-

ce que a aplicação do regime previsto no art.

437.º do CC seja uma solução ajustada.

O Acórdão em anotação, seguindo a mesma

orientação já anteriormente fixada pelo Tribu-

nal da Relação de Guimarães em 31 de Janeiro

de 2013, revela por isso uma análise peculiar da

figura jurídica do contrato de swap, que neste

ponto merece a nossa firme discordância.

2.4 Distinção face a outras figuras

A não aplicação do regime da alteração de cir-

cunstâncias – ainda que no contexto específico

da crise financeira – ao contrato de swap de

taxa de juro não implica necessariamente a

ideia de ausência de regimes que confiram tute-

la jurídica ao caso e ao abrigo dos quais poderia

ter sido explorada uma solução para a situação

que não implicaria a resolução do contrato de

swap de taxa de juro em causa. Com efeito, em

teoria, é certa a aplicabilidade de outras figuras

jurídicas ao caso em apreço.

Saliente-se, todavia, que o presente ponto cons-

titui apenas uma descrição sumária de regimes

jurídicos que poderiam na teoria suportar uma

diferente solução para o caso em análise. Não

está em causa uma qualquer análise crítica do

Acórdão em anotação, cujo âmbito de análise

estava naturalmente limitado pelo pedido e a

causa de pedir apresentados pelos autores. Por

outro lado, a presente descrição de figuras alter-

nativas não assume como certa a sua aplicação

ao caso concreto, uma vez que esta pressuporia

um apuramento e análise dos factos que não

tem cabimento no presente trabalho.

2.4.1. Erro

Importa previamente esclarecer que, não obs-

tante reconhecermos a existência de uma rela-

ção de remissão entre o regime jurídico do erro

sobre a base do negócio e o instituto da altera-

ção de circunstâncias, assente na letra do n.º 2

CONTRATO DE SWAP E ALTERAÇÃO DE CIRCUNSTÂNCIAS...: 83

84 : CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS

do art. 252.º do CC, esta não deve ser feita de

forma simples e directa. Deste articulado resulta

claro que, se o erro do declarante recair sobre as

circunstâncias que constituem a base do negó-

cio, nos termos acima descritos, é aplicável o

regime da modificação e resolução do contrato

por alteração das circunstâncias (art. 437.º do

CC)32.

Recuando, optamos por proceder ao enquadra-

mento conceptual do erro através de uma fór-

mula aparentemente escorreita, mas elucidativa,

que postula que este se define como um vício

da vontade negocial que se traduz numa defici-

ência de discernimento do autor, em suma, uma

falsa representação da realidade.33

O erro pode incidir sobre diferentes aspectos do

negócio, sendo que neste caso em concreto,

aquele que poderia suscitar maiores razões de

semelhança, e acrescente-se, eventual debate,

seria a categoria do erro sobre a base do negó-

cio, constante do n.º 2 do art. 252.º do CC.

E como definir a base do negócio? Trata-se de

uma fórmula bastante discutida, contribuindo

para uma querela doutrinária que deu azo a di-

ferentes orientações. No entanto, na sequência

do raciocínio que pretendemos prosseguir, não

estranha a construção proposta por MENEZES

CORDEIRO: “trata-se da representação de uma

das partes, patente na conclusão de um negócio

e reconhecida pela contraparte eventual, co-

nhecida pela outra e relativa a certa circuns-

tância basilar atinente ao próprio contrato e

que foi essencial para a decisão de contra-

tar” 34.

Esta referência às circunstâncias permite extrair

que este erro, nesta vertente, está presente em

algo exterior ao negócio, nomeadamente no seu

contexto circunstancial aquando da celebração

da relação contratual entre as partes. Deve ser

tomado como pressuposto necessário, para que

este regime possa ser invocado, a verificação de

uma falsa representação que desvirtue o quadro

circunstancial que constitui a base do negócio.

Ora, uma vez mais destacamos a menção feita

ao contexto circunstancial ou ao núcleo fáctico

que, em termos práticos, concede às partes a

legítima expectativa e a confiança necessária

que os fez celebrar o respectivo negócio jurídi-

co.

Posto isto, a base do negócio estabelece-se e,

ainda que em termos meramente hipotéticos e

de difícil delimitação, delimita-se, no momento

da celebração do negócio, ou seja, no momento

em que as partes decidiram contratar. Neste

caso, será fácil concluir acerca da inexistência

de um erro à data da celebração, como esclarece

o douto Acórdão em anotação: “no momento da

outorga do contrato não pode ainda falar-se de

lesado, porque lesado só existirá, futura e even-

tualmente, se as circunstâncias em que os esti-

pulantes fundaram a decisão de contratar vie-

rem a sofrer modificação que torne o contrato

prejudicial para um deles” - trata-se natural-

mente de um óbice à aplicação do regime do

erro sobre a base do negócio.

Finalmente, deve ser aditado outro elemento

distintivo corroborado pelo Tribunal a quo:

a dimensão psicológica da base do negócio,

32- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09/03/2010: «Por isso, tal como acontece quando as circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar tiverem sofrido uma alteração anormal, quando o erro recaia sobre as circunstâncias que constituíram a

base do negócio, a parte lesada tem direito à resolução do contrato, ou à sua modificação segundo juízos de equidade, desde que a

exigência das obrigações por ela assumidas afecte gravemente os princípios da boa fé e não esteja coberta pelos riscos próprios do contrato.

33- v. PAIS VASCONCELOS, Pedro, Teoria Geral do Direito Civil, 3.ª Edição, 2008, p. 659.

34- v. MENEZES CORDEIRO, António, Tratado de Direito Civil Português I, Parte Geral, Tomo I, 3.ª Edição, 2007, p. 833.

85 : CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS

consoante o regime aplicável.

Parece unânime constatar que a base negocial,

seja esta subjectiva ou objectiva, é basicamente

constituída por circunstâncias essenciais para

que o contrato possa desenvolver-se com regu-

laridade, permitindo às partes satisfazer os pro-

pósitos que estas tinham em vista.

No entanto, a base negocial tem uma acepção

diferente consoante a perspectiva, devendo-se

neste âmbito recorrer igualmente às elucidativas

palavras do Acórdão em anotação, na parte em

que refere que: “a base do negócio no domínio

do erro tem carácter subjectivo, porque se tra-

duz na falsa representação psicológica da rea-

lidade. A base do negócio no domínio da alte-

ração das circunstâncias tem carácter objecti-

vo, visto não se reconduzir a uma imaginária

falsa representação psicológica da manutenção

de tais circunstâncias” .

A objectividade desta traduz-se na desconfor-

midade supra detalhadamente analisada entre

aquilo que fora previsto pelas partes a priori e o

que efectivamente ocorreu, uma destabilização

fáctica, não se devendo a um mero erro de natu-

reza psicológica ou cognitiva.

Pelas razões expostas, cumpre esclarecer que,

apesar da possível relação de remissão entre o

instituto da alteração de circunstâncias e o regi-

me do erro sobre a base do negócio, estas figu-

ras são plenamente distintas e autónomas, refor-

çando-se a tese de que jamais o regime deste

último seria subsumível ao caso sub judice, sem

prejuízo de ser teoricamente aplicável à cele-

bração de um contrato de swap de taxa de juro.

Julgamos adequado acrescentar que a pretensão

da autora jamais poderia ser colocada em mol-

des alternativos, numa perspectiva de seguir

uma de duas vias tendo em vista a fundamenta-

ção da resolução contratual: ou baseando-se no

regime jurídico do erro ou socorrendo-se do

instituto da alteração de circunstâncias.

Note-se que os artigos em análise não são com-

plementares, nem tão pouco têm âmbitos de

aplicação coincidentes. A distinção dos concei-

tos que há pouco se teceu - base negocial objeti-

va e subjetiva - assenta num limite incontorná-

vel: a existir uma situação de representação er-

rónea das circunstâncias nas quais as partes fun-

dam a decisão de contratar esta será sempre

prévia e antecedente à posterior verificação da

alteração das mesmas circunstâncias. Há um

necessário diferimento temporal que distingue

incontornavelmente o âmbito de aplicação das

duas figuras, pelo que uma defesa alternativa

estará sempre, do ponto de vista jurídico, erra-

damente estruturada.

2.4.2. Perfil de investidor e deveres

de informação ao abrigo do CdVM

Paralelamente, poderiam assumir relevância as

normas constantes do CdVM e dos Regulamen-

tos da CMVM sobre deveres relativos à negoci-

ação de instrumentos financeiros e, em particu-

lar, deveres, do intermediário financeiro, de

conhecimento dos clientes e de definição de um

perfil de investidor que condiciona a relação

entre este e o intermediário financeiro.

Devem distinguir-se, a este respeito, duas pers-

pectivas possíveis de acordo com o regime legal

vigente: uma de direito civil e a outra de direito

contra-ordenacional.

De acordo com a primeira, poderia eventual-

mente ser reconhecida aos autores a possibilida-

de de responsabilização civil do intermediário

financeiro por eventual incumprimento dos

CONTRATO DE SWAP E ALTERAÇÃO DE CIRCUNSTÂNCIAS...: 85

86 : CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS

deveres a que está adstrito nos termos do artigo

304.º-A do CdVM, o qual deve ser lido, a este

respeito, juntamente com diversos preceitos

relativos a deveres de prestação de informação

do intermediário financeiro, aplicáveis em dois

momentos distintos: antes da celebração de

qualquer contrato relativo a serviços de investi-

mento em instrumentos financeiros35 e durante

a vigência de um qualquer contrato desse géne-

ro.

No presente caso, assumiriam particular rele-

vância os deveres de informação pré-contratual,

tendo em vista a putativa demonstração da

eventual inadequação do instrumento financeiro

em causa ao cliente ou a eventual existência de

riscos que não teriam sido adequadamente reve-

lados.

Em particular, antes da celebração de um con-

trato de swap de taxa de juro, o intermediário

financeiro deve:

a) Obter a informação necessária e elaborar um

perfil do investidor - Know Y our Costumer;

dever de traçar um perfil do investidor antes

da celebração de qualquer contrato relativo a

serviços de intermediação financeira, cf. arti-

gos 314.º, 314.º-B e 314.º-C do CdVM;

b) Prestar as informações relevantes relativas

aos serviços e ao contrato em causa, em par-

ticular, os factores de risco envolvidos, cf.

artigos 312.º, 312.º-C (em particular, alínea

j)), 312.º-E do CdVM;

Por outro lado, os deveres de informação na

vigência do contrato acabam por ser menos re-

levantes para o presente caso, uma vez que o

pedido do autor tem mais que ver com a génese

ou formação do contrato ou, no limite, com os

traços gerais da figura, do que propriamente

com a execução do dito ou o acompanhamento

da sua vigência.

O prazo de prescrição da responsabilidade do

intermediário financeiro por violação dos referi-

dos deveres é, nos termos do art. 324.º, n.º 2 do

CdVM de dois anos, salvo havendo dolo ou

culpa grave, caso em que será aplicável o prazo

geral de vinte anos, tal como previsto no art.

309.º do CC.

Sob o ponto de vista contra-ordenacional,

registe-se que a eventual violação dos citados

deveres constitui a prática de contra-ordenações

puníveis nos termos do n.º 2, alíneas g) ou

o), bem como do n.º 4, alíneas g) e h) do

art. 397.º do CdVM, pelo que, tendo sido

consumada alguma das referidas violações,

o intermediário financeiro responderia contra-

ordenacionalmente perante a CMVM.

2.5 Conclusões

Em geral, o fenómeno correntemente designado

de crise financeira é teoricamente susceptível

de sustentar a modificação ou resolução contra-

tual por alteração das circunstâncias em que as

partes fundaram a decisão de celebrar um qual-

quer contrato, quando razoavelmente se consi-

dere que determinou a produção de um ou mais

efeitos causadores de uma tal alteração.

Sem prejuízo, a aplicação do regime da altera-

ção das circunstâncias deve ser precedida de

uma análise do tipo contratual em causa, sua

natureza e fins visados. Os contratos aleatórios

representam para este efeito uma categoria ex-

cepcional.

Em particular, um contrato de swap de taxa de

juro, por via do qual as partes permutam taxas

de juro diferentes com base em determinado

valor nocional, é impermeável à alteração de

circunstâncias que veio a causar uma descida

acentuada das referidas taxas uma vez que tal

35- De acordo com o artigo 289.º, n.º 1, a) do CdVM constituem actividade de intermediação financeira os serviços e actividades de investimento em instrumentos financeiros.

87 : CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS

alteração está abrangida pelos riscos próprios

do contrato.

A álea, o risco específico de variação das taxas

de juro é essencial e por isso inerente ao contra-

to de swap de taxa de juro e aos fins que lhe

subjazem, pelo que necessariamente integra as

circunstâncias em que as partes fundaram a de-

cisão de contratar.

Não pode por isso o risco ser excluído pela apli-

cação do regime de modificação ou resolução

do contrato por alteração das circunstâncias.

Qualquer limitação do risco por essa via seria

sempre arbitrária e por isso contrária aos fins da

figura da alteração das circunstâncias.

Do exposto não decorre necessariamente a ine-

xistência de regimes em teoria aplicáveis a uma

situação de grave desproporção: por um lado, o

regime do erro sobre a base do negócio poderá

fundamentar as referidas modificação ou reso-

lução contratuais, sempre que uma das partes

tenha comprovadamente sofrido de tal vício

aquando da celebração do contrato. Por outro

lado, os deveres dos intermediários financeiros,

em particular de prestação de informação e de-

terminação de perfil do investidor, podem de-

terminar a responsabilidade civil do intermediá-

rio financeiro e o consequente dever de indem-

nização do lesado e a aplicação de coimas de

acordo com o regime contra-ordenacional

vigente.

CONTRATO DE SWAP E ALTERAÇÃO DE CIRCUNSTÂNCIAS...: 87

88 : CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS

48ª EDIÇÃO DOS CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS

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