pdf 2454 kb

13
“Eu fiz a cirurgia do estômago”: análise da construção da bioidentidade através do Orkut Melissa Ribeiro de Almeida Universidade Federal Fluminense Índice 1 A cultura somática e a construção da subjetividade 1 2 Medicalização da vida 4 3 A cirurgia como intervenção subje- tiva: o caso da comunidade do orkut “Eu fiz a cirurgia do estômago” 7 4 Referências 10 5 Anexos 11 Resumo A proposta deste artigo é discutir os efeitos do culto ao corpo na subjetividade contem- porânea, verificando de que forma a rede de relacionamento Orkut reflete e, ao mesmo tempo, contribui para a consolidação de tal fenômeno. A pesquisa será realizada através da análise da comunidade virtual “Eu fiz a cirurgia do estômago”. Mais do que nomear a comunidade, tal afirmação revela uma con- quista, um desabafo, um estado de espírito. Ao investigarmos mais detalhadamente este enunciado (enunciador, local de anunciação e contexto do anúncio) encontramos um dis- curso típico da personalidade somática con- temporânea, obcecada pelo corpo (e pelo corpo perfeito!). Aliada ao propósito da co- munidade virtual mencionada, a afirmação esconde uma série de questões fundamentais para se compreender a construção da identi- dade no século XXI. 1 A cultura somática e a construção da subjetividade Um corpo sarado, saudável, robusto, sem gordorinhas localizadas, celulites, rugas, manchas ou outras “imperfeições”. Para chegar a este resultado, milhares de adoles- centes, jovens, adultos e idosos, em todo o mundo, investem cada vez mais dinheiro, vontade e tempo. Basta observar as in- úmeras academias de ginástica, as clínicas de estética e os programas de controle de alimentação que proliferam em nosso co- tidiano. Através de imagens, discursos e comportamentos, o corpo se remodela em nosso tempo, tornando-se objeto de design por meio de práticas de ascese corporal e um importante elemento na construção da subje- tividade. Para compreender tal fenômeno é preciso analisar de que forma o corpo partic- ipa na formação da identidade. O filósofo Michel Foucault identificou o poder “biotécnico” como agente de trans- formação da vida humana. Segundo Fou- cault, os discursos de poder-saber na mod-

Upload: ngophuc

Post on 07-Jan-2017

262 views

Category:

Documents


1 download

TRANSCRIPT

Page 1: PDF 2454 KB

“Eu fiz a cirurgia do estômago”: análise da construçãoda bioidentidade através do Orkut

Melissa Ribeiro de AlmeidaUniversidade Federal Fluminense

Índice1 A cultura somática e a construção da

subjetividade 12 Medicalização da vida 43 A cirurgia como intervenção subje-

tiva: o caso da comunidade do orkut“Eu fiz a cirurgia do estômago” 7

4 Referências 105 Anexos 11

ResumoA proposta deste artigo é discutir os efeitosdo culto ao corpo na subjetividade contem-porânea, verificando de que forma a rede derelacionamento Orkut reflete e, ao mesmotempo, contribui para a consolidação de talfenômeno. A pesquisa será realizada atravésda análise da comunidade virtual “Eu fiz acirurgia do estômago”. Mais do que nomeara comunidade, tal afirmação revela uma con-quista, um desabafo, um estado de espírito.Ao investigarmos mais detalhadamente esteenunciado (enunciador, local de anunciaçãoe contexto do anúncio) encontramos um dis-curso típico da personalidade somática con-temporânea, obcecada pelo corpo (e pelocorpo perfeito!). Aliada ao propósito da co-munidade virtual mencionada, a afirmação

esconde uma série de questões fundamentaispara se compreender a construção da identi-dade no século XXI.

1 A cultura somática e aconstrução da subjetividade

Um corpo sarado, saudável, robusto, semgordorinhas localizadas, celulites, rugas,manchas ou outras “imperfeições”. Parachegar a este resultado, milhares de adoles-centes, jovens, adultos e idosos, em todoo mundo, investem cada vez mais dinheiro,vontade e tempo. Basta observar as in-úmeras academias de ginástica, as clínicasde estética e os programas de controle dealimentação que proliferam em nosso co-tidiano. Através de imagens, discursos ecomportamentos, o corpo se remodela emnosso tempo, tornando-se objeto de designpor meio de práticas de ascese corporal e umimportante elemento na construção da subje-tividade. Para compreender tal fenômeno épreciso analisar de que forma o corpo partic-ipa na formação da identidade.

O filósofo Michel Foucault identificou opoder “biotécnico” como agente de trans-formação da vida humana. Segundo Fou-cault, os discursos de poder-saber na mod-

Page 2: PDF 2454 KB

2 Melissa Ribeiro de Almeida

ernidade tinham como formato o “biopoder”,que se desenvolveu a partir de práticas dedisciplina do corpo e de regulação das po-pulações. A clínica médica, de acordo com ofilósofo, foi a grande responsável pelo con-hecimento a cerca da construção do indiví-duo, que se tornou o objeto central da ciênciae da configuração de valores nas sociedadescapitalistas ocidentais. Assim, o saber es-tava voltado para uma prática de experiênciade sofrimento do indivíduo (o doente, e nãoa doença, passa a ser o foco). A subjetivi-dade moderna era marcada pela interioridadepsicológica, por meio da problematização desentimentos privados e afetividades íntimas eo corpo se tornou o foco principal da clínica.

Benilton Bezerra (2002: p.229), entre-tanto, nos lembra que a clínica não temorigem na psicanálise e sim na tradiçãofilosófica, que, desde os antigos gregos, seesforçava para compreender os estados daalma e as causas dos sofrimentos humanos.Mas é na passagem do século XVIII parao XIX que a tradição da terapêutica médicae o surgimento da clínica moderna marcamos territórios e os métodos da psicanálise ea formação subjetiva passa a ser estabele-cida pelo conflito, pelo questionamento, re-forçando a necessidade do conhecimento desi. Se, nas sociedades tradicionais, as iden-tidades e os papéis sociais eram herdadosatravés de laços de pertencimento estabele-cidos ao nascer, ou seja, a vida era determi-nada por implicações externas à experiênciaindividual, nas sociedades modernas é a vidainterior que direciona a construção da identi-dade (BEZERRA, 2002: p.231).

Contudo, a partir dos apontamentos dofilósofo Francisco Ortega (2008) percebe-mos que, em oposição à cultura psicológi-

ca hegemônica até poucas décadas, o mundocontemporâneo experimenta um rearranjo narelação do indivíduo com o corpo e uma re-configuração na construção da subjetividade,através do desenvolvimento de uma “culturasomática”, na qual o corpo se torna personal-izável por meio de práticas de ascese corpo-ral, como fisiculturismo, dietética, cirurgiasplásticas, uso de próteses e etc. A person-alidade somática se ergue pelo hiperinves-timento afetivo na imagem corporal, deslo-cando o caráter ou a identidade da pessoapara a imagem sensorial do corpo. ParaOrtega, o corpo na contemporaneidade éao mesmo tempo cultuado e desprezado, jáque, por um lado, é supervalorizado e, poroutro, se torna obsoleto, uma vez que pre-cisa atender aos anseios contemporâneos demutação constante, exigindo uma superaçãode seus limites pelas tecnologias de “aper-feiçoamento” da natureza.

As práticas de ascese se distinguem deacordo com cada configuração sócio-culturalvivenciada pela humanidade. Desta forma,explica Ortega (2008: p.28), as asceses clás-sicas greco-romanas eram práticas de liber-dade que possuíam dimensões políticas emorais, submetendo o corpo a uma dietéticapara garantir uma transcendência ou supe-ração. A intenção era estar apto para con-viver com o outro, capacitado para uma vidapública. Através da dieta (ascese corporal),o indivíduo garantia um equilíbrio da alma(ascese espiritual). Por isso, os ascetas erampersonalidades públicas respeitadas e fre-qüentemente imitadas. A prática da ascesetinha uma função de crítica social e se apre-sentava como uma maneira de se constituirformas alternativas de subjetividade e socia-bilidade, um desafio aos modos de existência

www.bocc.ubi.pt

Page 3: PDF 2454 KB

“Eu fiz a cirurgia do estômago” 3

prescritos, uma espécie de resistência cul-tural.

Todavia, ressalta Ortega, se as práticasascéticas da antiguidade eram um exercícioda vontade a serviço da liberdade, na con-temporaneidade as práticas bioascéticas ex-igem disciplina com o objetivo de reduzir (oueliminar) hábitos não saudáveis, tornando-se práticas de assujeitamento, cuja vontadeé ressentida, dominada pela ciência. Háum desejo de uniformidade, de adaptação ànorma. Os indivíduos passam a construir suabioidentidade através de cuidados corporaismédicos, higiênicos e estéticos, submetendo-se a um auto-controle, auto-vigilância e auto-peritagem e selecionando reflexivamente osalimentos e os hábitos corporais por intermé-dio de dietas, exercícios físicos e resultadosde testes laboratoriais. O discurso médicosobre o corpo saudável interfere cada vezmais no comportamento humano.

Para Benilton Bezerra (2002: p. 234),a hegemonia da ciência como discurso to-talizante, a espetacularização da vida so-cial e a tecnificação da medicina são con-seqüências da crise dos valores e das meta-narrativas tradicionais, de natureza religiosa,política ou histórica. Na mesma linha depensamento, Jurandir Freire Costa (2005)defende que os valores religiosos, políticose éticos passaram a se legitimar no planodo debate científico. Corroborado pelo dis-curso midiático, o mito científico começoua substituir as instituições tradicionais quepropunham recomendações morais. Assim,definições como “bem” ou “bom” são agoraestabelecidas de acordo com o grau de qua-lidade de vida, tendo sempre o corpo comoreferência. Se antes o que estava em jogoera o desenvolvimento das qualidades morais(alma) e dos sentimentos, agora, ressalta Ju-

randir Costa, o que conta é a longevidade, asaúde, a beleza, a boa forma e a preocupaçãoconsigo (corpo), tendo a bioascese como onovo modelo de identidade (bioidentidade).A admiração moral se desloca para a formacorporal.

Neste contexto, a saúde passa a serperseguida não como um meio para se atin-gir outros objetivos, mas como um fim emsi mesmo. De dever do Estado e direitodos cidadãos, ela se apresenta como respon-sabilidade de cada indivíduo, que deve seempenhar para evitar doenças e ser capazde gerenciar os riscos à própria saúde. Ocorpo saudável se torna um objeto de visão,transformando-se em espetáculo e fazendode sua aparência as bases para a noção deauto-identidade, a própria essência do “ser”.Na cultura somática, é no corpo físico que aexperiência do “self ” é construída e é a partirdo olhar monitorador e censurador do outroque os critérios morais passam a valer.

De acordo com Benilton Bezerra (2002),se na cultura psicológica a intimidade e ossofrimentos são experimentados como con-flito interior, na cultura das sensações edo espetáculo o mal-estar se encontra nocampo da performance física ou mental fa-lhas. Quem não consegue administrar talproblemática é considerado um fraco, umimpotente, um novo estulto1 . Desse modo,na biossociabilidade, a exclusão e a estigma-tização recaem sobre quem foge do padrãodo corpo ideal (gordos, idosos, fracotes, etc),diferentemente da cultura moderna, na qualas deficiências estavam relacionadas às abe-

1Segundo Francisco Ortega, para os estóicos o es-tulto é o indivíduo que não cuida de si, que não possuiconstância na vontade de dominar o corpo e a mente.Por isso a denominação “novo estulto”.

www.bocc.ubi.pt

Page 4: PDF 2454 KB

4 Melissa Ribeiro de Almeida

rrações, ao mal e à tendência à criminali-dade.

Jurandir Freire Costa (2005: p. 195) elab-ora uma classificação segundo o grau ou na-tureza do desvio no sentido de apontar quaisseriam os novos estultos. Ele chama de de-pendentes ou adictos aqueles que não con-seguem ter um auto-controle (de drogas líci-tas e ilícitas, de sexo, de amor, de consumo,de exercícios físicos, etc). Já os desregula-dos seriam os indivíduos incapazes de ad-ministrar suas carências físicas ou mentais(bulímicos, anoréxicos, portadores de sín-dromes de pânicos, fobias sociais). Os in-ibidos são considerados por ele os que seintimidam com o mundo e não expandema força de vontade (apáticos, “não assumi-dos”). O grupo dos estressados incluiria to-dos aqueles que têm dificuldade de lidar comos investimentos afetivos e de deformadossão chamados os que não conseguem man-ter o corpo ideal (obesos, sedentários, enve-lhecidos precocemente, manchados de pele,tabagistas, não siliconados, não lipoaspira-dos, etc).

Neste sentido, as práticas de bioascese setornam formas de compensar as deficiên-cias corporais. Por isso, o notável cresci-mento nas cirurgias plásticas, na adesão aprogramas de dietas alimentares, nas ativi-dades físicas diárias monitoradas por profi-ssionais, no uso de próteses (até mesmo delentes de contato!) e, em casos mais raros, deamputações de membros e órgãos. A culturado fitness, defende Jurandir Freire Costa, seapresenta como um “remédio universal”. Oestudioso, no entanto, aponta este fenômenocomo paradoxal, pois a obsessão pela saúdee o imperativo do cuidado e da ascese con-stante de si, ou seja, as práticas rigorosas dedisciplina corporal, geram o que ele chama

de displicência somática, como casos ex-tremos de sedentarismo e alto consumo defast food. Para vencer esses “males”, só amedicina!

2 Medicalização da vidaA crença de que todo mal-estar é ocasion-ado pela aparência corporal e de que todasas insatisfações ou discrepâncias em relaçãoao que é considerado padrão físico devemser eliminadas ou “corrigidas” naturaliza asações de intervenção médica, reforçando asoberania do mito científico. Cada vez maisa clínica médica está baseada em evidên-cias estatísticas, em dados laboratoriais, emimagens computadorizas e em intervençõescorporais. Nikolas Rose (2007) denom-ina o século XX de “século da biotecnolo-gia”, chamando a atenção para as ações so-bre a vida desenvolvidas a partir do fim doséculo XX (novas tecnologias de manipu-lação da vida, tecnologias de reprodução,transplante de órgãos, mapeamento genéticoe uma série de outras interferências na na-tureza humana). No livro The Politics ofLife Itself: Biomedicine, Power, and Sub-jectivity in the Twenty-First Century, Rosefaz uma pesquisa minuciosa sobre os discur-sos, as ações e as questões sociais, políticas,econômicas e éticas envolvidas no processode medicalização da vida.

Para Rose, um dos aspectos mais impor-tantes desse fenômeno é a concepção da vidaem nível molecular. O corpo passa a ser frag-mentado em inúmeras partes, que podem serarmazenadas em “biobancos” e manipuladasou mesmo vendidas. As tecnologias de visu-alização e de simulação digital são, tecnica-mente, as grandes determinantes deste pro-cesso. Agora é possível, em escala molec-

www.bocc.ubi.pt

Page 5: PDF 2454 KB

“Eu fiz a cirurgia do estômago” 5

ular, eliminar anomalias indesejáveis ou in-tensificar traços desejados. Outro ponto dedestaque nesta discussão é a transformaçãode pacientes em consumidores, com o incen-tivo da mídia e o interesse de pesquisadores ede laboratórios. Com a promessa de propor-cionar uma “nova vida”, a medicina contem-porânea oferece inúmeras possibilidades demodificações no corpo, utilizando para issoinovações tecnológicas de última geração, oque gera, obviamente, um imenso investi-mento financeiro por parte de quem se sub-mete a tais procedimentos. A saúde se torna,assim, um extraordinário mercado no séculoXXI, um negócio extremamente lucrativo.

Nikolas Rose ressalta que as tecnologiasmédicas contemporâneas não visam somenteà cura de doenças quando elas se manifes-tam, mas buscam, sobretudo, otimizar a vida,a performance do corpo e da mente. Eleafirma que a medicina contemporânea nãobusca criar cyborgs, homens misturados commáquinas, mas tem como meta modificar aprópria vida, problematizando a noção de bi-ológico e superando as limitações humanasde idade, fertilidade e sexualidade. A partirda idéia de otimização da vida, Rose exploraduas questões fundamentais da biomedicina:suscetibilidade e melhoria (empowerment).A primeira opera como um terceiro termoentre o normal e o patológico e diz respeito àpredisposição ao risco que determinado indi-víduo ou grupo corre em adquirir doenças oumanifestar deficiências. Já a segunda se re-fere às inúmeras formas de aperfeiçoar ou desuperar as capacidades da alma ou do corpo.

A questão da suscetibilidade evoca umareflexão sobre práticas eugênicas da primeirametade do século XX, mas com as devidasdiferenças. No documentário Homo Sapi-

ens 1900, Peter Cohen deixa clara a visãomoderna de que a ciência não tem ape-nas o objetivo de desvelar a natureza, mastambém a habilidade de intervir e ajustar.Nesta época, era grande o movimento a fa-vor da eugenia, que incentivava medidas so-ciais que pudessem beneficiar “raças” social-mente saudáveis. A crença de que os in-divíduos com traços hereditários inferioresdeveriam ser impedidos de procriar levavamédicos a medidas extremas, como o ex-termínio de bebês que nascessem defeitu-osos ou muito fracos. Além de científica,a questão atingiu o campo da política etransformou-se em lei em diversos países daEuropa, como Alemanha e Suécia. Um dosmovimentos de eugenia de maior destaquefoi, sem dúvida, o Nazismo, sob o comandode Adolf Hitler. O controle da seleção natu-ral a partir da intervenção humana se mani-festava sob duas formas: 1) eugenia positiva(melhoria da raça humana com o cruzamentode seres superiores – interferência na procri-ação) e 2) eugenia negativa (ações para evitarque pessoas inferiores se reproduzam – oca-sionar a morte).

Mas há uma grande diferença entre aspráticas eugênicas e a noção de suscetibil-idade apresentada por Rose. Paula Sibilia(2007) deixa esse distanciamento claroquando faz referência, por exemplo, às cirur-gias plásticas e outras técnicas que são ca-pazes de oferecer hoje cura para as aber-rações e “deficiências” do corpo humano.Agora, defende a pesquisadora, é possíveleliminar os defeitos do corpo e a conde-nação não é mais fatal, como determinavamas práticas eugênicas da primeira metade doséculo XX. Doentes mentais e deficientesfísicos agora têm a seu favor a ousadia,a persistência, a tecnologia, o desafio, as

www.bocc.ubi.pt

Page 6: PDF 2454 KB

6 Melissa Ribeiro de Almeida

promessas e as conquistas da biociência. Seantes certos tipos de anomalias e de enfermi-dades eram detectadas através de inúmerasmedições de partes do corpo, agora o diag-nóstico é ancorado pela sofisticação de testeslaboratoriais, tecnologias de imagem e ma-peamento genético.

As tecnologias médicas modernas con-struíam um mapeamento de riscos tendocomo alvo não uma pessoa, mas um grupode pessoas, toda uma população. Agora,a prevenção de doenças tem sido feita deforma cada vez mais personalizada. Ci-tando o Projeto Genoma, que pretende pro-duzir um mapa de nosso DNA com o ob-jetivo não só de conhecer, mas tambémde intervir em nosso corpo, Paul Rabinowaponta que a tendência futura é haver umdiagnóstico e uma monitoração dos indiví-duos com predisposições genéticas a deter-minadas doenças, como diabetes e câncer,a partir do próprio DNA. Seguindo estemesmo raciocínio, Nikolas Rose acreditaque em breve seremos capazes de desen-volver uma probabilidade futura da históriade saúde de cada indivíduo, a partir de umapequena quantidade de sangue (como re-tratado no filme GATTACA – A experiên-cia genética, de Andrew Niccol). Atravésde uma medicina personalizada seremos ca-pazes de tratar cada indivíduo com medica-mentos específicos, proteínas manipuladas,enfim, realizar diagnósticos e tratamentospersonalizados. Isso garantiria, segundoRose, maior eficácia dos remédios, que se-riam adaptados a cada organismo, dimin-uindo ou eliminando os efeitos colaterais ereduzindo os custos individuais e públicoscom a saúde, uma vez que os medicamentosteriam chances quase remotas de serem inefi-cazes. No entanto, Rose lembra que o fato de

se poder prever uma doença futura não sig-nifica necessariamente dizer quando ela iráse manifestar, como será seu progresso oucomo sua cura poderá ser realizada.

O fato é que presenciamos uma crescenteconvicção de que anomalias físicas ou men-tais possuem uma base genética, e isso, deacordo com Rose, significa mudanças nosmodos de governar a própria vida. Háum pensamento convergente entre diversospesquisadores do assunto de que estamosvivendo uma “geneticalização” da identi-dade, concebendo os genes como causas dedoenças e determinantes de comportamen-tos. Para Benilton Bezerra, a cultura do riscogenético influencia a liberdade de escolha,trazendo para o campo individual decisõesque até então estavam reservadas a instânciascomo família, igreja, política, etc.

Vamos agora à segunda questão funda-mental da biomedicina apontada por Rose: amelhoria. Sabemos que, ao longo da históriaocidental, os indivíduos buscaram, de di-versas formas, aperfeiçoar ou potencializarsuas capacidades físicas e mentais. Comoaponta Marshall McLuhan (2005), toda tec-nologia se apresenta como uma extensãode um órgão humano (a roda como exten-são dos pés, o vestuário como extensão dapele, o telefone como extensão de nosso ou-vido, etc). Todavia, a melhoria de que Rosefala vai muito além de um aperfeiçoamentodas habilidades naturais do homem. O pro-jeto da biotecnologia busca uma otimização,uma superação. A intenção é ultrapassar oslimites físicos e mentais do corpo. A fimde compreender o que Rose propõe iremosrecorrer ao pensamento do sociólogo por-tuguês Hermínio Martins, que muito antes deMcLuhan já estudava as técnicas como ex-tensões do ser humano. De acordo com o so-

www.bocc.ubi.pt

Page 7: PDF 2454 KB

“Eu fiz a cirurgia do estômago” 7

ciólogo, foi Ernst Kapp, em artigo publicadoem 1877, quem primeiro expôs de forma sis-temática este pensamento. Kapp acreditavaque todas as ferramentas e invenções hu-manas são pensadas por analogia ao corpohumano. Ele comparou, por exemplo, os ca-bos do telégrafo elétrico com os nervos e asestradas de ferro com o aparelho circulatório.

A partir dessa idéia, Hermínio Martins ap-resenta dois pensamentos divergentes a re-speito da técnica: a prometéica e a fáustica.A primeira defende o domínio técnico sobrea natureza em busca do bem, da melhoria dascondições de vida e da capacidade humana.O progresso viria com o aperfeiçoamento docorpo, com a amplificação das capacidadeshumanas, através de instrumentos técnicos.Entretanto, os “prometeístas” acreditam quehá limites em relação ao que pode ser co-nhecido, modificado e criado pelo homem.Para eles, há mistérios sobre a origem davida e a evolução biológica, que pertencemunicamente ao campo divino. Já a tradiçãofáustica é associada à tecnociência contem-porânea por ter a tendência de ultrapassar oslimites da natureza. De fato, presenciamosnos nossos dias uma exaustiva tentativa demelhorar os corpos, uma vontade de ultra-passar a condição biológica do corpo e detodos os organismos vivos, de imortalizar avida. Uma das marcas dessa nova configu-ração é o declínio da organicidade e a pre-dominância do tecnológico. A superação damatéria se tornou, assim, um dos principaisdesafios deste século.

É dessa forma de melhoria que NikolasRose fala. Para exemplificar esse fenômenoele cita o exemplo do uso de farmacêuti-cos com o objetivo de melhorar as funçõesmentais, como a Ritalina, que em muitos

casos é utilizada por estudantes que não a-presentam sintomas do Transtorno de Déficitde Atenção e Hiperatividade para o qual omedicamento é indicado, mas buscam ummelhor desempenho mental. Rose tambémexemplifica essa tendência discorrendo sobreas inúmeras cirurgias estéticas que não po-ssuem recomendação médica, mas objetivamunicamente um “melhoramento” do corpo.

3 A cirurgia como intervençãosubjetiva: o caso dacomunidade do orkut “Eu fiz acirurgia do estômago”

As tecnologias biomédicas trabalham cadavez mais com a perfeição, dificultando adiferenciação entre o natural e o artificial.As intervenções cirúrgicas, por exemplo, seesforçam para não deixar marcas visíveisno corpo e prometem oferecer um resul-tado indolor. Através de bisturis e as maisavançadas tecnologias, os cirurgiões elimi-nam rugas, gorduras, remodelam narizes, bo-cas, olhos, seios, nádegas e outras partes docorpo. O imperativo da beleza, da pureza edo sacrifício e o acesso ao mercado de pro-dutos e serviços de embelezamento impelemum olhar vigilante sobre si mesmo. Men-sagens publicitárias e discursos médicos e-xigem de mulheres e homens, adolescentes,jovens, adultos e idosos um corpo saudável,belo, magro e sempre jovem. Os corpos hu-manos são trabalhados para serem exibidos,como uma imagem a ser consumida. Um re-cente fenômeno surge diante deste contexto:a lipofobia, o horror ao gordo e o medo deestar gordo. E é justamente a partir dessaconcepção que iremos analisar o nosso ob-jeto de estudo.

www.bocc.ubi.pt

Page 8: PDF 2454 KB

8 Melissa Ribeiro de Almeida

Criada em maio de 2005, a comunidade“Eu fiz a cirurgia do estômago”2 está in-serida na categoria “Saúde, Bem-estar e Fit-ness” do site, reúne 1.631 membros3 e édedicada a todos os gordinhos que fizerama cirurgia da obesidade e aqueles que es-tão pensando em fazer. Além de apresen-tar relatos de experiências pessoais com aobesidade e com a cirurgia de estômago, oobjetivo da comunidade é ajudar as pessoasque fizeram ou pretendem realizar o proced-imento, tirando dúvidas ou oferecendo con-solo e ânimo aos aflitos. As opiniões e mani-festações dos membros da comunidade sãoexpressas através dos fóruns de discussão(onde alguém lança um tópico sobre deter-minado assunto e os demais membros dis-cutem tal conteúdo), das enquetes (perguntasobre algum tema específico com respostaspré-definidas que podem ser votadas pelosmembros da comunidade) e da comunicaçãodireta entre os membros, por meio de reca-dos deixados no “perfil” de cada um.

Ao analisarmos os temas das enquetes edos fóruns de discussão, percebemos queprevalece a participação de pessoas infelizespor serem ou se sentirem gordas e de pe-ssoas felizes por terem mudado esta reali-dade através da cirurgia de redução de es-tômago. Influenciadas pelas imposições dacultura somática, elas carregam a angústiade não conseguirem se adaptar aos padrõesde beleza corporal vigentes e se sentem infe-riores, rejeitadas, discriminadas. São consi-deradas deformadas pela classificação de Ju-randir Freire Costa. O culto ao corpo per-feito e o discurso de felicidade vinculado à

2www.orkut.com.br/Main#Community.aspx?cmm=2275033

3Dados coletados em 27 de março de 2009.

idéia de fitness está implícito nas perguntase desabafos, que também acabam por reve-lar a crença em um determinismo genético,através da demonstração clara de incapaci-dade de superação dos limites e de se al-cançar o desejo de emagrecer sem a inter-venção médica. É como se cada um dosmembros da comunidade tivesse o destinomarcado e fosse fadado a ser gordo pelo restoda vida. A cirurgia é, então, consagradacomo a única maneira de se conquistar a feli-cidade e de se vencer a barreira genética quesepara os “gordos infelizes” dos “sarados re-alizados”.

Uma das enquetes da comunidade per-gunta se a pessoa que se submeteu à cirur-gia havia se arrependido (anexo 1). Sessentae cinco por cento dos participantes optarampela resposta “de jeito nenhum. É a me-lhor coisa da minha vida”. Nos comen-tários sobre a mencionada pergunta (anexo2), “Cláudia a Mamãe” afirma que não se a-rrepende de forma alguma porque agora elasabe “o que é entrar em qualquer loja paracomprar roupas!!!”. A participante Natáliafaz a mesma escolha e diz que não se ar-repende porque agora é o que “sempre de-veria ter sido”. Tais depoimentos deixamclaro como a construção da subjetividadecontemporânea é influenciada pelo culto aocorpo, pelo impulso ao consumo e pela auto-afirmação baseada no reconhecimento dooutro. Em mais uma enquete, a pergunta“o que te faz mais feliz com o resultado dacirurgia?” tem como a resposta mais votada“não se sentir discriminado” (anexo 3). Ouseja, o mais importante não é a saúde, mas aprópria imagem de si, o julgamento e a cen-sura do outro. Em diversos depoimentos nacomunidade fica explícito o desejo de váriosmembros de realizar a cirurgia de redução do

www.bocc.ubi.pt

Page 9: PDF 2454 KB

“Eu fiz a cirurgia do estômago” 9

estômago mesmo quando não há indicaçãomédica. A escolha passa unicamente poruma questão estética, pela busca do corpoperfeito e pela vontade de seguir o padrão debeleza vigente. Tal decisão é encarada comoum direito individual, demonstrando que ocuidado com a saúde passa cada vez mais poruma escolha pessoal, pela responsabilidadede cada um, e não mais pela intervenção doEstado.

A idéia do indivíduo como empresário desi mesmo, gerente de sua própria saúde podeser exemplificada em alguns fóruns da comu-nidade que também demonstram a força daauto-peritagem. No tópico “Refrigerantes”(anexo 4), por exemplo, um dos membrospergunta aos demais se após a cirurgia, háproblemas em se tomar bebidas com gás.Trinta e uma pessoas responderam o tópicofalando de suas experiências e até dandoconselhos sobre como agir nesta situação. Omesmo acontece no fórum “Meu cabelo tácaindo muito!” (anexo 5), onde uma pesso-a que já passou pela cirurgia diz que estáperdendo cabelo e pergunta se isso aconte-ceu com mais alguém e como o problemafoi resolvido. Em seguida vem uma seqüên-cia de sugestões apresentadas pelos mem-bros para a solução do problema. Detalhe: osmembros da comunidade são leigos, pesso-as que não possuem capacitação profissionalpara dar orientações quanto a procedimentosmédicos. O mais interessante é que quemfez a pergunta deixou claro em seu texto quejá havia feito o questionamento para o seumédico, e mesmo assim procurou a opiniãodos demais. No tópico “Preciso de Ajuda!”(anexo 6), a dúvida de uma das participantesda comunidade é sobre dores abdominais aoredor do corte da cirurgia. Ela pergunta se

alguém já passou por esta situação e pedeajuda desesperadamente.

Com esses exemplos percebemos como nacultura somática o outro se apresenta comoum elemento de destaque na construção dasubjetividade. Essa idéia também fica claraquando analisamos a importância da visibil-idade do corpo, que é apresentado atravésde imagens e de vídeos na comunidade.Vários membros postam fotos ou clips com o“antes” e o “depois” da cirurgia, convidandoos demais a acessarem suas páginas e a con-ferirem o resultado da intervenção médica,a mudança de visual e, principalmente, oaumento da “auto-estima”. Essas pessoasfazem questão de dizer como se tornarammais bonitas e felizes após a cirurgia4 . Maisdo que se sentir e se parecer, é preciso semostrar saudável. Assim, as comunidadesvirtuais acabam sendo utilizadas muito maiscomo um espaço de visibilidade do que derelacionamentos e de troca de informações.

Em alguns fóruns, os membros deixamseus cumprimentos àqueles que tiveram“auto-controle” e conseguiram alcançar osresultados desejados, chegando a perder 70e até 80 quilos. Parece claro para nós comestes exemplos como a admiração moral sedesloca para a forma corporal na sociedadecontemporânea. Aqueles que conseguematingir o corpo “ideal” são idolatrados, con-siderados fortes, determinados, dignos de re-speito e de admiração. São os vencedores e,conseqüentemente, as referências morais.

As interações realizadas na comunidaderatificam como a imagem corporal se tornafundamental na construção da identidade noséculo XXI. É através dele que as pessoas

4Antes e depois da gastroplas-tia:http://br.youtube.com/watch?v=1KtEcuiZxEk

www.bocc.ubi.pt

Page 10: PDF 2454 KB

10 Melissa Ribeiro de Almeida

passam a se reconhecer, a estabelecer julga-mentos e relacionamentos, a tomar decisões,a expressar valores, desejos, dúvidas, me-dos e planos. Nos discursos que encon-tramos nos fóruns e nos comentários das en-quetes percebemos como a opinião do outroinfluencia decisões e comportamentos indi-viduais, como os cuidados e as intervençõesmédicas se tornam fundamentais para a for-mação da bioidentidade e como os julgamen-tos sobre o corpo levam ao sofrimento, quenão mais como na modernidade é ruminadona privacidade, no interior, mas se manifestana exacerbação da imagem de si, na exte-rioridade e na aparência. É um grande es-petáculo que tem o self como o protagonista.

4 ReferênciasBEZERRA, B. (2002), “O ocaso da inte-

rioridade e suas repercussões sobre aclínica”, in PLASTINO (org.), Trans-gressões, Rio: Contra Capa/Rios Am-biciosos.

COSTA, J.F. (2005), “A personalidadesomática de nosso tempo”, in COSTA,J.F., O vestígio e a aura: corpo e con-sumismo na moral do espetáculo, Riode Janeiro: Garamond.

FOUCAULT, M. (2007), História da Sexual-idade 1: a vontade de saber, São Paulo:Graal.

NICCOL, A. (1997), GATTACA: A experiên-cia genética.

COHEN, P. (1999), HOMO Sapiens.

KAPP, E. (1998), “Líneas fundamentales deuma filosofia de la técnica: acerca de

la historia del surgimiento de la cul-tura desde nuevos puntos de vista”, Teo-rema, revista internacional de filosofia.Vol.XVII/3.

MARTINS, H. (1996), “Hegel, Texas: temasde filosofia e sociologia da técnica”,in MARTINS, H, Hegel, Texas e out-ros ensaios de teoria socia,. Lisboa:Edições Século XXI. p. 167-249.

MCLUHAN, M. (2005), Os meios de comu-nicação como extensões do homem, SãoPaulo: Cultrix.

ORTEGA, F. (2008), “Do corpo submetido àsubmissão ao corpo”, in ORTEGA,F., Ocorpo incerto: corporeidade, tecnolo-gias médicas e cultura contemporânea,Rio de Janeiro: Garamond.

RABINOW, P. (2002), “Artificialidade e ilu-minismo: da sociobiologia à biosocia-bilidade”, in RABINOW,P., Antropolo-gia da razão, Rio de Janeiro: RelumeDumará.

ROSE, N. (2007), The Politics of Life Itself:biomedicine, power and subjectivity inthe twenty-first century, United Statesof America: Princeton University Press.

SIBILIA, P. (2007), “O lipoaspirador dedefeitos terrestres: cirurgia plástica,Frankenstein e Pigmalião”. Trópico,São Paulo, 15 nov.

www.bocc.ubi.pt

Page 11: PDF 2454 KB

“Eu fiz a cirurgia do estômago” 11

5 Anexos

5.1 Anexo 1:

5.2 Anexo 2:

www.bocc.ubi.pt

Page 12: PDF 2454 KB

12 Melissa Ribeiro de Almeida

5.3 Anexo 3:

5.4 Anexo 4:

www.bocc.ubi.pt

Page 13: PDF 2454 KB

“Eu fiz a cirurgia do estômago” 13

5.5 Anexo 5:

5.6 Anexo 6:

www.bocc.ubi.pt