doutrina do engrossamento: notas livro eletrônico

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E NATURAIS DEPARTAMENTO DE LÍNGUAS E LETRAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS RAONI SCHIMITT HUAPAYA Doutrina do Engrossamento de Graciano Neves: organização, estudo introdutório e notas para um livro eletrônico Vitória – ES 2015

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Dissertação de mestrado.

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPRITO SANTO CENTRO DE CINCIAS HUMANAS E NATURAIS

    DEPARTAMENTO DE LNGUAS E LETRAS PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LETRAS

    RAONI SCHIMITT HUAPAYA

    Doutrina do Engrossamento de Graciano Neves: organizao, estudo introdutrio e notas para um livro eletrnico

    Vitria ES 2015

  • RAONI SCHIMITT HUAPAYA

    Doutrina do Engrossamento de Graciano Neves: organizao, estudo introdutrio e notas para um livro eletrnico

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Letras do Departamento de Lnguas e Letras, Centro De Cincias Humanas e Naturais da Universidade Federal Do Esprito Santo, como requisito parcial para obteno do ttulo de Mestre em Letras. rea de concentrao: Estudos literrios Orientador: Prof. Dr. Orlando Lopes Albertino

    Vitria ES 2015

  • Dados Internacionais de Catalogao-na-publicao (CIP)

    (Biblioteca Central da Universidade Federal do Esprito Santo, ES, Brasil)

    Huapaya, Raoni 1979-

    L

    533e

    Doutrina do Engrossamento de Graciano Neves: organizao,

    estudo introdutrio e notas para um livro eletrnico/ Raoni

    Huapaya. 2015.

    115 f. : il.

    Orientador: Orlando Lopes Albertino.

    Dissertao (mestrado) Universidade Federal do Esprito

    Santo, Centro de Cincias Humanas e Naturais.

    1. Stira. 2. Literatura no Esprito Santo. 3. Poltica. I.

    Albertino, Orlando Lopes. II. Universidade Federal do Esprito

    Santo. Centro de Cincias Humanas e Naturais. III. Ttulo.

    CDU: 159.9

  • RAONI SCHIMITT HUAPAYA

    Doutrina do Engrossamento de Graciano Neves: organizao, estudo introdutrio e notas para um livro eletrnico

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Letras do Departamento de Lnguas e Letras, Centro De Cincias Humanas e Naturais da Universidade Federal Do Esprito Santo, como requisito parcial para obteno do ttulo de Mestre em Letras.

    Aprovada em 24 de maro de 2015

    COMISSO EXAMINADORA

    ____________________________________

    PROF DR ORLANDO LOPES ALBERTINO UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPRITO SANTO ORIENTADOR ____________________________________ PROF. DR. LUS EUSTQUIO SOARES UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPRITO SANTO _____________________________________ PROF. DRA. KARINA KLINKE UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLNDIA

  • RESUMO

    O presente trabalho tem como objetivo oferecer uma nova edio, em formato eletrnico, de Doutrina do engrossamento (1901), de autoria de Graciano dos Santos Neves (1868 1922), compreendendo que a formao acadmica em nvel de mestrado pode incorporar aspectos tcnicos e cognitivos que reflitam ganhos para a preservao e difuso de repertrios da Literatura Brasileira realizada no Estado do Esprito Santo. Minha proposta est divida em trs momentos e dispe-se a organizar uma publicao eletrnica e a evidenciar a presena de elementos da tradio literria no texto de Graciano, com destaque para textos da Antiguidade Clssica, do teatro de Molire, de pensadores positivistas e da stira inglesa vitoriana, em especial, de Thackeray (1811-1863), apontando a ocorrncia de um padro de leitura (o humanista) no contexto localizado da formao cultural no ES, particularmente do acionamento da tradio literria. Num primeiro momento, apresento as justificativas e as orientaes gerais, detalhando as estratgias editoriais constitudas para uma padronizao da organizao do formato eletrnico. Em seguida, contextualizo a obra em pesquisa, traando uma breve biografia do autor e produzindo um estudo introdutrio sobre a Doutrina. Por fim, recupero o texto original e adenso a leitura com notas e iconografias. Palavras-chave: clssicos, leitura, edio, livro eletrnico, literatura no Esprito Santo.

  • SUMRIO

    1 INTRODUO ................................................................................... 7

    2 PLANO DE INTERVENO EDITORIAL: O EDITOR COMO MEDIADOR DE LEITURA ............................................................................. 9

    2.1 DO LIVRO AO ELETRNICO: O MTODO ABERTO ................... 14

    2.2 ORIENTAES FINAIS (BRIEFING) ............................................. 18

    3 ESTUDO INTRODUTRIO ............................................................. 20

    3.1 BREVE NOTCIA SOBRE A VIDA DE GRACIANO NEVES .......... 20

    3.2 UMA APRESENTAO DE DOUTRINA DO ENGROSSAMENTO 22

    3.3 LITERATURA E BAJULAO ........................................................ 24

    3.4 LINGUAGEM E ESTILO DE GRACIANO NEVES .......................... 33

    3.5 O RISO GRACIANO ....................................................................... 36

    3.6 NOTA DO EDITOR-ORGANIZADOR ............................................. 41

    4 A DOUTRINA DO ENGROSSAMENTO . ....................................... 42

    4.1 PREFCIO ...................................................................................... 43

    4.2 AO CONGRESSO FEDERAL ........................................................ 48

    4.3 ADVERTNCIA .............................................................................. 49

    4.4 INTRODUO FUNDAMENTAL .................................................... 50

    4.5 JUSTIFICAAO HISTRICA E POLTICA DO ENGROSSA-

    MENTO......................................................................................................71

    4.6 A TCNICA DO ENGROSSAMENTO ............................................ 85

    4.7 A ARTE DE ENGOLIR A PLULA ................................................. 107

    REFERNCIAS...........................................................................................116 ANEXOS......................................................................................................118

  • 7

    1 INTRODUO

    O estudo, de fato, em si mesmo interminvel. Quem conhea as longas horas de vagabundagem entre os livros, quando qualquer fragmento, qualquer cdigo, qualquer inicial promete abrir uma via nova, logo abandonada em favor de uma nova descoberta, ou quem quer que tenha conhecido a impresso ilusria e labirntica daquela lei da nova vizinhana a que Warburg submeteu a organizao da sua biblioteca, sabe bem que o estudo no s pode ter fim, como tambm no o quer ter. (Giorgio Agambem, p.53)

    Quando ingressei no PPGL com minha proposta de dissertao me deparei

    de imediato com a falta de materiais para realizar a pesquisa. A prvia do projeto,

    que havia sido construda em 2010, dispunha-se a realizar um estudo sobre o autor

    local, Graciano Neves, e sua obra Doutrina do Engrossamento (1901). J no incio,

    meu espao de pesquisa passou a se restringir aos navegadores de internet em

    busca de fragmentos sobre o autor e sua obra. No decorrer do cumprimento dos

    crditos do programa, minha aproximao com o Neples1 e o compromisso de

    realizar uma interveno literria no contexto do curso de Literatura do Esprito

    Santo, ctedra conduzida pelo professor Orlando Lopes, visualizei a possibilidade de

    um programa de ps-graduao em letras atuar de forma propositiva na construo

    de repertrios de uma crtica localizada e especializada e tambm no acesso ao

    patrimnio literrio concebido na localidade.

    Assim, passamos a voltar nossos esforos para o trabalho organizador do

    editor. Trabalhamos para realizar uma operao intelectual comprometida com a

    mediao de leitura, que se dispusesse, em formato eletrnico, a estabelecer uma

    publicao de Doutrina do Engrossamento. Para isso, partamos do pressuposto que

    a formao acadmica em nvel de mestrado poderia incorporar aspectos tcnicos e

    cognitivos na medida em que garantisse a preservao e a difuso de repertrios da

    1O Ncleo de Estudos e Pesquisas da Literatura do Esprito Santo (Neples) foi criado em

    1996 como rgo vinculado ao Programa de Ps-Graduao em Letras (PPGL) da Universidade Federal do Esprito Santo. O Neples busca promover reflexes crticas sobre as manifestaes literrias no Esprito Santo e organizar documentao sobre seus principais autores e obras, divulgando-os junto ao pblico crtico e leitor em geral. Disponvel em http://www.literatura.ufes.br/pos-graduacao/PPGL/grupos-e-ncleos-de-pesquisa

  • 8

    Literatura Brasileira realizada no estado do Esprito Santo. O resultado foi dividido

    em trs momentos: no primeiro captulo deste trabalho, detalhamos o momento

    inicial. Justamente o que d o tom da interveno, sua metodologia e possibilidades

    de aparato terico.

    Numa perspectiva de que a prtica antecede a teoria, construmos este

    plano de interveno editorial como uma espcie de dirio, onde lanamos as

    aes e as impresses decorridas de nosso envolvimento com a Doutrina de

    Graciano Neves, sobretudo relatos que surgiram em decorrncia da elaborao do

    segundo captulo, que se configura como estudo introdutrio. Este, alm de

    exerccio de crtica literria, texto produzido para ser publicado com a verso

    eletrnica, abarcando uma breve biografia, uma nota editorial e uma anlise que visa

    a realizar um pensamento sobre a obra e suas opes estilsticas. Nesse sentido, o

    percurso terico assume-se como didtico, na busca do leitor novel, e ampliado, na

    medida em que no pretende encerrar declaraes definitivas. So incurses que se

    dispem a realizar um claro itinerrio de leitura, um caminho para a compreenso da

    presena de elementos da tradio literria no texto de Graciano Neves, com

    destaque para textos da Antiguidade Clssica, do teatro de Molire, de pensadores

    positivistas e da stira inglesa vitoriana, em especial, de Thackeray (1811-1863),

    apontando a ocorrncia de um padro de leitura (o padro humanista) no contexto

    localizado da formao cultural no ES, particularmente do acionamento da tradio

    literria.

    No ltimo momento, recupero o texto original e adenso a leitura com notas e

    iconografias. Apresento a verso da doutrina, revista, atualizada, comentada e

    ilustrada com imagens que do o percurso da leitura projetada. De certa forma,

    retomo a crena iluminista no universal, aqui apresentada no eletrnico e na sua

    interatividade, para a construo de projetos editoriais tencionados em promover a

    preservao e difuso de repertrios construdos no mbito do Esprito Santo,

    esperando por apreciaes crticas de especialistas e de outros mediadores,

    principalmente professores de literatura, em busca de futuros leitores.

  • 9

    2 PLANO DE INTERVENO EDITORIAL: O EDITOR COMO MEDIADOR DE LEITURA

    Este estudo, ao se dispor a preparar originais e dar orientaes tcnicas

    com vistas publicao de Doutrina do Engrossamento, apoia-se no papel do editor

    de textos literrios como mediador de leitura. Historicamente, coube ao editor

    selecionar textos, construir catlogos e fazer com que as publicaes chegassem ao

    pblico leitor. Passando pelos copistas e pelos livreiros-editores surgidos com a

    imprensa de Gutemberg, o historiador do livro Roger Chartier posiciona, na trajetria

    profissional do editor, o momento atual como oriundo no incio do sculo XIX:

    Nos anos 1830, fixa-se a figura do editor que ainda conhecemos. Trata-se de uma profisso de natureza intelectual e comercial que visa a buscar textos, encontrar autores, lig-los ao editor, controlar o processo que vai da impresso da obra at sua distribuio. (p.50)

    O professor Anbal Machado realizou estudo em que compila os vrios

    momentos do ofcio do editor no pas. Em artigo intitulado Sobre o editor: notas para

    sua histria, Machado revisita a periodizao realizada por Chartier e refora ainda

    mais o carter emblemtico da funo do editor na construo e difuso da cultura

    letrada. Ao recuperar os conceitos presentes em duas das mais importantes obras

    de referncia sobre o livro e o editor no Brasil2, o acadmico apresenta o editor em

    uma responsabilidade capital na definio do texto literrio: todos os livros so

    produtos da ao combinada do autor e do editor. s vezes gestados mais pelo

    autor, outras vezes criados pelo editor (p.222). Nesse sentido, o papel da escolha

    daquilo que deve ser lido e de como deve ser lido, prprio daquele que medeia a

    leitura ponto de ligao entre autor-obra-leitor , passa a ser responsabilidade

    permanente das instituies representadas pela figura do editor.

    No caso do contexto acadmico de um programa de ps-graduao em

    letras, que se dedica aos estudos literrios em particular, inclui-se uma participao

    fundamental na construo de repertrios de uma crtica localizada e especializada

    e tambm o acesso ao patrimnio literrio concebido na localidade. Estas

    possibilidades tornam-se ainda mais representativas na realidade cultural e

    intelectual do Esprito Santo, quase sempre minguada pela escassez de

    2 Referimo-nos aqui a Emanuel Arajo e a Antnio Houaiss, respectivamente, em suas obras A construo do livro (1986) e Elementos de bibliologia (1983).

  • 10

    investimentos e pela incipincia de espaos e equipamentos para difuso do texto

    literrio. Com o intuito de mediar a leitura, dentro da lgica forjada pela indstria

    cultural, faltam iniciativas de sistematizao de projetos editoriais de interesse

    documental e literrio no contexto da graduao e da ps-graduao, considerando

    a realidade e o potencial da rede de ensino instalada no ES. O prprio objeto inicial

    desta pesquisa - que chegou a ser um estudo que contribuisse com noes

    atualizadas de interpretao, valor, sentido, fora e forma - viu-se malogrado em

    suas expectativas por conta da ausncia de estudos e publicaes sobre o autor,

    seu contexto e sua obra. Entretanto, compreendendo que a formao acadmica em

    nvel de mestrado pode incorporar aspectos tcnicos e cognitivos que reflitam

    ganhos para a preservao e difuso de repertrios da Literatura Brasileira realizada

    no Estado do Esprito Santo, nosso trabalho entendido como editorial lana

    possibilidades de difuso do texto de Graciano Neves para apreciaes crticas de

    especialistas e outros mediadores, principalmente professores de literatura.

    Para isso, na escolha do suporte, levamos em considerao as limitaes

    decorrentes da fragilidade da indstria do livro no ES. Nosso prximo passo lanar

    a discusso metodolgica sobre a utilizao do ciberespao como interface de

    trabalho. Nossa interveno consiste em editar Doutrina do Engrossamento em

    formato eletrnico. Assim, convm ao editor dissociar a forma do suporte: livro e

    literatura no so uma entidade nica. Vivem sem depender um do outro. Da

    inveno da imprensa, como houve a passagem gradual do manuscrito ao impresso,

    hoje vivemos a passagem do livro como objeto de acesso cultura letrada para a

    tela de eletrnicos e suas variaes:

    Agora tudo indica que o livro, nessa forma tradicional, encaminha-se para o seu fim. [...]antes que um contemporneo chegue a abrir um livro, ter desabado sobre os seus olhos um turbilho to denso de letras mveis, coloridas, litigantes, que as chances de seu adentramento no arcaico estilo do livro j estaro reduzidas ao mnimo. (BENJAMIN, citado por Bragana, 2005, p.234)3

    As palavras de Benjamin podem ser entendidas como profticas para

    justificar nossa escolha pelo eletrnico e suas possibilidades de integrao de

    variadas mdias. Entretanto, servem de alerta para ausncia de novidade em nossa

    proposio, que se dispe a ser uma primeira incurso terica em busca da garantia

    3 BENJAMIN, Walter. Rua de mo nica. Trad. de Rubens Rodrigues Torres Filho e Jos

    Carlos Martins Barbosa. S. Paulo: Brasiliense, 1987. (Obras escolhidas II)

  • 11

    de materialidade, valendo-se do ciberespao como proposio. Nesse sentido, uma

    operao intelectual centrada na proposta de uma nova edio da Doutrina requer a

    elaborao conceitual da figura do autor e do papel das vrias maneiras de ler no

    processo que d sentido aos textos. Com esse intuito, tomemos o hipertexto como

    oposio ao texto linear clssico, ou seja, um sistema que executa, ou ativa ou

    potencializa infinitas combinaes e interaes com as quais o leitor prprio o

    alimenta. Provavelmente, o futuro da cultura letrada tal como anunciara Benjamin:

    o que se tem a priori um leitor em tela muito mais ativo do que o leitor em papel.

    Portanto, o ciberespao, a digitalizao e as novas formas de apresentao do texto

    s nos interessam porque do acesso a outras maneiras de ler e de compreender

    (LVY, 1996, p. 46).

    O trabalho do editor se atualiza e se amplifica diante das possibilidades do

    digital. Ora, numa avaliao dos requisitos tcnicos para nova edio em tela,

    recordamo-nos que, na histria ocidental da cultura letrada, papiros propunham uma

    forma de ler; j com os codices, as pginas foram numeradas, houve novas entradas

    de dados, controladas por sumrio, e possibilidades de notas explicativas de rodap,

    de cabealhos, de layout fixo na pgina, etc. A nova forma de escrita que se

    configurava no lugar da epopeia e do verso trazia consigo uma escrita em prosa

    para uma leitura silenciosa e organizada para outras formas de raciocnio. Assim, o

    ciberespao e tambm a cibercultura, como essa convivncia e comunicao

    mediada por computadores, devem ser parmetros para atualizao e reavaliao

    de estratgias de ao/interveno na literatura e na formulao de caminhos para

    mediao de leitura, sobretudo aquela conduzida pelas instituies educacionais.

    Ambientes eletrnicos de difuso de criaes literrias promovem mudanas

    industriais que transformam os artistas e suas abordagem estticas, trazendo

    responsabilidades ao poder pblico na promoo desses contedos. Nessa toada,

    as formas de circulao do texto literrio operam novo contexto de formao de

    leitores.

    Ressalta-se, entretanto, que a inteno maior no nos tornarmos

    entusiastas da atual revoluo digital, mas sim massa crtica e ativa nesse

    complexo mundo das infovias. Cabe aqui a ressalva de que o ciberespao e suas

    experincias virtuais vm sendo produzidos pelo capitalismo contemporneo e esto

    necessariamente impregnados das formas culturais e paradigmas que so prprias

    do capitalismo global (Santaella, 2003, p. 75). Trata-se, portanto, de terreno

  • 12

    arenoso, em que a lgica do capital parece tambm lanar a sua utopia de

    conquistar o infinito. Acerca disso atesta o pensador Nestor Garcia Canclini:

    Observa-se h muito tempo que a tendncia para mercantilizar a produo cultural, massificar a arte e a literatura e oferecer os bens culturais com apoio de vrios suportes ao mesmo tempo (por exemplo, filmes no s em cinemas, mas tambm na televiso e em vdeo) tira autonomia dos campos culturais. A fuso de empresas acentua essa integrao multimdia e a sujeita a critrios de rentabilidade comercial que prevalecem sobre a pesquisa esttica. Um dos exemplos mais citados o grupo Time: dedicado mdia impressa, uniu-se ao mega-produtor audiovisual Warner. Transformados, assim, nos maiores fabricantes de espetculos e contedos (Time-Warner), em 2000 aliaram-se a um mega-provedor da Internet (AOL). Por outro lado, a empresa Cobis Corporation, de Bill Gates, ao comprar mais de vinte milhes de imagens fotogrficas, pictricas e de desenhos, acrescenta, a seu controle digital de edio e transmisso, a gesto exclusiva de uma enorme parte da informao visual sobre arte, poltica e guerras. Logo, essas corporaes concentram a capacidade de selecionar e interpretar os acontecimentos histricos. (CANCLINI, 2008, p.20)

    Essas reflexes sobre o texto literrio e a sua intrnseca relao com a

    indstria cultural j provm de longa data. Cumpre relembrar que foram os livreiros-

    editores que, no sculo XVIII, a partir da necessidade de limitar os direitos sobre as

    cpias dos livros, que determinaram a interveno do Estado no Ocidente para a

    privatizao dos direitos do autor. Alm disso, mais recentemente, o historiador

    Armando Petrucci (1999, p. 205) nos d notcias que nos Estados Unidos

    consolidou-se e difundiu-se progressivamente a ideologia tipicamente anglo-

    saxnica da public library como instrumento fundamental da democracia. Na esteira

    destas reflexes histricas, apoiando-se em princpios de preservao de direitos e

    liberdade de acesso, consolidaram-se polticas pblicas no mundo ocidental que

    foram fundamentais para bem montar a lgica de atuao da indstria editorial.

    Por outro lado, o ensino de literatura pouco tem contribudo para formar

    leitores, justificando-se a busca por novas metodologias de abordagem e difuso do

    texto literrio. Reflexes tericas, como as trazidas pela esttica da recepo,

    deslocando o foco da leitura para o leitor, vm abrindo caminho para se pensar um

    ensino que tenha como eixo a vivncia do leitor com as obras e no a assimilao

    de um ensinamento e a introjeo de interpretaes autorizadas. O dilogo entre

    textos, culturas, tempo e espaos diversos poder ser instrumento dinamizador do

    trabalho com o texto literrio, numa perspectiva que valorize a experincia do leitor e

    favorea o papel da mediao de leitura. E a possibilidade do digital pode ser uma

    forma catalisadora disso. O que queremos ponderar enfim que no nos

  • 13

    encontramos necessariamente numa era emancipadora, mas que possvel assim

    mesmo, em meio vanidade daquilo que muitas vezes (re)produzido pela

    cibercultura e ineficincia das prticas de ensino de literatura, vislumbrar uma

    reviravolta de meios interacionais entre tudo aquilo que transmitido e construdo

    nos espaos virtuais.

    Ora, essas ponderaes, numa argumentao que pretende discutir e

    justificar a compatibilizao de uma edio e estratgias de mediao de leitura,

    representam uma preocupao permanente em no se idealizar as possibilidades de

    incremento da leitura do literrio. Ao contrrio, visa a incorporar comportamentos e

    ambientes virtuais j consolidados e avanar para um terreno do ciberespao que a

    teoria contempornea acostumou a chamar de livro eletrnico. Nesse sentido, compromisso capital dos autores literrios e editores do sculo XXI, ento,

    reconhecer o potencial comunicativo e hipermiditico do ciberespao para que se

    opere um preenchimento de vos que se mostram abertos e espera da

    multiplicidade e da diversidade da interao e do conhecimento que podemos

    propor.

    Logo, defendemos que o moderno da digitalizao e das infovias reside em

    trazer para o espao contemporneo novos gneros textuais, vinculados ao

    hipertexto, cuja essncia esteja na interatividade. Aqui est o ponto central: surge a

    um leitor-editor, capaz de conduzir e produzir o conhecimento a partir de seu contato

    com os gneros textuais presentes no ciberespao. Entendemos que a leitura no

    computador uma montagem singular, recorte que resulta da interveno direta do

    leitor-editor, combinao dinmica e infinita de intenes, conexes e interaes.

    Portanto, imaginamos uma prtica editorial que pretende buscar o caminho do

    hipertexto em forma leitura-edio-escrita. Nesta trade que transpe ler, editar e

    escrever, no se pode insistir em sustentar a materialidade estvel da letra no papel,

    onde o autor quase sempre sinnimo de autoridade. Na realidade virtual, toda

    variedade de prticas inclusas na comunicao via redes constituem um sujeito

    mltiplo, instvel, mutvel, difuso e fragmentado, enfim, uma constituio inacabada

    (POSTER, 1995, p. 30), sempre um projeto e, por isso tudo, vai onde o editor pode

    propor sua prtica, lugar em que escrita e leitura no sejam objetos de cognio,

    mas produto de redes de conhecimento estabelecidas:

    se falamos de internauta, fazemos aluso a um agente multimdia que l, ouve e combina materiais diversos, procedentes da leitura e dos

  • 14

    espetculos. Essa integrao de aes e linguagens redefiniu o lugar onde se aprendiam as principais habilidades a escola e a autonomia do campo educacional. (CANCLINI, 2008, p.22)

    Em suma, o que pretendemos afirmar um mundo em transformao em

    que o ciberespao no pode ser negligenciado e a comunicao mediada

    eletronicamente precisa ser pensada como parte de nosso ecossistema e de nossa

    responsabilidade. Cooperao, inovao e servios so valores para um novo

    sculo e que precisam ser revisitados pela prtica editorial, sob pena de a literatura

    ficar subjacente s grandes foras do capital na sociedade contempornea.

    2.1 DO LIVRO AO ELETRNICO: O MTODO ABERTO

    Nossa proposta de interveno editorial inicia-se com a construo de um

    uma problemtica de trabalho que antecedeu construo de um projeto editorial:

    partindo da obra de Graciano Neves, como propor uma edio capaz de articular o

    encontro da crtica literria, do suporte da leitura - neste caso, o digital - e as

    maneiras de ler a Doutrina do Engrossamento? Nosso movimento terico obteve

    para esta problemtica as contribuies do j citado Roger Chartier. Primeiramente,

    a proposta foi estudar os projetos editoriais da Doutrina que antecederam ao nosso.

    A primeira constatao foi identificar na prpria concepo da obra parte do jogo

    ficcional, que havia sido perdido em outras edies e presente na original, de 1901:

    a estratgia de criao em que um ex-deputado federal, lido por eminente senador,

    dedicando ao Congresso, apresenta aos jovens do pas uma doutrina do bajulador

    com vistas carreira poltica. Em nosso projeto, a ironia deste arranjo recuperada,

    com a indicao da proposta original e a fixao do prefcio de 1935 como um texto

    anexo ao primeiro exerccio de publicao. Assim, o leitor contemporneo consegue

    refazer o pacto inicialmente proposto pelo escritor para a obra.

    Depois disso, para realizar a leitura, buscaram-se classificaes da obra

    para alm das convenes de gnero. Apresentamos uma possibilidade de leitura

    do texto como ensaio e at mesmo como pardia - em funo da sua temtica dos

    atuais manuais de autoajuda, mas fixamos nosso olhar crtico na stira. Todas essas

    possibilidades com os mais variados gneros reconstroem o modo como o leitor da

    Doutrina consome, interpreta e se apropria do texto:

    O gnero, como taxonomia, permite ao profissional classificar as obras, mas

  • 15

    sua pertinncia terica no essa: a de funcionar como um esquema de recepo, uma competncia do leitor, confirmada e/ou contestada por todo texto novo num processo dinmico. (COMPAGNON, 2007, p. 157)

    Para isso, construir para a Doutrina este esquema de recepo para as

    possibilidades de gnero presentes na obra aponta trs condies: a organizao de

    um circuito de reconhecimento social; a montagem de contextos que projetem uma

    tentativa de dilogo entre textos que se apropriaram de uma postura combatente no

    cenrio poltico finissecular dos oitocentos; e a aplicao de conceitos que valorizem

    a experincia do leitor e do livro como gesto histrico para intermediar relaes

    locais e nacionais com a representao das instituies polticas de seu tempo.

    Para tanto, considerar as prticas sociais de leitura e as comunidades de

    interpretao foi possvel com a aplicao de conceitos de montagem e imagem

    como paradigma (Didi-Huberman/ Benjamim), com a representao das instituies

    na construo do passado com contornos estticos e tambm polticos. Aqui, a

    montagem como paradigma da pesquisa de imagens que ilustram a edio, diante

    de um mundo que no plano, encontra os tempos imbricados, rev esteretipos e

    atesta que o pensar como montagem e imagem tornaram-se um mtodo revelador

    nos processos de estudos prticos e tericos dos artistas e dos pesquisadores nos

    sculos XX e XXI (Georges Didi-Huberman):

    Fazer um atlas reconfigurar o espao, redistribu-lo, desorient-lo enfim: desloc-lo a onde pensvamos que era contnuo, reuni-lo ali onde supnhamos que havia fronteiras. Arthur Rimbaud recortou um dia um atlas geogrfico para consignar a sua iconografia pessoal com os pedaos obtidos. Aby Warburg j tinha entendido que qualquer imagem qualquer produo de cultura em geral um encontro de mltiplas migraes. So numerosos os artistas contemporneos que no se conformam apenas com uma paisagem para contar-nos a histria de um pas: so a razo pela qual coexistem, numa mesma superfcie ou lmina de atlas diferentes formas para representar o espao. (HUBERMAN, 2011)4

    Com o filsofo francs Georges Didi-Huberman define-se o conceito de atlas

    aplicado a esta edio, ou seja, uma montagem como uma forma de ver o mundo e

    de percorr-lo segundo pontos de vista heterogneos associados uns aos outros

    pelas possibilidades de leitura de Graciano Neves.

    Trata-se, no sentido editorial, de uma operao intelectual centrada na

    reconfigurao de espao de leitura e na curadoria de imagens que se dispem a

    4 Conferncia de Georges Didi-Huberman realizada no seminrio de antropologia do visual

    da EHESS de Paris (INHA, auditorium,2 rue Vivienne 75002,Paris. Em 2010/2011). Publicado posteriormente como apresentao da exposio Atlas no Museu Reina Sofa (Espanha).

  • 16

    traar um itinerrio para o leitor. Assim, encerra-se a linha da interveno, que

    reside finalmente na categoria representaes e apropriaes, a fim de entender o

    surgimento de um autor na provncia e sua forma de dialogar com o leitor ilustrado

    da poca.

    Certos de que no existe tcnica neutra, nossa opo poltica e esttica em

    combinar o processo de montagem no ambiente eletrnico atende aos anseios de

    inquirir sobre as relaes literrias de Graciano Neves e sua posio frente s

    relaes de produo da poca. Walter Benjamin, com seu olhar criterioso de quem

    observa os rumos da cultura letrada, assim observa sobre as relaes sociais de

    produo:

    Designei com o conceito de tcnica aquele conceito que torna os produtos literrios acessveis a uma anlise imediatamente social, e portanto a uma anlise materialista. Ao mesmo tempo, o conceito de tcnica representa o ponto de partida dialtico para uma superao do contraste infecundo entre forma e contedo. (2012, p.131)

    Nossa tcnica de leitor-editor acena para contribuir no desafio que Chartier

    apresentou-nos como posto ao pesquisador disposto a realizar o cruzamento

    indito de enfoques temporalmente distantes uns dos outros (a crtica textual, a

    histria do livro, a sociologia cultural):

    compreender como as apropriaes concretas e as invenes dos leitores (ou dos espectadores) dependem, em seu conjunto, dos efeitos de sentido para os quais apontam as prprias obras, dos usos e significados impostos pelas formas de sua publicao e circulao e das concorrncias e expectativas que regem a relao que cada comunidade mantm com a cultura escrita.(2009, p. 43)

    Depois de estabelecido o texto e suas notas, as formas e as estratgias de

    leitura, os elementos para montagem encontram-se em anexo, como diagrama

    semntico para a verso digital de Doutrina, dissociando livro de literatura, numa

    abordagem do texto literrio que desvincula relaes temporais e prope o

    georreferenciamento de elementos da edio: imagens, audiovisual, planos como

    estratgia de mediao do texto literrio, todos como elementos levantados para o

    trabalho do programador:

    Mas, todo leitor diante de uma obra a recebe em um momento, uma circunstncia, uma forma especfica e, mesmo quando no tem conscincia disso, o investimento afetivo ou intelectual que ele nela deposita est ligado a este objeto e a esta circunstncia. Vemos portanto que, de um lado, h um processo de desmaterializao que cria uma categoria abstrata de valor e validade transcendentes, e que, de outro, h mltiplas experincias que

  • 17

    so diretamente ligadas situao do leitor e ao objeto no qual o texto lido. (CHARTIER, 1998, p. 70-71)

    A verso eletrnica proposta tem sua arquitetura organizada em trs planos.

    Camadas de texto literrio, notas (e comentrios) e imagens. O caminho

    estruturado para que o leitor contemporneo possa refazer o percurso do editor-

    organizador. Quanto s notas e seus comentrios, so entradas e sadas para o

    texto. Obra aberta, cartografada sem rigor cientfico, mas como uma mostra de

    itinerrio de um circuito de reconhecimento social, realizando uma tentativa de

    dilogo entre textos (imagens) que se apropriaram de uma postura prpria do

    esprito realista ento vigente:

    Ao permitir uma nova organizao dos discursos histricos, baseada na multiplicao das ligaes hipertextuais e na distino entre diferentes nveis de textos (do resumo das concluses publicao dos documentos), o livro eletrnico uma resposta possvel, ou ao menos apresentada como tal, crise da edio nas cincias humanas. (CHARTIER, 2009, p.60)

    A proposio trazer o texto literrio acompanhado de proposta mediadora,

    misto de edio crtica e experimentao literria, que no encontra espao nas

    prateleiras sustentadas pela indstria editorial. preciso valorizar a experincia do

    leitor e do livro como gesto histrico com a experimentao que permite recuperar

    conceitos e materialidade de edies anteriores. Tambm preciso fazer uso do

    potencial do virtual para refletir sobre a questo da tradio literria e do olhar

    histrico:

    Aquilo que est em jogo em todo empreendimento enciclopdico d uma fora particular ao texto eletrnico. Pela primeira vez, no mesmo suporte, o texto, a imagem e o som podem ser conservados e transmitidos. Imediatamente, toda a realidade do mundo sensvel pode ser apreendida atravs de diferentes figuras, de sua descrio, de sua representao ou de sua presena. Existe a uma fora prpria da mdia eletrnica para o projeto enciclopdico. Na mesma proporo, no suporte eletrnico, pode-se encontrar uma traduo da inspirao que caracterizou os grandes projetos enciclopdicos: tornar-se possvel a disponibilidade universal das palavras enunciadas e das coisas representadas.

    Alm disso, nos projetos enciclopdicos, havia a ideia da organizao, da classificao e da ordem. Tambm a, graas aos instrumentos de pesquisa existentes nos textos, nas imagens ou nos sons eletrnicos, estas funes so bem mais seguras que aquelas dos livros de ordem comum da Renascena ou das rvores enciclopdicas como o que abre o Tableau des connaissances na Enciclopdia de Diderot e DAlembert. (CHARTIER, 1998, pp. 134-137)

    De Chartier trazemos as expectativas do livro eletrnico e o desafio de

    constituir as comunidades leitoras. Quais imagens que nos foram selecionadas?

  • 18

    Como foram montadas? Como a tradio literria acionada por Graciano Neves

    pode ser acessada pelo leitor? Quais as possibilidades de apropriao do novo

    suporte? Como o humor e a ironia so descodificados? Guiamos a prtica editorial

    por instrues abertas ao desafio da experimentao, ou seja, prtica pensante na

    perspectiva deleuziana: Pensar sempre interpretar, ou seja, explicar, desenvolver,

    decodificar, traduzir um signo. (citado por Willians, 2013, p.114). Walter Benjamin

    observa que a noo de causa capaz de introduzir no olhar histrico um conforto

    sem par (OLIVEIRA, 2006). Isso implica um radical comprometimento histrico

    lanado em nossa interveno. A contribuio benjaminiana de histria nos d

    conscincia do modo pelo qual se organiza a percepo humana; assim, o trabalho

    historiogrfico leva a literatura e suas foras e formas a se inclui o trabalho do

    editor a constiturem-se tambm como movimento de ruptura, de autocrtica, em

    busca de novos perceptos.

    2.2 ORIENTAES FINAIS (BRIEFING)

    Metadados: O editor deve preparar para lanar seu contedo em um repositrio, biblioteca, acervo. Para isso, preciso pensar cuidadosamente nos

    metadados que sero construdos para garantir acesso ao texto literrio. Assunto,

    rea de interesse, classificao, contribuies crticas, literatura comparada, so

    exemplos de metadados a serem disponibilizados em uma obra que se apresenta

    para edio em formato eletrnico. Os termos-chave definidos para esta edio de

    Doutrina do Engrossamento so: prosa, ensaio, doutrina, stira, ironia, positivismo,

    Repblica Velha, Esprito Santo, Graciano Neves, bajulao, adulao,

    engrossamento, poltica, literatura, sculo XIX.

    Fonte: A escolha da fonte obedece a referncias histricas: para promover uma imerso, recomenda-se Garamond Bold ou Regular no miolo; e Gable

    Antique Condensed em ttulos. A orientao garante boa legibilidade e aspecto

    imersivo de aproximao com a primeira edio. Prope-se transportar o leitor para

    o fim do sculo XIX e incio do sculo XX, numa curadoria de contedos.

    Imagens para montagem no corpo do texto: Foram organizadas quatro lminas, a serem dispostas antes de cada captulo que compe a obra. Na lmina 1,

    antecedendo a Introduo Fundamental, temos 4 imagens que insinuam o turbilho

    histrico que marcava a publicao da obra - conflitos armados, voto de cabresto,

  • 19

    eloquncia estilo belle-poque dos governantes, decadncia do Imprio. J na

    segunda lmina, so trs imagens que expressam tematicamente doses de

    servilismo, a saber: co, que sugere a polissemia de flatter; servos em reverncia a

    seus senhores; bajulador acompanhado de esnobe. Uma terceira lmina traz

    estampas de caricaturas do sculo XIX, extradas de peridicos como o Punch

    vitoriano e o carioca Don Quixote, alm de referncias a cartolas, casacas e barbas

    excntricas. Por fim, uma ltima lmina, com retratos cristalizados de influncias

    literrias explcitas na obra: Teofrasto, Diderot, Molire, La Bruyre e Thackeray.

    Demais imagens que devem compor o texto j foram lanadas no corpo da obra e

    tm suas referncias no anexo deste trabalho.

    Coleo: trabalhos de natureza de divulgao se fortalecem na medida em que facilitam a publicao em srie de novos ttulos. Assim, sugere-se uma coleo

    que edite novos autores que realizaram sua produo num contexto localizado do

    Esprito Santo e apresentam coincidncia terica com alguns dos metadados

    descritos. As futuras edies precisam conter estudo terico que reflita sobre a

    forma da obra sua linguagem e estilo , caracterize o contexto histrico e a

    repercusso com os leitores, eleja foras de influncias e apresente condies para

    estudos comparatistas. Deve-se ainda sugerir pesquisa de imagens para ilustrar o

    suporte e organizar notas com contribuies crticas.

  • 20

    3 ESTUDO INTRODUTRIO

    O meu corao de moo exulta de entusiasmo, por assumir hoje a administrao do Estado, o distinto esprito-santense dr. Graciano Neves. Salve, pois, o ilustre paladino do progresso!

    Deocleciano Coelho.5

    3.1 BREVE NOTCIA SOBRE A VIDA DE GRACIANO NEVES

    Graciano dos Santos Neves (1868 1922). O autor de Doutrina do

    Engrossamento nasceu em So Mateus, no Esprito Santo, em 12 de junho de 1868.

    De famlia abastada e influente no Norte capixaba, Graciano Neves realizou os

    estudos preparatrios na Corte carioca e formou-se mdico em 1889. Trilhando vida

    poltica e literria, recm-formado, retorna provncia e estabelece em 1891, com o

    empresrio Fausto de Oliveira, o jornal Norte do Esprito Santo. Como editor do

    peridico, foi crtico voraz do despotismo estabelecido pelo Marechal Deodoro da

    Fonseca a quem chamava tirano vulgar e atacou duramente o estadista

    quando da dissoluo do Congresso. Membro do Partido Republicano Construtor,

    com a ascenso de Floriano Peixoto, contando ainda 23 anos, obteve rpida

    ascenso poltica quando foi indicado como parte da Junta Governativa do Estado,

    que governou do fim de 1891 a 1892. Mais tarde, em consulta popular, foi eleito

    presidente do Estado e empossado em 23 de maio de 1896. Assumindo em meio a

    grave crise econmica e poltica, realizou vrios cortes oramentrios e interrompeu

    investimentos iniciados por Muniz Freire, seu antecessor e correligionrio. A

    instabilidade em seu grupo poltico levou-o renncia em setembro de 1897.

    Graciano no desistiu da vida pblica e, em 1906, foi eleito deputado federal. Foi

    diretor do Jardim Botnico no ano de 1912 e, neste mesmo ano, assumiu a ctedra

    de botnica na Escola Superior de Agricultura, onde seguiu a carreira de docente at

    a sua morte. Faleceu aos 53 anos, no Rio de Janeiro, em abril 1922.

    5 Publicado em 23 de maio de 1896 no jornal O Estado do Esprito Santo, por ocasio da

    posse de Graciano Neves presidncia da provncia.

  • 21

    Figura 1 Fac-smile do artigo escrito por Graciano em combate ao "generalssimo"

    Deodoro da Fonseca.

  • 22

    3.2 UMA APRESENTAO DE DOUTRINA DO ENGROSSAMENTO

    O incio do sculo XX foi marcado por inmeros conflitos na recm-

    empossada repblica brasileira. As marcas das instabilidades decorridas das

    agitaes polticas que sacudiram os primeiros anos de proclamao da Repblica

    como se via em revoltas como a da Armada, no Rio de Janeiro (1893-94), a

    Federalista, no sul do pas (1893-95), e a Guerra de Canudos (1896-97), na Bahia ,

    associado com a presena de importantes intelectuais na liderana poltica do pas,

    fizeram das letras um importante instrumento de ao poltica no Brasil que se

    apresentava ao novo sculo.

    Em meio ao fervor intelectual dos grandes debates que ocupavam o modo

    de pensar das elites brasileiras, Graciano Neves forjou-se autntico representante

    do perodo realista, contribuindo significativamente como autor da ilustrao

    positivista em vigor. O historiador Ivan Lins6, ao estabelecer Histria do Positivismo

    no Brasil (1967), trata-o como um dos mais brilhantes aderentes do Positivismo no

    Esprito Santo. Sob essa influncia, surge uma produo literria madura, marcada

    por singular talento verbal e por referncias que partem de autores da Antiguidade

    Clssica, herdeiros de uma tradio menipeia-lucinica7 de risos sem censura, e

    chegam stira moralizadora de Thackeray na Inglaterra vitoriana.

    Personalidade histrica na provncia do Esprito Santo, para alm de sua

    contribuio intelectual, Graciano teve intensa participao na cpula poltica do seu

    estado e, satirizando a fundo as prticas governistas da poca, construiu um ensaio

    de pouco mais de 120 mil caracteres sobre a bajulao e seu uso na poltica:

    Doutrina do Engrossamento. Declaradamente um manual de puxa-saquismo, a obra

    foi publicada inicialmente em 1901 pela casa de livros Laemmert, desde o segundo

    reinado a mais importante editora em funcionamento no Brasil. Pelo menos outras

    trs edies em curtas tiragens difundiram o texto em leitura, a saber: 2 edio,

    Flores & Mano, Rio de Janeiro, 1935, com prefcio de Madeira de Freitas; 3 edio,

    Artenova, Rio de Janeiro, 1978, numa edio pouco cuidada, que circulou um bom

    tempo em determinados grupos sociais do Esprito Santo como um souvenir dado

    6 O compndio positivista refora a contribuio literria de Graciano para o perodo:

    Tambm no interessante volume Doutrina do Engrossamento evidente a marca positivista do esprito de Graciano Neves (p.227)

    7 Menipo e Luciano de Samsata desenvolveram na Antiguidade o dilogo satrico, em oposio aos famosos dilogos filosficos.

  • 23

    por empresrios a seus clientes; e a 4 edio, mais recente (1999), num esforo de

    resgate feito pelo Instituto Histrico e Geogrfico do Esprito Santo, que, sem difuso

    planejada, ficou restrita a crculos acadmicos de alcance imediato do IHGES.

    Doutrina do Engrossamento apresenta um contedo estruturado numa

    sofisticada estratgia ficcional. Trata-se de um volume organizado em quatro

    captulos, a saber: 1) Introduo fundamental; 2) Justificao histrica e poltica do

    engrossamento; 3) A tcnica do engrossamento; 4) A arte de engolir a plula.

    Com relao sua orientao, o termo doutrina (do latim, doctrna,ae) quer dizer

    ensino, instruo dada ou recebida; e cabe, ironicamente, ao fim que se presta a

    obra: formar jovens no refinado ofcio do engrossamento. Ironia, alis, elemento

    lingustico e expediente literrio que sustenta a obra em sua forma e contedo.

    Inicialmente publicada sob o pseudnimo do Dr. M. Guedes Jnior, ex-deputado

    federal, o arranjo, em tom de blague no por acaso inicia seus ensinamentos

    com uma dedicatria um tanto irnica Ao Congresso Federal. A cortesia, feita em

    espao parte, de forma laudatria e com a pena da galhofa, j aparece como

    uma oferta de gosto duvidoso, que faria o leitor mais atento desconfiar da

    homenagem: o autor daria uma prova antecipada e flagrante de insinceridade e

    incoerncia, se no colocasse as suas humildes doutrinas sob a inovao de uma

    entidade ilustre e poderosa (p.48).

    O pacto ficcional com o leitor se estabelece por meio de um dilogo dbio,

    permanentemente irnico, em que a voz enunciadora assume a condio de poltico

    terico, responsvel com o progresso e conhecedor das prticas cotidianas de

    adulao, e assume tambm o tom da stira denunciadora dos vcios da Repblica:

    Seduzir o governo em vez de atac-lo o nico meio certo de alcanar as mais apetecveis posies, e a mais aprazvel forma de concorrncia democrtica, que uma vez consagrada pela filosofia da Histria h de extinguir os mais pudibundos escrpulos e inaugurar para a Federao Brasileira um slido regime de Ordem. (p.69)

    Propondo uma reflexo implacvel sobre a histria de seu tempo, Graciano

    Neves encerra sua estratgia literria ao batizar o texto, esclarecendo-nos quanto

    aos limites tericos e prticos do opsculo ora apresentado:

    O indivduo que conhecer solidamente os princpios do Engrossamento poltico est aparelhado para exercitar com superioridade todas as mincias engrossatrias empregveis no exerccio das outras profisses; e, mesmo

  • 24

    quando ele veja malogradas todas as suas aspiraes polticas, nem assim foi um tempo desperdiado o que empregou na espcie engrossatria respectiva, porque as manhas adquiridas servem para triunfar num outro ofcio.

    Por isso s tratamos, nesta obra, do Engrossamento Poltico. (p.49)

    Definido o escopo da obra, dando continuidade compreenso da

    estruturao dos modos didticos da Doutrina, o leitor que ento nos apresenta e

    valida a leitura da obra o pseudo senador Melcio de Seixas. Homem de letras e

    de poltica, conhecedor da necessidade de se estabelecer a ordem numa repblica

    incipiente, no prefcio, o senador exalta executando as mais peritas formas de

    engrossamento as virtudes do deputado escritor, e atesta os argumentos

    defendidos mais frente no desenvolvimento da doutrina:

    tal convico de minhas ideias sobre as vantagens da doutrina engrossatria que, se tivesse a suprema honra de dirigir qualquer dos estados da repblica, por delegao espontnea de meus concidados, no teria a menor dvida em fazer o adotar o importante trabalho na instruo pblica, iluminando o esprito da mocidade das escolas com o faixo brilhante desses princpios vitoriosos. (p.46)

    3.3 LITERATURA E BAJULAO

    Graciano Neves dirigiu o estado do Esprito Santo e a lio alcanada

    parece ter sido refinadamente elaborada ao esprito da mocidade. A Doutrina do

    Engrossamento dispe de um arranjo textual montado com fins pretensiosamente

    didticos, envolvendo o leitor no jogo ficcional que ambiciona realizar uma stira dos

    meios polticos ligados a uma repblica frgil e clientelista.

    Num primeiro contato com a Doutrina, o leitor mais desavisado pode

    compartilhar da compreenso de resenhistas que costumam atribuir ao autor um

    talento desiludido com a coisa pblica aps sua curta passagem na presidncia da

    provncia do Esprito Santo. Entretanto, o que o leitor realmente vai encontrar que

    o gnio criador de Graciano mostrou-se constantemente combatente e atuante. Sua

    contribuio literria aponta, na prtica, para um riso poltico, devidamente engajado

    contra o establishment mantido pelas oligarquias latifundirias do pas que

    descaracterizavam o processo democrtico implantado com a repblica. Prova disso

    so os inmeros artigos em peridicos da poca, em que o autor assume o combate

  • 25

    poltico pela imprensa, denuncia fraudes e corrupes8.

    No caso da Doutrina, vemos ento que riso e ironia preparam a ambientao

    de uma obra marcada por engajamento, numa literatura comprometida com o

    esprito realista vigente. Apresentando-se como voz ativa num momento em que os

    debates parlamentares, o incio da democracia, a liberdade de imprensa criam as

    condies ideais para um grande debate de ideias em que a ironia chamada a

    desempenhar um papel essencial (MINOIS, 2003, p. 482), a posio social do autor

    e a opo de construo pela ironia configura-se como nico arranjo possvel para

    se realizar um verdadeiro combate poltico e para garantir sua circulao crtica no

    decorrer do sculo XX.

    Concluda uma viso geral da obra, questiona-se como sua estratgia e

    estrutura podem interferir no sistema literrio brasileiro finissecular. Quais ganhos

    ter o leitor que empreender o conhecimento da Doutrina do Engrossamento?

    Debruando-se cinicamente sobre o esforo orientador e didtico-terico de

    fundamentar os ensinamentos sobre a bajulao, Graciano encarna o ethos

    positivista austero que influenciou o direito e a poltica brasileira. Seu repertrio

    ecltico afasta-o de rtulos estigmatizantes e d-lhe atributos de um rigor intelectual

    humanista. O crtico Alfredo Bosi, em ensaio sobre ideologia na literatura, observa

    sobre a dificuldade em construir modelos idelogicos para o autor de elaborada

    literatura:

    A qualificao ideolgica de um escritor de fico bate de frente contra dois escolhos epistemolgicos que conviria explorar de perto. O primeiro (que j nas linhas precedentes) reside no carter concreto, portanto denso, da escrita literria: um poema lrico ou um romance em primeira pessoa traz em si um variado espectro de intuies, percepes e projees de sentimentos contrastantes que podem ser interpretados e julgados como expresses desta ou daquela ideologia, desta ou daquela viso de mundo, sem que se consiga fixar, de uma vez por todas, qual a instncia dominante. (...) A adeso e a rejeio ao eths do prprio tempo ou do pretrito se traduzem em imagens que no podem ser transpostas arbitrariamente em conceitos tais como os manipulam as ideologia ou suas contestaes.

    Quanto segunda dificuldade, tem a ver com a inconvenincia de se atribuir uma ideologia coesa (no sentido forte do

    8 Como vimos, Graciano foi editor e redator da Folha do Norte do Esprito Santo e colaborador

    assduo do peridico partidrio O Estado do Esprito Santo. Foi famosa a contenda entre Graciano e Jernimo Monteiro por ocosio da privatizao da ferrovia Leopoldina. Ver XXX

  • 26

    termo) a um escritor considerado na sua individualidade. (p.396)

    A um s tempo, Graciano Neves integra-se conscincia crtica e histrica

    que marcou a produo literria brasileira do final dos oitocentos em funo do seu

    comprometimento literrio, e tambm afasta-se de clichs cientificizantes do

    naturalismo ao optar por escrever sobre a temtica da bajulao. Execrada ou

    defendida como estilo de vida, o fato que a bajulao ocupa lugar temtico de

    destaque na produo literria ocidental. Por conta disso, a trama textual de

    Doutrina do Engrossamento, que aponta como fora temtica a bajulao para

    jovens polticos, orientada para a ironia como figura principal de construo,

    sustenta a atualidade da obra:

    A Autoridade est sempre cercada de uma roda espessa de engrossadores que nunca despregam a vista do objeto que adoram, seno para fiscalizar as genuflexes dos outros fiis e redobrar de zelo devoto em caso de necessidade. (p.113)

    Em tempos de autoajuda como o nosso, vale observar, por exemplo, a

    proliferao e o sucesso de publicaes que propagam pedagogicamente formas de

    conquistar o poder e a consagrao pblica. fcil discernir nessas obras aspectos

    como o clculo meticuloso em busca da notoriedade como uma finalidade em si

    mesma, as dicas de como utilizar as relaes pessoais, de afeto e de amizade,

    como alavanca social, subordinando-as a fins escusos e pouco dignos de nota.

    Nessa toada, no so recentes os textos que remontam pedagogicamente ao

    cinismo como prtica de poder, nos quais fica sugerida a necessria e

    imprescindvel dissimulao/representao de comportamento para aceitao e

    promoo social entre os pares. J na Inglaterra do sculo XIX, dando partida ao

    fenmeno da autoajuda, Samuel Smiles (1812 1904) adaptava suas palestras para

    a educao das classes trabalhadoras em obra intitulada Self-Help (1859) e

    chegava notria quantidade de 20 mil exemplares vendidos logo da sua

    publicao:

    A experincia cotidiana nos mostra que o individualismo enrgico que produz os efeitos mais poderosos sobre as vidas e as aes dos demais, e realmente constitui a melhor educao prtica. (SMILES, 2008)

    Com estilo simples, cercado de provrbios moralizantes e narrativas

    didticas, o escritor escocs traa os objetivos e condutas individuais para o

  • 27

    trabalhador de seu tempo. Sua escrita marcada por uma fora disciplinadora:

    Smiles argumenta longamente em Character (1871) em favor de um comportamento

    digno de nota para alcanar o sucesso pessoal e as posies de autoridade.

    Traando um perfil maniquesta do cotidiano, Smiles explica sobre o vazio de

    homens maus cujas prticas no revelam contedo genuno, no tm nem

    maldade, generosidade nem magnanimidade. Narra ainda sobre os snobs

    expresso que ganhou popularidade com Thackeray (1811-1863), no seu afamado

    Book of Snobs na conduo do poder e seus mtodos inescrupulosos para tirar

    vantagem dos mais fracos e indefesos.

    Graciano Neves utiliza em seu texto a mesma estrutura do estilo que alterna

    lampejos instrucionais com concluses que levam ao leitor uma necessria mudana

    de esprito e de comportamento para ser bem-sucedido entre seus pares. A

    diferena reside no conjunto de repertrios acionados e no tratamento crtico que lhe

    confere a ironia. Doutrina do Engrossamento escrita numa sofisticada trama

    intertextual, que sobrepe textos e contextos ao valer-se de cnones da stira de

    costumes:

    O Neveu de Rameau, este heri to original e to estimvel, cujas confidncias mais ntimas o ilustre Diderot teve a felicidade de receber e publicar, declarava peremptoriamente que as suas leituras favoritas eram Molire, La Bruyre e Theophrasto, no para corrigir-se dos vcios que esses autores censuram, mas para conhecer a aparncia denunciadora de cada um deles e saber modific-la numa atitude virtuosa. (p.95)

    A enumerao de autores no fragmento chave importante para a leitura do

    captulo que Graciano constri em sua Doutrina, dedicado tcnica engrossatria

    propriamente dita. O leitor encontra aqui mais uma estratgia ficcional, isto , a

    pactuao de Graciano Neves como leitor de Diderot. Graciano assume o jogo

    ficcional de Diderot teve a felicidade de receber e publicar para realizar o

    percurso intelectual que ele prprio opera na construo da Doutrina. O Eu, Diderot,

    que didaticamente questiona o Ele, sobrinho do msico Rameau, sobre as questes

    ticas e estticas da vida, definitivamente apropriado pelo texto da Doutrina. O

    rigor tico com que os cnones citados trataram temas como amizade, franqueza9 e

    9 Mais um exemplo da importncia do tema, a parrsia, nos antigos, pode ser reforada

    com as observaes de Ccero em Da amizade: prprio do homem de bem, a quem podemos tambm chamar sbio, manter na amizade estas duas qualidades: evitar fingimentos e simulaes, pois a franqueza mais nobre que a ocultao dos pensamentos, mesmo no dio, e, alm de repelir as acusaes alheias, abster-se de alimentar suspeitas, imaginando sempre ter sido prejudicado por alguma falta do amigo.

  • 28

    bajulao foi radicalmente distorcido, em tom de refinada ironia. Lana-se a inteno

    s avessas de conhecer a aparncia denunciadora de cada um deles [vcios] e

    saber modific-la numa atitude virtuosa. a ironia denunciadora apontando para os

    ganhos reais do leitor desta obra, qual seja o percurso intertextual com uma

    sabedoria da tradio. Confronto bem-humorado em afirmar o que se quer negar:

    De resto, a maioria dos grandes homens da cincia e das artes foram aduladores emritos. Sneca, Tcito, Juvenal, Ovdio, Lucano, Ariosto, Tasso, Cames, Cervantes, Molire, Newton, Cuvier, Bacon, Shakespeare etc., todos estes foram engrossadores de primeira plana.

    O grande Corneille, o nobre criador de altivos caracteres, teve a divina imprudncia de dizer que haviam sido as qualidades de Mazarino que lhe tinham inspirado os seus trgicos heris.

    Cervantes, um gnio da ironia, adulava abjetamente o Conde de Lemos. Molire, o grande irreverente, rojava aos ps de Luiz XIV. Sir Isaac Newton condescendia de vez em quando em descer das suas regies lunticas para bajular a rainha Anna e alguns grandes da Inglaterra, exerccio em que o ilustre matemtico perdia as suas distraes habituais. Shakespeare, to profundo conhecedor do corao humano, chamou a Elizabeth de Inglaterra Vestal do Ocidente. (p.82-83)

    Todo texto da Doutrina revestido por meio de uma refinada ironia para que

    se institua este riso de vieses satricos e de fora literria. Para Linda Hutcheon

    (2000, p. 28), o interpretador aquele que decide se a elocuo irnica (ou no)

    e, ento, qual sentido irnico particular ela pode ter (grifo no original). Esta

    constatao leva a autora a questionar quem, de fato, deve ser considerado o

    ironista, uma vez que a ironia s se realiza quando interpretada, e esse processo

    de interpretao e atribuio de ironia acontece revelia das intenes de seu autor,

    o dito ironista. A ironia s se realiza no processo comunicativo; ela no um

    instrumento retrico esttico a ser utilizado, mas nasce nas relaes entre

    significados e tambm entre pessoas e emisses e, s vezes, entre intenes e

    interpretaes (Hutcheon, 2000, p. 30). Na leitura da Doutrina do Engrossamento em

    sua potencialidade histrica e literria, o leitor, que opera a condio de ironista,

    precisa reconhecer a fora dos cnones para corroborar com a hiptese de que a

    ironia dos clssicos que sustenta o texto, porque na antfrase surge a stira de

    costumes, no confronto daquilo que se afirma com aquilo que se intenciona.

    Voltando aos fenmenos dos tempos de autoajuda, com o intuito de dar

    mostras ainda mais concretas ao leitor contemporneo da Doutrina do

  • 29

    Engrossamento, o exemplo dos textos de Dale Carnegie (1888 - 1955) talvez seja o

    mais promissor do gnero. Foi na dcada de 1930 que surgia o best-seller How to

    Win Friends and Influence People, de Dale Carnegie, anunciando o fenmeno

    editorial que estava por vir. Nesses novos manuais do sculo XX, sem a linguagem

    velada dos industriais ingleses, sinaliza-se abertamente a bajulao como prtica

    social legtima e muito bem cercada de fundamentos:

    Alimentamos os corpos de nossos filhos, amigos e empregados, mas apenas esporadicamente alimentamos sua vaidade. Ns lhe damos um bife com batatas para adquirirem energia, mas no nos preocupamos em dar-lhes palavras de estmulo que ecoaro nas suas memrias como a msica das estrelas matutinas (CARNEGIE, 2003, p. 72).

    Sem que nos aprofundemos, a fim de manter o assunto apenas como pano

    de fundo para nossa argumentao, e, finalmente, afastando-se da possibilidade de

    marcar uma perspectiva moralizante sobre a edio de manuais de autoajuda,

    vlido trazer a contribuio da professora Carla Giani Martelli que, debruando-se

    sobre a relao do tema da autoajuda no mundo organizacional, defende a

    existncia de sistemas de autoajuda, uma produo que - para alm dos livros,

    manuais e cartilhas do conta de textos, prticas e discursos em torno das

    organizaes do trabalho contemporneo:

    Os sistemas de autoajuda no apenas resumem um conjunto de verdades acerca da vida, como ensinam os caminhos e as tcnicas necessrias para se entrar em comunho consigo mesmo, elevar a auto-estima, pensar positivamente, realizar o desejado e alcanar sucesso na vida. (MARTELLI, 2006, p.68)

    Martelli defende o ponto de vista de que os sistemas de auto-ajuda se

    transformaram em fenmenos que tm a dizer sobre um tipo de homem, um modo

    de ver a natureza, a sociedade, um modo de pensar as relaes entre os homens.

    Essas possibilidades de reunir temas diversos em um sistema, sustenta a autora,

    faz confundir as fronteiras e as abordagens temticas (APUD). Outros modos de

    ver e de pensar adensam o repertrio daqueles que leem a bajulao pelas pginas

    de Graciano Neves. Modos que visitam o passado, confrontam-se com a tradio e

    zombam do presente, antecipando o ethos presente em fenmenos de autoajuda.

    Por outro lado, indo alm dos manuais, um bom exemplo das produes editoriais

    contemporneas sobre a bajulao a pesquisa do jornalista americano Richard

  • 30

    Stengel em You're Too Kind: A Brief History of Flattery (2000), traduzido para o

    Brasil como A histria do puxa-saquismo. O livro se configura como uma estratgia

    ensastica que defende, por meio de exemplos literrios e de fatos da histria

    poltica do Ocidente em especial nos EUA, a bajulao pblica como verdadeira

    epidemia em nossa sociedade:

    A bajulao, como sabemos, uma via de mo dupla. Por diversos motivos, a direo mais interessante no a da bajulao dirigida ao presidente, mas a bajulao que o presidente dirige a ns, o sbio e justo e crdulo povo americano. Se o patriotismo, segundo Samuel Johnson, o refgio da canalha, ento a bajulao do povo provavelmente a primeira ttica dessa canalha. (STENGEL, p.238)

    A despeito do rigor acadmico de Stengel, o jornalista conquista o leitor pela

    riqueza de exemplos e ilustraes que apresenta sobre o bajulador e suas prticas,

    desde o cnone at a mdia contempornea, trazendo do nosso imaginrio as

    maiores variaes possveis da figura do adulador. , por exemplo, a partir de

    registros etimolgicos do vocbulo flatter, que o vcio da docilidade do co que

    abana o rabo para o poderoso, citando Topsell e o dicionrio Oxford, aproxima-se

    emblematicamente do comportamento pblico do bajulador. A crtica no diferente

    da imagem j propagada e, ao contrrio, defendida por Dale Carnegie em sua

    doutrina:

    O processo usado para os ces no daria resultado na sua aplicao humana? Por que no usar o alimento ao invs do chicote? Por que no usar o elogio, o estmulo, em lugar da censura, da condenao? Elogiemos mesmo os menores progressos. Isto far com que a pessoa continue melhorando cada vez mais. (CARNEGIE, 2003, p. 251).

    Estas aproximaes apresentadas entre os fenmenos editoriais do

    presente e as possibilidades crticas advindas do contexto histrico de Graciano

    Neves, ao tratar de literatura e bajulao no incio da Repblica no Brasil,

    potencializam a leitura e circulao da Doutrina do Engrossamento como verdadeiro

    instrumento de efetiva ao poltica no Brasil. Como vimos, na antfrase que

    Graciano organiza a stira de costumes, hoje to propagada como prtica social

    legtima. na ironia que transcende o ethos positivista do sculo XIX que o leitor

    ironista depara-se com a radicalizao do tratamento do servilismo prprio das

    relaes hierrquicas e alimenta-se, no de vaidade, mas de sabedoria: Quanto

    mais geral for a docilidade dos governados, tanto mais generosa e menos desptica

    ser a atitude dos governantes. (p.74)

  • 31

    Finalmente, neste confronto entre afirmao e inteno, acessamos a uma

    literatura que tratou com rigor seu presente e, de certa forma, antecipou uma pardia

    dos manuais de autoajuda, to divulgados nas ltimas dcadas. Portanto, no nvel

    pragmtico, para que a descodificao da Doutrina do Engrossamento seja

    potencializada como esta pardia, vale-nos retomar as observaes de Linda

    Hutcheon, agora sobre pardia e ironia: A identidade estrutural do texto como

    pardia depende, portanto, da coincidncia, ao nvel da estratgia, da

    descodificao (reconhecimento e interpretao) e da codificao. (HUTCHEON,

    2000, p. 50-51). Coincidncias parte, Graciano Neves contribuiu com uma obra

    que pode ter sua leitura atualizada ou contextualizada, seja no passado a partir da

    sobreposio de contextos e acionamento da tradio, seja no presente, como gesto

    de leitura crtica para ontem e hoje. Ganha o leitor, ganha a literatura brasileira com

    a contribuio generosa de Graciano.

  • 32

    Figura 2 Resenha de Gustavo Barroso, publicada na Revista Fon-Fon, por ocasio do

    lanamento da segunda edio de Doutrina do Engrossamento (1935)

  • 33

    3.4 LINGUAGEM E ESTILO DE GRACIANO NEVES

    Todos os longos esforos humanos, as lcidas investigaes da cincia, as divinas elaboraes da arte, os pacientes processos da indstria, os sublimes martrios da religio e as fervorosas lutas da poltica, durante a vasta e dolorida experincia de sculos inumerveis concluram por colocar definitivamente nas mos da Burguesia financeira de hoje o cetro da autoridade social. (p.62)

    O captulo de abertura de Doutrina do Engrossamento, Introduo

    Fundamental, inicia-se com uma marca estilstica muito peculiar. Graciano Neves

    escreve a leitores sensveis ao empirismo das cincias naturais de seu tempo. Para

    isso, criterioso no seu mtodo. O sonho positivista de um estado governado por

    homens da cincia parece levar prosa um tom muito prximo do leitor ilustrado do

    seu tempo. A Introduo Fundamental, que chega a assumir a dimenso de uma

    narrativa cosmognica ao traar as razes histricas que relacionam o Estado ao

    capital e a ordem ao progresso civilizatrio, na qual a preocupao sempre a

    origem com vieses cientfico-positivistas, no significa necessariamente total coeso

    a um dado momento e sua ideologia, mas principalmente significa as condies de

    possibilidades (CHARTIER) da Doutrina de atacar as prticas clientelistas que

    encerram um sculo e oferecem-se a outro.

    Com relao influncia da doutrina de Augusto Comte, Madeira de Freitas,

    ao prefaciar a edio de 1935, aponta para as contribuies tericas desenvolvidas

    no ensaio da Doutrina: Filho do pai de Augusto Comte com a me de Carlos Marx,

    ele no chegou a definir a prpria genealogia filosfica, apendorando-se todavia

    mais para o lado paterno (NEVES, 1935, p.8). Lembrando-se do jogo ficcional em

    que todo o texto sustentado pela ironia, o emprico raciocnio do enunciador

    caminha para a universalidade de constataes acerca das relaes entre os

    governos e o capital, obedecendo a um elaborado exerccio argumentativo com

    idas e vindas no decorrer da histria que o leva seguinte concluso:

    De fato, j que a eleio e a revoluo tm demonstrado to limitada eficcia, o indivduo ambicioso e hbil, em vez de procurar depor ou derrotar o governo, deve preferir o programa mais simples, mais rpido e mais proveitoso de pr-se no governo. (p.66)

  • 34

    O historiador da literatura Afonso Cludio, em verbete que destina ao autor,

    chega a criar uma celeuma intelectual advinda das possveis contradies que

    encontra na argumentao da Introduo da Doutrina. Por exemplo, ao aludir

    sobre os mritos cientficos abordados por Neves, Afonso Cludio ataca a

    inconsistncia presente ao tratar da influncia das reservas alimentares na

    determinao do desenvolvimento das sociedades humanas ou ainda da ausncia

    de os grandes afetos do corao e as altas elaboraes da inteligncia entre os

    primitivos brbaros. Curioso que o historiador da literatura coloca-se em dilogo

    com Graciano Neves com o inslito de argumentos que se preocupam em

    desconstruir o arrazoado que sustenta a comicidade do inevitvel bajulador,

    atacando a estrutura indutiva do captulo, fazendo uso de expedientes que

    despertam mais desconfiana que uma nova possibilidade de leitura:

    O co que o primeiro possuidor transfere a segundo e por sucesso idntica passa a terceiro, quarto e mais senhores, no raro os abandona e volta a servio do primitivo dono, sem embargo da abundncia de alimento que os outros lhe proporcionem e do geral tratamento dispensado aos seres de sua espcie: qual a causa?

    Sem dvida que a permanncia de uma impresso profunda, fora-o a ser grato de preferncia ao primeiro [...] (CLUDIO, 2007, p. 254)

    Ou seja: quase uma anedota frente ao flego de Graciano Neves na

    estruturao de mtodos influenciados por historiadores deterministas, filsofos

    evolucionistas e pensadores materialistas. As notas lanadas por ns no texto

    original do mostra dos cnones empregados por Graciano para dispor suas

    hipteses de leituras sobre a bajulao e seus vieses histricos de ligao ao capital

    e s fragilidades decorridas do processo democrtico republicano:

    A Histria da Humanidade no mais do que uma Histria do Capital: e toda ordem poltica tem repousado exclusivamente sobre a instituio da Propriedade. [](p.58)

    Os governos s se consolidam quando representam os interessados das classes mais fortes; e a fora s se faz respeitar quando funciona sob o prestgio das classes conservadoras mais bem dotadas para alcanar a vitria na concorrncia social. (p.59)

    O embate de ideias protagonizado por Afonso Cludio marca da relevncia

  • 35

    da leitura provocada por Graciano entre os intelectuais da provncia, sobretudo

    aqueles de vinculao positivista. Arranjo possvel para o fortalecimento da obra

    entre seus pares, a vinculao ao pensamento de Augusto Comte e o uso de uma

    linguagem apuradamente cientfica so entradas certas para o leitor atualizado com

    as doutrinas republicanas que coordenaram a cena poltica no Brasil: as

    autoridades contemporneas no so mais do que simples delegaes da oligarquia

    financeira que dispem do Capital (p.59). Inevitavelmente, Graciano apresenta o

    jogo poltico permeado de fatalismo, em que as relaes sociais para manuteno

    da ordem e alcance do poder j se apresentam como leis universais. A sequncia de

    exemplos enumerados na Doutrina serve para atestar e ilustrar.

    Que os patriotas, com edificantes exemplos prticos, incutam no esprito pblico as vantagens materiais e a superioridade social do Engrossamento, e o Brasil caminhar com passo rpido para o seu destino de grandeza poltica e econmica, podendo em breve prazo ser citado como um modelo invejvel de tranquilidade e disciplina. (p.69)

    Esta linguagem acurada de Graciano trouxe consigo a ateno de outros

    intelectuais da provncia. o caso da aula magna de 1959, proferida pelo professor

    e historiador Nelson Abel de Almeida na antiga Faculdade de Filosofia, Cincias e

    Letras do ES. Na conferncia, publicada em 1960 na Revista de Histria da

    Universidade de So Paulo, o professor Nelson realiza recortes da obra de Graciano

    de modo a construir uma leitura instrutiva e, at certo ponto, moralizante, das elites

    intelectuais do seu tempo. O historiador apresenta a viso inexorvel que Graciano

    mantm em relao nossa frgil repblica e as justificativas histricas para o

    aviltamento das relaes de poder, citando:

    Substituindo uma pobre monarquia que nunca passou de uma curiosidade americana, que s pode viver de escravatura, mas que soube nobremente resgatar as suas faltas, suicidando-se pela causa da abolio, a Repblica s veio encontrar a pobreza e agrav-la com perturbaes democrticas. (p.64)

    Almeida palestra com a autoridade intelectual de Graciano Neves. Elogia-lhe

    o rigor com que comps reflexes sobre os limites de nosso sistema poltico e seus

    vcios, desvelando os mecanismos hegemnicos das classes dominantes de ento,

    pinando da obra recomendaes mocidade, das quais o historiador mesmo chega

  • 36

    s concluses:

    De esprito observador, empolgado pela cincia, pressentindo o papel de relevo que nao brasileira est reservado na comunidade universal, sentiu Graciano Neves o despreparo de todo um povo, sem uma elite intelectual capaz de realizar e projetar os destinos da Ptria.

    [...]

    Como todos se enganaram; como ainda muitos se enganam A Doutrina do Engrossamento contm uma filosofia profunda, contm uma profunda sabedoria. (ALMEIDA, 1960, p. 318)

    3.5 O RISO GRACIANO

    A literatura de Graciano Neves particulariza-se com a tomada de posio

    com que trata o seu momento histrico. Mais do que irnico, Graciano arranja seu

    estilo e organiza sua obra numa cuidadosa pesquisa sobre o riso e suas

    representaes polticas. Mas do que devemos rir na Doutrina do Engrossamento?

    O tipo engrossador verte-nos de riso. Um riso poltico e doutrinrio. O humor ento

    resultado da fundamentao desse tipo engrossador de espectro histrico e

    fundamentao cientfica e da nossa indignao como leitor que se submete s

    verdades comprovadas.

    Qualquer migalha de venerao bastante para cativ-los e dar- lhes a iluso do prestgio que no tm. Ora, quem dispe de meios to baratos para influir sobre o governo, ganhando-lhe prontamente as simpatias, e vai tentar baldados expedientes de oposio, porque no tem o mais rudimentar preparo sociolgico, nem a menor compreenso das necessidades polticas da atualidade.

    Quem sabe engrossar governa. (p.76)

    A autoridade enfraquecida em sua legitimidade naturalmente vtima

    histrica de bajuladores, em sua verso aqui atualizada como um tipo de nosso

    tempo, o engrossador. Inicialmente, realizado na obra um esforo crtico para a

    constatao natural e universal da bajulao como prtica poltica, decorrente da

    impossibilidade de um regime democrtico. Feito isso, segue-se na construo

    histrica e presente do engrossador. Graciano consegue manter no decorrer da

    prosa o ritmo em torno dos escritos de pretenses didticas. Sempre direcionando a

    Doutrina mocidade, para cuja instruo este livro expressamente preparado;

  • 37

    reforando uma incurso terica que acena para a riqueza de referncias

    intertextuais combinadas na obra. A erudio do autor marca a constituio de uma

    stira de costumes, tecida ironicamente numa sequncia sem fim de exemplos

    histricos, cientficos e, principalmente, literrios que atestam o engrossamento

    como forma evoluda e moderna do servilismo, e o engrossador, o tipo a ser

    estudado e compreendido na Doutrina. O texto insurge-se contra organizaes,

    hbitos e concepes republicanas:

    (...) uma Repblica democrtica tem tanta necessidade de bobos quanto uma monarquia absoluta, porque atrs da democracia, fachada de liberdade, h um Estado moderno, poder desptico, dolo sem rosto, Leviat sem cabea, annimo e onipresente. (MINOIS, p.483)10

    O carter de nosso engrossador o que nos leva ao riso: cinismo,

    dissimulao e servilismo bem caracterizados servem ao leitor o tipo cmico de uma

    stira de bom quilate que, salpicada de fino senso de humor, busca virtudes nas

    prticas histricas de ser um engrossador. O filsofo do riso, Henri Bergson, ao

    argumentar sobre a comicidade do carter, explica-nos o sentido do cmico:

    Em certo sentido, poder-se-ia dizer que todo carter cmico, desde de que se entenda por carter o que h de j feito em nossa pessoa, e que est em ns em estado de mecanismo montado, capaz de funcionar automaticamente. Ser aquilo pelo que nos repetimos. E ser tambm, por conseguinte, aquilo pelo que outros nos podero imitar. O personagem cmico um tipo. (BERGSON, p.78)

    O personagem cmico o prprio engrossador, que parece ter sido extrado

    diretamente de uma das comdias de Molire11:

    E todavia, mesmo nesse caso incaracterstico de azeite poltico, a arte do Engrossamento revela inapreciveis vantagens prticas: - se, por exemplo (hiptese inteiramente plausvel), o cidado Fulano mostra-se refratrio ao pagamento de certa conta que deve no armazm dos Srs. Beltrano e Cia., estes senhores, to amigos da cobrana quanto respeitadores de tudo o que cheira a influncia poltica, so bem capazes de mostrar uma excepcional indulgncia para com o remisso devedor, quando souberem que ele ntimo de S. Exa., a Autoridade. (p.85)

    O prosasmo para ilustrar as mais simples das benesses daquele que se

    10 George Minois, Histria do Riso e do Escrnio. Trata-se de importante estudo sobre as

    aparies histricas do riso. Trouxemos aqui suas contribuies sobre o riso no sculo XIX. 11 No captulo anterior, houve referncia a Misantropo. Aqui, a aluso a O burgus fidalgo

    parece concretizar-se na imagem do insolente Dorante, que arranca favores do pretensioso Sr. Jourdain.

  • 38

    torna, por exemplo, um engrossador menos pretensioso, ganha a vitalidade do

    dramaturgo francs na medida em que a representao que expe os vcios incita

    os ares de uma comdia em seu sentido clssico: o sarcasmo, o senso de humor e

    o detalhamento dos caracteres prprios do bajulador predominam na construo das

    passagens que ilustram a personalidade do engrossador. Nesse sentido escritor

    atentou-se para que importantes leituras da tradio clssica estivessem

    cuidadosamente selecionadas para essa feita. Outro exemplo da imagem dos

    benefcios auferidos naturalmente aos engrossadores j possui sua defesa na

    epgrafe do captulo dedicado tcnica engrossatria, quando da referncia fbula

    de La Fontaine12, retirada de episdio em que o poeta Simnides, aps ser

    trapaceado por seu mecenas, tem sua vida preservada em funo dos louvores

    dedicados aos deuses.

    Como num grande teatro, a tcnica do engrossador apresentada, primeiro,

    como meio para captar a vaidade e, segundo, como encenao, ou seja,

    representar, executar a mmica:

    Apanhados os fracos da Autoridade a seduzir, o artista passa a ensaiar com prudncia os seus processos, ilustrando-os com uma mmica eloquente nos casos de Engrossamento direto e tendo o mximo cuidado de escolher as ocasies favorveis. (p.101)

    So dramatizaes em que o cinismo e a dissimulao mostram-se

    ferramentas do cotidiano, prticas do bem-viver, caminhos para o sucesso e a

    estabilidade. Difcil conter o riso neste verdadeiro passo a passo em busca dos

    mimos do poder. O vale-tudo em busca da simpatia da autoridade chega, inclusive,

    a questes "deontolgicas". Para o ofcio do bajulador, a aventura amorosa

    registrada na histria do Imperador Alexandre com o efebo Antnoos seria a

    metonmia dos limites desta prtica?

    A prtica do Engrossamento, no h neg-lo, cheia de dificuldades e de situaes quase insolveis. Ser por exemplo de bom efeito prestar a S. Exa. os servios que o belo Antnoos dispensava ao Imperador Adriano? Ou ser melhor cumular a Autoridade com os favores que Csar costumava receber de alguns engrossadores intrpidos? (p.105)

    Se a intimidade com a autoridade capaz de conservar a linha diplomtica

    que tudo justifica quando bem sustentada, depois de conhecida e praticada com 12 Curvo de Semedo (1766-1838) traduziu "Simnides protegido pelos deuses", de La

    Fontaine: (...) Dos cus a Poesia prole;/ Ela aos cus tece o louvor;/ Aquele que a menoscaba/ Ofende o seu criador.

  • 39

    muito esforo, a tcnica do engrossamento, cabe o aviso do autor ao engrossador

    para que no se esquea da regra fundamental, precisa de seu arremate final:

    preciso provocar constantemente a munificncia da Autoridade. Tantos mimos,

    caprichos, subservincias e bajulao s se configuram como engrossamento se

    estiverem realmente a servio da conquista da generosidade da autoridade

    engrossada. A esta altura, o ritmo do trecho que se l j se esvai. As gargalhadas do

    leitor que atestavam o espetculo do ridculo, agora silenciadas, reforam o sentido

    das peripcias apresentadas, a conquista das ambies polticas sempre to

    combatidas pelos sbios da Antiguidade. Este o amargor contemporneo de

    prticas sociais movidas por interesses escusos. Retomemos Bergson em sua

    acurada reflexo sobre o riso:

    O riso nasce assim como essa espuma. Ele assinala, no exterior da vida social, as revoltas da superfcie. Ele desenha instantaneamente a forma movente desses abalos. tambm uma espuma salgada. Como a espuma salgada, ele crepita. a alegria. O filsofo que a toma nas mos para sentir-lhe o gosto h de encontrar por vezes, numa pitada de matria, certa dose de amargor. (BERGSON, p.101)

    ***

    A escolha do escritor Thackeray para ilustrar o ltimo captulo da Doutrina,

    A arte de engolir a plula, esclarece um conjunto de opes literrias realizadas por

    Graciano Neves. Vimos que o autor percorreu o discurso filosfico-positivista e partiu

    de mtodos cientficos para, ironicamente, fundamentar sua Doutrina. Em seguida,

    fez uso de expedientes teatrais e satricos, marcando-se como exemplar leitor de

    Diderot e Molire. Conhecedor de uma tradio literria, Graciano imbricou

    referncias para saltar entre as possibilidades do teatral, cmico, e alcanar a

    caricatura como gesto final moralizador:

    preciso dar vivas a ponto de enrouquecer, soltar foguetes com risco de queimar os dedos, carregar lanternas venezianas nas marches aux flambeaux, acompanhar S. Exa. em excurses longnquas ou em tediosas visitas, fazer sonolentos quartos nas molstias oficiais, carregar defuntos etc., etc., um horror de pequenos sacrifcios que se vo adicionando surdamente at perfazer uma soma espantosa de aborrecimento. (p.111)

    Thackeray publicou seus ensaios satricos sobre os esnobes no longevo

    Punch, peridico satrico britnico, e executou neles uma releitura dos Caracteres,

    de Teofrasto. O mesmo expediente fizera La Bruyre no sculo XVII, inspirando uma

    soma incontvel de autores franceses. Em comum com Graciano Neves, estes

  • 40

    cnones conservam as valiosas contribuies de uma stira moralizadora.

    Apresentam a inteno de corrigir, ensinar, utilizar os tipos para denncia de nossos

    graves vcios:

    H indivduos de mrito real, de grande valor profissional, que estremecem de horror, simples suspeita de que possam passar publicamente por engrossadores. Mas, isso so verdadeiras pieguices que passam com o tempo, com a prtica do ofcio e com uma longa experincia dos seus efeitos.

    Em todas as artes o mais acertado critrio para conhecer do mrito de um processo so os seus resultados reais. (p.112)

    Partindo de um trecho inicial do Livro dos Esnobes (1848), em que o

    narrador de Thackeray mostra o benefcio alcanado aps engolir custosa plula com

    a brilhante iluminao do cinismo, Graciano faz uso de uma preciso devastadora

    para caracterizar a vileza da subservincia a ser praticada pelo engrossador. So

    detalhes implacveis que acionam o riso do leitor como um instrumento valioso de

    crtica social:

    Tinham presenciado esse fenmeno barolgico dois graves magistrados que, h muito empenhados num irritante steeple-chase engrossatrio, porfiavam na conquista da simpatia de S. Exa. Mal tinha pousado o leno no cho e os nossos jurisconsultos, com uma incomparvel preciso de movimentos automticos, que podia fazer honra ao soldado mais bem instrudo, manobraram ao mesmo tempo erguer a cambraia de S. Exa. fcil de adivinhar o desastre que sucedeu: - chocaram-se cavamente os dois crnios solcitos e jurdicos, com profundas contuses de parte a parte.

    Um deles ressentiu-se to fortemente do abalo, que da por diante no pde lavrar uma deciso que prestasse. (p.109)

    George Minois aponta uma manifesta deriva para o nonsense na obra de

    Thackeray:

    A histria acrescenta seu prprio toque de ironia, j que, no mesmo ano, Marx publica o Manifesto Comunista. O choque entre o esnobe e o proletrio sugere que o humor ingls se afasta das realidades sociais para se tornar um jogo de esprito, uma fantasia intelectual um pouco auto-suficiente e v. (MINOIS, p. 495)

    A histria tambm poderia ser irnica com Graciano, se no lhe

    guardssemos que foi com riso e tambm com rigor positivista, por vezes

    encharcado no corrosivo da ironia na defesa de estratgias de consagrao, que

    Graciano deu lume o panteo de reflexes presentes na bem-humorada e bem-

    sucedida estratgia de engrossamento poltico. Sua Doutrina so incurses que

    abrem espaos fundamentais para uma valorizao da experincia do leitor e o seu

  • 41

    gesto histrico de derriso das instituies polticas de nossa repblica. Tambm

    marcaram a histria da publicao da Doutrina inmeras convulses populares,

    conflitos armados e a tirania violenta dos coronis latifundirios que dominavam a

    cena poltica. Mas, autor humanista e herdeiro de uma tradio que construiu tipos

    universais, Graciano Neves teve na sua pena o contraponto ao establishment

    vigente, atacando-o em sua essncia. Doutrina do Engrossamento leitura que

    precisa ser divulgada para atestar uma crtica sem localidade, que atravessa os

    tempos, um riso revolucionrio e promissor. Obra que se pode ler luz do incio da

    repblica brasileira e nos dias de hoje. fonte de trabalho literrio zeloso e erudito,

    capaz de aproximar o ento jovem escritor do cnone moderno.

    3.6 NOTA DO EDITOR-ORGANIZADOR

    A presente edio de Doutrina do Engrossamento partiu do texto

    estabelecido postumamente pela Flores & Mano, Rio de Janeiro, 1935, com prefcio

    de Madeira de Freitas (que lanamos como anexo a esta publicao), fundamentada

    na primeira edio, de 1901, e em cotejo com a terceira edio, Artenova, Rio de

    Janeiro, 1978. Aqui, a ortografia e a pontuao foram atualizadas. Os erros

    tipogrficos foram corrigidos e, quando necessrio, mencionado nas notas, que se

    encontram no rodap da pgina, dividas por sees ou captulos do ensaio. Para se

    diferenciar de algumas poucas notas do autor em seus originais, adotamos o itlico

    em caixa alta para as de Graciano Neves. Os crditos das imagens esto descritos

    na tabela que compe o apndice deste trabalho.

  • 42

    4 A DOUTRINA DO ENGROSSAMENTO (Pelo Dr. M. Guedes Jnior, ex-deputado federal).

    Figura 3 - Frontispcio da primeira edio, 1901, sem a identificao de Graciano

    Neves como autor.

  • 43

    4.1 PREFCIO (do Exmo. Sr. Senador Federal, Melcio de Seixas)

    Estas linhas no espelham a banalidade comum da recomendao ao

    simptico leitor de um trabalho didtico qualquer.

    Escopo mais alevantado impe minha velha experincia de homem pblico

    irresistvel coao de estampar, em palavras breves, a grata emoo de meu

    esprito, ao meditar sobre essa obra que condensa o sentimento vitorioso da

    sociedade moderna.

    A Doutrina do Engrossamento no simplesmente um manancial