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13 NOTAS SOBRE A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NO DIREITO CIVIL E NO DIREITO DO CONSUMIDOR BRUNO MIRAGEM * Sumário: 1 – Introdução; 2 – Desconsideração da personalidade jurídica no direito civil; 3 – Desconsideração da personalidade jurídica no CDC; 3.1 Grupos societários e sociedades controladas; 3.2 Sociedades consorciadas; 3.3 Sociedades coligadas; 3.4 A cláusula geral do artigo 28, § 5º, do CDC; 4 – Considerações finais; 5 – Bibliografia. 1 I NTRODUÇÃO A razão do surgimento e da existência, nos contornos atuais, da pessoa jurídica é, além da constituição de uma formação orgânica para realização de uma atividade, a separação entre a pessoa dos que a constituem e sua própria personalidade. O princípio da separação da pessoa jurídica da pessoa de seus sócios ou constituintes (societas distat a singuli) comporta dois aspectos: a separação subjetiva da pessoa jurídica, pela qual sua personalidade não se confunde com a de seus sócios, e a separação objetiva, segundo a qual não se confundem o patrimônio da pessoa jurídica e o de seus sócios. Estas características, ao tempo em que auxiliavam e mesmo estimulavam o desenvolvimento da atividade econômica, uma vez que limitavam os riscos de quem se dispunha a empreender e para tanto constituía uma pessoa jurídica, por outro lado deram ensejo a diversas espécies de abusos, ou seja, de mau uso ou irregularidades realizadas pelos sócios e administradores. * Doutor e Mestre em Direito pela UFRGS. Especialista em Direito Civil e em Direito Internacional pela UFRGS. Professor de Direito Civil da Escola Superior do Ministério Público do RS, da Escola Superior da Magistratura do RS e do UNIRITTER. Advogado em Porto Alegre.

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NOTAS SOBRE A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NO DIREITO

CIVIL E NO DIREITO DO CONSUMIDOR BRUNO MIRAGEM*

Sumário: 1 – Introdução; 2 – Desconsideração da personalidade jurídica no direito civil; 3 – Desconsideração da personalidade jurídica no CDC; 3.1 Grupos societários e sociedades controladas; 3.2 Sociedades consorciadas; 3.3 Sociedades coligadas; 3.4 A cláusula geral do artigo 28, § 5º, do CDC; 4 – Considerações finais; 5 – Bibliografia.

1 – INTRODUÇÃO

A razão do surgimento e da existência, nos contornos atuais, da pessoa jurídica é, além da constituição de uma formação orgânica para realização de uma atividade, a separação entre a pessoa dos que a constituem e sua própria personalidade. O princípio da separação da pessoa jurídica da pessoa de seus sócios ou constituintes (societas distat a singuli) comporta dois aspectos: a separação subjetiva da pessoa jurídica, pela qual sua personalidade não se confunde com a de seus sócios, e a separação objetiva, segundo a qual não se confundem o patrimônio da pessoa jurídica e o de seus sócios. Estas características, ao tempo em que auxiliavam e mesmo estimulavam o desenvolvimento da atividade econômica, uma vez que limitavam os riscos de quem se dispunha a empreender e para tanto constituía uma pessoa jurídica, por outro lado deram ensejo a diversas espécies de abusos, ou seja, de mau uso ou irregularidades realizadas pelos sócios e administradores.

* Doutor e Mestre em Direito pela UFRGS. Especialista em Direito Civil e em Direito Internacional

pela UFRGS. Professor de Direito Civil da Escola Superior do Ministério Público do RS, da Escola Superior da Magistratura do RS e do UNIRITTER. Advogado em Porto Alegre.

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Diante desta situação mediante desenvolvimento da jurisprudência norte-americana por intermédio da via especial da equity1, e sistematizada no direito alemão por ROLF SERICK, em tese na qual se passa a admitir a hipótese de responsabilização dos sócios e administradores pelas obrigações assumidas pela sociedade. Afastando, portanto, a limitação porventura existente em seus atos constitutivos, quando houver abuso ou fraude no exercício da atividade da pessoa jurídica2. É a origem da disregard of legal entity, ou simplesmente teoria da desconsideração da personalidade jurídica.

No direito brasileiro, o artigo de RUBENS REQUIÃO, de 19693, introduz a teoria aos debates jurídicos, sendo logo admitida na jurisprudência com vistas à solução para permitir a responsabilização dos sócios de pessoas jurídicas que tenham agido de má-fé em prejuízo da própria sociedade ou de terceiros. Passou então a merecer larga acolhida em nosso direito, sem ter sido, entretanto, positivada no direito privado durante pelo menos duas décadas. Desenvolveram-se, contudo, soluções em outras disciplinas jurídicas, que, de certo modo, visavam a alcançar os efeitos da disregard doctrine, com a responsabilização dos sócios e administradores em relação a certas espécies de obrigação. Será o caso do previsto no art. 2º, § 2º, da Consolidação das Leis do Trabalho, nos artigos 134, caput e inciso VII, e 135, inciso III, do Código Tributário Nacional, assim como no artigo 116 da Lei das Sociedades Anônimas, Lei nº 6.404/76, inclusive no tocante à liquidação extrajudicial de instituições financeiras4.

1 DOBSON, Juan M. El abuso de la personalidad jurídica em el derecho privado. 2.ed. Buenos Aires:

DePalma, 1991, p.134 et seq; AMARO, Luciano. Desconsideração da pessoa jurídica no Código de Defesa do Consumidor. Revista AJURIS, Porto Alegre, n.58, p.69-84; MIRAGEM, Bruno. Direito do consumidor. São Paulo: RT, 2008, p.333 et seq.

2 Na tradução italiana: SERICK, Rolf. Forma e realtà della persona giuridica. Milão: Giuffrè, 1966. De grande importância, igualmente, foi o estudo, no direito italiano, de: VERRUCOLI, Piero. Il superamento de la personalità giuridica della società di capitali nella “Common Law” e nella “Civil Law”. Milano: Giuffrè, 1964.

3 REQUIÃO, Rubens. Abuso de direito e fraude através da personalidade jurídica (disregard doctrine). Revista dos Tribunais, v. 410, p.12, 1969.

4 Direito Processual Civil e Comercial. Desconsideração da Personalidade Jurídica de Instituição Financeira Sujeita à Liquidação Extrajudicial nos Autos de Sua Falência. Possibilidade. A Constrição dos Bens do Administrador é Possível Quando Este Se Beneficia do Abuso da Personalidade Jurídica. A desconsideração não é regra de responsabilidade civil, não depende de prova da culpa, deve ser reconhecida nos autos da execução, individual ou coletiva, e, por fim, atinge aqueles indivíduos que foram efetivamente beneficiados com o abuso da personalidade jurídica, sejam eles sócios ou meramente administradores. O administrador, mesmo não sendo sócio da instituição financeira liquidada e falida, responde pelos eventos que tiver praticado ou omissões em que houver incorrido, nos termos do art. 39 da Lei 6.024/74, e, solidariamente, pelas obrigações assumidas pela instituição financeira durante sua gestão até que estas se cumpram, conforme o art. 40 da Lei

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A previsão normativa da desconsideração da personalidade jurídica só foi realizada, em direito privado, pelo CDC, em 1990, que em seu artigo 28 determinou sua possibilidade, em relação ampla e diversificada de hipóteses, quando em benefício do consumidor. Mais recentemente, o artigo 50 do Código Civil de 2002 também previu expressamente a hipótese de desconsideração da personalidade jurídica, contudo de modo mais restrito, e afeto às origens da recepção da doutrina no Brasil. Estas normas, assim, não coincidem em seus pressupostos e efeitos, razão pela qual resulta de interesse o exame comparativo entre ambas as disposições.

2 – DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NO DIREITO CIVIL

Na origem da desconsideração da personalidade jurídica, anterior mesmo à existência como tal do direito do consumidor, a possibilidade de responsabilização direta dos sócios e administradores da sociedade quando houver, de acordo com a jurisprudência brasileira, confusão patrimonial ou desvio de finalidade. Neste sentido, refere o artigo 50 do Código Civil de 2002: “Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica”.

Segue a desconsideração da personalidade jurídica, no regime do direito civil, o entendimento da teoria quando de sua recepção no Brasil, exigindo-se, para que tenha lugar, a limitação imposta pela pessoa jurídica, que tenha havido por parte dos sócios ou administradores confusão patrimonial ou desvio de finalidade. Embora a norma não explicite, é majoritário o entendimento de que tais situações abrangem a motivação

6.024/74. A responsabilidade dos administradores, nestas hipóteses, é subjetiva, com base em culpa ou culpa presumida, conforme os precedentes desta Corte, dependendo de ação própria para ser apurada. A responsabilidade do administrador sob a Lei 6.024/74 não se confunde com a desconsideração da personalidade jurídica. A desconsideração exige benefício daquele que será chamado a responder. A responsabilidade, ao contrário, não exige este benefício, mas culpa. Desta forma, o administrador que tenha contribuído culposamente, de forma ilícita, para lesar a coletividade de credores de uma instituição financeira, sem auferir benefício pessoal, sujeita-se à ação do art. 46 Lei 6.024/74, mas não pode ser atingido propriamente pela desconsideração da personalidade jurídica. Recurso Especial provido” (REsp 1036398/RS, Relª Min. Nancy Andrighi, 3ª Turma, j. 16.12.2008, DJe 03.02.2009).

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geralmente dolosa dos beneficiários. Daí por que se vai exigir como regra para o deferimento da desconsideração a existência de má-fé através de fraude ou atos abusivos5 de parte dos sócios ou administradores.

A doutrina mais recente, contudo, vem sustentando a necessidade de certa objetivação das hipóteses que autorizam a desconsideração em direito comum, sustentando a necessidade apenas da realização material do resultado concreto da confusão patrimonial ou desvio de finalidade, sem a necessidade de demonstração cabal da atuação dolosa dos sócios e administradores6. Pode surgir, assim, como mera eficácia de lei, sem vinculação necessária com abuso ou fraude7. Entretanto, permanece sustentada por boa parte da doutrina em direito civil a adoção da teoria subjetiva da desconsideração, ou seja, da exigência da culpa ou dolo como pressuposto da desconsideração da personalidade jurídica, sobretudo em face do caráter excepcional de que se reveste esta providência8. Da mesma forma, em atenção à necessária efetividade da medida, admite-se o deferimento da desconsideração no curso da própria execução9, em especial quando caracterizada a fraude10, mediante requerimento do credor, não

5 TEPEDINO, Gustavo; BARBOZA, Heloísa Helena; BODIN DE MORAES, Maria Celina. Código Civil

interpretado conforme a Constituição da República. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, v.I, p.128-129. 6 XAVIER, José Tadeu Neves. A teoria da desconsideração da pessoa jurídica no Código Civil de

2002. Revista de direito privado, n.10, p.77, abr.-jun. 2002. 7 Conforme: COMPARATTO, Fábio Konder. O poder de controle na sociedade anônima. 3.ed. Rio de

Janeiro: Forense, 1983, p.284. 8 Assim: COELHO, Fábio Ulhôa. Curso de direito comercial. São Paulo: Saraiva, 1999, v. 2, p.44. Em sua

monografia específica sobre o tema, contudo, o professor paulista fazia referência à possibilidade de desconsideração, independente da existência de abuso ou fraude à lei. COELHO, Fábio Ulhôa. Desconsideração da personalidade jurídica. São Paulo: RT, 1989, p.63.

9 “Direito Comercial. Falência. Empresas Coligadas. Desconsideração da Personalidade Jurídica. Ação Autônoma. Desnecessidade. 1 – Pode o síndico da massa falida postular a desconsideração da personalidade jurídica de empresas coligadas à falida nos próprios autos da falência, prescindindo a providência de ação autônoma. Iterativos precedentes. 2 – Recurso especial conhecido e provido” (REsp 1034536/MG, Rel. Min. Fernando Gonçalves, 4ª Turma, j. 05.02.2009, DJe 16.02.2009).

10 “Direito Processual Civil. Fraude de Execução. Alteração no Contrato Social. Transferência de Bens e Cotas. Circunstâncias do Caso. Enunciado nº 7 da Súmula/STJ. Teoria da Desconsideração da Pessoa Jurídica. Aplicação. Orientação do Tribunal. Recurso Desacolhido. I – O acórdão impugnado, examinando as circunstâncias dos autos, decidiu que as alterações contratuais realizadas inviabilizam a execução, caracterizando fraude. Afirmou, ademais, que não há notícia da existência de bens de propriedade da devedora, para fins de penhora. Nesse passo, o recurso especial encontra óbice no Enunciado nº 7 da Súmula/STJ. II – Comprovada a existência de fraude de execução, mostra-se possível a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica para assegurar a eficácia do processo de execução” (REsp 476.713/DF, Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, 4ª Turma, julgado em 20.03.2003, DJ 01.03.2004, p. 186).

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havendo necessidade de ação própria para sua postulação, inclusive de ofício pelo juiz da falência, conforme já decidiu o Superior Tribunal de Justiça11.

Note-se, contudo, que nos termos estabelecidos pelo artigo 50 do Código Civil a desconsideração da pessoa jurídica tem como pressuposto de fato a necessidade de demonstração do desvio de finalidade ou confusão patrimonial, circunstâncias cuja prova é ônus do demandante que postula a desconsideração. Daí por que este regime irá diferir bastante daquele estabelecido no CDC, cuja diretriz básica orienta-se no sentido da proteção dos interesses legítimos do consumidor, o que induzirá à ampliação das possibilidades de ressarcimento de eventuais prejuízos decorrentes das relações de consumo.

De qualquer modo, lembre-se que, conforme é assentado na doutrina especializada, é praticamente impossível a previsão exaustiva das hipóteses específicas de abuso da personalidade jurídica12, razão pela qual aquelas que foram expressamente mencionadas, tanto no Código Civil quanto no CDC, devem ser vislumbradas como meramente exemplificativas. Na legislação civil, a precisão dos conceitos indeterminados confusão patrimonial e desvio de finalidade permite a atualização da norma em face de eventual necessidade dos credores que sofram com o comportamento abusivo do devedor. Assim é o caso de que, embora não previsto expressamente, poderá ser deferida a desconsideração quando a pessoa jurídica pertencer, mesmo no âmbito das

11 “Processual Civil. Comercial. Falimentar. Recurso Especial. Ofensa à Norma Constitucional. Interesse de

Agir. Prequestionamento. Decisão. Fundamentação. Reexame Fático-Probatório. Falência. Desconsideração da Personalidade Jurídica. Indisponibilidade de Bens. Ex-Diretor de Sociedade Anônima. Embargos de Declaração. Omissão. Contradição. Inexistência. A ofensa à norma constitucional não enseja Recurso Especial. O recorrente carece de interesse de agir no tocante à pretensão que já foi atendida pelo tribunal a quo. Falta prequestionamento ao Recurso Especial no ponto que suscita questão não discutida na corte de origem. A desconformidade da decisão com as provas dos autos não revela ausência de fundamentação. É inadmissível o reexame fático-probatório em sede de Recurso Especial. Está correta a desconsideração da personalidade jurídica da Sociedade Anônima falida quando utilizada por sócios controladores, diretores e ex-diretores para fraudar credores. Nesse caso, o juiz falimentar pode determinar medida cautelar de indisponibilidade de bens daquelas pessoas, de ofício, na própria sentença declaratória de falência, presentes os requisitos do fumus boni iuris e os do periculum in mora. A contrariedade do julgado com o disposto na lei não se confunde com omissão ou a contradição que enseje embargos de declaração. Recurso Especial não conhecido” (REsp 370.068/GO, Relª Min. Nancy Andrighi, 3ª Turma, julgado em 16.12.2003, DJ 14.03.2005, p.318).

12 FRANCESCHELLI, Vincenzo; LEHMANN, Michael. Superamento della personalitá giuridica e societá collegate: sviluppi di diritto continentale. In: Responsabilitá limitata e gruppi di societá. Milano: Giuffrè, 1987.

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relações civis, ao mesmo grupo econômico, caracterizando-se esta estrutura sem existência real, mas mero artifício formal13. No CDC, a mesma hipótese estará presente tanto no caput do art. 28 quanto em seu § 5º, conforme se passa a examinar.

3 – DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NO CDC

A desconsideração da personalidade jurídica é prevista no artigo 28 do CDC com duas funções básicas: de sanção pelo uso da pessoa jurídica para prática de atos ilícitos genericamente considerados; e como garantia do consumidor ao ressarcimento de seus prejuízos14. O artigo 28 do CDC estabelece uma larga relação de hipóteses que autorizam a desconsideração da personalidade jurídica, referindo o caput: “O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração”.

13 “Direito Civil e Processual Civil. Recurso Especial. Ofensa ao Art. 535 do CPC. Não Ocorrência. Violação

do Art. 2º da CLT. Súmula 07/STJ. Desconsideração da Personalidade Jurídica. Sociedade Pertencente ao Mesmo Grupo da Executada. Possibilidade. Desnecessidade de Ação Própria. Recurso Especial Não Conhecido. 1. Não se conhece de recurso especial, por pretensa ofensa ao art. 535 do CPC, quando a alegação é genérica, incidindo, no particular, a Súmula 284/STF. 2. Quanto ao art. 2º da CLT, a insurgência esbarra no óbice contido na Súmula nº 07/STJ, porquanto, à luz dos documentos carreados aos autos, que apontaram as relações comerciais efetuadas pela executada e pela recorrente, o Tribunal a quo chegou à conclusão de que se tratava do mesmo grupo de empresas. 3. A indigitada ofensa ao art. 265 do Código Civil não pode ser conhecida, uma vez que tal dispositivo, a despeito de terem sido opostos embargos declaratórios, não foi objeto de prequestionamento nas instâncias de origem, circunstância que faz incidir a Súmula nº 211/STJ. 4. Quanto à tese de inexistência de abuso de personalidade e confusão patrimonial, a pretensão esbarra, uma vez mais, no enunciado sumular nº 07 desta Corte. À luz das provas produzidas e exaustivamente apreciadas na instância a quo, chegou o acórdão recorrido à conclusão de que houve confusão patrimonial. 5. Esta Corte se manifestou em diversas ocasiões no sentido de ser possível atingir, com a desconsideração da personalidade jurídica, empresa pertencente ao mesmo grupo econômico, quando evidente que a estrutura deste é meramente formal. 6. Por outro lado, esta Corte também sedimentou entendimento no sentido de ser possível a desconstituição da personalidade jurídica no bojo do processo de execução ou falimentar, independentemente de ação própria, o que afasta a alegação de que o recorrente é terceiro e não pode ser atingido pela execução, inexistindo vulneração ao art. 472 do CPC” (REsp 1071643/DF, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, 4ª Turma, j. 02.04.2009, DJe 13.04.2009).

14 AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. Aspectos do Código de Defesa do Consumidor. Revista da AJURIS, Porto Alegre, n.52, p.167-187, jul. 1991.

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As hipóteses estabelecidas no caput do artigo 28, primeira parte, têm como característica comum a ilicitude ou irregularidade da conduta do fornecedor. Já no que diz respeito à segunda parte do dispositivo, as hipóteses de falência, insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica não importam a desconsideração per se. Ao contrário, apenas importam a desconsideração quando tais circunstâncias decorram diretamente de má administração. A dificuldade prática reside justamente em precisar no que consiste o significado de má administração. Um primeiro entendimento vai sustentar que má administração equivale à gestão dos negócios da sociedade mediante fraude ou má-fé15. Por outro lado, há os que vão defender a noção como espécie de atos de gerência incompetente dos sócios ou administradores que deem causa à extinção da pessoa jurídica16.

Não é desconhecido que o alcance da expressão má administração, nesta segunda parte do artigo 28, caput, é essencial para circunscrever os limites da responsabilidade dos sócios e administradores. O primeiro entendimento, exigindo a má-fé, fixa o mesmo sentido do que a primeira parte do dispositivo, referindo-se à necessidade de reprovação jurídica da conduta dos sócios e administradores. Já a exigência de simples incompetência administrativa abre a possibilidade de desconsideração, via interpretação extensiva, a qualquer espécie de falência ou estado de insolvência, uma vez que é de se pressupor que racionalmente a consecução da finalidade lucrativa das sociedades não é alcançada em vista de falta de conhecimento ou competência na administração do negócio. Da mesma forma, embora não seja reprovável sob o aspecto jurídico como a má-fé, a demonstração do que seria incompetência administrativa do sócio ou

15 “Responsabilidade Civil – Naufrágio da Embarcação “Bateau Mouche IV” – Ilegitimidade de Parte Passiva

Ad Causam – Sócios – Teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica – Danos Materiais – Pensionamento Decorrente do Falecimento de Menor Que Não Trabalhava. 1. Arguições de ilegitimidade de parte passiva e imputações recíprocas dos réus acerca da responsabilidade pelo trágico evento. Em sede de recurso especial não é dado rediscutir as bases empíricas da lide definidas pelas instâncias ordinárias. Incidência da Súmula 7/STJ. 2. Acolhimento da teoria da ‘desconsideração da personalidade jurídica’. O juiz pode julgar ineficaz a personificação societária, sempre que for usada com abuso de direito, para fraudar a lei ou prejudicar terceiros. 3. Reconhecido que a vítima menor com seis anos de idade não exercia atividade laborativa e que a sua família possui razoáveis recursos financeiros, os autores – pai e irmã – não fazem jus ao pensionamento decorrente de danos materiais, mas tão somente, nesse ponto, aos danos morais fixados. Recurso Especial interposto por Ramon Rodriguez Crespo e outros não conhecido. Recurso da União conhecido, em parte, e provido” (STJ – REsp 158051/RJ – Rel. Min. Barros Monteiro – j. 22.09.1998, DJU 12.04.1999, p. 159).

16 Assim: AMARO, Luciano. Desconsideração da pessoa jurídica..., p.80.

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administrador, e sua vinculação como causa da falência ou insolvência do fornecedor, é prova de difícil produção.

Por outro lado, a eficácia da desconsideração alcança todas as obrigações decorrentes de relação de consumo, como a responsabilidade por acidentes de consumo, vícios do produto ou do serviço, assim como perdas e danos e outras consequências pecuniárias decorrentes do inadimplemento. A desconsideração impõe, neste sentido, a responsabilidade ilimitada dos sócios e administradores pelas obrigações do fornecedor decorrentes de relação de consumo, em vista igualmente da sanção ao comportamento irregular e como garantia do ressarcimento devido, promovendo, em última análise, a efetividade do direito do consumidor.

3.1 Grupos Societários e Sociedades Controladas

Além da hipótese geral de desconsideração prevista no artigo 28, caput, também nos §§ 2º e 3º são abrangidas hipóteses de desconsideração em relação às sociedades integrantes de grupos societários e às sociedades controladas. No caso, o § 2º do artigo 28 estabelece que “as sociedades integrantes dos grupos societários e as sociedades controladas são subsidiariamente responsáveis pelas obrigações decorrentes deste Código”. Por sociedade integrante de grupo societário entendam-se aquelas que se estruturam no regime da sociedades ligadas por vínculo orgânico ou de direção.

Segundo RAFAEL MANÓVIL, o que distingue o grupo societário é a unidade que se lhe reconhece de interesse e direção17. Já as sociedades controladas têm seu conceito estabelecido pela Lei das Sociedades Anônimas. O artigo 243, § 2º, da Lei 6.404/76 estabelece sociedade controlada como sendo “a sociedade na qual a controladora, diretamente ou através de outras controladas, é titular de direitos de sócio que lhe assegurem, de modo permanente, preponderância nas deliberações sociais e o poder de eleger a maioria dos administradores”.

A este respeito, FÁBIO KONDER COMPARATTO ensina que existem duas espécies de grupos societários, quais sejam: os fundados em controle societário e os fundados em controle contratual. De acordo com o professor paulista, “os grupos econômicos são de duas espécies: grupos de subordinação e de 17 MANÓVIL, Rafael Mariano. Grupos de sociedades en el derecho comparado. Buenos Aires: Abeledo

Perrot, 1998, p.416.

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coordenação. Os primeiros apresentam uma estrutura hierárquica, em que uma empresa (individual ou societária, pública ou privada) exerce um poder de dominação, denominado poder de controle, sobre as demais. Nos grupos de coordenação, ao revés, não há empresas dominantes e dominadas, mas a coordenação de duas ou mais empresas sob uma mesma direção unitária: são os consórcios”. E prossegue, afirmando que “o poder de controle de uma empresa sobre outra – elemento essencial do grupo de subordinação – consiste no direito de decidir, em última instância, a atividade empresarial de outrem. Normalmente, ele se funda na participação societária de capital, permitindo que o controlador se manifeste na assembleia geral ou reunião de sócios da empresa controlada. Mas pode também ocorrer que essa dominação empresarial se exerça ab extra, sem participação de capital de uma empresa em outra e sem que o representante da empresa dominante tenha assento em algum órgão administrativo da empresa subordinada. É o fenômeno do chamado controle externo”18. Note-se, todavia, que para definir-se grupo econômico não há necessidade do efetivo exercício do poder de influência de uma sociedade sobre as demais, mas apenas que exista a possibilidade do exercício deste poder19.

Neste caso, havendo circunstância fática ou jurídica que caracterize a existência de grupo societário, e havendo obrigações decorrentes de relações de consumo para os consumidores, resulta aplicável a regra de responsabilidade subsidiária das outras empresas do grupo de que faz parte o fornecedor originariamente responsável. Este caráter apenas subsidiário, e não solidário, da responsabilidade das sociedades controladas mereceu críticas da doutrina especializada20.

Destaque-se, contudo, que não há, neste aspecto, necessidade de demonstração de culpa ou dolo das empresas responsabilizadas

18 COMPARATTO, Fábio Konder. Grupo Societário Fundado em Controle Contratual e Abuso de

Poder do Controlador. In: COMPARATTO, Fábio Konder. Direito Empresarial: Estudos e Pareceres. São Paulo: Saraiva, 1990, p.275.

19 Neste sentido, a lição de: ENGRÁCIA ANTUNES, José. Os grupos de sociedades. Estrutura e organização jurídica da empresa plurissocietária. Coimbra: Almedina, 1993, p.359 et seq.

20 Segundo GENACÉIA ALBERTON, em lúcido estudo sobre a desconsideração da pessoa jurídica no CDC, o legislador foi tímido ao estabelecer em caráter subsidiário a responsabilidade das sociedades controladas, uma vez que, em se tratando de subsidiariedade, é impositivo, em um primeiro momento, que se comprove a impossibilidade de pagamento pela devedora principal. ALBERTON, Genacéia da Silva. A desconsideração da pessoa jurídica no Código do Consumidor. Aspectos processuais. Revista de direito do consumidor. São Paulo: RT, v.7, p.7-29, jul.-set. 1993.

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subsidiariamente. Basta ao consumidor que não tenha tido seu crédito satisfeito, a demonstração de existência de grupo econômico, devendo ser considerados prova para tal tanto documentos que atestem formalmente sua existência, até, o que é mais comum, a demonstração de características das próprias empresas e suas atividades que corroborem esta conclusão.

Em ambos os casos, ao prever a responsabilidade subsidiária do grupo societário e das sociedades coligadas, o legislador do CDC não parece estabelecer efeito próprio da desconsideração da personalidade jurídica, senão de responsabilidade legal subsidiária21, a ser imputada na hipótese de o fornecedor direto, integrante destas estruturas societárias, não puder responder às obrigações decorrentes de relações de consumo.

3.2 Sociedades Consorciadas

Já no que diz respeito às sociedades consorciadas, o artigo 28, § 3º, do CDC estabelece que sua responsabilidade decorrente das obrigações estabelecidas sob o regime desta lei (decorrentes de relação de consumo) será de responsabilidade solidária entre todas os fornecedores participantes do consórcio. Note-se que a regra estipulada no CDC estabelece uma exceção ao disposto na Lei das Sociedades Anônimas. Isto porque, no regime da Lei 6.404/76, as chamadas sociedades consorciadas não integram pessoa jurídica específica, mas, ao contrário, mantém cada uma sua personalidade jurídica original, não havendo, em regra, solidariedade pelas obrigações assumidas. Neste sentido, o artigo 278, § 1º, da Lei nº 6.404/76 refere que “o consórcio não tem personalidade jurídica e as consorciadas somente se obrigam nas condições previstas no respectivo contrato, respondendo cada uma por suas obrigações, sem presunção de solidariedade”. Deste modo, em face do disposto no CDC, seu artigo 28, § 3º, estabelece exceção à regra fixada na Lei das Sociedades Anônimas, fixando a solidariedade das sociedades consorciadas quando se trate de obrigações derivadas de relações de consumo.

3.3 Sociedades Coligadas

Entre as diversas figuras societárias examinadas em vista da responsabilidade que lhes é imputada no regime do CDC, o artigo 28, § 4º, do CDC vai estabelecer, por fim, que, em relação às sociedades coligadas,

21 No mesmo sentido: AMARO. Desconsideração da pessoa jurídica, p.82-83.

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estas só responderão por culpa, restringindo a extensão da responsabilidade que é a tônica das normas de proteção do consumidor. Esta aparente exceção se explica em face do próprio conceito de sociedade coligada. O artigo 243, § 1º, da Lei 6.404/76 (Lei das Sociedades Anônimas) define sociedades coligadas como aquelas em que uma delas “participa, com 10% (dez por cento) ou mais, do capital da outra, sem controlá-la”. Ou seja, trata o conceito de sociedades coligadas deriva apenas da participação do capital, sem que necessariamente haja poder de controle ou direção de uma sociedade em outra. Há, portanto, autonomia de ação entre as sociedades22. Por esta razão, a responsabilidade de uma delas em relação às obrigações originadas de contratos de consumo ou danos a consumidores, em que a outra tenha atuado como fornecedora, só terá lugar se ficar demonstrada a culpa daquela a quem se deseja estender a responsabilidade, em caráter subsidiário.

3.4 A Cláusula Geral do Artigo 28, § 5º, do CDC

Além da extensão das hipóteses de responsabilidade dos sócios e administradores e das sociedades coligadas, consorciadas, controladas ou integrantes do mesmo grupo econômico do fornecedor que seja titular do débito em obrigação havida com o consumidor, o CDC vai prever, ainda, disposição de largo campo de aplicação. Esta disposição é abrangente de todas as hipóteses em que, independente da causa, deixe de haver o ressarcimento dos prejuízos do consumidor. Prevê o artigo 28, § 5º, do CDC: “Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores”.

Em matéria de significado e âmbito de incidência da norma, note-se que o § 5º, em questão, abrange completamente todas as hipóteses legais precedentes, previstas no mesmo artigo 28. Ao indicar que sempre poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica quando esta for de alguma forma obstáculo ao ressarcimento, a norma que aparentemente seria subsidiária em relação à aplicação do caput e demais parágrafos do artigo 28 assume, em razão do seu conteúdo abrangente, a qualidade de norma principal. O caráter amplo e, de certo modo, objetivo, ou ao menos independente de culpa, uma vez que abrange todas as hipóteses, presentes ou não a culpa e o

22 Assim: SAAD, Eduardo Gabriel. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. 2.ed. São Paulo:

LTr, 1997, p.280.

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dolo, suscita grandes discussões doutrinárias e jurisprudenciais. Em primeiro lugar, sobre o acerto técnico da norma.

Assim, por exemplo, ZELMO DENARI, para quem a manutenção do § 5º em questão deveu-se a um equívoco do Presidente da República, que no momento da promulgação do CDC em vez de vetar o dispositivo em questão, por engano terminou vetando o § 1º do mesmo artigo23. Ocorre que, ainda que de fato procedam estas observações, no caso não houve veto, de modo que a disposição está plenamente vigente e aplicável.

A largueza semântica significativa da disposição pode conduzir à certa insegurança jurídica, e mesmo ao menosprezo de aspectos essenciais do próprio instituto da pessoa jurídica. Em termos literais, o § 5º do artigo 28 do CDC tem o condão de transformar a exceção em regra, no sentido do afastamento da personalidade jurídica para efeito da responsabilização dos sócios e administradores em quaisquer hipóteses nas quais exista prejuízo do consumidor e impossibilidade de ressarcimento pela pessoa jurídica fornecedora. A toda evidência, não tem como subsistir sua interpretação literal como regra. Ao contrário, só poderá ser tido como instrumento útil em vista de aplicação prudente da norma pela jurisprudência, de modo a torná-lo garantia de ressarcimento dos prejuízos sofridos pelos consumidores, sem prejuízo dos direitos individuais dos sócios e administradores, e, especialmente, sem a restrição excessiva à livre iniciativa econômica assegurada pela Constituição (art. 170, caput).

Merece atenção, neste aspecto, a decisão do Superior Tribunal de Justiça acerca da responsabilidade pelos danos decorrentes da explosão do shopping em Osasco/SP. Na defesa das suas posições, houve divergência entre os Ministros Ari Pargendler, defensor da denominada teoria maior da desconsideração, pela qual esta só tem lugar quando demonstrado o desvio de finalidade ou confusão patrimonial. Entretanto, restou assentado no julgado, por maioria, em vista do voto condutor da Ministra Nancy Andrighi, que em relação ao microssistema do CDC aplica-se a teoria menor da desconsideração, pela qual “o risco empresarial normal às atividades econômicas não pode ser suportado pelo terceiro que contratou com a pessoa jurídica, mas pelos sócios e/ou administradores desta, ainda que estes demonstrem conduta administrativa proba, isto é, mesmo que não exista qualquer prova capaz de identificar conduta culposa ou dolosa por

23 DENARI, Zelmo et alii. Código brasileiro de defesa do consumidor comentado pelos autores do anteprojeto.

8.ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005, p.239.

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parte dos sócios e/ou administradores da pessoa jurídica”24. A questão, contudo, remanesce polêmica. Daí por que não é incorreto observar que a aplicação do § 5º do artigo 28 do CDC como fundamento da desconsideração tem sua aplicação circunscrita às circunstâncias do caso concreto. Daí por que sua aplicação reclama prudência e cautela do juiz, considerando-se seu caráter subsidiário em relação à responsabilidade da própria pessoa jurídica fornecedora, mas ao mesmo tempo de garantia, de acordo com o princípio da confiança, em vista da necessidade de assegurar o direito do consumidor ao ressarcimento integral de seus prejuízos.

4 – CONSIDERAÇÕES FINAIS

A desconsideração da personalidade jurídica é solução moderna e excepcional em proteção do credor que sofre com o comportamento abusivo do devedor. Preserva, de um lado, a funcionalidade do instituto da pessoa jurídica em relação à má-fé dos administradores e sócios. De outro, oferece garantia substancial ao credor na medida em que lhe permite constranger o patrimônio pessoal de quem tenha operado in concreto a ação abusiva da empresa e demais pessoas jurídicas de direito privado.

Contudo, suas vantagens resultam justamente do seu caráter de excepcionalidade. Orienta-se para a proteção da segurança jurídica, e não o contrário. Daí por que a expansão do instituto, operada pelo art. 28, § 5º, do Código de Defesa do Consumidor, deve ser interpretada em razão da finalidade de proteção do vulnerável, por intermédio da ponderação entre a defesa do consumidor e a livre iniciativa econômica, como direitos fundamentais incontrastáveis a partir de sua previsão constitucional.

Este exame deverá ser feito em vista dos custos que razoavelmente possam ser exigidos das partes nas relações de mercado. E sem perder de vista que, ao final, se redistribuem entre todos os agentes econômicos, seja por intermédio da formação dos preços ou da elevação/retração da atividade econômica do mercado.

5 – BIBLIOGRAFIA

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24 REsp 279273-SP; Relª p/Acórdão Min. Nancy Andrighi; j. 04.12.2003; DJU 29.03.2004, p. 230.

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PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E IMPENHORABILIDADE

DA RESIDÊNCIA FAMILIAR ARAKEN DE ASSIS*

Sumário: Introdução; 1 – Origem e evolução da impenhorabilidade do bem de família no direito brasileiro; 2 – Fundamento da impenhorabilidade da residência familiar; 3 – Objeto da impenhorabilidade da residência familiar; 4 – Beneficiários da impenhorabilidade: a influência do princípio da dignidade da pessoa humana; 5 – Exceções à impenhorabilidade da residência familiar; Conclusão.

INTRODUÇÃO

Um dos temas que empolgaram a jurisprudência brasileira, nas últimas duas décadas do Século XX e nos primeiros anos do Século XXI: fixou-se a impenhorabilidade do bem da família. É preciso compreender a disciplina concreta desse instituto, buscar sua origem, precisar sua evolução e indicar-lhe o fundamento constitucional para entender, enfim, os motivos da importância adquirida por um tema que, perdido na lei civil de 1916, ressurgiu após 70 anos para eletrizar os domínios da execução forçada.

O objetivo do presente estudo é preciso. Não se almeja examinar a disciplina da impenhorabilidade, no âmbito do processo, e, por exemplo, identificar a natureza do vício da penhora, ao recair sobre a residência familiar, o momento da respectiva alegação pelo executado, ou a possibilidade, ou não, de órgão judiciário conhecer do tema ex officio. Em primeiro lugar, busca-se identificar o objeto da tutela legal; ademais, estabelecer a influência do princípio da dignidade da pessoa humana na sua

* Professor Titular da PUCRS. Doutor em Direito pela PUC/SP. Desembargador (aposentado) do

Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Advogado.

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formulação, tanto na identificação dos beneficiários quanto na criação de exceções à regra da impenhorabilidade.

1 – ORIGEM E EVOLUÇÃO DA IMPENHORABILIDADE DO BEM DE FAMÍLIA NO DIREITO BRASILEIRO

A ideia de conferir “isenção de execução por dívidas”1, equivalendo a outorgar impenhorabilidade à morada família (homestead)2, surgiu no direito norte-americano como produto feliz de gravíssima crise bancária3.

Lei do Texas, de 26.01.1839, autorizou a separar do domínio público a área de 50 acres, ou terreno na cidade, de valor limitado, e a mobília, utensílios, ferramentas e equipamentos, conforme o caso4. O objetivo da lei era acolher numerosos colonos que, massivamente, passavam a ocupar o território, mais que dobrando a população num reduzido espaço de tempo5.

O instituto incorporou-se à legislação da União por lei de 20.05.1862. Também neste caso se visou à colonização de terras inóspitas, à fixação dos imigrantes nas vastas áreas inexploradas ao Oeste, beneficiando razoavelmente os veteranos de guerra6. O ponto comum desses diplomas era a imunização (provisória e limitada no tempo, no caso federal), ou exemption, do homestead contra execuções.

A experiência de atribuir parcelas do domínio público aos cidadãos, nos vários Estados-membros da federação americana7, e no âmbito federal, já se encerrou, ultimando-se pelo Alasca. Tais dados legislativos têm valor

1 PONTES DE MIRANDA. Tratado de direito privado, v. 14, § 1.592, p.84. 2 Sobre as duas noções de homestead no direito norte-americano, no Século XIX, vide BUREAU, Paul.

Le homestead, p.9-17 3 MENDONÇA, M. I. Carvalho de. O homestead, n.2, p.214. 4 Segundo L. VACHER, Le Homestead aux États-Unis, p.3, o instituto remonta aos costumes ingleses,

incorporados, por força de normas das Constituições dos Estados-membros, ao direito comum norte-americano.

5 O instituto incorporou-se, progressivamente, ao direito de vários Estados-membros, a exemplo da Constituição da Geórgia, de 1877, antes da qual não era efetivo, segundo ISAAC, Max. Homestad waivers and assignments. § 1°, p.1.

6 HYMAN, Harold M. American singularity, p.35: “Congress gave only a weak protection in homesteading to Union military veterans, one reflecting the aforementioned article of republican faith not to separate soldiers from the mass of citizens”.

7 VACHER, L. Le Homestead aux États-Unis, p.30-32, explica a incorporação de áreas ao domínio público, seguindo a expansão do atual território norte-americano, através de aquisição de áreas ou às custas do México.

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histórico. Por sinal, o homestead se afigura bem mais complexo do que o apresentado neste breve e incompleto sumário8.

Encaradas as disposições retrospectivamente, contudo, surpreende a respectiva adoção, cuja imensa importância decorre da inserção do instituto à “singularidade” da vida norte-americana9. E isso porque execução representa tarefa eminentemente administrativa10, nos Estados-membros da América do Norte, incumbindo-se dela o clerk ou o sheriff, de acordo com as leis locais. O peso de autoridade recai duramente sobre o vencido. Em que pese esse ambiente liberal, no qual o desacato do vencido ao comando judicial oferece graves repercussões, há algumas garantias. Neste sentido, a impenhorabilidade do homestead, bem como outras restrições legais (state statutes) similares no alcance, visam “to make certain that the judgement debtor and family are able to mantain a hosehold and some modest, minimal standard of living”11.

Da proteção à residência familiar cogitou-se, no direito brasileiro, pela vez primeira nos artigos 2.079 a 2.090 do projeto de Código Civil, apresentado por COELHO RODRIGUES em 189312. O projeto de CLOVIS BEVILAQUA omitiu-se a respeito. Segundo JOÃO LUÍS ALVES, a inclusão do assunto ocorreu no Senado Federal13, por intermédio de emenda apresentada, em 01.12.1912, pelo Senador Fernando Mendes de Almeida, representante do Maranhão. Findos os trabalhos legislativos, a promulgação do Código Civil de 1916 introduziu o instituto no direito brasileiro.

O Código Civil de 1916 ocupou-se da impenhorabilidade do “bem de família” nos artigos 70 a 73. Filiou-se à espécie “formal” do instituto, porque exigiu, além do fato de residir no imóvel, declaração de vontade do(s) proprietário(s)14. Então, cabia ao “chefe da família” destinar um prédio para domicílio desta, ficando isento da execução por dívidas, exceto as que se

8 Vide a excelente exposição dos dados legislativos, por Estado-membro da federação norte-

americana, de ZILVETI, Ana Marta Cattani de Barros. Bem de família, p.40-59. 9 HYMAN, Harold M. American singularity, p.40. 10 KANE, Mary Kay. Civil procedure, § 6-3, p.207, in verbis: “Enforcement of a local judgement is a

purely administrative matter”. 11 FRIEDENTHAL, Jack H.; KANE, Mary Kay; MILLER, Arthur R. Civil procedure, § 15-7, p.746. 12 RODRIGUES, A. Coelho. Projeto de código civil brasileiro, p.252-253. 13 ALVES, João Luís. Código civil anotado, p.169. Vide AZEVEDO, Álvaro Villaça. Comentários ao código

civil, v.19, p.4-7. 14 Neste sentido, a firme sugestão de MENDONÇA, M. I. Carvalho de. O homestead, n.12, p.235. As

vantagens e desvantagens dessa formalidade receberam o exame de BUREAU, Paul. Le homestead, p.109-112, concluindo que são razões sociais que determinam a escolha.

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originassem de impostos relativos ao imóvel (art. 70, caput). A isenção durava enquanto vivessem os cônjuges ou até que os filhos atingissem a maioridade (art. 70, parágrafo único). A instituição do bem de família subordinava-se à inexistência de dívidas anteriores, razão pela qual a isenção abrangia tão só dívidas posteriores (art. 71, caput). No tocante às dívidas anteriores, a instituição permanecia ineficaz15, subsistindo a penhorabilidade (art. 71, parágrafo único). Não poderia o prédio ter outro destino, nem ser alienado sem o consentimento dos interessados (art. 72). A instituição constaria de escritura pública, levada ao registro, e publicada na imprensa (art. 73).

Essa configuração do homestead, apesar da sua importância intrínseca, na prática não vingou, em razão do formalismo, relegando o instituto à vala da “aplicação raríssima”16.

Nenhum limite de valor estabeleceu a lei civil para o bem escolhido para residência da família. Todavia, o art. 19 do Decreto-Lei 3.200, de 19.04.1941, estipulou, inicialmente, o valor de cem contos de réis para o imóvel, quantia progressivamente adaptada até a Lei 6.742, de 05.12.1979, que deu redação definitiva ao art. 19, in verbis: “Não há limite de valor para o bem de família desde que o imóvel seja residência dos interessados por mais de dois anos”. Vale realçar, ao lado de benefícios fiscais e da disposição que o bem de família não entraria em inventário enquanto nele residir o cônjuge supérstite ou filho menor, o disposto no art. 22 do Decreto-Lei 3.200/1941, segundo o qual, situado o imóvel na zona rural, a escritura de instituição poderia individualizar e proteger contra a execução “a mobília e utensílios de uso doméstico, gado e instrumentos de trabalho”.

O procedimento do registro do bem de família, exigido pelo regime adotado no CC de 1916, logrou regulamentação nos artigos 647 a 651 do CPC de 1939 (Decreto-Lei n° 1.608, de 18.09.1939), mantida pelo art. 1.218, II, do CPC de 1973. Entre um diploma e outro, o art. 277 do Decreto 4.857, de 09.11.1939, atinente aos registros públicos, previu a inscrição do bem de família, suscitando vários problemas de interpretação17. O procedimento registral, posteriormente, constou dos artigos 260 a 264 da Lei 6.515, de 31.12.1973, a Lei dos Registros Públicos vigente, que harmonizou as

15 PONTES DE MIRANDA. Tratado de direito privado, v.14, § 1.592, p.91. 16 CENEVIVA, Walter. Lei dos registros públicos comentada, n.687, p.561. 17 Vide, SERPA LOPES. Tratado dos registros públicos, v.4, n.754, p.433-434.

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disposições do CPC de 1939 “à nova sistemática registrária”18. Conforme já se assinalou, essas formalidades em torno da instituição do bem de família provocaram desestímulo geral ao uso do homestead.

O Código Civil de 2002 atualizou o instituto, sem embargo dessas dificuldades, preservando seus traços gerais, mas imprimindo-lhe disciplina minuciosa.

Do ponto da arquitetura legislativa, o Código Civil de 2002 deslocou a disciplina da parte geral, localizando-a no direito patrimonial da família, no que acompanhou a opinião prevalecente no direito anterior19. Legitimam-se os cônjuges, ou a entidade familiar, por escritura pública ou por testamento, à instituição de parte do patrimônio como bem de família, não excedente a um terço do patrimônio líquido existente ao tempo da constituição (art. 1.711, caput), e terceiro, em igualdade de condições, neste caso dependente a instituição do consentimento dos beneficiários (art. 1.711, parágrafo único). O bem de família consistirá em prédio residencial urbano ou rural, com suas pertenças e acessórios, e valores mobiliários, “cuja renda será aplicada na conservação do imóvel e no sustento da família” (art. 1.712). Os valores mobiliários não podem superar o valor do prédio e devem ser individualizados. Tratando-se de títulos nominativos, a constituição há de ser averbada nos livros próprios, além de confiada a respectiva administração a empresa de banco (art. 1.713), cuja liquidação implicará a transferência dos valores e, no caso de falência, autoriza o pedido de restituição (art. 1.718). A instituição dá-se pelo registro do título no álbum imobiliário (art. 1.714). Ficará isento o patrimônio de execução por dívidas posteriores, salvo impostos e despesas de condomínio (art. 1.715, caput), e, neste caso, aplicar-se-á o saldo eventual na aquisição de outro prédio, ou títulos da dívida pública, para sustento da família, admitida outra solução a critério do juiz (art. 1.715, parágrafo único). A instituição perdurará na vida dos cônjuges ou, na falta destes, até os filhos completarem a maioridade (art. 1.716). Não podem o prédio e os valores mobiliários ter outro destino, nem ser alienados sem a anuência dos interessados e colhida a manifestação do Ministério Público (art. 1.717). A administração competirá a ambos os cônjuges, salvo disposição em contrário, resolvendo o juiz as divergências; no caso de falecimento dos cônjuges, a administração passará ao filho mais velho, se for maior, ou ao tutor (art. 1.720 e parágrafo único). É a forma que

18 BATALHA, Wilson de Souza Campos. Comentários à lei dos registros públicos, v.2, p.810. 19 AZEVEDO, Álvaro Villaça. Comentários ao código civil, v.19, p.7-10.

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assumiu, no direito brasileiro, a indivisibilidade causa mortis do bem de família20. Da extinção cogitam os artigos 1.719, 1.720 e 1.721. O modo normal é a morte de ambos os cônjuges e a maioridade dos filhos capazes (art. 1.721). Verificada a impossibilidade da manutenção do bem de família, nas condições originais, o juiz poderá extingui-lo, ou substituí-lo por outro, mais vantajoso (art. 1.719). A dissolução da sociedade conjugal não extingue o bem de família (art. 1.721, caput), mas, no caso de morte de um dos cônjuges, o sobrevivente poderá pedir a extinção, “se for o único bem do casal” (art. 1.721, parágrafo único).

Entre um diploma e outro, sobreveio a Lei 8.009, de 29.03.1990, que tornou impenhorável a residência familiar. Esta disciplina se harmoniza com a do bem de família, objeto de ressalva explícita no art. 1.711, caput, do Código Civil de 2002 (“... mantidas as regras sobre a impenhorabilidade do imóvel residencial estabelecida em lei especial”). Ao presente estudo interessa, fundamentalmente, essa última disciplina, porque subsiste a rejeição ao instituto do homestead tal como configurado na lei civil.

A compatibilidade da Lei 8.009/1990 com a instituição do bem de família, a teor do art. 1.711, caput, do Código Civil de 2002, suscita o problema terminológico. A toda evidência, o instituto do homestead desfruta de duas disciplinas paralelas. Para mais de um autor, o paralelismo implica duas espécies de bem de família: a) convencional; b) legal21. Por sua vez, MANUEL IGNÁCIO CARVALHO DE MENDONÇA, no estudo precursor acerca do tema, distinguia entre o bem de família “legal” – “sendo a residência efetiva no imóvel sua única e suficiente manifestação visível” – e o “formal” – “além da residência, exige a declaração, avaliação e registro do imóvel”22.

Nada obstante o vigor dessa distinção, a clareza exige, salvo engano, uma terminologia diferente. Parece preferível, na hipótese da Lei 8.009/1990, aludir à residência familiar, em vez de bem de família, acompanhando o étimo da palavra inglesa23. Neste último caso, também se presta oportuna homenagem ao uso vulgar. Na verdade, considerando o objeto da proteção, a terminologia correta é a de “casa de morada”, porque a família pode residir em casa alheia ou dividir-se em várias residências24.

20 SÜSS, Judes. Le homestead, p.35-39. 21 Por exemplo, COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito civil, v.5, p.18; VELOSO, Zeno. Código civil

comentado, v. 17, p. 82. 22 MENDONÇA, M. I. Carvalho de. O homestead, n.8, p.221. 23 Vide as considerações de SÜSS, Judes. Le homestead, p.13-14. 24 CID, Nuno de Salter. A protecção da casa de morada da família no direito português, p.59.

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O emprego de expressões diversas para os dois regimes do homestead no direito brasileiro tem justificação plausível. O bem de família mostra-se indisponível para o instituidor, porque inalienável, e, além disso, tem valor limitado; ao invés, a residência familiar é disponível, porque tão só impenhorável para os credores. A diferença se manifestará em várias ocasiões, a exemplo da possibilidade de constituir gravame real, e, assim, expor a residência familiar à excussão (art. 3°, V, da Lei 8.009/1990).

2 – FUNDAMENTO DA IMPENHORABILIDADE DA RESIDÊNCIA FAMILIAR

O homestead surgiu na esteira de grave crise financeira, que provocou o superendividamento dos agricultores25. E nessas mesmas bases a ideia se difundiu, na Europa, a partir da segunda metade do Século XIX26. Ao mesmo tempo, prestou-se à colonização de áreas incultas, instigando a constituição de família e o crescimento populacional. Logo, desde o início, o bem de família restringiu a responsabilidade patrimonial dos obrigados, protegendo a morada contra pretensões a executar27.

É natural, portanto, que o liberalismo acoimasse o instituto de burla e atentado àquele princípio28. Ora, como ponderou a arguta análise de M. I. CARVALHO DE MENDONÇA, que examinou em primeira mão o homestead, valendo-se de fontes norte-americanas e francesas, em geral os credores anteriores à constituição do bem de família não ficam impedidos de penhorar o bem – característica eliminada, contudo, na impenhorabilidade da Lei 8.009/1990 –, e, de outro lado, os credores posteriores já contrataram com o bem subtraído à responsabilidade patrimonial do futuro devedor29.

Importa, então, estabelecer o fundamento dessa restrição ao direito dos credores sobre o patrimônio do devedor, quase centenária no direito brasileiro. A natureza jurídica, no elemento comum às duas espécies, consiste na impenhorabilidade parcial e limitada da morada30.

25 BUREAU, Paul. Le homestead, p.36 e ss. 26 BUREAU, Paul. Le homestead, p.18 e ss. 27 ISAAC, Max. Homestad waivers and assignments, § 2, p.1-2. 28 Neste sentido, GRECO, Leonardo. O processo de execução, v.2, n.6.5.3, p.24: “... a meu ver, essa

disposição protege indevidamente o devedor, permitindo-lhe manter padrão elevado de vida familiar e reter patrimônio imobilizado em detrimento do pagamento do seu credor”.

29 MENDONÇA, M. I. Carvalho de. O homestead, n.11, p.233-234. 30 Segundo AZEVEDO, Álvaro Villaça. Bem de família, n.30, p.120, considera o bem de família um

patrimônio especial, protegido por um benefício econômico em prol da família.

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Inicialmente destinado à proteção da família, a evolução do instituto, no direito brasileiro, e a respectiva inserção no ambiente econômico contemporâneo, acarretou mudança significativa no âmbito da sua aplicação. A proteção se estendeu ao obrigado, tout court, haja ou não constituído família, amplitude revelada pela tutela dos bens domésticos (art. 2°, parágrafo único, da Lei 8.009/1990) da família sem imóvel residencial próprio31. Por sua vez, essa proteção ao obrigado, mediante a técnica da impenhorabilidade, assegura-lhe o chamado patrimônio mínimo. A garantia dos meios mínimos de sobrevivência, que é a morada e seu conteúdo, observa um princípio maior, porque “orienta-se pelo interesse social de assegurar uma sobrevivência digna aos membros da família, realizando, em última instância, a dignidade humana”32.

É o princípio da dignidade da pessoa humana, portanto, também o responsável pela humanização da execução, recortando do patrimônio o mínimo indispensável à sobrevivência digna do obrigado, sem embargo do dever de prestar, que inspirou o homestead. A norma jurídica (princípio e valor) fundamental, na feliz síntese de INGO WOLFGANG SARLET33, inserida no art. 1°, III, da CF/1988, fornece o fundamento constitucional do instituto. A jurisprudência brasileira aplicou a Lei 8.009/1990 sem perder de vista essa base do instituto.

3 – OBJETO DA IMPENHORABILIDADE DA RESIDÊNCIA FAMILIAR

O art. 1º, caput, da Lei 8.009/1990 declara impenhorável o “imóvel residencial próprio”, regra completada no respectivo parágrafo único, que alude ao “imóvel sobre o qual se assentam a construção, as plantações, as benfeitorias de qualquer natureza e todos os equipamentos”. Além disso, o art. 5°, caput, da Lei 8.009/1990 considera “residência o único imóvel utilizado... para moradia permanente”.

Esses dados normativos delineiam a noção de residência familiar, objeto da especial proteção do legislador, no direito brasileiro. Ela pode ser encarada sob duplo viés, o positivo e o negativo. Integra a proteção conferida à morada o respectivo conteúdo, igualmente digno de atenção.

31 ZILVETI, Ana Marta Cattani de Barros. Bem de família, p.310. 32 FACHIN, Luiz Edson. Estatuto jurídico do patrimônio mínimo, p.164. 33 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais, n.3.2, p.67-78.

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3.1 Impenhorabilidade do Prédio

O art. 1°, caput e parágrafo único, c.c. o art. 5°, caput, da Lei 8.009/1990 exibem sentido unívoco: a residência familiar é um imóvel, urbano ou rural – neste último caso, a pequena propriedade (art. 5°, § 2°, parte final); nas grandes propriedades rurais, consoante o art. 4°, § 2°, da Lei 8.009/1990, a impenhorabilidade limita-se à “sede de moradia”. Ora, o art. 79 do Código Civil de 2002 define o imóvel como o solo e o “quanto se incorporar natural ou artificialmente”. Desse modo, a residência familiar constitui a acessão física artificial, resultante do trabalho humano, permanente e materialmente unida ao solo – enfim, o prédio34.

A casa pré-fabricada e a barraca não constituem imóveis, porque não se ligam ao solo de modo definitivo, mas prestam-se à moradia da família35. Impossível situá-las fora da impenhorabilidade. São construções assentadas sobre o solo, conforme exige o art. 1°, parágrafo único, da Lei 8.009/1990. Tudo dependerá, neste ponto, da técnica empregada na construção. Entre nós, imperam o tijolo de barro e o concreto, materiais pesados, a exigir fundações profundamente fincadas no subsolo. Essa estrutura torna os prédios irremovíveis, exceto por demolição ou por implosão. Mas há construções familiares, bem comuns em alguns países, erguidas com materiais leves e frágeis. Elas comportam remoção e transporte íntegro para outro lugar, sem qualquer prejuízo à respectiva função. A característica não as afasta da proteção legal.

A flagrante opção legal pela acessão física apresenta dificuldades em dois pontos. A pessoa humana é capaz de morar praticamente em qualquer lugar. Há veículos, declarados penhoráveis no art. 2°, caput, da Lei 8.009/1990, especialmente adaptados para fins de moradia: a motocasa ou motor home. E existem barcos, ancorados em marinas próximas do local de trabalho, habitados por falsos navegantes, cujo notável conforto atrai muitas famílias. Tais bens servem, episodicamente, ao lazer do respectivo proprietário, a par da função residencial. Também podem mudar de lugar com facilidade e rapidez.

Em princípio, barcos residenciais e motor home escapam à proteção legal, apesar de preencherem os elementos necessários à configuração da

34 Vide, no direito anterior, GOMES, Orlando. Introdução ao direito civil, n.158, p.240, e n.159, p.241. 35 AMARAL, Francisco. Direito civil – introdução, p.319.

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“moradia permanente” (art. 5°, caput, parte final, da Lei 8.009/1990)36: não constituem prédios. Com maiores razões, inexistindo uso residencial exclusivo, porque prepondera o lazer, tais bens mostram-se penhoráveis. O argumento de que o lazer é um direito social (art. 6° da CF/1988), necessidade vital básica do trabalhador e de sua família, e componente do cálculo do salário mínimo (art. 7°, IV, da CF/1988)37, não contradiz a conclusão. Trata-se de outro bem, autônomo relativamente à moradia, como se deduz do próprio art. 6° da CF/1988, e estranho à tutela da Lei 8.009/1990.

Por exclusão, a exigência de o imóvel representar a “moradia permanente” esclarece algumas situações, a dos imóveis que não servem como “moradia” e a dos ocupados sem índole “permanente”.

No tocante ao primeiro aspecto, desde logo se mostram penhoráveis: a) o imóvel de uso unicamente comercial ou industrial; b) os terrenos urbanos38, situados ou não em loteamentos específicos, ou passíveis unicamente de construções residenciais, conforme a disciplina urbanística do município39: c) o imóvel residencial em construção40, apesar de julgado em contrário da 3ª Turma do STJ41. Em todos esses casos, o imóvel não serve à “moradia” do executado.

Um desdobramento do requisito da “moradia” – por sinal, o art. 1°, caput, da Lei 8.009/1990 exige que “nele residam” os beneficiários – consiste no antigo problema de o obrigado efetivamente residir no local em que se situa o prédio com essa finalidade.

Controverteu-se, na vigência do art. 70 do Código Civil de 1916, a necessidade de a família residir, ou não, no prédio instituído como bem de família. O entendimento predominante respondia afirmativamente42. “Se o dono do homestead transfere sua posse a outrem, privando-se da faculdade de voltar e assumir a mesma à vontade, ou se a casa é transformada em

36 Neste sentido, recordando o vagão dormitório, CREDIE, Ricardo Arcoverde. Bem de família, n.6.5,

p.65. 37 Neste sentido, quanto aos aparelhos de lazer, VASCONCELOS, Rita de Cássia Corrêa de. A

impenhorabilidade do bem de família, n.2.1.2, p.55. 38 CREDIE, Ricardo Arcoverde. Bem de família, n.6.5, p.64. 39 CZJAKOWSKI, Rainer. A impenhorabilidade do bem de família, p.46. No mesmo sentido, CREDIE,

Ricardo Arcoverde. Bem de família, n.6.5, p.47. 40 Em sentido contrário, CREDIE, Ricardo Arcoverde. Bem de família, n.6.6, p.48. 41 3ª T. do STJ, REsp 507.048-MG, 06.06.2003, Relª Min. Nancy Andrighi, DJU 30.06.2003, p.249. 42 BEVILAQUA, Clovis. Código civil brasileiro comentado, v.1, p.304.

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hotel, estabelecimento comercial, cessa o homestead”43. Ora, no alvitre de PONTES DE MIRANDA, tal interpretação confundia, erroneamente, o fato de residir e a destinação à residência44. E segundo CARVALHO SANTOS, atentaria contra a finalidade do homestead, apresentando o seguinte caso: “Suponha-se, por exemplo, que um indivíduo de parcos recursos não possa comprar senão um prédio para nele instituir, como de fato institui, o bem de família, sem que, entretanto, lhe convenha ir no mesmo residir, por não acomodar convenientemente sua família, que é grande. Resolve esse indivíduo, então, alugar um prédio maior, que lhe proporcione maior conforto, e destina o menor para servir de lar ao asilo da família, no dia em que morrer ou lhe faltarem recursos que lhe permitam pagar o aluguel de um prédio maior”45.

Essas objeções ecoaram, após décadas, na jurisprudência hoje prevalecente. E isso sem embargo de o art. 1°, caput, da Lei 8.009/1990 induzir claramente o contrário, exigindo que “nele residam” pais ou filhos. Não é condição da impenhorabilidade, portanto, que a família resida no único imóvel destinado à residência46. Neste sentido, a 3ª Turma do STJ admitiu a impenhorabilidade “do imóvel pertencente ao devedor que, porém, não lhe serve de moradia”47, porque alugou outro, para idêntico fim48. E outro precedente acentuou que a renda destinava-se à subsistência da família49.

Em relação ao segundo aspecto, o caráter permanente da ocupação, parece flagrante que a Lei 8.009/1990 autoriza a penhora dos imóveis de lazer, a exemplo das casas de veraneio, na praia, na montanha, na lagoa e no campo, porque moradia transitória. Por óbvio, aposentando-se o devedor, e mudando a residência para a casa de veraneio, esta se transforma na moradia permanente, que é impenhorável. Essa interpretação beneficia o devedor. Admitindo-se que a casa de veraneio seja impenhorável, que exista outra residência no lugar de trabalho habitual, então aplicar-se-ia o art. 5°, parágrafo único, da Lei 8.009/1990, das duas ficando protegida a de menor valor, em geral a casa de veraneio.

43 SERPA LOPES. Tratado dos registros públicos, v.2, n.252, p.225-226. 44 PONTES DE MIRANDA. Tratado de direito privado, v.14, § 1.592, p.95. 45 CARVALHO SANTOS, J. M. de. Código civil brasileiro interpretado, v.2, p.195. 46 1ª T. do STJ, AgRg no Ag 902.919-PE, 03.06.2008, Rel. Min. Luiz Fux, DJE 19.06.2008. 47 3ª T. do STJ, REsp 299.652-SP, 12.08.2001, Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, DJU

01.10.2001, p.211. 48 No mesmo sentido, 4ª T. do STJ, REsp 243.285-RS, 26.08.2008, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, DJE

15.09.2008. 49 3ª T. do STJ, REsp 439.920-SP, 11.11.2003, Rel. Min. Castro Filho, DJU 19.12.2003, p. 280.

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A impenhorabilidade abrange o “único” imóvel residencial. Às vezes, todavia, há mais de uma morada – a lei chega a conceber a existência de “várias” –, em virtude de situações corriqueiras. Por exemplo, motivos profissionais compeliram a família a se dividir em duas cidades diferentes, a mulher no interior, oficiando como magistrada, o marido na capital, atuando como advogado; a união de duas pessoas, acompanhadas de prole de casamentos anteriores, recomendou a prudente segregação temporária dos respectivos filhos em moradas diferentes50. Nesses casos, como já assinalado, a impenhorabilidade tutela a residência de menor valor, salvo o registro de bem de família (art. 5º, parágrafo único)51. Se existem dois bens gravados com a cláusula de impenhorabilidade, decidiu a 3ª Turma do STJ, não se harmoniza com o dispositivo declarar impenhorável outro imóvel, no qual reside o executado52. É possível identificar, nesses casos, a existência de duas entidades familiares, motivo por que há quem defenda a impenhorabilidade dos dois imóveis53; porém, neste caso prepondera o art. 5°, caput, da Lei 8.009/1990.

Essa diversidade de moradas não se confunde com o fato de o obrigado adquirir dois apartamentos contíguos e interligá-los, formando unidade para o uso da mesma família. Considera-se o todo, na hipótese, como única residência familiar54.

Família numerosa, necessidades especiais de alguma pessoa, a comodidade e outros fatores determinaram a reunião das unidades antes separadas e, nada obstante a separação formal no álbum imobiliário, impõe-se respeitar a situação de fato. Tratando-se de residência unifamiliar, porém, a jurisprudência do STJ seguiu rumos diversos. Dessa maneira, localizadas em terreno contíguo, dotado de matrícula independente no registro de imóveis, a edícula, a churrasqueira e a piscina, é possível penhorá-las

50 Vide, a respeito, a defesa da interpretação restritiva feita por MAIDAME, Márcio Manoel.

Impenhorabilidade e direitos do credor, n.7.1.6.3, p.222-223. 51 Não é exata, portanto, a conclusão de COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito civil, v.5, p.19,

segundo o qual, após apresentar alguns cálculos para estabelecer o patrimônio líquido de pessoa que disponha de quatro imóveis (A, B, C e D), sendo que a família reside no imóvel A, e, assim, indicar que tanto C quanto D situar-se-iam dentro do percentual máximo, assinala que “não compensa clausular o imóvel em que reside porque este já está a salvo de penhoras, em razão da Lei nº 8.009/90”. Ao contrário, o imóvel A passaria a não gozar da proteção legal, haja vista o disposto no art. 5°, parágrafo único.

52 3ª T. do STJ, REsp 831.811-SP, 13.05.2008, Rel. Min. Ari Pargendler, DJE 05.08.2008. 53 VASCONCELOS, Rita de Cássia Corrêa de. A impenhorabilidade do bem de família, n.3.3, p.139. 54 CREDIE, Ricardo Arcoverde. Bem de família, n.6.10, p.53. Em sentido contrário, MARMITT, Arnaldo.

Bem de família, p.67.

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juntamente com o terreno autônomo, sem prejuízo à parte destinada à morada55. Em outras palavras, imóveis diferentes, embora lindeiros, comportam desmembramento para fins de penhora56.

Importa realçar que à Lei 8.009/1990 não interessa a qualidade e o valor da moradia. É o que rezava, na redação da Lei 6.742/1979, o art. 19 do Decreto-Lei 3.200/1941. O art. 1.711, caput, do Código Civil de 2002, porém, limitou o valor dos bens subtraídos voluntariamente à execução, incluindo o imóvel, a um terço do patrimônio líquido existente por ocasião do ato. Nada obstante, a impenhorabilidade da residência familiar, de acordo com a Lei 8.009/1990, alcança tanto o casebre quanto o palácio.

Não faltaram sugestões para distinguir a qualidade dos imóveis, penhorando o palácio e protegendo o prédio comum, empregando o juiz o princípio da proporcionalidade57. Nenhum eco logrou esse entendimento na jurisprudência dos tribunais superiores. Aliás, o art. 4°, caput, da Lei 8.009/1990 confirma, indiretamente, a proteção às construções suntuosas, reprimindo tão só a aquisição de “imóvel mais valioso” pelo executado insolvente, relativamente ao preexistente, com o fito de transferir para ele a residência familiar, e, assim, usufruir a proteção da impenhorabilidade. O veto oposto ao parágrafo único do art. 650, constante do projeto de que resultou a Lei 11.382/2006, manteve a situação inalterada58.

O art. 1°, caput, da Lei 8.009/1990 exige que o imóvel seja “próprio”, do casal ou da entidade familiar. A regra pressupõe o domínio. A simples posse de imóvel, revestida de animus dominis, já assegura a impenhorabilidade59. Resguarda-se a finalidade da lei60. E, de resto, a exibição de título diverso, a exemplo de promessa de compra e venda sem registro, de modo algum afasta a impenhorabilidade. Entendimento contrário significaria que o imóvel, objeto do compromisso, não integra o

55 3ª T. do STJ, AgRg no REsp 1.084.683-MS, 18.12.2008, Rel. Min. Sidnei Beneti, DJE 11.02.2009. 56 3ª T. do STJ, REsp 624.355-SC, 07.05.2007, Rel. Min. Humberto Gomes de Barros, DJU 28.05.2007,

p.322. 57 GUERRA FILHO, Willis Santiago. Responsabilidade patrimonial..., p.180. No mesmo sentido, MEDINA,

José Miguel Garcia. Notas sobre a penhora, após as reformas, n.4.2.1, p.252. 58 No entanto, MAIDAME, Márcio Manoel. Impenhorabilidade e direitos do credor, n.7.1.6.4, p. 229,

sugere que o credor requeira a insolvência, invista-se na função de administrador, e, nesta qualidade, aliene o imóvel suntuoso, adquirindo outro, de menor valor, para acomodar a família do executado.

59 2ª T. do STJ, REsp 949.499-RS, 05.08.2008, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, DJE 22.08.2008. 60 RITONDO, Domingo Pietrangelo. Bem de família, p.68.

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patrimônio do executado (art. 591 do CPC). Já os prédios ocupados em razão de contrato real (locação e comodato) têm só o conteúdo protegido (art. 2°, parágrafo único, da Lei 8.009/1990) e, de resto, o domínio mostrar-se-ia impenhorável por dívida do locatário. O usufruto com finalidade residencial é impenhorável61.

Por outro lado, a suficiência da posse com ânimo de dono soluciona o problema do imóvel com dupla função (comercial e residencial) e registro único, o primeiro andar comercial e o segundo, residencial: penhora-se o imóvel62, resguardando a posse deste último piso à família, idêntica solução preconizada para a sede de moradia do executado conforme nas grandes propriedades rurais (art. 4º, § 2º, da Lei 8.009/1990). A jurisprudência do STJ admite, todavia, a impenhorabilidade total do imóvel de uso misto63.

Do âmbito de incidência da Lei 8.009/1990 escapa o espaço-estacionamento (“residência” do automóvel)64, individualizado no condomínio ou registrado autonomamente, conforme estimou a 2ª Turma do STJ65. Em igual sentido, de resto, decidiu a 4ª Turma do STJ66. Não se pode considerar, realmente, a “residência” do automóvel da família como integrante do mínimo existencial67. “Independentemente da natureza jurídica que a vaga de garagem assume, ou como é documentada sua existência em determinado empreendimento, o certo é que a lei a considera sempre bem penhorável, como se pode apreender da regra prescrita no parágrafo único do art. 681 e no art. 702, caput, do CPC, sobre a possibilidade de fracionamento do imóvel” – é a feliz síntese da questão68.

3.2 Impenhorabilidade do Conteúdo

Além do solo e respectiva acessão física, a impenhorabilidade compreende o seguinte: a) as plantações, a exemplo do herbário e da sementeira; b) as benfeitorias de qualquer natureza (v.g., a edícula e piscina); c) os equipamentos (v.g., as instalações de ar condicionado central); e d) móveis e alfaias (v.g., camas, mesas e cadeiras). Os móveis que

61 CREDIE, Ricardo Arcoverde. Bem de família, n.6.3, p.45. 62 Em sentido contrário, CREDIE, Ricardo Arcoverde. Bem de família, n.6.8, p.49-50. 63 2ª T. do STJ, REsp 422.332-SP, 06.05.2004, Relª Min. Eliana Calmon, DJU 23.08.2004, p.170. 64 Também contrário, CREDIE, Ricardo Arcoverde. Bem de família, n.6.9, p.51. 65 2ª T. do STJ, REsp 32.284-RS, 23.05.1996, Rel. Min. Ari Pargendler, DJU 17.06.1996, p.21.471. 66 4ª T. do STJ, REsp 541.696, 09.09.2003, Rel. Min. Cesar Asfor Rocha, DJU 28.10.2003, p.295. 67 REDONDO-LOJO. Penhora, n.7.4.3, p.126. 68 MAIDAME, Márcio Manoel. Impenhorabilidade e direitos do credor, n.7.1.6.8, p.240.

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guarneçam a residência alugada pelo obrigado também se mostram impenhoráveis (art. 2°, parágrafo único, da Lei 8.009/1990).

Esses bens hão de estar “quitados”, conforme a parte final do art. 1°, parágrafo único, e o art. 2°, parágrafo único, da Lei 8.009/1990. Comportarão penhora, a contrario sensu, na execução para haver o respectivo preço. Dispõe claramente neste sentido, de resto, o art. 649, § 1°, do CPC.

Consoante o art. 2°, caput, da Lei 8.009/1990, revelam-se penhoráveis “veículos de transporte, obras de arte e adornos suntuosos”.

As duas primeiras classes não suscitaram maiores controvérsias. No que tange aos veículos, não importam a antiguidade – o veículo de coleção, como o Maybach 57, revela-se penhorável –, o tipo (de trabalho ou de passeio), a categoria e a respectiva tração, mecânica (v.g., o automóvel de passeio), animal (v.g., a charrete) ou humana (v.g., a bicicleta). A classe abarca, enfim, os meios exaustivamente contemplados no art. 96 da Lei 9.503/1997 (Código de Trânsito Brasileiro). Porém, há uma condição suplementar: o veículo não pode ser útil à profissão (e, portanto, a exceção abrange pessoas naturais) do executado. Os veículos úteis ao exercício da profissão (por exemplo, o automóvel do representante comercial) são impenhoráveis por força do art. 649, V69. Relativamente às obras de arte, os quadros e esculturas exemplificam perfeitamente o gabarito legal. Tais bens despertam, e cada vez mais, intenso interesse dos exequentes.

A noção de “adorno suntuoso”, objeto de grave dissídio70, porque exceção aos bens domésticos protegidos no art. 1°, parágrafo único, convolou-se na de bens domésticos que preencham, simultaneamente, dois requisitos a) elevado valor; e b) excedam as “necessidades comuns correspondentes a um médio padrão de vida”71. A engenhosa fórmula do art. 650, II, do CPC, na redação da Lei 11.382/2006, traduziu com nitidez o critério da essencialidade do bem, retratado, por exemplo, na forte tendência de reputar penhoráveis bens da mesma espécie, resguardando um deles como integrante do mínimo existencial72.

69 MARMITT, Arnaldo. Bem de família, p.56. 70 Ultimado por uma impenhorabilidade muito larga e generosa, conforme CRUZ, José Raimundo

Gomes da. O processo de execução e a reforma do código de processo civil, n.13, p.115. 71 Segundo BUENO, Cássio Scarpinella. Curso sistematizado de direito processual civil, v. 3, p. 224, o art.

649, II, do CPC restringiu o disposto no art. 2°, parágrafo único, da Lei 8.009/1990; todavia, o texto defende ideia diferente, identificando a harmonia das regras.

72 ZILVETI, Ana Marta Cattani de Barros. Bem de família, p.280-281.

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Todavia, jamais debelará o litígio definitivamente, porquanto subsistirá a impossibilidade de traçar modelos abstratos e rígidos. É o que ensina, fitando o direito espanhol, CACHÓN CADENAS: “En esta materia, el casuismo resulta poco menos que inevitable”73. Por exemplo, declaram-se penhoráveis o piano utilizado em saraus domésticos (não, porém, o instrumento do músico profissional, por força do art. 649, V); a câmara filmadora, que o executado utiliza, na condição de cineasta amador, durante as férias e para imortalizar as brincadeiras dos rebentos; os móveis antigos; e, genericamente, todos os bens que excedam o padrão de vida médio correspondente à classe social do executado74. Fora daí, a despeito da impressão inicial desfavorável, indevidamente reputando-os supérfluos75, os equipamentos domésticos, sejam predominantemente elétricos (v.g., máquina de lavar roupa), sejam basicamente eletrônicos (v.g., computador pessoal) – esses equipamentos propagaram-se das casas da classe média às classes menos favorecidas –, são impenhoráveis. Eles compõem, sem dúvida, as necessidades comuns do médio padrão de vida a que alude o art. 650, II, do CPC.

É preciso atentar, ainda, para o caráter geral das disposições legais acerca da impenhorabilidade. Elas se aplicam, indiferentemente, a qualquer execução civil, fiscal, previdenciária ou trabalhista (art. 3°, caput, da Lei 8.009/1990). No entanto, a interpretação não deve ser idêntica, prescindindo o órgão judiciário da análise de todos os valores envolvidos e da correta ponderação dos interesses. Assim, um televisor colorido talvez não corresponda às necessidades de um médio padrão de vida de alguém executado perante o Juizado Especial Comum, considerando a condição do exequente, a despeito de se mostrar impenhorável na execução movida pela empresa de banco.

Finalmente, impõe-se uma observação: o imóvel alienado fraudulentamente, ainda que sirva de residência ao executado e à sua família, não se beneficia da impenhorabilidade76.

73 CADENAS, Manuel-Jesús Chacón. El embargo, p.330. 74 Idem, p.328. 75 MARMITT, Arnaldo. Bem de família, p.52. 76 3ª T. do STJ, REsp 329.547-SP, 02.05.2002, Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, DJU

24.06.2002, p. 297. Na doutrina, ZILVETI, Ana Marta Cattani de Barros. Bem de família, p.286.

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4 – BENEFICIÁRIOS DA IMPENHORABILIDADE: A INFLUÊNCIA

DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

O art. 1°, caput, da Lei 8.009/1990 declara impenhorável o “imóvel próprio do casal ou da entidade familiar”, em razão de dívida contraída “pelos cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele residam”. É preciso ter em mente que a impenhorabilidade da residência familiar somente assume relevo se o devedor é proprietário do imóvel. Se a dívida é do filho maior e capaz, por exemplo, e a residência pertence aos pais, o imóvel não responde pela dívida porque não integra o patrimônio do devedor, nos termos do art. 591, fora do caso em que os pais respondem pelas dívidas dos filhos (art. 932, I, do Código Civil de 2002), hipótese em que se tornarão “devedores”.

Resulta claro do art. 1°, caput, que a impenhorabilidade protege o prédio de propriedade e habitado pelo casal. Este aspecto não oferece dúvida. Acrescenta a regra, porém, o prédio da entidade familiar. O art. 226, § 3°, da CF/1988 reconhece a união estável, para fins de proteção do Estado, como entidade familiar. E o art. 226, § 4°, da CF/1988 considera “a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes”, que é a família monoparental77, nesta mesma categoria. Em tais hipóteses, portanto, incide diretamente a Lei 8.009/1990.

Esse campo de atuação logo pareceu insuficiente, deixando a descoberto diversas situações compatíveis com a noção contemporânea de família. Por exemplo, dois irmãos que vivem juntos não constituem a “entidade familiar” aludida na regra constitucional, porque lhe faltaria a presença de um dos pais78. De modo mais geral, “estariam excluídos viúvos, irmãos que vivem juntos, pessoas separadas sem filhos, avós que vivem com netos, solteiros...”79 Nada obstante, irmãos que convivem na mesma morada80, por qualquer razão (v.g., morte dos pais), merecem a tutela da impenhorabilidade da respectiva residência81. Estranhável se mostraria desampará-los nesta conjuntura difícil.

77 CREDIE, Ricardo Arcoverde. Bem de família, n.5, p.28. 78 No sentido da penhorabilidade, neste caso, CZAJKOWSKI, Rainer. A impenhorabilidade do bem de

família, p.47. 79 ZILVETE, Ana Marta Cattani de Barros. Bem de família, p.288. 80 No sentido da impenhorabilidade, VASCONCELOS, Rita de Cássia Corrêa de. A impenhorabilidade do

bem de família, n.3.4, p.140. 81 4ª T. do STJ, REsp 57.606-7-MG, 11.04.1995, Rel. Min. Fontes de Alencar, RJSTJ 81/306.

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Na realidade, a composição familiar tutelada na regra abrange o casal unido pelo matrimônio; a união estável e a concubinária; a comunidade monoparental; a coabitação de parentes e até de pessoas sem laços de parentesco; as uniões homossexuais, com ou sem crianças; a comunidade formada com filhos de criação, sem vínculo jurídico formal82. Todos formam “entidade familiar” perante a Lei 8.009/1990. No entanto, por maior que seja o elastério à regra, os que vivem sozinhos, optando pela condição de celibatários, e, assim, não tencionando formar qualquer tipo de família, no presente ou no futuro, restariam fora do abrigo da impenhorabilidade atribuída à “residência familiar”83. A primeira impressão é a de que a lei não protegeu qualquer residência, mas a habitada por mais de uma pessoa84.

Essa rígida orientação cedeu perante pessoas que, residindo sozinhas, anteriormente constituíram família: a 5ª Turma do STJ reconheceu a impenhorabilidade da residência da separada85, e a 3ª Turma do STJ, a da viúva86. Por sinal, o art. 1.722, caput, assegura que a dissolução da sociedade conjugal não extingue a constituição do bem de família87, robustecendo o entendimento que também não atinge a impenhorabilidade da residência familiar prevista no art. 1°, caput, da Lei 8.009/1990.

Finalmente, o princípio da dignidade da pessoa humana bem como o fato de o próprio direito à moradia constituir um direito fundamental88 conduziram à evolução da jurisprudência, no sentido de tornar impenhorável, tout court, a residência do(a) devedor(a) solteiro(a)89. Por exemplo, proclamou a 3ª Turma do STJ: “O imóvel que serve de residência para pessoa solteira está sob a proteção da Lei 8.009, de 1990, ainda que ela more sozinha”90.

82 RITONDO, Domingo Pietrangelo. Bem de família, p.12. 83 CZAJKOWSKI, Rainer. A impenhorabilidade do bem de família, p.46; HERTEL, Daniel Roberto. Curso de

execução civil, n.18.5, p.249. 84 4ª T. do STJ, REsp 67.112-4-RJ, 29.08.1995, Rel. Min. Barros Monteiro, DJU 23.10.1995, p.35.681. 85 5ª T. do STJ, REsp 205.170-SP, 07.12.1999, Rel. Min. Gilson Dipp, RT 777/235. 86 3ª T. do STJ, REsp 253.854-SP, 21.09.2002, Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, DJU

06.11.2002, p.202. Posteriormente, 3ª T. do STJ, REsp 276.004-SP, 20.03.2001, Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, RJSTJ 153/140.

87 O art. 1.611, § 1°, do Código Civil de 1916 já assegurava ao viúvo o direito à habitação da única casa própria, consoante assinala CREDIE, Ricardo Arcoverde. Bem de família, n.5.1, p.30-31.

88 SOUZA, Sérgio Iglesias Nunes de. Direito à moradia e de habitação, p.135. 89 Vide COELHO, Helenira Bachi. Da impenhorabilidade do imóvel de residência do celibatário, n.17.3,

p.271-276. 90 3ª T. do STJ, REsp 412.536-SP, Rel. Min. Ari Pargendler, DJU 16.06.2003, p. 334.

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Objeta-se que a interpretação extensiva das regras de impenhorabilidade não se harmoniza com o conceito de execução equilibrada91. Todavia, no caso da residência familiar, sobrelevam-se os valores constitucionais, e, de toda sorte, os precedentes revelam que a proteção é outorgada por conta da futura família que o celibatário constituirá “ou em função do fato que é membro de uma família (ainda que não viva com ela)”92.

Essas diretrizes consolidaram-se na Súmula do STJ, n° 364, que reza: “O conceito de impenhorabilidade do bem de família abrange também o imóvel pertencente a pessoas solteiras, separadas e viúvas”.

À luz do art. 1°, caput, da Lei 8.009/1990, o imóvel protegido é o que integra o patrimônio da pessoa natural, e não qualquer imóvel com finalidade residencial. Assim, o imóvel pertencente a uma pessoa jurídica, embora destinado à residência da família do sócio, mostra-se penhorável por dívida do proprietário93. Também aqui ocorreu evolução no entendimento jurisprudencial. A 2ª Turma do STJ declarou impenhorável “o único imóvel onde reside a família do sócio, apesar de ser da propriedade da empresa executada, tendo em vista que a empresa é eminentemente familiar”94.

O reconhecimento da impenhorabilidade do celibatário evitou o exame frontal da questão relativa às uniões homossexuais. Inicialmente, exceto no caso de um dos integrantes da união homossexual viver com algum filho, predominava a rejeição à impenhorabilidade95. Todavia, ainda que não haja “família” à luz da CF/1988, a convivência de pessoas de mesmo sexo importa a impenhorabilidade da respectiva residência, em virtude da aplicação do princípio da igualdade e da proibição de discriminações em virtude da orientação sexual96. Eventual restrição não se justificaria, ademais, ante a tendência de reconhecer a impenhorabilidade da residência de pessoas solteiras.

91 WAMBIER, Luiz Rodrigues. A crise da execução e alguns fatores que contribuem para a sua intensificação

– Propostas para minimizá-la, n.4, p.141. 92 ZILVETI, Ana Marta Cattani de Barros. Bem de família, p.288. 93 3ª T. do STJ, REsp 412.536, 03.10.2002, Rel. Min. Ari Pargendler, DJU 16.06.2003, p.334. 94 2ª T. do STJ, REsp 1.024.394-RS, 04.03.2008, Rel. Min. Humberto Martins, DJE 14.03.2008. 95 CREDIE, Ricardo Arcoverde. Bem de família, n.5.2, p.34. 96 VASCONCELOS, Rita de Cássia Corrêa de. A impenhorabilidade do bem de família e as novas entidades

familiares, n.3.5.2, p.151.

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Em caso de sucessão causa mortis, a impenhorabilidade subsistirá, beneficiando os dependentes que já residiam no local.

5 – EXCEÇÕES À IMPENHORABILIDADE DA RESIDÊNCIA FAMILIAR

A impenhorabilidade da residência familiar isenta de execução o prédio e os demais bens protegidos contra pretensões a executar variadas. O art. 1°, caput, da Lei 8.009/1990 menciona “qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza”. E o art. 3°, caput, alude à “execução civil, fiscal, previdenciária, trabalhista ou de outra natureza”.

A técnica legislativa ficou aquém de seu ápice na elaboração da Lei 8.009/1990. É incomum mencionar o “tipo” de dívida. Eventual diferença entre as dívidas civis e comerciais perdeu interesse e utilidade a partir do Decreto 763, de 19.09.1890. Este diploma mandou aplicar às causas civis a maior parte das disposições do célebre “Regulamento” 737, de 23.11.1850 – hoje considerado decreto –, relativo ao processo comercial, tornando-se “o veículo com que o direito comum se infiltrou em toda a legislação processual, da fase republicana anterior” ao primeiro código unitário (1939)97. E, finalmente, a genérica alusão a dívidas “de outra natureza”, deixando a explicitação indeterminada, evidencia a tibieza do legislador para delimitar clara e exaustivamente os créditos.

Como quer que seja, as regras demonstram que a impenhorabilidade da residência familiar tem estatura geral, imunizando o respectivo objeto contra qualquer execução, independentemente da natureza do crédito, salvo os casos expressamente arrolados nos incisos do art. 3° da Lei 8.009/1990. O fato de a residência familiar comportar constrição, em algumas hipóteses, apresenta uma consequência segura. Cuida-se de impenhorabilidade relativa, conforme a classificação usual desses limites à responsabilidade patrimonial (art. 591, in fine) no direito brasileiro, e não impenhorabilidade absoluta – geral e irrestrita98. As exceções à impenhorabilidade, inspiradas por fatores heterogêneos, exigem análise atenta.

Por óbvio, a residência familiar, cujo domínio pertence a um dos integrantes da família, mostrar-se-á penhorável na execução contra o proprietário (ou, como já assinalado, o possuidor, versando o direito à 97 MARQUES, José Frederico. Instituições, v.1, n.56, p.119. 98 ASSIS, Araken de. Manual da execução, n.38, p.230-231.

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posse), considerando o princípio da responsabilidade patrimonial (art. 591). O art. 1°, caput, da Lei 8.009/1990 menciona a dívida contraída “pelos cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários” por tal motivo. Em outras palavras, se a dívida é do neto, mas o domínio da residência pertence ao avô, ela não poderá ser penhorada, simplesmente porque o avô não responde pelas dívidas do neto maior e capaz.

O preenchimento dos elementos de incidência dos incisos que compõem o art. 3° é questão de fato. Dependerá da prova, por exemplo, a condição de “trabalhador residencial”, no caso do inciso I, entre outras questões de sumo relevo. O ônus da prova é do exequente.

5.1 Crédito dos Trabalhadores Residenciais

O art. 3°, I, pré-exclui a impenhorabilidade da residência familiar na execução “dos créditos de trabalhadores da própria residência e das respectivas contribuições previdenciárias”.

A categoria “trabalhadores da própria residência” abrange, em primeiro lugar, os empregados domésticos – cozinheiro(a)(s), faxineiro(a)(s), governanta(s) mordomo(s), babá(s), copeiro(a)(s), jardineiro(a)(s), vigia(s), zelador(es)(as), motorista(s), acompanhante(s) e afins. Não importa a formalização da relação de emprego. Se há, ou não, relação de emprego, a questão resolver-se-á no âmbito da reclamatória trabalhista. É por essa razão que o inciso relaciona o crédito trabalhista com o da contribuição previdenciária. Em geral, não reconhecido o vínculo pelo empregador, tampouco ocorreu o recolhimento das contribuições previdenciárias. Importará, pois, a realização do trabalho, no todo ou em parte, na residência familiar. O motorista particular não permanece na residência, constantemente, porque conduz os familiares em todas as direções, e o vigia nem sequer entra na residência. Mas nela trabalham, para os efeitos da exceção examinada.

A par das pessoas que entretêm relação de emprego com o proprietário da residência familiar, há numerosas outras que prestam trabalho eventual, de maneira autônoma, ou realizaram tarefas episódicas. Por exemplo: pedreiro(s), pintor(es), marceneiro(s), eletricista(s), encanador(es) e afins. Também se quadram na exceção do art. 3°, I, da Lei

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8.009/1990. Entendia-se neste sentido, predominantemente99, e o tratamento conjunto mais se justifica, agora, com a competência da Justiça do Trabalho para processar e julgar ambos os litígios, a teor da vigente redação do art. 114, caput, da CF/1988. Por esse motivo, não mais interessa que o trabalhador eventual seja pessoa natural ou pessoa jurídica100. O inciso não distingue a respeito.

Nada obstante, há prestações de trabalho que não autorizam a penhora da residência familiar, faltando o nexo exigido no art. 3°, I. Não é objeto de excussão sobre a residência familiar o crédito do trabalhador da empresa insolvente do proprietário do imóvel, sem embargo da desconsideração da pessoa jurídica. Empregados do condomínio, a exemplo do zelador e do manobrista, não podem penhorar, na execução do seu crédito trabalhista, as unidades autônomas101. Se o imóvel tem uso misto, residencial e comercial, cumpre distinguir entre os trabalhadores da residência e os da empresa102.

5.2 Crédito do Financiador da Residência

É passível de penhora a residência familiar na execução do crédito concedido, por instituição financeira ou não, à aquisição e à construção do prédio, “no limite dos créditos e acréscimos constituídos em função do respectivo contrato” (art. 3°, II).

Por identidade de motivos, o inciso II do art. 3° abrange as parcelas em que se dividiu o preço e o crédito concedido para reforma ou ampliação do prédio, porque “a lei não pode privar de ressarcimento os credores que proporcionaram a valorização do imóvel e até sua subsistência, como no caso das benfeitorias necessárias”103.

5.3 Crédito Alimentar

A residência familiar é penhorável na execução de alimentos. O crédito dessa natureza predomina, no plano axiológico, em relação ao

99 No sentido do texto, MARMITT, Arnaldo. Bem de família, p.77, e RITONDO, Domingo Pietrangelo.

Bem de família, p.78-79. Em sentido contrário, VASCONCELOS, Rita de Cássia Corrêa de. A impenhorabilidade do bem de família, p.61.

100 Em sentido contrário, focando o trabalhado terceirizado, CREDIE, Ricardo Arcoverde. Bem de família, n.9.4, p.68.

101 VASCONCELOS, Rita de Cássia Corrêa de. A impenhorabilidade do bem de família, p. 61. 102 CREDIE, Ricardo Arcoverde. Bem de família, n.9.4, p.69. 103 RITONDO, Domingo Pietrangelo. Bem de família, p. 79.

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direito à moradia. Não interessa, ademais, a espécie de obrigação alimentar. Em particular, admite-se a penhora na execução de alimentos indenizativos, devidos pelo proprietário por dano à pessoa (morte ou lesão)104. A 3ª Turma do STJ admitiu a constrição da residência na execução deste crédito105.

5.4 Crédito Tributário, Preço Público e Despesas Condominiais

Não se reveste de impenhorabilidade a residência familiar perante o crédito tributário que tenha por fato gerador a propriedade ou a posse do prédio e respectivo terreno. O art. 3°, IV, menciona, expressamente, o imposto predial e territorial, bem como taxas. Impostos sem relação com a residência (v.g., imposto de renda) não assumem qualquer relevo na espécie106.

A palavra “taxa” há de ser entendida no sentido técnico e, também, no vulgar. Assim, o crédito resultante da “taxa” de água, em geral preço público, pode ser executado através da penhora e da alienação da residência familiar.

As contribuições a que se refere o art. 3°, IV, envolvem as devidas à previdência; por exemplo, em virtude da construção. E convém não olvidar a contribuição para o custeio da iluminação pública, cobrada juntamente com o consumo de energia elétrica (art. 149-A, parágrafo único, da CF/1988). Mas, por exemplo, o crédito de foro ou de laudêmio, devidos à União, não se inserem na exceção, porque créditos não tributários107.

Entram na classe das “taxas”, no sentido vulgar, porque devidas “em função do imóvel familiar”, as despesas de condomínio. É expresso, a esse respeito, o art. 1.715, caput, parte final, do Código Civil de 2002, cuja redação é bem superior à da Lei 8.009/1990108. Realmente, tornar a unidade autônoma impenhorável por dívidas contraídas pela necessidade de

104 CZAJKOWSKI, Rainer. A impenhorabilidade do bem de família, p.107; CREDIE, Ricardo Arcoverde. Bem

de família, n.9.6, p.71. 105 3ª T. do STJ, REsp 437.144-RS, 17.10.2002, Rel. Min. Castro Filho, DJU 10.11.2003, p. 186. 106 RITONDO, Domingo Pietrangelo. Bem de família, p.81. 107 Em sentido contrário, CREDIE, Ricardo Arcoverde. Bem de família, n.9.7, p.73. 108 Segundo COUTO FILHO, Reinaldo de Souza. Dívidas condominiais e bem de família no sistema jurídico

brasileiro, p. 56, o emprego da expressão correta na lei civil “afasta a folga interpretativa dos órgãos do Poder Judiciário, afirmando que a expressão que designa os gastos feitos pelo condomínio... jamais poderão ser tais gastos confundidos com qualquer figura do Direito Tributário, verbi gratia, taxas e contribuições”.

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administrar o condomínio, apesar da lacunosa dicção do art. 3º, IV, da Lei 8.009/1990, implicaria transformar os demais condôminos em arrimo da moradia do inadimplente. Neste exagero incorreu, todavia, a 4ª Turma do STJ109. Em seguida, mudou a orientação, admitindo a penhora110. O argumento que não cabe ao órgão judiciário outorgar interpretação extensiva à norma111, além de não impugnar o fundamento da penhorabilidade, impediria, por exemplo, a tutela do devedor celibatário. Conforme percebeu o STF, exigindo a solidariedade do inadimplente, reconhecer a impenhorabilidade da residência de um condômino atentaria contra a subsistência individual e familiar, e, portanto, ao princípio da dignidade da pessoa humana dos demais condôminos112.

5.5 Crédito Hipotecário

O inciso V do art. 3° autoriza a penhora na execução de hipoteca sobre o imóvel “oferecido como garantia real pelo casal ou pela entidade familiar”.

O inciso representa expressiva manifestação do princípio da disponibilidade da impenhorabilidade. Nada impede que o obrigado aliene a residência familiar para solver dívidas. Neste particular, a residência se distingue do bem de família, que é inalienável. Impenhorável que seja a residência, o proprietário pode realizar negócios jurídicos de disposição, e a regra cogita, entre outros, da instituição de gravame real. É lícito, portanto, constituir hipoteca e predestinar a residência da própria família à execução, como decidiu a 3ª Turma do STJ113.

Todavia, calha assinalar que alguns sistemas jurídicos, incluindo o do Texas, proibiram tanto a alienação do bem de família quanto a constituição de hipoteca, na suposição que “l’hypothèque était considérée jadis comme plus dangereuse, au point de vue economique et social, que l’aliénation directe”114. Ao invés, a Lei 8.009/1990 autoriza ambos os negócios de disposição.

109 4ª T. do STJ, REsp 51.156-SP, 23.08.1994, Rel. Min. Fontes de Alencar, RJSTJ 67/488. 110 4ª T. do STJ, REsp 150.379-MG, 15.12.1997, Rel. Min. Barros Monteiro, EJSTJ 20/196. 111 Neste sentido, COUTO FILHO, Reinaldo de Souza. Dívidas condominiais e bem de família no sistema

jurídico brasileiro, p.113-119. 112 2ª T. do STF, RE 439.003-SP, 06.02.2007, Rel. Min. Eros Grau, DJU 02.03.2007, p.46. 113 3ª T. do STJ, Ag 437.447-GO, 26.08.2002, Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, DJU

25.11.2002, p.233. 114 BUREAU, Paul. Le homestead, p.121.

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O art. 655, § 1°, do CPC tornou relativa a predestinação do objeto do gravame real na execução do crédito garantido. Segundo o parágrafo, a penhora recairá preferencialmente sobre o bem gravado. Se o executado pagou parcialmente a dívida, por exemplo, e há outros bens suficientes e livres, mostra-se lícito ao órgão judiciário ordenar a penhora sobre outro bem, sem gravame, livrando a residência familiar da constrição.

5.6 Crédito Resultante da Sentença Penal Condenatória

Concebe-se a aquisição da residência com o produto de crime (rectius: infração penal). O art. 3°, VI, da Lei 8.009/1990 declara penhorável a residência familiar neste caso, e no da “execução de sentença penal condenatória a ressarcimento, indenização ou perdimento de bens”.

Este dispositivo interpreta-se à luz do art. 5º, XLV, da CF/1988 e significa que, sobrevindo sentença repressiva, dotada de efeito anexo extrapenal condenatório, e constituindo título judicial (art. 63 do CPP e art. 475-N, II, do CPC), a residência familiar responderá pela dívida. Optando o lesado, porém, pela ação civil de reparação de dano, já não se aplicará essa exceção.

5.7 Crédito Decorrente de Fiança Locatícia

A residência familiar responderá pela obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação (art. 3°, VII, da Lei 8.009/1990). É preciso que a obrigação se constitua posteriormente à vigência da Lei 8.245/1991, que criou o inc. VII, em virtude da tradicional regra tempus regit actum. No entanto, a 5ª Turma do STJ aplicou a norma sem preservar “situação pré-constituída ou direito adquirido”115.

O STF declarou constitucional o art. 3°, VII, da Lei 8.009/1990116. Apesar desse pronunciamento, o assunto provoca cizânia doutrinária117. Vários argumentos assoalham o terreno da inconstitucionalidade, desde o mínimo existencial – a moradia é direito social, inserido no art. 6° da

115 5ª T. do STJ, REsp 418.730-SE, 19.11.2002, Rel. Min. José Arnaldo da Fonseca, DJU 16.12.2002,

p.368. 116 Pleno do STF, RE 407.688-SP, 08.02.2006, Rel. Min. Cezar Peluso, DJU 06.10.2006, p.880. 117 A favor da constitucionalidade da regra, tratando-se de locação residencial, SOUZA, Sérgio

Iglesias Nunes de. Direito à moradia e de habitação, n.10.1, p.256-272; contra, CARLI, Ana Alice de. Bem de família do fiador e o direito humano fundamental à moradia, n.1.4, p.114-132; RITONDO, Domingo Pietrangelo. Bem de família, p.85-99.

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CF/1988 – até o tratamento desigual conferido ao locatário e ao fiador118. E com efeito, a residência familiar do locatário, adquirida antes, no curso ou após o término da locação, permanecerá impenhorável, enquanto a do fiador responderá pela dívida alheia119.

Nada obstante, esse último argumento é pouco persuasivo. O credor realizou o negócio com o afiançado considerando, justamente, não dispor da respectiva residência para penhora. Em contrapartida, o credor exigiu a garantia, sem a qual não contrataria a locação, para contar com a penhorabilidade da residência do fiador120. São situações bem diferentes, insuscetíveis de equiparação a contrario sensu. Além disso, o direito à moradia não é absoluto, mas disponível, e uma das exceções em que atua a liberdade de contratar e de dispor da garantia legal consiste na garantia à dívida alheia121. E há um pormenor decisivo, bem realçado no julgamento do STF: o fiador assumiu a obrigação, voluntariamente, expondo o bem à excussão. Os argumentos da corrente que se opõe à penhorabilidade, intransigentemente, visam à eliminação da autonomia privada, nesta área, incutindo no espírito coletivo indesejável irresponsabilidade social. A ninguém é dado iludir os outros, outorgando garantia que não honrará no momento decisivo.

À guisa de remate, as exceções à impenhorabilidade da residência familiar reclamam cuidado e atenção do órgão judiciário ao aplicá-las. O princípio da proporcionalidade tem papel decisivo no assunto. Basta atentar à execução do crédito resultante das despesas condominiais. É profundamente contrário à solidariedade isentar a residência familiar, neste caso, porque o condômino inadimplente, todavia usufruindo das benesses pagas pelas despesas comuns, transferiria encargos próprios para seus vizinhos. Não parece justificável, sob qualquer ponto de vista, defender a impenhorabilidade nesta hipótese.

CONCLUSÃO

É flagrante a influência do princípio da dignidade da pessoa humana, fundamento básico da impenhorabilidade da residência familiar, na nítida

118 Também o princípio da proporcionalidade aponta nesta direção, segundo ARAÚJO, Francisco

Fernandes de. Princípio da proporcionalidade na execução civil, n.8, p.183. 119 Vide ALBERTON, Genacéia da Silva. Impenhorabilidade do bem imóvel residencial do fiador, p.122-125. 120 É exato, portanto, que a garantia serve de proteção ao crédito, como notou CORDEIRO, Ana Paula

Del Pretti. O bem da família, p. 69, o que não torna, absolutamente, inconstitucional o dispositivo. 121 Com razão, ZILVETI, Ana Marta Cattani de Barros. Bem de família, p.295-296.

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ampliação dos limites da Lei 8.009/1990. Não se deixou de considerar, todavia, outros princípios e valores, blindando o homestead contra a crítica fácil que desprotegeria o credor de boa-fé e inculcaria nos obrigados irresponsabilidade nefasta ao comércio jurídico. Se o âmbito dos beneficiários aumentou, de um lado, as exceções à impenhorabilidade não ficaram desmerecidas ou diminuídas, conforme demonstra a interpretação da Corte Constitucional aos casos do fiador e das despesas condominiais. O STF não perdeu o equilíbrio, ao contrário de muitos intérpretes radicais da Lei 8.009/1990.

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PESSOA JURÍDICA ESTRANGEIRA NO BRASIL GUILHERME PEDERNEIRAS JAEGER*

Sumário: 1 – Introdução; 2 – A nacionalidade das sociedades empresárias à luz do ordenamento jurídico brasileiro; 3 – A filial brasileira da sociedade empresária estrangeira; 4 – A sociedade empresária brasileira composta por cotista majoritária estrangeira; 5 – Considerações finais. Referências.

1 – INTRODUÇÃO

A estabilidade econômica por que passa o Brasil na atualidade, divulgada pelos meios de comunicação internos e internacionais, tem sido encarada como fator positivo para a recepção de investimentos estrangeiros no País. A aptidão a bem remunerar o capital produtivo, por sua vez, também é destacada. Segurança e rentabilidade caminham juntas na decisão de o estrangeiro investir aqui ou fora. Quanto mais segurança houver, é provável que a rentabilidade não seja tão elevada; ao passo que o investimento de risco, a seu turno, tem condições de gerar retorno mais sensível. O Brasil tem sido visto em equilíbrio positivo, atraindo capital.

A aplicação no Brasil de capital externo produtivo por empresas estrangeiras está diretamente associada à pretensão de se auferirem ganhos pela internacionalização de suas produções. Essa estratégia justifica que empresas de um país montem estruturas operacionais em outros, dando ensejo à formação das multinacionais (ou transnacionais).

Por exemplo, uma empresa estrangeira pode buscar implantar uma estrutura no Brasil, a fim de atender ao mercado brasileiro sem a necessidade de exportar para cá os produtos acabados (sob elevadas * Especialista em Direito e Negócios Internacionais pela UFSC. Mestre em Direito e Relações

Internacionais pela UFSC. Professor de Direito Internacional Privado na PUCRS. Doutorando em Direito Internacional pela UFRGS.

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tarifas), optando por desenvolver aqui uma linha de montagem e importar os componentes (tarifa externa mais baixa), em típica atividade de tariff-jumping. Ou, ainda, a empresa matriz pode implementar aqui a fabricação especializada de um componente, racionalizando a produção conforme as vantagens que o território brasileiro oferece para um determinado tipo de componente (efficency-seeking project). Também se justifica a vinda da empresa estrangeira, sob outra óptica, quando seu produto necessita de matéria-prima aqui abundante (resource-seeking project), ou em busca de atuação em conjunto com estruturas de empresários locais, em regimes de joint venture.

Enfim, por qualquer dessas ou outras razões, as empresas estrangeiras vêm ao Brasil para desenvolver e expandir suas atividades, investindo capital no País. Para que isso ocorra, duas são as formas mais presentes: por meio de atuação direta (em que a empresa estrangeira abre aqui uma filial) ou de atuação indireta (constituindo uma nova empresa no Brasil, da qual a estrangeira será a controladora). Nesse sentido, pretende-se abordar essas duas formas societárias pelas quais sociedades estrangeiras investidoras de capital costumam empregar seus valores no Brasil.

Para alcançar tal objetivo, este ensaio foi dividido em três seções: na primeira, analisa-se o critério de nacionalidade das pessoas jurídicas, diferenciando-se a brasileira da estrangeira; na sequência, faz-se a abordagem dos requisitos e procedimentos para abertura de uma filial estrangeira no Brasil, indicando a lei a ela aplicável; e, por fim, apresenta-se a forma de atuação estrangeira no País por meio da constituição de uma sociedade nacional que tem a estrangeira como cotista majoritária. Feitas tais análises, torna-se possível esboçar itens conclusivos sobre o tema, tudo baseado em fontes bibliográficas e fontes legislativas diretas, e sob o método de abordagem indutivo.

2 – A NACIONALIDADE DAS SOCIEDADES EMPRESÁRIAS À LUZ DO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

A atribuição de nacionalidade, seja a pessoas naturais ou a pessoas jurídicas, não é tarefa desempenhada em conjunto pelos países. Um cidadão é considerando francês ou brasileiro não em razão de a França e o Brasil terem ajustado os critérios para definir as circunstâncias que o tornariam nacional de um ou de outro país. Cada Estado – soberano por definição –

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tem poder de estabelecer os seus próprios critérios para atribuir sua nacionalidade a determinado cidadão1.

O mesmo ocorre em relação às pessoas jurídicas2: o Brasil atribui nacionalidade brasileira às sociedades empresárias que se enquadrem no respectivo conceito legal. E cada país outorgará sua nacionalidade às empresas que, da mesma forma, se enquadrarem no seu critério de nacionalidade. Ou seja, cada Estado tem e aplica critério normativo próprio, muitas vezes diferentes. Conforme explica EDUARDO ESPÍNOLA, “no que toca aos princípios reguladores da nacionalidade das pessoas jurídicas, não será possível admitir uma norma semelhante, [...]; quem consulte os vários direitos positivos verá que não existe uma regra acolhida pelos Estados, quanto à determinação da nacionalidade”3. Logo, a lei brasileira não estabelece qual a nacionalidade de uma empresa, mas apenas determina quando uma empresa é brasileira. Por exclusão, têm-se as demais como estrangeiras.

Doutrinariamente, três são as teorias que servem de critério para indicar a nacionalidade de uma pessoa jurídica, conforme expõem CLÁUDIA LIMA MARQUES e CECÍLIA FRESNEDO DE AGUIRRE:

“En esta evolución identificamos en los diferentes paises la presencia de todas las teorías conocidas en D.I. Privado sobre la personalidad (existencia) y capacidad de derecho de las personas jurídicas, conocidas normalmente como teorías sobre la determinación de la ley aplicable o teorías de la ‘nacionalidad’, a saber: criterios de la sede social, de la incorporación y del control accionacio.”4

Em resumo, pode-se dizer que o critério da sede social indica ser a sociedade empresária nacional e regida pela lei do local onde se situa a sede

1 No Brasil, o artigo 12 da Constituição Federal determina quem são os brasileiros natos, definindo

os critérios em razão do local do nascimento (jus solis) e também em razão da consanguinidade paterna (jus sanguinis).

2 Buscando precisão à técnica, RECHSTEINER critica o termo “nacionalidade” para referir-se às pessoas jurídicas, sustentando que o melhor seria dizer que a pessoa jurídica está “juridicamente ligada ao direito de um determinado país”, e não que é nacional de um país. Vide: RECHSTEINER, Beat Walter. Direito internacional privado: teoria e prática. 5.ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p.150.

3 ESPINOLA, Eduardo; ESPINOLA FILHO, Eduardo. A Lei de Introdução ao Código Civil: comentada na ordem de seus artigos. 3.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, v.3, p.127.

4 MARQUES, Claudia Lima; FRESNEDO DE AGUIRRE, Cecília. Personas jurídicas. In: FERNÁNDEZ ARROYO, Diego P. (Coord.) Derecho internacional privado de los Estados del Merocosur. Buenos Aires: Zavalia, 2003, p.541-580.

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do negócio; a teoria da incorporação vincula a empresa ao país onde foi constituída; e o controle acionário atribui à pessoa jurídica a nacionalidade da pessoa física que a controla5.

No Brasil, antes da entrada em vigor do Código Civil de 2002, o artigo 60 do Decreto-Lei nº 2.627/1940 era o dispositivo legal que definia uma sociedade brasileira, estabelecendo que: “São nacionais as sociedades organizadas na conformidade da lei brasileira e que têm no país a sede de sua administração”. O citado decreto-lei, contudo, era o instrumento que regulamentava as Sociedades por Ações, sendo que tal dispositivo era emprestado a regular também a nacionalidade das Limitadas. Quando da edição da Lei das S/A (Lei nº 6.404/1976), o seu artigo 300 tratou da revogação expressa do Decreto-Lei nº 2.627/1940, à exceção dos artigos 59 a 73, isto é, precisamente aqueles que falavam sobre o critério de nacionalidade brasileira, bem como os procedimentos referentes às companhias estrangeiras.

Em 1988, o tema recebeu tratamento constitucional. A Constituição Federal, no artigo 1716, estabeleceu um critério de nacionalidade às empresas, que se subdividia entre “empresa brasileira” (constituída e sediada no Brasil) e “empresa brasileira de capital nacional” (aquela ‘empresa brasileira’ cujo controle pertencesse a residentes no Brasil). Esse regime reconhecia que as empresas sediadas e constituídas no Brasil fossem brasileiras, à irrelevância da nacionalidade e domicílio dos seus cotistas; contudo, criava uma diferenciação conceitual para aquelas que tivessem o controle nas mãos de residentes no exterior. Tal distinção era o cenário necessário a que empresas brasileiras de capital nacional recebessem tratamento privilegiado em relação às empresas também nacionais de controle estrangeiro. Esse regime foi revogado em 1995, por força da Emenda Constitucional nº 6, retornando à sistemática antiga, regida pelo decreto-lei.

5 DOLINGER, Jacob. Direito internacional privado – parte geral. Rio de Janeiro/São Paulo/Recife:

Renovar, 2008, p.498. 6 CF/88. Art. 171. São consideradas: I – empresa brasileira a constituída sob as leis brasileiras e que

tenha sua sede e administração no País; II – empresa brasileira de capital nacional aquela cujo controle efetivo esteja em caráter permanente sob a titularidade direta ou indireta de pessoas físicas domiciliadas e residentes no País ou de entidades de direito público interno, entendendo-se por controle efetivo da empresa a titularidade da maioria de seu capital votante e o exercício, de fato e de direito, do poder decisório para gerir suas atividades.

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Foi somente em 2003, com a entrada em vigor do Código Civil de 2002, que dispositivos legais específicos, aplicáveis não só às S/A, mas também às Limitadas, foram criados. Na parte pertinente à nacionalidade, o CC/02 manteve exatamente o mesmo critério antes existente, conforme dispôs o artigo 1.126: “É nacional a sociedade organizada de conformidade com a lei brasileira e tenha no país a sede de sua administração”. Na atualidade, portanto, não importa, para fins de nacionalidade da sociedade empresária sediada no Brasil e constituída sob leis brasileiras, que tal empresa tenha sócios estrangeiros, domiciliados no Exterior, ou cujo capital tenha vindo de fora. O critério é: o local da sede e a constituição, e não a nacionalidade ou o domicílio dos sócios, tal como concluem MARINO PAZZAGLINI FILHO e ANDREA DI FUCCIO CATANESE:

“Como se vê, a diferenciação entre sociedade empresarial brasileira e estrangeira é apenas formal: organização segundo as leis brasileiras e sede no território nacional, desconsiderando-se, para sua distinção, os aspectos substanciais da nacionalidade do seu capital e da nacionalidade e domicílio das pessoas que detêm seu controle.”7

Embora correta a constatação conclusiva exposta pelos citados autores, não se pode aplaudir a crítica de que “aspectos substanciais” foram desconsiderados. A Professora MARISTELA BASSO é precisa ao expor que a origem do capital realmente deve ser desconsiderada como fator determinante da nacionalidade da empresa, a fim de evitar que cada transferência de cotas possa provocar a troca da nacionalidade da empresa.

“A opção da legislação brasileira no sentido de se afastar da procedência do capital como critério determinante da nacionalidade de empresa parece-nos acertada. Se assim não fosse, cada vez que se transferisse um número majoritário de ações, ocorreria a mudança da nacionalidade da empresa e, logicamente, de seu estatuto jurídico. Esse inconveniente, na opinião de Tavares Guerreiro, caracterizaria fonte de total insegurança para todos quantos se relacionassem com a sociedade.”8

No que tange ao aspecto de nacionalidade e domicílio dos sócios, acredita-se que, de um lado, o mesmo inconveniente observado por

7 PAZZAGLINI FILHO, Marino; CATANESE, Andrea Di Fuccio. Direito de empresa no novo Código Civil.

São Paulo: Atlas, 2003, p.62. 8 BASSO, Maristela. Joint ventures: manual prático das associações empresariais. Porto Alegre:

Livraria do Advogado, 1998, p.87.

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MARISTELA BASSO também ocorreria nas cessões de cotas entre sócios de diferentes países; e, de outro lado, considerar tais aspectos acabaria sendo um fator destinado apenas ao tratamento diferenciado entre empresas com sócios nacionais ou estrangeiros, discriminação essa que o Brasil, enquanto país receptor do capital estrangeiro, não tem interesse em ostentar.

Estabelecido o critério para identificar a pessoa jurídica brasileira, advém por exclusão o conceito de sociedade empresarial estrangeira. Ou seja, estrangeiras são as demais que não se enquadram no critério conceitual de reunir sede e constituição no Brasil.

Esse critério de exclusão, a seu turno, pressupõe que, além de ser não brasileira, a pessoa jurídica deve ter seu surgimento e existência reconhecidos pela lei do seu país de origem. Não fosse assim, o Brasil nem mesmo a reconheceria como empresa. Logo, uma vez que a lei nacional da empresa lhe confere existência, aí sim passa ela a ser reconhecida como tal universalmente; isto é, os demais países a reconhecerão como pessoa jurídica estrangeira pois o país de origem assegurou seu surgimento e personalidade. Por conseguinte, isso significa que uma sociedade estrangeira pode firmar um contrato com uma brasileira, sem que isso passe por prévio ato governamental brasileiro de reconhecimento da contratante estrangeira como sendo um ente existente. Ademais, também sem qualquer formalidade9, pode uma sociedade estrangeira demandar perante tribunal brasileiro. “Estão amparadas por nossa ordem jurídica”10.

De outro lado, “é verdade que”, nas palavras de DOLINGER, “para efeitos de funcionamento, outros países, que não o de sua nacionalidade, poderão exigir requisitos suplementares, além dos que tenham sido atendidos por ocasião de sua formação”. E segue: “Esse funcionamento, possibilitado pelo atendimento dos requisitos locais, se somará a seu reconhecimento básico, originário, que é universal e imutável. Nasce a pessoa jurídica por força da lei da sua nacionalidade e morrerá por força dela”11.

Enfim, identifica-se a pessoa jurídica estrangeira como sendo aquela que, não sendo brasileira, tem sua existência reconhecida por uma outra

9 Ressalva aos procedimentos de tradução juramentada e consularização do Contrato Social, bem

como ao disposto no artigo 835 do CPC. 10 CASTRO, Amílcar de. Direito internacional privado. 6.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p.284. 11 DOLINGER, Jacob. Direito internacional privado – parte geral. Rio de Janeiro/São Paulo/Recife:

Renovar, 2008, p.496.

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ordem jurídica. Superado isso, caso tal empresa venha desenvolver atividades no Brasil (e não apenas ter um reconhecimento para atos quaisquer), poderá ela atuar aqui por meio da abertura de uma filial ou, como alternativa, compondo, na condição de controladora, o quadro social de uma empresa brasileira. Essas duas formas serão analisadas a seguir.

3 – A FILIAL BRASILEIRA DA SOCIEDADE EMPRESÁRIA ESTRANGEIRA

A “livre iniciativa” para as atividades empresariais está na base da ordem econômica brasileira, conforme prevê o artigo 170 da Constituição Federal. Todavia, o parágrafo único desse mesmo dispositivo, ao assegurar “o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos”, vem seguido da expressão “salvo nos casos previstos em lei”. Com fundamento da ressalva constitucional, a lei estabelece que algumas atividades somente podem ser exploradas mediante prévia autorização do Poder Executivo, e entre elas estão incluídas todas as atividades exercidas por filiais de sociedades empresárias estrangeiras no Brasil.

O artigo 64 do Decreto-Lei 2.627/194012 já trazia a necessidade de autorização às empresas estrangeiras, o que, aliás, também constava na Lei de Introdução ao Código Civil (Decreto–Lei 4.657/1942)13. Atualmente, o tema é regulado pelo artigo 1.134 do CC14, que apresenta redação semelhante aos textos anteriores, mantendo a necessidade de autorização para a pessoa jurídica estrangeira funcionar no Brasil. SERGIO CAMPINHO esclarece o assunto:

“Existem determinadas atividades empresariais que, para serem exercidas pela sociedade empresária, demandam de autorização do Poder Público. Desta forma, as sociedades que

12 DL 2.627/40. Art. 64. As sociedades anônimas ou companhias estrangeiras, qualquer que seja o seu

objeto, não podem, sem autorização do Governo Federal, funciona no País, por si mesmas, ou por filiais, sucursais, agências ou estabelecimentos que as representem, podendo, todavia, ressalvados os casos expressos em lei, ser acionistas de sociedade anônima brasileira (art. 60)

13 LICC. Art. 11. § 1º. Não poderão, entretanto, ter no Brasil filiais, agências ou estabelecimentos antes de serem os atos constitutivos aprovados pelo Governo brasileiro, ficando sujeitas à lei brasileira.

14 CC/02. Art. 1.134. A sociedade estrangeira, qualquer que seja seu objeto, não pode, sem autorização do Poder Executivo, funcionar no país, ainda que por estabelecimentos subordinados, podendo todavia, ressalvados os casos expressos em lei, ser acionista de sociedade anônima brasileira.

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pretenderem realizá-las devem obter prévia autorização do Poder Executivo Federal para o respectivo funcionamento.

Mas em se tratando de sociedades estrangeira, a autorização de funcionamento sempre será exigida, independentemente de seu objeto.”15

Os requisitos para obter a autorização de funcionamento já estavam elencados no Decreto-Lei 2.627/1940 e regulamentados na Instrução Normativa 81/199916, do Departamento Nacional de Registro de Comércio. Com a vigência do CC/02 – lei posterior –, o artigo 1.134, § 1º, passou a tratar do assunto, praticamente mantendo a mesma sistemática.

“Art. 1.134. [...]. § 1º. Ao requerimento de autorização devem-se juntar: I – prova de se achar a sociedade constituída conforme a lei de seu país; II – inteiro teor do contrato ou do estatuto; III – relação dos membros de todos os órgãos da administração da sociedade, com nome, nacionalidade, profissão, domicílio e, salvo quanto a ações ao portador, o valor da participação de cada um no capital da sociedade; IV – cópia do ato que autorizou o funcionamento no Brasil e fixou o capital destinado às operações no território nacional; V – prova de nomeação do representante legal no Brasil, com poderes expressos para aceitar as condições exigidas para a autorização; VI – último balanço.”

Como se percebe, são várias as exigências impostas para obter autorização destinada à abertura de filial de empresa estrangeira no Brasil, as quais vão desde conhecer a matriz (contrato social, regular constituição, relação dos gestores, e último balanço – I, II, III e VI), até a confirmação de que a sociedade estrangeira realmente deliberou a abertura de uma filial brasileira, destinou o capital a ser destacado e concedeu poderes de representação à pessoa domiciliada no Brasil (IV e V). Especificamente em relação ao destaque do capital para as operações brasileiras, o artigo 1.136 do CC, exige, ainda antes do início das atividades, o depósito, em dinheiro, da integralidade do valor do capital da filial17. E no que tange ao

15 CAMPINHO, Sergio. O direito de empresa à luz do novo Código Civil. 3.ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro:

Renovar, 2003, p.271. 16 IN 81/1999, DNRC. Dispõe sobre os pedidos de autorização para nacionalização ou instalação de

filial, agência, sucursal ou estabelecimento no País, por sociedade mercantil estrangeira. 17 CC/02. Art. 1.136. § 1º. O requerimento de inscrição será instruído com exemplar da publicação

exigida no § 1º do artigo antecedente, acompanhado de documento de depósito em dinheiro, em estabelecimento bancário oficial, do capital ali mencionado.

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representante no País, também há outro dispositivo legal próprio (art. 1.138 do CC), o qual impõe, além da já exigida nomeação para aceitar as condições da autorização, também a manutenção obrigatória e permanente de representante no Brasil para receber citações e resolver quaisquer questões sobre a sociedade18.

Evidentemente, o atendimento a esses requisitos demanda custo e tempo, constatação essa que decorre do procedimento e requisitos formais para o pedido de autorização. O procedimento, previsto na já mencionada Instrução Normativa 81/1999 do DNRC, estabelece o dever de protocolar um requerimento padrão perante este mesmo Departamento, que então, após análise prévia, dará o encaminhamento interno no Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior19. Aliás, a competência definitiva para conceder ou não a autorização é justamente do MDIC, conforme previsto no Decreto 5.664/2006, pelo qual o Presidente da República delegou tais poderes.

A concessão da autorização é centralizada em Brasília/DF. O requerimento deve ser acompanhado de duas vias de toda a documentação necessária a preencher os requisitos materiais do artigo 1.134 do CC/02. Considerando que a grande maioria dos documentos tem redação original em língua estrangeira, exige-se que tais documentos sejam consularizados20 (pelo menos aqueles que tiverem certificações públicas) e ainda traduzidos por tradutor juramentado no Brasil21. Além disso, embora venha sendo dispensado na prática, ainda seria preciso registrá-los no Cartório de Títulos e Documentos, pois só assim produzem efeitos perante órgãos públicos no

18 CC/02. Art. 1.138. A sociedade estrangeira autorizada a funcionar é obrigada a ter,

permanentemente, representante no Brasil, com poderes para resolver quaisquer questões e receber citação judicial pela sociedade. Parágrafo único. O representante somente pode agir perante terceiros depois de arquivado e averbado o instrumento de sua nomeação.

19 IN 81/1999. Art. 1º. A sociedade mercantil estrangeira, que desejar estabelecer filial, sucursal, agência ou estabelecimento no Brasil, deverá solicitar autorização do Governo Federal para instalação e funcionamento, em requerimento dirigido ao Ministro de Estado do Desenvolvimento, Indústria e Comércio, protocolizado no Departamento Nacional de Registro do Comércio – DNRC, que o examinará sem prejuízo da competência de outros órgãos federais.

20 Consularização é o ato pelo qual o documento público estrangeiro – já considerado autêntico e de fé pública no país de sua emissão, após passar pelo Consulado Brasileiro estabelecido no respectivo país – passa a ter, no Brasil, a mesma autenticidade e fé que já tinha no exterior.

21 CAMPINHO, Sergio. O direito de empresa à luz do novo Código Civil. 3.ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p.275.

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Brasil, conforme prevê o artigo 129, § 6º, da Lei 6.015/197322. Assim, partindo-se da necessidade de duas vias de toda a gama de documentos (inclusive do balanço) – consularizados, traduzidos e registrados –, isso acaba tornando-se um custo sensível.

Uma vez preenchidos todos os requisitos legais, somados às formalidades de apresentação documental e ao indispensável requerimento protocolado no DNRC, faz-se a autuação de um procedimento administrativo no MDIC. O primeiro passo consiste na análise prévia pela Assessoria Jurídica do DNRC, a qual dá um parecer ao Coordenador de Atos Jurídicos, que, por sua vez, encaminha ao Diretor do Departamento. Passando por essas aprovações, a Diretoria encaminha à Secretaria de Comércio e Serviços, a qual se constitui em uma das quatro Secretarias que compõem o MDIC. E só então o Ministro pode conceder a autorização, que é expedida mediante Decreto, publicado no Diário Oficial da União. Essa publicação, contudo, não basta para que a empresa estrangeira dê início às suas operações; ela apenas viabiliza que a empresa requeira a sua inscrição na Junta Comercial do Estado onde irá estabelecer sua sede, conforme prevê o artigo 1.136, § 2º, do Código Civil.

“Art. 1.036. [...]. § 2º. Arquivados esses documentos [leia-se: requerimento de inscrição, exemplar da publicação do decreto autorizador e comprovante do depósito do capital], a inscrição será feita por termo em livro especial para as sociedades estrangeiras, com número de ordem contínua para todas as sociedades inscritas; no termo constarão: I – nome, objeto, duração e sede da sociedade no estrangeiro; II – lugar da sucursal, filial ou agência, no País; III – data e número do decreto de autorização; IV – capital destinado às operações no Brasil; V – individuação do seu representante permanente.”

A filial estrangeira atuará no Brasil com o mesmo nome que tiver no seu país, podendo acrescentar as expressões “do Brasil” ou “para o Brasil”.

Afora isso, ainda existem dois limitadores que devem ser considerados para que a autorização seja concedida e mantida. O primeiro limitador consta no artigo 1.135 do CC/02, pelo qual “é facultado ao Poder

22 Lei 6.015/1973. Art. 129. Estão sujeitos a registro no Registro de Títulos e Documentos, para surtir

efeitos em relação a terceiros: 6) todos os documentos de procedência estrangeira, acompanhados das respectivas traduções, para produzirem efeitos em repartições públicas da União, Estados, do Distrito Federal, dos Territórios e dos Municípios, ou em qualquer instância, juízo ou tribunal.

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Executivo, para conceder a autorização, estabelecer condições convenientes à defesa dos interesses nacionais”. E, quanto ao segundo, estabelecido no artigo 1.125 do mesmo diploma legal, a faculdade do Poder Executivo é no sentido de “cassar a autorização concedida à sociedade [...] estrangeira que infringir disposição de ordem pública ou praticar atos contrários aos fins declarados no seu estatuto”.

Esses dois dispositivos legais representam a grande fonte de incerteza e insegurança ao investidor que vem abrir uma filial no Brasil. Na medida em que o Poder Executivo tem a “faculdade” de estabelecer condições convenientes aos interesses nacionais, o empresário estrangeiro passa a temer que as condições impostas inviabilizem seu negócio, até mesmo porque o conceito de “interesses nacionais” é extremamente subjetivo para ser objeto de discussão. E, da mesma forma, a subjetividade e variação temporal do conceito de “ordem pública” também provocam receio ao estrangeiro, que poderá ter a conduta de sua empresa enquadrada também num conceito vago.

Tais decisões do Poder Executivo, todavia, não podem ser arbitrárias. A doutrina de GLADSTON MAMEDE é rígida no sentido de exigir do Poder Público muita cautela no uso dessa faculdade, visto que a decisão há de ser fundamentada e dotada de substrato real.

“E na qualidade de processo administrativo, o procedimento de autorização está submetido à regra do devido processo legal, sob a referência do artigo 5º, XXXV, LIV e LV, da Constituição da República, incluindo a faculdade de recorrer ao Judiciário contra o indeferimento ou, mesmo, contra atos interlocutórios, entre o pedido e a decisão final, sempre que ferirem os princípios que devem orientar o processamento das petições formuladas ao Poder Público [...]

Especial atenção deve-se ter com o artigo 1.135 do Código Civil, a estipular, genericamente, a faculdade de o Poder Executivo estabelecer condições convenientes à defesa dos interesses nacionais, [...]. A norma deve merecer interpretação cuidadosa, com redobrada atenção ao texto constitucional, bem como à existência de lei, em sentido estrito, que preveja as medidas que

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podem ser adotadas, evitando-se atos que não correspondam às bases da ordem econômica e financeira nacional.”23

De outro lado, embora concordando que a decisão de negar ou cassar uma autorização deva ser fundamentada (para não caracterizar abuso de direito ou desvio de finalidade), os autores EDUARDO e GUSTAVO GREBLER acreditam que tal decisão não estaria sujeita à revisão judicial: “Tanto na hipótese de o Poder Executivo efetuar novas diligências quanto negar o requerimento, se tratará de ato soberano, não sujeito à revisão judicial”24. Quanto a esse aspecto, não se pode concordar por inteiro, posto que os atos do Executivo também estão sujeitos à revisão do Judiciário, na forma do artigo 5º, XXXV, da Constituição Federal. Acredita-se que somente a identificação do que seriam as “conveniências aos interesses nacionais” é que estaria imune ao Judiciário.

Por mais que se possa supor pouco provável uma cassação de uma autorização por força de “interesses nacionais” e “ordem pública”, não se pode deixar de alertar as empresas estrangeiras que a manutenção de uma filial no Brasil está, sim, sujeita a essa relativa incerteza.

Ainda assim, por ser um risco tolerável, a empresa estrangeira pode permanecer interessada na atuação no Brasil dessa forma direta (via filial), visto que, neste caso, a filial aqui sediada será, em termos societários, regida pela lei do seu país de origem, ou melhor, de sua constituição. São esses os termos do artigo 11 da LICC: “As organizações destinadas a fins de interesse coletivo, como as sociedades e fundações, obedecem à lei do Estado em que se constituírem”.

Em relação a este aspecto, atinente à lei que rege a filial da sociedade estrangeira no Brasil, é preciso dedicar um pouco mais de atenção. Em posição diversa à que foi mencionada no parágrafo imediatamente acima, GLADSTON MAMEDE invoca o artigo 1.137 do Código Civil, o qual estabelece que a sociedade estrangeira autorizada “ficará sujeita às leis e aos tribunais brasileiros, quanto aos atos e operações praticadas no Brasil”. O autor explica que a regra do artigo 11 da LICC “não alcançará o estabelecimento

23 MAMEDE, Gladston. Direito empresarial brasileiro – Direito societário: sociedade simples e

empresária. São Paulo: Atlas, 2004, v.2, p.65-70. 24 GREBLER, Eduardo; GREBLER, Gustavo. O funcionamento da sociedade estrangeira no Brasil em

face do novo Código Civil. In: RODRIGUES, Frederico Viana (coord). Direito de empresa no novo Código Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p.397.

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subordinado que esteja autorizado a funcionar em território nacional, cujos atos e operações [...] estarão sujeitos à legislação brasileira [...]”25.

Parte da doutrina de Direito Internacional Privado, por sua vez, também chega à mesma conclusão, mas toma por base o art. 11, § 1º, da LICC. Nessa linha, EDUARDO ESPÍNOLA também afirma que a filial autorizada a funcionar no Brasil é regida pela lei brasileira.

“[...] as organizações destinadas a fins de interesse coletivo, como as sociedades e as fundações, obedecem à lei do Estado em que se constituírem, isto é, à sua lei nacional, mas somente enquanto aí tiverem o seu domicílio, [...].

Se, porém, para aqui transfere a sua sede, ou entre nós abre filial, isto é, se adquire domicílio no Brasil, é a lei brasileira que lhe rege as relações jurídicas, disciplinando-lhe a própria capacidade de gozo e exercício dos direitos civis, pois o artigo 11 da Lei de introdução, no seu § 1º, determina que as pessoas jurídicas, referidas no transcrito artigo 11, ‘não poderão, entretanto, ter no Brasil filiais, agências ou estabelecimentos antes de serem os atos constitutivos aprovados pelo Governo brasileiro, ficando sujeitas à lei brasileira.”26

Apresentando a mesma conclusão está o texto conjunto de CLÁUDIA LIMA MARQUES e CECÍLIA FRESNEDO DE AGUIRRE27, bem como estão os manuais de JACOB DOLINGER28 e HEE MOON JO29. Apesar do peso da doutrina aqui transcrita, acredita-se ser necessário ponderar tais comentários. Ora, o artigo 1.137 do CC/02, quando textualiza que a filial da empresa estrangeira ficará sujeita às leis e tribunais brasileiros, apenas esclarece que ela não é imune à legislação brasileira, nem poderá esquivar-se do Judiciário brasileiro. O artigo 11, § 1º, da LICC, de igual forma, indica tão só que a filial ficará “sujeita à lei brasileira”. Isto é, a sujeição da filial às normas

25 MAMEDE, Gladston. Direito empresarial brasileiro – Direito societário: sociedade simples e

empresária. São Paulo: Atlas, 2004, v.2, p.71. 26 ESPINOLA, Eduardo; ESPINOLA FILHO, Eduardo. A Lei de Introdução ao Código Civil: comentada na

ordem de seus artigos. 3 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, v.3, p.165. 27 MARQUES, Claudia Lima; FRESNEDO DE AGUIRRE, Cecília. Personas jurídicas. In: FERNÁNDEZ

ARROYO, Diego P. (Coord.) Derecho internacional privado de los Estados del Merocosur. Buenos Aires: Zavalia, 2003, p.541-580.

28 DOLINGER, Jacob. Direito internacional privado – parte geral. Rio de Janeiro/São Paulo/Recife: Renovar, 2008, p.498.

29 JO, Hee Moon. Moderno direito internacional privado. São Paulo: LTr, 2001, p.433.

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federais, estaduais e municipais ocorrerá tal como ocorre com qualquer empresa brasileira; as filiais ficam ao alcance da jurisdição brasileira para quaisquer fins e ficam submetidas às normas imperativas e às publicações que, segundo a lei brasileira, precisem fazer30. Enfim, o fato de serem estrangeiras não altera essa sujeição às leis do nosso País.

Portanto, sem dúvida está ela submetida ao regime jurídico brasileiro e apenas está atuando aqui no Brasil por ter sido autorizada pelo ordenamento local, confirmando sua sujeição às nossas leis.

A par disso, não foi o ordenamento brasileiro que conferiu existência a essa sociedade, e também não são as leis brasileiras que regularão as relações entre os sócios dentro dessa empresa. Ou seja, a relação societária em si continuará sendo regida pela lei do local da constituição. Lembre-se que a abertura de uma filial não cria outra pessoa jurídica; a personalidade é a mesma; matriz estrangeira e filial brasileira são uma empresa só, conforme já reconheceu o Supremo Tribunal Federal31.

Assim, não seria coerente que, havendo uma única personalidade jurídica, houvesse duas leis distintas para regular a relação entre os sócios dessa mesma empresa. Ademais, repare-se que, quando autorizado o funcionamento de uma filial estrangeira, o contrato social registrado no Brasil é o estrangeiro; não há a redação de um novo contrato social, visto que se exige apenas um requerimento de inscrição na Junta Comercial, o qual se faz acompanhar do contrato social originário e outros documentos. Veja-se, ainda, ressalvadas questões de ordem pública, que a periodicidade ou formas de assembleias gerais dessa sociedade podem não ser aquelas determinadas no nosso Código Civil, assim como os quóruns de aprovação de deliberações também podem ser outros; as cláusulas obrigatórias de um contrato social no Brasil podem não estar presentes.

Se a filial estrangeira fosse societariamente regida pela lei brasileira, isso significaria que a autorização estaria condicionada à adequação do contrato social da empresa estrangeira às leis societárias brasileiras. Contudo, não é isso o que ocorre; entre os requisitos para a concessão da autorização, não há essa exigência; o contrato social estrangeiro não é 30 IN 81/1999. Art. 6º. 31 STF, Recurso Extraordinário 49.161, 1ª Turma, Relator Ministro Pedro Chaves, DJ 20.03.1963. No

voto, o Ministro esclarece que a filial de uma pessoa jurídica estrangeira autorizada a funcionar no Brasil não detém personalidade jurídica própria, pois a filial se destaca da matriz sem autonomia, não possuindo capital autônomo, mas apenas um capital de destinação, integrado e inseparável do capital da sociedade matriz.

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submetido à adequação das normas do CC/02. E mais: a já citada IN 81/1999 do DNRC – que além de tratar da autorização para a filial de empresa estrangeira também dispõe sobre a possibilidade de ela nacionalizar-se – exige, apenas quando deliberada a nacionalização, que se apresente, entre outros documentos elencados no artigo 9º, o “estatuto social ou contrato social, conforme o caso, elaborados em obediência à lei brasileira; (...)”. Aí sim ela passaria a ser regida pela lei brasileira

Portanto, societariamente, acredita-se que a filial estrangeira no Brasil, autorizada a funcionar no País, será regida pela lei do local de sua constituição (exterior), e não pela brasileira.

4 – A SOCIEDADE EMPRESÁRIA BRASILEIRA COMPOSTA POR COTISTA MAJORITÁRIA ESTRANGEIRA

Como foi possível observar, a empresa estrangeira pode atuar diretamente no Brasil por meio da abertura de uma filial, necessitando para isso obter autorização do Poder Executivo, para o que precisa reunir extensa e ampla documentação (toda consularizada, traduzida e registrada), passar por procedimento administrativo no âmbito do MDIC (e DNRC) e, dependendo do caso, ficar sujeita à conveniência dos interesses nacionais e de ordem pública brasileira.

Por outro lado, a empresa estrangeira também pode atuar no Brasil sem precisar passar por todo esse procedimento, tempo e custo, nem ficar sujeita às inseguranças mencionadas. Poderá ela simplesmente criar uma nova empresa no Brasil, constituída e sediada no País e, portanto, de nacionalidade brasileira, em atenção aos critérios do artigo 1.126 do CC/02. A sociedade estrangeira será a cotista majoritária dessa recém-formada sociedade brasileira, cada qual com sua personalidade jurídica distinta. Como visto alhures, a origem do sócio e a origem do capital social são irrelevantes para determinar a nacionalidade da empresa.

SÉRGIO CAMPINHO apresenta essa possibilidade:

“Além da atuação direta por meio de estabelecimentos subordinados, poderá a sociedade ou o investidor estrangeiro agir na economia brasileira mediante a participação no capital de sociedade nacional.

Essa, inclusive, tem sido a fórmula preferível, porquanto não se exige o cumprimento das formalidades legais abordadas no item

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anterior para a atuação direta, além de a sociedade gozar da nacionalidade brasileira.”32

Embora sejam várias as empresas brasileiras atualmente formadas por cotistas pessoas jurídicas estrangeiras, ainda hoje existe discussão teórica a respeito dessa possibilidade de a sociedade estrangeira compor o capital social majoritário de empresa brasileira. Isso porque, quando da edição do Decreto-Lei 2.627/1940, o texto do já transcrito artigo 64, ao mencionar a necessidade de a sociedade estrangeira buscar autorização, trazia a seguinte ressalva: “[...] podendo, todavia, ressalvados os casos expressos em lei, ser acionista de sociedade anônima brasileira”. Só que tal ressalva especificava a “sociedade anônima”, sem incluir a Limitada.

O jurista LUIZ OLAVO BAPTISTA sempre entendeu que as estrangeiras também poderiam ser cotistas de sociedades empresárias limitadas no Brasil33. Além disso, é razoável que a Lei das S/A tratasse apenas da ressalva para as S/A, já que seu texto não visava a abranger o escopo das Limitadas34. E mais: já em tal época, a Lei das S/A aplicava-se subsidiariamente às Limitadas, na forma do artigo 19 do Decreto-Lei nº 3.708/1919. Por fim, a ausência de proibição, como de costume, indicava a possibilidade.

Transpondo o assunto para o Código Civil de 2002, observa-se que o legislador perdeu uma excelente oportunidade de esmagar a dúvida, pois em vez de definir expressamente a respeito da possibilidade de a sociedade estrangeira compor o quadro social de uma Limitada brasileira, o mesmo texto de 1940 foi mantido; exatamente o mesmo. A despeito disso, segundo MAMEDE, tal regra, “por óbvio, aplica-se aos demais tipos societários, entre os quais as sociedades limitadas, já que não houve vedação legal a tanto; houve apenas esquecimento, fruto da má redação, fruto da repetição do artigo 64 do Decreto-Lei 2.627/40 sem o cuidado da devida adaptação”35.

32 CAMPINHO, Sergio. O direito de empresa à luz do novo Código Civil. 3.ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro:

Renovar, 2003, p.280. 33 BAPTISTA, Luiz Olavo. Os investimentos internacionais no direito comparado e brasileiro. Porto Alegre:

Livraria do Advogado, 1998, p.77. 34 GREBLER, Eduardo; GREBLER, Gustavo. O funcionamento da sociedade estrangeira no Brasil em

face do novo Código Civil. In: RODRIGUES, Frederico Viana (coord.). Direito de empresa no novo Código Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 403.

35 MAMEDE, Gladston. Direito empresarial brasileiro – Direito societário: sociedade simples e empresária. São Paulo: Atlas, 2004, v.2, p.69.

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Outro argumento importante pode ser observado na interpretação sistemática do Código Civil. Ao tratar da Sociedade Simples (cujas regras se aplicam subsidiariamente às Sociedades Empresárias Limitadas), o legislador exige que se mencione a “nacionalidade e sede dos sócios se [pessoas] jurídicas”36. Ora, se fosse proibido à pessoa jurídica estrangeira ser cotista de sociedade brasileira, o trecho de tal dispositivo seria inócuo. Daí, portanto, também deriva a noção de permissibilidade de a estrangeira ser cotista de uma empresa nacional.

Dito isso, constatado ser juridicamente possível a presença de sociedade estrangeira no quadro social de empresa brasileira, é preciso analisar os requisitos e procedimento para que isso ocorra. Já se viu que, por ser a sociedade brasileira, todo o procedimento previsto para a filial é desnecessário.

O assunto em pauta é regulado pela Instrução Normativa 76/1998, do DNRC37, e os requisitos são poucos. O artigo 2º, caput, da IN 76/1998 estabelece que “a pessoa jurídica com sede no exterior, que participe de sociedade mercantil ou de cooperativa”, deverá “arquivar na Junta Comercial procuração específica, outorgada ao seu representante no Brasil, com poderes para receber citação judicial [...]”. E o § 1º, por sua vez, exige prova da existência legal da pessoa jurídica, respeitada a legislação do país de origem. Como se vê, são dois os requisitos: contrato social da empresa estrangeira e representante do Brasil (tudo consularizado e traduzido por tradução juramentado)38. Não é necessário cópia do balanço, nem depósito

36 CC/02. Art. 997, I. 37 Instrução Normativa 76/1998, do DNRC. Dispõe sobre o arquivamento de atos de empresas

mercantis ou de cooperativas em que participem estrangeiros residentes e domiciliados no Brasil, pessoas físicas, brasileiras ou estrangeiras, residentes e domiciliadas no exterior e pessoas jurídicas com sede no exterior.

38 Art. 2º. A pessoa física, brasileira ou estrangeira, residente e domiciliada no exterior, e a pessoa jurídica com sede no exterior, que participe de sociedade mercantil ou de cooperativa, deverão arquivar na Junta Comercial procuração específica, outorgada ao seu representante no Brasil, com poderes para receber citação judicial em ações contra elas propostas, fundamentadas na legislação que rege o respectivo tipo societário. § 1º. A pessoa física de que trata o caput deste artigo deverá apresentar fotocópia autenticada de seu documento de identidade e a pessoa jurídica prova de sua existência legal, respeitada a legislação do país de origem. § 2º. Os documentos oriundos do exterior deverão ser autenticados ou visados por autoridade consular brasileira, conforme o caso, no país de origem, devendo tais documentos ser acompanhados de tradução efetuada por tradutor matriculado em qualquer Junta Comercial, exceto o documento de identidade.

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do capital em dinheiro, nem relação de gestores, nem submissão aos interesses nacionais, nem sujeição a qualquer autorização governamental.

Ademais, embora não previsto na IN 76/1998, ainda se exige que a empresa estrangeira tenha uma inscrição no CNPJ – Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas. Trata-se de exigência prevista no artigo 11, XIV, a, 5, da IN 748/2007, da Secretaria da Receita Federal39. Para fazer o cadastro no CNPJ, especificamente quando necessário por força da participação da pessoa jurídica estrangeira em sociedade limitada brasileira, o procedimento é realizado por meio do Banco Central do Brasil40. Cabe à empresa estrangeira, por acesso remoto online ao Sisbacen (Sistema de Informações do Banco Central do Brasil), proceder ao seu cadastro no Cademp (Cadastro de Empresas do Bacen), situação que automaticamente gerará uma solicitação de um número de CNPJ, que o próprio Sisbacen fornecerá em aproximadamente 72 horas.

Desta forma, dispondo do contrato social (consularizado e traduzido) de um representante domiciliado no Brasil e de um CNPJ, a empresa estrangeira pode ser a sócia cotista fundadora de uma nova sociedade empresária brasileira, constituída sob a forma de Limitada. O procedimento de constituição é o mesmo de uma sociedade brasileira que contenha apenas sócios brasileiros, ou seja, basta redigir o contrato social na forma da lei brasileira (agregando mais um sócio – face à vedação de empresa unipessoal) e protocolar o requerimento na Junta Comercial do Estado onde será a sede dessa sociedade. Simples, tal como deve ser.

Aliás, nada impede que o segundo cotista dessa sociedade empresária brasileira seja outra pessoa jurídica também estrangeira. De fato, em regra, no Brasil, não há limite à participação societária estrangeira em empresas nacionais. As exceções decorrem de lei especial. A título exemplificativo, observam-se os seguintes casos: no setor de transporte regular aéreo, 4/5 do capital votante devem pertencer a brasileiro, assim como a administração

39 IN SRF 748, 2007. Art. 11. São também obrigados a se inscrever no CNPJ: [...] XIV – pessoas

jurídicas domiciliadas no exterior que no País: [...] a) possuam: [...] 5. participações societárias; 40 IN SRF 748, 2007. Art. 17. A pessoa jurídica domiciliada no exterior que realizar ou contratar no

Brasil as operações referidas nos itens 5, 9 e 10 da alínea a e nos itens 1 a 6 da alínea b do inciso XIV do art. 11 terá a inscrição no CNPJ formalizada mediante deferimento da inscrição no Cadastro de Empresas (Cademp), solicitada exclusiva e diretamente ao Bacen, vedada a apresentação de pedido de inscrição em unidade cadastradora da RFB.

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deve caber a brasileiro41; nas empresas de radiodifusão de imagem e som, bem como jornalísticas, 70% do capital total e votante devem pertencer direta ou indiretamente a brasileiros, a quem competirá a gestão da sociedade42; as empresas de televisão a cabo precisam ter 51% do capital com direito a voto pertencentes a brasileiro ou a sociedade cujo controle pertença a brasileiro43. Um exemplo marcante é no setor de extração de petróleo, em que, embora não haja necessidade de participação de capital brasileiro, exige-se que a empresa estrangeira interessada em atuar nesse segmento constitua uma sociedade no Brasil, organizada conforme as leis brasileiras e com sede no Brasil44, o que exclui as filiais estrangeiras.

Portanto, ressalvados os setores sensíveis em que o Brasil impõe limites à participação societária estrangeira, pode-se afirmar a viabilidade de uma empresa brasileira ser composta com 100% de capital estrangeiro, o qual pode ser 90% pertencentes a uma sociedade de outro país, e 10% a outra também alienígena. Em situação como tal, o artigo 5º da IN 76/1998, do DNRC, determina que “a sociedade mercantil nacional, constituída apenas por pessoas físicas residentes no exterior e/ou pessoas jurídicas estrangeiras, deverá ser gerenciada ou dirigida por administrador residente no Brasil”. Ainda assim, não precisa ser brasileiro; a obrigação é a residência no Brasil45.

Então, nota-se claramente que a sociedade constituída no Brasil, embora tenha a formatação societária de uma empresa autônoma, é uma coligada em relação à sua cotista majoritária estrangeira, na forma do artigo 1.097 do CC. A estrangeira é a controladora da brasileira, que é a controlada. Os negócios feitos no Brasil serão conduzidos e realizados pela sociedade brasileira (dotada de personalidade jurídica própria e distinta da

41 Lei 7.565/1986. Art. 181. 42 CF/88. Art. 222. Lei 10.610/2002. 43 Lei 8.977/1995. 44 CF. Art. 177 e parágrafos. Lei 9.478/1997, art. 39. 45 A Resolução Normativa 62/2004 do Conselho Nacional da Imigração permite a concessão de visto

permanente a estrangeiro indicado por empresa brasileira para vir ao Brasil atuar na administração dessa empresa, sempre que haja um sócio estrangeiro que tenha aportado ao Brasil, mediante integralização do capital social, o valor equivalente ou superior a US$ 50.000,00. Nesse caso, um estrangeiro indicado – por receber visto permanente – pode atuar como representante da sociedade brasileira, satisfazendo à exigência do artigo 5º da IN 76/1998. Vide sítio oficial do Ministério do Trabalho e Emprego. Disponível em: <http://www.mte.gov.br/trab_estrang/leg_resolucoes_normativas_lista.asp>.

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sua controladora estrangeira); entretanto, na prática, o poder decisório estará sendo exercido pela estrangeira.

5 – CONSIDERAÇÕES FINAIS

A presença de sociedades empresárias estrangeiras no Brasil é uma realidade inafastável. Foi possível observar que a legislação brasileira apresenta duas formas de atuação da empresa estrangeira no Brasil, uma por meio da abertura de filial no País; outra por meio da constituição de uma sociedade nacional, da qual a estrangeira é a controladora. Tanto uma como outra são formas lícitas e viáveis de o capital estrangeiro ingressar diretamente no setor produtivo brasileiro. Cada qual apresenta requisitos e consequências próprias, mas ambas viabilizam o objetivo empresarial.

O estudo permitiu constatar que as duas formas societárias apresentadas mostram pontos de distinção nos requisitos, procedimentos, sujeição à autorização, lei de regência e nacionalidade. Assim, ao passo que a filial submete-se a um rito mais rigoroso e custoso, ela permanece sendo uma sociedade de nacionalidade estrangeira, e, salvo melhor juízo, regida societariamente pela lei estrangeira. Em contrapartida, a coligada brasileira (cuja cotista majoritária é a estrangeira) tem constituição simplificada – tal como se constitui uma sociedade brasileira – e, por ser constituída e sediada no Brasil, não ostenta a mesma nacionalidade de sua controladora, e é regulamentada em termos societários pela lei brasileira.

Ainda que apresentados e esclarecidos os dois regimes (cada qual com suas peculiaridades), é inevitável perceber que a legislação brasileira carece de sistematização a respeito do assunto. Somente o procedimento de autorização à abertura de filial de empresa estrangeira é que está posto no Código Civil de maneira direta e acessível. E é justamente essa a forma que submete a empresa estrangeira aos padrões de insegurança e risco de sujeição aos interesses nacionais, para fins de aprovação e não cassação da autorização. Também foi possível notar que a legislação ordinária sequer permite que se tenha segurança sobre a possibilidade de a empresa estrangeira vir ao Brasil por meio da participação societária em empresa nacional, gerando a falsa impressão de que toda atividade estrangeira no Brasil estaria sujeita à autorização do Poder Executivo para operar no País.

Um assunto de tamanha importância como a recepção do investimento estrangeiro produtivo no Brasil, justamente em um país que é receptor entusiasta do capital de fora, haveria de oferecer clareza e

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transparência nas estruturas societárias concebidas. A omissão legislativa a esse respeito torna necessário que o meio jurídico e o acadêmico auxiliem nesse papel, no sentido de divulgar estudos capazes de ofertar tal conhecimento. O presente ensaio é uma amostra desse interesse.

REFERÊNCIAS

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GESTÃO E PROBIDADE NA PARCERIA ENTRE ESTADO, OS E OSCIP: APONTAMENTOS SOB

A PERSPECTIVA DOS PRINCÍPIOS E NORMAS REGENTES DAS LICITAÇÕES E

CONTRATAÇÕES ADMINISTRATIVAS JESSÉ TORRES PEREIRA JUNIOR*

MARINÊS RESTELATTO DOTTI**

Sumário: 1 – Introdução; 2 – Nota histórica; 3 – Parceria implica responsabilidade; 4 – Os fundamentos constitucionais da gestão pública em parceria; 5 – As Organizações Sociais (OS); 6 – Contrato de gestão; 7 – As Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP); 8 – A escolha da OS ou da OSCIP parceira; 9 – A regra do art. 24, XXIV, da Lei nº 8.666/93; 10 – Inaplicabilidade às OSCIP da regra do inciso XXIV do art. 24; 11 – Transferências voluntárias (repasses) de recursos públicos; 11.1 Das espécies de repasses e os dispositivos aplicáveis; 11.1.1 auxílios; 11.1.2 contribuições; 11.1.3 subvenções sociais; 12 – Dever de licitar; 12.1 Previsão normativa específica; 13 – Cotação prévia de preços no mercado e dever de licitar; 14 – Observância das formalidades inerentes à fase preparatória do procedimento licitatório; 15 – Contratação direta; 16 – Parecer jurídico; 17 – Improbidade administrativa; 18 – O princípio da insignificância não escusa atos de improbidade administrativa; 19 – Lei de Improbidade Administrativa e agentes políticos; 20 – Imprescritibilidade das ações de ressarcimento ao erário, segundo o STF, o STJ e o TCU; 21 – Conclusão: a “fragmentação dos poderes administrativos”.

* Desembargador do TJRJ. ** Advogada da União.

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1 – INTRODUÇÃO

A reforma administrativa do Decreto-Lei nº 200, de 1967, dividiu a estrutura organizacional da Administração Pública brasileira em duas ordens de gestão: a da administração dita direta e a da administração dita indireta. A primeira, integrada pelos órgãos subordinados, sem personificação jurídica própria, que operam os departamentos, diretorias, serviços e seções em que se decompõem os Ministérios, na esfera da União; as Secretarias de Estado, no âmbito dos Governos de cada Estado-membro ou do Distrito Federal; e as Secretarias municipais, na esfera das Prefeituras de cada Município. A segunda, integrada por entidades, cada qual com personalidade jurídica própria e autonomia patrimonial e financeira, vinculadas aos Ministérios ou Secretarias, quais sejam as autarquias, fundações públicas, empresas públicas e sociedades de economia mista (federais, estaduais, distritais ou municipais). Essas duas ordens foram constitucionalizadas nos artigos 37 e 173 do Texto Fundamental de 1988, que lhes deu unidade principiológica e as submeteu a diretrizes gerais.

A Constituição da República de 1988 acrescentou terceira ordem, destinada a revigorar um instrumento de prestação de serviços públicos que se encontrava decadente, sufocado que fora pelas entidades de administração indireta no pós-Guerra 1939-1945, entidades essas que se faziam necessárias na contingência de reconstruir-se, sob o poder estatal, o que destruído fora pelo caos que sempre resulta dos conflitos bélicos. Essa terceira ordem deduz-se do art. 175, segundo o qual os serviços públicos, cuja prestação é da titularidade do poder público – federal, estadual, distrital ou municipal –, podem ser executados, mediante delegação contratual, por empresas privadas que, por vencedoras de prélios licitatórios, se tornam concessionárias ou permissionárias de serviços públicos, sem perderem o caráter privado, nem integrando a administração pública, direta ou indireta, embora sujeitas à política tarifária e ao poder regulamentar do concedente ou permitente. Este, titular exclusivo do dever constitucional de prestar o serviço à população, pode escolher entre ser também o executor da prestação (por órgão da administração direta ou por entidade da administração indireta) ou adotar, como instrumento de execução da prestação, a via da concessão ou da permissão.

Essas três ordens de gestão pública não cobriam, como não cobrem, o amplo espectro dos serviços que, embora não sendo considerados públicos, no sentido de serem incumbência estrita do estado, importam à qualidade de vida, ou ao mínimo existencial, de numeroso contingente de cidadãos,

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em áreas que lhes são básicas, como as da educação, saúde, trabalho, moradia, assistência social ou equilíbrio ambiental, entre outras.

A prevalência essencial da dignidade da pessoa humana, perfilhada entre os princípios cardeais da república e do estado democrático de direito, levou a Carta de 1988 a considerar que, nessas áreas, o estado haveria de intervir não como titular exclusivo das prestações, como ocorre na administração direta, na administração indireta ou na administração por delegação às concessionárias e permissionárias. Tampouco poderia omitir-se ou deixar à própria sorte a ocupação daquele espaço, que, mal ou bem, vinha sendo objeto da atuação de associações privadas que, desde a década de 1930, podiam obter o título – mais honorífico e previdenciário do que operacional – de entidades de utilidade pública.

O estado haveria de entreter uma colaboração efetiva com essas entidades, as existentes e as que poderiam vir a ser constituídas, segundo novos modelos de interlocução sociedade/estado. Tal a origem das chamadas organizações sociais (OS) e organizações da sociedade civil de interesse público (OSCIP), cujo espaço de atuação é aquele que se descortina a partir dos artigos 199, § 1º, 204, I, 205, 216, § 1º, e 227 da Constituição, ao que exemplificados na obra do saudoso Professor DIÓGENES GASPARINI (Direito Administrativo. 14.ed. Saraiva, 2008, p.468).

Se quatro são as ordens de gestão pública traçadas pela Constituição de 1988 (administração direta, administração indireta, administração delegada e administração em parceria), qual o significado da expressão “Terceiro Setor”, que findou consagrada para exprimir a faixa em que atuam as OS e OSCIP?

A denominação leva em conta a natureza e a extensão da ação estatal, que nosso vigente Texto Magno situou no centro de gravidade do processo de desenvolvimento econômico e social que se deve gerir e fomentar de modo sustentado, isto é, com respeito à dignidade da pessoa humana, que, a seu turno, impõe a observância dos direitos e garantias fundamentais, limites às intervenções estatais e prevalência dos recursos naturais renováveis.

O primeiro setor desse processo de desenvolvimento pleno é o da ação estatal por competência própria e exclusiva, seja operando os órgãos subordinados da administração direta, ou as entidades vinculadas da administração indireta, ou, ainda, delegando a execução de serviços públicos a concessionárias e permissionárias, que mantém sob seu poder

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regulamentar e fiscalizatório. De toda sorte, é o estado agindo, intervindo, regulando, supervisionando, em maior ou menor escala.

O segundo setor do processo é o da atuação das sociedades empresárias, que, visando ao lucro, atuam segundo as regras de livre mercado. A postura estatal, aqui, é a de assegurar a liberdade de concorrência e a segurança jurídica das relações, segundo os princípios inscritos no art. 170 da Constituição.

O terceiro setor do processo é o de ação complementar ou supletiva. O ente público se torna parceiro de entidades privadas sem fins lucrativos, que, exatamente por isto, carecem de suporte material para agir em favor daqueles que, também desprovidos de meios suficientes, a ação estatal exclusiva ou delegada não alcança de forma eficaz.

Insinuam-se, desde logo, as inúmeras e delicadas questões que essa parceria haveria de suscitar quando posta a funcionar. É de funcionamento eficiente e eficaz que se deve cogitar. Sentido não haveria – sob a perspectiva do processo de desenvolvimento econômico e social sustentado, com respeito à dignidade da pessoa humana que o deve mover e inspirar, nos termos da Constituição da República – em o estado destinar recursos às OS e OSCIP para que não se cumprissem os objetivos de atendimento à sua clientela natural, composta pelos excluídos dos demais setores do processo ou por estes insuficientemente atendidos.

Essas questões são de variada índole – política, econômico-financeira, jurídica e gerencial. O presente texto pretende reunir apontamentos sobre as questões jurídico-administrativas que se apresentam nas relações entre os parceiros estado/OS/OSCIP, especialmente sob a perspectiva dos princípios e normas regentes das licitações e contratações administrativas, ou seja, óptica voltada, sobretudo, para o seu regular funcionamento.

Não raro, associa-se o chamado Terceiro Setor somente à atuação de organizações não governamentais (ONG), o que é incorreto. Vistas como antagonistas do estado – por dele demandarem atuação mais efetiva ou mesmo diferente da empreendida –, as organizações não governamentais, surgidas no Brasil durante o período da ditadura militar (1964-1985), nenhum vínculo funcional têm, ou precisam ter, com o estado. Desempenham papel de protagonistas do processo de desenvolvimento, chamando a si responsabilidades e encargos de executar, por movimento e consoante critérios próprios, atividades que reputam relevantes para o processo de desenvolvimento, bem como acompanhando e avaliando, com

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indicadores que constroem por sua conta e perspectiva, as ações estatais e seus resultados.

As ONG não representam, no direito brasileiro, uma forma de organização jurídica específica de entidade privada, nem há disciplina a seu respeito em normas positivadas, conquanto algumas a elas se refiram, como é o caso do art. 26 da Lei federal nº 8.742, de 07 de dezembro de 1993 (Lei Orgânica de Assistência Social – LOAS), para o qual o incentivo a projetos de enfrentamento da pobreza assentar-se-á em mecanismos de articulação e de participação de diferentes áreas governamentais e em sistema de cooperação entre organismos governamentais, não governamentais e da sociedade civil.

O termo ONG traduz, na experiência institucional brasileira, a formação de organizações privadas, constituídas principalmente nas décadas de 1970 a 1990, tendo por objetivo a defesa de direitos e a promoção do desenvolvimento sustentável, com eixo principal na redução das desigualdades.

Como exercem papel social reconhecido, sem vínculo algum com o estado – por vezes a ele opondo-se ou censurando-lhe omissões ou imperfeições –, as ONG tendem a ser incluídas no Terceiro Setor com a conotação genérica de setor paralelo à atuação estatal. O fato de se remeterem as ONG ao Terceiro Setor não as faz, necessariamente, entidades colaboradoras do estado, muito menos integrantes de qualquer daquelas quatro ordens de gestão pública – administração direta, indireta, delegada ou parceira. Nem reduz o Terceiro Setor à sua existência. Por isto que o trabalho, meritório, dessas entidades não se inclui nas cogitações do presente estudo. Nem se entende que OS e OSCIP devam ser consideradas ONG em sentido estrito, embora, topograficamente, também sejam organizações não governamentais.

A distinção está em que OS e OSCIP nascem, na iniciativa privada, para colaborar operacionalmente com o estado, ao passo que as demais ONG nenhum vínculo operacional mantêm com o estado, tanto que fazem a sua própria leitura e interpretação dos princípios e normas constitucionais, não raro divergente da leitura e interpretação que deles fazem os programas e projetos governamentais.

A diversidade não impede que, eventualmente, ONG e estado se associem em convênios para a execução de projetos de interesse público comum, desde que, por óbvio, haja convergência de perspectivas. Por isto

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que, nessas circunstâncias, ONG, OS e OSCIP tendem a ser confundidas, o que cumpre, todavia, evitar no campo dos conceitos.

Em suma, o processo de desenvolvimento econômico e social é obra conjunta do estado (primeiro setor), do empresário privado que almeja lucro (segundo setor) ou da entidade privada que não o visa (terceiro setor), cada qual com seus matizes, métodos e regimes, sem embargos de manterem interfaces balizadas pela ordem jurídica.

2 – NOTA HISTÓRICA

A existência de entidades privadas, reconhecidas pelo estado como postas a serviço da comunidade, remonta a 1935, quando1 se editou a Lei federal nº 91, instituidora de regras segundo as quais seriam declaradas de utilidade pública. Recordem-se suas principais normas, na ortografia original:

“Art 1º. As sociedades civis, as associações e as fundações constituidas no paiz com o fim exclusivo de servir desinteressadamente á collectividade podem ser declaradas de utilidade publica, provados os seguintes requisitos: a) que adquiriram personalidade juridica; b) que estão em effectivo funccionamento e servem desinteressadamente à collectividade; c) que os cargos de sua diretoria, conselhos fiscais, deliberativos ou consultivos não são remunerados. Art. 2º. A declaração de utilidade publica será feita em decreto do Poder Executivo, mediante requerimento processado no Ministerio da Justiça e Negocios Interiores ou, em casos excepcionaes, ex-officio. Paragrapho unico. O nome e caracteristicas da sociedade, associação ou fundação declarada de utilidade publica serão inscriptos em livro especial, a esse fim destinado. Art. 3º. Nenhum favor do Estado decorrerá do titulo de utilidade publica, salvo a garantia do uso exclusivo, pela sociedade, associação ou fundação, de emblemas, flammulas, bandeiras ou distinctivos proprios, devidamente registrados no Ministerio da Justiça e a da menção do titulo concedido. Art 4º. As sociedades, associações e fundações declaradas de utilidade publica ficam obrigadas a apresentar todo os annos, excepto por motivo de ordem superior reconhecido, a

1 O texto da Lei nº 91 foi publicado no DOU de 4 de setembro de 1935 e foi regulamentada pelo

Decreto nº 50.517, de 02 de maio de 1961.

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criterio do ministerio de Estado da Justiça e Negocios Interiores, relação circumstanciada dos serviços que houverem prestado à collectividade.”

A vocação dessas entidades, desde o nascedouro, é a de atuarem na promoção do desenvolvimento de segmentos não alcançados plenamente pelas ações estatais. Essas entidades privadas emergiram, no Brasil, com a Reforma do Aparelho do Estado, iniciada em 1995, e que culminou na Emenda Constitucional nº 19, de 1998. O estado repassa-lhes recursos para a realização de ações de interesse da sociedade, por isto também do estado, que nelas encontra parceiras na consecução de objetivos complementares ou suplementares.

As OS e OSCIP assumem, portanto, ao lado de fundações, associações e sociedades civis sem fins lucrativos – o Terceiro Setor –, importante função política e estratégica no processo de desenvolvimento integral. A elas se atribui o papel de atores propulsores de políticas públicas, realizando ações e articulações de fundo educativo, capazes, espera-se, de repercutir na formação, produção e socialização de conhecimentos e práticas relevantes para a cidadania.

É no Título VIII (Da Ordem Social) que a Constituição Republicana de 1988 revela-se pródiga em inserir as entidades do Terceiro Setor como protagonistas na atuação cooperativa com o estado, em segmentos como saúde, educação, cultura, meio ambiente, família, criança e idoso. Releiam-se os dispositivos constitucionais:

“Art. 199. A assistência à saúde é livre à iniciativa privada. § 1º. As instituições privadas poderão participar de forma complementar do sistema único de saúde, segundo diretrizes deste, mediante contrato de direito público ou convênio, tendo preferência as entidades filantrópicas e as sem fins lucrativos.”

“Art. 213. Os recursos públicos serão destinados às escolas públicas, podendo ser dirigidos a escolas comunitárias, confessionais ou filantrópicas, definidas em lei, que: I – comprovem finalidade não lucrativa e apliquem seus excedentes financeiros em educação; (...).”

“Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória

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dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: (...) § 1º. O Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação.”

“Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.”

“Art. 227: É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. § 1º. O Estado promoverá programas de assistência integral à saúde da criança e do adolescente, admitida a participação de entidades não governamentais e obedecendo aos seguintes preceitos: (...).”

3 – PARCERIA IMPLICA RESPONSABILIDADE

A Constituição de 1988 quer reaproximar o estado da sociedade. Prevê, para isto, o exercício compartilhado de atividades, daí as relações de parceria, alicerçadas na mobilização social, na solidariedade e na consensualidade. O que não interessa à sociedade não pode interessar ao estado. A busca de consenso prévio à definição de prioridades, objetivos e metas bem como a adoção de técnicas adequadas de planejamento, execução e controle extraem-se dos princípios e vetores inscritos na Constituição.

A conformação do Terceiro Setor inspira-se na ideia de parceria entre o estado e as pessoas jurídicas de direito privado, constituídas, de acordo com a legislação civil, sob a forma de associações, fundações ou sociedades civis sem fins lucrativos. Tais entidades podem adquirir a qualificação de OS ou OSCIP desde que atendidos os requisitos previstos na legislação de regência, condição que as habilita a receber recursos públicos para a

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implementação dos projetos a que se propõem, na medida em que complementem ou suplementem as ações estatais.

Fernando Borges Mânica2 faz ver que:

“Não há um conceito unívoco de Terceiro Setor, o qual depende da realidade sociocultural e institucional de um dado país. Segundo VITAL MOREIRA, ‘trata-se de um setor intermediário entre o Estado e o mercado, entre o sector público e o privado, que compartilha de alguns traços de cada um deles’. Para o autor, a expressão visa a retratar ‘a prestação de bens e serviços por parte de organizações não estaduais e não lucrativas muito diversas – como as cooperativas, as mutualidades, as igrejas, as organizações beneficentes, as fundações de fins sociais –, muitas vezes baseadas em doações de fundos e na colaboração voluntária’.

Obviamente, o interesse no Terceiro Setor é uma decorrência das políticas reformistas de Estado, as quais provocaram o desmantelamento das estruturas públicas voltadas à prestação de serviços sociais à comunidade. Se é incorreto afirmar que a responsabilidade estatal foi integralmente transferida ao setor privado, certo é que ao menos foi incentivada a corresponsabilidade das entidades privadas (mormente as não lucrativas) na execução dessas atividades socialmente relevantes.

Parece oportuno ressaltar que no Brasil o Terceiro Setor pode ser concebido como ‘o conjunto de atividades voluntárias, desenvolvidas por organizações privadas não governamentais e sem ânimo de lucro (associações ou fundações), realizadas em prol da sociedade, independentemente dos demais setores (Estado e mercado), embora com eles possa firmar parcerias e deles possa receber investimentos (públicos e privados)’. Ou, em termos jurídicos, pode-se sustentar que fazem parte do Terceiro Setor ‘as pessoas jurídicas de direito privado, constituídas de acordo com a legislação civil sob a forma de associações ou fundações, as quais desenvolvam I) atividades de defesa e promoção de quaisquer direitos previstos pela Constituição ou II) prestem serviços de interesse público’.”

2 Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público: Termo de Parceria e Licitação. Biblioteca

Digital Fórum Administrativo. Direito Público – FA, Belo Horizonte, ano 5, n. 49, mar. 2005.

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Os matizes diferenciados de definições sobre a abrangência do Terceiro Setor não enevoam o fato de que as OS e OSCIP, porque assim qualificadas por enquadramento legal, assumem compromissos compartilhados com o estado, indutores de responsabilidades. Não se pode conceber que o estado transfira recursos públicos para entidades privadas, vinculados à aplicação em determinadas atividades, almejando a consecução de objetivos específicos, e daí nenhuma responsabilidade decorra na hipótese de desvios de finalidade na aplicação dos recursos e de concretização dos objetivos e metas predefinidos.

A responsabilidade por eventuais desvios ou insatisfatório desempenho é de mão dupla: da OS ou OSCIP que se descura de cumprir o compromisso compartilhado; e do estado, que descuida de acompanhar e fiscalizar a execução do que compartilhou.

4 – OS FUNDAMENTOS CONSTITUCIONAIS DA GESTÃO

PÚBLICA EM PARCERIA

A Constituição de 1988 enuncia como princípio e objetivo fundamentais da República Federativa do Brasil, respectivamente, a cidadania e a construção de uma sociedade justa, livre e solidária (art. 1º, II, e art. 3º, I). A participação direta dos cidadãos, de modo individual ou associativo, nos assuntos do poder público, encontra assento no art. 1º, parágrafo único – “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”. Cidadania, participação e solidariedade fundamentam o modelo de parceria entre o estado e as OS e OSCIP.

A Constituição considera a participação popular relevante para as escolhas públicas, ao assentar no povo o fundamento do poder. A participação popular apresenta-se possível tanto no controle da gestão pública, por meio do acesso à informação e do exercício da reclamação (art. 37, § 3º), quanto na formulação de políticas e na execução de atividades específicas, vg.: a) art. 58 (“O Congresso Nacional e suas Casas terão comissões permanentes e temporárias, constituídas na forma e com as atribuições previstas no respectivo regimento ou no ato de que resultar sua criação. (...) § 2º. Às comissões, em razão da matéria de sua competência, cabe: (...) II – realizar audiências públicas com entidades da sociedade civil“) (grifamos); b) art. 204 (“As ações governamentais na área da assistência social serão realizadas com recursos do orçamento da seguridade social,

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previstos no art. 195, além de outras fontes, e organizadas com base nas seguintes diretrizes: (...) II – participação da população, por meio de organizações representativas, na formulação das políticas e no controle das ações em todos os níveis”) (o grifo não consta do original).

Igualmente na Constituição acha-se a sede do modelo associativo que impregna a parceria. Releiam-se os incisos XVII a XXI do art. 5º: “XVII – é plena a liberdade de associação para fins lícitos, vedada a de caráter paramilitar; XVIII – a criação de associações e, na forma da lei, a de cooperativas independem de autorização, sendo vedada a interferência estatal em seu funcionamento; XIX – as associações só poderão ser compulsoriamente dissolvidas ou ter suas atividades suspensas por decisão judicial, exigindo-se, no primeiro caso, o trânsito em julgado; XX – ninguém poderá ser compelido a associar-se ou a permanecer associado; XXI – as entidades associativas, quando expressamente autorizadas, têm legitimidade para representar seus filiados judicial ou extrajudicialmente; (...).”

A obrigação constitucional de prestar contas, dirigidas às entidades que integram o Terceiro Setor e que recebam recursos públicos, nos termos do art. 70, parágrafo único, da CR/88, não configura interferência estatal indevida em seu funcionamento (art. 5º, XVIII). O bem jurídico protegido pelo preceptivo constitucional é a fidelidade ao interesse público, por isto que se há de fiscalizar a utilização de bens e valores públicos, ainda quando entregues à gestão de entidades privadas.

Segundo pesquisa divulgada pela Secretaria de Gestão do Ministério do Planejamento, em meados de junho de 2009, as Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP) totalizam no País 5.050, sendo 4.856 federais, 167 estaduais e 27 municipais, e existem 192 Organizações Sociais (OS), sendo seis federais, 115 estaduais e 71 municipais.

5 – AS ORGANIZAÇÕES SOCIAIS (OS)

Para VANICE LÍRIO DO VALLE3, as OS constituem uma das respostas à crise do estado, verbis:

“Crise do Estado, terapia identificada com a necessária intervenção de novos atores no cenário da disciplina e expansão

3 Revista do Tribunal de Contas do Município do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, n.39, p.24, set. 2008.

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das potencialidades úteis do convívio social; eis aí um cenário propício a desafiar a contrarreação trazida em resistência em relação aos novos modelos institucionais e de relações jurídicas que se possa utilizar para a concretização desse novo desenho. Afinal, se de um novo ator se cogita no cenário, significa dizer que a ele se reconhecerá um papel que em princípio era de outrem – e essa é a mudança sempre mais controvertida.

No universo normativo brasileiro, as potencialidades da contribuição da comunidade no cumprimento dos misteres constitucionais era uma ideia presente desde o texto original da Carta de Outubro, externada por uma preocupação em assegurar mecanismos de participação popular. A irradiação, todavia, do movimento de valorização da cidadania organizada como agente ativo na construção das condições de convívio, e a consequente revalorização das estruturas institucionais de organização do Terceiro Setor; essa despontou principalmente por ocasião da Emenda Constitucional nº 19, a partir do ambiente de debate reformista que então se estabelecera. Naquela ocasião, reformar o Estado em resposta às insuficiências do welfare era uma prioridade transnacional, já que essas deficiências estruturais não encontravam fronteiras. Nesse movimento, introduziu o Plano Diretor de Reforma do Estado o conceito de propriedade pública não estatal, ‘... constituída pelas organizações sem fins lucrativos, que não são propriedade de nenhum indivíduo ou grupo e estão orientadas diretamente para o atendimento do interesse público...’. A transferência de atividades que, por não se situarem no núcleo estratégico do Estado, encontrassem melhor estruturação no regime de propriedade pública não estatal se denominou ‘publicização’, que traduz a ideia de translação em favor do Terceiro Setor, de atividades que não envolvessem diretamente o exercício do poder do Estado, mas que presididas por um interesse que se reconhece público estariam a merecer dele ainda o apoio e mesmo o financiamento. A essas atividades, cujo principal artífice não haverá de ser necessariamente uma entidade integrante do aparato estatal, se reconhece, ao contrário, não só espaço, mas preferência para a atuação do Terceiro Setor, através da estrutura que se denominava ‘organizações sociais’.”

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A normatização desse novo arranjo institucional, ou quarta ordem de gestão pública – administração em parceria –, deu-se com a edição da Lei nº 9.637, de 15 de maio de 1998, que fixa a competência do Poder Executivo para qualificar como organizações sociais pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, cujas atividades sejam dirigidas ao ensino, à pesquisa científica, ao desenvolvimento tecnológico, à proteção e à preservação do meio ambiente, à cultura e à saúde. Assim, associações e fundações de direito privado podem qualificar-se como organizações sociais por meio de ato do Poder Executivo, desde que atendam às condições estabelecidas pela Lei nº 9.637/98.

Os serviços trespassados às OS são aqueles insuscetíveis de concessão ou permissão. Os serviços passíveis de concessão ou permissão são os que, nos termos do artigo 175 da CR/88, incumbem com exclusividade ao estado, por envolverem investimentos de porte em serviços essenciais de massa, postos à disposição da população de modo uti singuli, isto é, divisíveis quanto ao consumo individualizado por usuário, por isto que remunerados mediante tarifa, tais como os de transportes coletivos, água e esgoto, energia elétrica e telefonia.

As entidades do Terceiro Setor cuidam de serviços sociais não estatais, com incentivo e fiscalização do estado, mediante vínculo jurídico instituído por meio de contrato de gestão. Na lição de MARÇAL JUSTEN FILHO4, o contrato de gestão, além de não se confundir com a concessão de serviço público, não pode envolver atividades econômicas, tipicamente privadas e instrumento de acumulação lucrativa egoística.

Deve-se saudar a introdução das OS no cenário político-administrativo brasileiro como um avanço significativo para práticas institucionais de solidariedade e de descentralização, pluralismo que pavimenta o caminho para a valorização do homem e o reforço de sua cidadania, de sua liberdade e de sua responsabilidade social, ao que acredita a CR/88.

Nada obstante, inquieta o método de escolha de tais entidades como parceiras do poder público. Por certo que atendidos estariam os princípios da isonomia, da impessoalidade, da moralidade e outros correlatos que regem a gestão do patrimônio público, se, no mínimo:

4 Comentários à lei de licitações e contratos administrativos. 13.ed. São Paulo: Dialética, 2009, p.37.

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a) fosse exigida a realização de licitação5 para a escolha da OS parceira; veja-se que a modalidade licitatória do concurso, prevista no § 4º do art. 22 da Lei nº 8.666/93, guarda satisfatória aptidão para buscar o projeto que mais se ajuste à satisfação do interesse público, respeitada a isonomia entre as entidades interessadas em consolidar parceria com o Poder Público;

b) houvesse comprovação de que a OS estivesse constituída há período de tempo suficiente para demonstrar-lhe a experiência técnico-operacional, com sede, patrimônio e capital próprios, entre outros requisitos atrelados à formação válida da pessoa jurídica e demonstrativos, na prática, de aptidão para concretizar os objetivos em tese definidos em seus atos constitutivos;

c) fosse exigida demonstração de qualificação técnica e idoneidade financeira para administrar os recursos públicos que lhe serão repassados;

d) fosse exigida pertinência temática entre o objetivo social da entidade e os projetos que se propõe a realizar;

e) houvesse a imposição de limites quando o pagamento dos salários de seus dirigentes e empregados dependesse de repasses orçamentários do estado;

f) fosse exigida prestação de garantia, no moldes previstos para os contratos administrativos em geral.

6 – CONTRATO DE GESTÃO

O contrato de gestão, assim denominado pela Lei nº 9.637/98, é o instrumento jurídico da parceria OS/estado. Retrata acordo operacional por 5 MARÇAL JUSTEN FILHO defende que a escolha da entidade interessada em celebrar contrato de

gestão com o Estado devesse adotar o modelo básico da Lei nº 8.987, de 13 de fevereiro de 1995, a qual dispõe sobre o regime de concessão e permissão da prestação de serviços públicos, previsto no art. 175 da Constituição Republicana de 1988. Leciona que as vantagens auferíveis pelo contrato de gestão são similares ao que se passa no regime de concessão, sendo que as peculiaridades do art. 15 da Lei nº 8.987/95 retratam variações plenamente avaliáveis e relevantes a propósito de contrato de gestão. Mas pondera que, ainda quando se supusesse inaplicável a licitação prevista na Lei nº 8.987/95, a contratação direta do contrato de gestão teria de ser antecedida de procedimento específico. Haveria de promover-se oportunidade de disputa, ainda que não subordinada às modalidades específicas de algum dos diplomas pertinentes ao tema. Essa disputa seria norteada por ato convocatório simplificado, que conteria as vantagens que o Estado dispõe-se a conceder. Os particulares teriam de apresentar projetos de atuação, com previsão minuciosa de seus deveres e responsabilidades (Comentários à lei de licitações e contratos administrativos. 13.ed. São Paulo: Dialética, 2009, p.334).

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meio do qual são estabelecidos: a) o programa de trabalho; b) os objetivos a alcançar; c) o cronograma de liberação de recursos orçamentários; d) os critérios de avaliação de desempenho; e) os prazos de execução; f) os limites para despesas e outras condições.

MARÇAL JUSTEN FILHO6 leciona que o contrato de gestão comporta inúmeras figuras jurídicas, da mais diversa natureza. Ou seja, não é possível reconhecer que o contrato de gestão apresente natureza jurídica própria e autônoma. Em alguns casos, nem ato jurídico bilateral existirá, ou seja, nem contrato configurar-se-á. Segundo o autor, o regime jurídico aplicável dependerá da identificação do substrato da relação jurídica pactuada.

Pode assumir, também, a natureza jurídica de contrato administrativo, pelo qual o estado e a entidade do universo privado ajustam um acordo de vontades para a formação de vínculo e a estipulação de obrigações recíprocas7, aproximando a autoridade do setor público da eficiência do setor privado, em determinadas áreas, a fim de que, em última instância, direitos e obrigações revertam em prol do bem-estar coletivo e do interesse público.

Ao estado compete avaliar os resultados dessa congregação de esforços e demonstrar, juntamente com a entidade parceira – a quem é imposto o dever de prestar contas –, a satisfatória aplicação dos recursos e o atendimento do interesse público, à luz da eficácia e da eficiência, como já preceituava o art. 15 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, datada de 1789, verbis: “A sociedade tem o direito e pedir, a todo agente público, que preste conta de sua administração”.

No mesmo sentido o art. 93 do Decreto-Lei nº 200/67, ao estabelecer que quem quer que utilize dinheiro público terá de justificar seu bom e regular emprego na conformidade das leis, regulamentos e normas emanadas das autoridades administrativas competentes. O Decreto n° 93.872/86 reforçou o comando, estatuindo, no art. 66, que: “Quem quer que receba recursos da União ou das entidades a ela vinculadas, direta ou

6 Comentários à lei de licitações e contratos administrativos. 13.ed. São Paulo: Dialética. 2009, p.37. 7 “A referência explícita ao estabelecimento de ‘obrigações recíprocas’ deve ser interpretada em

termos. Não é da essência de todo e qualquer contrato a fixação de obrigações recíprocas para as partes. Para existir um contrato é indispensável a concordância entre as partes quanto à produção de direitos e obrigações. Mas o contrato pode gerar direitos apenas para uma das partes e impor obrigações somente à outra. Isso não afasta a configuração de um contrato.” JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos. 13.ed. São Paulo: Dialética, 2009, p.47.

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indiretamente, inclusive mediante acordo, ajuste ou convênio, para realizar pesquisas, desenvolver projetos, estudos, campanhas e obras sociais ou para qualquer outro fim, deverá comprovar o seu bom e regular emprego, bem como os resultados alcançados”.

A Emenda Constitucional nº 19/98 atualizou em definitivo o dever de prestar contas de toda pessoa, “física ou jurídica, pública ou privada, que utilize, arrecade, guarde, gerencie ou administre dinheiros, bens e valores públicos ou pelos quais a União responda, ou que, em nome desta, assuma obrigações de natureza pecuniária” (art. 70, parágrafo único).

A repercussão sobre as OS instituídas pela Lei nº 9.637/98 é evidente. Como anotou JESSÉ TORRES PEREIRA JUNIOR: “A Emenda provê também para o futuro porque a Lei nº 9.637, de 15.05.98, ao criar a figura da organização social..., declara-a de interesse social e utilidade pública, e autoriza o poder público a destinar-lhe recursos de toda sorte (verbas orçamentárias, bens públicos e até pessoal – arts. 11 a 14) para a realização de planos e programas estabelecidos em contrato de gestão. Certo é que a Lei nº 9.637/98 incumbe os responsáveis pela fiscalização da execução desse contrato de, sob pena de responsabilidade solidária, dar ciência ao Tribunal de Contas ‘de qualquer irregularidade ou ilegalidade na utilização de recursos ou bens de origem pública por organização social’ (art. 9º). Todavia, tal dever de ‘dar ciência’ não incluía na competência do Tribunal o exercício permanente, de ofício, do controle externo sobre as organizações sociais. A Emenda 19 veio fazê-lo... Não se compreenderia que entes públicos celebrassem com pessoas jurídicas privadas contratos de gestão, vocacionados à realização de atividades de interesse social e utilidade pública, repassando-lhes dinheiros, bens e servidores ou empregados públicos, e não houvesse controle sobre a aplicação desses recursos de origem pública pelo só fato de serem geridos por particulares. A natureza pública da função atrai a tutela do direito público sobre as atividades da pessoa privada, impondo-se o controle sobre a fidelidade da aplicação desses meios aos resultados de interesse público almejados pelos contraentes” (Da Reforma Administrativa Constitucional. Renovar, 1999, p.297).

7 – AS ORGANIZAÇÕES DA SOCIEDADE CIVIL DE INTERESSE PÚBLICO (OSCIP)

Espera-se das OSCIP colaboração com o estado na implementação de políticas públicas e na prestação de serviços sociais à população. Nos

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termos da Lei federal nº 9.790, de 23.03.99, a entidade privada sem fins lucrativos adquire essa qualificação especial a partir de ato do Ministério da Justiça, desde que cumpridos determinados requisitos e que desempenhe uma das atividades enumeradas no art. 3°, parágrafo único, por intermédio da: a) realização de projetos, programas e planos de ações correlatas; b) doação de recursos físicos, humanos e financeiros; ou c) prestação de serviços intermediários de apoio a outras organizações sem fins lucrativos e a órgãos do setor público atuantes em áreas afins.

É imprescindível que se saiba de antemão: 1) qual das três formas acima aludidas será a adotada, podendo coexistir mais de uma no mesmo termo de parceria firmado entre o estado e a OSCIP; 2) se a parceria tem caráter complementar ou suplementar aos serviços públicos e demais atividades desenvolvidas pelo parceiro público, jamais podendo caracterizar substituição/terceirização dos serviços até então prestados pelo ente público; 3) a programação específica a cargo do projeto a ser desenvolvido pela OSCIP; e 4) se o objeto da parceria não for um projeto, mas a prestação dos denominados “serviços intermediários de apoio”, quais são esses serviços e como serão executados.

A atuação da OSCIP deve distinguir-se do poder público parceiro, ou seja, deve ser clara a separação entre os serviços públicos prestados pelo órgão público e as atividades desenvolvidas pela OSCIP, de sorte a afastar qualquer forma ilegal de terceirização de serviços públicos, dado que terceirização pressupõe a atuação de sociedades empresárias, concorrentes no mercado8. As OSCIP candidatam-se ao recebimento de incentivos para 8 “Terceirizar’ não significa a transferência integral dos serviços e atividades que fazem parte do

processo das instituições; se assim fosse, estariam estas inteiramente esvaziadas e despidas dos fundamentos econômicos, políticos, sociais, administrativos sobre os quais se ampararam. A verdadeira e legítima terceirização representa a possibilidade de transferir a terceiros apenas algumas atividades de apoio (atividades-meio), ou seja, os serviços da mera rotina de gestão que não dizem respeito aos reais objetivos a serem alcançados... Ocorre que, em algumas situações, tal processo se tem prestado a dissimular a transferência indevida de funções primordiais das instituições, permitindo que pessoas inescrupulosas se locupletem das distorções perpetradas nesse modelo de transferibilidade ao promoverem disfarçada locação de mão de obra... As pessoas administrativas estão capacitadas a terceirizar algumas atividades de apoio, como os serviços de conservação e limpeza, vigilância, copa e cozinha, e outros do mesmo gênero. Essa terceirização é adequada e legítima, formalizando-se por meio de contratação administrativa e procedimento licitatório, como o permitem a Constituição e a legislação aplicável. Entretanto, as funções institucionais primordiais dos entes administrativos são insuscetíveis de terceirização, inclusive e principalmente quando visam a propiciar, por via oblíqua, dissimulada locação de mão de obra – tudo em total descompasso com o sistema adotado constitucionalmente. Aqui estaremos diante de terceirização ilegítima, dela não se podendo socorrer a Administração

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atuarem, gratuitamente, ao lado do ente público, de maneira distinta dele, e não em substituição a ele.

A Lei nº 9.790/99 instituiu o termo de parceria como o instrumento a ser firmado entre o poder público e a OSCIP. Formará o vínculo de cooperação para a execução das atividades previstas em seu art. 3º, a saber: a) promoção da assistência social; b) promoção da cultura, defesa e conservação do patrimônio histórico e artístico; c) promoção gratuita da educação, observando-se a forma complementar de participação das organizações de que trata a Lei; d) promoção gratuita da saúde, observando-se a forma complementar de participação das organizações de que trata a Lei; e) promoção da segurança alimentar e nutricional; f) defesa, preservação e conservação do meio ambiente e promoção do desenvolvimento sustentável; g) promoção do voluntariado; h) promoção do desenvolvimento econômico e social e combate à pobreza; i) experimentação, não lucrativa, de novos modelos socioprodutivos e de sistemas alternativos de produção, comércio, emprego e crédito; j) promoção de direitos estabelecidos, construção de novos direitos e assessoria jurídica gratuita de interesse suplementar; k) promoção da ética, da paz, da cidadania, dos direitos humanos, da democracia e de outros valores universais; l) estudos e pesquisas, desenvolvimento de tecnologias alternativas, produção e divulgação de informações e conhecimentos técnicos e científicos que digam respeito às atividades mencionadas no mesmo artigo.

A reiteração das formas “complementar” e “suplementar”, em ações a serem cumpridas sob a inspiração de valores universais, sublinha a função precípua do termo de parceria: instituir e disciplinar vínculos de colaboração, não de hierarquização – o que não afasta avaliação e controle de resultados –, entre o estado e a sociedade civil. O termo deve discriminar as responsabilidades e obrigações das partes signatárias. Sua celebração deve ser precedida de consulta aos Conselhos de Políticas Públicas das áreas correspondentes, eventualmente instalados e operantes nos respectivos níveis de governo.

Da mesma forma que os contratos de gestão, os termos de parceria podem guardar natureza jurídica de contrato ou de convênio, dependendo da essência da relação jurídica instituída em cada caso.

Pública.” CARVALHO FILHO, José dos Santos. Terceirização no setor público: encontros e desencontros. Revista Fórum de Contratação e Gestão Pública. Fórum, n.89, p.60-71, 2009).

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8 – A ESCOLHA DA OS OU DA OSCIP PARCEIRA

A escolha, pelo estado, da OS ou da OSCIP parceira é questão nuclear da legitimidade da atuação complementar ou suplementar que será desenvolvida. Sustenta-se que, em homenagem aos princípios alinhados na cabeça do art. 37 da CR/88, a que devem obediência todos os órgãos e entidades de qualquer das esferas responsáveis pela gestão pública, deve o estado promover processo licitatório, mormente na modalidade concurso.

Vero é que a competição licitatória presume, de regra, disputa entre sociedades empresárias, ou seja, que visam ao lucro, por isto que apresentarão propostas cujos preços e condições serão aferidos em face das práticas de mercado, figura ausente da seara de atuação das OS e OSCIP. Todavia, tanto o contrato de gestão, no caso de OS, quanto o termo de parceria, no caso de OSCIP, podem prever o repasse, pelo estado, de recursos à entidade parceira, o que deve ser objeto de exame das condições sob as quais serão por esta geridos e aplicados, o que significa que haverá oscilação de custos e de padrão de qualidade, de acordo com as habilitações e a capacidade gerencial de cada qual.

Viabilizam-se e se impõem a definição de projetos e a apresentação de propostas pelas OS ou OSCIP interessadas em celebrar o contrato de gestão ou o termo de parceria, nas condições que o estado verifique serem as mais aptas a garantir a consecução dos resultados almejados, daí a pertinência do certame licitatório. Este, em tese, assegura a observância dos princípios constitucionais aplicáveis à gestão do patrimônio público e a segurança jurídica, a efetividade das ações de controle, interno e externo, sobre os atos praticados e a demonstração da regularidade e da legalidade das despesas, bem assim a eficiência e a eficácia no implemento dos resultados planejados.

Daí a propriedade da modalidade concurso, que, diversamente das demais modalidades de licitação (concorrência, tomada de preços, convite, leilão e pregão), ocupa-se de escolher entre trabalhos técnicos, científicos ou artísticos (Lei nº 8.666/93, art. 22, § 4º) o que se amolda à atividade não lucrativa das OS e OSCIP e à índole de suas atividades, necessariamente correlatas a ações gratuitas, complementares ou suplementares, nos campos da educação, da saúde, da assistência social, da preservação ambiental, do desenvolvimento científico e tecnológico.

Não há legislação que obrigue a realização da licitação para a escolha da entidade privada sem fins lucrativos que com o poder público queira

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celebrar ajuste, seja o contrato de gestão ou o termo de parceria. O que decerto explica a larga utilização do convênio como veículo para a formalização da parceria com o estado.

No caso das OSCIP, o Decreto nº 3.100, de 30.06.99, descreve, minuciosamente9, o procedimento a ser adotado pelo poder público federal para a seleção da entidade parceira. A adoção de tal procedimento proporciona isonomia no tratamento às entidades atuantes em áreas afins, 9 “Art. 24. Para a realização de concurso, o órgão estatal parceiro deverá preparar, com clareza,

objetividade e detalhamento, a especificação técnica do bem, do projeto, da obra ou do serviço a ser obtido ou realizado por meio do Termo de Parceria. Art. 25. Do edital do concurso deverá constar, no mínimo, informações sobre: I – prazos, condições e forma de apresentação das propostas; II – especificações técnicas do objeto do Termo de Parceria; III – critérios de seleção e julgamento das propostas; IV – datas para apresentação de propostas; V – local de apresentação de propostas; VI – datas do julgamento e data provável de celebração do Termo de Parceria; e VII – valor máximo a ser desembolsado. Art. 26. A Organização da Sociedade Civil de Interesse Público deverá apresentar seu projeto técnico e o detalhamento dos custos a serem realizados na sua implementação ao órgão estatal parceiro. Art. 27. Na seleção e no julgamento dos projetos, levar-se-ão em conta: I – o mérito intrínseco e adequação ao edital do projeto apresentado; II – a capacidade técnica e operacional da candidata; III – a adequação entre os meios sugeridos, seus custos, cronogramas e resultados; IV – o ajustamento da proposta às especificações técnicas; V – a regularidade jurídica e institucional da Organização da Sociedade Civil de Interesse Público; e VI – a análise dos documentos referidos no art. 12, § 2º, deste Decreto. Art. 28. Obedecidos aos princípios da administração pública, são inaceitáveis como critério de seleção, de desqualificação ou pontuação: I – o local do domicílio da Organização da Sociedade Civil de Interesse Público ou a exigência de experiência de trabalho da organização no local de domicílio do órgão parceiro estatal; II – a obrigatoriedade de consórcio ou associação com entidades sediadas na localidade onde deverá ser celebrado o Termo de Parceria; III – o volume de contrapartida ou qualquer outro benefício oferecido pela Organização da Sociedade Civil de Interesse Público. Art. 29. O julgamento será realizado sobre o conjunto das propostas das Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público, não sendo aceitos como critérios de julgamento os aspectos jurídicos, administrativos, técnicos ou operacionais não estipulados no edital do concurso. Art. 30. O órgão estatal parceiro designará a comissão julgadora do concurso, que será composta, no mínimo, por um membro do Poder Executivo, um especialista no tema do concurso e um membro do Conselho de Política Pública da área de competência, quando houver. § 1º. O trabalho dessa comissão não será remunerado. § 2º. O órgão estatal deverá instruir a comissão julgadora sobre a pontuação pertinente a cada item da proposta ou projeto e zelará para que a identificação da organização proponente seja omitida. § 3º. A comissão pode solicitar ao órgão estatal parceiro informações adicionais sobre os projetos. § 4º. A comissão classificará as propostas das Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público obedecidos aos critérios estabelecidos neste Decreto e no edital. Art. 31. Após o julgamento definitivo das propostas, a comissão apresentará, na presença dos concorrentes, os resultados de seu trabalho, indicando os aprovados. § 1º. O órgão estatal parceiro: I – não examinará recursos administrativos contra as decisões da comissão julgadora; II – não poderá anular ou suspender administrativamente o resultado do concurso nem celebrar outros Termos de Parceria, com o mesmo objeto, sem antes finalizar o processo iniciado pelo concurso. § 2º. Após o anúncio público do resultado do concurso, o órgão estatal parceiro o homologará, sendo imediata a celebração dos Termos de Parceria pela ordem de classificação dos aprovados.”

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mas não é obrigatório. Assim o diz o art. 23 do Decreto nº 3.100/99: “A escolha da Organização da Sociedade Civil de Interesse Público, para a celebração do Termo de Parceria, poderá ser feita por meio de publicação de edital de concursos de projetos pelo órgão estatal parceiro para obtenção de bens e serviços e para a realização de atividades, eventos, consultorias, cooperação técnica e assessoria. Parágrafo único. Instaurado o processo de seleção por concurso, é vedado ao Poder Público celebrar Termo de Parceria para o mesmo objeto, fora do concurso iniciado”.

A norma regulamentar tende a ser interpretada como mera recomendação, deixando à discricionariedade do administrador a decisão de optar, ou não, pelo concurso. Mas pondere-se que, no estado comprometido com a gestão de resultados (eficiência e eficácia das ações governamentais), em que prevalece a legitimidade (satisfação efetiva do interesse público) sobre a legalidade estrita, também a discricionariedade administrativa está sujeita a controles. O gestor público não dispõe de discrição para escolher caminho ineficiente e ineficaz. A norma lhe abre espaço discricionário para a busca da solução que superiormente consulte a eficiência e a eficácia. Se, no caso concreto, verificar-se que o mau resultado da parceria teve origem em vícios (de projeto ou de qualificação da OSCIP) que poderiam e deveriam haver sido precatados com a realização do procedimento licitatório, concluir-se-á que houve uso indevido da discricionariedade, a gerar responsabilização do gestor ineficiente.

Frise-se que o poder público somente poderá celebrar contrato de gestão (OS) ou termo de parceria (OSCIP), respectivamente, desde que a entidade parceira se apresente devidamente qualificada10, segundo as respectivas leis de regência (Leis nºs 9.637/98 e 9.790/99).

Assim, os princípios do sistema jurídico-administrativo arquitetados na vigente Constituição da República, notadamente os inscritos no art. 37, caput e inciso XXI, não liberam o estado do dever de licitar para escolher a OS com quem celebrará o contrato de gestão, ou a OSCIP com quem firmará o termo de parceria, ainda que inexista comando normativo específico nesse sentido. Reconhece-se que a “contratação” dessas entidades sem fins lucrativos não é idêntica à prevista para obras, bens e serviços, mas a

10 O parágrafo único do art. 5° da Instrução Normativa n° 2, de 30.04.08, do MPOG, adverte que,

quando da contratação de cooperativas ou instituições sem fins lucrativos, o serviço contratado deverá ser executado obrigatoriamente pelos cooperados, no caso de cooperativa, ou pelos profissionais pertencentes aos quadros funcionais da instituição sem fins lucrativos, vedando-se qualquer intermediação.

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utilização da licitação para aquela hipótese (escolha de OS ou OSCIP) cumpre as mesmas finalidades e lógica jurídicas: buscará a proposta ou o projeto que, elaborado por essas entidades, seja o mais apto para produzir os resultados almejados pelo poder público e pela sociedade em seu setor de atuação, ao mesmo tempo em que a competição seletiva assegurará, em tese, o tratamento isonômico devido a todas as entidades que comparecerem ao certame, certo que já se contam aos milhares, no País, as entidades privadas sem fins lucrativos em condições de se qualificarem como OS ou OSCIP e ajustarem parcerias com o poder público.

Recorde-se, ademais, a incidência do princípio da indisponibilidade, que, por si só, obriga o poder público a licitar o contrato de gestão ou o termo de parceria. Dele decorre a vedação a que o estado transfira recursos de qualquer natureza a terceiros por mera liberalidade. O patrimônio público não se encontra à livre disposição dos agentes que o tutelam. Cabe-lhes curá-los segundo os princípios e normas de regência, cuja inobservância os submete a ações de responsabilidade, cujas sanções pretendem ser severas.

O mesmo raciocínio leva a admitir-se a dispensa da licitação ou o reconhecimento de sua inexigibilidade nos casos que se possam enquadrar nas situações definidas nos artigos 24 e 25 da Lei nº 8.666/93. Ilustra-se com a hipótese em que tenha sido realizado um procedimento de consulta simplificado entre as OS ou OSCIP existentes e somente uma delas tenha demonstrado objetivo social ou aptidão para o desempenho das atividades de cooperação pretendida pelo poder público. A exclusividade encaixa-se na inviabilidade de competição a que alude a cabeça do art. 25, de modo a tornar a licitação inexigível.

Por outro lado, o enquadramento em hipótese legal de não licitação atrai a necessidade de motivar-se a contratação direta, mediante a fundamentada demonstração da presença, no caso concreto, dos pressupostos de fato e de direito que a ensejam, além dos demais requisitos aplicáveis previstos no texto da lei geral e no seu art. 26, parágrafo único.

9 – A REGRA DO ART. 24, XXIV, DA LEI Nº 8.666/93

Segundo o disposto no inciso XXIV do art. 24 da Lei nº 8.666/93, é dispensável a licitação “para a celebração de contratos de prestação de serviços com as organizações sociais, qualificadas no âmbito das respectivas esferas de governo, para atividades contempladas no contrato de gestão; (...).”

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Veja-se que a norma refere-se a estágio posterior ao da escolha da OS. A regra de dispensa incidirá depois de já estabelecida a parceria, tanto que torna dispensável a licitação para a contratação de serviços relacionados às “atividades contempladas no contrato de gestão”, ou seja, este preexiste àquela. Daí não se infira que a Lei nº 8.666/93 estaria implicitamente pressupondo a inexistência de licitação para o contrato de gestão. Tenha-se em mente que, nos termos do art. 37, XXI, da CR/88, a regra geral é licitar, ressalvadas tão somente as exceções previstas na legislação. Logo, não se pode presumir contrato sem prévia licitação à falta de expressa dicção legal. A presunção é oposta: omissa a lei, impõe-se o dever constitucional geral da licitação.

Outro é o objeto da dispensa que a norma do inciso XXIV pretende enfatizar: a administração pública poderá dispensar a licitação para contratar serviço a uma OS, quando tal serviço for pertinente à atividade que consta do contrato de gestão já ajustado entre a administração e a OS. Reflita-se sobre a lógica da dispensa: porque já houve licitação quando se contratou a gestão da atividade à OS, torna-se desnecessária nova licitação para verificar-se a aptidão da mesma OS para prestar o serviço pertinente à atividade prevista no contrato de gestão. Logo, a hipótese de dispensa do inciso XXIV em verdade reforça o raciocínio de que a administração deve ter licitado o contrato de gestão.

Também o fato de que a dispensa se refere apenas a serviço, o que exclui obra e compra, acentua a premissa da licitação do contrato de gestão. É que na parceria estado/OS não cabe, como atividade-fim, a realização de obras ou compras; estas serão eventualmente necessárias como suporte para a prestação dos serviços cuja gestão é o objeto da parceria. E para contratar obras e compras com recursos repassados pelo parceiro público, a OS haverá de licitar.

10 – INAPLICABILIDADE ÀS OSCIP DA REGRA DO INCISO XXIV DO ART. 24

Questão polêmica11 envolve a extensão da regra do art. 24, XXIV, à celebração de contratos de prestação de serviços com OSCIP, para a execução de atividades contempladas no termo de parceria.

11 MARÇAL JUSTEN FILHO defende a extensão da regra do inciso XXIV do art. 24 aos contratos de

prestação de serviços com OSCIP, que derivarem dos respectivos termos de parceria, verbis: “Questão que desperta atenção é a do tratamento jurídico dessa outra figura, instituída pela Lei nº 9.790/99, também objeto de análise nos comentários desenvolvidos a propósito do art. 1º. À

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O inciso XXIV foi acrescido ao art. 24 da Lei Geral de Licitações e Contratações pela Lei nº 9.648, de 27 de maio de 1998, ou seja, anteriormente à Lei nº 9.790/99, regente da qualificação de pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, como OSCIP. O rol de dispensas de licitação é taxativo. Ampliá-lo para que alcance as OSCIP seria criar circunstância autorizadora sem previsão em lei, ensejando-se interpretações extensivas a outras contratações de serviços com entidades privadas em condições as mais diversas.

Ademais, a submissão do poder público ao dever de licitar a contratação de prestação de serviços com OSCIP, para atividades contempladas no termo de parceria, deriva do texto constitucional e se estende em igualdade com a obrigação de contratar obras e compras também derivadas do termo de parceria.

Esse o entendimento do Tribunal de Contas da União, verbis:

“9.1.1. as Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público – Oscip, contratadas pela Administração Pública Federal por intermédio de Termos de Parceria, submetem-se ao Regulamento Próprio de contratação de obras e serviços, bem como para compras com emprego de recursos provenientes do Poder Público, observados os princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, economicidade e da eficiência, nos termos do art. 14 c.c. o art. 4º, inciso I, todos da Lei 9.790/99; (...)” (Acórdão nº 1.777/2005, Plenário, Rel. Min. Marcos Vinicios Vilaça. Processo TC 008.011/2003-5, DOU de 22.11.05).

11 – TRANSFERÊNCIAS VOLUNTÁRIAS (REPASSES) DE RECURSOS PÚBLICOS

As transferências voluntárias (repasses) de recursos públicos ao terceiro setor decorrem de decisões do poder público, com base em

organização da sociedade civil de interesse público se aplicam todas as considerações realizadas acima a propósito da contratação com organizações sociais, naquilo em que forem compatíveis com a sua natureza. Nem seria a utilização da denominação termo de parceria que desnaturaria o vínculo jurídico pactuado com a Administração. O termo de parceria está para a organização da sociedade civil de interesse público como o contrato de gestão está para a organização social. A natureza jurídica de ambas as figuras é similar. Portanto e nas condições antes expostas, deve adotar-se licitação para seleção de uma entidade a ser beneficiada por recursos e verbas públicos. Uma vez promovida a seleção, seria possível que as contratações derivadas e acessórias se fizessem sem licitação” (Comentários à lei de licitações e contratos administrativos. 13.ed. São Paulo: Dialética, 2009, p.336).

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programação orçamentária12, sendo destinatárias todas as entidades que com ele (o poder público) celebrem contratos de gestão, termos de parceria, convênios ou outras espécies de ajustes. Visam, como técnica de fomento, a incentivar entidades não lucrativas à realização de atividades de interesse público, hábeis a gerar benefícios para a comunidade. Distinguem-se das transferências obrigatórias, que decorrem diretamente do texto constitucional ou de leis específicas, como, ilustrativamente, a que estabelece que o montante da arrecadação do imposto sobre operações de crédito incidente sobre o ouro, de competência da União, seja transferido nas seguintes proporções: 30% para o Estado, o Distrito Federal ou o Território, conforme a origem, e 70% para o Município de origem (art. 153, § 5º, da CR/88). Somam-se a esta as transferências do art. 159 do diploma constitucional.

As transferências voluntárias também podem ser destinadas a órgão, entidade ou consórcio público (pessoa jurídica formada exclusivamente por entes da Federação, na forma da Lei nº 11.107, de 6 de abril de 2005), que com o ente repassador celebrem convênios ou qualquer outra forma de ajuste13.

As transferências voluntárias ao terceiro setor efetivam-se por meio de auxílios, contribuições ou subvenções sociais.

Há uma diversidade de textos normativos, no âmbito da Administração Pública federal, disciplinando cada uma dessas espécies de repasse, destacando-se como principais: a) a Lei nº 4.320, de 17 de março de 1964, a qual estabelece normas gerais de direito financeiro; b) a Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000, a chamada Lei de Responsabilidade Fiscal; c) o Decreto n° 93.872, de 23 de dezembro de 1986,

12 Constituição Republicana de 1988. “Art. 165. Leis de iniciativa do Poder Executivo estabelecerão:

(...) § 1º. A lei que instituir o plano plurianual estabelecerá, de forma regionalizada, as diretrizes, objetivos e metas da administração pública federal para as despesas de capital e outras delas decorrentes e para as relativas aos programas de duração continuada. § 2º. A lei de diretrizes orçamentárias compreenderá as metas e prioridades da administração pública federal, incluindo as despesas de capital para o exercício financeiro subsequente, orientará a elaboração da lei orçamentária anual, disporá sobre as alterações na legislação tributária e estabelecerá a política de aplicação das agências financeiras oficiais de fomento.”

13 De acordo com a Portaria Interministerial MP/MF/CGU nº 127, de 29 de maio de 2008, a qual estabelece normas para as transferências de recursos da União, contrato de repasse é o instrumento administrativo por meio do qual a transferência dos recursos financeiros se processa por intermédio de instituição ou agente financeiro público federal, atuando como mandatário da União.

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que dispõe sobre a unificação dos recursos de caixa do Tesouro Nacional; d) a Lei nº 11.768, de 14 de agosto de 2008, que dispõe sobre as diretrizes para a elaboração e execução da Lei Orçamentária de 2009; e) a Instrução Normativa da Secretaria do Tesouro Nacional nº 01, de 15 de janeiro de 1997, a qual disciplina a celebração de convênios de natureza financeira que tenham por objeto a execução de projetos ou a realização de eventos.

O art. 25 da Lei Complementar nº 101/00 (Lei de Responsabilidade Fiscal) define a transferência voluntária como sendo a entrega de recursos correntes ou de capital a outro ente da Federação, a título de cooperação, auxílio ou assistência financeira, que não decorra de determinação constitucional, legal ou os destinados ao Sistema Único de Saúde. Nada obstante o aludido art. 25 não se referir a entidades sem fins lucrativos como beneficiárias diretas de repasses de recursos, não se cogita que isso não possa ocorrer de modo indireto ou decorrente. É o caso de o ente público destinatário dos recursos, a título de cooperação, auxílio ou assistência financeira, celebrar parcerias com as OS e OSCIP ou outras entidades sem fins lucrativos, para adimplir compromissos assumidos junto ao ente repassador, situação pela qual se possibilita que a entidade privada venha a receber as transferências voluntárias de um ente público.

11.1 Das Espécies de Repasses e os Dispositivos Aplicáveis

11.1.1 Auxílios

De acordo com o art. 12, § 6º, da Lei nº 4.320/64, são transferências de capital as dotações para investimentos ou inversões financeiras que outras pessoas de direito público ou privado devam realizar, independentemente de contraprestação direta em bens ou serviços, constituindo essas transferências auxílios ou contribuições, segundo derivem diretamente da Lei de Orçamento ou de lei especial anterior, bem como as dotações para amortização da dívida pública.

A Lei n° 11.768/08, em seu art. 34, veda a destinação de recursos a título de auxílios, previstos no art. 12, § 6º, da Lei nº 4.320/64, a entidades privadas, ressalvadas as sem fins lucrativos e desde que sejam: “I – de atendimento direto e gratuito ao público e voltadas para a educação especial, ou representativas da comunidade escolar das escolas públicas estaduais e municipais da educação básica ou, ainda, unidades mantidas pela Campanha Nacional de Escolas da Comunidade – CNEC; II – cadastradas junto ao Ministério do Meio Ambiente para recebimento de

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recursos oriundos de programas ambientais, doados por organismos internacionais ou agências governamentais estrangeiras; III – voltadas a ações de saúde e de atendimento direto e gratuito ao público, inclusive à assistência a portadores de DST/AIDS, prestadas pelas Santas Casas de Misericórdia e por outras entidades sem fins lucrativos, e que estejam registradas no Conselho Nacional de Assistência Social – CNAS; IV – signatárias de contrato de gestão com a Administração Pública Federal, não qualificadas como organizações sociais nos termos da Lei nº 9.637, de 15 de maio de 1998; V – consórcios públicos legalmente instituídos; VI – qualificadas como Organização da Sociedade Civil de Interesse Público – OSCIP, com termo de parceria firmado com o Poder Público Federal, de acordo com a Lei nº 9.790, de 1999, e que participem da execução de programas constantes do plano plurianual, devendo a destinação de recursos guardar conformidade com os objetivos sociais da entidade; VII – qualificadas ou registradas e credenciadas como instituições de apoio ao desenvolvimento da pesquisa científica e tecnológica com contrato de gestão firmado com órgãos públicos; VIII – qualificadas para o desenvolvimento de atividades esportivas que contribuam para a capacitação de atletas de alto rendimento nas modalidades olímpicas e paraolímpicas, desde que formalizado instrumento jurídico adequado que garanta a disponibilização do espaço esportivo implantado para o desenvolvimento de programas governamentais, e demonstrada, pelo órgão concedente, a necessidade de tal destinação e sua imprescindibilidade, oportunidade e importância para o setor público; ou IX – voltadas ao atendimento de pessoas portadoras de necessidades especiais”.

Consoante o disposto no art. 63 do Decreto n° 93.872/86: “Os auxílios e as contribuições se destinam a entidades de direito publico ou privado, sem finalidade lucrativa. § 1º. O auxílio deriva diretamente da Lei de Orçamento (Lei nº 4.320/64, § 6º do art. 12)”.

A IN-STN nº 01/97, em seu art. 1º, § 1º, inciso VII, define auxílio como transferência de capital derivada da lei orçamentária, destinada a atender a ônus ou encargo assumido pela União, e somente será concedida a entidade sem finalidade lucrativa.

No campo da assistência à saúde, a CR/88 proíbe a destinação de recursos públicos para auxílios ou subvenções às instituições privadas com fins lucrativos (art. 199, § 2º).

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11.1.2 Contribuições

Figura igualmente prevista na Lei nº 4.320/64, art. 12, § 2º: “Classificam-se como Transferências Correntes as dotações para despesas as quais não corresponda contraprestação direta em bens ou serviços, inclusive para contribuições e subvenções destinadas a atender à manifestação de outras entidades de direito público ou privado.”; e § 6º: “São Transferências de Capital as dotações para investimentos ou inversões financeiras que outras pessoas de direito público ou privado devam realizar, independentemente de contraprestação direta em bens ou serviços, constituindo essas transferências auxílios ou contribuições, segundo derivem diretamente da Lei de Orçamento ou de lei especialmente anterior, bem como as dotações para amortização da dívida pública”.

O Decreto nº 93.872/86 enuncia: “Art. 63. Os auxílios e as contribuições se destinam a entidades de direito publico ou privado, sem finalidade lucrativa. (...) § 2º. A contribuição será concedida em virtude de lei especial, e se destina a atender a ônus ou encargo assumido pela União (Lei nº 4.320/64, § 6º do art. 12)”.

A IN-STN nº 01/97, em seu art. 1º, § 1º, inciso VI, define contribuição como sendo a transferência corrente ou de capital concedida em virtude de lei, destinada a pessoas de direito público ou privado sem finalidade lucrativa e sem exigência de contraprestação direta em bens ou serviços.

Embora a IN-STN nº 01/97 e o Decreto nº 93.872/86 tenham estabelecido que a destinação de contribuições deva decorrer de lei, em face do disposto no art. 33 da Lei n° 11.768/08 vislumbra-se possível o repasse dessa espécie de recursos para entidades sem fins lucrativos, por meio de parceria firmada com o Poder Público concedente. Veja-se o texto do dispositivo que assim autoriza: “Art. 33. É vedada a destinação de recursos a entidade privada a título de contribuição corrente, ressalvada a autorizada em lei específica ou destinada à entidade sem fins lucrativos selecionada para execução, em parceria com a Administração Pública Federal, de programas e ações que contribuam diretamente para o alcance de diretrizes, objetivos e metas previstas no plano plurianual”.

11.1.3 Subvenções sociais

Art. 12, § 2º, da Lei nº 4.320/64: “Classificam-se como Transferências Correntes as dotações para despesas às quais não corresponda contraprestação direta em bens ou serviços, inclusive para contribuições e

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subvenções destinadas a atender à manifestação de outras entidades de direito público ou privado”. Segundo o § 3º do mesmo dispositivo: “Consideram-se subvenções, para os efeitos desta lei, as transferências destinadas a cobrir despesas de custeio das entidades beneficiadas, distinguindo-se como: I – subvenções sociais, as que se destinem a instituições públicas ou privadas de caráter assistencial ou cultural, sem finalidade lucrativa; (...).”

Ainda na mesma Lei:

“Art. 16. Fundamentalmente e nos limites das possibilidades financeiras, a concessão de subvenções sociais visará à prestação de serviços essenciais de assistência social, médica e educacional, sempre que a suplementação de recursos de origem privada aplicados a esses objetivos revelar-se mais econômica.

Art. 17. Somente à instituição cujas condições de funcionamento forem julgadas satisfatórias pelos órgãos oficiais de fiscalização serão concedidas subvenções.”

O Decreto nº 93.872/86 também dispõe sobre as subvenções sociais, verbis:

“Art. 59. A subvenção se destina a cobrir despesas de custeio de entidades públicas ou privadas, distinguindo-se como subvenção social e subvenção econômica.

Art. 60. A subvenção social será concedida independentemente de legislação especial a instituições públicas ou privadas de caráter assistencial ou cultural sem finalidade lucrativa.

§ 1º. A subvenção social, visando à prestação dos serviços essenciais de assistência social, médica e educacional, será concedida sempre que a suplementação de recursos de origem privada aplicados a esses objetivos revelar-se mais econômica (Lei nº 4.320/64, art. 16).

§ 2º. O valor da subvenção, sempre que possível, será calculado com base em unidades de serviços efetivamente prestados ou postos à disposição dos interessados, obedecidos os padrões mínimos de eficiência previamente fixados (Lei nº 4.320/64, parágrafo único do art. 16).

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§ 3º. A concessão de subvenção social só poderá ser feita se a instituição interessada satisfizer às seguintes condições, sem prejuízo de exigências próprias previstas na legislação específica:

a) ter sido fundada em ano anterior e organizada até o ano da elaboração da Lei de Orçamento;

b) não constituir patrimônio de indivíduo;

c) dispor de patrimônio ou renda regular;

d) não dispor de recursos próprios suficientes à manutenção ou ampliação de seus serviços;

e) ter feito prova de seu regular funcionamento e de regularidade de mandato de sua diretoria;

f) ter sido considerada em condições de funcionamento satisfatório pelo órgão competente de fiscalização;

g) ter prestado contas da aplicação de subvenção ou auxílio anteriormente recebido, e não ter a prestação de contas apresentado vício insanável;

h) não ter sofrido penalidade de suspensão de transferências da União, por determinação ministerial, em virtude de irregularidade verificada em exame de auditoria.

§ 4º. A subvenção social será paga através da rede bancária oficial, ficando a beneficiária obrigada a comprovar, no ato do recebimento, a condição estabelecida na alínea c do parágrafo anterior, mediante atestado firmado por autoridade pública do local onde sejam prestados os serviços.”

Na Lei nº 11.768/08:

“Art. 32. É vedada a destinação de recursos a título de subvenções sociais para entidades privadas, ressalvadas aquelas sem fins lucrativos, que exerçam atividades de natureza continuada nas áreas de cultura, assistência social, saúde e educação, observado o disposto no art. 16 da Lei nº 4.320, de 1964, e que preencham uma das seguintes condições:

I – sejam de atendimento direto ao público, de forma gratuita, e estejam registradas no Conselho Nacional de Assistência Social – CNAS;

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II – sejam formalmente vinculadas a organismo internacional do qual o Brasil participe, tenham natureza filantrópica ou assistencial e estejam registradas nos termos do inciso I do caput deste artigo;

III – atendam ao disposto no art. 204 da Constituição, no art. 61 do ADCT, bem como na Lei nº 8.742, de 7 de dezembro de 1993;

IV – sejam qualificadas como Organização da Sociedade Civil de Interesse Público – OSCIP, com termo de parceria firmado com o Poder Público Federal, de acordo com a Lei nº 9.790, de 23 de março de 1999.”

De acordo com a IN-STN nº 01/97, art. 1º, § 1º, inciso VIII, subvenção social é a transferência que independe de lei específica a instituições públicas ou privadas de caráter assistencial ou cultural, sem finalidade lucrativa, com o objetivo de cobrir despesas de custeio.

12 – DEVER DE LICITAR

OS e OSCIP, que recebam recursos públicos, sejam decorrentes de auxílios, contribuições ou subvenções sociais, estariam obrigadas a licitar a contratação e a alienação de bens, a execução de obras ou a prestação de serviços?

Os defensores da tese de que ditas organizações não estão sujeitas ao dever de licitar argumentam com o fato de não se classificarem como órgãos e entidades da Administração Pública, direta ou indireta, conforme preceitua o caput do art. 37 da CR/88. Sustentam, ainda, que a realização de licitação é incompatível com a natureza de direito privado dessas organizações, dada a preponderância da autonomia da vontade, que faz com que o administrador privado só deixe de fazer o que a lei expressamente proibir, ao contrário do administrador público, a quem só cabe fazer o que a lei determinar.

Vero é que as OS e OSCIP portam capacidade para gerir projetos, assumir responsabilidades, empreender iniciativas e mobilizar os recursos que lhes são repassados, necessários que são à eficaz e eficiente atuação em parceira com o estado, mas pondere-se que, mesmo que se trate de gestão privada de recursos públicos, ditas organizações não se podem esquivar da observância dos princípios e normas que informam a atividade estatal, entre os quais está o dever de promover a licitação para a contratação de bens,

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obras, serviços e alienações. É que os recursos transferidos a essas organizações não perdem a natureza pública, vinculados que são à realização de finalidades de interesse público, por isto que cabe ao administrador privado cumprir os mesmos princípios, as mesmas regras e o mesmo procedimento que presidem as relações contratuais com particulares, como se gestor público fosse.

Ao argumento de que as amarras da lei são obstáculos à eficiente administração dos recursos repassados a essas organizações, tanto que a observância da Lei Geral de Licitações e Contratações gera custos operacionais significativos, incluindo os de contratar pessoal qualificado para a condução dos procedimentos, responda-se que:

a) tais entidades não estão obrigadas a celebrar contrato de gestão ou termo de parceria com o estado, mas, ao fazê-lo, seus administradores devem ter ciência de que a gestão de recursos públicos deve garantir oportunidade a tantos quantos, do ramo do objeto pretendido, tenham interesse em disputar o contrato com essas organizações, em igualdade de condições; a observância do princípio da igualdade nas licitações e contratações diretas exige do administrador público e do administrador privado, responsável pela gestão de recursos públicos, o atendimento às formalidades previstas em lei (princípio da legalidade), conferindo-se previsibilidade aos atos que devam ser produzidos e segurança jurídica aos concorrentes e aos agentes envolvidos no processo da contratação; não se trata de avaliar a oportunidade e conveniência de realizar-se ou não a licitação, mas no poder-dever de realizá-la, de dispensá-la ou inexigi-la, dependendo do caso, prestigiando-se não só os princípios da igualdade e da legalidade, mas seus correlatos, os da impessoalidade, da publicidade, da moralidade e da eficiência; suposta eficiência à margem da lei deixa de sê-lo para transmudar-se em ilegalidade, à mercê do patrimonialismo e do fisiologismo;

b) a adoção do procedimento formal que antecede qualquer contratação, seja mediante licitação ou de forma direta, constitui fator de transparência de toda atividade executada em prol do interesse público, defeso aos administradores dessas organizações executarem objeto diverso do contratado, sob pena de desvio de finalidade, e submetidos ao dever de prestar contas, nos termos do art. 70, parágrafo único, da CR/88;

c) a especialização dos recursos humanos que operacionalizam/executam atividades burocráticas é ingrediente para

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qualquer setor da administração, tanto pública como privada; o custo da capacitação de pessoal, por essencial à sustentabilidade e ao êxito de qualquer atividade, seja econômica, social, beneficente, acadêmica, esportiva, não pode ser rotulado como barreira à eficiência e à eficácia;

d) a responsabilidade por atos de improbidade administrativa – tanto os que causem prejuízo ao erário, que importem enriquecimento ilícito ou atentem contra os princípios da Administração Pública –, como enunciado pela Lei nº 8.429/92, aplicável aos gestores de OS e OSCIP, reforça o dever de atuação destes conforme os princípios e normas de direito público na administração dos recursos repassados pelo poder público.

12.1 Previsão Normativa Específica

O Decreto n° 5.504, de 05 de agosto de 2005, abrandou a polêmica. Seu art. 1º determina que os instrumentos de formalização, renovação ou aditamento de convênios, ou de consórcios públicos, que envolvam repasse voluntário de recursos públicos da União, deverão conter cláusula determinante de que obras, compras, serviços e alienações sejam contratados mediante processo de licitação, de acordo com a legislação federal pertinente.

O § 5° estende a determinação do art. 1° às entidades qualificadas como OS, na forma da Lei nº 9.637/98, ou como OSCIP, na forma da Lei nº 9.790/99, relativamente aos recursos por elas administrados oriundos de repasses da União, em face dos respectivos contratos de gestão ou termos de parceria.

Os demais parágrafos do art. 1º, por força da regra do § 5º, também se aplicam às OS e OSCIP, a saber: “§ 1º. Nas licitações realizadas com a utilização de recursos repassados nos termos do caput, para aquisição de bens e serviços comuns, será obrigatório o emprego da modalidade pregão, nos termos da Lei nº 10.520, de 17 de julho de 2002, e do regulamento previsto no Decreto nº 5.450, de 31 de maio de 2005, sendo preferencial a utilização de sua forma eletrônica, de acordo com cronograma a ser definido em instrução complementar. § 2º. A inviabilidade da utilização do pregão na forma eletrônica deverá ser devidamente justificada pelo dirigente ou autoridade competente. § 3º. Os órgãos, entes e entidades privadas sem fins lucrativos, convenentes ou consorciadas com a União, poderão utilizar sistemas de pregão eletrônico próprios ou de terceiros. § 4º. Nas situações de dispensa ou inexigibilidade de licitação, as entidades

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privadas sem fins lucrativos observarão o disposto no art. 26 da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, devendo a ratificação ser procedida pela instância máxima de deliberação da entidade, sob pena de nulidade”.

Em síntese, destarte, o Decreto nº 5.504/05, obriga OS, OSCIP e demais entidades públicas ou privadas, que recebam recursos provenientes do orçamento da União, a licitarem a contratação de bens, obras e serviços, inclusive na hipótese em que seja necessária a alienação de bens, de acordo com as diretrizes da Lei n° 8.666/93, bem assim das regras instituídas pela Lei nº 10.520/02 e pelo Decreto nº 5.450/05, quando a modalidade licitatória for o pregão, nos formatos presencial e eletrônico.

A regra da licitação só resultará afastada se a contratação do objeto (compra, serviço ou obra) ou a alienação do bem enquadrar-se numa das categorias de exceção previstas nos art. 17, 24 e 25 da Lei nº 8.666/93. Todavia, mesmos nas hipóteses em que é autorizada a contratação direta, ou seja, sem licitação, é dever da entidade, pública ou privada, destinatária dos recursos, observar o devido processo legal, cuja instrução atenderá a todas as formalidades previstas em lei, notadamente as do art. 26 da Lei nº 8.666/93.

13 – COTAÇÃO PRÉVIA DE PREÇOS NO MERCADO E DEVER DE LICITAR

Seguiu-se a edição do Decreto nº 6.170, de 25 de julho de 2007, dispondo sobre as transferências de recursos da União mediante convênios e contratos de repasse. Seu art. 11 estabelece que, para o efeito do disposto no art. 116 da Lei nº 8.666/93, a aquisição de produtos e a contratação de serviços com recursos da União, transferidos a entidades privadas sem fins lucrativos, devam observar os princípios da impessoalidade, moralidade e economicidade, sendo necessária, no mínimo, “a realização de cotação prévia de preços no mercado antes da celebração do contrato”. Cogitou-se, então, de que o art. 11 do Decreto nº 6.170/07 revogou o art. 1º do Decreto nº 5.504/05.

Assim não é, todavia. O art. 11 do Decreto nº 6.170/07 não afasta o dever de licitar da entidade privada sem fins lucrativos que receba recursos provenientes do orçamento da União. Apenas ressalva que a entidade, no mínimo, deve realizar cotação prévia de preços antes de contratar, comando

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normativo que se veio somar a outros textos14 determinantes de que, em todo procedimento licitatório e de contratação direta, a fase preparatória há de ser instruída com a estimativa de preços do objeto, aferida por meio da realização de ampla pesquisa no mercado. A pesquisa de preços, registre-se, objetiva estimar o custo do objeto a ser adquirido, servindo, também: a) à definição dos recursos orçamentários suficientes para a cobertura das

14 Na Lei nº 10.520/02: “Art. 3º. A fase preparatória do pregão observará o seguinte: (...) III – dos

autos do procedimento constarão a justificativa das definições referidas no inciso I deste artigo e os indispensáveis elementos técnicos sobre os quais estiverem apoiados, bem como o orçamento, elaborado pelo órgão ou entidade promotora da licitação, dos bens ou serviços a serem licitados; (...)”. No Decreto nº 3.555/00: “Art. 8º. A fase preparatória do pregão observará as seguintes regras (...) II – o termo de referência é o documento que deverá conter elementos capazes de propiciar a avaliação do custo pela Administração, diante de orçamento detalhado, considerando os preços praticados no mercado, a definição dos métodos, a estratégia de suprimento e o prazo de execução do contrato; III – a autoridade competente ou, por delegação de competência, o ordenador de despesa ou, ainda, o agente encarregado da compra no âmbito da Administração, deverá: a) definir o objeto do certame e o seu valor estimado em planilhas, de forma clara, concisa e objetiva, de acordo com termo de referência elaborado pelo requisitante, em conjunto com a área de compras, obedecidas as especificações praticadas no mercado; (...)V – constarão dos autos a motivação de cada um dos atos especificados no inciso anterior e os indispensáveis elementos técnicos sobre os quais estiverem apoiados, bem como o orçamento estimativo e o cronograma físico-financeiro de desembolso, se for o caso, elaborados pela Administração; (...). Art. 21. Os atos essenciais do pregão, inclusive os decorrentes de meios eletrônicos, serão documentados ou juntados no respectivo processo, cada qual oportunamente, compreendendo, sem prejuízo de outros, o seguinte: (...) III – planilhas de custo; (...)”. No Decreto nº 5.450/05: “Art. 9º. (...) § 1º. A autoridade competente motivará os atos especificados nos incisos II e III, indicando os elementos técnicos fundamentais que o apoiam, bem como quanto aos elementos contidos no orçamento estimativo e no cronograma físico-financeiro de desembolso, se for o caso, elaborados pela administração. § 2º. O termo de referência é o documento que deverá conter elementos capazes de propiciar avaliação do custo pela administração diante de orçamento detalhado, definição dos métodos, estratégia de suprimento, valor estimado em planilhas de acordo com o preço de mercado, cronograma físico-financeiro, se for o caso, critério de aceitação do objeto, deveres do contratado e do contratante, procedimentos de fiscalização e gerenciamento do contrato, prazo de execução e sanções, de forma clara, concisa e objetiva”. Na Lei n° 8.666/93: “Art. 7.° (...) § 2º. As obras e os serviços somente poderão ser licitados quando (...) II – existir orçamento detalhado em planilhas que expressem a composição de todos os seus custos unitários; (...) § 9º. O disposto neste artigo aplica-se também, no que couber, aos casos de dispensa e inexigibilidade de licitação. (...) Art. 15. As compras, sempre que possível, deverão: (...) III – submeter-se às condições de aquisição e pagamento semelhantes às do setor privado; (...) § 6º. Qualquer cidadão é parte legítima para impugnar preço constante do quadro geral em razão de incompatibilidade desse com o preço vigente no mercado. (...) Art. 43. A licitação será processada e julgada com observância dos seguintes requisitos procedimentais: (...) IV – verificação da conformidade de cada proposta com os requisitos do edital e, conforme o caso, com os preços correntes no mercado ou fixados por órgão oficial competente, ou ainda com os constantes do sistema de registro de preços, os quais deverão ser devidamente registrados na ata de julgamento, promovendo a desclassificação das propostas desconformes ou incompatíveis; (...).”

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despesas contratuais; b) à escolha da modalidade licitatória adequada; e c) como parâmetro para a análise das propostas dos licitantes.

Admitir que entidade privada possa contratar com recursos públicos, livre do procedimento licitatório, mediante a só pesquisa de preços no mercado, a esta transformaria de passo preliminar em requisito bastante para contratar com qualquer pessoa que cotasse preço aceitável, sem qualquer outro cuidado quanto à qualificação e condições da contratada para cumprir as obrigações pactuadas e, portanto, atender às finalidades de interesse público que motivaram a contratação.

A propósito, veja-se que, no caso de convênio entre o poder público e entidade privada sem fins lucrativos, existe a determinação para que os recursos públicos repassados sejam aplicados mediante licitação15. É o que prevê o art. 27 da Instrução Normativa da Secretaria do Tesouro Nacional nº 1/97, alterada pela IN nº 03/03, verbis: “O convenente, ainda que entidade privada, sujeita-se, quando da realização de despesas com os recursos transferidos, às disposições da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, especialmente em relação a licitação e contrato, admitida a modalidade de licitação prevista pela Lei nº 10.520, de 17 de julho de 2002, nos casos em que especifica”.

14 – OBSERVÂNCIA DAS FORMALIDADES INERENTES À FASE PREPARATÓRIA DO PROCEDIMENTO LICITATÓRIO

A regra da licitação, aplicável às OS, OSCIP e outras entidades públicas ou privadas que recebam recursos públicos repassados para a contratação de bens, obras, serviços e alienações, não prescinde da observância do devido processo legal, cuja instrução deva atender a todos os requisitos previstos nas normas de regência.

De acordo com o art. 37, inciso XXI, da CR/88, obras, serviços, compras e alienações serão contratados por meio de um processo que

15 “9.2 com fundamento no art. 71, inciso IX, da Constituição Federal, regulamentado pelo art. 45 da

Lei nº 8.443/92, fixar o prazo de 30 (trinta) dias para que o Secretário da Secretaria do Tesouro Nacional/STN dê exato cumprimento à Lei, adequando o parágrafo único do art. 27 da IN/STN nº 01/97, publicada no DOU de 31 de janeiro de 1997, ao art. 37, inciso XXI, da Constituição Federal, que exige lei específica na realização de licitação, no caso a Lei nº 8.666/93, quando da aplicação de recursos públicos, ainda que geridos por particular, sob pena de aplicação da multa prevista no art. 45 c.c. o art. 58, inciso II, da mesma Lei; (...) (Acórdão nº 353/2005, Plenário, Ata 11. Alteração da redação.)” (Acórdão nº 1.070/2003, Plenário, Rel. Min. Ubiratan Aguiar. Processo TC 003.361/2002-2, DOU de 18.08.03).

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assegure igualdade de condições a todos os concorrentes. A ordem constitucional não permite que o contrato celebrado entre a Administração Pública, direta ou indireta, e terceiro, decorrente de licitação ou mediante sua dispensa ou inexigibilidade, resulte de outra sede jurídico-administrativa que não o processo, que deverá conter o registro completo de todos os atos e documentos essenciais à sua instrução e à comprovação de haver sido escolhida a proposta mais vantajosa.

Os princípios da legalidade, moralidade, publicidade, impessoalidade e eficiência, bem como a transparência dos atos que envolvem a aplicação de recursos públicos, exigem a adoção do processo, insubstituível testemunha do cumprimento das metas estabelecidas nos convênios, contratos de gestão, termos de parceria e outras espécies de ajustes com o poder público.

O procedimento licitatório, consubstanciado num processo único, desdobra-se em uma fase interna (preparatória) e outra externa. A primeira encerra-se com a publicação do edital ou com a expedição do convite e observará, entre outros requisitos aplicáveis às peculiaridades do objeto, a seguinte sequência: a) solicitação do objeto; b) justificativa/motivação da contratação; c) autorização para a instauração da licitação pela autoridade competente; d) justificativa para a não utilização do pregão na forma eletrônica (art. 1º, § 1º, do Decreto nº 5.504/05), quando o objeto for a contratação de bens e serviços comuns; e) elaboração do termo de referência ou do projeto básico, vedada a inclusão de especificações que limitem ou frustrem o caráter competitivo do certame, contendo, entre outros dados: e.1) a definição de unidades e quantidades; e.2) a relação entre necessidade da contratação e quantidade do objeto; e.3) o demonstrativo de resultados a serem alcançados; e.4) os custos da prestação do serviço, com a respectiva metodologia; e.5) critérios de aceitação das propostas; e.6) prazo para início e conclusão do objeto; e.7) critério de aceitação do objeto e prazo para substituições; e.8) fixação de prazos para os recebimentos provisório e definitivo; e.9) obrigações do contratado e da contratante; e.10) procedimentos de fiscalização, atestação e gerenciamento do contrato; e.11) sanções; e.12) condições relacionadas à subcontratação parcial do objeto, prevendo-se os limites e as condições; f) aprovação motivada do termo de referência; g) pesquisa de preços praticados pelo mercado/orçamentos; h) indicação da origem e valor dos recursos repassados; i) ato de designação do pregoeiro e da equipe de apoio, quando a modalidade for o pregão, ou da comissão de licitação para as modalidades convencionais da Lei nº

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8.666/93 (concorrência, tomada de preços e convite); j) elaboração do edital e seus anexos; k) análise e aprovação, pela assessoria jurídica, da minuta de edital e seus anexos; l) publicação do edital.

15 – CONTRATAÇÃO DIRETA

As OS e OSCIP que recebam recursos repassados pelo estado podem contratar diretamente compras, obras e serviços correlacionados ao atendimento do objeto do contrato de gestão ou do termo de parceria, respectivamente, desde que o caso concreto se enquadre em uma das hipóteses de inexigibilidade ou dispensa de licitação. Em outras palavras, sujeitam-se às mesmas regras que balizam as contratações dos órgãos da administração direta de qualquer dos poderes públicos (executivo, legislativo e judiciário), de qualquer das esferas da federação, bem assim dos fundos especiais, das autarquias, fundações, empresas públicas, sociedades de economia mista e demais entidades controladas direta ou indiretamente pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios.

É que, ao mesmo tempo em que a CR/88 estabelece, no art. 37, XXI, a regra geral da licitação, prevê, também, que, em casos excepcionais, definidos em lei, bens, obras, serviços e alienações possam ser contratados diretamente, ou seja, é permitido afastar-se a regra, dando-se lugar à exceção. Assim, concilia-se com o sistema jurídico-administrativo constitucional que OS, OSCIP e demais entidades privadas que recebam recursos públicos contratem mediante dispensa ou inexigibilidade, segundo o elenco de hipóteses previsto nos artigos 17, 24 e 25 da Lei n° 8.666/93. O fato de essas entidades não integrarem a administração pública não as exclui do dever de licitar como regra geral e as habilita a contratar sem licitação nas mesmas situações em que a contratação direta se apresenta como possível para os entes públicos.

O fundamento da equiparação encontra-se na finalidade pública que justifica a aplicação de recursos públicos no objeto da contratação. Por isto que o mesmo raciocínio há de prevalecer quando o objeto do contrato der cumprimento a projetos previstos no contrato de gestão (OS) ou no termo de parceria (OSCIP), ainda que o numerário que pagará a compra, a obra ou o serviço não se originar de repasse de ente público; basta, para atrair o regime licitatório, que se trate de compra, obra ou serviço destinado a atender a projeto que motivou o contrato de gestão ou o termo de parceria. Apenas se o objeto da contratação nenhum interesse público contiver, tendo

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por destinatárias as atividades privadas da OS ou OSCIP, não se cogitará de licitação.

Há o devido processo legal da contratação direta, ou seja, todos os atos e documentos a ela pertinentes são peças de um processo, autuado e protocolado, recebendo numeração própria e única. Veja-se que, de acordo com o Decreto nº 5.504/05, quando a hipótese ensejar a contratação direta, as exigências enunciadas no art. 26 da Lei n° 8.666/93 deverão ser fielmente cumpridas, inclusive quanto à sua ratificação. Assim orienta o Tribunal de Contas da União16:

“Nas situações de dispensa ou inexigibilidade de licitação, conforme disposto no Decreto n° 5.504, de 5 de agosto de 2005, as entidades privadas sem fins lucrativos, inclusive as Organizações Sociais e as Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público, observarão o disposto no art. 26 da Lei 8.666, de 21 de junho de 1993, devendo a ratificação ser procedida pela instância máxima de deliberação da entidade, sob pena de nulidade.”

O devido processo legal da contratação direta, com base no art. 17, nos incisos III e seguintes do art. 24, e no art. 25 da Lei n° 8.666/93, observará, de ordinário, a seguinte sequência de atos e documentos: a) solicitação da alienação, da compra, do serviço ou da obra, com sua descrição clara, concisa e objetiva; b) justificativa da necessidade da contratação, caracterizando-se: b.1) a situação de dispensa ou de inexigibilidade de licitação, com os elementos necessários à sua configuração; ou b.2) a situação emergencial ou calamitosa do art. 24, IV, da Lei nº 8.666/93; c) elaboração de projeto básico e executivo, se for o caso; d) realização de pesquisa de preços praticados no mercado, para objetos com características iguais ou semelhantes àquelas que foram definidas (art. 11 do Decreto nº 6.170/07); e) indicação de origem e valor do recurso para a cobertura da despesa do futuro contrato; f) juntada das propostas de preços coletadas e indicação de outros preços obtidos de fontes diversas, se houver; g) justificativa da aceitação do preço ofertado; h) declaração de exclusividade expedida pela entidade competente, no caso de inexigibilidade; i) apresentação das razões da escolha do adquirente do

16 Licitações & Contratos. Orientações Básicas. 3.ed. TCU. p.215. Disponível em:

<http://www2.tcu.gov.br/pls/portal/docs/page/tcu/publicacoes/classificacaoporassunto/licitacoes-contratos/licitacoes-contratos-3aed.pdf>.

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bem, do executante da obra, do prestador do serviço ou do fornecedor do bem; j) comprovação da regularidade fiscal do futuro contratado, juntada da declaração da Lei n° 9.854, de 27 de outubro de 1999, e comprovação da inexistência de impedimento para contratar com o poder público; k) pareceres técnicos ou jurídicos que se mostrem necessários para justificar e/ou configurar a hipótese legal de contratação direta aplicável ao caso; l) autorização do administrador competente; m) comunicação à autoridade superior, no prazo de três dias, do ato administrativo que autoriza a dispensa ou reconhece a situação de inexigibilidade de licitação, para ratificação e publicação na imprensa oficial, no prazo de cinco dias; n) juntada do termo de contrato ou instrumento contratual equivalente; o) inclusão de quaisquer outros documentos relativos à contratação direta e à especificidade de seu objeto.

16 – PARECER JURÍDICO

O parecer jurídico, referido no inciso VI e no parágrafo único do art. 38 da Lei n° 8.666/93 (os quais preceituam, respectivamente, que, no processo da contratação, deva constar parecer jurídico sobre a licitação, sua dispensa ou inexigibilidade, e que as minutas de editais de licitação, bem como as de contratos, acordos, convênios ou ajustes, devam ser previamente examinadas e aprovadas por assessoria jurídica), é de rigor também para a celebração de contratos de gestão e termos de parceria entre o poder público, OS e OSCIP, assim como, igualmente, nas licitações e contratações diretas que estas pretendam realizar na execução de projetos previstos em contrato de gestão ou termo de parceria.

Na primeira hipótese, é atribuição da assessoria jurídica do órgão repassador de recursos a análise jurídica e a aprovação do instrumento que formalizará o ajuste com tais entidades (convênio, contrato de gestão, termo de pareceria ou outro), na forma do disposto no parágrafo único do art. 38 da Lei nº 8.666/93. Veja-se, ilustrativamente, que compete à Advocacia-Geral da União o exercício das atividades de consultoria e assessoramento jurídico ao Poder Executivo Federal, consoante determinam a Constituição Republicana de 1988 (art. 131) e a Lei Complementar nº 73, de 10 de fevereiro de 1993 (art. 11, inciso VI, alíneas a e b), inclusive para a emissão de parecer jurídico imposta pelo inciso VI e pelo parágrafo único do art. 38 da Lei n° 8.666/93. A consultoria e o assessoramento são exclusivos ao Poder Executivo Federal, não sendo transferidos para a análise dos atos e

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documentos que envolvam licitações e contratações realizadas por entidades privadas que recebam recursos públicos da União.

Na segunda hipótese, cada OS ou OSCIP deve contar com sua própria assessoria jurídica, quando houver de contratar, com ou sem licitação, compra, obra, serviço ou alienação de objeto vinculado a projeto previsto em contrato de gestão ou termo de parceria ajustado com o poder público.

17 – IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA

O art. 1° da Lei nº 8.429, de 02 de junho de 1992, a chamada Lei de Improbidade Administrativa, preceitua que os atos de improbidade praticados por qualquer agente público, servidor ou não, contra a administração direta, indireta ou fundacional de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios, de Território, de empresa incorporada ao patrimônio público ou de entidade para cuja criação ou custeio o erário haja concorrido ou concorra com mais de 50% do patrimônio ou da receita anual, estarão sujeitos a penalidades.

As penalidades variam segundo a natureza do ato de improbidade praticado, irrelevante que o autor do ato seja servidor público ou agente privado, desde que o ato:

a) importe enriquecimento ilícito: perda dos bens ou valores acrescidos ilicitamente ao patrimônio; ressarcimento integral do dano, quando houver; perda da função pública, suspensão dos direitos políticos de oito a dez anos, e pagamento de multa civil de até três vezes o valor do acréscimo patrimonial; proibição de contratar com o poder público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo de dez anos;

b) cause prejuízos ao erário: ressarcimento integral do dano; perda dos bens ou valores acrescidos ilicitamente ao patrimônio, se concorrer esta circunstância; perda da função pública, suspensão dos direitos políticos de cinco a oito anos, e pagamento de multa civil de até duas vezes o valor do dano; proibição de contratar com o poder público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo de cinco anos;

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c) atente contra os princípios da Administração Pública: ressarcimento integral do dano, se houver; perda da função pública, suspensão dos direitos políticos de três a cinco anos, e pagamento de multa civil de até cem vezes o valor da remuneração percebida pelo agente; proibição de contratar com o poder público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo de três anos.

O parágrafo único do art. 1º da Lei nº 8.429/92 estende as mesmas penalidades aos atos de improbidade praticados contra o patrimônio de entidade que receba subvenção, benefício ou incentivo, fiscal ou creditício, de órgão público, bem como daquelas para cuja criação ou custeio o erário haja concorrido ou concorra com menos de 50% do patrimônio ou da receita anual, limitando-se, nestes casos, a sanção patrimonial à repercussão do ilícito sobre a contribuição advinda dos cofres públicos.

A Lei nº 8.429/92 considera agente público, para efeito de responsabilidade, aquele que exerce, ainda que transitoriamente ou sem remuneração, por eleição, nomeação, designação, contratação ou qualquer outra forma de investidura ou vínculo, mandato, cargo, emprego ou função nas entidades mencionadas no seu art. 1º, o que, por óbvio, inclui o parágrafo único.

Extrai-se, pois, que os atos que importem enriquecimento ilícito, causem prejuízos ao erário ou atentem contra os princípios da administração pública, praticados por agentes públicos (definidos com a latitude da Lei nº 8.429/92), contra o patrimônio de OS, OSCIP e demais entidades privadas, que recebam qualquer espécie de repasse de recursos públicos, seja decorrente de subvenção social, auxílio ou contribuição17, para a consecução de atividades em parceria com o poder público, sujeitam-nos às penalidades previstas na Lei de Improbidade Administrativa.

Relembre-se que as Leis federais nº 4.320/64 e nº 11.768/08 qualificam as subvenções sociais como espécie de repasse de recursos públicos a entidades privadas, sem fins lucrativos, que exerçam atividades de natureza continuada nas áreas de cultura, assistência social, saúde e educação, que, de acordo com o art. 12, § 6º, da Lei nº 4.320/64, são transferências de capital as dotações para investimentos ou inversões financeiras que outras pessoas de direito público ou privado devam realizar, independentemente de contraprestação direta em bens ou serviços, constituindo essas 17 Subvenções sociais, auxílios e contribuições são provenientes de orçamento público.

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transferências auxílios ou contribuições, segundo derivem diretamente da Lei de Orçamento ou de lei especial anterior.

18 – O PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA NÃO ESCUSA ATOS DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA

O princípio da insignificância não pode ser aplicado para afastar condutas judicialmente reconhecidas como ímprobas, ao que decidiu, por unanimidade, a 2ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, no Recurso Especial nº 892.818, cujo julgamento restabeleceu a condenação de agente público municipal por haver utilizado carros e funcionários públicos para fins particulares.

O voto condutor, do Ministro Herman Benjamin, distinguiu ato de improbidade de irregularidade administrativa, embora espécies do mesmo gênero. O ato antijurídico só adquire a natureza de improbidade se ferir os princípios constitucionais da administração pública. O princípio da moralidade serve ao conceito de boa administração, ao elemento ético, à honestidade, ao interesse público e à noção de bem comum. Daí não se poder conceber que uma conduta ofenda “só um pouco” a moralidade. Se o bem jurídico protegido pela Lei de Improbidade é, por excelência, a moralidade na gestão administrativa, inaplicável é o princípio da insignificância às condutas imorais – “não há como aplicar os princípios administrativos com calculadora na mão, expressando-os na forma de reais e centavos”, consta do voto do relator.

O fato de os agentes públicos não terem disponibilidade sobre os bens e interesses que lhes foram confiados também impede a aplicação do princípio da insignificância, aduz. No sistema jurídico brasileiro, vigora o princípio da indisponibilidade do interesse público, ao qual também o Poder Judiciário está vinculado. “O Estado-juiz não pode concluir pela insignificância de uma conduta que atinge a moralidade e a probidade administrativas, sob pena de ferir o texto constitucional”.

Segue-se a ilação: os atos de improbidade administrativa, praticados contra o patrimônio de OS, OSCIP e demais entidades privadas, que recebam qualquer espécie de repasse de recursos públicos, independentemente do valor auferido ilicitamente ou da dimensão do prejuízo causado ao erário, sujeitam os seus agentes às penalidades previstas na Lei de Improbidade Administrativa, afastada a incidência do princípio da bagatela.

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19 – LEI DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA E AGENTES POLÍTICOS

O Supremo Tribunal Federal, no julgamento da Reclamação nº 2.138/DF, de 13.06.2007, assentou o entendimento de que a Lei de Improbidade Administrativa (Lei nº 8.429/92) não se aplica aos agentes políticos (presidente da república, governadores de estado, prefeitos municipais, senadores, deputados, vereadores, magistrados), por considerar que estes já estão em alcance da Lei dos Crimes de Responsabilidade. Ratificou, destarte, o entendimento de que sujeitos da improbidade são os agentes da administração. Na área de licitações e contratos, são os que especificam objetos, emitem pareceres técnicos ou jurídicos, conduzem procedimentos licitatórios, praticam atos administrativos e ordenam as despesas deles decorrentes.

O traço essencial que distingue o agente político do não político está em que o primeiro encontra suas competências definidas na Constituição, enquanto que o segundo as localiza nas normas infraconstitucionais. Por isto que os agentes não políticos são sobretudo gestores e servidores da administração, que desempenham funções sujeitas a relações hierarquizadas, inexistentes entre os agentes políticos.

MARÇAL JUSTEN FILHO18 acrescenta que há agentes não políticos e não servidores, que “são particulares que atuam como órgãos estatais, mas sem vínculo de subordinação (ainda que assujeitados à fiscalização estatal) ou sem receberem remuneração proveniente dos cofres públicos. (...) Nessa categoria, podem ser indicados os indivíduos que se vinculam ao Estado por relações jurídicas disciplinadas pela Lei nº 8.666/93 (contratos administrativos propriamente ditos) ou pela Lei nº 8.987 (delegação de serviço público). Mas também podem ser apontados os casos de organizações sociais e organizações da sociedade civil de interesse público... há uma tendência marcante à ampliação da atuação da sociedade para a satisfação de necessidades coletivas, o que conduz à assunção da atividade administrativa por particulares. Isso exige disciplina compatível, especialmente para submeter esses sujeitos a regime jurídico equivalente àquele reservado para todos os demais agentes estatais”.

Resulta claro, também sob tal perspectiva, que dirigentes e empregados de OS e OSCIP, responsáveis por recursos repassados pelo

18 Curso de Direito Administrativo. 2.ed. Saraiva. 2006, p. 585-586.

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erário, estão sob o alcance da Lei de Improbidade Administrativa na qualidade de agentes não políticos e não servidores em sentido estrito, corresponsáveis que são pela gestão de recursos públicos vinculados a projetos específicos, daí sua equiparação, para esse efeito, aos agentes públicos não políticos em geral.

20 – IMPRESCRITIBILIDADE DAS AÇÕES DE RESSARCIMENTO AO ERÁRIO, SEGUNDO O STF, O STJ E O TCU

O Supremo Tribunal Federal, ao apreciar o Mandado de Segurança nº 26.210-9/DF, decidiu, por maioria de votos, dar à parte final do § 5º do art. 37 da CR/88 a interpretação de que as ações de ressarcimento, além de imprescritíveis, atingem agentes públicos e demais cidadãos que por seus atos causem prejuízos ao erário. Destaca-se do voto do Relator, Ministro Ricardo Lewandowski:

“... Considerando-se ser a Tomada de Contas Especial um processo administrativo que visa a identificar responsáveis por danos causados ao erário, e determinar o ressarcimento do prejuízo apurado, entendo aplicável ao caso sob exame a parte final do referido dispositivo constitucional (art. 37, § 5º). Nesse sentido é a lição do Professor JOSÉ AFONSO DA SILVA: ‘A prescritibilidade, como forma de perda da exigibilidade de direito, pela inércia de seu titular, é um princípio geral de direito. Não será, pois, de estranhar que ocorram prescrições administrativas sob vários aspectos, quer quanto às pretensões de interessados em face da Administração, quer quanto às desta em face de administrados. Assim é especialmente em relação aos ilícitos administrativos. Se a Administração não toma providência à sua apuração e à responsabilização do agente, a sua inércia gera a perda do seu ius persequendi... Vê-se, porém, que há uma ressalva ao princípio. Nem tudo prescreverá. Apenas a apuração e punição do ilícito, não, porém, o direito da Administração ao ressarcimento, à indenização, do prejuízo causado ao erário. É uma ressalva constitucional e, pois, inafastável, mas, por certo, destoante dos princípios jurídicos, que não socorrem quem fica inerte (dormientibus non sucurrit ius)’.

Ademais, não se justifica a interposição restritiva pretendida pela impetrante, segundo a qual apenas os agentes públicos

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estariam abarcados pela citada norma constitucional, uma vez que, conforme bem apontado pela Procuradoria-Geral da República, tal entendimento importaria injustificável quebra do princípio da isonomia.

Com efeito, não fosse a taxatividade do dispositivo em questão, o ressarcimento de prejuízos ao erário, a salvo da prescrição, somente ocorreria na hipótese de ser o responsável agente público, liberando da obrigação os demais cidadãos. Tal conclusão, à evidência, sobre mostrar-se iníqua, certamente não foi desejada pelo legislador constituinte.”

Também consoante decisão unânime da 2ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, no REsp nº 892.818/RS, as ações de ressarcimento ao erário por danos decorrentes de atos de improbidade administrativa são imprescritíveis. A discussão judicial se travou nos autos de ação dirigida pelo Município de Bauru à Coesa Engenharia Ltda. e outros, formulado pedido de ressarcimento por danos causados aos cofres públicos em decorrência de irregularidades na celebração e execução de contrato para construção de unidades habitacionais.

Para o Relator, Ministro Herman Benjamin, o art. 23 da Lei de Improbidade Administrativa – fixa o quinquênio prescricional para a aplicação das sanções que comina – disciplina apenas a primeira parte do § 5º do art. 37 da CR/88, já que, em sua parte final, a norma constitucional teve o cuidado de deixar “ressalvadas as respectivas ações de ressarcimento”, o que, segundo o relator, é o mesmo que declarar a sua imprescritibilidade.

Entendeu a 2ª Turma do STJ que prescreve em cinco anos a punição do ato ilícito, como a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública e a proibição de contratar com o Poder Público, mas a pretensão de ressarcimento pelo prejuízo causado ao erário é imprescritível. E definiu que as penalidades previstas na Lei de Improbidade Administrativa podem ser aplicadas às alterações contratuais ilegais introduzidas na vigência da norma, ainda que o contrato tenha sido celebrado anteriormente. Isto porque, à vista do princípio tempus regit actum (o tempo rege o ato), deve ser considerado o momento da prática do ato ilícito, e não a data de celebração do contrato.

Dessa forma, após a promulgação da Lei nº 8.429/92, as sanções nela previstas aplicam-se imediatamente aos contratos em execução, desde que

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os ilícitos tenham sido praticados na sua vigência. “A Lei nº 8.429/92 não inventou a noção de improbidade administrativa, apenas lhe conferiu regime jurídico próprio, com previsão expressa de novas sanções, não fixadas anteriormente”, conforme explicitado pelo relator. Antes dela, completa, já se impunha ao infrator a obrigação de ressarcir os cofres públicos. Um dos fundamentos dessa solução encontra-se na efetividade do princípio da moralidade administrativa, com o qual atritaria a interpretação de que as ações de ressarcimento por atos de improbidade administrativa seguiriam a lógica usual dos prazos prescricionais, nos conflitos individuais de natureza privada.

Com o mesmo raciocínio, o Tribunal de Contas da União tem proclamado a imprescritibilidade das ações de ressarcimento contra agentes causadores de danos ao erário. Assim: “9.1. deixar assente no âmbito desta Corte que o art. 37 da Constituição Federal conduz ao entendimento de que as ações de ressarcimento movidas pelo Estado contra os agentes causadores de danos ao erário são imprescritíveis, ressalvando a possibilidade de dispensa de instauração de tomada de contas especial prevista no § 4º do art. 5º da IN TCU nº 56/2007; (...)” (Acórdão nº 2.709/2008, Plenário, Relator Min. Benjamin Zymler. Processo TC 005.378/2000-2, DOU de 01.12.08).

21 – CONCLUSÃO: A “FRAGMENTAÇÃO DOS PODERES ADMINISTRATIVOS”

A Constituição da República de 1988 incorporou, ou inspirou a legislação infraconstitucional a incorporar, instrumentos na dinâmica funcional da administração pública brasileira que sofrem as mesmas dores do processo histórico-cultural de transição entre a gestão patrimonialista do estado e a gestão comprometida com eficiência e eficácia. A compreensão sobre esse processo importa à avaliação das oportunidades de aperfeiçoamento do manejo dos novos instrumentos, que se deve dar sem concessões à improbidade e à ineficiência, em qualquer dos segmentos da administração pública – direta, indireta, delegada ou mediante parcerias.

DANIELA BANDEIRA DE FREITAS, ilustre magistrada do Estado do Rio de Janeiro, vem de oferecer valioso subsídio para essa compreensão, ao divulgar o texto com que obteve louvada aprovação na pós-graduação (mestrado) da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, a demonstrar como, no direito público comparado, aquele processo se

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desenrolou e para que direções está a apontar, rumo ao que denomina de “fragmentação dos poderes administrativos”. A leitura da síntese com que a autora apresenta o trabalho permite vislumbrar os pontos de contato com a realidade brasileira, no presente e no futuro previsível. Confira-se, verbum ad verbum:

“Hoje, porém, em um Estado ‘neoliberal’ e ‘gerencial’, quando as opções políticas de reforma administrativa encontram-se na agenda de vários países da Europa ocidental, assim como de países da América Latina, da América do Norte e até mesmo de países orientais, nas últimas três décadas e, ainda, permanecem como meta não atingida, a Administração Pública passa a ocupar um lugar de destaque, como instrumento que possibilita a execução das escolhas políticas de reforma. Por outro lado, a pluralidade da sociedade moderna e a própria globalização exigem respostas rápidas e efetivas que não mais se compatibilizam com um modelo centralizador de gestão político-administrativa. A fragmentação dos poderes do Estado, nos últimos anos, especialmente de poderes administrativos, sofre um significativo alargamento, o que passa a ser objeto de preocupação pelas ciências jurídico-políticas.

Porém, a dificuldade do tema reside no fato de que tanto a organização da Administração Pública como sua atividade, ou melhor, a sua delimitação administrativa ou jurídica, encontram-se em período de grande instabilidade, seja quanto à determinação do que pode ser considerado como uma organização da Administração Pública, como o que pode efetivamente ser levado em conta como atividade eminentemente pública. Pode-se afirmar, mesmo, que as reformas administrativas operadas nos últimos anos trouxeram reflexos no âmbito organizacional e das atividades administrativas, com influência direta, inclusive, nas formas de distribuição de competências entre os entes territoriais dos Estados, possibilitando uma revisão, em alguns países, de uma tendência centralista histórica, através de um processo de regionalização de Estados unitários, tal como ocorre na Itália e na Espanha.

O fenômeno da fragmentação dos poderes administrativos do Estado surge no âmbito da divisão do território em entidades fracionadas que passam a gozar de personalidade jurídica/coletiva própria e distinta do Estado central e de autonomia no sentido

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orgânico-funcional e no sentido material, de autogoverno e autoadministração. A divisão do Estado em frações distintas e autônomas representa, de um lado, a fragmentação dos órgãos político-administrativos do Estado, e de outro, a fragmentação dos poderes de decisão político-administrativa. O Estado ‘divide-se’ como resposta à busca por uma maior eficácia e eficiência no cumprimento de suas tarefas, que sofrem um significativo alargamento com o advento do Estado social, cujo substrato ideológico foi incentivado pela noção de justiça social e por um modelo de gestão pública, baseado nas práticas econômicas da política de bem-estar.

A análise do fenômeno, porém, não se circunscreve somente ao âmbito da divisão político-administrativa do território do Estado, mas, durante o processo histórico do desenvolvimento do modelo de bem-estar, o poder público conhece novas formas de divisão, ditadas pela impossibilidade do Estado e de suas próprias autonomias territoriais em atender a todas as exigências de um novo modelo de Estado social, pós-Estado liberal, no qual a Administração Pública deixa de ser a simples Administração do Estado e passa a abranger outras formas jurídico-orgânicas institucionais públicas ou privadas, além de aumentar o espaço de novas formas de parceria público-privadas, seja através do resgate da técnica concessória, seja sob a nova leitura do contrato administrativo, agora denominado contrato público, que, por sua vez, passa a ser o instrumento de atuação da Administração Pública em detrimento da prática do ato administrativo. O aumento de tarefas do Estado social prestador dá ensejo ao desenvolvimento de vários fenômenos de fragmentação organizacional e de poderes administrativos, seja através da descentralização ou mera desconcentração, seja através da concessão de autonomias político-administrativas com reflexos na própria forma de Estado federal, unitária e regional, seja através da descentralização da gestão dos serviços, e ainda através do fenômeno da privatização e do descentramento das decisões políticas e administrativas, que passam agora a ser executadas pelos órgãos da União Europeia, em razão da integração de alguns países na Comunidade.

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O fenômeno também torna-se evidente através do processo de reforma e busca por uma eficiência das tarefas públicas, aliada à concepção geral de que o Estado não mais possui condições de prestar todas as tarefas impostas pela Constituição. Neste momento, o setor privado assume um papel de agente colaborador e cooperador no desenvolvimento e na busca pela implantação de um modelo de Estado de bem-estar. As parcerias com a iniciativa privada revelam um processo de fragmentação das atividades da Administração Pública sob uma óptica não somente contratual de bilateralidade, mas de coordenação e colaboração, inserindo a análise do problema em um novo aspecto que foge aos modelos tradicionais de fragmentação institucional e territorial, abrindo-se espaço para novas formas e instrumentos administrativos de atuação, como os contratos, os convênios, os acordos e os consórcios, através dos quais se observam, muitas vezes, interesses multilaterais envolvidos.

Os novos espaços de atuação e organização da Administração Pública encontram-se em aberto, seja por força das rápidas transformações da ‘sociedade em rede’ na era da informática, seja por força da velocidade das transformações sociais em uma sociedade cada vez mais globalizada, em que os contratos públicos se internacionalizam e Estados instituem parcerias, com empresas públicas estrangeiras de capital privado, para executar tarefas administrativas ou prestar serviços públicos em ambos os países das respectivas nacionalidades, ou apenas no país do Estado parceiro. À Administração Pública, hoje, abre-se um leque de opções de gestão de suas atividades e de seu arcabouço organizacional que merecem um enquadramento jurídico-político, inclusive para que as normas e os princípios jurídicos, em especial os princípios constitucionais, possam estabelecer critérios de limite a esta expansão administrativa, de forma a equilibrar a própria coesão necessária à existência e à plenitude do Estado.

Outra forma de fragmentação é observada sob a óptica do direito administrativo. O abandono do ato administrativo como forma principal de atuação da Administração Pública e o incremento da atividade contratual da Administração Pública, sendo o contrato um meio jurídico-privado por excelência, ensejaram um processo de utilização cada vez maior na

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Administração Pública de meios jurídico-privados como instrumentos de execução de suas tarefas, através de contratos privados, em vez da utilização de contratos administrativos. Este processo desencadeou uma ‘privatização’ dos meios jurídicos aplicáveis às relações administrativas, ensejando um verdadeiro direito privado aplicado à Administração Pública de natureza sui generis, pois sofre a vinculação direta de regras e princípios jurídico-públicos. A fragmentação do próprio direito aplicável à Administração Pública possibilitou, assim, uma divisão que antes não existia, qual seja direito público administrativo e direito privado da Administração Pública.

O processo de fragmentação administrativa ora vem acompanhado de um processo histórico de divisão de poderes políticos, ora de um momento de concentração de forças políticas, o que vai determinar ou influenciar a configuração de uma divisão de territórios administrativos dotados de mais ou menos poderes políticos ou de uma divisão de tarefas e funções administrativas, acompanhadas de um maior ou menor controle por parte do Estado central. Este movimento histórico, que entrelaça a divisão administrativa com a divisão dos poderes políticos do Estado, mostra-se impossível de se dissociar, nesta tentativa de enquadramento jurídico-político do tema em estudo. A influência direta do poder político na administração pública revela-se de maneira clara na análise da divisão dos poderes administrativos do Estado.

O Estado, por sua vez, divide-se em territórios político-administrativos ou em territórios apenas administrativos, ao criar pessoas jurídicas de cunho territorial distintas do Estado central, o que remete a uma profunda ligação do fenômeno da fragmentação administrativa do Estado com as formas de Estado que, hoje, se conhece na doutrina do direito público: Estados unitários, federais e regionais.

Portanto, nesta tentativa de enquadramento jurídico-político do tema, pode-se concluir que a fragmentação administrativa do Estado pode ser encarada: I) como um fenômeno que ocorre nos diferentes tipos de Estado, a depender de sua conjuntura histórica; II) como um processo, sob a perspectiva do atual estágio de

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desenvolvimento da Administração Pública moderna, no Século XX e início do Século XXI. Este processo desenvolve-se através de várias formas e modelos organizacionais e funcionais, especialmente, no período pós-Estado social, cuja crise possibilitou o seu incremento, podendo ser assim classificados em três grandes linhas de análise: a) a fragmentação administrativa sob a óptica da organização e das tarefas públicas do Estado; b) a fragmentação administrativa sob a óptica das atividades econômicas desempenhadas pelo Estado; c) e a fragmentação sob a óptica do sistema jurídico do direito administrativo, ou seja, sob a óptica de qual direito será aplicável à Administração Pública, o direito público ou o direito privado?

As diversas formas de fragmentação acabam por colocar em xeque o princípio da unidade político-administrativa do Estado, o que faz com que a Constituição institua limites jurídicos a este processo, com o objetivo de encontrar um equilíbrio que ao mesmo tempo não desnature o pluralismo organizacional e funcional do Estado democrático e não permita o privilégio da unidade, com o risco de que a concentração de poderes impeça a realização e a efetivação da justiça social e da democracia.

E a fragmentação administrativa, hoje, se por um lado apresenta seus benefícios no tocante à busca pela eficiência, pela desburocratização, por uma maior participação democrática (administração pública participativa) e, consequentemente, por uma maior legitimidade das decisões administrativas, por outro, apresenta problemas políticos e administrativos, tais como a dificuldade de controle administrativo, a dificuldade de delimitação do âmbito orgânico-funcional da Administração Pública, a interdependência maior entre poder político e a Administração Pública, e o enquadramento do princípio da igualdade.

Cabe, ainda, ressaltar que o processo de fragmentação caminha em duas direções contrárias, porém concomitantes. Se, por um lado, observa-se uma tímida fragmentação administrativa em matéria de implantação de políticas de bem-estar pela Administração direta, por outro, sob a óptica das atividades administrativas econômicas do Estado, verifica-se uma fragmentação desenfreada, na busca por uma parceria cada vez

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maior com a iniciativa privada, inclusive em áreas consideradas como de competência exclusiva do Estado (tarefas de soberania). Ao que parece, o Estado busca se desfazer de tarefas públicas que exigem grandes investimentos, em razão da impossibilidade de arcar com estes empreendimentos. E, por outro, observa-se que, em matéria de políticas públicas a serem executadas diretamente por ele, verifica-se uma concentração e uma mínima transferência de competências para as entidades administrativas infraestaduais.

Desta forma, neste cenário que apresenta uma Administração Pública dividida e plural, portanto, não se pode afirmar com certeza onde desembocará este ‘rio’ fragmentado por diversos ‘canais’, pois cada qual possui uma extensão distinta a ser analisada e individualizada. A preocupação, entretanto, revela-se naquilo que diz respeito ao necessário enquadramento jurídico-político do tema, que se encontra em fase de amadurecimento doutrinário, seja no âmbito do direito administrativo, seja sob a perspectiva da ciência da Administração Pública. Só a partir deste enquadramento será possível às normas e princípios jurídicos e aos princípios de gestão pública equilibrarem as forças centralizadoras e descentralizadoras da organização e das atividades administrativas do Estado” (A Fragmentação Administrativa do Estado – fatores determinantes, limitações e problemas jurídico-políticos. Universidade de Lisboa, cópia da autora, no prelo).

Em termos de administração em parceria, de que se ocupou o presente artigo, a valorização crescente – recorde-se que já há mais de cinco mil OS e OSCIP atuantes no País – dos ajustes administrativos (contratos e convênios, sobretudo), bi ou multilaterais, sinalagmáticos ou não, confronta a gestão pública brasileira com a opção entre o regime de direito público e o de direito privado predominante, na regência desses ajustes, que já rivalizam com o ato administrativo, centro de gravidade do sistema jurídico-administrativo.

O que se verificou, ao longo do exame dos princípios e normas que se vão sucedendo na matéria, é um confronto de tendências, ora prevalecendo, nas instâncias da execução e do controle, a óptica exclusiva do direito público, ora flexionando-se o regime publicístico em atendimento ao apelo da eficiência e da eficácia, que se supõe superiormente identificado com o modelo privado. A disputa pela primazia guinda também ao primeiríssimo

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plano do sistema jurídico-administrativo contemporâneo a figura do processo administrativo, sede na qual se vão explicitar e fundamentar os motivos e as finalidades que assegurariam, ou não, a correspondência entre o que se contratou, e por que se contratou, e os resultados efetivamente decorrentes do contratado.

Enfim, um desafio a ser enfrentado a cada contexto de planejamento, execução, controle e avaliação da ação administrativa estatal, seja direta, indireta, delegada ou em parceria. Isto porque, na gestão pública que o estado democrático de direito quer eficiente e participativa, a ética da atividade administrativa não mais se atém à legalidade estrita do estado patrimonialista, mas busca no compromisso com os resultados da ação a legitimação da atividade, na medida em que esta atenda às necessidades e às prioridades dos cidadãos, seus destinatários exclusivos.

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A FUNÇÃO SOCIAL DA EMPRESA BRUNO HAACK VILAR*

Sumário: 1 – Introdução; 2 – A empresa; 2.1 A empresa como atividade; 2.2 A empresa como poder; 3 – A função social; 3.1 A socialização da economia; 3.2 A recepção da função social pelo Direito; 3.3 A concretização da função social da empresa; 4 – Conclusão.

Resumo: o presente artigo trata da função social da empresa sob uma óptica interdisciplinar, buscando subsídios na Administração, Direito, Economia e Sociologia. Na primeira parte, caracteriza a empresa do ponto de vista jurídico, trazendo a perspectiva de empresa como liame entre empresário e estabelecimento. Na segunda parte, trata da função social, primeiro do ponto de vista da Sociologia e após do Direito, trazendo também considerações de caráter econômico e gerencial para estabelecer seu conteúdo jurídico.

Palavras-chave: empresa, função social, interesses institucionais, stakeholder theory.

1 – INTRODUÇÃO

O presente trabalho procura determinar o que significa dizer que a empresa deve observar sua função social e quais as consequências desse dever. Na primeira parte, trata-se do conceito de empresa, sob duas ópticas: da atividade e da relação entre o empresário e seus bens. A segunda parte trata da evolução histórica que fez com que o exercício de determinados direitos adquirisse função social, como o Direito recebeu isso e como isso influi no direito de empresa. Ao final, conclui-se, tratando da extração

* Advogado em Porto Alegre – RS. Todas as traduções foram feitas pelo autor.

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imediata de consequências normativas do dever geral de observância da função social

2 – A EMPRESA

Neste capítulo, tratar-se-á de dois conceitos complementares de empresa: aquele que a define como atividade e aquele que a define como poder. A compreensão da relação entre os dois conceitos permite melhor compreender o que é a função social da empresa.

2.1 A Empresa Como Atividade

A empresa, enquanto fenômeno jurídico, é pensada e estudada pela doutrina mais difundida como uma atividade. A forma como ela historicamente vem prevista nos textos legais contribuiu imensamente para que seja assim.

O Código de Comércio francês de 1807 reputava como atos de comércio “as empresas de manufatura, de comissão, de transporte por terra ou por água”, e outras1. Embora não definisse o significado do termo empresa, pelo teor do dispositivo deixava entrever que se tratava de um certo tipo de atividade.

Da mesma forma, o Decreto n° 737, de 1850, que regulava o Código Comercial brasileiro, promulgado no mesmo ano, elencava, em seu artigo 19, como atos de comércio “as emprezas de fabricas; de commissões; de depositos; de expedição, consignação, e transporte de mercadorias; de espectaculos publicos”2, em redação muito semelhante à do Código de Comércio francês, senão no conteúdo, na forma.

Foi com o Codice Civile italiano de 1942, porém, que a empresa tornou-se central para o Direito Comercial e passou a receber maior atenção dos juristas. E esse diploma reforçou a ideia de que a empresa é uma atividade.

1 FRANÇA. Loi 1807-09-14 promulguée le 24 septembre 1807. Disponível em:

<http://www.legifrance.gouv.fr/affichCodeArticle.do;jsessionid=C5865A5D9FB42F10D3EE38C916CF4109.tpdjo07v_3?idArticle=LEGIARTI000006283613&cidTexte=LEGITEXT000006069441&dateTexte=19700709>. Acesso em: 04 mar. 2009. O art. 632, a que se faz referência, está revogado e substituído hoje pelo art. L110-1, com conteúdo idêntido no que tange à citação feita.

2 BRASIL. Decreto n° 737, de 25 de novembro de 1850. Disponível em: <http://www6.senado.gov.br/legislacao/ListaTextoIntegral.action?id=64752>. Acesso em: 05 mar. 2009.

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Segundo esse código, empresário é “quem exercita profissionalmente uma atividade econômica organizada com fim de produção ou de troca de bens ou serviços”3. Esse artigo abre o Título II do Livro Quinto do Código Civil italiano, cujas disposições (e também as dos títulos seguintes) revolvem, em grande parte, em torno da empresa, o que exigiu uma abordagem mais profunda do conceito por parte da doutrina peninsular.

ASQUINI talvez tenha sido o primeiro a enfrentar esse desafio, afirmando que a empresa possuiria quatro perfis: subjetivo, funcional, objetivo e corporativo, aos quais corresponderiam, respectivamente, empresário, atividade empresarial, estabelecimento e organização do trabalho4.

Após ASQUINI, juristas como ASCARELLI concentraram-se no chamado perfil funcional da empresa – a atividade. Estabelecimento e empresário deixaram de ser tratados como perfis da empresa e passaram ser vistos como fenômenos normativos a ela conectados, e o perfil institucional – cujo destaque por ASQUINI se deve muito ao momento histórico que vivia a Itália, então sob o jugo do fascismo – não se tornou juridicamente significativo, pelo menos do ponto de vista do Direito Privado5.

No Brasil, a empresa perdera importância do ponto de vista do Direito devido à fragmentação do Direito Comercial, com a paulatina substituição do Código Comercial por legislação esparsa. O principal motivo dessa perda de relevância, contudo, foi a extinção da jurisdição comercial, cuja competência era definida principalmente pela verificação ou não da qualidade de comerciante de pelo menos uma das partes e de um ato de comércio (entre os quais se encontravam as empresas do art. 19 do Decreto n° 737, acima citado).

3 ITALIA. Regio Decreto 16 marzo 1942, n. 262. Disponível em:

<http://www.altalex.com/index.php?idnot=34794>. Acesso em: 13 maio 2008. V. art. 2.082. 4 ASQUINI, Alberto. Perfis da empresa. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro,

Nova Série, ano XXXV, n. 104, p.108-126, p.110, out.-dez. 2006. NICOLÒ questiona a existência de um perfil corporativo, afirmando que ele não possui, no estado atual, consistência, e “se um dia se tornará indubitavelmente significativo, como fato normativo, terá acabado por substituir o atual aspecto subjetivo do fenômeno, ou seja o empresário”. V. NICOLÒ, Rosario. Reflexões sobre o tema da empresa e sobre algumas exigências de uma moderna doutrina do direito civil. Tradução de Cássio Machado Cavalli, p.11. (Acervo Particular). O original pode ser encontrado na Rivista del diritto commerciale e del diritto generale delle obbligazioni, Anno LIC (1956), parte prima, Dott. Milano: Francesco Vallari, p.177-195.

5 V. comentário de NICOLÒ, reproduzido na nota anterior.

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O Código Civil de 2002, porém, reintroduziu a empresa no Direito brasileiro, definindo o empresário nos mesmos termos do Codice Civile em seu art. 966: “considera-se empresário quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços”6. A marcada influência italiana na redação do dispositivo fez com que os juristas brasileiros buscassem subsídios na doutrina peninsular, o que os levou a ASQUINI, ASCARELLI e outros autores dessa tradição e fez com que também no Brasil a empresa seja estudada principalmente como atividade.

Esse não é, porém, o único caminho possível de ser percorrido.

2.2 A Empresa Como Poder

ROSARIO NICOLÒ vê a empresa como um liame entre empresário e estabelecimento. Como ele reconhece, suas observações, com relação à visão da empresa como atividade, “possuem somente o valor de uma especificação conceitual, até mesmo se de notável momento”7. Seu objetivo é situar a empresa nos esquemas conceituais tradicionas do Direito Civil.

O autor identifica a seguinte dicotomia:

“O empresário pode ser tal ou porque desenvolveu e desenvolve uma certa atividade, ou porque torna-se titular de uma nova posição jurídica em relação àquele complexo dos bens que preliminarmente receberam do sujeito aquela particular destinação. Na primeira configuração, a atividade do empresário seria uma pura e simples projeção da pessoa, um modo de ser de sua autonomia subjetiva; na segunda, a atividade mesma constituiria o exercício dos poderes e das faculdades (e também dos deveres), que se colocam como conteúdo daquela nova posição jurídica subjetiva.”8

Para o autor, os profissionais intelectuais enquadram-se no primeiro caso, ou seja, adquirem um status profissional e nada mais; os empresários, por sua vez, adquirem um direito subjetivo novo, mais precisamente um poder:

6 BRASIL. Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/CCIVIL/leis/2002/L10406.htm>. Acesso em: 06 mar. 2009. 7 NICOLÒ. Reflexões sobre o tema..., p.11. 8 Ibidem, p.8.

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“A preexistência daqueles direitos sobre bens singulares constitui por essa razão o pressuposto que justifica, juntamente com o certificar-se dos outros elementos da fattispecie, o surgimento de um poder jurídico novo (aqui a novidade concerne ao poder, não ao objeto, como ao invés é sustentado por aqueles que na organização dos bens a uma finalidade produtiva vendem a criação de um novo bem imaterial, ou seja, da organização, sobre a qual surge um direito de propriedade análogo a este que tem por objeto os bens imateriais) que possui como seu conteúdo essencial a gestão do complexo (ou seja, um gozo qualificado da função), mas o conteúdo daqueles direitos não se confundem e não se identificam com o conteúdo deste.”9

E segue, aprofundando a ideia:

“A aquisição da qualidade de empresário possui, em sede construtiva, o significado de aquisição por parte do sujeito de uma complexa situação jurídica ativa que tem por objeto o estabelecimento e por conteúdo o poder de gestão. Essa situação jurídica ativa, perfeitamente ajustável ao conceito de direito subjetivo (ao menos como o é aquela situação jurídica, igualmente complexa e uniforme, que é a propriedade), é, a meu modo de ver, aquela que se esconde sob a denominação empresa. A empresa, considerada como direito subjetivo, torna-se consequentemente a ponte de ligação entre o sujeito (empresário) e o objeto (estabelecimento). O empresário não é senão o sujeito titular do direito de empresa (expressão que não se confunde com aquela noção, um pouco evanescente, e relevante, se for o caso, sobre um outro plano, de direito à empresa), assim como o proprietário é o sujeito titular do direito de propriedade.”10

Esse poder de gestão, que NICOLÒ afirma ser o conteúdo do direito de empresa, pode ser equiparado ao poder de controle, tal como analisado por FÁBIO KONDER COMPARATO em sua clássica obra O Poder de Controle na Sociedade Anônima. O professor paulista afirma, de forma quase casual, que

9 Ibidem, p.9. 10 Ibidem, p.10-11.

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“o controle não é um bem da empresa e, sim, um poder sobre ela”11, e se aproxima ainda mais de NICOLÒ ao dizer que o controle só pode ser definido em função do direito de propriedade12. Não à toa, COMPARATO

afirma que “[s]e faz algum sentido introduzir o conceito legal de ‘empresário’, em substituição ao ‘comerciante’ do direito tradicional, deve-se reconhecer que ele se aplica ao titular do poder de controle sobre bens de produção”13. Se o controlador é o empresário, que dirige os bens de produção, o poder de controle se equipara à empresa, tal como definida por NICOLÒ. Assim, direito de empresa, no sentido de NICOLÒ, e controle, no sentido de FÁBIO KONDER COMPARATO, se confundem.

Uma das principais preocupações de COMPARATO é justamente o “controle do controle”, pois, segundo ele, “perante uma propriedade desse tipo [a empresa], a problemática fundamental não é a proteção e a tutela contra turbações externas, mas sim a de fiscalização e disciplina do seu exercício a fim de se evitar abuso ou desvio de poder”14.

Embora faça menção expressa à função social, a preocupação declarada do autor no trecho citado é com o abuso de poder do controlador relativamente aos demais acionistas e ao interesse social15. CALIXTO

SALOMÃO porém adverte logo em seguida que

“na verdade, pode-se sustentar que a função social da empresa e do empresário que exercita o controle é muito mais e na verdade até mesmo algo diferente dos deveres com os demais sócios. Trata-se de impor deveres positivos perante terceiros (não sócios) afetados pela atividade empresarial”16.

A visão acerca da função social que CALIXTO SALOMÃO expressa rudimentarmente nessas linhas corresponde àquela da maioria dos doutrinadores. Todavia, grande parte dos estudos que tratam do tema tem certa dificuldade em definir o conteúdo material do princípio em questão e os deveres que dele decorrem para o titular de um determinado direito subjetivo. Tentar-se, a seguir, superar essas dificuldades.

11 COMPARATO, Fábio Konder; SALOMÃO FILHO, Calixto. O Poder de Controle na Sociedade Anônima.

Rio de Janeiro: Forense, 2005, p.119. 12 Ibidem, p.121. 13 Ibidem, p.130. 14 Ibidem, p.130. 15 V. p. 131 da mesma obra. 16 Ibidem, p.131.

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3 – A FUNÇÃO SOCIAL

Este capítulo iniciar-se-á indagando o que significa dizer que um determinado instituto jurídico exerce função social, para em seguida tratar dos reflexos disso no Direito. Na última parte, serão abordadas as instituições criadas pela sociedade para garantir que as empresas efetivamente exerçam função social.

3.1 A Socialização da Economia

KARL RENNER ilustra como o processo de produção, distribuição e consumo era eminentemente privado durante a Idade Média:

“O patrimônio de uma pessoa fornece o local da produção para o mestre e os membros de sua casa, ele contém oficina e armazém, cômodo para fiar e tecer, uma horta e outra área para cultivos e comumente uma participação no bosque comunitário. Ele fornece, na forma da pequena loja de rua, o espaço para a troca de bens. Como o artesão produz diretamente para um consumidor, uma transação cobre venda, compra, resumidamente, toda a distribuição, a realização de valor e valor excedente. Ao mesmo tempo, o patrimônio serve ainda como o lugar e a estrutura de consumo, como lar e fogão17, porão e despensa.”18

Embora houvesse trocas, elas ocorriam entre seres que viviam uma vida privada (da perspectiva econômica), e não social.

O capitalismo, porém, modifica essa realidade:

“Que tomou o lugar da casa familiar? Uma de suas partes, a oficina, se perdeu. (...) de regra, as muitas pequenas oficinas fundiram-se em grandes fábricas. O mesmo aplica-se ao local para armazenagem e ao cômodo para fiar e tecer, que foram reunidos em grandes fábricas têxteis. As pequenas hortas cederam ao estabelecimento de fazendeiros profissionais nos limites da cidade (...).”19

17 A palavra no original é hearth, que, numa tradução literal, corresponderia a lareira. É preciso,

todavia, ter em mente a estrutura de uma típica casa medieval, em que a lareira e o fogão se confundiam – ali se cozinhava e se fazia fogo para esquentar a casa. O termo fogão foi preferido em virtude do contexto.

18 RENNER, Karl. The Institutions of Private Law And Their Social Functions. Introdução de Otto Kahn-Freund. London: Routledge & Kegan Paul Limited, 1949, p.84.

19 Ibidem, p.87.

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Esse movimento leva RENNER a afirmar que “de repente torna-se aparente para nós que a propriedade tornou-se uma utilidade pública”20, pois

“se o camponês individual deixasse sua terra descansar, ele não causava prejuízo a ninguém e apenas reduzia seu próprio sustento. Mas o dono de mina que a fecha corta o combustível de todos, priva seus trabalhadores de seu meio de vida e talvez aumente seus rendimentos com o aumento no preço do carvão.”21

A socialização da economia, calcada na divisão do trabalho e na publicização do consumo, faz com que a propriedade adquira uma função social – ou seja, um papel no processo social de produção e reprodução –, transcendendo o âmbito privado, que a caracterizava na Antiguidade Clássica e Idade Média, e tornando-se pública. Nem toda propriedade, porém, passa por essa transformação. Como afirma EROS GRAU:

“Enquanto instrumento a garantir a subsistência individual e familiar – a dignidade da pessoa humana, pois –, a propriedade consiste em um direito individual e, iniludivelmente, cumpre função individual. (...) A essa propriedade não é imputável função social; apenas os abusos cometidos no seu exercício encontram limitação, adequada, nas disposições que implementam o chamado poder de polícia estatal.”22

Por isso afirma o autor que “incidindo pronunciadamente sobre a propriedade dos bens de produção, é que se realiza a função social da propriedade”23.

Essas transformações, ocorridas no plano dos fatos, acabaram por gerar reflexos no Direito.

3.2 A Recepção da Função Social pelo Direito

Foi DUGUIT a introduzir a ideia de função social entre os juristas. Desenvolveu-a em contraposição à noção de direito subjetivo, que assim apresenta:

“Tomad lo que se ha convenido en llamar derechos (…); veréis fácilmente que se traducen siempre de hecho en el poder que

20 Ibidem, p.120. 21 Ibidem, p.267. 22 GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988. São Paulo: Malheiros, 2005, p.235. 23 Ibidem, p.237.

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tengo de imponer, incluso por la fuerza, a otros individuos mi propia voluntad.”24

Em seguida, nega a ideia de direito subjetivo, afirmando a função social:

“El hombre no tiene derechos; la colectividad tampoco. Pero todo individuo tiene en la sociedad una cierta función que cumplir, una cierta tarea que ejecutar. Y ese es precisamente el fundamento de la regla de Derecho que se impone a todos.”25

Segundo o autor:

“La regla jurídica, que se impone a los hombres, no tiene por fundamento el respeto y la protección de derechos individuales que no existen, de una manifestación de voluntad individual que por si misma no puede producir ningún efecto social. Descansa en el fundamento de la estructura social, la necesidad de mantener coherentes entre sí los diferentes elementos sociales por el cumplimiento de la función social que incumbe a cada individuo, a cada grupo.”26

A proposta de abdicar-se do conceito de direito subjetivo, por ser incompatível com o liberalismo então reinante, não foi bem recebida entre os juristas. É de se reconhecer que ainda hoje permanece essa incompatibilidade com o sistema jurídico dos países ocidentais, baseado no Estado Democrático de Direito, em que se reconhece e valoriza a capacidade de autodeterminação das pessoas. No entanto, as transformações narradas por RENNER se impuseram e, com o tempo, obrigaram a uma revisão da estrutura do direito subjetivo para nela incluir-se a função social.

Como afirma EROS GRAU:

“A transformação da faculdade em ato, quando juridicamente autorizada – e aí o direito subjetivo –, deve ser exercida dentro dos limites da autorização. (...) O Direito pode, coerentemente, introduzir como elementos integrantes da autorização a alguém

24 DUGUIT, León. Las transformaciones del Derecho Publico y Privado. Buenos Aire: Heliasta S. R. L.,

[s.d.], p.175. 25 Ibidem, p.178. 26 Ibidem, p.181.

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para o exercício de uma faculdade inúmeros requisitos, inclusive criando obrigações e ônus para o titular do direito subjetivo.”27

Historicamente, o exercício dos direitos subjetivos sempre foi limitado por normas, como a tradicional neminem laedere. A função social trouxe um novo tipo de limitação, fundada no valor que o exercício de um direito tem para a coletividade. Uma de suas caracterísitcas mais destacadas pela doutrina é assim descrita por EROS GRAU:

“O princípio da função social da propriedade impõe ao proprietário – ou a quem detém o poder de controle, na empresa – o dever de exercê-lo em benefício de outrem e não, apenas, de não o exercer em prejuízo de outrem. Isso significa que a função social da propriedade atua como fonte de imposição de comportamentos positivos – prestação de fazer, portanto, e não, meramente, de não fazer – ao detentor do poder que deflui da propriedade.”28

Esta compreensão baseia-se naquilo que observou RENNER ao fazer seu comentário sobre o fechamento de uma mina – o não exercício de um direito pode ter sérias consequências sociais.

A principal característica a diferenciar a função social de outras limitações ao exercício de um direito, entretanto, está nos interesses a que visa proteger. Sua normatividade provém do fato de que o exercício de certos direitos tem impacto social, e não apenas privado. Assim, se a boa-fé objetiva, por exemplo, protege as partes em um negócio, a função social protege a sociedade, ou sua fatia relevante em cada caso – e sobre a empresa, que invariavelmente e com grande frequência atinge de diversas formas diversas fatias da sociedade, a função social acaba por incidir determinantemente.

Mas, como afirma CALIXTO SALOMÃO FILHO, “não se pode evidentemente imaginar que o contrato fique subordinado a qualquer grupo social cujos interesses são por ele afetados.”29

27 GRAU. A Ordem Econômica..., p.242. 28 Ibidem, p.245. 29 SALOMÃO FILHO, Calixto. Função social do contrato: primeiras anotações. Revista de Direito

Mercantil, Econômico e Financeiro, Nova Série, ano XXXXII, v. 132, p.7-24, p.10, out.-dez. 2003. Como indica o título do artigo aqui citado, o estudo do autor concentra-se na função social do contrato. No entanto, entende-se que o trecho ora citado e os que seguem podem ser aplicados ao instituto da função social em geral.

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CALIXTO SALOMÃO FILHO busca um critério para determinar que tipo de interesse externo poderia então subordinar o exercício de um direito com base na função social, e o encontra nos interesses institucionais, “em que a proteção do interesse coletivo e a do individual convivem – e são praticamente indivisíveis”30. Para que se configure um determinado interesse como institucional, devem ser preenchidos três requisitos:

a. Presença de interesse individual e coletivo, cumulativamente:

“As garantias institucionais têm características bem distintivas. Em primeiro lugar, todas elas são a um tempo destinadas à proteção do interesse de cada indivíduo e de sua coletividade, seja ela numericamente determinável ou não.”31

b. Interesse coletivo jurídica e economicamente destacável do individual:

“Mais ainda, em todas elas o interesse institucional é jurídica e economicamente destacável do interesse individual. Juridicamente, na medida em que a lei ou a doutrina se encarregam de estabelecer instrumentos protetores especiais e diversos dos instrumentos protetores dos interesses privados para esses especiais interesses (...). Economicamente, porque a proteção da referida garantia institucional deve representar uma utilidade para a coletividade que não se confunda com a utilidade individual e também inconfundível com a utilidade pública.”32

Reconhecimento legal:

“Finalmente, os interesses institucionais devem ser dotados de reconhecimento jurídico e social. Basta o reconhecimento constitucional dos interesses (ex.: meio ambiente, defesa da concorrência) para que sua proteção como garantia institucional seja imperiosa (desde que obviamente presentes os requisitos mencionados anteriormente).”33

Presentes esses três requisitos, incide a função social, e deverão surgir obrigações para os responsáveis pelo seu cumprimento – se houver, concretamente, um interesse que demande proteção. CALIXTO SALOMÃO cita

30 Idem, loc. cit. 31 Ibidem, p.17. 32 Ibidem, p.17. 33 Ibidem, loc. cit.

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o Direito Ambiental e o Direito Concorrencial como áreas em que se fazem presentes, com grande frequência, interesses institucionais – e, portanto, fortemente orientadas pela função social34.

Ainda que se conte com os esclarecimentos e os parâmetros até aqui desenvolvidos, pode ser – e geralmente é – muito difícil identificar, em um caso, o que exige a função social. Esse problema é contornado através de criação de algumas instituições, por meio das quais os interesses institucionais possam se expressar.

3.3 A Concretização da Função Social da Empresa

Segundo KARL RENNER (v. item 3.1), a propriedade torna-se uma utilidade pública – e portanto adquire função social – quando o processo de produção, distribuição e consumo de bens passa a ocorrer na sociedade, e não mais no interior do lar. Em um sistema capitalista, os principais agentes desse processo são as empresas, que através de suas atividades exercem função social. Pode-se até mesmo dizer que a função social do direito de empresa é exercer atividade empresária.

Essa atividade, contudo, deve atender aos interesses institucionais que a cercam e que, como parte da autorização concedida pelo Direito, lhe impõem limites, estabelecendo condições para que o exercício do direito de empresa seja considerado legítimo. Esses interesses são extremamente variados, além de amplos; logo, difíceis de serem identificados e terem seu conteúdo determinado. Para resolver esse problema, a sociedade cria diversas instituições. A maior e mais importante delas talvez seja o mercado.

MICHAEL JENSEN explica como, em condições normais, a busca do lucro, mediada pelo mercado, é socialmente eficiente:

“Considere agora os efeitos no bem-estar social da decisão de uma firma de tomar recursos da economia na forma de horas de trabalho, capital, ou material adquirido voluntariamente de seus donos em mercados de preço competitivo. A firma usa esses inputs para produzir outputs35, bens ou serviços, que então são vendidos

34 Ibidem, p.8. 35 Os termos input e output foram deixados no idioma original por serem geralmente usados dessa

maneira mesmo em escritos em português, até por não possuírem tradução adequada. O termo input refere-se àquilo que entra na empresa, e o exemplo mais plástico é a matéria-prima; já o termo output refere-se àquilo que sai da empresa, ou seja, os bens ou serviços que ela oferece.

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para consumidores através de transações voluntárias em mercados de preço competitivo.”36

E segue:

“Nessa situação simples, uma firma tomando inputs da economia e colocando seus outputs, bens ou serviços, de volta na economia aumenta o bem-estar agregado se os preços pelos quais vende os bens mais do que cobrem os custos em que incorre ao adquirir os inputs. Claramente a firma deveria expandir seus outputs enquanto um dólar adicional de recursos tomado da economia for avaliado pelos consumidores do produto com valor agregado em mais de um dólar. Note que a diferença entre essas rendas e custos são os lucros. Essa é a razão (sob a presunção de que não há externalidades ou monopólios) pela qual a maximização de lucros leva a um resultado socialmente eficiente.”37

Adicionando-se o fator tempo, pouco muda:

“O valor em um ano de um dólar poupado hoje para ser usado daqui um ano é então $1x(1+t), em que t é a taxa de juros. Alternativamente, o valor hoje de um dólar de recursos a serem recebidos daqui um ano é seu valor presente de $1/(1+t). Nesse mundo um indivíduo está tão bem quanto possível se sua riqueza, medida pelo valor presente descontado de todas suas pretensões futuras, é maximizada. Quando adicionamos incerteza, nada de muito importante muda nessa proposição desde que haja mercados de capitais nos quais o indivíduo possa comprar e vender risco a determinado preço. Nesse caso é a taxa de juros ajustada pelo risco que é usada para calcular o valor de mercado de pretensões futuras arriscadas. A função objetiva da companhia que maximiza o bem-estar social então torna-se ‘maximizar o valor de mercado total de firma’. Ela determina que as firmas expandam

36 JENSEN, Michael C. Value Maximization, Stakeholder Theory, and the Corporate Objective

Function. Business Ethics Quarterly, v. 12, n. 2, p.235-256, Ap. 2002. Disponível em: <http://vnweb.hwwilsonweb.com/hww/jumpstart.jhtml?recid=0bc05f7a67b1790ef409bfd03ef7308db53321785ebc7a499be3a6ee54414904e61f907c736a7858&fmt=H>. Acesso em: 08 abr. 2008.

37 Ibidem.

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seus produtos e investimentos até o ponto em que o valor de mercado da firma esteja no máximo.”38

É interessante perceber que esse processo leva a um “resultado socialmente eficiente” – usando a expressão de JENSEN –, que não se limita a um aspecto econômico, pois sobre as decisões dos agentes não influem apenas considerações estreitas de utilidade, mas um amplo espectro de valores. Uma pesquisa feita nos Estados Unidos da América comprovou que fatores como a responsabilidade ambiental da empresa influem no preço de seus produtos:

“Nosso primeiro experimento fez duas perguntas. Quanto a mais as pessoas pagarão por produtos eticamente produzidos? E quanto a menos elas estão dispostas a gastar por um produto que acreditam ser antiético?

Para testar essas perguntas, reunimos aleatoriamente 97 adultos consumidores de café e perguntamos a eles quanto pagariam por 1 libra, ou 454 gramas, de café de uma certa companhia. Nós utilizamos uma marca que não é comercializada nos EUA, de forma que nenhum dos participantes estivesse familiarizado com o produto.

Antes de as pessoas responderem, pedimos a elas que lessem algumas informações sobre os padrões de produção adotados pela companhia. Um grupo teve acesso a informação positiva e outro a informação negativa; o grupo de controle teve acesso a informação neutra, parecido com o que os compradores normalmente teriam em um supermercado.

Depois de ler sobre a empresa e o café produzido por ela, as pessoas nos contaram o preço que estariam dispostas a pagar, segundo uma escala de 11 pontos, de US$ 5 a US$ 15. O resultado? O preço médio para o grupo ético (US$ 9,71 por 454 gramas) foi significativamente maior do que o obtido pelo grupo de controle (US$ 8,31) ou pelo grupo antiético (US$ 5,89).

(...)

Nosso próximo teste olhou para os graus de comportamento ético. Será que os consumidores estão dispostos a pagar mais por

38 Ibidem.

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um produto 100% eticamente manufaturado contra outro que é 50% ou 25% eticamente produzido?

Para descobrir isso, testamos as respostas dos consumidores para camisetas produzidas por uma fábrica fictícia. Dividimos 218 pessoas em cinco grupos e apresentamos a empresa e seu produto. Um grupo foi informado que as camisetas eram feitas de 100% de algodão orgânico, outro de 50% de algodão orgânico e o terceiro de 25%. Um outro grupo – o antiético – foi informado de que não havia o componente orgânico. O grupo de controle não teve informação nenhuma. Exceto este, todos os grupos foram informados dos efeitos malignos do algodão não orgânico ao meio ambiente.

Os participantes foram perguntados quanto estariam dispostos a pagar pelas camisetas numa escala de 16 pontos, com preços variando de US$ 15 a US$ 30. Descobrimos que as pessoas estariam dispostas a pagar um adicional para qualquer nível de produção ética, e elas descontariam um produto antiético mais agressivamente do que recompensariam um produto ético.”39

Embora a pesquisa tenha sido direcionada a consumidores, não há motivos para supor que trabalhadores e fornecedores, que também negociam seus preços, não ajam da mesma forma. Aliás, se não o fazem, a reprovação moral deve recair sobre eles, e não sobre as empresas, como bem destaca STERNBERG:

“Quaisquer que sejam as opiniões de uma pessoa, a integridade moral demanda consistência entre essas opiniões e suas ações; quando as ações de um indivíduo não estão de acordo com suas crenças morais, então normalmente elas são frágeis ou ele é fraco. Da mesma forma, se – por qualquer razão – um indivíduo acredita que a venda de um determinado produto é moralmente errada, então, as demais condições permanecendo iguais, será igualmente errado que ele apoie negócios que vendam essa produto.”40

39 TRUDEL, Remi; COTTE, June. Até que ponto vale a pena ser uma empresa ética. Valor Econômico,

São Paulo, 12 de maio de 2008. Disponível em: <http://www.valoronline.com.br/ valoreconomico/285/empresaetecnologia/empresas/Ate+que+ponto+vale+a+pena+ser+uma+empresa+etica,08125,,51,4924166.html>. Acesso em: 12 maio 2008.

40 STERNBERG, Elaine. The Stakeholder Concept: A Mistaken Doctrine. Disponível em: <http://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=263144>. Acesso em: 12 jun. 2008.

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Seria ingenuidade, porém, acreditar que o mercado possa abarcar todos os aspectos da atividade empresária e transmitir todos os anseios da sociedade. A pobreza, por exemplo, impede que algumas pessoas possam manifestar-se no mercado, e a ocorrência de externalidades – situações em que os agentes não arcam com todos os custos de seus atos ou não recebem toda a recompensa por eles, havendo uma espécie da “vazamento” dos efeitos – faz com que os interesses da empresa e da sociedade saiam de alinhamento.

Em alguns casos, os próprios agentes podem resolver isso através de compensações financeiras. Mas nem sempre isso é possível, devido ao que RONALD COASE chamou de custos de transação:

“Uma vez que os custos de levar a cabo transações através do mercado sejam levados em conta fica claro que tal reorganização de direitos só acontecerá quando o aumento no valor de produção consequente à reorganização for maior que os custos envolvidos em fazê-la.”41

Exemplos de situações em que os custos de transação impedem uma resolução do conflito através do mercado são as atividades poluentes (pois o número de envolvidos é muito elevado) e as relações negociais duradouras (em que seria impossível prever todos os possíveis conflitos futuros)42.

Para resolver essas situações, a sociedade cria mecanismos que substituam, de forma tão eficiente quanto possível, o mercado. Mecanismos de incentivo, como a concessão de descontos fiscais e prêmios (privados ou públicos, pecuniários ou não). Mecanismos de monitoração, em que há grande riqueza de alternativas:

“A resposta ao problema de monitoração tem sido a evolução de uma larga variedade de estruturas institucionais que servem para economizar nos custos de coleta e análise de informações. Algumas dessas estruturas são protegidas na legislação (e.g., a exigência de que sociedades de capital aberto publiquem demonstrativos contábeis consolidados anualmente). Outras instituições evoluíram numa tentativa de explorar as

41 COASE, Ronald. The Problem of Social Costs. Disponível em:

<http://www.sfu.ca/~allen/CoaseJLE1960.pdf>. Acesso em: 13 mar. 2009. 42 Nesse segundo caso não há, a princípio, qualquer questão atinente a interesses institucionais. O

exemplo visa apenas a ilustrar a ideia de custos de transação.

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oportunidades de lucro em coletar, analisar e então vender informações a acionistas (e.g., serviços de analistas de mercado, serviços de informação ao consumidor, etc.). Outros ainda surgiram como organizações sem fins lucrativos que existem em parte para monitorar o grau com que administradores atuam no melhor interesse de certas partes interessadas (e.g., Consumer Watch, Infact43, sindicatos).”44

E mecanismos de enforcement45, que visam a desencorajar ou a evitar determinados atos, como as penas administrativas e criminais46.

Um dos mecanismos mais baratos para realizar esses objetivos é a imprensa – muitas vezes o temor de publicidade negativa é suficiente para convencer os administradores de uma determinada empresa a fazerem ou deixarem de fazer algo47.

Mas muitas vezes a publicidade não basta. A perspectiva de obter uma maior satisfação de suas necessidades fornece um incentivo aos interessados para que criem instituições mais eficientes, através das quais possam expressar suas preferências:

“Entretanto, em em sentido dinâmico a existência de d – b [diferença entre utilidade presente e utilidade que pode ser obtida desenvolvendo mecanismos de controle mais complexos] pode ser vista como fornecendo um incentivo às partes interessadas para encontrar novas maneiras de economizar com custos de contratos (para desenvolver novas estruturas institucionais). (...) A evolução de sindicatos de trabalhadores, organizações de consumidores, grupos de pressão, mecanismos de incentivos e comprometimento confiável, regulação de companhias, entre outros, pode ser creditado a esses incentivos.”48

43 Consumer Watch é uma organização não governamental de proteção aos consumidores, como seu

nome deixa claro; quanto à Infact, não fica claro a que organização se refere o autor, e há entidades com esse nome no Canadá, Reino Unido e Nova Zelândia, entre outros países, cada uma com características e objetivos diferentes.

44 HILL C. W. L.; JONES, T. M. Stakeholder-agency theory. Journal of Management Studies, v.29, n.2, p.131-154, p.140, 1992.

45 O termo é intraduzível; refere-se à capacidade de alguém para compelir outrem. 46 HILL; JONES. Op. cit., p.141. 47 Ibidem, p.142. 48 Ibidem, p.150.

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Em outros casos ainda, devido à impossibilidade de se criar esse tipo de estrutura, e se a comunidade política considerar o problema relevante, o Estado assume esse papel. É o caso, p.ex., da poluição – em que os interessados são, potencialmente, todos em uma determinada área (que pode até mesmo ser o globo terrestre), o que tornaria impeditiva a resolução privada; e dos monopólios naturais (como os serviços de trens metropolitanos), em que o poder de mercado é incontornável de outra maneira. Por fim, em muitos casos – talvez na maioria deles – vários sistemas convivem: nas relações trabalhistas, p.ex., há regulação e fiscalização estatal, presença de mercado e estruturas privadas (os sindicatos).

4 – CONCLUSÃO

Tem-se, assim, que a função social da empresa realiza-se de diversas maneiras, inclusive através do Direito: diante de um interesse institucional que julgue relevante, a comunidade política produz normas e cria mecanismos que o protejam.

A dificuldade surge quando se procura extrair do dever de observância da função social, sem intermédio de outra norma ou instituição, uma obrigação concreta. Os interesses institucionais são variados e amplos, e muitas vezes entram em conflito – o interesse em um meio ambiente equilibrado pode contrastar, por exemplo, com o interesse em um mercado competitivo, uma vez que certas exigências tornam necessários maiores investimentos, elevando os custos de entrada e afastando potenciais competidores. Determinar o que eles exigem requer a identificação dos valores socialmente compartilhados relevantes para o caso, e, principalmente, sua relação recíproca, que varia no tempo e no espaço. Basta lembrar a ideia de sustentabilidade, que hoje, em maior ou menor grau, influencia a visão das pessoas acerca das organizações e que era desconhecida há cerca de 20 anos, para que a contingência dessa relação seja evidenciada. Não bastasse ser contingente, a solução para essa equação é ainda uma resposta que, por definição, se encontra sempre dispersa entre os membros da sociedade, dificultando sua cognição.

De fato, é mesmo de se duvidar que, na ausência de uma norma ou outro mecanismo que concretize a função social, haja qualquer interesse institucional em jogo. Segundo HILL e JONES, a exisência de uma diferença entre a utilidade que o exercício de um direito proporciona a alguém (no

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caso que interessa a esse artigo, que uma empresa proporciona a um certo interesse institucional) e a utilidade que ele poderia proporcionar funciona como incentivo para a criação de mecanismos de governança mais complexos, que economizem nos custos de transação e permitam obter o resultado desejado. Como apontado pelos autores, surgem assim as mais diversas organizações, como grupos de pressão, sindicatos, órgãos estatais, etc.

Não surgindo esses mecanismos, ou não atuando os existentes em um determinado momento, são somente duas as conclusões possíveis: ou não incide, no caso, um interesse institucional, ou os custos para protegê-lo são mais altos que a utilidade esperada.

A primeira hipótese é a mais provável na maioria dos casos. Isso porque grande parte dos mecanismos de governança são organizações perenes e criadas não para lidar com questões pontuais, mas com grandes áreas de interesse – como sindicatos de trabalhadores, por exemplo –, o que lhes permite atuar em temas das mais diversas magnitudes e enfrentar novos problemas tão logo quanto surjam.

A polêmica dos organismos geneticamente modificados (OGM) ilustra como isso funciona. Na medida em que se ampliava seu uso, diversas organizações – empresas, governos (seguindo a orientação política dos grupos no poder) e organizações não governamentais (principalmente ambientalistas) –, a imensa maioria já existentes, e não criadas para lidar especificamente com esse tema, passaram a exercer pressão em diversos sentidos (liberação ou não do uso comercial de OGM, com ou sem restrições). Passado algum tempo, a polêmica permanece, em novo ambiente (o uso de OGM foi permitido, com restrições), envolvendo novos atores (como consumidores, que antes da liberação da venda de produtos que contivessem OGM não podiam se manifestar diretamente), e ocupando novos fóruns (como a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança, criada pela Lei 11.105, de 24 de março de 2005, e integrada por especialistas em diversas áreas do conhecimento e representantes de alguns ministérios).

O uso de OGM tem incontestável impacto sobre certos interesses institucionais (notadamente a saúde pública e o meio ambiente). Seria impossível, contudo, determinar o que esses interesses institucionais exigem sem o intermédio de instituições que traduzam os anseios da sociedade e concretizem esses interesses. Se essas instituições não surgem ou, existindo, não se manifestam, presume-se que embora abstratamente haja um

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interesse institucional em jogo, ele não exige nada em concreto naquele caso. A sociedade manifesta-se no sentido da plena aceitação de uma determinada conduta.

Quanto à segunda hipótese aventada acima – de que os custos para a proteção de um determinado interesse institucional em um determinado caso sejam altos o suficiente para impedir que se desenvolva um mecanismo de governança –, tem-se que ela possui caráter residual, dificilmente verificando-se na prática. O principal motivo é que mesmo nos casos em que o custo seja superior aos ganhos esperados, a sociedade pode atribuir a proteção de certos interesses individuais ao Estado, subsidiando-o através de tributos. Isso sem levar em conta que às vezes esse interesse será tão comezinho (e justamente por isso os custos para protegê-lo serão superiores à utilidade esperada por sua satisfação) que a falta de atuação de mecanismos de governança se dá justamente por falta de interesse dos que presumidamente interessar-se-iam.

Há, contudo, duas exceções ao raciocínio aqui defendido.

Nenhuma atuação de qualquer instituição pode contrariar o Direito. As normas jurídicas, num estado democrático e de Direito, são de observância obrigatória, por serem consideradas a mais alta manifestação da vontade do povo. Assim, qualquer manifestação de vontade que contrarie o Direito é nula. Da mesma forma e pelas mesmas razões qualquer norma jurídica deve adequar-se àquelas que lhe são hierarquicamente superiores. Portanto, uma manifestação de um determinado grupo no sentido da não aplicação de uma norma é ilegítima, por já ter se manifestado, sobre a mesma matéria, um grupo considerado, de certa maneira, hierarquicamente superior – a comunidade de cidadãos.

A segunda exceção é menos prosaica. Quando se trata de questões muito incipientes – como tecnologias extremamente inovadoras e ainda pouquíssimo conhecidas –, é possível que nenhum mecanismo de governança tenha condições (principalmente em termos de conhecimento) para concretizar satisfatoriamente os interesses institucionais. É evidente que dessa situação não surge uma carta branca para aqueles cuja conduta seja potencialmente danosa a um interesse institucional agirem, pois, como ressaltou CALIXTO SALOMÃO49, basta o reconhecimento constitucional de um interesse para que sua proteção seja imperiosa. A função social irá impor,

49 Op. cit., p.17.

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nesses casos, um dever de cautela, determinando o uso moderado da nova tecnologia ou maiores pesquisas, por exemplo.

Cumpridos todos esses deveres, conforme as exigências do caso, pode-se dizer que uma empresa cumpre sua função social.

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O INADIMPLEMENTO ANTECIPADO DA PRESTAÇÃO NO DIREITO BRASILEIRO

RAPHAEL MANHÃES MARTINS*

1 – INTRODUÇÃO

A teoria do inadimplemento que se estruturou a partir dos estudos de ROBERT POTHIER e consolidou-se no Código Civil francês baseia-se na sobreposição dos conceitos de relação obrigacional abstrata e de prestação principal. Nesta perspectiva, em que a análise da relação obrigacional circunscreve-se aos eventos relacionados à prestação principal, toda manifestação de inadimplemento pode e deve ser enquadrada, através de um silogismo simples, na dicotomia mora/impossibilidade. Em ocorrendo o não cumprimento da obrigação no momento devido, cabe ao jurista apenas indagar se ela ainda é realizável. Em caso positivo, a situação classificar-se-ia como um caso de mora; em não o sendo, aplicar-se-iam as consequências da impossibilidade.

Ocorre que, há tempos, o pressuposto de tal construção não é mais aceito no plano teórico-dogmático. É reconhecido que, ao lado do denominado dever principal, coexistem na relação obrigacional uma miríade de deveres outros – como os deveres laterais e os deveres secundários – cujo descumprimento não se enquadra na dicotomia de POTHIER. É o que ocorre com os sempre citados casos de violação de deveres de cooperação entre as partes, de cumprimento defeituoso da prestação ou de repúdio à relação contratual, que, embora sejam claras manifestações de inadimplemento, não permitem o enquadramento nas figuras tradicionais.

1.1 O Inadimplemento Antecipado e Seu Enquadramento Teórico

Um exemplo destas novas modalidades de inadimplemento é o denominado inadimplemento antecipado da prestação.

* Advogado e Professor da UERJ.

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Na construção teórica anterior, a obrigação era vista como uma “espada” que, pendendo sobre a cabeça do devedor, deveria ameaçá-lo em caso de não cumprimento no termo da prestação. Até o momento em que o cumprimento seria devido, entretanto, essa “espada” nada exigia do devedor, sendo apenas esta ameaça futura. Após o termo, aí sim a espada poderia fazer sentir toda a sua força sobre o devedor inadimplente.

Assim, sob tal perspectiva, durante o lapso temporal que se inicia com o nascimento da obrigação e termina no momento em que aquele deve satisfazer sua obrigação, nada haveria além de um vazio prestacional. O devedor que se obriga a realizar determinada conduta (seja obrigação de dar, fazer ou não fazer) de forma diferida no tempo, até o referido momento, não seria obrigado a nada.

Muito embora tal perspectiva não possa ser refutada por completo, pois é certo que toda obrigação só precisa ter seu adimplemento final no momento devido, ela equivoca-se ao considerar o fenômeno obrigacional apenas em sua perspectiva estática, na qual suas fases (nascimento, prestação, inadimplemento, etc.) são tratadas de forma isolada.

Ocorre que, hoje, a relação obrigacional é analisada através de um outro prisma: o dinâmico. Nesta nova perspectiva, a relação obrigacional torna-se uma presença constante e vinculante, compelindo o devedor a praticar determinados atos voltados ao desfecho daquela relação.

Assim, os dois momentos (nascimento da obrigação e adimplemento), que até então eram repletos desse “vazio prestacional”, são conectados por uma série de atos interpostos e instrumentais em relação à fase final da relação obrigacional, o adimplemento. Esses obrigam as partes a adotarem continuamente um comportamento que corresponda ao standard de conduta determinado pelos princípios da boa-fé e da confiança.

Nesta perspectiva dinâmica, determinados atos ou condutas são exigidos do devedor a qualquer tempo, de forma que o seu não cumprimento deve ser caracterizado como um inadimplemento da obrigação.

Importante notar que, sob este novo enfoque, a vontade do indivíduo em cumprir, ou melhor, sua vontade de realizar os atos necessários ao adimplemento da obrigação não deve ser manifestada apenas no momento inicial ou no momento em que a prestação torna-se exigível. Toda manifestação de vontade contrária ao cumprimento da obrigação, a qualquer momento, é contrária ao modo como deve exprimir-se

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constantemente a vontade do devedor, bem como uma violação do dever de correção que deve marcar toda relação obrigacional. A fortiori, se o devedor colocar-se, por vontade, em posição que torne impossível o cumprimento da obrigação, também haverá uma violação da própria relação obrigacional, o que se configura em inadimplemento1, ou, mais propriamente, um inadimplemento antecipado da prestação.

2 – CONCEITO DO INADIMPLEMENTO ANTECIPADO DA PRESTAÇÃO

O inadimplemento antecipado pode ser caracterizado como o inadimplemento que ocorre quando uma das partes da relação obrigacional, antes do momento em que deveria executar determinada prestação, renuncia ao contrato ou coloca-se, por ato próprio, em posição que torne impossível o cumprimento da obrigação2.

Temos nesta definição os principais elementos do instituto: I) ela constitui-se em uma forma de inadimplemento; II) que ocorre, necessariamente, antes do termo da prestação; III) esta forma de inadimplemento pode manifestar-se seja por uma renúncia (expressa ou tácita) ao cumprimento da obrigação ou pelo fato de o obrigado colocar-se em posição que torne o adimplemento impossível; e IV) ele deve ser provocado por ato próprio do obrigado, de forma incontroversa e definitiva.

2.1 O Elemento Temporal

A principal diferença entre o inadimplemento antecipado e as figuras do inadimplemento tradicional (i. e. a mora e a impossibilidade da prestação) é justamente o fato de ainda não haver uma prestação exigível. Ao contrário, o credor possui apenas uma expectativa de que o devedor cumprirá de forma espontânea aquilo a que se obrigou.

O inadimplemento antecipado pode ocorrer, portanto, a partir do nascimento da obrigação até o momento anterior àquele em que a obrigação deveria ser cumprida.

1 V. AGUIAR, Ruy Rosado. Extinção dos contratos por incumprimento do devedor. 2.ed. Rio de Janeiro:

Aide, 2004, p.126. 2 TREITEL, G. H. The law of contract. 9.ed. London: Sweet & Maxwell, 1995, p.769.

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Esse é o caso, por exemplo, com o importador de mercadorias que deve pedir autorização específica a órgão de fiscalização (Ibama ou Ministério da Defesa, por exemplo) para poder trazer determinado produto para o país. O não cumprimento desta exigência pode representar mora, caso seja possível não só fazer o pedido de autorização para importação, ainda que contratualmente intempestivo, e o cumprimento da obrigação com pequeno atraso ainda se revista de utilidade socioeconômica para o credor; ou representar inadimplemento antecipado, quando o pedido intempestivo for impossível, a prestação do serviço com atraso não tiver mais interesse para o credor ou ficar clara a recusa do devedor em cumprir esta obrigação.

Situação que também merece atenção é a dos contratos cuja prestação desenvolve-se ao longo de grande período de tempo, e, ao longo de sua execução, o objeto da prestação é desenvolvido em fases, mas cujo produto só é entregue ao final, como ocorre com os Turnkey Construction Contracts. Nesses casos, independente de quanto já foi construído, considera-se possível a ocorrência do inadimplemento antecipado, contanto que ainda não tenha atingido o termo para a entrega final da obra ou do projeto.

Por outro lado, uma consequência desse requisito temporal é a impossibilidade de inadimplemento antecipado por violação de deveres laterais, visto que o seu cumprimento é exigível a qualquer momento pela outra parte. Fato diverso ocorre com os denominados “deveres secundários instrumentais à consecução dos deveres principais”, cujo inadimplemento pode gerar um caso de mora ou de inadimplemento antecipado3.

2.2 O Comportamento do Devedor

Além do elemento temporal, outro ponto que particulariza o inadimplemento antecipado é o comportamento do devedor que se recusa a realizar a prestação futura ou coloca-se em posição de impossibilidade de cumprir a prestação.

2.2.1 Inadimplemento antecipado por recusa

O primeiro destes comportamentos, a recusa, compreende a manifestação inequívoca da intenção do devedor em não cumprir a

3 Neste caso, não seria possível a figura da impossibilidade, visto que ela se confundiria com o

inadimplemento antecipado da prestação.

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prestação futura. Esta manifestação pode ocorrer tanto de forma expressa, ou seja, através de enunciação escrita ou verbal endereçada ao credor, notificando-o de que não quer – ou não possui condições para – cumprir a obrigação, quanto tácita, isto é, através de uma conduta que demonstre a vontade da parte em não cumprir o avençado.

Tal é o caso, por exemplo, da construtora que, tendo celebrado promessa de compra e venda de determinado apartamento, anuncia ao mercado a sua desistência em construir o conjunto habitacional do qual o apartamento faria parte, ou, ainda, age de modo tal que se torna inconteste a sua desistência de continuar com o projeto (por exemplo, colocando o terreno selecionado para a construção do imóvel à venda ou, tempos depois de iniciado o prazo para início das obras, mantendo-se inerte).

Um exemplo do aqui exposto ocorreu no caso Peruzzo vs. Centro Médico de Porto Alegre. Em meados de 1977, Peruzzo foi procurado por um corretor do Centro Médico Hospitalar de Porto Alegre Ltda. com a proposta de assinatura de dois contratos, em conta de participação em empreendimento, com o objetivo de viabilizar a construção de um hospital. Além da participação nos lucros do empreendimento, seria franqueado a Peruzzo atendimento gratuito no estabelecimento, mediante o pagamento de quota fixa.

Pois bem. Após celebrar o segundo contrato, Peruzzo resolveu averiguar os andamentos da obra e descobriu, para sua surpresa, que esta sequer havia sido iniciada. E pior: nem mesmo o terreno para a obra havia sido comprado. Após analisar os contratos e perceber que estes não previam qualquer prazo para o início ou término da obra, Peruzzo resolveu, simplesmente, suspender o pagamento das cotas do fundo. O Centro Médico, em consequência, lançou a protesto duas promissórias em nome de Peruzzo.

Diante desta situação, Peruzzo recorreu à Justiça, pedindo rescisão dos contratos, a nulidade de todas as notas promissórias vinculadas, a sustação de todos os protestos e a condenação da demandada a devolver todos os valores recebidos, com juros e correção monetária, além de perdas e danos.

Em 1ª instância, a Juíza entendeu que não estaria caracterizado o inadimplemento, devido à inexistência de prazo fixado para o início e término da construção do estabelecimento hospitalar.

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Em recurso, o então Desembargador Athos Gusmão Carneiro ponderou: “A Drª Pretora refere que no contrato não estava previsto nenhum prazo para o Centro ‘construir, instalar e operar estabelecimento hospitalar na cidade de Porto Alegre’. Todavia, considero evidente, como bem alega o apelante, que isso não significa que goze um dos contratantes da faculdade de retardar ad infinitum o cumprimento das suas obrigações, e o outro seja obrigado a adimplir as suas com pontualidade, sob pena do protesto de títulos. A sentença esquece toda a comutatividade contratual. Vejo, aqui, caso de completo inadimplemento por parte de um dos contratantes. Já transcorreram mais de cinco anos e o Centro Médico Hospitalar existe apenas de jure. De fato, esta sociedade de objetivos tão ambiciosos e capital pequeníssimo simplesmente não existe mais. Citada editalmente, foi revel. O hospital permanece no plano das miragens, e assim as demais vantagens prometidas aos subscritores das quotas” (Ap. Cív. 582000378, TJRS, 1ª Câm. Cível, Rel. Desemb. Athos Gusmão Carneiro).

2.2.2 Inadimplemento antecipado por impossibilidade

Por outro lado, também constitui inadimplemento antecipado quando o devedor coloca-se em determinada situação na qual fique inconteste a impossibilidade de cumprir a obrigação, ainda que não haja qualquer manifestação expressa sobre o desejo de renunciar ao contrato. Tal impossibilidade decorre do fato de que a prestação, quando atingido o termo da obrigação, tornou-se impossível ou imprestável para o credor.

Entretanto, é importante observar que – diferente do caso de recusa – a impossibilidade de cumprir a prestação antes do prazo caracteriza-se não pelo elemento subjetivo, mas pelo elemento objetivo. Esse compreende o fato de o devedor estar em situação que impossibilitará a concretização do negócio ao qual se obrigou, por ato próprio.

Portanto, no inadimplemento antecipado por impossibilidade, não há quaisquer indagações sobre a intenção (dolo) do devedor em colocar-se na posição de impossibilidade de prestar, mas apenas sobre a contribuição de sua culpa, exclusiva ou concorrente, para este resultado.

As causas da impossibilidade podem ser das mais variadas naturezas. A título meramente exemplificativo, teremos: I) o esgotamento do prazo para realizar ato necessário ao cumprimento da prestação futura; II) a ausência de recursos materiais necessários à consecução da obrigação; III) a não realização de atos prévios ou o não cumprimento de deveres

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necessários à consecução da obrigação; IV) o planejamento equivocado, que impedirá a consecução da obra; etc.

Outro ponto importante sobre o inadimplemento antecipado da obrigação por impossibilidade da prestação é que ela pode ocorrer tanto por ato quanto por omissão do devedor.

2.3 O Caráter Incontroverso do Inadimplemento Antecipado

O ponto de maior confusão refere-se à necessidade de a recusa ou a impossibilidade manifestarem-se de forma incontroversa. Em outras palavras, em caso de recusa, esta deve claramente demonstrar a intenção do devedor em não cumprir o avençado; em caso de impossibilidade, ela deve representar uma clara projeção de que a prestação tornar-se-á impossível ou imprestável quando do transcurso do termo.

É relevante que, em caso de recusa, o caráter incontroverso pode decorrer não apenas daquela diretamente formulada ao credor, como também do comportamento inegavelmente contrário à intenção de inadimplir, conforme pactuado.

Por outro lado, no caso de impossibilidade, o simples medo ou receio do credor de que o devedor não venha a cumprir suas obrigações (ainda que existam indícios que fundamentem estas suposições) não são suficientes para a configuração do inadimplemento antecipado da obrigação. Ele deve ser inegável e irreparável, sendo necessária esta comprovação objetiva para valer-se do instituto.

Também é relevante a observação feita por RUY ROSADO DE AGUIAR de que os ordenamentos jurídicos, com maior tradição na aplicação do instituto, têm como pacífico a vedação de se obter do devedor a recusa (tácita ou expressa) por meio de interpelação realizada antes do vencimento da obrigação. Caso contrário, tal hipótese figuraria como uma forma inaceitável de obter o vencimento antecipado de uma dívida. Conforme o indigitado autor ressalva: “Essa orientação negativa, porém, deve ser vista com reserva, porquanto a interpretação pode simplesmente demonstrar a preocupação do credor em definir uma situação já evidenciada pelos fatos antecedentes. Portanto, se a iniciativa do credor tem fundado amparo nas circunstâncias, especialmente diante do anterior comportamento do devedor, não há como, desde logo, recriminar o comportamento do credor

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que quiser obter uma definição sobre a real intenção do devedor a respeito do contrato“4.

2.4 Hipóteses de Não Aplicação do Inadimplemento Antecipado

Da mesma forma como se excluem os efeitos do inadimplemento, nos casos em que o incumprimento não pode ser imputável ao devedor, não se configura o inadimplemento antecipado diante de situações de não imputação dos efeitos do inadimplemento.

Desta forma, não será possível considerar inadimplido um contrato quando o devedor possuir fundada justificativa para não tencionar continuar, ou mesmo começar a cumprir o que fora previamente acordado.

Tal fato ocorre, por exemplo, quando: I) as especificações do contrato não permitem a sua execução (por exemplo, por erro no projeto ou falta de dados, que deveriam ser fornecidos pelo contratante); II) são necessárias autorizações governamentais para continuar executando parte da obra; III) entende-se, justificadamente, necessário obter esclarecimentos do contratante, que se recusa ou demora em fornecer; IV) o contratante impõe mudanças substanciais no projeto original de uma obra, sem que haja previsão para tanto no contrato; V) a recusa em cumprir decorre de um inadimplemento anterior por parte do contratante (aplicando-se o princípio exceptio non adimpleti contractus); ou VI) no caso de o próprio credor violar um dever de cooperação, decorrente da boa-fé, quando esta cooperação for necessária à realização de sua prestação, etc.

Da mesma forma, ainda que ocorra uma situação de impossibilidade, se esta decorrer de caso fortuito ou força maior, não será possível considerar como um inadimplemento antecipado, por força do disposto no art. 393 do CC. Isso, é claro, salvo se o risco por uma destas situações tenha sido assumido pela parte. Nestes casos, mesmo tendo se materializado o risco de caso fortuito ou força maior, será possível a aplicação do inadimplemento antecipado quando implicar a impossibilidade de cumprir, ou mesmo pelo fato de a parte recusar-se a cumprir, diante da ocorrência de uma destas situações.

4 Op. cit., p.129.

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3 – FUNDAMENTOS JURÍDICO-DOGMÁTICOS DA APLICAÇÃO DO INSTITUTO NO DIREITO BRASILEIRO

3.1 Breve Panorama do Inadimplemento Antecipado no Direito Brasileiro

Uma vez caracterizado o inadimplemento antecipado, torna-se necessário verificar as possibilidades de sua aplicação no direito brasileiro.

Tal estudo esbarra em duas dificuldades iniciais: a uma, nosso arcabouço legislativo, a despeito de recente promulgação de um novo Código Civil, ainda encontra-se fortemente influenciado pelo modelo dicotômico de inadimplemento, que desconhece a possibilidade de um inadimplemento antes do termo da obrigação5; e a duas, a jurisprudência brasileira, talvez carregada pela apatia doutrinária sobre o tema, não encontra consenso sobre a fundamentação do instituto.

Problemas que, é sempre bom frisar, não impediram nosso ordenamento de incorporar regras sobre inadimplemento antes do vencimento da prestação.

Nesse sentido, temos o art. 333 do CC, que estabelece que o credor poderá cobrar dívida antes do vencimento quando: I) houver a falência do devedor ou concurso de credores; II) se os bens, hipotecados ou empenhados, forem penhorados em execução por outro credor; ou III) se cessarem ou se tornarem insuficientes as garantias de débito fidejussórias ou reais, e o devedor se negar a reforçá-las.

Também são exemplos os arts. 1.425 e 1.426 do CC, que tratam do vencimento antecipado de dívidas garantidas por hipoteca, penhor ou anticrese, I) se a deterioração ou depreciação do bem, dado em segurança, desfalcar a garantia e o devedor, intimado, não a reforçar; II) se o devedor cair em insolvência; III) se as prestações não forem pontualmente pagas, toda vez que deste modo se achar estipulado o pagamento; IV) se perecer o bem dado em garantia e não for substituído; ou V) se desapropriar o bem dado em garantia, hipótese na qual se depositará a parte do preço que for necessária para o pagamento integral do credor.

Mas, embora o inadimplemento antes do vencimento da prestação não seja de todo estranho no nosso ordenamento, não há uma acolhida

5 Sobre o tema, remetemos ao nosso estudo: MARTINS, Raphael Manhães. A Teoria do Inadimplemento

e Transformações no Direito das Obrigações. No prelo.

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expressa do instituto do inadimplemento antecipado, enquanto categoria de inadimplemento, ao lado da mora e da impossibilidade.

Muito pelo contrário, considerando-se o dispositivo do art. 939 do CC, parece mesmo haver uma certa predisposição contrária à aplicação do inadimplemento antecipado.

3.2 O Inadimplemento Antecipado Numa Análise Sistemática Com Nosso Ordenamento: O Princípio da Confiança e da Boa-Fé Objetiva

A predisposição contrária à aplicação do inadimplemento antecipado em nosso ordenamento é apenas ilusória, ou melhor, uma primeira impressão de um leitor afoito.

Esta máscara cai quando o intérprete deixa de lado a literalidade da norma e perquire seus fundamentos e princípios, em busca de sua ratio.

Afinal, é importante notar que os princípios gerais do direito, enquanto manifestação da ideia de Justiça material, ocasionam e funcionam como fundamento de validade de diversas proposições jurídicas, substituindo eventuais lacunas legislativas (ou a falta de uma controvertida força legiferante das decisões reiteradas de nossos tribunais) por regras bastante específicas.

Estas proposições jurídicas, derivadas dos princípios gerais de nosso ordenamento, embora estejam além da norma formal e de uma intenção explícita do legislador, encontram respaldo e extraem sua força cogente de uma natureza substancialmente superior, isto é, da própria ideia de Direito. Ideia que, para se materializar em nosso espaço/tempo contemporâneo, necessita construir estas preposições, sempre mais concretas e objetivas, e com uma aplicação mais precisa que os princípios.

Nas palavras de CLAUS-WILHELM CANARIS, “a partir delas [os princípios gerais do direito], e através de um processo de concretização inteiramente material e muito complicado, desenvolvem-se proposições jurídicas de conteúdo claro e de alto poder convincente”6.

Note-se que para que estas proposições jurídicas tenham validade em nosso sistema, é necessário que entre estas e os princípios que as fundamentam exista uma relação de interdependência. Em outras palavras, 6 CANARIS, Clau-Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito. Tradução de

A. Menezes Cordeiro. 3.ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2002, p.120-121.

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enquanto o princípio serve de fundamento para a proposição, esta deve ser um pressuposto necessário à concretização do princípio nos casos concretos. De outra forma, não há que se falar na inserção de uma proposição alienígena ao ordenamento jurídico.

Em relação ao inadimplemento antecipado, não restam dúvidas de que tal relação existe com os princípios gerais da proteção à confiança legítima e da boa-fé objetiva7,8.

O inadimplemento antecipado, dependendo do comportamento do obrigado, pode conduzir ou a uma violação ao princípio da boa-fé objetiva, e/ou a uma violação da confiança da outra parte. Nesse sentido, estar-se-á diante de uma violação ao princípio da boa-fé objetiva quando o devedor violar algum dos deveres impostos pelo princípio, como ocorre: I) quando o obrigado coloca-se em posição de impossibilidade de adimplir com a prestação; II) quando o devedor recusa tacitamente a realizar o cumprimento da obrigação. Por outro lado, há uma violação do princípio de proteção da confiança legítima quando o devedor III) recusa-se a cumprir a obrigação que lhe é imposta.

É evidente que esta distinção entre violação da confiança e violação da boa-fé objetiva não é, nem poderia ser, uma divisão absoluta, onde as hipóteses de violação de um dos princípios não atingem o outro. Isto seria incogitável, tendo em vista a ausência de limites horizontais a priori para a aplicação desses princípios9.

Por outro lado, é importante, através desta separação, compreender de que forma cada um dos referidos princípios é violado, pois, se a própria justificativa do inadimplemento antecipado do contrato é a violação destes, não parece aceitável satisfazer-se com justificativas genéricas. Em outras palavras, a única maneira de fortalecer e embasar este instituto em nosso

7 Sobre a proximidade e distinções entre os princípios da Boa-Fé e da Confiança, remetemos ao

nosso trabalho anterior: MARTINS, Raphael Manhães. Apontamentos sobre o princípio da Confiança Legítima no Direito Brasileiro. Revista da EMEJ, v.10, n.40, p.177-190, 2007.

8 Nesse sentido, temos o leading case do STJ, em matéria de responsabilidade por violação de deveres impostos pela boa-fé: “Recurso Especial. Civil. Indenização. Aplicação do Princípio da Boa-Fé Contratual. Deveres Anexos ao Contrato. O princípio da boa-fé se aplica às relações contratuais regidas pelo CDC, impondo, por conseguinte, a obediência aos deveres anexos ao contrato, que são decorrência lógica deste princípio. O dever anexo de cooperação pressupõe ações recíprocas de lealdade dentro da relação contratual. A violação a qualquer dos deveres anexos implica inadimplemento contratual de quem lhe tenha dado causa” (REsp 595.631-SC, 3ª T., STJ, Relª Min. Nancy Andrighi, j. 08.06.2004, DJ 02.08.2004, p. 391).

9 CANARIS, Claus, Wilhelm. Op. cit., p.79 e ss.

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sistema jurídico é demonstrando como, concretamente, ele serve para concretização dos princípios da boa-fé e da proteção da confiança legítima.

E através desta compreensão, fica evidente a função do inadimplemento antecipado como uma maneira de concretizar os princípios da boa-fé e da confiança. Afinal, nas situações em que algumas das hipóteses fáticas do inadimplemento antecipado ocorrem, como não seria possível invocar nem a mora, nem o inadimplemento absoluto, fica patente que o não reconhecimento do instituto gerará uma situação de violação da Justiça material naquele caso concreto.

Assim, diante da evidência do caráter instrumental e necessário do inadimplemento antecipado para garantir a concretização dos referidos princípios da proteção da confiança legítima e da boa-fé, é inequívoco que o instituto possui guarida em nosso ordenamento civilístico. E, a fortiori, não há óbices à consideração do inadimplemento antecipado como um preceito presente – ainda que implícito – em nosso ordenamento jurídico, eis que aquele possui a força normativa necessária para tanto.

4 – EFEITOS DO INADIMPLEMENTO ANTECIPADO

Depois de estabelecidos os contornos do inadimplemento antecipado no ordenamento brasileiro e estudado seus fundamentos, tem-se como passo final averiguar quais os efeitos atribuíveis ao inadimplemento antecipado.

Neste sentido e trilhando o caminho seguido pela nossa doutrina, deve-se compreender como o inadimplemento antecipado coloca-se em relação às duas figuras chaves do inadimplemento, quais sejam a mora e a impossibilidade, a fim de traçar quais seriam suas consequências.

Para tanto, a referência obrigatória é o primeiro – e, até onde se sabe, único – debate travado em nossa doutrina sobre o enquadramento dos efeitos de situações de inadimplemento antecipado. Tal fato, que já data de quase um século, teve como participantes FRANCISCO DE PAULA LACERDA DE ALMEIDA e, fundamentalmente, AGOSTINHO ALVIM.

LACERDA DE ALMEIDA – sem entrar na discussão sobre o inadimplemento antecipado propriamente10 –, ao tecer seus comentários sobre a distinção entre mora e inadimplemento absoluto, concluiu, em nota

10 Tanto LACERDA DE ALMEIDA quanto AGOSTINHO ALVIM trataram, em seus trabalhos, apenas da

hipótese em que o devedor recusa explicitamente o cumprimento de uma obrigação.

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de rodapé, que: “Há de ser difícil distinguir, salvo por recusa explícita e formal do devedor, entre a mora e o inadimplemento”11, dando a entender que seria inegavelmente o caso de inadimplemento absoluto.

Em seu magnífico estudo sobre o inadimplemento das obrigações, Da inexecução das obrigações e suas consequências, AGOSTINHO ALVIM divergiu de LACERDA DE ALMEIDA. Segundo AGOSTINHO ALVIM, atribuir tamanha importância ao “elemento volicional” do devedor que recusa cumprir não encontra amparo no direito positivo12.

Para pôr termo a tal controvérsia, AGOSTINHO ALVIM busca um critério misto, ou melhor, um critério que leve em conta não apenas a vontade das partes, mas as circunstâncias do caso concreto13. Nesse sentido, caberia, em cada caso, averiguar o interesse socioeconômico do credor para decidir se se trataria de mora ou de impossibilidade14.

Desta forma, conclui o indigitado autor, não seria previamente possível determinar que, em todos as situações de recusa do devedor, estar-se-ia diante do inadimplemento absoluto. Ao contrário, caberia em cada caso averiguar se o credor ainda teria interesse socioeconômico na prestação e, assim procedendo, decidir em qual das modalidades de inadimplemento a situação encaixar-se-ia.

11 ALMEIDA, Francisco de Paula Lacerda de. Obrigações: exposição systematica desta parte do

direito civil pátrio segundo o methodo dos “direitos de família” e “direito das cousas” do conselheiro Lafayette Rodrigues Pereira. 2.ed. Rio de Janeiro: Revista dos Tribunais, 1916, p.166 (grifou-se).

12 “Vê-se da aludida nota que o seu ilustre autor [LACERDA DE ALMEIDA] pretende diagnosticar, como inadimplemento absoluto, todo caso em que tenha havido recusa explícita e formal do devedor. Mas o elemento volicional não tem aqui, como também não tem em outros pontos do direito obrigacional, a importância que amiúde lhe atribuem. Para estremar mora de inadimplemento absoluto é mister haja critério de ordem econômica” (Da inexecução das obrigações e suas consequências. 5.ed. São Paulo: Saraiva, 1980, p.39).

13 “Se se trata de um fato pessoal, obrigação dita infungível, a recusa do devedor equivale ao inadimplemento absoluto [...] Mas se a obrigação é fungível, podendo o credor mandar realizar o trabalho por outrem, neste caso o inadimplemento tem o caráter de mora” (Idem, ibidem, p.43).

14 “Ora, o que precipuamente interessa ao credor, economicamente falando, é saber se há meios de receber a prestação prometida, isto é, se a execução direta é possível. Se ele obtém a prestação, seja porque o devedor cumpriu a obrigação, seja porque ele, credor, a houve por outros meios, a sua situação é sempre a de credor que obteve o que tinha em vista, diversa da daquele que somente poderá obter o sucedâneo, isto é, as perdas e danos. Logo, o fato de haver recusa do devedor não altera a situação do credor, economicamente falando, quando possível lhe seja a execução direta. [...] Diante do exposto, podemos justificar a fórmula que aventamos para caracterizar o inadimplemento absoluto e a mora, a saber: ‘Há inadimplemento absoluto quando não mais subsiste para o credor a possibilidade de receber a prestação; há mora quando persiste essa possibilidade’” (Idem, ibidem, p.43-44).

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Após este profícuo debate, aparentemente a doutrina esmoreceu o ânimo de resolver a intricada questão.

Para o desenvolvimento da temática proposta, não é possível passar ao largo deste tema. E, para tanto, propomos utilizar o velho método leninista de “dar um passo para trás, para poder caminhar dois para frente”.

O inadimplemento antecipado, ao contrário das posições encabeçadas pelos aludidos autores, não permite a remissão às figuras clássicas da mora e do inadimplemento absoluto, eis que estas duas figuras tratam de hipóteses de quebra da obrigação principal, o que não é, propriamente, o caso.

O instituto requer uma tutela própria para seus efeitos, em comparação com o inadimplemento após o vencimento do termo, de forma a, a uma, não sujeitar à vontade do devedor os efeitos de seu inadimplemento, a duas, seja tecnicamente correta, e a três, se adapte aos contornos do nosso ordenamento jurídico. As soluções até então apresentadas não parecem satisfatórias para tanto.

Afinal, como AGOSTINHO ALVIM bem observou, não se pode deixar a cargo do devedor a escolha sobre quais as consequências de seu não cumprimento e, a partir disto, concluir pelo inadimplemento absoluto como a consequência natural.

Por outro, a solução apresentada por AGOSTINHO ALVIM não parece de todo correta. Isto porque, como existe um prazo para o cumprimento da prestação, apenas poderia ocorrer a figura da mora quando houvesse o transcurso deste prazo e, portanto, a dívida seria exigível15.

Tal exigência implica, consequentemente, a impossibilidade de o credor propor ação direta contra o devedor para obrigá-lo ao cumprimento da obrigação, em caso de inadimplemento antecipado. Isso porque, conforme já aludido, nossa processualística possui previsão expressa contrária à realização do procedimento executivo sem fundamento em dívida líquida, certa e exigível, conforme os arts. 580 e 618, I, do CPC, o que não seria o caso.

15 Sobre as exigências para a configuração da mora, cf. BUARQUE, Sidney Hartung. Da demanda por

dano moral na inexecução das obrigações. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p.51.

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A conclusão a que se chega, portanto, é que o inadimplemento antecipado não pode ser associado a nenhuma das duas figuras clássicas do inadimplemento.

4.1 Do Dever de Indenização Pelos Danos Causados

A impossibilidade de enquadrar o inadimplemento antecipado em alguma das figuras clássicas do inadimplemento, ao certo, não implica que a este não se possa atribuir consequências ao fato.

Como uma das formas de inadimplemento, o inadimplemento antecipado implica a responsabilidade do devedor em ressarcir o credor por “perdas e danos, mais juros e atualização monetária segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, e honorários de advogado”, conforme preceitua o art. 389. Isso, por certo, sem a necessidade de esperar o transcurso do termo da obrigação inadimplida.

Este é o primeiro reflexo da configuração do inadimplemento antecipado. Afinal, o devedor que agiu de maneira desidiosa no cumprimento da obrigação ou recuse-se a cumpri-la não pode valer-se do benefício do termo para retardar o ressarcimento dos prejuízos que causou. Note-se que o reconhecimento desse dever de indenizar trata, em última análise, de reduzir as perdas que a vítima do inadimplemento teve, seja evitando fazer novos gastos naquela relação, seja permitindo que ela tenha novamente recursos para contratar terceiros para concluir a execução do contrato.

Importante observar, primeiramente, que este dever de indenizar não encontra óbices em nosso ordenamento jurídico, eis que, conforme demonstrado, apenas existem barreiras para a propositura de ações executivas antes do vencimento do termo da obrigação.

Além disso, a referência ao art. 939 do CC, como um possível obstáculo ao entendimento aqui esboçado, não encontra respaldo. Afinal, conforme JOSÉ DE AGUIAR DIAS observa: “[…] tribunais e comentadores têm assentado, com impressionante firmeza, que cabe à vítima da cobrança indevida provar a malícia do autor, sem o que não pode verificar a aplicação da pena, isto é, do que proferimos considerar a indenização prefixada. Escusado se torna documentar esse fato, tão frequente são os pronunciamentos no sentido indicado”16.

16 Da responsabilidade civil. 10.ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 1995, v.2, p.449.

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Este, por certo, não é o caso, uma vez que a propositura da ação de indenização constitui um meio adequado para que a parte prejudicada com o inadimplemento seja ressarcida pelos prejuízos que lhe foram causados indevidamente.

Assim, para o inadimplemento antecipado, ante a ausência de dívida líquida e certa, caberia ao prejudicado propor a devida ação de conhecimento, de forma não só a demonstrar os prejuízos sofridos como também constituir um título líquido e certo que viabilize um procedimento executivo.

4.2 Da Resolução do Contrato

De nada adiantaria o direito de ser indenizado pelos prejuízos se o inadimplido ainda permanecesse obrigado a cumprir com a parte que lhe caberia no contrato.

Surge como corolário necessário, portanto, que, em caso de inadimplemento antecipado, confira-se ao credor a possibilidade de acionar o mecanismo da resolução do contrato17, conforme estabelecido no art. 475 do CC.

A resolução, sendo um direito formativo, implica a extinção do contrato. Afinal, não é admissível que, após uma das partes inadimplir antecipadamente a relação obrigacional, a outra ainda seja obrigada a agir como se tal fato não houvesse ocorrido e, portanto, cumprir o que fora avençado18.

Mas como a resolução não se opera de pleno direito, o exercício do direito de resolver o contrato é uma faculdade que depende exclusivamente da vontade do interessado.

17 Conforme o próprio art. 475 do CC preceitua, o remédio resolutivo não exclui as eventuais perdas

e danos. Este é, aliás, o entendimento do STF (1ª T., RE 68.216-RS, Rel. Min. Amaral Santos, j. 28.09.1971, RTJ 60/141).

18 Tem-se visto, em alguns julgados, o reconhecimento do direito do inadimplido de não cumprir o que lhe caberia, com fundamento na regra do exceptio non adimpleti contractus, seja conforme o art. 375 ou 376 do CC (cf. Processo 2005.001.19441, TJRJ, Rel. Desemb. Luiz Felipe Francisco, 8ª Câm. Cível, j. 13.09.2005). Este entendimento, embora conduza ao mesmo resultado prático aqui proposto, não nos parece como o tecnicamente mais correto. Isto porque, a uma, não se está tratando, propriamente, da parte que ainda não adimpliu no momento em que deveria, mas daquela que se recusa ou não poderá cumprir com a prestação futura. A duas, esta regra não impede que o inadimplido seja obrigado a cumprir, quando caberia a este cumprir antes daquele que repudiou o contrato.

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Dessa forma, em se verificando o inadimplemento antecipado, é necessário que o titular do direito subjetivo declare a vontade de que ocorra este efeito extintivo. Em não o fazendo, considerar-se-á o contrato como em vigor e, no momento em que deveria ocorrer o adimplemento da prestação, caberá ao credor ajuizar a devida ação de ressarcimento de perdas e danos.

4.3 Execução Específica

Além da indenização por perdas e danos e, em vez da resolução do contrato, a parte interessada pode, dependendo das condições do caso concreto, optar por exigir a execução específica da obrigação, conforme avençado.

Afinal, em muitos casos, a simples execução inespecífica (perdas e danos) pode não atender aos interesses do credor, principalmente, quando: I) a prestação prometida não puder ser duplicada ou substituída por outra substancialmente equivalente, através das perdas e danos; II) for impossível de estimar os danos, seja porque a prestação não tem valor de mercado, seja porque não existe maneira segura de calcular, na sua integralidade, os efeitos do inadimplemento, no momento necessário; III) a situação do credor não recomenda prosseguir com uma ação de perdas e danos, sendo a execução específica uma forma mais adequada de atender a seus interesses; ou IV) simplesmente para evitar uma multiplicidade de ações, por exemplo, quando uma miríade de credores é atingida pelo inadimplemento antecipado19.

Nesses casos, ou em outros que sejam convenientes ao inadimplido, é seu direito exigir a execução específica da avença, de forma a satisfazer seus interesses. E o reconhecimento deste direito não decorre apenas de eventuais questões éticas ou morais, mas de uma necessidade do tráfico social. Isto porque, conforme se tem apontado, a possibilidade de execução específica é um mecanismo eficiente para incentivar o devedor a cumprir e tornar uma relação não cooperativa em cooperativa. Afinal: “Podemos afirmar que a possibilidade de cumprimento encoraja a troca e a cooperação. O papel de qualquer tribunal é exatamente este: garantir o

19 Este último exemplo é bem familiar ao brasileiro, que o remete logo ao caso da falência da

empresa Encol S.A. Engenharia, Comércio e Indústria. Neste caso, a execução de diversos empreendimentos imobiliários foi suspensa, obrigando os credores da empresa Encol a enfrentarem uma longa peregrinação pelo Judiciário para conseguir o direito de concluir seus respectivos empreendimentos imobiliários.

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cumprimento da promessa original, visto que tal instituição incentiva a redução do risco […] Não por outra razão, COOTER e ULLEN afirmam que um contrato que pode ser exigido é aquele que transforma um jogo de solução não cooperativa em outro com solução cooperativa”20.

Mas para verificar as possibilidades da execução específica, em caso de inadimplemento antecipado, temos, novamente, que nos debruçar sobre o problema da compatibilidade do instituto com o processo geral de execução.

Até bem recentemente, o inadimplemento de obrigação de fazer ou não fazer, quando se tratava de uma prestação infungível, necessariamente se convertia em perdas e danos, eis que não era possível ao credor obrigar o devedor a cumprir o avençado, e, assim, invadir o campo da liberdade pessoal deste.

Para o caso das chamadas prestações fungíveis, por força do disposto no art. 881 do CC/1916, quando o fato pudesse ser executado por terceiro, era livre ao credor mandar terceiro executar às custas do devedor, em caso de recusa ou mora deste. Da mesma forma, conforme o art. 883, em caso de o devedor praticar ato a cuja abstenção se obrigara, o credor poderia exigir que o desfizesse, sob pena de o desfazer à sua custa, ressarcindo o culpado perdas e danos.

Em relação às obrigações de dar, por outro lado, era permitida a execução forçada, obrigando o devedor a entregar o que fora combinado. Isso, é claro, se o “dar” não estivesse vinculado a uma obrigação de fazer infungível, caso em que se aplicaria a referida vedação. E, ainda que não fosse o caso, uma execução forçada de obrigação de dar sujeitava-se às intempéries e aos requisitos de qualquer processo de execução. Era necessária, portanto, a instauração de um processo executivo autônomo, com todas as formalidades inerentes à sua formação por iniciativa de parte, nova citação do obrigado (caso de execução fundada por título judicial) e, sobretudo, procedimentos muito complexos e demorados.

Desta forma, até para o cumprimento de obrigação de dar, seria impensável a viabilização de qualquer execução específica, em sede de inadimplemento antecipado, eis que esta esbarraria nos óbices impostos à propositura de qualquer procedimento executivo (isto é, a necessidade de um título líquido, certo e exigível).

20 PINHEIRO, Armando Castelar; SADDI, Jairo. Op. cit., p.128 (grifos nossos).

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Referida situação, entretanto, foi parcialmente superada por própria iniciativa legislativa, que, diante de uma necessidade de garantir maior efetividade à prestação jurisdicional, aprovou as Leis 8.952, de 13.12.1994, e 10.444, de 07.05.2002, que alterou e introduziu os arts. 461 e 461-A do Código de Processo Civil, respectivamente.

Conforme estabelecido pela nova sistemática, na ação que tenha por objeto o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer, o juiz concederá a tutela específica da obrigação ou, se procedente o pedido, determinará providências que assegurem o resultado prático equivalente ao do adimplemento.

Nestes casos, para a efetivação da tutela específica ou a obtenção do resultado prático equivalente, poderá o juiz, de ofício ou a requerimento, determinar as medidas necessárias, tais como a imposição de multa por tempo de atraso, busca e apreensão, remoção de pessoas e coisas, desfazimento de obras e impedimento de atividade nociva, se necessário com requisição de força policial (§ 5º).

O mesmo se aplica à obrigação de entregar coisa, pois, a partir de agora, o juiz poderá conceder a tutela específica, fixando prazo para que o devedor cumpra a obrigação. Não cumprida a obrigação no prazo estabelecido, expedir-se-á, em favor do credor, mandado de busca e apreensão ou de imissão na posse, conforme se tratar de coisa móvel ou imóvel. Isso, sem embargo da imposição de eventuais astreintes ou outras medidas, a fim de “incentivar” o devedor a entregar a coisa.

Esta inovação traz uma possibilidade importante para efetivação do inadimplemento antecipado, eis que, para a obtenção da tutela específica, não há mais os formalismos impostos pelo processo normal de execução. Agora, a parte interessada, em caso de risco ou grave ameaça para seu direito, poderá buscar a tutela específica no próprio procedimento ordinário, através da obtenção de uma medida liminar neste sentido. A medida liminar obtida no processo de conhecimento, por certo, cumprirá o papel de um título executivo, permitindo a realização da execução específica.

Assim, o antigo óbice procedimental para a execução específica, em sede de inadimplemento antecipado, não mais existe. Isto porque não se faz mais necessário que o devedor apresente um título executivo extrajudicial líquido e vencido para pleitear a medida, mas apenas a determinação judicial, ainda que em sede de liminar, determinando a execução específica.

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Deve ser reconhecido, entretanto, que a execução específica sofre limitações, pelo fato de não haver ainda o vencimento da dívida, demandando do intérprete (e, principalmente, do juiz) uma certa parcimônia em sua aplicação.

Tais limitações são evidentes quando diante de obrigações de fazer instantânea e a termo, onde o adimplemento equivale à realização de um único ato futuro, como seria o caso da pintura de um quadro ou a organização de um serviço de bufê para determinada festa. Nestes casos, mesmo configurado o inadimplemento antecipado, tal fato não permitirá ao credor exigir a obrigação antes do vencimento do termo.

A título exemplificativo, não seria possível, em ocorrendo o inadimplemento antecipado por uma empresa de fornecimento de alimentos para bufê, obrigá-la a prestar o serviço contratado antes da data do vencimento da obrigação. Neste caso, inevitavelmente, a parte prejudicada terá que se contentar com a rescisão do contrato e eventual ressarcimento de perdas e danos.

Por outro lado, nada impede que, tendo o devedor se recusado a prestar, antecipadamente, o juiz imponha-lhe, previamente, astreintes, caso a recusa mantenha-se até o momento de prestar, conforme pactuado. Tais astreintes, por certo, apenas incidiriam a partir do momento em que a obrigação tornar-se-ia exigível, sendo seu objetivo tanto exercer um efeito psicológico sobre o devedor, forçando-o a cumprir a avença, quanto tornar a prestação jurisdicional mais célere e eficaz.

Mas essa não seria a única possibilidade de realização de execução específica, em caso de inadimplemento antecipado. Por exemplo, nas obrigações que demandam a realização de atos preparatórios, como a obtenção de licença governamental ou a realização de alguma obra específica e prévia, é possível vislumbrar a execução específica para determinar que o devedor pratique tais atos, sob pena da adoção das medidas coercitivas previstas em lei.

Finalmente, é possível ainda a aplicação dos aludidos arts. 249 e 251 do CC para os casos de inadimplemento antecipado. Assim, em ocorrendo o inadimplemento, poderá o credor contratar com terceiros a realização do objeto do contrato primitivo, cabendo ao devedor original arcar com os prejuízos decorrentes de tal medida, como, por exemplo, o custo decorrente da contratação em ritmo emergencial para concluir a obra, ou mesmo os

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custos com a negociação e elaboração do novo contrato, dentro dos limites da boa-fé.

5 – CONCLUSÕES

A obrigação, analisada numa perspectiva contemporânea, determina que certos tipos de condutas possam ser exigidos do devedor a qualquer tempo, de forma que o não cumprimento destas deve ser caracterizado como um inadimplemento da obrigação. Como consequência necessária desta compreensão do vínculo obrigacional, toda manifestação de vontade contrária ao cumprimento da obrigação é contrária ao modo como deve exprimir-se constantemente a vontade do devedor, bem como uma violação do dever de correção que deve marcar toda relação obrigacional, podendo caracterizar o inadimplemento antecipado da prestação.

Isto, principalmente, reconhecendo-se a relação de instrumentalidade, ou melhor, interdependência entre o inadimplemento antecipado da prestação e os princípios da proteção da confiança legítima e da boa-fé. Ou seja, enquanto os aludidos princípios servem de fundamento para o instituto, este é um pressuposto necessário para a concretização do princípio nos casos concretos.

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INTERPRETAÇÃO DOS GRUPOS DE CONTRATOS NAS JOINT VENTURES

CINARA PALHARES*

Resumo: O objetivo deste trabalho é o de fornecer as bases para a solução dos principais problemas práticos decorrentes da interpretação dos grupos de contratos que constituem as joint ventures. Essa nova forma de contratação caracteriza-se pela presença de um acordo-base, que dá origem a um ou mais contratos satélites, nos quais cada atividade a ser desempenhada pelo grupo será mais bem detalhada e regulamentada. Contudo, em razão da aparente autonomia dos contratos satélites, pode-se chegar ao equívoco de se considerar isoladamente cada contrato, quando em verdade eles só podem ser considerados em relação ao grupo.

A fim de possibilitar uma classificação mais acurada dos contratos coligados, será necessária uma sistematização dos grupos contratuais. A partir daí, com a análise das regras de interpretação contratual, os critérios hermenêuticos apropriados serão dados para a solução dos problemas concretos. A noção de causa final ou causa sistêmica será o critério fundamental para a caracterização do grupo de contratos. Por fim, os grupos de contratos nas joint ventures serão analisados sob duas perspectivas: uma de ordem interna, referente à relação entre os contratos coligados e entre os co-ventures, e outra de ordem externa, referente à relação entre o grupo e terceiros, tal como a massa de consumidores.

Palavras-chave: Joint venture – contrato coligado – grupo de contratos – contratos conexos – acordo-base – contratos satélites – interpretação contratual – contratos associativos – causa final – causa sistêmica

* Mestranda em Direito Civil pela Universidade de São Paulo. Especialista em Direito Societário

pela FGV. Advogada no Escritório Palhares Advogados Associados.

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Abstract: The objective of this paper is to offer the basis to solve the main practical problems arisen from the interpretation of the joint venture’s network of contract. This new way of contracting is characterized by a general basic agreement that gives rise to one or more specific contracts, where each activity to be developed by the parties will be more detailed and regulated. However, notwithstanding the apparent autonomy of the specific contracts, it will be a mistake to consider them in a isolated way, because, in fact, they must be considered as a group.

In order to permit a better classification of the linked contracts, it will be necessary a systematization of the netwok of contracts. After that, analyzing the contractual interpretation rules, the proper hermeneutic criterions will be given to solve the practical problems. The notion of final cause or systemic cause will be the fundamental criterion for the characterization of the netwok of contracts. Finally, the joint ventures’s network of contracts will be analysed under two perspectives: one internal, regarding to the relation between the linked contracts and between the co-ventures, and another external, regarding to the relation between the group and third parties, such as the consumers.

Keywords: Joint venture – network – group – linked – contracts – general – global – specific – agreement – interpretation –associative – final cause – systemic

Sumário: 1 – Introdução: o surgimento das joint ventures como expressão das novas formas de contratação; 2 – A nova realidade contratual: os grupos de contratos; 2.1 Cadeia de contratos; 2.2 Coligamento contratual; 2.3 Importância da noção de causa para a configuração do grupo contratual; 3 – Regras de interpretação contratual e sua incidência nas joint ventures; 3.1 Critérios de interpretação subjetiva (ou recognitiva); 3.2 Critérios de interpretação objetiva (ou normativa). Critérios da boa-fé e dos usos do lugar da celebração; 3.3 Peculiaridades da interpretação nos contratos associativos; 4 – Joint ventures: acordo-base e contratos satélites; 4.1 Perspectiva interna; 4.2 Perspectiva externa; 5 – Conclusões; 6 – Referências bibliográficas.

1 – INTRODUÇÃO: O SURGIMENTO DAS JOINT VENTURES COMO EXPRESSÃO DAS NOVAS FORMAS DE CONTRATAÇÃO

Na era da globalização, diversos fatores, como o crescimento da produção mundial, a especialização das atividades produtivas e

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profissionais, a evolução das técnicas de produção e a internacionalização dos contratos, impuseram significativas alterações na dinâmica das contratações. Percebeu-se que não é possível viver isoladamente, sendo forçoso reconhecer que nas relações interpessoais existem interesses que devem ser considerados que vão além dos meramente individuais. BERNARD TEYSSIE, ao tratar da realidade socioeconômica dos agrupamentos de pessoas, de bens e de contratos, destaca que a noção de independência foi substituída pela de interdependência, existindo interesses superiores aos meramente individuais (TEYSSIE, 1975, p.2). Nesse novo contexto, a cooperação empresarial apresentou-se como uma possibilidade para aqueles que pretendem conquistar o seu espaço no mercado nacional ou internacional.

De acordo com RICARDO LUIS LORENZETTI, “o contrato é concebido como uma relação social juridificada” (LORENZETTI, 2000, p.53, tradução nossa)1, devendo por certo acompanhar e se amoldar às mudanças sociais. O autor destaca que o grupo de contratos é um recurso que pode ser utilizado para a satisfação de um interesse, que não pode ser realizado normalmente através das figuras típicas existentes (LORENZETTI, 1999, p.49),2 destacando que o contrato na atualidade não se apresenta mais isolado, ma, sim, “vinculado a outros contratos, formando redes, pacotes de produtos e serviços, surgindo a noção de operação econômica que se vale de vários contratos como instrumentos para a sua realização” (LORENZETTI, 2000, p.53, tradução nossa)3.

O surgimento das joint ventures na prática empresarial é expressão clara e concreta desta nova realidade contratual. Nascida no direito anglo-saxão, a joint venture evoluiu de uma forma de associação empírica, e tornou-se um instrumento largamente utilizado nos negócios internacionais (BAPTISTA; BARTHEZ, 1991, p.3). Desenvolvida a partir dos institutos da partnership4 e da corporation, a joint venture caracteriza-se como “uma forma

1 Do original: “el contrato es concebido como una relación social juridificada” (LORENZETTI, 2000,

p.53). 2 Do original: “La unión de contratos es un medio que se utiliza para la satisfacción de un interés,

que no se puede realizar normalmente a través de las figuras típicas existentes” (LORENZETTI, 1999, p.49).

3 Do original: “sino vinculado a otros contratos, formando redes, ‘paquetes’ de productos y servicios, surgiendo la noción de ‘operación económica` que se vale de varios contratos como instrumentos para su realización” (LORENZETTI,, 2000, p.53).

4 A respeito das partnerships, BAPTISTA e BARTHEZ ensinam que “a partnership é uma forma muito antiga de relação contratual, a qual a jurisprudência tem progressivamente afinado as regras,

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de cooperação ou método de cooperação entre empresas de um mesmo país ou de países diferentes, sendo usada na linguagem comercial para designar qualquer acordo empresarial, para a realização de um projeto específico, uma aventura comum, independentemente da forma jurídica adotada” (BASSO, 1998, p.13).

Diversas são as formas que a joint venture pode adotar para possibilitar aos interessados a realização do objetivo comum. O acordo de cooperação pode assumir a forma puramente contratual (non corporate joint venture), na qual diversos contratos firmados entre os co-ventures regulam a sua participação nas perdas e nos lucros, os direitos e obrigações de cada participante, a forma de cooperação, os mecanismos de solução de conflitos, entre outras questões, reportando-se ou não a um acordo-base. Pode, ainda, dar origem ao surgimento de uma nova pessoa jurídica (corporate joint venture), que poderá ser precedida de um ou mais acordos preliminares, sendo que as relações entre os participantes serão definidas em diversos contratos satélites, que poderão reportar-se a um acordo-base. Seja qual for a forma adotada, institucional ou contratual, todas as joint ventures, a exemplo das partnerships, se apoiam no princípio da boa-fé para regular a conduta dos co-ventures na consecução do objetivo comum, que tem sua incidência reforçada em razão da natureza associativa dessa forma de contratação.

A presença do acordo-base e dos contratos satélites é característica constante das joint ventures, apesar de alguns doutrinadores afirmarem que certas joint ventures (puramente) contratuais podem ser constituídas por um único contrato (BAPTISTA; BARTHEZ, 1991, p.57), como no caso de o grupo de empresas regular a cooperação através de um consórcio. De qualquer forma, inevitável que outros contratos possam ter origem a partir do contrato inicial. Não se ignora, por outro lado, o entendimento de CARLOS

sobretudo nos Séculos XVIII e XIX. A partir de um procedimento típico do direito inglês, estas regras extraídas pelos Tribunais da prática dos homens de negócio e dos princípios gerais do direito foram codificadas por uma lei, a Partnership Act de 1890. Esta lei apenas enunciou os princípios preexistentes e as reformas a que ela foi submetida em seguida não modificaram gravemente a imagem da instituição” (BAPTISTA; BARTHEZ, 1991, p.4, tradução livre). Do original: “Le partnership est une forme très ancienne de relation contractuelle don’t la jurisprudence a progressivement affiné les règles, surtout au XVIIIème et au XIXème siècles. Par un procédé typique du droit anglais, ces règles tirées par les tribunaux de la pratique des hommes d’affaires et des principes généraux du droit ont été par la suite codifies par une loi, le Partnership Act de 1890. Cette loi ne faisait qu’énoncer des principes préexistants et les reforme qu’elle a subies par la suíte n’ont pás modifié gravement l’image de l’institution” (BAPTISTA; BARTHEZ, 1991, p.4).

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NELSON KONDER, que estabelece diferenças entre contratos conexos e joint ventures, afirmando que, apesar de haver um ponto de intersecção, as noções não se confundem, pois as joint ventures podem se revestir de outras formas jurídicas, além dos grupos de contratos, “como a constituição de uma sociedade de propósito específico, a formação de um grupo de sociedades ou a celebração de um contrato plurilateral de outra natureza, como um consórcio” (KONDER, 2006, p.174). Quanto mais amplo o conceito que se adote, com mais razão se dirá que nem toda joint venture é um grupo de contratos. Ainda assim, o ponto de intersecção é bem mais largo do que faz parecer o autor, já que em praticamente todas as joint ventures, mesmo as que dão origem a uma nova pessoa jurídica (corporate), existe uma pluralidade de contratos que formam a estrutura da operação comum, regulando uma série de direitos e obrigações entre as partes, sendo que muitos desses direitos sequer podem ser regulados pelo estatuto da nova sociedade, como é o caso dos acordos de acionistas e acordos que envolvem direitos obrigacionais, como a transferência de know-how, contrato de distribuição, de fornecimento, entre muitos outros. Quando ocorre a criação de uma pessoa jurídica, sem que outras obrigações sejam reguladas por contratos, não há por que chamar o empreendimento de joint venture, pois nenhuma peculiaridade haverá com relação às sociedades previstas pelo nosso ordenamento jurídico.

As joint ventures que interessam para esse trabalho, portanto, são aquelas formadas a partir de um grupo de contratos, constituído, em geral, por um acordo-base e um ou mais contratos satélites, podendo ou não dar origem a uma nova pessoa jurídica. Não se pretende com esse trabalho chegar a um conceito uníssono de joint venture, tarefa que a doutrina mais especializada jamais logrou êxito. O que se pretende é estabelecer critérios tanto para a caracterização do grupo de contratos quanto para a resolução dos principais problemas de interpretação decorrentes do grupo.

Os principais problemas envolvendo os grupos contratuais podem ser divididos em dois âmbitos de análise: um de ordem interna, referente às questões decorrentes da relação entre os contratos coligados, e outro de ordem externa, decorrentes da relação entre os contratos do grupo e terceiros estranhos ao grupo. Na perspectiva interna, os problemas mais frequentes dizem respeito à influência que um contrato exerce sobre outro do mesmo grupo, em caso de inadimplemento, invalidade, resolução ou modificação; à administração das joint ventures; à adaptação do grupo de contratos diante da alteração das circunstâncias, com a manutenção do equilíbrio entre os

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contratos integrantes do grupo; à divisão dos direitos e obrigações das partes. Na perspectiva externa, importa saber os problemas de extensão da responsabilidade dos integrantes do grupo perante terceiros, especialmente quando se trata de responsabilidade frente aos consumidores.

Essas questões passam necessariamente pela caracterização do grupo enquanto entidade econômica e jurídica única, seja em razão do objeto único e indivisível que se pretende realizar, seja em razão do objetivo comum. Dentro deste esquema, as maiores dificuldades verificam-se nos chamados contratos coligados, que são aqueles unidos pela causa, ou seja, pela finalidade comum. Quando não existe acordo-base, ou esse é insuficiente ou impreciso (contém lacunas ou dá margem a diversas interpretações igualmente possíveis), ou, ainda, quando os acordos satélites não se reportam expressamente ao acordo-base, de forma a deixar duvidosa a existência de uma hierarquia, os problemas de interpretação se agravam. As regras de interpretação contratual atuarão no sentido de buscar a real intenção das partes, tornando-se necessário trabalhar com um conceito nem sempre preciso e objetivo, como o de causa sistêmica. Necessário analisar a causa de cada contrato satélite em relação à causa sistêmica, que é a própria razão da existência do grupo de contratos, para se chegar à solução que melhor corresponde à verdadeira intenção das partes.

2 – A NOVA REALIDADE CONTRATUAL: OS GRUPOS DE CONTRATOS

A doutrina estrangeira já há algum tempo atentou para a nova realidade dos agrupamentos contratuais, embora a abordagem seja ainda tímida e pouco sistematizada. Contratos coligados, grupos de contratos, contratos conexos, redes contratuais são termos utilizados como sinônimos, nem sempre com a devida precisão técnica5. A importância do estudo das 5 RODRIGO XAVIER LEONARDO, ao tratar do tema com enfoque nos contratos firmados no âmbito do

mercado habitacional, assim destacou: “O fenômeno da interligação sistemática, funcional e econômica entre contratos estruturalmente diferenciados tem chamado a atenção da doutrina, que, em virtude da amplitude e complexidade do tema, trata do assunto sob diferentes enfoques, com uma terminologia nada uniforme. No direito italiano e no direito português, a interligação funcional e econômica entre contratos estruturalmente diferenciados tem sido tratada sob a expressão contratos coligados (MESSINEO, Francesco. Il contratto in genere. Milano: Giuffrè, 1973, t.I, p.720; LENER, Giorgio. Profili del collegamento negoziale. Milano: Giuffrè, 1999, p.1; SCHIZZEROTO, Giovanni. Il collegamento negoziale. Napoli: Jovene, 1993, p.101; VARELA, João de Matos Antunes. Das obrigações em geral. Coimbra: Almedina, 1991, v.I). No direito espanhol, privilegia-se a expressão contratos conexos (LÓPEZ FRÍAS, Ana. Los contratos conexos. Barcelona: Bosch, 1994, p.273; DIEZ-PICAZO, Luis. Fundamentos del derecho civil patrimonial. Madrid: Civitas, 1993, v.I, p.363). No

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relações entre os contratos coligados é saber qual influência que um contrato pode exercer sobre os demais, como consequência do reconhecimento do grupo contratual como entidade econômica.

A doutrina em geral classifica os agrupamentos contratuais de acordo com o tipo de dependência existente entre eles. MÁRIO JULIO DE ALMEIDA COSTA segue esta classificação, mencionando que a dependência pode ser bilateral ou recíproca, dando como exemplo o contrato de aluguel de um automóvel e de compra e venda de gasolina em que qualquer um dos contratos é dependente um do outro, ou unilateral, quando apenas um dos contratos é dependente, como é o exemplo do contrato de compra e venda de automóvel e aluguel de garagem, em que somente este último é dependente (ALMEIDA COSTA, 1994, p.316).

Entretanto, essa classificação por si só não é suficiente para solucionar os principais problemas decorrentes do reconhecimento dos grupos contratuais. Isso porque a dificuldade está exatamente na caracterização desta relação de dependência entre os diversos contratos, havendo a necessidade de aprofundar o conceito de causa para melhor distinguir as várias espécies de conexões existentes, no intuito de isolar o problema.

Na investigação sobre a unidade ou pluralidade de contratos, o jurista francês BERNARD TEYSSIE (TEYSSIE, 1975, p.18-25) destaca a importância de saber se há um contrato único envolvendo uma operação complexa (contrato complexo) ou um grupo de contratos visando à satisfação de um único interesse (contratos coligados), e se estes contratos estão efetivamente vinculados. No primeiro, há uma pluralidade de prestações que concorrem para a formação de um negócio jurídico único, não sendo possível identificar uma causa autônoma de cada prestação, mas apenas a causa final do negócio. No segundo, existe também uma concorrência de prestações, mas diferente dos contratos complexos, as prestações dos contratos

direito francês, grupos de contratos (TEYSSIE, Bernard. Les groupes de contrats. Paris: Libraire General de Droit et de Jurisprudence, 1975, p.8; BACACHE-GIBEILI, Mireille. La relativité des conventions et les groupes de contrats. Paris: Libraire General de Droit et de Jurisprudence, 1996, p.13); no direito anglo-saxão, são contratos ligados (linked contracts ou linked trasaction) ou networks contratuais (SKIPWITH, Guy; DYSON, Karen. Consumer credit law. Birmingham: Birmingham Settlement, 1997, p.13) e, por fim, no direito argentino, a expressão redes contratuais (LORENZETTI, Ricardo Luis. Fundamentos do direito privado. Tradução de Véra Maria Jacob de Fradera. São Paulo: RT, 1998, p.197). (LEONARDO, 2003, p.128-129). Citem-se, ainda, as monografias sobre o tema de GIORGIANNI. Negozi Giuridici Collegati; SCOGNAMIGLIO. Collegamento Negoziale. In: Enc. dir. VII; MESSINEO. Contratto Collegato; RAPAZZO, Antonio. I contratti collegati, e FERRANTI, Ione. Causa e tipo nel contratto a favore di terzo.

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coligados possuem sua causa própria e autônoma, mas que são ligadas pela causa final comum. De acordo com o jurista italiano C. MASSIMO BIANCA:

“A distinção entre contratos coligados e contrato complexo se deve proceder com relação à causa. Em um caso e no outro existe uma pluralidade de prestações, mas no contrato complexo tais prestações são reconduzíveis a um único relacionamento, caracterizado por uma única causa. No coligamento negocial, por outro lado, cada prestação é autonomamente enquadrada em distintos esquemas causais” (BIANCA, 2000, p.483-484, tradução nossa)6.

Problemas de interpretação surgem no coligamento contratual, pois em razão da autonomia relativa de cada contrato coligado muitas vezes comete-se o equívoco de se considerar isoladamente um contrato, enquanto esse somente poderia ser considerado com relação ao grupo. Essa questão passa, portanto, pela análise da causa final da operação, sendo certo que a unidade ou pluralidade de contratos não é resolvida pelo número de sujeitos envolvidos, ou pela unidade do instrumento contratual (TEYSSIE, 1975, p.23-24). Para aprofundar a sua análise, e tentar sistematizar as soluções, BERNAD TEYSSIE sugere uma classificação dos grupos de contratos, que leva em consideração o nexo existente entre eles por identidade de objeto ou por identidade de causa. Os contratos agrupados por identidade de objeto recebem o nome de cadeia ou rede de contratos (chaînes de contrats); já aqueles em que a união decorre da necessidade de realização de um objetivo comum, ou seja, unidos por identidade de causa, recebem o nome de reunião ou conjunto de contratos (ensembles de contrats) (TEYSSIE, 1975, p.36).

A doutrina italiana não faz distinção entre agrupamento contratual em razão do objeto ou em razão da causa, sendo que a principal distinção que se faz é entre coligamento voluntário e coligamento funcional. Ambas as categorias, no entanto, se referem à conexão pela causa, se aproximando da noção de ensembles de contrats feita por BERNARD TEYSSIE, categorias que serão analisadas nos tópicos seguintes.

6 Do original: “La distinzione tra contratti collegati e contratto complesso deve procedere con

riferimento alla causa. In un caso e nell´altro vi è una pluralità di prestazioni, ma nel contratto complesso tali prestazioni sono riconducibili ad um único rapporto, caratterizzato da un´unica causa. Nel collegamento negoziale, invece, le singole prestazioni sono autonomamente inquadrabili in distinti schemi causali” (BIANCA, 1987, p.483-484).

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Em tese, uma joint venture pode apresentar os mais variados tipos de agrupamentos contratuais, os quais serão abordados de maneira mais detalhada nos tópicos seguintes, com todos os problemas de interpretação que lhes são peculiares, sobretudo quando se trata de coligamento funcional pela causa, conforme se verá.

2.1 Cadeia de Contratos

Conforme se destacou no tópico anterior, a cadeia de contratos é o agrupamento ligado pela unidade do objeto. As cadeias de contratos podem ser divididas em encadeamentos por adição (TEYSSIE, 1975, p.41), quando um contrato sucede o outro cronologicamente, extinguindo o contrato anterior, como é o exemplo das sucessivas vendas do mesmo bem, ou ainda por difração (TEYSSIE, 1975, p.69), quando é mantida a relação original e a sucessão é apenas parcial, o que ocorre no fenômeno da subcontratação.

As cadeias de contratos por adição podem ocorrer entre partes iguais ou entre partes diferentes. Quando o contrato é concluído entre partes diferentes, ainda é colocada a questão da organização existente na rede contratual, distinguindo-se entre cadeias de contratos sem organização centralizada (TEYSSIE, 1975, p.43) e cadeias de contratos organizadas (TEYSSIE, 1975, p.44). São exemplos das primeiras as vendas sucessivas sobre um mesmo bem, em que a falta de organização pode gerar problemas, como o direito de evicção. São exemplos das segundas os contratos-quadro7, destinados a reger um conjunto de relacionamentos jurídicos, como é o caso das concessionárias ou das seguradoras, que são exemplos de redes contratuais regulamentadas por lei e regidas por um contrato externo ao grupo. Podem também ocorrer casos de redes contratuais organizadas por via convencional, em razão de um contrato firmado entre os participantes do grupo.

Resumindo a classificação de TEYSSIE com relação às cadeias ou redes de contratos, tem-se o seguinte esquema:

7 Atualmente, verificamos uma espécie de contrato-quadro relativamente nova, que são os contratos

de paper view com televisões a cabo. Nessas contratações, existe um contrato-matriz, ou contrato-quadro, que estabelece o ajuste inicial, sendo que a aquisição de novos produtos, como filmes, programas à la carte, jogos, etc. seguem o disposto neste contrato-matriz. A esses contratos aplicam-se todas as regras dos grupos de contratos.

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Cadeia de contratos (identidade de objeto)

Por adição

Entre partes diversas

Sem organização centralizada

Por via contratual

Organizadas Por via legal

Por via contratual

Entre partes iguais8

Por renovação expressa

Por via legal

Por difração

Por renovação tácita

Tendo em vista a unidade do objeto, essa espécie de agrupamento não gera maiores dificuldades para o intérprete, que poderá sempre se basear num dado objetivo para a caracterização do grupo. A maior dificuldade está no agrupamento pela causa, chamado de coligamento contratual, que será objeto do tópico seguinte.

2.2 Coligamento Contratual

Uma outra forma de agrupamento contratual é a união por identidade de causa, que dá origem ao coligamento contratual (ensembles de contrats), que ocorre quando uma operação complexa necessita de uma conjugação de diversos contratos para alcançar um objetivo maior (TEYSSIE, 1975, p.95-96)9.

8 Essa espécie de encadeamento de contratos entre partes iguais não traz maior interesse para o

objetivo deste trabalho, bastando consignar que a renovação expressa ocorre quando no contrato original existe cláusula ou dispositivo legal exigindo a manifestação das partes para proceder à renovação e, portanto, manter a relação contratual, podendo até mesmo haver previsão de uma indenização pela não renovação; a renovação tácita pode ocorrer tanto pela prorrogação do contrato de prazo determinado, quando as partes mantêm a relação contratual mesmo depois de decorrido o prazo contratual, independentemente de qualquer manifestação, ou quando o próprio contrato ou a lei preveem prorrogações periódicas (TEYSSIE, 1975, p.62-67).

9 De acordo com o autor francês BERNARD TEYSSIE, “a pesquisa desse objetivo comum constitui um critério essencial: uma identidade ao menos parcial de causa subjacente aos contratos de um dado grupo. A distinção efetuada entre objetivo contratual imediato e remoto contribui a esclarecer esta noção. Todo acordo garante não somente a realização de um objetivo particular, diretamente visado pelas partes, mas outros objetivos, mais distantes, que lhe constituem a verdadeira razão de ser” (TEYSSIE, 1975, p.95, tradução nossa). Do original: “la recherche de ce but commun constitue en critère essentiel: une identité au mois partielle de couse soude les contrats d’un ensemble donné. La distinction effectuée entre but contractuel immédiat et lointain contribue à clarifier cette notion. Tout accord assure non seulement la realisation d’un objectif particulier, directement visé par les parties, mais d’autre contributs, plus lointains, qui en constituent la véritable raison d’être” (TEYSSIE, 1975, p.95).

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TEYSSIE pretende resolver o problema da influência de um contrato sobre o outro classificando os contratos em interdependentes, ou de dependência bilateral, e em contratos de dependência unilateral. Essa classificação também é feita pela doutrina italiana, como se observa nos ensinamentos de MASSIMO BIANCA:

“A interdependência dos relacionamentos negociais é normalmente recíproca, no sentido de que a sorte de cada relacionamento é deixada à sorte do outro. É todavia possível também uma interdependência unilateral, no sentido de que a sorte de um relacionamento repercute sobre o outro, mas não vice-versa. A independência unilateral é encontrada na hipótese de contratos acessórios, os quais seguem a sorte dos contratos principais aos quais acedem (ex.: os contratos de garantia)” (BIANCA, 2000, p.483, tradução nossa)10.

Os contratos interdependentes ainda podem ser com obrigações indivisíveis ou com obrigações divisíveis. Quando a relação entre os contratos do grupo é de interdependência com obrigação indivisível, o objetivo final só é atingido pela atuação de todos os contratos, ou seja, a obrigação só pode ser executada inteiramente, não comportando divisão ou execução parcial. Diversamente, quando a operação desejada comportar divisão, a execução parcial é aceitável, e a anulação de um contrato integrante do grupo não atinge a eficácia dos demais (TEYSSIE, 1975, p.97).

TEYSSIE coloca como exemplo de contratos reunidos com obrigação indivisível os contratos de transporte, nos quais para fazer uma mercadoria chegar de um ponto a outro do planeta é necessária a intervenção de diversas empresas transportadoras, sendo certo que se trata de uma única operação de transporte (TEYSSIE, 1975, p.102). Como exemplo de contratos reunidos por obrigação divisível, têm-se os contratos de distribuição, com destaque para o âmbito espacial, de maneira que a invalidade ou rompimento de um contrato não afetará os demais contratos integrantes do grupo.

10 Do original: “L’interdependenza dei rapporti negoziali è normalmente reciproca, nel senso che la

sorte di ciscun rapporto è legata alla sorte dell’altro. È tuttavia possibile anche un’interdipendenza unilaterale, nel senso che la sorte di un rapporto si ripercuote sull’altro ma non viceversa. L’interdipendenza unilaterale è riscontrabile nelle ipotesi di contrati accessori, i quali seguono la sorte dei contrati principali cui accedono (es.: i contratti di garanzia)” (BIANCA, 1987, p.483).

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Uma outra espécie de coligamento contratual é aquela com dependência apenas unilateral. Ele ocorre quando a realização de uma operação não requer a conclusão de contratos de mesma importância, de maneira que um contrato assume posição de principal, e os demais assumem a condição de acessórios. Os contratos para a prestação de garantia, seja por terceiros, seja pelo próprio contratante, são exemplos de dependência unilateral, pois o contrato de garantia é acessório do contrato principal, acompanhando os seus termos e condições, assim como a sua sorte em caso de invalidade ou resolução. Mas se o contrato viciado for o acessório, o principal não terá a sua validade abalada.

Quanto ao coligamento contratual, tem-se o seguinte esquema:

Reunião de contratos (por identidade de causa)

Interdependentes Obrigação indivisível

Obrigação divisível

Dependência unilateral

A classificação oferecida por TEYSSIE é bastante útil, mas na prática não resolve todos os problemas. Quando a obrigação for indivisível, certamente haverá o coligamento contratual, pois não é suficiente a realização apenas parcial da obrigação, sendo indispensável a atuação de todos os contratos, sendo todos igualmente indispensáveis. Contudo, para a caracterização dessa indivisibilidade, não são suficientes os conceitos tradicionais de divisibilidade da obrigação, correspondente no Brasil à norma do artigo 87 do Código Civil. Em operações econômicas complexas, que ocorrem em razão da necessidade de especialização, de dinamização ou de parcerias comerciais, para tornar viável um projeto econômico, é evidente a insuficiência do conceito de “bem divisível”, sendo necessária uma análise mais profunda da vontade negocial, da causa concreta que move as partes a firmarem aqueles contratos, do caráter associativo do grupo contratual, enfim, de todo o sistema que move aquelas relações jurídicas.

A título exemplificativo, TEYSSIE apresenta como obrigações divisíveis os contratos de distribuição para ampliação do fornecimento de mercadorias num determinado espaço territorial. Em princípio, essas obrigações seriam de fato divisíveis, pois cada distribuidor atuará num determinado território, de maneira que o desligamento de um não

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influenciará a atuação dos demais. Contudo, na prática, pode ocorrer que a atuação de todos os contratos seja indispensável para o funcionamento da operação idealizada pelas partes, ou ainda que a presença de um distribuidor responsável por uma parcela mais significativa da área de atuação do grupo seja reputada indispensável para a manutenção do grupo. Para isso, é necessário aprofundar o conceito de causa, a fim de estabelecer o grau de dependência entre os contratos, para saber até que ponto o inadimplemento, invalidade ou resolução de um contrato afeta os demais, considerando-se a operação como um todo.

Note-se que aqui não se trata mais de perquirir sobre a unidade ou pluralidade de contratos. Tem-se certeza quanto à pluralidade de contratos, mas é necessário determinar se estes contratos estão intimamente ligados em razão de uma causa comum, e se esta conexão é de uma intensidade tal que permita a transferência dos efeitos de um contrato para o outro, rompendo com o princípio da relatividade dos contratos.

Essa ligação pode resultar de expressa disposição das partes, hipótese em que o coligamento se diz voluntário, resultando claro que a sorte de um contrato depende da do outro. Mas o coligamento pode ser funcional, quando a ligação se dá unicamente em razão da causa comum. Nesse caso, nas palavras de BIANCA, “cada relacionamento persegue um interesse imediato que é instrumental em relação ao interesse final da operação” (BIANCA, 2000, p.482, tradução nossa)11. Complementa, afirmando que “este interesse final contribui a determinar a causa concreta do contrato, pois é o interesse que o contrato visa a realizar” (BIANCA, 2000, p.482, tradução nossa)12.

De acordo com o autor italiano, a interdependência dos relacionamentos jurídicos é um resultado da interpretação do contrato, e prescinde de uma específica previsão das partes. Neste coligamento, chamado funcional, é que se verificam as maiores dificuldades para saber até que ponto as vicissitudes de um contrato contaminam outros contratos do mesmo grupo. Em vista disso, torna-se indispensável uma análise mais depurada acerca da causa, para que seja possível determinar a existência do coligamento contratual.

11 Do original: “In tal caso i singoli rapporti perseguono un interessi immediato che è strumentale

rispetto all’interesse finale dell’operazione” (BIANCA, 2000, p.482). 12 Do original: “Questo interesse finale concorre a determinare la causa concreta del contrato poiché

è l’interesse che il contratto è diretto a realizzare” (BIANCA, 2000, p.482).

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2.3 Importância da Noção de Causa Para a Configuração do Grupo Contratual

Tal como ressalta CARLOS NELSON KONDER, a causa é o principal instrumento de funcionalização no âmbito dos negócios jurídicos (KONDER, 2006, p.33). O intérprete não está limitado à análise da estrutura do negócio jurídico (verificação dos elementos constituintes ou morfológicos), devendo também desvendar a sua finalidade (aspecto fisiológico: para que serve o contrato), o que poderá ser obtido por meio da análise da causa do regulamento contratual.

A teoria clássica aponta duas concepções de causa: a concepção objetiva e a concepção subjetiva (BIANCA, 2000, p.449). Para a teoria clássica subjetiva, causa é um dado psicológico e requer uma investigação subjetiva para saber o motivo que levou as partes a contratarem. Para a teoria clássica objetiva, a causa de uma prestação é encontrada na prestação da outra parte, ou seja, na contraprestação: causa de uma prestação é o seu correspectivo. Assim, uma pessoa vende um imóvel porque quer receber o seu preço. Essa é a causa do contrato de compra e venda. Observe-se que esta noção é um tanto quanto abstrata, pois não faz distinção entre os diversos contratos de compra e venda que são firmados em concreto (ROPPO, 2001, p.362).

Uma teoria que ganhou grande relevância na Itália, sobretudo no período fascista, foi a da causa como função econômico-social do contrato. Para o Estado fascista, o contrato precisava ter uma utilidade social, sendo que esta utilidade deveria ser para o próprio Estado. Reconhecia-se a cada tipo contratual uma função econômico-social abstrata, não sendo relevante os motivos concretos que levaram as partes a contratar. Segundo BIANCA, a respeito da função econômico-social, “tal função prescinde dos escopos das partes e sobretudo prescinde das finalidades pelas quais as partes pretendem instrumentalizar no contrato (...) o que conta é a causa correspondente a cada figura típica de negócio” (BIANCA, 2000, p.450, tradução nossa)13. Mesmo nos negócios atípicos, somente se admitia o exercício da autonomia negocial dos interesses ditos meritevoli, permitindo-se um certo controle por parte do Estado.

13 Do original: “tale funzione prescinde dagli scopi delle parti e soprattutto prescinde dalle finalità

per le quali le parti intendono strumentalizzare il contratto (...) ciò che conta à la causa corrispondente a ciascuna figura típica di negozio” (BIANCA, 1987, p.423).

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Em se tratando de contratos coligados, as teorias clássicas e a teoria da típica função econômico-social são absolutamente insuficientes, seja por demandarem uma investigação psicológica de cada sujeito, quando na verdade deve-se buscar a causa comum, seja porque não consideram as razões concretas que levaram as partes a firmarem o contrato. A abstração demasiada pode levar a resultados equivocados, na medida em que, por vezes, as partes firmam um determinado contrato aparentemente buscando o resultado previsto para aquele tipo contratual, mas concretamente o resultado obtido é outro. Por exemplo, no contrato de compra e venda com pacto de retrovenda, a função típica é permitir a retratação do vendedor. Contudo, as partes podem usar essa figura contratual para firmar uma garantia no contrato de compra e venda à prestação.

Para a caracterização do grupo contratual, deve-se levar em consideração a causa concreta que levou as partes a firmarem determinados contratos, para saber se eles dizem respeito a uma única operação ou a operações distintas14. A análise isolada de um contrato pertencente a um grupo pode levar ao equívoco de se considerar somente a causa típica e abstrata de cada contrato, sem considerar a causa final da operação. De fato, para a realização de uma única operação, em razão da sua complexidade, pode ser necessária a celebração de diversos contratos, sendo indispensável perquirir se existe uma causa final, além da causa individual de cada um deles. A causa final concreta de toda a operação integra a causa concreta de cada contrato, sendo impossível conceber a manutenção individual de cada vínculo diante do desaparecimento da causa final15.

14 Nas palavras de BIANCA, em tradução livre, “o que importa saber é a função prática que

efetivamente as partes conferiram ao seu acordo. Procurar a efetiva função prática do contrato quer dizer, precisamente, procurar o interesse concretamente perseguido. Não basta, isto é, verificar se o esquema usado pelas partes seja compatível com um dos modelos contratuais, mas é necessário procurar o significado prático da operação considerando todas as finalidades que, ainda que tacitamente, entraram no contrato”. Do original: “ciò che importa sapere è la funzione pratica che effetivamente le parti hanno assegnato al loro accordo. Ricercare l´effetiva funzione pratica del contratto vuol dire, precisamente, ricercare l´interesse concretamente perseguito. Non basta, cioè, verificare se lo schema usato dalle parti sia compatibile con uno dei modelli contrattuali ma ocorre ricercare il significato pratico dell´operazione com riguardo a tutte le finalità che – sia pure tacitamente – sono entrate nel contratto” (BIANCA, 2000, p.425).

15 As lições de IONE FERRANTI bem resumem tudo o quanto foi dito até o momento. Para a autora, “o coligamento contratual nos seus aspectos gerais não dá lugar a um contrato novo e autônomo. É um mecanismo através do qual as partes perseguem um resultado econômico unitário e complexo, que é realizado não por meio de um único contrato, mas através de uma pluralidade coordenada de contratos. Os contratos conservam uma causa autônoma, mesmo se cada um é finalizado para o regramento dos interesses recíprocos. O critério distintivo entre contrato único e

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RICARDO LUIZ LORENZETTI, ao tratar das perspectivas da análise contratual, destaca que, no enfoque sistemático, o objetivo é analisar os grupos de contratos e a sua configuração em sistemas com finalidades supracontratuais (LORENZETTI, 2000, p.55). Para Lorenzetti, “o enfoque não pode basear-se no contrato, mas sim na interação de um grupo de contratos que atuam de forma relacionada, de modo que o contrato seja um instrumento para a realização de negócios” (LORENZETTI, 2000, p.70, tradução nossa)16. LORENZETTI discorre sobre a necessidade de considerar-se a causa do sistema que envolve a operação contratual:

“Este enfoque [sistêmico] permite estabelecer que há uma finalidade negocial supracontratual que justifica o nascimento e o funcionamento de uma rede. O grupo que surge dessa maneira não é somente uma união convencional de contratos, que pode ser analisada mediante o exame dos vínculos individuais. Requer-se uma compreensão do sistema e, por isso, de uma teoria sistêmica” (LORENZETTI, 1999, p.54, tradução nossa)17.

Observe-se, por fim, que a causa que se fez referência nesse tópico não se confunde com os simples motivos individuais de cada contratante, enquanto esses permanecerem internos ou não manifestados como razão determinante da realização do negócio jurídico. Em geral, a doutrina

contrato coligado, portanto, não é dado por elementos formais, como a unidade ou a pluralidade de documentos contratuais (um contrato pode ser único mesmo que retirado de mais de um texto; um único texto pode reunir vários contratos) ou a mera contextualidade das estipulações, mas pelo elemento substancial da unicidade ou pluralidade dos interesses perseguidos” (2005, p.338, tradução nossa). Do original: “Il collegamento contrattuale nei suoi aspetti generali non dà luogo ad um autonomo e nuovo contratto. È un meccanismo attraverso il quale le parti perseguono un risultato economico unitario e complesso, che viene realizzato non per mezzo di un singolo contratto ma atraverso una pluralità coordinata di contratti. I contratti conservano una loro causa autonoma, anche se ciascuno è finalizzato ad un unico regolamento dei reciproci interessi. Il criterio distintivo fra contratto unico e contratto collegato, pertanto, non è dato da elementi formali, quali l’unità o la pluralità dei documenti contrattuali (un contratto può essere unico anche se ricavabile da più testi; un unico testo può riunire più contratti) o la mera contestualità delle stipulazioni, ma da quello sostanziale dell’unicità o pluralità degli interessi perseguiti” (FERRANTI, 2005, p. 338).

16 Do original: “el enfoque no puede basarse en el contrato, sino en la interacción de un grupo de contractos que actúan en forma relacionada, de modo que el contracto es un instrumento para a realización de negócios” (LORENZETTI, 2000, p.70).

17 Do original: “Este enfoque permite establecer que hay una finalidad negocial supracontractual que justifica el nascimiento y funcionamiento de una red. El grupo que surge de esa manera no es sólo una unión convencional de contratos, que puede ser analizada mediante el examen de los vínculos individuales. Se requiere una comprensión del sistema y por ello de una teoría sistémica” (LORENZETTI, 1999, p.54).

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conceitua os motivos como interesses que as partes visam a satisfazer mediante o contrato, mas que não entram no seu conteúdo, sendo, portanto, irrelevantes. Todavia, quando os motivos são expressos, seja nos instrumentos contratuais, seja pelo comportamento concludente das partes, como razão determinante do contrato, eles se tornam a causa concreta, devendo ser considerados para efeito de verificação do adimplemento contratual, uma vez que os motivos se tornam “interesses que o contrato visa a realizar” (BIANCA, 2000, p.452-453). Nesse sentido, ver os artigos 140 e 166, III, do Código Civil18.

Enfim, nos casos em que o agrupamento contratual ocorrer unicamente em razão da identidade de causa (collegamento funzionale), não resultando expressamente dos instrumentos firmados entre as partes, é necessário fazer prova de que um contrato é dependente do outro, seja essa dependência bilateral ou unilateral. A prova deve concentrar-se na demonstração da causa final da operação, que deve ser comum a todos os contratos e a todos os participantes (co-ventures).

3 – REGRAS DE INTERPRETAÇÃO CONTRATUAL E SUA INCIDÊNCIA NAS JOINT VENTURES

No tópico anterior, demonstrou-se a importância da noção de causa para a configuração do agrupamento contratual. A verificação da causa final, comum a todos os contratos, se faz pelo processo de interpretação, voltado a acertar a vontade comum dos co-ventures, que decorre do regulamento contratual globalmente considerado. O ordenamento jurídico confere aos particulares o poder de autorregulamentarem seus próprios interesses, desde que haja mútuo consenso, e dentro dos limites estabelecidos pela própria Lei, sendo que para saber o significado da norma jurídica que nasce dessas declarações de vontade é preciso desencadear a atividade interpretativa.

O Código Civil brasileiro, em comparação com outros Códigos, como o italiano, o francês e o chileno, não possui muitas regras de interpretação contratual. No entanto, em comparação com o Código Civil de 1916, foram

18 CARLOS NELSON KONDER destaca que a inovação trazida pelo inciso III do artigo 166 do CC deu

novo fôlego ao debate sobre a relevância da causa no direito brasileiro, tendo em vista que no Código Civil de 1916 predominou a posição anticausalista, pois, diferentemente de outros ordenamentos jurídicos, como o italiano, a causa não era listada entre os requisitos de validade do negócio jurídico (KONDER, 2006, p.43).

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introduzidas significativas alterações, como a que estabelece a interpretação conforme a boa-fé e os usos do lugar da celebração (CC, art. 113). As regras de interpretação estão concentradas na parte geral do Código, referindo-se aos negócios jurídicos em geral, e não apenas aos contratos. Existem, no entanto, outras regras esparsas, como a que determina a interpretação favorável ao aderente (CC, art. 423). Não se trata de meros conselhos para o intérprete, mas sim de verdadeiras normas jurídicas, cuja observância é obrigatória, seja pelas partes, seja pelos juízes (SACCO, 1975, p.757; BIANCA, 2000, p.415-417). De acordo com EMILIO BETTI, enquanto as partes têm um ônus de observância das normas sobre interpretação, os juízes têm o dever de respeitá-las (BETTI, 1971, p.239-240).

O processo de interpretação pode ser dividido em duas fases19. A primeira fase é chamada de subjetiva ou recognitiva, na qual o intérprete buscará a vontade das partes expressa nas declarações de vontade, seja no texto, seja no contexto contratual. A segunda fase é denominada de objetiva ou normativa, pois critérios legais incidirão para auxiliar a busca pela comum intenção das partes, diante da existência de ambiguidade ou obscuridade nas declarações de vontade20. Para BIANCA, se a intenção não é claramente manifestada, o intérprete deve proceder segundo critérios que não se conformam com uma específica vontade das partes, mas que ainda são voltados a acertar o conteúdo substancial do contrato, com base em valoração normativa (BIANCA, 2000, p.408). Nessa fase, incidirão os critérios da boa-fé, dos usos e costumes, da interpretação mais favorável ao aderente, entre outros critérios legais.

Necessário se faz, ainda, distinguir interpretação de qualificação jurídica, destacando-se que enquanto aquela corresponde a um juízo de fato, esta corresponde a um juízo de valor, na medida em que se propõe a verificar o valor jurídico dado às declarações de vontade emitidas pelas partes. Após determinar-se o conteúdo do regulamento contratual, verificando a presença dos elementos categoriais essenciais que compõem a estrutura do negócio firmado (essentialia negotti), em fase de qualificação será feita a valoração jurídica para enquadrar o contrato num dos tipos

19 Conforme ALPA; FONSI; RESTA, 2001; BETTI, 1971; BIANCA, 2000; CARRESI, 1987; SACCO, 1975;

GOMES, 1998; MIRANDA, 1989. 20 De acordo com BIANCA, se a intenção não é claramente manifestada, o intérprete deve proceder

segundo critérios que não se conformam com uma específica vontade das partes, mas que são voltados a acertar o conteúdo substancial do contrato, com base em valoração normativa (BIANCA, 2000, p.408).

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legais e verificar os efeitos ex lege (naturalia negotii). Importante destacar que nem sempre a qualificação dada pelas partes será a mesma observada pelo intérprete, pois este poderá concluir pela existência de negócio jurídico simulado ou indireto. Observe-se, por fim, que a fase de qualificação não é lógica ou cronologicamente posterior à de interpretação, pois a tipificação ou categorização do contrato num esquema jurídico, operação própria da qualificação, pode ser crucial para uma correta interpretação da vontade das partes.

Assim sendo, uma vez qualificado o contrato como “associativo”, como é o caso das joint ventures, o intérprete deverá considerar as características próprias dessa categoria contratual para chegar à vontade comum das partes, ponderando que o valor social e o econômico prevalecem sobre o individual, havendo uma incidência reforçada do princípio da boa-fé.

Nos tópicos seguintes, serão analisados os critérios de interpretação subjetiva e objetiva que auxiliam na interpretação dos grupos contratuais, destacando-se ao final as peculiaridades da incidência desses critérios com relação às joint ventures, que são modalidades de contratos associativos.

3.1 Critérios de Interpretação Subjetiva (ou Recognitiva)

A primeira regra de interpretação prevista pelo ordenamento jurídico brasileiro está positivada no artigo 112 do Código Civil, estabelecendo que nas declarações de vontade se atenderá mais à intenção nelas consubstanciada do que ao sentido literal da linguagem. Trata-se de regra de interpretação recognitiva, voltada ao acertamento da vontade comum das partes. Essa norma trouxe uma alteração significativa com relação ao Código Civil anterior, que dava margem à interpretação de que a vontade interna era mais importante do que a declarada, introduzindo a expressão nelas consubstanciada. Com essa alteração, o Código Civil afastou qualquer interpretação voluntarista, cujo perigo era o de se entender por uma investigação psicológica do intento das partes, para considerar a vontade declarada. Trata-se de privilegiar a teoria da declaração, segundo a qual o que constitui o negócio jurídico não é a vontade puramente considerada, mas a sua declaração, entendida no contexto das circunstâncias.

De acordo com EMILIO BETTI, “a vontade como fato psicológico meramente interno é qualquer coisa per se inaferível e incontrolável” (BETTI,

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1971, p.52, tradução nossa)21. A vontade só tem relevância quando traduzida em fato social, identificado nas disposições pelas quais os sujeitos regulam os próprios interesses. Na interpretação contratual, “relevante é só o quanto se tenha dito e feito no relacionamento entre as partes, de modo reciprocamente reconhecível, no âmbito das tratativas e do ato de sua conclusão” (BETTI, 1971, p. 389, tradução nossa)22.

A exigência de tutela da confiança do destinatário já vinha servindo de fundamento para o afastamento de interpretações subjetivistas23, baseadas no dogma da vontade, tendo como o “outro lado da moeda” a teoria da responsabilidade, ou da autorresponsabilidade, pela qual o declarante deve ser responsabilizado por uma declaração de vontade por ele emitida, e que despertou a confiança do destinatário, ainda que esta declaração não corresponda fielmente ao seu real intento. Desta forma, limitou-se a anulação por vício de vontade aos casos em que o erro (entendido como a desconformidade entre a declaração de vontade e a real intenção) que poderia ou deveria ser facilmente percebido pela outra parte (CC, art. 138). Portanto, para que se tutele a confiança do destinatário, é preciso que este também aja com diligência, percebendo eventuais vícios na vontade do outro contratante, de acordo com o critério da boa-fé.

Observe-se que não somente o que está literalmente expresso nos instrumentos contratuais, mas também todo o complexo de circunstâncias e declarações extraídas do comportamento concludente das partes (conteúdo implícito ou marginal do negócio) servirão de apoio ao intérprete, que deverá, tanto quanto possível, buscar o significado da vontade comum das partes. Portanto, o significado do regulamento contratual nas joint ventures, 21 Do original: “la volontà come fatto psicologico meramente interno è qualcosa di per sé

inafferrabile e incontrollabile” (BETTI, 1971, p.52). 22 Do original: “rilevante è solo quanto si sia detto e fatto nei rapporti fra le parti, in modo

reciprocamente riconoscibile, nell’ambito delle trattative e all’atto della loro conclusione” (BETTI, 1971, p. 389).

23 De acordo com C. MASSIMO BIANCA, “a exigência da tutela desta confiança supera a exigência de tutela do declarante, porque a relevância, em relação a terceiros, dos defeitos ocultos da declaração negocial prejudicaria a certeza do comércio jurídico.” (...) “Em conclusão, pode-se dizer que o princípio da autonomia privada é integrado pelo princípio da autorresponsabilidade, o qual encontra a sua justificação e o seu limite na exigência de tutela da confiança” (BIANCA, 2000, p.22-23, tradução nossa). Do original: “L’esigenza della tutela di quest’affidamento supera l’esigenza di tutela del dichiarante perché la rilevanza, rispetto ai terzi, delle deficienze occulte della dichiarazione negoziale pregiudicherebbe la certezza del commercio giuridico”. (...) “In conclusione può dirsi che il principio dell’autonomia privata è integrato dal principio dell’autoresponsabilità’, il quale trova la sua giustificazione e il suo limite nell’esigenza di tutela dell’affidamento” (BIANCA, 2000, p.22-23).

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que inclui, como já visto, a verificação da causa final comum a todos os contratos integrantes do grupo, deverá ser buscado seja nas declarações expressas pelos co-ventures, seja no complexo de circunstâncias objetivas que cercaram a contratação.

Para EMILIO BETTI, tanto a declaração quanto o comportamento enquadrado na moldura das circunstâncias conferem significado e valor ao contrato:

“Em verdade o que conta não é tanto o teor das palavras ou a materialidade do conteúdo, mas a situação objetiva na qual aqueles são pronunciados ou subscritos, e assim acertados: vale dizer, aquele contexto e complexo de circunstâncias no qual as declarações e comportamentos se enquadram como na sua natural moldura e assumem, segundo a visão da consciência social, o seu típico significado e relevância” (BETTI, 1971, p.384, tradução nossa)24.

Numa joint venture, o intérprete deverá buscar a causa final da operação na vontade comum de todos os co-ventures, pois essa é a moldura na qual o complexo de contratos de enquadra. Quando o coligamento contratual é voluntário, estando claramente expresso, seja no acordo-base, seja nos contratos satélites, o intérprete não terá maiores problemas para acertar a vontade comum. Mas quando a ligação entre os contratos não estiver claramente expressa, ou quando for simplesmente omitida, a atividade interpretativa torna-se mais trabalhosa, de maneira que as circunstâncias objetivas deverão ser consideradas para verificar a ligação entre um ou mais contratos.

Nessa tarefa, o intérprete deverá ser cauteloso para evitar que a vontade interna de um contratante não prevaleça sobre a vontade comum, uma vez que, no ordenamento jurídico brasileiro, o que importa é a vontade consubstanciada nas declarações de vontade, seja de maneira literal, seja em razão das circunstâncias objetivamente consideradas, mas nunca a vontade que permanecer interna, não manifestada (CC, art. 112).

24 Do original: “In verità quel che conta non è tanto il tenore delle parole o la materialità del

contegno, quanto la situazione oggetiva in cui quelle vengono pronunziate o sottoscrite, e questo viene tenuto: vale a dire, quel contesto e complesso di circostanze nel quale dichiarazione e comportamento s’inquadrano come nella loro naturale cornice e assumono, secondo le vedute della coscienza sociale, il loro tipico significato e rilievo” (BETTI, 1971, p.384).

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As negociações e o preâmbulo tanto do acordo-base quanto dos contratos satélites também servirão para esclarecer a real intenção das partes, tal como afirma EMILIO BETTI:

“A interpretação fixa o conteúdo e reconstrói o significado das declarações e comportamentos, considerando também os fatos antecedentes e os consequentes que se conectam, e em particular considerando assim as tratativas que resultam na conclusão do negócio, como os modos de conduta em que posteriormente se presta observância ao negócio concluso (cc 1362 capv)” (BETTI, 1971, p.384, tradução nossa)25.

Ressalte-se, todavia, que havendo contraste entre as tratativas e o texto final do contrato, este deve prevalecer. Isso porque muitas vezes a intenção dos contratantes manifestada durante as negociações pode se modificar, de maneira que certos pontos sejam superados. O limite para a utilização das tratativas é o da compatibilidade. Não poderão ser utilizadas como meio interpretativo quando o seu sentido seja divergente ao do significado objetivo da declaração, ou daquele que as partes tenham fixado com uma interpretação autêntica, preventiva ou sucessiva (BETTI, 1971, p.386).

Também o comportamento sucessivo pode contribuir para a descoberta da comum intenção. O comportamento sucessivo pode contradizer o texto do acordo, como é o caso, por exemplo, de a parte aceitar conscientemente uma execução de maneira diversa. Nesse caso, pode ocorrer a figura da surrectio (formação de um direito em razão do comportamento reiterado da parte) ou a supressio (supressão de um direito em razão do comportamento reiterado da parte). Verifica-se, portanto, que o comportamento das partes durante a execução do contrato pode significar tanto uma mera tolerância à inexatidão, que não lhe retira o direito ao exato adimplemento, como pode significar uma tácita modificação do contrato. O critério para a verificação da alteração das condições contratuais será o da boa-fé objetiva, que será estudado no tópico a seguir.

25 Do original: “L’interpretazione fissa il contenuto e ricostruisce il significato di dichiarazioni e

comportamenti, avendo riguardo anche ai fatti antecedenti e ai conseguenti che vi si connettono, e in particolare considerando così le trattative onde è risultata la conclusione del negozio, come i modi di condotta in cui posteriormente si è prestata osservanza al negozio concluso (Cod. Civ. 1362 capv)” (BETTI, 1971, p.384).

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Não sendo possível extrair-se inequivocamente dos instrumentos contratuais a real intenção das partes, passa-se à segunda fase da interpretação, chamada objetiva ou normativa, na qual incidirão critérios legais para auxiliar a tarefa do intérprete.

3.2 Critérios de Interpretação Objetiva (ou Normativa). Critérios da Boa-Fé e dos Usos do Lugar da Celebração

Entre as diversas normas legais de interpretação, a que mais interessa aos objetivos desse trabalho é aquela contida no artigo 113 do Código Civil, pelo qual os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração.

O princípio da boa-fé atua em todos os momentos contratuais: na formação, na execução e após o cumprimento do contrato. Observe-se, ainda, que o princípio da boa-fé exerce variadas funções. Entre as partes, o princípio da boa-fé atua com a imposição de regras de conduta, que alargam o vínculo contratual, dando origem aos denominados deveres anexos (lealdade, salvaguarda, transparência, informação, entre outros). O princípio da boa-fé também incide para impor às partes o dever de não prejudicar os demais contratantes após o rompimento do vínculo contratual, tendo como exemplo o dever de confidencialidade.

Na perspectiva do órgão julgador, o princípio da boa-fé exerce três funções: a) função corrigendi, que permite ao juiz a declaração de nulidade de cláusulas abusivas, ou imposição de responsabilidade pelo descumprimento de deveres anexos; b) função adjuvandi, servindo de critério de interpretação objetiva para auxiliar o juiz na busca da vontade das partes; c) função suplendi, que atua diante da inexistência de vontade das partes com relação a alguma questão, cujo suprimento é indispensável para que o contrato produza seus efeitos.

Na fase de formação do contrato, o princípio da boa-fé incide enquanto regra de conduta, e não propriamente na sua função interpretativa, impondo às partes o dever de lealdade, o de não especular sobre falsa confiança e o de não contestar razoável confiança incutida na contraparte. A boa-fé enquanto regra de conduta encontra sua previsão no artigo 422 do Código Civil, pelo qual os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé. Inegável que a boa-fé faz parte da gênese da manifestação de vontade, impondo ao declarante o dever de manifestar sua vontade de

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maneira clara e leal, sendo, por outro lado, a medida da tutela da confiança do declaratário. Contudo, nesse momento, o princípio da boa-fé não exerce função interpretativa, que é a função adjuvandi, vista dentro das funções pretorianas da boa-fé, mas sim exerce o papel de regra de conduta entre as partes.

Ademais, o princípio da boa-fé também atua na função suplendi, em procedimento de integração propriamente dita26, que ocorre no caso de total ausência de vontade das partes acerca de uma determinada questão, cujo suprimento se faz necessário para que o contrato produza algum efeito. É o exemplo de um contrato de compra e venda de mercadorias, cuja fixação do preço tenha ficado ao arbítrio de um determinado órgão governamental (CC, art. 485), que posteriormente venha a ser extinto, ou ainda quando as partes prometeram designar um terceiro para fixar o preço, e não o fazem, o juiz deverá integrar o contrato, para que gere os efeitos esperados, com base no princípio da boa-fé na função suplendi.

Enquanto regra interpretativa (função adjuvandi), o princípio da boa-fé está positivado no artigo 113 do Código Civil, pelo qual os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração. ORLANDO GOMES coloca a boa-fé entre as regras de interpretação

26 Não se pode confundir interpretação integrativa com integração. Aquela diz respeito à segunda fase

da interpretação, que tem lugar diante de ambiguidade ou obscuridade da declaração de vontade, que não pode ser resolvida pela simples análise do texto e do contexto no qual se insere a declaração de vontade (primeira fase da interpretação), sendo necessário o recurso a normas jurídicas interpretativas, que auxiliarão o intérprete na busca da vontade consubstanciada na declaração. A integração, diferentemente, pressupõe a ausência total de vontade. Supõe um ponto sobre o qual as partes não dispuseram absolutamente nada. Não está mais em questão a vontade das partes, de maneira que não há integração da fatispécie do negócio, mas somente dos seus efeitos. Lacunosa é a fórmula do negócio, e pela integração se dá a reconstrução da ideia do negócio, possibilitando a produção de efeitos concretos. Nas palavras de EMILIO BETTI: “A interpretação pressupõe conceitualmente um dado conteúdo do negócio concreto, seja explícito, seja implícito, uma ideia (preceito) do negócio expressa, ou ao menos com fórmula adequada. Do contrário, a integração com normas supletivas ou dispositivas pressupõe mesmo a falta de um preceito que possa ser extraído da fórmula, portanto, uma lacuna não nesta (fórmula) somente, mas na própria ideia (preceito), no regulamento negocial; e esta concerne não já à fatispécie do negócio, mas unicamente aos seus efeitos: é integração dos efeitos” (BETTI, 1971, p.409, tradução nossa). Do original: “L’interpretazione presuppone concettualmente un dato contenuto del negozio concreto sia esplicito, sia implicito, una idea (precetto) del negozio espressa o meno con formola adeguata. Per contro l’integrazione con norme suppletive o dispositive presuppone proprio la mancanza di un precetto ricavabile dalla formola, quindi una lacuna non in questa soltanto, ma nella stessa idea (precetto), nel regolamento negoziale; ed essa concerne non già la fattispecie del negozio, ma unicamente i suoi effetti: è integrazione degli effeti” (BETTI, 1971, p. 409).

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objetiva, destacando que ela se traduz em proteção da legítima expectativa dos contratantes. Numa interpretação conforme a boa-fé, entre os vários sentidos possíveis, merece acolhida aquele que o destinatário podia e devia atribuir, de acordo com as regras comuns de linguagem e de comunicação próprios do local, segundo o critério da boa-fé (GOMES, 1998, p.204).

JUDITH MARTINS-COSTA conceitua a boa-fé como critério “hermenêutico-integrativo”, com a função de preenchimento de lacunas, mas destaca que a boa-fé também é recurso para a interpretação flexibilizadora da vontade das partes (MARTINS-COSTA, 2000, p. 428-429). Reportando-se a WIEACHER, JUDITH destaca que, como cânone hermenêutico-integrativo, o recurso à boa-fé objetiva serve para melhor especificar o plano geral de ordenação do contrato, quando o juiz não encontra apoio no texto contratual, nem literalmente considerado, nem segundo a reconstrução da intenção das partes, nem quando tomado em conta o valor da declaração razoavelmente apreciado ou segundo os usos do tráfego (MARTINS-COSTA, 2000, p.429-430), enquadrando, portanto, a boa-fé como critério de interpretação integrativa.

De acordo com o artigo 113 do Código Civil, além do critério da boa-fé, os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme os usos do lugar de sua celebração, que são as práticas observadas de modo uniforme, público e constante pelas pessoas de um mesmo local, ou, em outras palavras, a repetição de um modo de agir naquele local da celebração do contrato, e que deve ser considerado para interpretar o contrato, em caso de dúvida quanto ao sentido que deve se atribuir à declaração de vontade.

Na doutrina de ORLANDO GOMES, “as práticas usuais e palavras usadas habitualmente no mesmo sentido ajudam o intérprete na realização da sua tarefa”. Prossegue, dizendo que “formam-se, desse modo, usos sociais, que devem ser levados em conta na interpretação dos contratos, conforme prescrevem algumas legislações, como o Código Civil Alemão”. “Têm, em síntese, função hermenêutica, dizendo-se, por isso, que são interpretativos” (GOMES, 1998, p.206). Diferentes dos usos sociais são os usos contratuais, que são aqueles observados pelas partes na relação contratual, que também podem ser utilizados com função hermenêutica. Contratos análogos, periodicamente realizados entre as partes, também podem ser considerados, de maneira que a parte que pretender modificar os termos usuais do relacionamento deverá alertar a outra antes da conclusão do contrato.

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Os usos também podem ser utilizados em função supletiva, diante da ausência de manifestação das partes acerca de um determinado ponto necessário para que o contrato produza os efeitos desejados. Salienta ORLANDO GOMES que se as partes não desejarem a incidência de um uso em função supletiva, deverão afastá-lo expressamente (GOMES, 1998, p.206). Exemplos de usos em função supletiva são a aplicação de determinado peso ou medida próprios de um lugar ou a fixação do preço na compra e venda nos termos do artigo 488 do Código Civil, diante da ausência de manifestação das partes.

Uma última regra de interpretação objetiva que poderá incidir no caso é aquela que determina a interpretação mais favorável ao aderente, nos contratos de adesão, estabelecida pelo artigo 423 do Código Civil. Essa regra segue a lógica de que aquele que predispõe tem o ônus de falar claro, evitando cláusulas obscuras ou ambíguas, caso contrário correrá o risco de ficar obrigado conforme um significado que não queria. Trata-se da imposição de uma consequência negativa àquele que redige as cláusulas, que se identifica com o princípio da autorresponsabilidade. Apesar de essa regra ter maior incidência nos contratos de adesão, não negociados, o que em geral não é o caso das joint ventures, a sua aplicação pode ser estendida a todos os casos em que a redação do contrato fica a cargo de uma das partes, ainda que o acordo tenha sido negociado.

3.3 Peculiaridades da Interpretação nos Contratos Associativos

Em geral, os agrupamentos contratuais são caracterizados pelo seu caráter associativo. Essa espécie de contrato é assim descrita por ENZO ROPPO:

“Os contratos do gênero do último indicado definem-se como contratos associativos, e contrapõem-se aos contratos de troca (ou sinalagmáticos, ou de prestações correspectivas), nos quais aquilo que uma parte dá ou promete à outra parte encontra a sua contrapartida imediata e definitiva naquilo que a outra parte lhe dá ou lhe promete a si, esgotando assim a sua função na troca recíproca de bens ou de serviços; também nos contratos associativos, as partes obrigam-se uma em relação às outras, mas os deveres e as atribuições de cada uma surgem em razão do escopo comum e em função da organização comum que assim

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geralmente se cria com características de relativa estabilidade e duração” (ROPPO, 1988, p.83).

Observe-se, portanto, que apesar de não existir um sinalagma no sentido estrito do termo, que se refere aos contratos de troca, as partes se obrigam uma em relação à outra em razão do escopo comum, do qual deriva o caráter associativo existente entre os contratos. De acordo com LORENZETTI:

“Na conexidade existe um interesse associativo que se satisfaz através de um negócio que requer vários contratos unidos em sistema; a causa nestes supostos vincula sujeitos que são partes de distintos contratos, situando-se fora do vínculo bilateral, mas dentro do sistema ou rede contratual. Isso significa que existe uma finalidade econômico-social que transcende a individualidade de cada contrato e que constitui a razão de ser de sua união; se se desequilibra a mesma, se afeta todo o sistema e não só o contrato” (LORENZETTI, 1999, p.63, tradução nossa)27.

Verifica-se, portanto, a necessidade de manutenção não só do equilíbrio individual de cada contrato, mas também da manutenção do equilíbrio do sistema. LORENZETTI defende a existência de uma correspectividade bilateral e uma correspectividade sistemática entre as prestações. Segundo o autor:

“Um sistema é um conjunto de partes interdependentes de modo tal que uma delas não pode existir plenamente sem o concurso das outras. Quando há um sistema de contratos ocorre exatamente o mesmo, de modo que há um problema de convivência: são contratos distintos, mas que não podem conviver um sem o outro: nenhum funciona se o sistema fracassa” (LORENZETTI, 1999, p.70, tradução nossa)28.

27 Do original: “En la conexidad hay un interés asociativo que se satisface a través de un negocio que

requiere varios contratos unidos en sistema; la causa en estos supuestos vincula a sujetos que son partes de distintos contratos situándose fuera del vínculo bilateral pero dentro del sistema o red contractual. Ello significa que hay una finalidad económico-social que transciende la individualidad de cada contrato y que constituye la razón de ser de su unión; si se desequilibra la misma se afecta todo el sistema y no solo contrato” (LORENZETTI, 1999, p.63).

28 Do original: “Un sistema es un conjunto de partes interdependentes de modo tal que una de ellas no puede existir plenamente sin el concurso de las otras. Cuando hay un ‘sistema de contratos’ ocurre exactamente lo mismo, de modo que hay un problema de convivencia: son contratos distintos, pero no pueden convivir uno sin el otro: no funciona ninguno si el sistema fracassa” (LORENZETTI, 1999, p.70).

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Portanto, não basta falar em equilíbrio levando-se em consideração apenas a bilateralidade e a comutatividade das prestações de cada contrato integrante do grupo, mas sim deve-se considerar também o equilíbrio do próprio sistema.

Dessa forma, em se tratando de grupos contratuais, é importante aplicar com cautela os dispositivos legais que visam a garantir o equilíbrio entre as prestações em contratos bilaterais, como a lesão e a resolução ou a revisão por onerosidade excessiva, uma vez que assegurar as condições ideais para cada contrato individualmente considerado pode significar custos insuportáveis para o sistema, de maneira a afetar o seu equilíbrio, provocando a ruína de todos os contratos participantes do grupo.

Nos contratos associativos, como é o caso das joint ventures, os deveres decorrentes da boa-fé, como o de cooperação e o de lealdade, são reforçados, em razão da própria natureza dessa categoria contratual, na qual as partes se propuseram a não apenas defender interesses próprios, mas sim interesses comuns a todos os participantes. Desde a sua origem, as joint ventures sempre se pautaram por esse princípio fundamental. Conforme BAPTISTA e BARTHEZ, um dos princípios em que se repousa a partnership é o da boa-fé, destacando que “os partners se devem entre si a mais extrema boa-fé (uberrima fides), o que lhes dá um direito igual de controle na gestão (BAPTISTA; BARTHEZ, 1991, p.5, tradução nossa)29.

Assim sendo, na interpretação dos grupos contratuais nas joint ventures, o intérprete deverá levar em consideração não só a manutenção do equilíbrio do sistema, mas também um grau de boa-fé diferenciado entre os co-ventures, tendo em vista que cada contrato encontra sua razão de ser num objetivo superior e comum a todos os participantes.

4 – JOINT VENTURES: ACORDO-BASE E CONTRATOS SATÉLITES

Apesar do conceito de joint venture não ser uníssono entre os doutrinadores, tendo em vista que esta forma de cooperação entre pessoas surgiu de maneira espontânea na prática comercial, é possível verificar algumas características que constantemente se repetem em contratações dessa espécie. BAPTISTA e BARTHEZ destacam que a noção de joint venture é 29 Do original: “enfin, les partners se doivent entre eux la ‘plus extreme bonne foi’ (uberrima fides), ce

qui leur donne un droit égal de controle et de participation à la gestion” (BAPTISTA; BARTHEZ, 1991, p.5).

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muito próxima daquela de acordo de cooperação entre empresas, confundindo-se mesmo com esse numa concepção mais ampla. Identificam, ainda, algumas características constantes das joint ventures, quais sejam a formação de uma associação de caráter contratual, com objeto delimitado, na qual todos os participantes contribuem com os mecanismos para pôr em prática o empreendimento e dividem os riscos, além do que participam da tomada de decisões (BAPTISTA; BARTHEZ, 1991, p.56).

Outra característica bastante frequente, presente na maior parte das joint ventures, é a celebração de um acordo-base e de um ou mais contratos satélites, formando um grupo de contratos coligados, aos quais se aplicam todas as considerações expostas nos tópicos anteriores. Apesar de alguns autores discordarem do caráter absoluto desses elementos (KONDER, 2006, p.174; BAPTISTA; BARTHEZ, 1991, p.57), conforme já salientado anteriormente, o enfoque deste trabalho é com relação às joint ventures formadas por grupos de contratos, tendo em vista os problemas que podem decorrer da interpretação desses instrumentos contratuais.

As características das joint ventures variam conforme estas forem estruturadas apenas contratualmente (non corporate joint ventures ou joint ventures contratuais) ou também institucionalmente, dando origem a uma nova pessoa jurídica (corporate joint ventures). Com relação às joint ventures contratuais, assim ensina MARISTELA BASSO:

“A non corporate joint ventures ou joint venture contratual, como é chamado no Brasil, se caracteriza por ser uma associação de interesses em que os riscos são compartilhados, porém não se forma uma pessoa jurídica, e, em geral, não existe contribuição de capitais. Nessas associações, não se forma uma sociedade conjunta com personalidade jurídica separada daquela dos co-ventures, nas quais os sócios possuam ações de capital proporcional ao investimento” (BASSO, 1988, p.47).

Em outra passagem, prossegue a autora, dizendo que “as joint ventures contratuais são aquelas pelas quais as partes, através da união de esforços, pretendem dar vida a um projeto empresarial associativo através de um contrato no qual haja previsão de relações meramente obrigacionais, sem criação de uma terceira empresa independente” (BASSO, 1998, p.189). Verifica-se, portanto, que apesar de não ser criada uma terceira pessoa jurídica, nas joint venture contratuais a cooperação entre as empresas é

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regulada por meio dos contratos coligados firmados entre as partes, que poderão conter estipulações acerca dos direitos e obrigações de cada parte, a forma de cooperação desejada, a coordenação do empreendimento (administração), a participação de cada parte nas perdas e nos lucros.

De acordo com MARISTELA BASSO, algumas características são fundamentais para a caracterização da joint venture contratual, citando a junção de capital, insumos, equipamentos [ou seja, a cooperação com bens ou serviços], a administração comum, a divisão nos lucros e prejuízos, a divisão dos riscos e responsabilidades, a vontade de se associar (animus sociandi) (BASSO, 1998, p.190). Nessa última característica é que incluiríamos a verificação da causa final comum dos contratos coligados. De acordo com MARISTELA BASSO, a joint venture contratual poderá, até mesmo, ser considerada como uma sociedade de fato, conforme se observa da seguinte passagem:

“Presentes as características acima, pode-se estar diante de uma sociedade de fato, que se encontra sujeita aos mesmos deveres da sociedade registrada. Porém, é preciso que se diga, a sua caracterização não é tão simples quanto parece. Ao constituir uma joint venture contratual com descrição muito parecida com a da sociedade, poderá ser ela considerada como sociedade de fato a qualquer tempo, podendo, inclusive, haver a responsabilização do sócio, bem como a incidência de todos os impostos próprios das sociedades, além de poder ser reivindicada a sua requalificação perante o Poder Judiciário, com todas as responsabilidades que podem daí advir” (BASSO, 1998, p.190).

Para a caracterização da joint venture contratual, o ideal é que seja firmado um acordo-base, que coordene a relação entre o grupo de contratos, a fim de minimizar os problemas de interpretação que podem surgir. Contudo, a inexistência do acordo-base não afasta, a priori, a existência do coligamento contratual, que deverão ser interpretados de acordo com a noção de causa sistêmica (ou causa final), e segundo o critério da boa-fé objetiva e dos usos do lugar da celebração do contrato (CC, art. 113), nos termos já abordados nos tópicos anteriores.

A função do acordo-base é a de esclarecer os objetivos do grupo contratual, fixar a cooperação entre os co-ventures, delinear os seus direitos e obrigações, podendo estabelecer desde logo a forma de administração do

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empreendimento, prever alguns dos contratos satélites que serão necessários, bem como dar as diretrizes do conteúdo de algumas das suas cláusulas, entre muitas outras estipulações possíveis, no intuito de fornecer as bases para a consecução dos objetivos comuns das partes envolvidas, que se dará por meio do grupo de contratos. De acordo com BAPTISTA e BARTHEZ, “no que concerne ao acordo de base, sua função é de orientar a significação do grupo contratual”. Prosseguem, afirmando que “acordo de base e acordos satélites podem, em razão do formalismo desses últimos, estar em contradição ao menos aparente” (BAPTISTA; BARTHEZ, 1991, p.62, tradução nossa)30.

O acordo-base pode ser precedido de um preâmbulo, ou de uma carta de intenções, que não têm força obrigatória direta, mas que podem servir como recurso de interpretação, tal como destacam BAPTISTA e BARTHEZ:

“Qualquer que seja o contexto jurídico, o preâmbulo é o lugar onde as partes têm a oportunidade de conhecer certos aspectos da sua vontade que não aparecem necessariamente nas próprias disposições. Em certos casos, o preâmbulo pode até mesmo fornecer um esclarecimento do negócio que conduzirá a distinguir ou descartar a estrita aplicação do texto dispositivo. Em outros termos, o preâmbulo pode permitir a dominação do espírito da letra do contrato” (BAPTISTA; BARTHEZ, 1991, p.61, tradução nossa)31.

Note-se, portanto, que tanto o acordo-base quanto o seu preâmbulo e demais documentos que o precedem são fundamentais para orientar a interpretação dos demais instrumentos que vierem a ser firmados posteriormente. O acordo-base, mais do que simples elemento interpretativo, vincula as partes, que deverão seguir as diretrizes mutuamente acordadas. O acordo-base poderá ser considerado um contrato

30 Do original: “En ce qui concerne l’accord de base, sa fonction est d’orienter la signification de

l’ensemple contractuel. Accord de base et accords satelites peuvent, en raison du formalisme de ces derniers, être en contradiction au moins apparente” (BAPTISTA; BARTHEZ, 1991, p.62).

31 Do original: “Quel que soit le contexte juridique, le préambule est le lieu où les parties ont l’occasion de faire connaître certains aspects de leur volonté qui n’apparaissent pas forcément dans les dispositions elles-mêmes. Dans certains cas, le préambule peut même fournir un éclairage de l’affaire qui conduira à nuancer, voire à écarter, la stricte application du texte dispositif. En d’autres termes, le préambule peut permettre la domination de l’esprit sur la lettre du contrat” (BAPTISTA; BARTHEZ, 1991, p.61).

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preliminar, e se contiver todos os requisitos dos contratos a serem celebrados, as partes poderão se valer da faculdade concedida no artigo 463 do Código Civil, podendo exigir a celebração dos demais contratos.

A fim de evitar futuros problemas de interpretação, o acordo-base deve ser redigido da forma o mais clara possível, evitando cláusulas ambíguas, e má compreensão dos termos. É importante que contenha uma cláusula inicial contendo as definições dos termos que serão utilizados ao longo do instrumento contratual. Deve conter uma cláusula que estabeleça o objeto do acordo, ou seja, a descrição do empreendimento que será realizado pelos participantes, além de cláusula que determine a cooperação dos co-ventures. As cláusulas seguintes determinarão os direitos e obrigações dos participantes, devendo conter: I) os meios pelos quais os objetivos serão alcançados; II) as regras básicas para a formação da joint venture, fixando qual será a participação de cada parte (participação nas decisões, nas perdas, nos lucros, etc.); III) previsão de alguns dos acordos satélites necessários para o empreendimento atingir os objetivos, bem como as suas regras mínimas, sem prejuízo de que outros acordos também sejam firmados, se necessários para a consecução do objetivo comum; IV) fixação de regras de administração, bem como regras de exercício de voto. Poderá o acordo-base conter também as formas de financiamento do empreendimento, cláusula de confidencialidade, forma de resolução de conflitos, entre outras disposições que as partes julguem necessárias para delinear o empreendimento que será realizado.

Outra função do acordo de base é a distribuição do poder de gestão da joint venture, determinando os cargos diretivos, o número de diretores, quem ocupará os cargos e de que forma será exercido o poder, ou seja, quais atos necessitam da aprovação de todos os diretores, e quais poderão ser autorizados individualmente. Para alguns autores, a ideia de controle é incompatível com a de empreendimento comum, tal como afirmam LAMY

FILHO e BULHÕES PEDREIRA, para quem “na joint venture é tudo diverso (...): a titularidade da maioria do capital votante é irrelevante se o quorum das decisões é aumentado; os cargos administrativos são previamente partilhados entre os sócios; ninguém manda sozinho, ninguém controla” (LAMY FILHO; PEDREIRA, 1992, p.414, apud BASSO, 1998, p.50). Mas para BAPTISTA e BARTHEZ, a divisão do poder pode ser paritária ou majoritária (BAPTISTA; BARTHEZ, 1991, p.66-70), com o que concordamos, em razão do

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princípio da autonomia privada, sendo que inexiste qualquer vedação legal para a adoção da gestão majoritária.

Importante salientar que de uma maneira geral o acordo-base numa joint venture é um documento sem grandes formalidades. Deve minimamente servir para o fim a que se propõe, que é o de fornecer as diretrizes para os demais contratos, que deverão ser celebrados posteriormente, e servir de base interpretativa para o grupo de contratos. Os contratos satélites deverão seguir as formalidades próprias de cada negócio jurídico a que servirem de instrumento, contendo um regramento pormenorizado de cada atividade. Assim sendo, os contratos satélites para a concessão de licenças de fabricação e de uso marcas, a comercialização, a transferência de tecnologia, a distribuição de produtos, a prestação de serviços, direitos sobre propriedade industrial, entre muitos outros possíveis, é que trarão o regramento específico de cada uma destas atividades, sempre se reportando ao acordo-base, tendo em vista que não podem ser compreendidos de maneira autônoma e desvinculados do grupo, conforme já salientado anteriormente.

Numa corporate joint venture, em que há a formação de uma nova sociedade, além do acordo-base e dos contratos satélites, haverá a elaboração de um estatuto social ou de um contrato social, conforme o tipo societário que se deseje adotar. Ademais, é constante a existência de um acordo de acionistas ou de quotistas para regular as relações obrigacionais entre os co-ventures. De acordo com LAMY FILHO e BULHÕES PEDREIRA, citados por MARISTELA BASSO, os instrumentos jurídicos mínimos de uma corporate joint venture são os seguintes:

“a) um contrato designado acordo básico, contrato-quadro, contrato de investimento, ou expressões semelhantes, que funciona como instrumento-matriz no qual são definidas as condições básicas do negócio e os demais instrumentos a serem firmados; b) o estatuto social, da companhia existente ou a ser construída; c) um acordo de acionistas, que contém estipulações não reguladas pelo estatuto; e confirme o objeto e as peculiaridades da joint venture, pode incluir ainda contratos de fornecimento da tecnologia ou insumos de prestação de serviços, de administração ou comercialização, de empréstimos, de compra de produtos, etc.” (LAMY FILHO; PEDREIRA, 1992, p.34, apud BASSO, 1998, p.49).

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Diante das considerações acima expostas, pode-se esquematizar as joint ventures de acordo com o seguinte fluxograma:

Protocolo de intenções ou

Contrato preliminar

(facultativo)

Dissemos inicialmente que os principais problemas envolvendo os grupos contratuais podem ser divididos em dois âmbitos de análise: um de ordem interna, referente às questões decorrentes da relação entre os contratos coligados, das questões envolvendo a administração do empreendimento e da divisão dos direitos e obrigações entre as partes, e outro de ordem externa, decorrente da relação entre os contratos do grupo e terceiros estranhos ao grupo. Passa-se, portanto, à análise dos grupos de contratos sob essas perspectivas.

Estatuto ou contrato social da empresa (se corporate)

Acordo-base

Acordo de Acionistas ou de quotistas (se corporate)

Contrato de venda de projeto

Contrato de licença de marcas

Contrato de assistência técnica Contrato de licença de fabricação

Contrato de fornecimento de maquinário

Contrato fornecimento de know how e treinamento de pessoal

Contrato de fornecimento Contrato de transferência de tecnologia

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4.1 Perspectiva Interna

Nessa perspectiva, importa saber, primeiramente, qual a influência que um contrato pode exercer sobre os demais, como consequência do reconhecimento do grupo contratual como entidade econômica.

Por exemplo, numa joint venture para a exploração do mercado automobilístico de uma determinada região, na qual uma empresa “A” comprometeu-se com o fornecimento de peças, outra, “B”, com a disponibilização da estrutura da fábrica e a cessão da marca, e uma terceira, “C”, com a tecnologia e o know-how, surge o problema de saber, diante de eventual lacuna, ou mesmo ausência do acordo-base, se a invalidade, impossibilidade superveniente ou inadimplemento em um dos contratos influencia a validade ou o cumprimento dos demais. Por outro lado, caso o empreendimento final não esteja cumprindo com os objetivos pretendidos pelas partes, estariam os co-ventures obrigados a manter o vínculo contratual? Em outras palavras, as vicissitudes de um contrato satélite transmitem-se para o grupo? E, do contrário, as vicissitudes do empreendimento final transmitem-se para os contratos satélites?

De acordo com C. MASSIMO BIANCA:

“Aos contratos coligados se aplicam, portanto, as regras da nulidade parcial, pela qual a invalidade de um contrato pode comportar a invalidade dos demais a que a esse estão coligados; da impossibilidade superveniente parcial, pela qual a impossibilidade de execução de um contrato pode comportar a resolução dos outros contratos; do inadimplemento parcial, pelo qual o inadimplemento de um contrato pode comportar a resolução também dos outros contratos; da exceção de inadimplemento, pela qual o inadimplemento de um contrato pode legitimar a parte a não cumprir os outros contratos” (BIANCA, 2000, p.484-485, tradução nossa)32.

32 Do original: “Ai contratti colegati si aplicano pertanto le regole della nullità parziale, per cui

l’invalidità di un contratto può comportare l’invalidità degli altri che ad esse sono collegati; dell’impossibilità parziale sopravenuta, per cui l’impossibilità di esecuzione di un contratto può comportare la risoluzione degli altri contratti; dell’inadempimento parziale, per cui dell’inadempimento di un contratto può comportare la risoluzione anche degli altri contratti; dell’eccezione d’inadempimento, per cui d’inadempimento di un contratto può legittimare la parte a non esguire gli altri contratti” (BIANCA, 1987, p.484-485).

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Assim sendo, resta claro que as vicissitudes de um contrato, como a invalidade, a impossibilidade e o inadimplemento, transmitem-se para os demais do grupo, ainda que o acordo-base não seja expresso nesse sentido. Inexistindo acordo-base, a tarefa interpretativa será primeiramente a caracterização do grupo, pela análise da causa final comum ou causa sistêmica, conforme abordado no tópico 2.3.

Tome-se como exemplo a joint venture entre a Fiat e o Estado de Minas Gerais, extraído da obra de LUIZ OLAVO BAPTISTA e PASCAL DURAND-BARTHEZ, cujo acordo-base assim consignou:

“Artigo 3. Bases do acordo. 3.1. As partes contratantes se engajam em efetuar as formalidades previstas pela legislação brasileira a eles relativa e a adotar em todos os estados de causa todas as medidas necessárias e/ou permitidas por lei em vista de obter, em favor do ‘Projeto’, o máximo de facilidades e de medidas de incentivo de caráter fiscal, financeiro ou de qualquer outra natureza em vigor no Brasil no momento da assinatura do presente acordo, e aquelas que serão mais favoráveis suscetíveis de serem concedidas pela regulamentação futura. Ditas facilidades e medidas de incentivo à data do presente acordo estão previstas, em particular, conforme as seguintes regras: (...) 3.4. O presente acordo é firmado pela Fiat sob a presunção e à condição essencial de obter e manter as facilidades e medidas de incentivo supramencionadas (...)” (BAPTISTA; BARTHEZ, 1991, p.280-281, tradução nossa)33.

Observe-se que nessa cláusula do acordo-base foi estabelecida a forma de cooperação exigida entre as partes para que a joint venture obtenha êxito. A questão dos incentivos fiscais foi colocada como razão fundamental do acordo, de maneira que o descumprimento desta obrigação por parte do

33 Do original: ‘’Article 3 – Bases de l’accord. 3.1. Les parties contractentes s’engagent à effectuer les

formalités prévues par la législation brésilienne y relative et à adopter en tout état de cause toutes les mesures requises et/ou permises par les lois en vue d’obtenir, en faveur du ‘Projet’, le maximum de facilités et de mesures d’encouragements de caractère fiscal, finacier ou de toute autre nature en vigueur au Brésil au moment de la signature du présent accord, et de celles qui seront les plus favorables susceptibles d’être concédées par la règlementation future. Les susdites facilités et mesures d’encouragements à la date du présent accord sont prévues, en particulier, conformément aux règles suivantes: (...).3.4. Le présent Accord est conclu par FIAT sur la présomption et à la condition essentielle d’obtenir et de maintenir les facilités et mesures d’encouragement sus-mentionées (...)’’ (...)(BAPTISTA; BARTHEZ, 1991, p.280-281).

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Governo de Minas Gerais poderia ocasionar a resolução de todos os demais contratos do grupo.

O acordo-base desta joint venture também estabeleceu alguns direitos e obrigações das partes, contendo a previsão de alguns contratos satélites necessários para pôr em prática o empreendimento. Leia-se:

“Artigo 6. Obrigações específicas das partes.

6.1.2. O Estado tomará todas as medidas necessárias, nelas compreendida, se for o caso, a promulgação de uma legislação de Estado adequada, para a constituição da sociedade e o desenvolvimento de suas atividades, em conformidade com todas as estipulações dos acordos firmados entre as partes contratantes.

6.1.3. O Estado assegurará à sociedade o máximo de facilidades e de medidas de incentivo previstas por lei e outros regramentos de Estado vierem a existir. (...)

6.2.2. FIAT concederá à sociedade a licença de montagem, produção e vendas do ‘veículo sob licença’.

6.2.3. FIAT fornecerá uma assistência técnica à sociedade após o início da produção do Estabelecimento. Para esta assistência, a sociedade deverá pagar à FIAT em TURIM, semestralmente, um montante em liras italianas a fixar conjuntamente entre a sociedade e FIAT, dentro dos limites do contrato adequado que deverá, preliminarmente, ser concluído entre a FIAT e a Sociedade e aprovado pelas Autoridades federais brasileiras competentes. (...)

6.2.5. FIAT designará à Sociedade um pessoal qualificado a quem a Sociedade confiará a direção dos setores técnicos, comercial, financeiro e administrativo. As condições de treinamento deste pessoal e o reembolso à FIAT dos custos conexos serão objeto do acordo entre FIAT e a Sociedade. FIAT se engajará em assegurar o aperfeiçoamento da formação e preparação profissional do pessoal qualificado brasileiro em vista de sua melhor inserção nos postos de responsabilidade nos setores técnicos, comercial, financeiro e administrativo da Sociedade, mediante simples reembolso dos custos despendidos a esse fim” (BAPTISTA; BARTHEZ, 1991, p. 287-289, tradução nossa)34.

34 Do original: “Article 6 – Obligations spécifiques des Parties. 6.1.2. L’État prendra toutes les

mesures nécessaires, y compris, le cas échéant, la promulgation d’une législation d’État adéquate,

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A partir do acordo-base, foram firmados outros instrumentos, a fim de operacionalizar o empreendimento, quais sejam: a) estatuto social, contendo regras sobre capital e ações; composição, funcionamento e atribuições dos órgãos de administração, do conselho fiscal e da assembleia geral, entre outras disposições exigidas por lei (Lei 6.404/64); b) contrato de licença de montagem, produção e vendas de veículos; c) contrato de transferência de tecnologia e assistência técnica durante a fase de estabelecimento, envolvendo elaboração de estudos econômicos e de marketing, aquisição de máquinas e instalações, formação e treinamento de pessoal, assistência técnica propriamente dita, assistência para a constituição de organismos de vendas e pós-venda; d) contrato de transferência de tecnologia e de assistência a partir do desencadeamento da produção; e) contrato de envio de pessoal em missão temporária ao Brasil (BAPTISTA; BARTHEZ, 1991, p.294-324, tradução nossa).

No exemplo acima descrito, qualquer dos contratos firmados entre as partes é fundamental para o sucesso do empreendimento. O descumprimento de qualquer deles poderia dar causa ao inadimplemento parcial do acordo global, podendo até mesmo ocasionar a resolução dos demais vínculos contratuais. Por outro lado, se o empreendimento total não estiver proporcionando os resultados esperados pelas partes, pode dar-se que o vínculo contratual se torne insuportável, de maneira a desobrigar os co-ventures. Todavia, tendo em vista o caráter associativo da contratação, e considerando o dever de todos os participantes de emprenhar esforços para

pourpermettre la constitution de la société et le développement de ses activités, en conformité avec toutes les stipulations des accords conclus entre les parties contractantes. 6.1.3. l’État assurera à la Société le maximum de facilités et de mesures d’encouragement prévues par les lois et autres règlements d’État dans l’avenir. 6.2.2. FIAT concèdera à la Société la licence de montage, production et vente du ‘Véhicule sous licence’. 6.2.3. FIAT fournira une assistance technique à la Société aprés le commencement de la production de l’Établissement. Pour cette assistance, la Société devra payer à FIAT à TURIN, semestriellement, un montant en lires italiennes à fixer conjointement entre la Société et FIAT, dans les limites du contrat adéquat qui devra, préalablement, être conclu entre FIAT et la Société et approuvé par les Autorités fédérales brésiliennes compétentes. 6.2.5. FIAT désignera à la Société un personnel qualifié auquel la Société confiera elle-mêmes la direction des secteurs technique, commercial, financier et administractif. Les conditions de traitement de ce personel et le remboursement à FIAT de frais connexes, feront l’objet d’accords entre FIAT et la Société. FIAT s’engage à assurer le perfectionement de la formation et de la préparation professionelle du personel qualifié brésilien en vue de leur meilleure insertion dans des postes à responsabilité dans les secteurs technique, commercial, financier et administratif de la Société, moyennant simple remboursement des frais engagés à ces fins” (BAPTISTA; BARTHEZ, 1991, p.287-289).

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que o contrato cumpra com os objetivos traçados no acordo-base, deve-se, sempre que possível, evitar o desfazimento do vínculo contratual, devendo as partes se adaptar a todas as situações novas que surgirem, apurando as responsabilidades por eventual descumprimento, que deverá ser indenizado por quem couber. Deve-se salvar o vínculo contratual sempre que possível, tendo em vista que a causa final do empreendimento é superior em relação à causa individual de cada contrato, aplicando-se, neste caso, o princípio da conservação dos contratos.

4.2 Perspectiva Externa

Na perspectiva externa, analisam-se as relações, tendo de um lado os integrantes de um grupo contratual e, do outro, a coletividade titular de direitos difusos, como é o caso da massa de consumidores. Nesse tópico, analisa-se, portanto, a proteção legal conferida aos consumidores que se relacionam com integrantes dos grupos ou redes contratuais.

Primeiramente, importante destacar que, por vezes, os consumidores se relacionam com um único integrante da cadeia de contratos que envolvem a fabricação e comercialização de um produto ou prestação de um serviço, mas o Código de Defesa do Consumidor permite que qualquer um deles seja demandado, pois estabelece a sua responsabilidade solidária. Em se tratando de responsabilidade pelo fato do produto, ou seja, pela reparação de danos causados aos consumidores em razão de defeitos do produto, respondem solidariamente, independentemente da existência de culpa, o fabricante, o produtor, o construtor e o importador (art. 12 do CDC), sendo que o comerciante somente será responsabilizado se aquelas pessoas não puderem ser identificadas, quando o produto for fornecido sem esta identificação ou quando não conservar adequadamente os produtos perecíveis (art. 13 do CDC).

No caso de responsabilidade por vício de qualidade ou quantidade do produto, sem que cause dano à pessoa do consumidor, todos os fornecedores respondem solidariamente, tendo o consumidor três alternativas: a) a substituição do produto; b) a restituição imediata da quantia paga; c) o abatimento proporcional do preço (artigo 18 do CDC). Assim sendo, o consumidor poderá acionar diretamente qualquer um dos integrantes do ciclo produtivo, ou seja, da rede de contratos que envolvem a produção de um determinado bem.

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Mesmo que nas relações internas da joint venture as partes estipulem contratos estabelecendo divisão de responsabilidades, essas estipulações não são oponíveis frente aos consumidores. Nesse sentido, LUIZ ANTONIO RIZZATO NUNES esclarece que é possível que os participantes da cadeia produtiva estabeleçam partições, divisões, percentuais diferenciados quanto ao pagamento de indenizações por acidente de consumo. Contudo, essas estipulações terão validade apenas entre os participantes da cadeia, não podendo atingir as relações jurídicas de consumo (RIZZATO NUNES, 2000, p.163).

De acordo com LORENZETTI, analisando a questão sob a égide do direito argentino:

“Os consumidores se vinculam juridicamente com um integrante da rede, mas os que realmente intervêm no processo de fabricação e distribuição do produto ou serviço são numerosos sujeitos. Isso tem levado a se superar o obstáculo do princípio da relatividade dos contratos, permitindo demandar-se a quem não se tenha contratado, em pressupostos específicos: 1) responsabilidade pelo fato dos dependentes: através de uma interpretação ampla da garantia pelo fato dos dependentes, se pode encontrar uma ‘autorização’ de um integrante da rede em frente a outro. É o caso do fabricante que autoriza um serviço único para seus produtos; 2) responsabilidade pelo controle: uma classe de controle específico, sobre a prestação, pode provocar responsabilidade; 3) responsabilidade pela aparência: a aparência jurídica criada pode dar lugar a ações contra o titular da marca de um produto elaborado; 4) responsabilidade nas relações de consumo baseada na imputação solidária a todos os integrantes conforme o artigo 40 da Lei 24240” (LORENZETTI, 2000, p. 73, tradução nossa)35.

35 Do original: “Los consumidores se vinculam juridicamente con un integrante de la red, pero los

que realmente intervienen en el proceso de fabricación y distribución del producto o servicio son numerosos sujetos. Ello ha llevado a superar el obstáculo del principio relativo de los contratos, permitiendo demandar a quien no ha contratado, en supuestos específicos: 1) responsabilidad por el hecho de dependientes: a través de una interpretación amplia de la garantía por el hecho de dependientes, se puede encontrar una ‘autorizacion’ de un integrante de la red hacia otro. Es el caso del fabricante que autoriza un servicio único para sus productos; 2) responsabilidad por control: una classe de control específico, sobre la prestación, puede provocar responsabilidad; 3) responsabilidad por la apariencia: la apariencia jurídica creada, puede dar lugar a acciones contra el titular de la marca de un producto elaborado; 4) responsabilidad en las relaciones de consumo basada en la imputación solidaria a todos los integrantes de la red conforme al articulo 40 de la Ley 24240” (LORENZETTI, 2000, p.73).

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A jurisprudência nacional é pacífica acerca do assunto, podendo ser citado o seguinte julgado do Superior Tribunal de Justiça:

“Processual Civil e Direito do Consumidor. Recurso Especial. Ação de Indenização por Danos Materiais e Morais. Venda de Veículo. Ano de Fabricação Equivocado. Condenação Por Danos Morais. Valor. Matéria Não Debatida no Acórdão Recorrido. Responsabilidade Solidária. Fabricante e Fornecedor. A comercialização de veículo fabricado em 1999 como sendo do ano de 2000 caracteriza vício por inadequação, cuja falha na informação redundou na diminuição do valor do automóvel, o que atrai a responsabilidade solidária entre o fornecedor e o fabricante, expressa em lei (art. 18, caput, do CDC). Contudo, mantém-se o acórdão recorrido, porquanto o pedido formulado no especial restringe-se ao reconhecimento da responsabilidade do recorrente em caráter subsidiário. Recurso especial não conhecido” (REsp 713.284/RJ; Relatora Ministra Nancy Andrighi, STJ, 3ª T., data do julgamento 03.05.2005. Data da Publicação/Fonte DJ 17.10.2005 p. 293)

Também na jurisprudência encontramos julgados admitindo a conexão entre os contratos, de maneira que o descumprimento de um acarreta a resolução do outro, em favor do consumidor. Cite-se o acórdão da Apelação Cível nº 70001462845, do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, no qual restou decidido que o descumprimento do contrato de compra e venda de bem de consumo, pela não realização da entrega da mercadoria vendida, importa o cancelamento do contrato coligado de financiamento36. 36 Este acórdão foi assim ementado: Rescisão de contrato de compra e venda. Financiamento. Não

realizada a entrega da mercadoria adquirida, cabível a rescisão do contrato de compra e venda, bem assim o cancelamento do financiamento, dada a vinculação entre os negócios jurídicos. Contratos coligados. Hipótese em que um negócio jurídico não sobrevive diante da rescisão do outro, por estarem vinculados. Preliminar de ilegitimidade passiva rejeitada. Apelação a que se nega provimento. Vale a pena transcrever alguns trechos do voto: “A sentença deve ser mantida nas suas conclusões. (...) O comprovante de débito de f. 14 dá conta de que o montante total concedido pela Losango a título de financiamento importava R$ 2.500,00, exatamente o valor da compra da autora, sendo que R$ 200,00, relativos à entrada, foram pagos diretamente à requerida S. J. (recibo de f. 14), o que demonstra a existência de relacionamento comercial entre as demandadas. Tais elementos evidenciam que a contratação do financiamento não se deu de forma independente à compra efetuada. Em verdade, ao contrário do que alega a Losango, a concessão dos valores estava, desde o início, vinculada à compra do bem junto à ré S. J. Os documentos mencionados demonstram a existência de relação comercial entre as demandadas, sendo possível concluir que o financiamento já era posto à disposição do consumidor na própria S. J., mediante convênio com a Losango, fato, aliás, bastante comum no comércio atual. Assim, não realizada a

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Por fim, observa-se que a responsabilidade solidária dos fornecedores de produtos ampliou seus horizontes na atual economia globalizada, de maneira que a jurisprudência já admitiu a vinculação para responsabilização de um fornecedor brasileiro pelo defeito em um produto adquirido no exterior, de empresa da mesma marca existente no Brasil (REsp 63981/SP, relatado pelo Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira)37.

Quando não se tratar de relações de consumo, sempre que os terceiros que contratarem com a joint venture tiverem ciência inequívoca das limitações de responsabilidade, estas poderão ser opostas, tendo em vista o princípio da autonomia da vontade e da liberdade dos contratantes, que não desfrutam de proteção legal especial, tendo em vista o equilíbrio das relações, de assumirem os riscos da contratação, inclusive no que concerne à limitação de responsabilidade.

entrega da mercadoria, cabível a rescisão do contrato de compra e venda firmado com a ré S. J., bem assim o cancelamento do financiamento contraído junto à Losango, visto que, vinculado à aquisição da mercadoria, não pode subsistir diante da não concretização da mesma. Na realidade, a compra e venda e o financiamento, no caso dos autos, apresentam-se como contratos coligados, (...). Na espécie, a rescisão do contrato principal reflete-se no outro negócio jurídico, visto que pela prova dos autos, inclusive declarações expressas das partes, demonstrado ficou que o financiamento somente foi concluído em função da compra e venda (...)” (Apelação Cível nº 70001462845, do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul julgada em 07.02.2001).

37 “Direito do Consumidor. Filmadora Adquirida no Exterior. Defeito da Mercadoria. Responsabilidade da Empresa Nacional da Mesma Marca (‘Panasonic’). Economia Globalizada. Propaganda. Proteção ao Consumidor. Peculiaridades da Espécie. Situações a Ponderar nos Casos Concretos. Nulidade do Acórdão Estadual Rejeitada, Porque Suficientemente Fundamentado. Recurso Conhecido e Provido no Mérito, Por Maioria I – Se a economia globalizada não mais tem fronteiras rígidas e estimula e favorece a livre concorrência, imprescindível que as leis de proteção ao consumidor ganhem maior expressão em sua exegese, na busca do equilíbrio que deve reger as relações jurídicas, dimensionando-se, inclusive, o fator risco, inerente à competitividade do comércio e dos negócios mercantis, sobretudo quando em escala internacional, em que presentes empresas poderosas, multinacionais, com filiais em vários países, sem falar nas vendas hoje efetuadas pelo processo tecnológico da informática e no forte mercado consumidor que representa o nosso País. II – O mercado consumidor, não há como negar, vê-se hoje ‘bombardeado’ diuturnamente por intensa e hábil propaganda, a induzir a aquisição de produtos, notadamente os sofisticados de procedência estrangeira, levando em linha de conta diversos fatores, entre os quais, e com relevo, a respeitabilidade da marca. III – Se empresas nacionais se beneficiam de marcas mundialmente conhecidas, incumbe-lhes responder também pelas deficiências dos produtos que anunciam e comercializam, não sendo razoável destinar-se ao consumidor as consequências negativas dos negócios envolvendo objetos defeituosos. IV – Impõe-se, no entanto, nos casos concretos, ponderar as situações existentes. V – Rejeita-se a nulidade arguida quando sem lastro na lei ou nos autos” (STJ, 4ª Turma, REsp 63981/SP, Relator p/Acórdão Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, DJ 20.11.2000, p.296).

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5 – CONCLUSÕES

Ao longo deste trabalho, viu-se que as joint ventures são um acordo de cooperação empresarial constituído, em geral, a partir de um acordo-base, do qual se originam diversos contratos satélites que terão por objeto a regulação das atividades dos co-ventures para a consecução do objetivo comum. Assim sendo, os contratos que fazem parte da joint venture, apesar de possuírem uma causa particular própria, gozando de uma certa autonomia, só existem em razão do empreendimento comum, que lhes confere a sua causa concreta final. Caracterizam-se, portanto, por um coligamento contratual bilateral, o que não impede que sejam firmados contratos conexos com dependência simplesmente unilateral, como um contrato de garantia, por exemplo.

A caracterização do coligamento contratual nem sempre é tarefa fácil para o intérprete. A ligação entre os contratos pode decorrer de vontade inequivocamente expressa pelas partes, seja por meio do acordo-base, seja nos próprios contratos coligados. Nesse caso, basta que o intérprete utilize os critérios interpretativos de primeira fase, dita subjetiva ou recognitiva, não sendo necessário avançar para a segunda fase da interpretação contratual, chamada de objetiva, a qual somente terá lugar em caso de obscuridade ou contradição das declarações de vontade. Nesse caso, os critérios legais da boa-fé objetiva, dos usos e costumes do lugar da celebração e da interpretação contra estipulatorem entrarão em ação para esclarecer a vontade comum das partes. Nas duas fases, o intérprete buscará a causa final da operação contratual, de maneira que todas as declarações de vontade deverão ser interpretadas de acordo com as peculiaridades dos contratos qualificados como associativos, sobretudo no que tange à exigência de boa-fé em grau mais elevado do que em outras espécies de contratação.

Verificada a existência do coligamento contratual, resta claro que cada contrato é reputado indispensável para o sucesso do empreendimento comum, de maneira que as vicissitudes, como a nulidade, a impossibilidade e o inadimplemento de um dos contratos, implicam a nulidade, a impossibilidade e o inadimplemento, ainda que parciais, do empreendimento como um todo. Por outro lado, se o empreendimento total não estiver proporcionando os resultados esperados pelas partes, pode dar-se que o vínculo contratual se torne insuportável, de maneira a desobrigar

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os co-ventures. Entretanto, deve procurar salvar a joint venture sempre que possível, pelo princípio da conservação dos contratos.

Por fim, a existência do grupo contratual importa repartição dos riscos entre os co-ventures, sendo que no acordo-base e nos contratos satélites as partes poderão estabelecer uma divisão de responsabilidades por determinados eventos. Todavia, essas estipulações não podem ser opostas ao consumidor ou a terceiros que delas não tenham conhecimento, protegidos pela teoria da aparência, ou que com elas não concordem, restando aos integrantes da joint venture o exercício do direito de regresso em face dos seus parceiros.

6 – REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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FUSÕES, AQUISIÇÕES E CONTROLE DE COMPANHIAS ABERTAS

GUILHERME ZIEGLER ZUGNO*

1 – INTRODUÇÃO

O Brasil vem experimentando um aumento significativo no volume de operações de fusões e aquisições envolvendo companhias abertas com ações negociadas no mercado, sobretudo após o período de boom das aberturas de capital (conhecidas como IPOs), entre os anos de 2006 e 2007.

Adicionalmente, vimos que o crescimento desse mercado exigiu o desenvolvimento de estruturas legais inovadoras para melhor acomodar os interesses das partes envolvidas. Tal fato, aliado à inexperiência do mercado brasileiro nesse particular, adicionou complexidade e tornou a implementação de algumas operações mais desafiadoras.

Um dos aspectos legais de especial relevância nesse contexto está relacionado à mudança, direta ou indireta, do controle das companhias abertas envolvidas. Nesse sentido, o presente artigo busca analisar as formas de mudança de controle de companhias abertas e as hipóteses que tornam obrigatória a realização de oferta pública como consequência da mudança do controle societário destas companhias.

Finalmente, analisamos alguns precedentes importantes que nos auxiliam no entendimento das operações que estão sendo atualmente estruturadas, bem como no conhecimento do posicionamento das entidades reguladoras na análise casuística das referidas operações.

2 – CONCEITO LEGAL DE CONTROLE

O conceito de controle, previsto na Lei nº 6.404, de 15 de dezembro de 1976, e alterações posteriores (“LSA”), está estruturado em duas premissas

* Advogado e L.L.M. em Direito Societário, Instituto Brasileiro de Mercado de Capitais –

IBMEC/SP, 2007.

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básicas: I) a titularidade de ações com direito a voto; e II) o exercício efetivo dos direitos de voto.

Nesse sentido, o artigo 116 da LSA define acionista controlador como qualquer pessoa física ou jurídica, ou o grupo de pessoas vinculadas por acordo de voto, ou sob controle comum, que:

a) é titular de direitos de sócio que lhe assegurem, de modo permanente, a maioria dos votos nas deliberações da assembleia geral e o poder de eleger a maioria dos administradores da companhia; e

b) usa efetivamente seu poder para dirigir as atividades sociais e orientar o funcionamento dos órgãos da companhia.

Em outras palavras, a legislação brasileira exige, para a caracterização do controlador, a união de dois fatores, um de direito (que assegure a maioria dos votos em assembleia) e outro de fato (exercício efetivo do poder de controle).

A definição de controle das companhias brasileiras não é, portanto, uma simples equação matemática, na medida em que a legislação não prevê um percentual fixo, como ocorre em outras legislações. A definição de controle deve ser analisado caso a caso, tendo em conta os elementos mencionados acima.

2.1 Aquisição de Controle

A LSA define a aquisição de controle como toda aquisição de ações que resulte I) no surgimento de um acionista controlador de forma originária (“Aquisição Originária”) ou II) na transferência do controle, de titularidade de determinado acionista, para um outro acionista ou para um terceiro (“Aquisição Secundária”).

Em qualquer caso, para que se configure a aquisição do controle de determinada companhia no Brasil, é necessário que se verifique a reunião, por um acionista ou um grupo de acionistas reunidos por acordo de acionistas, de ações com direito a voto que assegurem, de forma permanente, a maioria dos votos nas deliberações da assembleia geral.

2.2 Aquisição Originária

Especificamente em relação à Aquisição Originária, além do mencionado anteriormente, é necessário que, no momento da aquisição, o capital da companhia esteja totalmente pulverizado, sem um acionista

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controlador definido. Diz-se, portanto, originária, porque até o momento da aquisição de um percentual de ações que assegurem o exercício do controle não existia nenhum acionista (ou grupo de acionistas) titular do poder de controle. O termo Aquisição Originária resulta, portanto, da inexistência de um acionista ou de um grupo de acionistas titular de direitos políticos que assegurem o exercício do controle.

Em outras palavras, a Aquisição Originária depende I) da aquisição de um bloco de ações, de qualquer forma, que assegure ao adquirente o exercício do poder de controle de determinada companhia, sem que isto resulte numa transferência de controle, e II) da pulverização de ações no mercado que resulte na inexistência da figura do acionista controlador até o momento da referida aquisição.

Ao analisar o tema, LUIZ LEONARDO CANTIDIANO sustenta que nada impede que determinada pessoa adquira no mercado determinada quantidade de ações com direito a voto, de determinada companhia com capital pulverizado no mercado, e que passem a permitir o exercício do poder de controle. Conforme o autor, “configura-se, em tal situação, uma operação de aquisição originária de controle, que tem como característica essencial o fato de alguém, naquele instante, formar algo que, até então, não existia na respectiva companhia: um bloco de ações ordinárias que venham a assegurar o exercício do poder de controle”1.

No mesmo sentido, ROBERTA NIOAC PRADO afirma que “as aquisições originárias são aquelas decorrentes de uma situação na qual inexiste controle acionário majoritário estabelecido”2.

2.3 Aquisição Secundária

De outro lado, a Aquisição Secundária depende de uma situação na qual existe um acionista controlador definido.

A Aquisição Secundária pode resultar de diferentes estruturas, incluindo I) a transferência de um bloco de ações de controle para um terceiro (acionista ou não) e II) uma incorporação por meio da qual os acionistas da sociedade incorporada recebem um determinado número de

1 CANTIDIANO, Luiz Leonardo. Espaço Jurídico Bovespa – Notícias 14.06.2007: Aquisição originária

de controle e tag along. Disponível em: <http://www.bovespa.com.br/Investidor/Juridico/070614NotA.asp>. Texto publicado originalmente no jornal Valor Econômico, edição do dia 13.06.2007.

2 PRADO, Roberta Nioac. Oferta Pública de Ações Obrigatória nas S.A. – Tag Along. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p.222.

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novas ações de emissão da companhia incorporadora como contraprestação pela incorporação, e que garantem o controle da referida companhia.

3 – OBRIGATORIEDADE DE REALIZAÇÃO DE OFERTA PÚBLICA DE AQUISIÇÃO – TAG ALONG

O artigo 254-A da LSA estabelece a obrigatoriedade de realização de uma oferta pública para aquisição das ações com direito a voto, de titularidade dos acionistas não controladores, nas hipóteses de alienação de controle acionário de companhia aberta (“OPA”), conforme se observa pela redação abaixo transcrita:

“Art. 254-A. A alienação, direta ou indireta, do controle de companhia aberta somente poderá ser contratada sob a condição, suspensiva ou resolutiva, de que o adquirente se obrigue a fazer oferta pública de aquisição das ações com direito a voto de propriedade dos demais acionistas da companhia, de modo a lhes assegurar o preço no mínimo igual a 80% (oitenta por cento) do valor pago por ação com direito a voto, integrante do bloco de controle” (grifos nossos).

A inclusão desse artigo na reforma da LSA de 2001 tem seu fundamento na proteção dos acionistas não controladores (minoritários), e visa a oferecer um tratamento igualitário nos casos de alienação do controle mediante a imposição, ao adquirente do controle, da obrigatoriedade da realização de oferta pública de aquisição da totalidade das ações com direito a voto, ao valor de ao menos 80% do valor pago por ação integrante do bloco de controle. Estabelece-se, portanto, ante a possibilidade de perda de liquidez dessas ações, decorrente da alienação do controle, uma possibilidade de saída para os minoritários.

Nesse sentido, conclui LUIZ LEONARDO CANTIDIANO:

“(...) para que venha a ser exigida a apresentação da oferta pública de que trata o artigo 254-A da lei, é indispensável que um acionista da companhia, detentor de um bloco de ações ordinárias que asseguram o exercício do poder de controle, aliene as ditas ações a um terceiro, o qual, concluída a operação, substituirá o antigo controlador, passando ele, adquirente, a exercer o poder de comandar os destinos da respectiva companhia.

Naqueles casos em que o capital votante da sociedade está disseminado no mercado, sem que se possa definir a figura de seu

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acionista controlador, inexiste a possibilidade de haver alienação de controle, já que nenhum de seus acionistas é titular de bloco de ações ordinárias que assegure o exercício do poder de controle, tal como definido pela legislação vigente. Isto porque, na falta de um bloco de ações em poder de um acionista que configure o controle da companhia, não há como se possa falar em alienação de controle que não existe.”3

Conforme mencionado anteriormente, a obrigatoriedade da realização de OPA para as ações de titularidade dos acionistas não controladores é aplicável, tão somente, aos casos de alienação de controle.

Portanto, nos casos de aquisição de um número de ações que conferem o poder de controle de uma determinada companhia, resultante de I) uma aquisição de ações pulverizadas no mercado, sem um controlador definido, II) uma incorporação que tenha por consequência a mudança de controle sem que se verifique uma alienação de controle, III) a conversão de créditos em ações que resulte numa Aquisição Originária, ou na transferência de controle, sem que se verifique uma alienação de controle, ou IV) qualquer outra estrutura que não implique a alienação de controle, não há que se falar na obrigatoriedade de realização de OPA em razão do artigo 254-A da LSA.

Essa conclusão é decorrente do próprio conceito do referido artigo da LSA, que procura distribuir a todos os acionistas com direito a voto o prêmio pago às ações integrantes do controle da companhia.

ROBERTA NIOAC PRADO sustenta que “(...) em uma aquisição originária de controle, há ‘adquirente’, mas não há alienante, e, portanto, não há ‘alienação privada de controle’”4.

Nesses casos, não há um sobrevalor pago às ações de controle, na medida em que não existe um controle acionário estabelecido. Assim, inexistindo um controle concentrado em uma ou mais pessoas, a aquisição do controle somente pode ocorrer pela aquisição de ações dispersas e com base no valor de mercado (i.e., o valor de negociação das ações no mercado).

ADRIANA JOSUÁ, na mesma linha de argumentação, afirma que “de fato, deve ser excluída a hipótese de alienação de controle no caso de

3 CANTIDIANO, Luiz Leonardo, 2007. 4 PRADO, Roberta Nioac, 2002, p.223.

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aquisição originária de controle, pois não haverá transferêcia do direito ou situação jurídica de controle”5.

A observação de ADRIANA JOSUÁ é também aplicável às Aquisições Secundárias que não são resultantes de uma alienação de controle, mas de outras estruturas legais que resultam na aquisição de controle (e na transferência do controle de uma parte a outra) sem uma operação de compra e venda tradicional.

LUIZ LEONARDO CANTIDIANO, por sua vez, ensina que:

“A aquisição originária de um bloco de ações que assegure, ao referido terceiro, a partir da citada aquisição, comandar os destinos da companhia, não será obrigatória a apresentação, pelo novo controlador, de oferta pública dirigida aos acionistas minoritários, porque não terá ocorrido, em tal hipótese, alienação de controle que origine a obrigação de formular proposta pública de compra das ações que são detidas pelos demais acionistas da companhia, também titulares de ações ordinárias de sua emissão”6 (grifos do autor)

3.1 Posição da BM&F Bovespa S.A. – Bolsa de Valores, Mercadorias e Futuros e da Comissão de Valores Mobiliários

O entendimento acima exposto foi, finalmente, confirmado pela BM&F Bovespa S.A. – Bolsa de Valores, Mercadorias e Futuros (“BM&FBOVESPA”), e pela Comissão de Valores Mobiliários (“CVM”), conforme vemos abaixo.

Em consulta formulada à BM&FBOVESPA sobre a obrigatoriedade, ou não, de ser apresentada OPA de aquisição de ações de uma companhia aberta listada na BM&FBOVESPA, no caso de um terceiro adquirir o controle acionário da empresa controladora da companhia listada, considerando que tal empresa controladora tem seu capital disperso em mercado, ou seja, sem a existência de um controlador ou grupo controlador, a BM&FBOVESPA assim se manifestou:

5 JOSUÁ, Adriana. Alienação do controle de S.A. por oferta pública (art. 254-A da Lei das S.A.).

Revista de Direito Mercantil. São Paulo: Malheiros, n.126, p.148, 2002. 6 CANTIDIANO, Luiz Leonardo. Reforma da Lei das S.A. Comentada. Rio de Janeiro: Renovar, 2002,

p.238.

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“(...) se o capital da empresa controladora da empresa listada está pulverizado no mercado, sem que exista um acionista, ou grupo deles, que seja detentor de seu controle, parece evidente que a mera aquisição, por terceiro, de quantidade de ações, que passe a assegurar, de forma indireta, o controle da companhia listada, não demandará apresentação de oferta pública.

Isto porque a situação (...) configura uma aquisição originária de controle, figura essa que, apesar de implicar o surgimento de um acionista controlador da companhia listada, não gera a obrigação de realização, por esse controlador, de oferta pública, dirigida aos acionistas da respectiva companhia listada, pois não houve a transferência a terceiro de um controle pré-constituído.

Assim (...) não terá ocorrido alienação de controle. E, consequentemente, o terceiro, que conseguiu formar um bloco de controle, não terá a obrigação de apresentar oferta pública de aquisição das ações de emissão de companhia listada”7 (grifos do autor).

A CVM, por sua vez, emitiu importantes decisões nesse sentido.

3.2 Arcelor – Mittal

A primeira decisão, em 17 de abril de 2007, foi emitida pelo então presidente da CVM, Marcelo Fernandez Trindade, no Processo Administrativo CVM RJ 2007/1996, relativo à aquisição da Mittal Steel pela Arcelor, nos seguintes termos:

“Aquisição originária de controle e oferta pública por aquisição indireta. (...) Essa hipótese, de oferta decorrente de aquisição, e não de alienação do controle, não está prevista na lei brasileira (...). A aquisição originária do controle até então disperso entre milhares de acionistas não faz incidir a regra do art. 254-A. Tal oferta só ocorre, como no caso concreto, porque o estatuto da companhia controlada expressamente assim o estabelece.” 8

7 Esclarecimento BM&FBOVESPA, de 06 de junho de 2007, subscrito por Gilberto Mifano,

Superintendente Geral. Disponível em: <http://www.bovespa.com.br/pdf/NovoMercado_Esclarecimento060607.pdf>.

8 Disponível em: <http://www.cvm.gov.br>.

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3.3 ABN AMRO – RFS Holdings

Outra importante decisão foi emitida pelo Colegiado da CVM, no Processo Administrativo CVM nº RJ-2007-140999, relativo à aquisição do ABN AMRO Holdings N.V. (“ABN”) pelo RFS HOLDINGS B.V., (“RFS”), um veículo participado pelo The Royal Bank of Scotland Group plc, Fortis SA/NV, Fortis N.V e pelo Banco Santander, S.A. (“Santander”).

Até o momento da aquisição, o ABN era o controlador indireto de duas companhias abertas no Brasil, a ABN AMRO Arrendamento Mercantil S.A. (“ABN Arrendamento”) e a Real Leasing S.A. Arrendamento Mercantil (“Real Leasing” e, conjuntamente com a ABN Arrendamento, as “Companhias”).

O RFS adquiriu mais de 95% das ações do ABN no mercado. O ABN não tinha nenhum acionista controlador até o momento da aquisição e, portanto, as ações de sua emissão estavam pulverizadas no mercado holandês. Após a liquidação da oferta de aquisição do ABN, o RFS passou a ser o novo controlador indireto das Companhias por meio de uma Aquisição Originária do controle do ABN.

Em razão deste fato, o RFS realizou uma consulta formal à CVM solicitando a confirmação de que não seria necessária a realização de uma OPA para a aquisição das ações dos acionistas minoritários das Companhias.

A decisão da CVM foi publicada no dia 30 de janeiro de 2008, e confirmou o entendimento de que uma OPA não seria necessária nesse cenário. A CVM mencionou que a LSA é clara ao definir os casos de obrigação de realização de OPA, os quais resultam somente das hipóteses de uma efetiva transferência de controle (i.e., quando o acionista controlador aliena um bloco de ações suficiente que permita o adquirente exercer o controle, independentemente se a oferta foi realizada no Brasil ou no exterior).

A referida decisão cita a opinião de CARLOS AUGUSTO DE SIQUEIRA, que entende que “o art. 254-A incide sobre as operações de transferência do controle desde que alguém o detenha e venha a transferi-lo onerosamente. Essas são as aquisições derivadas”10.

9 Disponível em: <http://www.cvm.gov.br>. 10 SIQUEIRA, Carlos Augusto Junqueira de. Transferência de Controle Acionário. Niterói: FMF, 2004,

p.264.

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O entendimento de LUIZ LEONARDO CANTIDIANO também foi mencionado pela decisão da CVM, ensinando que “para que venha a ser exigida a apresentação da oferta pública de que trata o artigo 254-A da lei, é indispensável que um acionista da companhia, detentor de um bloco de ações ordinárias que asseguram o exercício do poder de controle, aliene as ditas ações a um terceiro, o qual, concluída a operação, substituirá o antigo controlador, passando ele, adquirente, a exercer o poder de comandar os destinos da respectiva companhia”11. LUIZ LEONARDO CANTIDIANO afirma, ainda, que também haverá alienação de controle se “a transferência, de forma direta ou indireta, a) de ações integrantes do bloco de controle, b) de ações vinculadas a acordo de acionistas, c) de valores mobiliários conversíveis em ações com direito a voto e d) a cessão de direitos de subscrição de ações e de outros títulos ou direitos relativos a valores mobiliários conversíveis em ações que venham a resultar na alienação de controle acionário da sociedade”12.

Analisando o assunto de acordo com a Instrução CVM nº 361/02, FÁBIO KONDER COMPARATO, conforme mencionado na decisão, refere que a LSA regulou os três tipos de oferta pública de aquisição obrigatória: “A OPA para cancelamento de registro, a OPA por aumento de participação do acionista controlador, a OPA por alienação de controle (art. 2º). Todas pressupõem a existência de controle majoritário”13.

No caso em questão, o RFS realizou uma oferta pública de aquisição de ações do ABN, que se encontravam pulverizadas no mercado – o maior percentual de ações de titularidade de um único acionista eram 3,05%, 2,67% e 2,14%. Como não havia acordos de acionistas relacionados ao controle do ABN, não existia um acionista ou um grupo de acionistas titulares do controle do ABN. Dessa forma, após a aquisição das ações no Mercado, o RFS assumiu a posição de acionista controlador sem que houvesse ocorrido qualquer tipo de alienação de controle, o que caracteriza uma Aquisição Originária, portanto não sujeita a uma OPA.

3.4 Tenda – Gafisa

A alteração de controle da Construtora Tenda S.A. (“Tenda”), ocorrida em 1º de setembro de 2008, foi implementada por meio de uma

11 CANTIDIANO, Luiz Leonardo. Op. cit. 12 Idem. Reforma da Lei das S.A. Comentada. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p.238. 13 COMPARATO, Fábio Konder. O Poder de Controle na Sociedade Anônima. Rio de Janeiro: Forense,

2005, p.243.

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estrutura legal distinta das operações tradicionais de alienação de controle, mostrando-se como uma alternativa a estas.

A referida operação foi realizada através da incorporação de uma subsidiária da Gafisa S.A. (“Gafisa”) pela Tenda, conforme detalhado abaixo.

A aquisição do controle da Tenda foi estruturada por meio da incorporação da Fit Residencial Empreendimentos Imobiliários Ltda. (“Fit”), uma subsidiária da Gafisa, pela Tenda. Como contraprestação, a Gafisa recebeu novas ações de emissão da Tenda, representando 60% do capital social e das ações com direito de voto. O valor das ações recebidas pela Gafisa foi calculado por um auditor independente, e foram emitidas pelo preço de mercado sem qualquer prêmio ou prejuízo aos acionistas minoritários (ao menos desde um ponto de vista econômico).

A intenção dessa estrutura era de efetivamente alienar o controle da Tenda para a Gafisa, sem que fosse necessária a realização de uma OPA, nos termos da LSA e do estatuto social da Tenda, diminuindo, portanto, os custos de aquisição.

Conforme mencionado anteriormente, a LSA estabelece que uma OPA somente é necessária no caso de uma alienação, direta ou indireta, de controle, o que não ocorreu na transação descrita acima, na medida em que foi estruturada por meio de uma incorporação, e não de uma alienação de ações.

A CVM manifestou o entendimento de que a realização de uma OPA não se faz obrigatória e a utilização da estrutura da incorporação, expressamente prevista na LSA, resultou numa aquisição originária de controle14, considerando que não houve uma transferência de ações do antigo controlador para o novo acionista controlador15.

Ainda que esta operação tenha sido estruturada de acordo com a legislação brasileira, é inegável que questões relativas aos direitos dos acionistas minoritários e às práticas de governança corporativa entraram em pauta. Entretanto, a CVM esclareceu que, ao analisar as informações públicas disponíveis, não há sinais de vantagens adicionais aos antigos

14 Em linha com os conceitos expostos acima, preferimos classificar essa transação como uma

Aquisição Secundária (e não como uma Aquisição Originária), pois antes da incorporação já existia um acionista controlador definido, exercendo efetivamente o controle da Tenda.

15 Disponível em: <http://www.cvm.gov.br>.

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acionistas controladores que pudessem caracterizar uma fraude à LSA ou ao estatuto social da Tenda.

Além dos precedentes mencionados acima, duas outras mudanças de controle (Datasul S.A. para a Totvs S.A. e a Company S.A. para a Brascan Residential Properties S.A.) foram estruturadas de forma similar à operação da Tenda/Gafisa.

4 – RECENTES AQUISIÇÕES REALIZADAS POR MEIO DE INCORPORAÇÕES

Recentemente, algumas transações trouxeram novamente à tona a discussão da aquisição de companhias abertas por meio de incorporações (troca de ações), incluindo a operação entre a Sadia S.A. e a Perdigão S.A., que resultou na criação da Brasil Foods, e a união entre a Duratex S.A. e a Satipel Industrial S.A.

Tendo em vista que a contraprestação dessas operações foi a entrega de ações, em vez de um pagamento em dinheiro, podemos considerar estas operações como sendo, essencialmente, aquisições (assim como ocorreu na operação da Tenda, mencionada acima). No entanto, por se tratar de incorporações, os acionistas controladores poderiam, em princípio, aprovar a incorporação sem a necessidade da aprovação dos acionistas minoritários.

Nestes casos, como ambas as companhias incorporadas são companhias abertas, os acionistas minoritários receberiam, de acordo com a estrutura das referidas incorporações, aproximadamente 80% do tratamento dado aos controladores. Essa relação de troca foi estabelecida através de uma interpretação extensiva do artigo 254-A da LSA, que mencionamos acima.

Entretanto, como vimos, este artigo outorga um direito aos acionistas minoritários de optarem pela alienação das suas ações ante a possibilidade de perda de liquidez, decorrente de alienação de controle, ao novo acionista controlador. Nos casos da Sadia/Perdigão e da Duratex/Satipel, os acionistas controladores estão utilizando uma interpretação deste artigo para estabelecer a relação de troca na incorporação, transformando o direito do minoritário num dever.

Esse entendimento foi confirmado pelo Colegiado da CVM, no dia 28 de julho de 2009, através da decisão proferida no Processo RJ2009/581116. 16 Disponível em: <www.cvm.gov.br>.

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De acordo com o voto do Diretor Otavio Yazbek, “a operação de incorporação é, do ponto de vista formal, completamente distinta da alienação de controle”. Dessa forma, conforme o entendimento do referido Diretor, a operação proposta pela Duratex/Satipel representa uma imposição ao acionista minoritário, e não um direito. Segundo seu voto, “mesmo que haja discordância, o minoritário será ‘tragado’ para os quadros da sociedade incorporadora, no que se poderia chamar, em expressão que alguns agentes do mercado já vêm adotando, de um verdadeiro drag along”.

No mesmo sentido, o Diretor Marcos Pinto ressalta em seu voto que “este argumento comete dois equívocos graves, um de natureza formal, outro substancial. O equívoco formal consiste em equiparar a incorporação a uma alienação de controle, hipótese já afastada por este colegiado. A incorporação não é uma alienação de controle e, salvo nos casos de fraude à lei, não dá ensejo à oferta prevista no art. 254-A. Mas há ainda um equívoco substancial gravíssimo no raciocínio da companhia: ele converte um direito conferido pela lei ao acionista minoritário em um benefício para o controlador. O art. 254-A não diz que as ações do minoritário valem 20% menos do que as ações do controlador. Ele dá ao minoritário o direito de vender suas ações por esse preço. (...) A obrigação decorrente do art. 254-A tem por finalidade a proteção ao acionista minoritário e não se confunde com tratamento não isonômico em operação de incorporação”.

Adicionalmente, a CVM deixou claro o entendimento de que são os acionistas minoritários que devem votar nas assembleias gerais que tenham por objeto a incorporação de ações nestes termos, na medida em que os acionistas controladores estariam impedidos de votar com base no artigo 115 da LSA, pois ao negociarem uma condição melhor pra si estariam auferindo um benefício particular. Trata-se, portanto, da extensão de um conceito já usado pela CVM para incorporações de controlada, no Parecer 34.

5 – CONSIDERAÇÕES FINAIS

O desenvolvimento do mercado brasileiro representa um desafio às estruturas legais existentes, que foram criadas num contexto de um mercado ainda incipiente, no qual as operações eram, de forma geral, menos sofisticadas e complexas.

A atividade de todos os participantes do mercado, sobretudo os advogados e as entidades reguladoras, torna-se especialmente desafiadora,

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na medida em que se faz necessário acomodar estruturas complexas e criativas para as atuais operações de fusões e aquisições às normas e regulamentações vigentes. Tem-se que chegar numa equação de favorecer o desenvolvimento do mercado sem que isso tenha um efeito negativo aos acionistas minoritários.

Como se viu, ainda que novas estruturas possam ser justificadas pela eficiência econômica, parece claro que podem também resultar num efeito adverso aos acionistas minoritários e ao mercado, especialmente se estas estruturas forem utilizadas para driblar obrigações previstas na atual legislação.

Com base no exposto acima, até que novas e modernas regulamentações sejam editadas, em linha com os standards do mercado internacional, a CVM terá uma difícil tarefa de fiscalização, de forma a garantir o desenvolvimento do mercado brasileiro e o cumprimento das atuais normas vigentes.

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CONTRATO DE TRABALHO RURAL POR PEQUENO PRAZO E PRECARIZAÇÃO DAS

RELAÇÕES DE TRABALHO NO CAMPO GUSTAVO FILIPE BARBOSA GARCIA*

1 – INTRODUÇÃO

No âmbito do Direito do Trabalho, o contrato de trabalho é figura nuclear, como se verifica no art. 442 da Consolidação das Leis do Trabalho, ao fazer a devida correspondência com a relação de emprego.

Como se sabe, o contrato de trabalho pode ser por prazo determinado ou indeterminado (art. 443, caput, da CLT).

Em razão do princípio da continuidade da relação de emprego, presume-se que o contrato seja a prazo indeterminado, permitindo-se a contratação a prazo certo apenas nas hipóteses admitidas no ordenamento jurídico1.

Nesse sentido, o § 1º do art. 443 da CLT considera como de prazo determinado “o contrato de trabalho cuja vigência dependa de termo prefixado ou da execução de serviços especificados ou ainda da realização de certo acontecimento suscetível de previsão aproximada”.

Além das hipóteses previstas na Consolidação das Leis do Trabalho, verifica-se a previsão de contratação do empregado a prazo certo em leis específicas.

No âmbito do trabalho rural, a Lei 5.889, de 8 de junho de 1973, no art. 14, prevê o contrato de safra, considerado como “o que tenha sua duração dependente de variações estacionais da atividade agrária” (parágrafo único do art. 14).

* Doutor em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Procurador do

Trabalho do Ministério Público do Trabalho da 2ª Região. Ex-Juiz do Trabalho da 2ª, 8ª e 24ª Regiões. Ex-Auditor Fiscal do Trabalho. Professor Universitário (graduação e pós-graduação).

1 Cf. GARCIA, Gustavo Filipe Barbosa. Curso de direito do trabalho. 3.ed. São Paulo: Método, 2009, p.100.

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No presente estudo, objetiva-se analisar os principais aspectos do chamado contrato de trabalho rural por pequeno prazo, conforme previsão decorrente da Lei 11.718, de 20 de junho de 2008.

2 – LEI 11.718/2008: CONTRATO DE TRABALHO RURAL POR PEQUENO PRAZO

A Lei 11.718/2008, publicada no Diário Oficial da União de 23.06.2008, acrescentou à Lei 5.889/1973 o art. 14-A, criando o “contrato de trabalhador rural por pequeno prazo”.

Na realidade, a mencionada lei teve origem na conversão da Medida Provisória 410, de 28 de dezembro de 2007 (DOU de 28.12.2007, edição extra).

De acordo com o referido dispositivo legal:

“Art. 14-A. O produtor rural pessoa física poderá realizar contratação de trabalhador rural por pequeno prazo para o exercício de atividades de natureza temporária.

§ 1º. A contratação de trabalhador rural por pequeno prazo que, dentro do período de 1 (um) ano, superar 2 (dois) meses fica convertida em contrato de trabalho por prazo indeterminado, observando-se os termos da legislação aplicável.

§ 2º. A filiação e a inscrição do trabalhador de que trata este artigo na Previdência Social decorrem, automaticamente, da sua inclusão pelo empregador na Guia de Recolhimento do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço e Informações à Previdência Social – GFIP, cabendo à Previdência Social instituir mecanismo que permita a sua identificação.

§ 3º. O contrato de trabalho por pequeno prazo deverá ser formalizado mediante a inclusão do trabalhador na GFIP, na forma do disposto no § 2º deste artigo, e:

I – mediante a anotação na Carteira de Trabalho e Previdência Social e em Livro ou Ficha de Registro de Empregados; ou

II – mediante contrato escrito, em 2 (duas) vias, uma para cada parte, onde conste, no mínimo:

a) expressa autorização em acordo coletivo ou convenção coletiva;

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b) identificação do produtor rural e do imóvel rural onde o trabalho será realizado e indicação da respectiva matrícula;

c) identificação do trabalhador, com indicação do respectivo Número de Inscrição do Trabalhador – NIT.

§ 4º. A contratação de trabalhador rural por pequeno prazo só poderá ser realizada por produtor rural pessoa física, proprietário ou não, que explore diretamente atividade agroeconômica.

§ 5º. A contribuição do segurado trabalhador rural contratado para prestar serviço na forma deste artigo é de 8% (oito por cento) sobre o respectivo salário-de-contribuição definido no inciso I do caput do art. 28 da Lei 8.212, de 24 de julho de 1991.

§ 6º. A não inclusão do trabalhador na GFIP pressupõe a inexistência de contratação na forma deste artigo, sem prejuízo de comprovação, por qualquer meio admitido em direito, da existência de relação jurídica diversa.

§ 7º. Compete ao empregador fazer o recolhimento das contribuições previdenciárias nos termos da legislação vigente, cabendo à Previdência Social e à Receita Federal do Brasil instituir mecanismos que facilitem o acesso do trabalhador e da entidade sindical que o representa às informações sobre as contribuições recolhidas.

§ 8º. São assegurados ao trabalhador rural contratado por pequeno prazo, além de remuneração equivalente à do trabalhador rural permanente, os demais direitos de natureza trabalhista.

§ 9º. Todas as parcelas devidas ao trabalhador de que trata este artigo serão calculadas dia a dia e pagas diretamente a ele mediante recibo.

§ 10. O Fundo de Garantia do Tempo de Serviço – FGTS deverá ser recolhido e poderá ser levantado nos termos da Lei 8.036, de 11 de maio de 1990.”

Como se pode notar, o “contrato de trabalhador rural por pequeno prazo” pode ser firmado por “produtor rural pessoa física” (art. 14-A, caput, da Lei 5.889/1973), o que afasta a referida contratação por pessoa jurídica.

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Além disso, conforme o § 4º do art. 14-A da Lei 5.889/1973 (acrescentado pela Lei 11.718/2008), a contratação de trabalhador rural por pequeno prazo só pode ser realizada por “produtor rural pessoa física, proprietário ou não, que explore diretamente atividade agroeconômica”.

A contratação mencionada deve ter por finalidade o “exercício de atividades de natureza temporária”. Desse modo, para a validade do mencionado contrato, a atividade a ser desempenhada pelo empregado não pode ter duração indeterminada, mas sim previsão de término em curto espaço de tempo.

Nesse sentido, é comum entre os pequenos produtores rurais (pessoa física) a necessidade de empregados por curto espaço de tempo, como tão somente para o plantio em áreas de pequena extensão, demandando trabalho com duração de alguns poucos dias ou semanas. A Lei 11.718/2008, assim, parece ter como objetivo regular situações como a mencionada, em que a curtíssima duração da atividade laboral vinha sendo apontada como fator que dificultava a devida formalização do vínculo de emprego rural.

O § 1º do art. 14-A, acima destacado, revela que o prazo do contrato em questão não pode superar dois meses, dentro do período de um ano; caso esse limite seja superado, o contrato fica automaticamente convertido em contrato de trabalho por prazo indeterminado. Pode-se entender que, depois de terminado o período de um ano, nova contratação fica autorizada, desde que tenha por finalidade o exercício de atividades de natureza temporária, devendo-se observar, novamente, o prazo limite mencionado.

A disposição em foco também permite o entendimento de ser possível a prorrogação do contrato de trabalhador rural por pequeno prazo, firmado com certo empregado, desde que persista a justificativa do exercício de atividade de natureza temporária, observando-se, dentro do período de um ano, o prazo máximo de dois meses, mesmo com eventual prorrogação contratual (ou seja, já computada a prorrogação, o prazo máximo deve ser de dois meses, dentro do período de um ano).

A disposição mais inovadora, e que gera controvérsias, refere-se ao § 3º do art. 14-A (especialmente no inciso II), ao prever que o contrato de trabalhador rural por pequeno prazo deve ser formalizado mediante a inclusão do trabalhador na GFIP e:

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I – mediante a anotação na Carteira de Trabalho e Previdência Social e em Livro ou Ficha de Registro de Empregados; ou

II – mediante contrato escrito, em 2 (duas) vias, uma para cada parte, onde conste, no mínimo:

a) expressa autorização em acordo coletivo ou convenção coletiva;

b) identificação do produtor rural e do imóvel rural onde o trabalho será realizado e indicação da respectiva matrícula;

c) identificação do trabalhador, com indicação do respectivo Número de Inscrição do Trabalhador – NIT.

Antes da conversão na Lei 11.718/2008, a Medida Provisória 410/2007 assim previa: “§ 3º. O contrato de trabalhador rural por pequeno prazo não necessita ser anotado na Carteira de Trabalho e Previdência Social ou em Livro ou Ficha de Registro de Empregados, mas, se não houver outro registro documental, é obrigatória a existência de contrato escrito com o fim específico de comprovação para a fiscalização trabalhista da situação do trabalhador”.

Como se nota, com a Lei 11.718/2008, houve certa evolução quanto ao tema, pois para que se admita a ausência de anotação do contrato de trabalhador rural por pequeno prazo na Carteira de Trabalho e Previdência Social (CTPS) e em Livro ou Ficha de Registro de Empregados, passou-se a exigir que o contrato escrito (em duas vias, uma para cada parte) indique a “expressa autorização em acordo coletivo ou convenção coletiva”, bem como a identificação do produtor rural e do imóvel rural onde o trabalho será realizado, e a indicação da respectiva matrícula e a identificação do trabalhador, com indicação do respectivo Número de Inscrição do Trabalhador (NIT).

Assim sendo, apenas se houver autorização nesse sentido, em instrumento normativo decorrente de negociação coletiva de trabalho (art. 7º, inciso XXVI, da CF/1988), é que a lei autoriza a contratação na forma mencionada. Tendo em vista essa exigência, deve-se destacar o papel do ente sindical representante da categoria profissional, ao participar da negociação coletiva, na forma do art. 8º, inciso VI, da CF/1988. Enquanto o acordo coletivo é firmado com o empregador (art. 617 da CLT), a convenção coletiva é firmada com o ente sindical representante da categoria econômica (art. 611 da CLT).

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É da tradição e da sistemática do Direito do Trabalho no Brasil que o empregado tenha o respectivo contrato de trabalho anotado na CTPS e no Livro ou Ficha de Registro de Empregados (CLT, arts. 29 e 41). No entanto, a previsão em destaque acaba afastando a necessidade das mencionadas anotações para a específica contratação de trabalhador rural por pequeno prazo, desde que presentes as formalidades já destacadas.

A disposição em comento, ao conferir alternativa, permitindo que o contrato de trabalhador rural por pequeno prazo não seja anotado na CTPS ou em Livro ou Ficha de Registro, ainda que isso tenha passado a depender de autorização em norma coletiva negociada, pode trazer certas dificuldades e prejuízos ao empregado em questão, principalmente com o passar dos anos, quando for eventualmente preciso demonstrar (por exemplo, perante o INSS) a relação de emprego ocorrida, sabendo-se que pode ocorrer de o mencionado contrato escrito, justamente por ser um documento avulso, ser perdido pelo obreiro.

Quanto ao registro do empregado em Ficha ou Livro, por sua vez, a sua ausência pode dificultar a atuação dos órgãos de fiscalização do trabalho, além de poder fomentar práticas ilícitas em que o mencionado “contrato escrito” torne-se mero “contrato de gaveta”, a ser apresentado apenas no caso de ocorrer alguma inspeção pela fiscalização do trabalho (não ocorrendo, o contrato seria inutilizado, restando ao empregado postular o seu reconhecimento em juízo).

Além disso, a Carteira de Trabalho e Previdência Social é documento dotado de valor diferenciado para os trabalhadores, por já fazer parte da história e da tradição do Direito do Trabalho no Brasil, podendo-se entender que a faculdade de sua não anotação, apenas no tocante ao referido contrato de trabalhador rural por pequeno prazo, representa tratamento não isonômico quando comparado aos demais empregados, não se verificando pressuposto lógico ou razoável que possa autorizar ou justificar a mencionada distinção.

Note-se, aliás, que o art. 7º, caput, da Constituição Federal de 1988 estabelece a igualdade entre trabalhadores urbanos e rurais, permitindo-se entender que a previsão mencionada acaba por tratar de forma desigual certa parcela de empregados rurais, com possíveis prejuízos a estes, retirando-lhes o direito à anotação do contrato de trabalho em CTPS ou em Livro ou Ficha de Registro, em afronta ao mandamento constitucional em questão.

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Mesmo quanto à atual previsão, no sentido de que para a contratação de trabalhador rural por pequeno prazo, sem a anotação de CTPS e no Registro de Empregados, exige-se expressa autorização em acordo coletivo ou convenção coletiva de trabalho (art. 14-A, § 3º, inciso II, a, da Lei 5.889/1973), deve-se destacar que a flexibilização dos direitos trabalhistas, quando prejudicial aos trabalhadores, não pode ocorrer de forma ilimitada, não sendo válida quando contraria norma de ordem pública e direito indisponível, como é o caso em questão.

A Constituição Federal de 1988, no art. 7º, incisos VI, XIII e XIV, estabelece as hipóteses em que, excepcionalmente, há autorização para a flexibilização negociada de normas e direitos trabalhistas, flexibilização esta que, mesmo assim, é admitida como forma de conferir a devida proteção ao trabalho e à relação de emprego, em situações que justifiquem a medida. No caso em questão, o direito à anotação do contrato de trabalho na CTPS e em Livro ou Ficha de Registro de Empregados não se amolda a nenhuma das hipóteses em que a Constituição da República, de modo estrito e excepcional, permitiu a flexibilização. Com isso, é possível concluir que nem mesmo por meio de negociação coletiva é válida a tentativa de afastar o mencionado direito social trabalhista, decorrente de norma cogente e imperativa.

Nesse sentido, pode-se mesmo entender que a referida previsão viola o princípio constitucional da igualdade (art. 5º, caput, da CF/1988), além de ser uma forma de contribuir para a “precarização” das relações de trabalho rural, afrontando o princípio do não retrocesso social, bem como o princípio constitucional da melhoria das condições sociais dos trabalhadores (art. 7º, caput, da CF/1988).

Em razão disso, o ideal é que a contratação em estudo ocorra na forma do art. 14-A, § 3º, inciso I, não se utilizando da alternativa (faculdade) prevista no inciso II do mesmo dispositivo.

De todo modo, o contrato de trabalho por pequeno prazo deve ser sempre formalizado mediante a inclusão do trabalhador na Guia de Recolhimento do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço e Informações à Previdência Social (GFIP). A filiação e a inscrição do trabalhador em questão na Previdência Social decorrem, automaticamente, da sua inclusão pelo empregador na GFIP, cabendo à Previdência Social instituir mecanismo que permita a sua identificação.

Caso o trabalhador não seja incluído na GFIP, pressupõe-se a inexistência de contratação na forma do art. 14-A da Lei 5.889/1973, sem

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prejuízo de comprovação, por qualquer meio admitido em direito, da existência de relação jurídica diversa (v.g., relação de trabalho autônoma ou eventual).

Concretizando, no aspecto a seguir, o princípio de isonomia, asseguram-se ao trabalhador rural contratado por pequeno prazo, além de remuneração equivalente à do trabalhador rural permanente, os demais direitos de natureza trabalhista.

Tendo em vista tratar-se de contrato por pequeno prazo, para o exercício de atividades de natureza temporária, todas as parcelas devidas ao trabalhador contratado por pequeno prazo devem ser calculadas dia a dia e pagas diretamente a ele mediante recibo.

Frise-se que esse cálculo das verbas trabalhistas “dia a dia” inclui os direitos como férias e 13º salário, tendo em vista a incidência da regra especial no caso particular em questão. A prova da quitação de cada um dos direitos trabalhistas devidos, assim, é feita por meio do recibo respectivo, firmado pelo trabalhador rural. No entanto, em razão de suas peculiaridades, o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço – FGTS deve ser recolhido e pode ser levantado, nos termos da Lei 8.036/1990.

3 – CONCLUSÃO

A Lei 11.718/2008 passou a autorizar que o produtor rural pessoa física contrate trabalhador rural por pequeno prazo, para o exercício de atividades de natureza temporária.

Trata-se de nova modalidade de contrato por prazo determinado, específico para o âmbito rural, e que não se confunde com o contrato de safra.

Pode-se dizer que o princípio da continuidade da relação de emprego tem sido cada vez mais excepcionado, com a ampliação das formas de contratação a prazo e de forma temporária, com fundamento em justificativas diversas, como concorrência, globalização, desemprego, crises econômicas e financeiras.

Apesar disso, na esfera do Direito, tendo em vista o próprio comando constitucional, na realidade há necessidade de se estabelecerem medidas que alcancem a melhoria das condições sociais dos trabalhadores (art. 7º, caput, da CF/1988), e não a “precarização” das relações trabalhistas.