doutores ou soldados? o debate sobre o ensino militar no império

13

Click here to load reader

Upload: alex-menez

Post on 04-Oct-2015

4 views

Category:

Documents


1 download

DESCRIPTION

Pretende refletir sobre os debates acerca do ensino militar no Império,que acompanharam o processo de profissionalização do Exército. Trabalhocom a hipótese de que a precariedade da formação específica militaradvinha do desprestígio conferido à própria carreira no período imperial,visto que os alunos da Escola Militar vinham, em geral, de famíliasmilitares, das camadas médias, raramente de famílias ricas. A questãoque se colocava então era: formar doutores engenheiros ou militares?O que deveria prevalecer na formação do oficial do Exército? Os saberesteóricos, ligados à cultura geral, ou o saber técnico-profissional, ligado àspráticas militares? Ademais, considero que as reformas no ensino militarfaziam parte do projeto conservador de reorganização nacional nomomento de consolidação do Estado Imperial

TRANSCRIPT

  • 352

    Resumo

    Pretende refletir sobre os debates acerca do ensino militar no Imprio,que acompanharam o processo de profissionalizao do Exrcito. Trabalhocom a hiptese de que a precariedade da formao especfica militaradvinha do desprestgio conferido prpria carreira no perodo imperial,visto que os alunos da Escola Militar vinham, em geral, de famliasmilitares, das camadas mdias, raramente de famlias ricas. A questoque se colocava ento era: formar doutores engenheiros ou militares?O que deveria prevalecer na formao do oficial do Exrcito? Os saberestericos, ligados cultura geral, ou o saber tcnico-profissional, ligado sprticas militares? Ademais, considero que as reformas no ensino militarfaziam parte do projeto conservador de reorganizao nacional nomomento de consolidao do Estado Imperial.

    Palavras-chave: ensino militar, Brasil Imprio, profissionalizao doExrcito.

    Beatriz R. da Costa e Cunha

    ESTUDOS RBEPRBEPRBEPRBEPRBEPDoutores ou soldados? O debate sobreo ensino militar no Imprio*

    R. bras. Est. pedag., Braslia, v. 89, n. 222, p. 352-364, maio/ago. 2008.

    * Uma verso resumida destetrabalho foi apresentada no IVCongresso Brasileiro de Histriada Educao, realizado emGoinia-GO, em 2006.

    Beatriz R. da Costa e Cunha

  • 353

    Acompanhando a profissionalizao do Exrcito, tem incio oquestionamento acerca da formao dos oficiais e da falta de habilitaodos soldados, ou seja, a instruo militar entra em pauta. Em realidade,essa discusso j ocorria desde o perodo regencial, diante da impossibi-lidade manifestada pelas foras disponveis, quer seja a Guarda Nacionalou o Exrcito de Linha, de restabelecerem a ordem interna ameaadapelas rebelies, tornando necessria a reorganizao do Exrcito. Deacordo com Sodr (1965, p. 124), aps 1834, tem incio um movimentoregressivo por parte dos liberais que, limitando os efetivos militares, teriacomo um de seus efeitos atirar o Exrcito a um plano secundrio.

    A formao de oficiais do Exrcito no Brasil no sculo 19 foi marcadaem sua trajetria pela coexistncia, numa mesma instituio, da formaomilitar propriamente dita e da engenharia civil, desde a criao da RealAcademia Militar pelo prncipe regente D. Joo VI, atravs do decreto de4 de dezembro de 1810. Essa instituio formava engenheiros, comopreconizado poca,1 abrangendo a habilitao de oficiais em engenhariae artilharia, gegrafos e topgrafos.

    No entanto, o problema ia alm da mera coexistncia de dois cursose da presena de civis no interior da Academia. Na verdade, a Academiaera uma instituio pouco militarizada, sem exerccios prticos de guerra,nem uniformes, formaturas ou normas de quartel. Cludia Alves (2002,p. 129), refletindo sobre o ensino na referida Academia, adverte que:

    A formao de doutores parecia se sobrepor qualificao de soldadose gerava crticas severas quanto ao possvel cumprimento de seus

    AbstractDoctors or soldiers? The discussion about military education during

    the Empire Era

    This work aims to reflect about the issues regarding the militaryeducation, by the time of the Empire, which followed the Armyprofessionalization process. I understand that the precarious militaryformation is the result of a not much respected career since the students ofthe Military School came frequently from middle class, rarely from wealthyfamilies. The issue put was: were they supposed to graduate engineers ormilitaries? What should prevail? Theoretical knowledge attached to a generalculture or technical-professional knowledge related to military practice?Moreover, I consider that changes in military education were part of aproject to reorganize and solidify the Imperial State.

    Keywords: Military education, Brazilian Empire, Armyprofessionalization.

    Doutores ou soldados? O debate sobre o ensino militar no Imprio*

    R. bras. Est. pedag., Braslia, v. 89, n. 222, p. 352-364, maio/ago. 2008.

    1 O decreto de criao daAcademia j lhe dava como ob-jetivo formar oficiais capazes,mas tambm engenheiros quepudessem construir estradas epontes. (Carvalho, 2003. p. 75).

  • 354

    objetivos [...] Diante dessa realidade, perfilavam-se, de um lado, osque desejavam militarizar a Academia enfatizando a formao tcnico-profissional e, de outro, os defensores de seu perfil tradicional.

    Relacionadas com a estabilizao da ordem poltica que se seguiu aofim das revoltas provinciais, as reformas faziam parte do projeto conser-vador durante o processo de consolidao do Estado Imperial. AdrianaBarreto de Souza (1999, p. 77) afirmou sobre aquele momento que adesordem era um fator interno, decorrente da inoperncia do sistemamilitar oficial, e justamente a partir desse sentimento de desgovernoque comeam a ser elaboradas as primeiras sugestes de reforma.

    Uma era de reformas: surge a Escola Militar

    A reforma de 1833 foi uma das primeiras iniciativas de militarizaoque, entre outras medidas, inaugurou um comando militar para aAcademia, subtraindo a direo da congregao de lentes, alm deimplementar uma forma militar aos alunos, obrigando-os a formaturas eexerccios prticos. Em 1839, a Academia Militar transformou-se em EscolaMilitar, que, atravs de algumas medidas,2 reforou a tendnciamilitarizante. Defendendo a concepo que privilegiava a formaotcnico-profissional, o autor da reforma de 1839, Sebastio do Rego Barros,apontou as seguintes divergncias:

    Ou a escola militar, ou uma academia de sciencias physica e chimica:se academia de sciencias physica e chimica, ento no pde haveressa disciplina, essa ordem que deve haver. A escola deve serinteiramente militar; mas se acaso a assembla lhe quer dar uma novaorganisao, ento forme-se uma nova academia destacada, mas o que militar deve ser militar (Anais da Cmara dos Deputados, sesso de29 de maio de 1843).

    A despeito da defesa enftica de Rego Barros, tudo indica que aconcepo que valorava o conhecimento cientfico em detrimento dotcnico-profissional militar continuou prevalecendo, pois, de acordo comJos Murilo de Carvalho (2003, p. 76),

    Mesmo aps a separao da engenharia civil, a Escola Militar manteveos traos civis de seu ensino tcnico e continuou a conceder diplomasde bacharel em matemtica e engenharia. Os oficiais eramfreqentemente tratados de doutores: dr general, dr. capito, ou, sim-plesmente, seu doutor, numa clara busca de compensao simblicapelo status inferior da educao tcnica e militar, em relao formaojurdica dos polticos.

    Questionando a pertinncia do ttulo de doutor conferido aos militares,temos alguns trechos do depoimento do senador Cruz Jobim, em 1851:

    Confesso, senhores, que me incomoda, que me aflige mesmo, ver ummilitar procurar encobrir o brilhantismo do seu uniforme, essas insgnias

    2 Entre outras, instituiu a figurado oficial-instrutor, encarregadode comandar as companhias dealunos e efetuar a instruoprtica das Armas.

    Beatriz R. da Costa e Cunha

    R. bras. Est. pedag., Braslia, v. 89, n. 222, p. 352-364, maio/ago. 2008.

  • 355

    militares [...] Incomoda-me, repito, v-lo esconder a sua farda com umamura, um capelo ou uma beca, parece-me que no h nada que omilitar deva por em cima de sua farda [...] porque nada considero maisnobre, nem mais distinto, do que a farda de um militar benemrito [...]em pblico, um militar ocultar a sua farda com qualquer coisa queseja, parece-me que dar pouca considerao mesma farda [...] (Anaisdo Senado do Imprio, sesso de 14 de julho de 1851).

    Possivelmente, a precariedade da formao especfica militar advinhado desprestgio conferido prpria carreira durante o Imprio. Os alunosda Escola Militar vinham, em geral, de famlias militares, provenientes dascamadas mdias, raramente de famlias da elite.

    Procurada cada vez mais por filhos de militares, funcionrios modestos,pequenos comerciantes ou proprietrios, sofria com a posio marginala que estava relegada na sociedade imperial onde a ascenso socialdependia dos relacionamentos pessoais. O ttulo que abria portas,conseguia empregos e bons casamentos era o de bacharel (Alves, 2002,p. 132).

    O mesmo no ocorria com a Escola Naval, opo de formao militarpara os filhos da elite que no queriam ser bacharis, onde, apesar dagratuidade do ensino, mantinha-se um recrutamento seletivo baseadoem mecanismos discriminatrios, o mais importante dos quais a exignciade custosos enxovais (Carvalho, 2003, p. 74). Ser oficial de Marinha eraencarado, ento, como atividade enobrecedora, para onde se encami-nhavam, em esmagadora maioria, elementos oriundos da classedominante (Sodr, 1965, p. 133).

    Contudo, o treinamento de oficiais na Marinha repetia a mesmasituao do Exrcito, causado pelo ensino excessivamente matemtico eterico e quase nenhum exerccio prtico. Muitos alunos saam da EscolaNaval sem ter sequer disparado um tiro de canho, ou lanado umtorpedo (Carvalho, 1978, p. 197).

    Nessa direo estavam as crticas do deputado Tavares Bastos, que,apontando as deficincias do ensino na Escola de Marinha, sugeria omodelo de ensino ingls, ministrado a bordo dos navios com exercciosprticos, ou mesmo, continua o deputado, o ideal seria fechar a Escola eeduc-los nas marinhas da Inglaterra, Frana e Estados Unidos (Anaisda Cmara dos Deputados, sesso de 15 de julho de 1862).

    Entre 1831 e 1850, a Escola Militar passou por vrias reformas quealternaram regulamentos cientficos e militarizantes, refletindo, de certaforma, as divergncias existentes no alto oficialato a respeito daorganizao do ensino e da carreira militar. O que deveria prevalecerna formao do oficial do Exrcito? Os saberes tericos, ligados culturageral, ou o saber tcnico-profissional, ligado s prticas militares? Muitasdessas divergncias eram provenientes dos prprios obstculos que omodelo aristocrtico de concepo do Exrcito, vindo da herana portu-guesa, impunha a essa instituio; um exemplo a tradio do cadetismoque estruturava as patentes e cargos do Exrcito atravs de privilgiosde nascimento, desconsiderando a qualificao do militar como fator de

    Doutores ou soldados? O debate sobre o ensino militar no Imprio*

    R. bras. Est. pedag., Braslia, v. 89, n. 222, p. 352-364, maio/ago. 2008.

  • 356

    ascenso na carreira. Ainda permaneceria o problema antigo3 e de nofcil resoluo, da necessidade regular de exerccios prticos no ensinomilitar.

    De certa forma, essas dificuldades ligavam-se ao fato de a EscolaMilitar no ser considerada, poca, indispensvel para o ingresso nooficialato e para a ascenso na hierarquia militar. Somente com a lei queregulamentou as promoes, cujos critrios baseavam-se na antigidadee no mrito, o curso da Escola Militar foi transformado em requisitobsico para acesso aos postos dentro do Exrcito, rompendo com a tradi-o aristocrtica e sedimentando a meritocracia. A idia era impedir queoficiais muito jovens atingissem altos postos de comando e incentivar aformao acadmica.

    Apresentada Cmara dos Deputados pelo ministro da guerra ManoelFelizardo de Souza e Mello, a lei determinava, entre outros itens, que sascenderiam ao posto de capito os que possussem o curso completode estudos da sua respectiva Arma (Motta, 1998, p. 100), o que exigiriapara o processo de formao de um oficial a incorporao de um currcu-lo de estudos sistematizados, consolidando a Escola Militar como veculode profissionalizao e burocratizao da carreira militar. Essa reformade Felizardo acenava para o paulatino fim do oficial sem curso, o chamadotarimbeiro.4

    Respondendo ao deputado ngelo Ramos, membro da oposio liberalao governo conservador, o ministro faz uma srie de indagaes queacenam para a necessidade de profissionalizar o Exrcito:

    Se reconhecido pelo nobre deputado ser conveniente dar instrucopratica e theorica a nossos officiaes; se da maior vantagem ter umexercito o mais instrudo e disciplinado possvel, ser ou no urgente adiviso da escola militar? Se a diviso da escola militar educa melhoros officiaes, d-lhes instruco mais conveniente, ser urgente quemelhoremos o nosso exercito? Eu deixo a resposta ao nobre deputadoe cmara; mas disse-se: vai augmentar a despeza... A escola militar, na realidade uma instituio onde se ensino as sciencias physico-mathematicas em grande escala;... mas por ventura os moos que sahemcom carta do curso completo da escola so verdadeiros officiaes? ...No convir que os officiaes, quando sahirem das escolas, saibo tudoquanto diz respeito sua arma? Podero elles ter essa instruco pelatheoria somente que se ensina na escola? (Anais da Cmara dosDeputados, sesso de 31 de maio de 1851).

    Assim, na esteira dessa medida, foi criada em 1851 a Escolade Aplicao do Exrcito, que comeou a funcionar em 1855, a fimde implementar instruo prtica a oficiais e praas, e em 1859, a Escolade Tiro do Campo Grande, com a finalidade de ensinar o tratamento dasdiferentes armas de fogo e adestrar oficiais e soldados nas regras prticas dotiro, ambas estabelecidas na Corte. (Motta, 1998, p. 106)

    S a partir da empreendida reforma das escolas militares em 1858 que a formao de oficiais desdobrou-se em duas escolas: a Escola Militartornou-se a Escola Central, que continuou a funcionar no Largo de SoFrancisco, enquanto a Escola de Aplicao do Exrcito foi transformada

    3 Os exerccios prticos estavamprevistos pelo estatuto de 1810da Academia, mas no eramimplementados.4 A palavra tarimba significaestrado de madeira utilizado pelossoldados para dormirem nosquartis. Entretanto, de formapejorativa, denominou-se tarim-beiro ao oficial mais velho, namaioria das vezes sem cursona Escola Militar.

    Beatriz R. da Costa e Cunha

    R. bras. Est. pedag., Braslia, v. 89, n. 222, p. 352-364, maio/ago. 2008.

  • 357

    na Escola Militar e de Aplicao, estabelecida nas fortalezas de So Jooe da Praia Vermelha. O curso de Cavalaria e Infantaria, que existia naprovncia do Rio Grande de So Pedro, foi reduzido a uma escola militarpreparatria, para oficiais subalternos.

    De acordo com o regulamento que reorganizou as escolas, a EscolaCentral se destinava ao ensino das matemticas e das cincias fsicas enaturais e, tambm, ao ensino das matrias prprias engenharia civil,enquanto a Escola Militar e de Aplicao da Praia Vermelha estava espe-cialmente encarregada do ensino terico e prtico das doutrinas militaresaos oficiais e praas das diferentes Armas do exrcito, a saber, Artilharia,Infantaria e Cavalaria. Era o caminho que apontava para a separao daformao militar da de engenharia civil, como denunciam as justificativasapresentadas pelo ministro Jeronimo Francisco Coelho:

    A distinco da engenharia civil da de engenharia militar em cursosdiversos desfaz o grave inconveniente, que resultava da accumulaodestas duas espcies em um s individuo, que de ordinrio era militar,e que por este modo ficava sendo um engenheiro encyclopedico, malpodendo habilitar-se com perfeio nas doutrinas, alis vastas, difficeise variadas, destes ramos da sciencia do engenheiro, to distinctos e deto diversa applicao. (Brasil. Ministrio da Guerra, 1858).

    Contudo, apesar das mudanas, continuava marcante a presena decivis, primeiro na Escola Militar e, aps 1858, na Escola Central, como aTabela 1 pode indicar:

    Tabela 1 Matrculas civis e militares na Escola Militar da Corte1855-1864

    Fonte: Alves, 2002, p. 217.

    Significativo nesse momento de expanso do ensino militar foi aextenso do ensino no nvel secundrio, com a criao de um curso pre-paratrio na Escola Central, o que refletiria a preocupao com a melhorcapacitao do Exrcito, fundamental para seu processo deprofissionalizao. O curso preparatrio constava de trs aulas: a 1, defrancs e latim, abrangendo gramtica, traduo e leitura; a 2, de histria,geografia e cronologia; e a 3, de aritmtica e metrologia, elementos delgebra e geometria.

    A preocupao manifestada pelos militares com a instruosecundria e os exames parcelados de preparatrios no foi peculiar corporao, antes fez parte de um processo maior desencadeado pelafuno atribuda aos estudos secundrios, encarados no Imprio quaseque somente como canais de acesso aos cursos superiores, o que colabo-rou para reduzi-los aos preparatrios exigidos para a matrcula nasfaculdades.

    Doutores ou soldados? O debate sobre o ensino militar no Imprio*

    R. bras. Est. pedag., Braslia, v. 89, n. 222, p. 352-364, maio/ago. 2008.

  • 358

    Referindo-se aos exames parcelados de preparatrios que davamacesso aos cursos superiores,5 Jeronimo Coelho critica os meios de ensinoparticulares, principalmente nas provncias, que no conseguiam proveros conhecimentos indispensveis para a admisso nas academias ouescolas do governo.

    A creao de um curso preparatrio na escola central franqueou as portasacademicas a todas as classes, e especialmente s classes pobres, e maisque tudo aos provincianos. A exigncia dos preparatrios estudados ex-ternamente arriscava, a que um pai, para preparar seu filho, recorressenas provncias ou a maos collegios, ou a curiosos, e depois de despezas,sacrifcios e perda de tempo, corria o risco de o ver reprovado na corte, eassim perdidos os seus esforos, e frustradas suas esperanas. Estasvantagens sero ainda mais profcuas em relao aos alumnos militares,quando para o futuro estabelecer-se o internato, de que trata o art. 14do regulamento (Brasil. Ministrio da Guerra, 1858).

    Segundo Haidar (1972, p. 15), a urgncia aps a formalizao denossa emancipao poltica era a formao de uma elite dirigente capazde administrar as instituies recm-criadas; por conta disso, tivemosensino superior antes mesmo que se estabelecesse um ensino de tiposecundrio, ocasionando uma distoro que marcou o sistema educacio-nal brasileiro, organizado at hoje de cima para baixo, onde a escolasecundria cede as suas funes prprias tarefa ancilar de cursopreparatrio para o ingresso no ensino superior.

    Contrariando a tendncia geral fragmentao, a preparao aoingresso para a Escola Militar caminhou na direo de constituir um cur-so de nvel secundrio, com formato escolar prprio, que incorporou gra-dualmente a sistematizao de contedos em sries (Alves, 2002, p. 289).

    Com relao reforma das escolas militares, o ministro ManoelFelizardo de Souza e Mello, no relatrio de 1858 (publicado em 1859),discorda de alguns aspectos, principalmente aqueles relacionados aoscursos preparatrios. Utilizando o discurso da racionalidade econmica,ele apresenta uma proposta de criao de um internato que concentrassetodos os estudos preparatrios, j que estes estavam divididos entre asescolas da corte e do Rio Grande. Nesse internato seriam admitidosmeninos de 8 a 14 anos, filhos de oficiais e praas inutilizados ou mortosem campanha, os quais, assim habilitados, passariam ao servio efetivodo Exrcito,

    [...] sem maior dispndio dos dinheiros pblicos, com mais proveitopara a instruco e para o servio militar, alm de grande beneficio aosofficiaes e mais praas do Exrcito, acredito que se poderia reunir emum s internato, destacado das Escolas da corte, todas as aulaspreparatrias (Brasil. Ministrio da Guerra, 1859, p. 9).

    Discordando das reformas estava tambm Polidoro QuintanilhaJordo, que, como comandante da Escola Militar da Praia Vermelha,apontava em seus relatrios, insistentemente, os inconvenientes da for-mao de militares a cargo de duas escolas, com alunos sujeitos,

    5 Sobre os exames preparatrios,a referncia a obra de Maria deLourdes M. Haidar (1972), parti-cularmente o captulo 2.

    Beatriz R. da Costa e Cunha

    R. bras. Est. pedag., Braslia, v. 89, n. 222, p. 352-364, maio/ago. 2008.

  • 359

    sucessivamente, a dois regimes, o que causava grande embarao aquisio dos conhecimentos prticos.

    dualidade das escolas o general Polidoro atribua no s prejuzospara o ensino tcnico-profissional, como tambm uma ao nefasta so-bre a formao de uma adequada mentalidade militar, o que, neste caso,poderia levar indisciplina e s transgresses graves dos alunos.

    Munido da experincia que vivera como comandante, de 1856 a 1862,e convicto de que a soluo para esses males s aconteceria quando ainstruo militar fosse concentrada em um regime de internatocontinuado, numa s escola, do incio ao fim dos estudos, coloca suasidias em prtica ao tornar-se ministro da Guerra, em 1862 era a reformade 1863, que introduziria grandes mudanas em relao aos regulamentosanteriores.

    A partir do novo regulamento, a Escola Militar da Praia Vermelhapassou a ser a escola bsica da formao das trs Armas, concentrandotodo o ensino militar. A Infantaria e a Cavalaria contavam com dois anosde estudo; a Artilharia, com trs anos; enquanto os engenheiros e osalunos do curso de Estado-Maior, aps os trs anos, freqentariam a EscolaCentral do Largo de So Francisco, a fim de obter a formaocomplementar.

    Aps a Guerra do Paraguai: o Tabernculo da Cincia

    Com a Guerra do Paraguai, professores e alunos foram desviadosdos trabalhos na Escola Militar da Praia Vermelha para o palco do conflito.A Escola de Tiro do Campo Grande foi fechada, e permaneceu funcionandoapenas o curso preparatrio, que desde 1863 j se achava instalado naPraia Vermelha. A Escola Central seguiu freqentada apenas por alunoscivis.

    No entanto, a guerra parece ter precipitado as mudanas, desejadaspela corporao e j prenunciadas, que se efetuaram posteriormente. Em1874, com a congregao de todo o ensino militar na Escola Militar daPraia Vermelha, ocorreria, enfim, a separao do curso de formao deengenheiros civis, com a criao da Escola Politcnica do Rio de Janeiro,que sucedeu Escola Central e, a partir dessa data, vinculou-se aoMinistrio do Imprio, no mais ao da Guerra.

    Tal separao j se afigurava inevitvel. Joo Lustoza da CunhaParanagu, em 1867, sugeria que a Escola Central passasse para oMinistrio do Imprio ou da Agricultura, pois

    [...] ela [pertencia], pela sua posio e outras circunstncias, ao estudoe formatura dos engenheiros civis e estes dispensam os hbitos dadisciplina militar (Brasil. Ministrio da Guerra, 1867).

    Esta proposta convergia com o pensamento do conselheiro JosLiberato Barroso (2005, p. 220-223), que, em sua obra A instruco publica

    Doutores ou soldados? O debate sobre o ensino militar no Imprio*

    R. bras. Est. pedag., Braslia, v. 89, n. 222, p. 352-364, maio/ago. 2008.

  • 360

    no Brasil, publicada no mesmo ano, dedicou um captulo instruo militar,conforme se verifica desses trechos:

    Os Relatrios do Ministro da Guerra deste anno e do anno passadoreconhecem a necessidade de uma reforma, pela qual se concentre naeschola militar todo o ensino dos que se dedicam profisso das armas.Os officiaes do estado maior do exercito e engenheiros militarescompleto a sua instruco na Eschola Central: so obvias as razes daconvenincia dessa reforma.

    [...] A Eschola Central depende do Ministrio da Guerra, entretanto temdous cursos para paisanos, um de engenheiro civil e outro de engenheiromilitar. So evidentes os defeitos dessa dependncia recproca. Devendose concentrar na Eschola Militar o ensino de todas as doutrinas milita-res, convm que a Eschola Central fique independente do Ministrio daGuerra, e como instituio de ensino profissional sujeita ao Ministriodas Obras Publicas, visto que no temos um ministrio geral da instrucopublica. Como actualmente est uma anomalia.

    Com o desmembramento das escolas pretendia-se atender, de umlado, s necessidades impostas pelas transformaes econmicas por quepassava o Pas, trazidas pela expanso da cultura cafeeira. Na segundametade do sculo 19, sobretudo a partir das dcadas de 1860 e 1870, aproduo cafeeira passou por transformaes profundas, com a progres-siva substituio do trabalho escravo pelo trabalho assalariado, estimu-lando o desenvolvimento de um surto industrial e a rpida expanso dasestradas de ferro, bem como da navegao a vapor, o que justificava aampliao dos estudos de engenharia civil, desvinculados da atividademilitar, exigidos pela crescente modernizao de nossa economia.

    Por outro lado, era imperiosa a reestruturao do Exrcito,principalmente no que tocava instruo dos oficiais, cujas deficinciashaviam sido duramente expostas no decorrer do conflito com o Paraguai.Em 1871, o relatrio do ministro Visconde do Rio Branco (Jos Maria daSilva Paranhos) no deixa dvidas quanto a essas intenes:

    Devo aqui ponderar-vos, como alguns de meus antecessores, que osindivduos que estudam na escola central antes destino-se a vida civil,que a militar. Vs reconhecereis que mais regular completar na escolamilitar o curso de engenharia militar e do estado-maior de 1 classe doexercito, dando-se quelle estabelecimento o seu verdadeiro caracterde escola de engenheiros geographos, engenheiros civis e candidatos direco dos trabalhos industriaes, agrcolas e de minerao. A refor-ma de que vos falo aqui tanto mais necessria quanto certo que aguerra do Paraguay demonstrou que devemos attender muito instruco dos nossos oficiaes de artilharia e da engenharia militar(Brasil. Ministrio da Guerra, 1872).

    Dessa maneira, pelo Regulamento de 1874, os militares, alm doscursos de Infantaria, Cavalaria e Artilharia, passaram a ter tambm naEscola Militar os cursos de Estado-Maior e Engenharia.

    Com o passar do tempo, o aspecto escola de engenharia sobrepujouo aspecto escola de aplicao militar. Nascida como escola de prticasmilitares, em 1855, a Escola Militar da Praia Vermelha se caracteriza,

    Beatriz R. da Costa e Cunha

    R. bras. Est. pedag., Braslia, v. 89, n. 222, p. 352-364, maio/ago. 2008.

  • 361

    aps 1874, por ser um centro de estudos de engenharia num nvelaltamente terico, sobretudo pelos estudos de Matemtica, o que a levoua ser chamada pelos alunos o Tabernculo da Cincia, num ambientede profundo cientificismo.

    Houve ainda, em decorrncia do citado regulamento, um incrementodos estudos preparatrios, que, transformados em Escola Preparatria,anexa Escola Militar, seguiam o mesmo regime de internato e dedisciplina militar. Os estudos preparatrios constavam de trs anos, trans-formando-se, na prtica, em um verdadeiro curso secundrio, onde osalunos tinham as seguintes matrias: no 1 ano, Gramtica Portuguesa,Francs, Aritmtica, Geografia e Desenho Linear; no 2, Lngua Verncula,Francs, Ingls, Histria Antiga, lgebra elementar e Desenho Linear;por fim, no 3, Lngua Verncula, Ingls, Histria (Idade Mdia, Moderna,Contempornea e Ptria), Geometria, Trigonometria Plana, Desenho Lineare Geometria Prtica. Estudavam, ainda, a administrao de companhia ede corpos, e havia a instruo prtica das diferentes Armas do Exrcito,alm de ginstica, esgrima e natao.

    O exame desse currculo confirma a nfase dada naquela pocaaos estudos secundrios, que tinham um cunho fortemente literrio ehumanstico, no s pela excluso das cincias fsicas e naturais docurrculo, como pelo predomnio da Histria sobre a Geografia, pelomaior destaque conferido Histria Antiga em relao Contemporneae, tambm, pelo estudo de duas lnguas estrangeiras. (Motta, 1998,p. 162)

    J a preocupao em estabelecer quais seriam os mtodos de ensinoutilizados, os tempos de aula para as disciplinas, o nmero mnimo emximo de alunos por sala a fim de prover uma maior eficincia noaprendizado, alm de outras disposies normativas denota a intenode melhorar a qualidade do ensino ministrado no Exrcito, movimentoeste que no se restringiu aos estudos preparatrios, mas tambm sescolas regimentais e aos depsitos de instruo, num esforo claro decapacitao dos efetivos militares.

    Assim, a Escola Militar da Praia Vermelha, agora inteiramentevoltada para a formao militar, recebia alunos que optavam pela car-reira e que, convivendo sob o regime de internato, construram novasredes de sociabilidade. Como conseqncia est a formao, nos jovensoficiais, de uma identidade pautada nos valores meritocrticos e napredominncia de uma mentalidade cientificista, esta certamente sobinfluncia do impacto da penetrao no universo intelectual brasileiroda doutrina positivista e do evolucionismo, sem esquecer o papeldesempenhado por professores como Benjamin Constant.

    Consideraes finais

    Entretanto, a Escola Militar e seu regulamento seguiram sendo alvode crticas, tanto pelos que apontavam o excesso de ensino terico em

    Doutores ou soldados? O debate sobre o ensino militar no Imprio*

    R. bras. Est. pedag., Braslia, v. 89, n. 222, p. 352-364, maio/ago. 2008.

  • 362

    detrimento dos estudos tcnico-profissionais como pelos que advogavama ampliao da teoria no currculo.

    Em 1889, o ministro da Guerra, Thomaz Jos Coelho de Almeida,ainda promove a ltima, porm abrangente, reforma do Imprio no intuitode reorganizar o ensino militar, procurando dinamizar a administraoda pasta a seu encargo e atender a algumas reivindicaes antigas dacorporao, inconformada com o estado de obsolescncia do Exrcito.Entre as iniciativas dessa reforma esto a criao do Imperial ColgioMilitar e de uma Escola Militar no Cear, alm da Escola Superior deGuerra, destinada a dar instruo terica e prtica aos oficiais que hou-vessem se distinguido nas escolas militares e fossem indicados paraestudar nos cursos superiores de Artilharia, Engenharia e Estado-Maior.

    De certa forma, era o retorno situao anterior a 1874, com odesdobramento dos estudos em duas escolas. Contudo, com a precipitaodos acontecimentos polticos e a queda do regime, as mudanascurriculares nas escolas militares vigorariam por apenas um ano, sendomantidos pela Repblica o Colgio Militar e a Escola Superior de Guerra,esta at 1898.

    A despeito de sua durao efmera, a reforma de 1889 espelhou aexperincia pedaggica que vinha sendo acumulada pelo Exrcito ao lon-go do Imprio, muito embora a intelectualidade militar no tenha tidotanta participao quanto possivelmente gostaria na comisso que a for-mulou, exceo de Benjamin Constant e Roberto Trompowski,professores da Escola Militar.

    Em sua abrangncia, a referida reforma englobou todas as instnciasde ensino das quais o Exrcito se encarregou, do nvel mais elementar,como as Escolas Regimentais, especializao dos oficiais, representadapela Escola Superior de Guerra, alm de concretizar um antigo projeto dacorporao, o de uma instituio de ensino secundrio militar.

    J na Repblica, o regulamento de 1890, de Benjamin Constant, ago-ra ministro da Guerra, marcaria o pice da perspectiva positivo-cientificista.O acrscimo em anos de estudo para a formao de oficiais e o enfoqueintensivo nas cincias deram reforma de Constant uma forte coloraopositivista. Mesmo eivada de crticas ao positivismo ortodoxo que a carac-terizou, essa reforma vigorou at 1898, coincidindo com a poca de maiorpresena dos militares na vida poltica brasileira at ento.

    Referncias bibliogrficas

    ALVES, Cludia Maria Costa Alves. Cultura e poltica no sculo XIX:o Exrcito como campos de constituio de sujeitos polticos noImprio. Bragana Paulista: Editora da Universidade So Francisco, 2002.

    ANAIS DA CMARA DOS DEPUTADOS. Rio de Janeiro: TipografiaNacional, 1843-1862.

    Beatriz R. da Costa e Cunha

    R. bras. Est. pedag., Braslia, v. 89, n. 222, p. 352-364, maio/ago. 2008.

  • 363

    ANAIS DO SENADO DO IMPRIO DO BRASIL. Rio de Janeiro:Tipografia Nacional, 1851.

    BARROSO, Jos Liberato. A instruco publica no Brasil. Pelotas: Seiva,2005. Original publicado em 1867.

    BRASIL. Coleo de leis e decretos do Imprio. Disponvel em: . Acesso em:20 maio 2006.

    _______. Decreto n 634, de 20 de setembro de 1851. Criou a Escolade Aplicao do Exrcito. Disponvel em: . Acesso em: 20 maio 2006.

    _______. Decreto n 330, de 12 de abril de 1890. Regulamentou oensino militar. Disponvel em: . Acesso em: 31 maio 2006.

    _______. Decreto n 10.202, de 9 de maro de 1889. Criou o ImperialColgio Militar. Disponvel em: . Acesso em: 20 maio 2006.

    _______. Decreto n 2.116, de 1 de maro de 1858. Reforma dasEscolas Militares. Disponvel em: . Acesso em: 20 maio 2006.

    _______. Decreto n 2.422, de 18 de maio de 1859. Criou a Escolade Tiro do Campo Grande. Disponvel em: . Acesso em: 20 maio 2006.

    _______. Decreto n 3.083, de 28 de abril de 1863. Reformulou oensino militar. Disponvel em: . Acesso em: 20 maio 2006.imperial; Teatro de sombras: a poltica imperial. 4. ed. Rio de Janeiro:Civilizao Brasileira, 2003.

    ______. As foras armadas na Primeira Repblica: o poderdesestabilizador. So Paulo: Difel, 1978.

    HAIDAR, Maria de Lourdes M. O ensino secundrio no Impriobrasileiro. So Paulo: Edusp, Grijalbo, 1972.

    MOTTA, Jeovah. Formao do oficial do Exrcito: currculos e regimesna Academia Militar (1810-1944). Rio de Janeiro: Bibliex, 1998.

    SODR, Nelson Werneck. Histria militar do Brasil. Rio de Janeiro:Civilizao Brasileira, 1965.

    Doutores ou soldados? O debate sobre o ensino militar no Imprio*

    R. bras. Est. pedag., Braslia, v. 89, n. 222, p. 352-364, maio/ago. 2008.

  • 364

    SOUZA, Adriana Barreto. O Exrcito na consolidao do Imprio: umestudo histrico sobre a poltica militar conservadora. Rio de Janeiro:Arquivo Nacional, 1999.

    Beatriz Rietmann da Costa e Cunha, mestre em Educao pelaUniversidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), integrante do Ncleode Ensino e Pesquisa em Histria da Educao (Nephe) dessa Universidadee professora do Colgio Militar do Rio de Janeiro.

    Recebido em 29 de maio de 2007.Aprovado em 28 de maio de 2008.

    Beatriz R. da Costa e Cunha

    R. bras. Est. pedag., Braslia, v. 89, n. 222, p. 352-364, maio/ago. 2008.