acÃo civil pÚblica - soldados da borracha

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DEFENSORIA PÚBLICA DA UNIÃO EM BELÉM DO PARÁ DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DO PARÁ 1 EXCELENTISSÍMO SENHOR JUIZ FEDERAL DA ___ VARA DA SEÇÃO JUDICIÁRIA DO ESTADO DO PARÁ PRIORIDADE IDOSOS E confesso que, talvez, a história das migrações humanas, nas suas crônicas, jamais tenha registrado um drama de igual proporção, somente comparável com o dos judeus no seu êxodo, diáspora e perseguição milenária; com o dos povos africanos, a bordo dos navios negreiros e na escravidão das senzalas; e o das tribos indígenas, expulsas de suas terras, após a destruição de suas culturas 1 .” A DEFENSORIA PÚBLICA DA UNIÃO e a DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DO PARÁ, atuando em prol dos SOLDADOS DA BORRACHA, no uso de suas atribuições, com esteio no artigo 134, caput, da Constituição, com redação dada pela Emenda Constitucional n.º 80/2014, no art. 4º, inciso VII, da Lei Complementar n.º 80/1994, com redação dada pela Lei Complementar n.º 132/2009, e no art. 5º, II, da Lei n.º 7.347/1985, com redação dada pela Lei n.º 11.448/2007, vêm à presença de Vossa Excelência propor a presente AÇÃO CIVIL PÚBLICA COM PEDIDO DE CONCESSÃO DE MEDIDA LIMINAR 1 BENCHIMOL, Samuel. Amazônia: um pouco-antes e além-depois. Coleção Amazoniana 1. Editora Umberto Calderaro. Manaus. 1977, página 257.

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Ação Civil Pública ajuizada pela Defensoria Pública da União do Pará em prol de vítimas do recrutamento e negligência estatal de trabalhadores nos seringais durante a 2 Guerra Mundial

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  • DEFENSORIA PBLICA DA UNIO EM BELM DO PAR

    DEFENSORIA PBLICA DO ESTADO DO PAR

    1

    EXCELENTISSMO SENHOR JUIZ FEDERAL DA ___ VARA DA SEO

    JUDICIRIA DO ESTADO DO PAR

    PRIORIDADE IDOSOS

    E confesso que, talvez, a histria das migraes humanas, nas suas crnicas, jamais tenha registrado

    um drama de igual proporo, somente comparvel

    com o dos judeus no seu xodo, dispora e perseguio

    milenria; com o dos povos africanos, a bordo dos

    navios negreiros e na escravido das senzalas; e o das

    tribos indgenas, expulsas de suas terras, aps a

    destruio de suas culturas1.

    A DEFENSORIA PBLICA DA UNIO e a DEFENSORIA

    PBLICA DO ESTADO DO PAR, atuando em prol dos SOLDADOS DA

    BORRACHA, no uso de suas atribuies, com esteio no artigo 134, caput, da

    Constituio, com redao dada pela Emenda Constitucional n. 80/2014, no art.

    4, inciso VII, da Lei Complementar n. 80/1994, com redao dada pela Lei

    Complementar n. 132/2009, e no art. 5, II, da Lei n. 7.347/1985, com redao

    dada pela Lei n. 11.448/2007, vm presena de Vossa Excelncia propor a

    presente

    AO CIVIL PBLICA COM PEDIDO DE CONCESSO

    DE MEDIDA LIMINAR

    1 BENCHIMOL, Samuel. Amaznia: um pouco-antes e alm-depois. Coleo Amazoniana 1. Editora

    Umberto Calderaro. Manaus. 1977, pgina 257.

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    em face da UNIO, pessoa jurdica de Direito Pblico Interno,

    situada no endereo profissional Boulevard Castilhos Frana, 708, Campina, Belm,

    Par, CEP 66010-020, pelos fatos e fundamentos a seguir expostos:

    1 DOS FATOS

    1.1 CONTEXTUALIZAO HISTRICA

    Entre 1939 e 1945, a humanidade testemunhou a Segunda Guerra Mundial. O

    sangrento conflito teve abrangncia global, sendo polarizado por duas alianas

    militares opostas: os Aliados, formados notadamente pela Inglaterra, Unio

    Sovitica e Estados Unidos da Amrica e o Eixo, constitudo, sobretudo, pelo Reich

    Alemo, Reino da Itlia e o Imprio do Japo.

    Enquanto a Alemanha e a Itlia lanaram sua poltica expansionista em

    regies da Europa e Norte da frica, o imprio japons expandiu seus tentculos

    territoriais sobre vastas pores da sia, dominando a quase totalidade das regies

    produtoras de Borracha no Pacfico.2

    Diante desse fato, os Aliados viram-se sem fontes da matria-prima da

    borracha, a qual era uma dos mais importantes materiais empregados na indstria

    blica. De fato, o esforo de guerra, por si s, consumia rapidamente os estoques de

    matrias-primas estratgicas, sendo certo, que por conta do bloqueio japons, a

    escassez da borracha assumiu ares de desespero, a ponto de por em cheque a vitria

    sobre o Eixo.

    A fim de evitar seu colapso civil e militar, o Governo dos Estados Unidos

    passou a buscar sadas estratgicas para contornar a escassez de matrias-primas.

    2No final de 1941, os pases aliados viam o esforo de guerra consumir rapidamente seus estoques de matrias-primas

    estratgicas. E nenhum caso era mais alarmante do que o da borracha. A entrada do Japo no conflito determinou o blo-

    queio definitivo dos produtores asiticos de borracha. J no princpio de 1942, o Japo controlava mais de 97% das regi-

    es produtoras do Pacfico, tornando crtica a disponibilidade do produto para a indstria blica dos aliados. NECES, Marcus Vinicius. A herica e desprezada batalha da borracha.

    http://www2.uol.com.br/historiaviva/reportagens/a_heroica_e_desprezada_batalha_da_borracha.html

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    Atento para essa realidade, o ento Ditador Getlio Vargas lanou as

    atenes ianques para o imenso reservatrio natural de borracha da regio

    amaznica. A conduta do Governo Brasileiro objetivava no s evitar o colapso dos

    Aliados, mas garantir o monoplio do Brasil no fornecimento da produo do ltex

    e obter outras vantagens econmicas com a aproximao poltica e militar com os

    Aliados.

    Assim, a diplomacia brasileira e a norte-americana iniciaram intensas e

    regulares negociaes, que resultaram na celebrao dos acordos de Washington.

    Em relao borracha, estabeleceu-se que o governo norte-americano

    investiria maciamente no financiamento de sua produo na Amaznia e, como

    contrapartida, o Poder Executivo federal arregimentaria pessoas para trabalhar nos

    seringais.

    Surge, ento, a saga dos soldados da borracha: trabalhadores recrutados,

    em especial no Nordeste, pelo aparato repressor do Estado Novo para trabalhar,

    como seringueiros, na regio amaznica a fim de suprir as necessidades de borracha

    da mquina de guerra dos Aliados, bem como os nativos daquela regio, os quais,

    atendendo a apelo do Governo brasileiro, contriburam para esse esforo de

    guerra.

    Infelizmente, o desfecho dessa histria revela um dos mais graves episdios

    de violao a direitos humanos ocorridos em territrio nacional, por conta de

    condutas comissivas e omissivas, perpetradas por agentes pblicos federais, em

    pleno regime ditatorial do Estado Novo.

    Vtimas do recrutamento ardiloso, de condies de trabalho desumanas e de

    total abandono moral e material por vrias dcadas, os soldados da borracha

    sobreviventes e seus sucessores requerem, por meio desta ao, tutela jurdica capaz

    de recompor os direitos lesados, o que fazem nos termos da Constituio Federal de

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    1988 e dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos dos quais o Brasil

    signatrio.

    1.2 OS SOLDADOS DA BORRACHA DURANTE A SEGUNDA GUERRA

    MUNDIAL

    1.2.1 Recrutamento e falsas promessas

    Objetivando cumprir com o que fora acordado com os EUA nos famosos

    acordos de Washington, o governo federal brasileiro, ento estruturado como uma

    ditadura em moldes fascistas, iniciou o recrutamento de um grande nmero de

    brasileiros, em sua maioria, residentes na Regio Nordeste.

    Para tanto, foi instituda pelo Decreto-Lei n. 5.813, de 14 de setembro de

    1943, a Comisso Administrativa do Encaminhamento de Trabalhadores para

    a Amaznia - CAETA, que transmitiu ao Exrcito Brasileiro o nus de alistar os

    voluntrios explorao da Borracha.

    A fim de garantir o sucesso da empreitada, outro rgo, o Servio Especial

    de Mobilizao de Trabalhadores para a Amaznia - SEMTA, criou um

    departamento de propaganda, com o objetivo de persuadir, sobretudo, a mo-de-

    obra masculina para se deslocar aos seringais amaznicos. Este servio convocou

    padres, mdicos e professores para o recrutamento de todos os homens aptos ao

    grande projeto que precisava ser empreendido nas florestas amaznicas.

    Descrevendo a Amaznia como osis de fartura e prosperidade, as atividades

    de propaganda do SEMTA foram exitosas, uma vez que atraram para o

    recrutamento milhares de nordestinos abalados pelas frequentes secas e misria dos

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    sertes. Assim, um grande nmero de sertanejos se disps a ser enviado aos

    seringais amaznicos, para auxiliar os Aliados na luta contra o Eixo.

    Infelizmente, por trs das falsas promessas de vida nova, havia um contrato

    de trabalho em condies anlogas de escravos e um ambiente permeado por

    doenas tropicais e animais hostis.

    At artistas foram contratados para produzir material de divulgao para

    persuadir os nordestinos. Trabalhando no departamento de propaganda do SEMTA,

    o artista plstico suo Jean-Pierre Chabloz (1919-1984) dedicou-se criao de

    estudos, cartazes, folhetos, logomarcas, ilustraes para conferncias e a Cartilha

    do Soldado da Borracha que tinham como nico objetivo o de convencer a

    transferncia de um grande contingente de trabalhadores para a Amaznia.

    A seguir, seguem ilustraes da poca mostrando o empenho do Governo

    Federal em seduzir os trabalhadores do Nordeste para o inferno verde:

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    Segundo pesquisas histricas, os nordestinos, alm de todas as agruras pelas

    quais passavam, sofriam discriminao em razo do tipo corporal considerado

    inferior. Por isso, eram submetidos a sesses dirias de ginstica para o

    melhoramento do vigor fsico e construo da disciplina e ideologia militares.

    O recruta, aps ser adestrado e submetido ao treinamento militar, era

    embarcado na cidade de Fortaleza em modernos navios negreiros, levando

    consigo uma cala de mescla azul, blusa de morim branco, um chapu de palha, um

    par de alparcatas de rabicho, uma caneca, um prato fundo, um talher (garfo e colher

    juntos), uma rede e um saco de estopa no lugar da mala e como presente do caridoso

    presidente Getlio Vargas uma carteira de cigarros Colomy.

    Amontoados como animais de carga, muitas das vezes sofrendo fome e

    humilhaes, os soldados da borracha partiam rumo ao inferno verde. No meio do

    caminho, muitos adoeciam e tambm descobriam do perigo do navio ir a pique no

    meio do mar, caso algum dos submarino alemo o interceptasse e torpedeasse.

    1.2.2 Relaes de trabalho anlogas escravido

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    Quando chegavam aos seringais depois de uma longa viagem, de

    aproximadamente 15 a 60 dias, os soldados da borracha eram entregues ao

    seringalista com quem assinavam um contrato de trabalho padro, disciplinando as

    relaes de trabalho. O soldado comprometia-se a vender, com exclusividade, o

    produto (seringa) ao patro, mas o preo do ltex no correspondia ao esforo

    desempenhado.

    Na realidade, os trabalhadores eram reduzidos condio anloga de

    escravos, sendo proibidos de realizar culturas de subsistncia nas terras do

    seringalista, para, assim, se vincularem obrigatoriamente ao barraco e ao seu

    respectivo patro, de quem compravam os gneros alimentcios.

    Segundo o doutrinador Arthur Reis,

    os preos das mercadorias eram

    exorbitantes, razo por que o soldado da borracha encontrava um mecanismo

    estrutural que o prendia definitivamente ao seringal pela extrao do ltex. Diz o

    referido autor:

    O seringueiro era uma espcie de assalariado de um sistema absurdo. Era aparentemente livre, mas a estrutura concentracionria do seringal o

    levava a se tornar um escravo econmico do patro. Com dvida que

    crescia rapidamente, porque tudo o que se recebia no seringal era anotado

    na sua conta corrente e cobrado: mantimentos, ferramentas, tigelas,

    roupas, armas, munio, remdios, etc. (...) E no adiantava argumentar

    que o valor cobrado pelas mercadorias era cinco, ou mais vezes maior do

    que aquele praticado na cidade.3

    Essa descrio tambm foi relatada pela Revista poca,4na srie de

    reportagens, datada do ano de 2002, que denunciou o abandono sofrido pelos

    soldados da borracha sobreviventes. Vejamos:

    3 REIS, Arthur Cezar Ferreira. Seringal e o Seringueiro. 2 Ed. Manaus: Editora da Universidade do

    Amazonas, 1997, pgina 77. 4 Revista poca, n. 306. 29 de maro de 2004, PP 54-59.

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    O soldado da borracha j chegava endividado no seringal. O seringalista anotava cada centavo que gastava com o trabalhador: comida, roupa,

    arma, material de trabalho e remdio. O preo das mercadorias no

    barraco do patro era pelo menos o dobro praticado nas cidades. O

    pagamento era feito com a produo da borracha- que, essa sim, tinha a

    cotao l embaixo.

    Em sntese, o trabalhador estava sempre endividado com o patro, o qual lhe

    tomava a borracha a um preo baixo e vendia os mantimentos, instrumentos de

    trabalhos, e demais insumos a preos altos, estabelecendo a obrigatoriedade deste

    comrcio desleal. O trabalhador no podia abandonar o seringal at pagar sua

    dvida, que nunca conseguia saldar porque o patro se encarregava de que assim o

    fosse.

    Quanto jornada de trabalho, os soldados iniciavam seus trabalhos muito

    cedo. Ainda na madrugada, s quatro horas da manh, saiam de suas taperas para

    cortar e colocar as tigelas que serviam como depsito do ltex extrado nas rvores

    espalhadas no caminho de estradas abertas por elas prprias para o desempenho da

    atividade de extrao vegetal.

    No interior do seringal, os imigrantes trabalhadores, alm de sofrer

    exploraes, sofriam total restrio em sua liberdade de manifestao e expresso,

    j que no havia condies nem espao para demonstrao de insatisfao.

    Qualquer soldado da borracha que deixasse transparecer insatisfao, ou at mesmo

    buscasse desistir do trabalho, era reprimido e, muita das vezes, sofria duras

    punies por parte dos patres seringalistas. Os soldados da borracha descobriam,

    no seringal, que a palavra do patro era a lei.

    Era, ainda, proibido o seringueiro abandonar o servio ou passar para outro

    seringal pertencente a outro seringalista sem que houvesse a liquidao das contas e

    obrigaes contratuais. Relatos da antroploga Lucia Arrais Morales5 destacam:

    5 MORALES. Lucia Arrais. Vai e vem, vira e volta: as rotas dos soldados da borracha. So Paulo:

    Annablume Editora, 2002, pgina 230.

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    Os seringalistas tambm aplicava recursos (...) havia riscos no seu investimento. Alm de juros pelo capital empatado, ele tinha que contar

    com a possibilidade de doena, morte ou fuga do seringueiro. Em

    qualquer uma destas situaes, perderia dinheiro. Portanto, ele tomava

    providncias para zelar por seu investimento. Havia fora armada

    localizada em pontos estratgicos do seringal garantindo a permanncia

    da mo-de-obra e, consequentemente um nvel de produtividade que

    auferisse bons lucros. Tentativas de fuga ou apenas o desejo de saldar a

    dvida e sair do seringal eram tratadas com severas punies. Ao falarem

    sobre o que ouviram dessa poca, os soldados da borracha relataram a

    presena da instituio do tronco onde o seringueiro era amarrado

    durante dias, aoitado e deixado a merc do ataque de insetos e animais.

    Por fim, todas as solues dos conflitos ocorridos entre os contratantes

    deveriam ser dirimidos junto a Justia do Trabalho. Tratava-se, evidentemente, de

    uma soluo puramente simblica, pois esse ramo do Poder Judicirio era incipiente

    na poca.

    V-se, pois, que os soldados da borracha estavam submetidos a todo tipo de

    explorao, coao e humilhao no seu cotidiano de trabalho. Ao invs de ter um

    inimigo corporificado, esses homens enfrentavam inimigos ferozes e, muitas das

    vezes, silenciosos. Viviam batalhas dirias incomuns, tendo que superar o medo,

    a solido, o desprezo do patro, a angstia, a doena, a fome e a morte dentro das

    suas choupanas.

    Eles se tornavam refns do isolamento e, solitariamente, lutavam contra as

    adversidades encontradas na mata. Aqueles que buscavam apoio no seringalista, ao

    invs de encontrar solidariedade, recebiam palavras duras de ameaas, pois, acaso

    no cumprida a meta de produo estipulada, sofreriam graves punies, desde a

    proibio de acesso ao barraco (o que implicava na falta de gneros alimentcios

    bsicos, ou seja, na fome) at a decretao da sua morte.

    Na atividade dos soldados da borracha, destaca-se a juno dos seguintes

    fatores: grande nvel de improvisao, somado a falta de responsabilidade com as

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    vidas e destinos de milhares de famlias nordestinas, a carncia organizacional e a

    desordem administrativa, todos foram os elementos responsveis pela grande

    catstrofe que foi a atabalhoada convocao dos soldados da borracha para a

    Amaznia.

    1.2.3 O saldo da catstrofe

    Durante a Segunda Guerra Mundial, aproximadamente 60 mil soldados da

    borracha foram deslocados para a Amaznia.6 Quase metade desapareceu na selva

    ou morreu em razo das pssimas condies de transporte, do alojamento, dos

    surtos epidmicos (malria, febre amarela, beribri e ictercia), dos ataques dos

    animais e ndios e da pssima alimentao7.

    Sem qualquer demrito aos corajosos pracinhas, dados coletados poca

    mostram que, dos 20 mil combatentes brasileiros na Itlia, 465 morreram

    bravamente no conflito.8 V-se, pois, que o nmero de soldados da borracha mortos

    substancialmente superior.

    Com o trmino do conflito, os soldados da borracha sobreviventes foram

    desmobilizados. Contudo, grande parte no pde deixar os seringais, em virtude das

    astronmicas dvidas assumidas com os seringalistas/patres.

    6 Sobre as estatsticas, a antroploga Lcia Arraias Morales fala da batalha dos nmeros. Depois de

    reconhecido o desastre, os funcionrios do governo tenderam a diminuir as cifras enquanto os denunciadores

    a aumentar. As diferenas so grandes. Os primeiros afirmam terem sidos encaminhados 34,4 mil e os outros

    54,4 mil entre trabalhadores e dependentes. A prpria CPI realizada em 1946 no conseguiu chegar a uma

    concluso a este respeito. Porm, um dos grandes problemas, tanto para a pesquisa realizada pela CPI como

    para as prprias famlias dos trabalhadores, foi saber qual tinha sido o destino final de cada um dos

    trabalhadores, quantos morreram, as circunstncias de sua morte e posterior sepultamento. 7 Disponvel em http// WWW.ariquemes.com.br e WWW.geocities.com/2a_guerra/borracha.htm.

    8 Estima-se que entre 15 mil a 20 mil soldados da borracha tenham morrido nas profundezas da Amaznia.

    Para comparao, o nmero de brasileiros mortos na Batalha da Europa ficou em 465. BOTELHO, Jos Francisco. In: 10 anos de Aventuras na Histria: as reportagens fundamentais. So Paulo: Abril, 2013, p.

    110.

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    11

    O lamentvel episdio talvez seja o maior genocdio cometido dentro do

    territrio ptrio no sculo XX! So palavras do grande estudioso do tema, o

    pesquisador amaznida Samuel Benchimol testemunha ocular responsvel pela

    brilhante e premiada tese de trabalho intitulada O Cearense na Amaznia: um

    inqurito antropogeogrfico apresentada no X Congresso Brasileiro de Geografia,

    realizado no ano de 1944:

    E confesso que, talvez, a histria das migraes humanas, nas suas crnicas, jamais tenha registrado um drama de igual proporo, somente

    comparvel com o dos judeus no seu xodo, dispora e perseguio

    milenria; com o dos povos africanos, a bordo dos navios negreiros e na

    escravido das senzalas; e o das tribos indgenas, expulsas de suas terras,

    aps a destruio de suas culturas9.

    1.3 OS SOLDADOS DA BORRACHA APS A SEGUNDA GUERRA

    MUNDIAL: A OMISSO ESTADO BRASILEIRO

    1.3.1 Perodo democrtico (1946 a 1964)

    Com a queda do regime ditatorial do Estado Novo e o retorno de instituies

    democrticas com a Constituio de 1946, os apelos de milhares de Soldados da

    Borracha e de seus familiares chegaram at os gabinetes de deputados federais.

    Eram frequentes relatos de esquecimentos, de amarguras sofridas e das

    dolorosas consequncias resultantes da insalubridade e periculosidade vivificadas

    nas regies inspitas da Amaznia. Denunciava-se tambm a mortandade e a falta

    da assistncia mdica contnua e eficiente, bem como as dificuldades de

    subsistncia daqueles familiares que permaneceram na terra natal.

    9 BENCHIMOL, Samuel. Amaznia: um pouco-antes e alm-depois. Coleo Amazoniana 1. Editora

    Umberto Calderaro. Manaus. 1977, pgina 257.

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    12

    Preocupado com toda a situao originada pelo denominado Exrcito da

    Borracha, o ento deputado federal Caf Filho apresentou, no dia 3 de julho de

    1946, o requerimento n. 268/1946, objetivando a instaurao de uma Comisso

    Parlamentar de Inqurito, para apurar a situao dos que tomaram parte no

    Exrcito da Borracha, ou seja, daquelas pessoas que atenderam ao chamado

    patritico10

    .

    O deputado ressaltou nas justificativas de seu requerimento: o no

    cumprimento dos compromissos assumidos pelos agentes recrutadores dos Soldados

    da Borracha, a necessidade de apurar a forma que se deu o recrutamento, os

    contratos de trabalho injustos, a assistncia s famlias, o retorno aos lares, as

    enfermidades e a necessidade de se levantar todas as informaes necessrias para o

    esclarecimento ao pblico da situao de desgraa a que foram levados milhares de

    brasileiros, em nome da produo de matria-prima na Segunda Guerra Mundial.

    Consoante texto publicado no Dirio do Congresso Nacional11

    , o Relatrio

    Final da CPI, apresentado em reunio de encerramento ocorrida no dia 17 de

    setembro de 1946, est dividido nas seguintes partes: introduo; depoimentos;

    correspondncia; nmero de emigrantes; mortos e extraviados; o problema

    alimentar; assistncia mdica; falta de unidade nos servios; o transporte para os

    seringais; fracasso? Importncia dispendida pelos Estados Unidos; amparo aos

    desajustados e concluses.

    Nesse relatrio, podem ser destacadas os seguintes testemunhos acerca do

    descontrole do Governo Federal em relao ao recrutamento e trabalho dos soldados

    da borracha na Amaznia. Vejamos:

    Sr. Bartolomeu Guimares Falta de uma indispensvel unidade de

    comando competente e autorizado, que, subordinado ao seu controle todos esses

    10

    DIRIO DA ASSEMBLEIA NACIONAL CONSTITUINTE..., 1946, p. 256. 11

    Dirio do Congresso Nacional. Ano I. n. 3. Quinta-feira 26 de setembro de 1946, p. 37.

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    13

    departamentos, tirasse dos mesmos os grandes benefcios que esto destinados a

    prestar a Amaznia.

    Sr. Paulo Assis - O SEMTA (Servio Especial de Mobilizao de

    Trabalhadores para a Amaznia) fazia o seu trabalho, SAVA (Superintendncia de

    Abastecimento do Vale Amaznico) cuidava do abastecimento; e o SNAPP (Servio

    de Navegao e Administrao dos Portos do Par) tratava do transporte. Mas no

    havia cooperao de trabalho;

    Sr. Carvalho Leal insucesso da campanha da borracha residia no

    otimismo descabido, na incompreenso ou mesmo na ignorncia dos planificadores

    e executores da iniciativa. Seus dirigentes tudo pareciam ignorar a respeito da

    Amaznia e seu problema.

    Por sua vez, as concluses do Relatrio Final foram divididas nos seguintes

    tpicos:

    a) Nmero de emigrantes: Utilizando o cruzamento de uma informao

    repassada pelo depoente Pricles de Carvalho diretor do Departamento Nacional

    de Imigrao, com a resposta escrita prestada pelo citado departamento comisso,

    os deputados no conseguiram apresentar nenhum nmero absoluto. A estimativa

    que eles chegaram quanto ao nmero de encaminhamentos realizados pelos rgos

    oficiais foi de um pouco mais de 52.000 (cinquenta e dois mil) trabalhadores

    brasileiros, incluindo neste os familiares.

    b) Mortos e extraviados: Infelizmente outro dado importantssimo que no

    foi possvel ser apresentado ou fixado pela Comisso de Inqurito foi o nmero de

    mortos e extraviados na Batalha da Borracha.

    c) O problema alimentar: Outra concluso importante a que chegaram os

    deputados foi quanto insuficincia de alimentos durante o desenvolvimento da

    Campanha da Borracha. A falta de conhecimento e experincia do meio, dos

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    14

    costumes e da Regio Amaznica por parte da companhia americana Rubber

    Development Corporation contribuiu e muito para o agravamento deste problema.

    d) Assistncia Mdica: Com relao temtica da assistncia mdica, o

    relatrio final destacou que, muito embora os trabalhos da SESP/Servio Especial

    de Sade Pblica, devam render elogios tal ateno e cuidado especial aos Soldados

    da Borracha no puderam ser sentidos devido tamanha amplitude e as prprias

    condies geogrficas da Regio Amaznica.

    e) Falta de unidade nos servios: Outros graves problemas indicados no

    relatrio para o insucesso da campanha relacionado ao material humano foram

    falta de unidade de chefia dos servios, a ausncia de uma maior cooperao entre

    as instituies e rgos responsveis pela Campanha da Borracha e o

    desconhecimento das condies ambientais por parte das autoridades responsveis.

    f) O transporte para os seringais: Neste ponto, o relatrio frisa a grande

    quantidade de queixas e crticas quanto aos transportes que disseminaram os

    Soldados da Borracha no interior da Regio Amaznica, principalmente quanto a

    grave falha na maneira lamentvel e deficiente de transportar as pessoas recrutadas

    e suas famlias.

    g) Amparo aos desajustados: Outro importante desfecho contido no

    relatrio quanto o grande nmero de trabalhadores desviados na Regio

    Amaznica devido a sua inadaptao s condies ecolgicas e aos meios de

    trabalhos peculiares a esse territrio.

    h) Consideraes finais: o relatrio final aponta quatro concluses.

    1 - Foi das mais oportunas e proveitosas a campanha que se fez na

    Assembleia e fora dela, em torno da situao dos soldados da borracha, pois teve o mrito de despertar para o problema a ateno dos Poderes

    Pblicos que, j agora, esto diretamente interessados na sua soluo.

    2 - Impe-se, como j reconheceu o prprio governo atravs de medidas

    recentes, o amparo imediato aos soldados da borracha, que por quaisquer motivos, no se hajam ambientado na Amaznia e pretendam

  • DEFENSORIA PBLICA DA UNIO EM BELM DO PAR

    DEFENSORIA PBLICA DO ESTADO DO PAR

    15

    retornar aos pontos de origem, bem assim queles que, por doentes, no

    se acham em condies de trabalhar aps o regresso.

    3 - As famlias que ficaram no nordeste e cujos chefes pereceram no

    vale Amaznico ou ali permanecem, fazem jus, igualmente assistncia

    oficial que lhes fora prometida na fase da propaganda.

    4 - Um plano geral de Assistncia social e econmica deve ser

    elaborado e executado, sem demora, em benefcio dos que continuam

    votados produo da borracha, na selva amaznica.

    De conformidade com o resolvido pela Comisso, o presente relatrio,

    com depoimentos tomados e os documentos que acompanham, deve ser

    remetido Cmara dos Deputados, para que promova as medidas

    legislativas julgadas necessrias, enviando-se cpia de tudo, por igual, ao

    Poder Executivo, para a apurao de responsabilidades. (DIRIO DO

    CONGRESSO NACIONAL, 1946, p. 37).

    Como medida de irrecusvel justia e amparo dos Poderes Pblicos a esses

    milhares de miserveis da Batalha da Borracha, os deputados indicaram, como

    forma imediata e inadivel de soluo, o patrocnio para o retorno desses aos seus

    Estados de origem.

    Indicaram tambm como soluo a ideia trazida pelo depoente Valentim

    Bouas, que props, como medida solucionadora, a elaborao de um programa

    governamental de reajustamento econmico nos seringais para o amparo aos

    homens que ali trabalham e ou trabalhavam, custeado com os recursos oriundos do

    fundo especial do Banco da Borracha e os saldos da CAETA/Comisso

    Administrativa de Encaminhamento de Trabalhadores para a Amaznia.

    Antes mesmo do trmino dos trabalhos da CPI da Borracha, no dia 16 de

    setembro, o ento Presidente da Repblica Eurico Gaspar Dutra, utilizando da

    atribuio conferida pelo artigo 180 da Constituio Federal de 1946, autorizou,

    atravs do Decreto-lei n. 9.882, 16 de setembro de 1946, a elaborao de um

    plano de assistncia aos trabalhadores da borracha12

    .

    12

    Decreto-Lei n 9.882 de 16.09.1946. Autoriza a elaborao de um plano para a assistncia aos trabalhadores da borracha. Art. 1 O Departamento Nacional de Integrao* do Ministrio do Trabalho,

    Indstria e Comrcio e a Comisso de Controle dos Acordos de Washington do ministrio da Fazenda,

    elaboraro um plano para a execuo de um programa de assistncia imediata aos trabalhadores

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    16

    O referido decreto determinava que o Departamento Nacional de Imigrao

    do Ministrio do Trabalho, Indstria e Comrcio e a Comisso de Controle dos

    Acordos de Washington do Ministrio da Fazenda elaborassem um plano para a

    execuo de um programa de assistncia imediata aos trabalhadores encaminhados

    para o Vale Amaznico durante o perodo de intensificao da produo da

    borracha para o esforo de guerra.

    Vale destacar, ainda, que o plano deveria ser elaborado imediatamente e

    submetido aprovao do Ministro do Trabalho, Indstria e Comrcio e do

    Ministro da Fazenda. Tendo sido prevista a criao de uma comisso para a

    execuo desse plano composta pelo Diretor do Departamento Nacional de

    Imigrao e pelo Diretor Executivo da Comisso de Controle dos Acordos de

    Washington sob a presidncia do Ministro do Trabalho ou seu representante, tendo

    este ltimo responsabilidade de baixar as instrues e regulamentos de

    funcionamento desta comisso.

    Em 25 de julho de 1947, foi apresentado o Projeto de Lei n. 509/1947,

    determinando a concesso financeira aos Soldados da Borracha incapacitados e as

    famlias dos ausentes ou falecidos em virtude da mobilizao para o esforo de

    guerra na Amaznia13

    .

    V-se, portanto, que o perodo subsequente batalha da borracha foi

    marcado por atividades que, embora reconheam a grave dimenso do

    problema social, tiveram aspecto puramente formal, sem qualquer medida

    concreta de melhoria das condies de existncia dos soldados da borracha.

    Sobraram boas intenes e faltaram medidas concretas.

    A prpria Comisso Parlamentar de Inqurito, em seu relatrio final, omitiu-

    se em apontar responsveis pela catstrofe resultante da campanha da borracha e at

    encaminhados para o Vale Amaznico, durante o perodo de intensificao da produo da borracha para o

    esforo de guerra. 13

    DIARIO CONGRESSO NACIONAL, 1947, p.4081

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    17

    hoje no se sabe quantos soldados da borracha continuam desaparecidos, quantos

    foram escravizados e quantos faleceram. Violaes de Direitos Humanos que ainda

    no cessaram!

    1.3.2 Regime militar (1964-1985)

    Durante o regime militar, os soldados da borracha continuaram em situao

    de abandono e esquecimento. A viso autoritria ignorou, por completo, os

    episdios ocorridos na Amaznia, durante a Segunda Guerra Mundial.

    No poderia ser diferente. Graas ao golpe militar de 1964, autoridades com

    o mesmo perfil ideolgico das que atuaram no Estado Novo estavam novamente

    poder, engendrando projetos econmicos e migratrios, cuja metodologia autoritria

    pouco se diferenciava da que fora aplicada duas dcadas antes na Amaznia.

    Ainda sim, vozes dissidentes no se calaram. Com efeito, no decorrer da

    dcada de 1970, o deputado federal Jernimo Santana denunciou o calamitoso

    abandono sofrido pelo grande contingente humano que ainda vivia marginalizado

    na Amaznia, requerendo as devidas providncias e o amparo prometido pelo

    Estado Brasileiro.

    No seu discurso Os Soldados da Borracha proferido na Cmara dos

    Deputados na sesso de 12 de maio de 1972, ele assim denunciou a vergonhosa

    situao:

    Os contratos de trabalho foram cumpridos pelos seringueiros que prestaram seu trabalho e produziram a borracha em torno da qual foram

    mobilizados todos esses esforos; os patres, porm, nada cumpriram

    daquilo estipulado e prometido aos seringueiros. O negcio foi bom para

    os seringalistas, que dispuseram de crdito vontade e farta mo-de-

    obra, que tambm lhes era oferecida pelo governo. As levas de

    seringueiros subiam os rios e os seringalistas, a moda dos senhores de

    escravos, em cada localidade escolhiam os que mais lhes agradasse.

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    DEFENSORIA PBLICA DO ESTADO DO PAR

    18

    SEMTA, SAVA e CAETA funcionavam como navios negreiros

    transportando escravos. Os Soldados da Borracha no tinham os mesmos

    direitos dos soldados nos campos da Europa. Seus comandantes eram os

    seringalistas que se beneficiavam de seu trabalho e os exploravam de

    toda forma. E prova est nos que sobreviveram das doenas e abandono

    nos seringais, pois desafiamos que se aponte um deles que prosperou ou

    se tornou independente economicamente. Criou-se a estrutura mais

    desumana e violenta de que se d notcia em matria de relaes de

    propriedade. Nunca o seringueiro conseguiu ou conseguir alcanar a

    condio de seringalista, pois os favores governamentais no esforo de

    guerra e depois dele foram apenas para os seringalistas. (SANTANA,

    1972, p. 46-47).

    1.3.3 Constituio de 1988 aos dias atuais: medidas legislativas tmidas e pouco

    eficazes

    Com o advento da Constituio da Repblica Federativa do Brasil, de 05 de

    outubro de 1988, surgiram avanos em prol dos soldados da borracha; contudo, as

    medidas jurdicas foram tmidas em relao ao tamanho das violaes de direitos

    humanos por eles sofrida.

    Exatos 43 (quarenta e trs) anos aps as agruras sofridas por esses brasileiros

    esquecidos nos vales amaznicos, o constituinte de 1988 estabeleceu, no art. 54 do

    Ato das Disposies Constitucionais Transitrias, o benefcio assistencial aos

    Soldados da Borracha e os seus dependentes, nos seguintes termos:

    Artigo 54 Os seringueiros recrutados nos termos do Decreto-Lei n5.813, de 14 de setembro de 1943, e amparados pelo Decreto-Lei n

    9.882, de 16 de setembro de 1946, recebero, quando carentes, penso

    mensal vitalcia no valor de dois salrios-mnimos.

    1- O benefcio estendido aos seringueiros que, atendendo a apelo do

    Governo brasileiro, contriburam para o esforo de guerra, trabalhando

    na produo de borracha, na Regio Amaznica, durante a Segunda

    Guerra Mundial.

    2- Os benefcios estabelecidos neste artigo so transferveis aos

    dependentes reconhecidamente carentes.

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    19

    3- A concesso do benefcio far-se- conforme lei a ser proposta pelo

    Poder Executivo dentro de cento e cinquenta dias da promulgao da

    Constituio.

    Uma questo de ordem puramente emocional14 essa foi a justificativa dada

    pela deputada federal amazonense Beth Azize quanto ao art. 54 dos Atos de

    Disposies Constitucionais Transitrios, o qual fora aprovado no dia 21 de junho

    de 1988 pelo plenrio da Assembleia Constituinte, por 351 votos a favor, 22 contra

    e 28 abstenes. Na reportagem do jornal Correio Braziliense, na qual a deputada

    foi entrevistada, informa-se, ainda, a inexistncia de qualquer discusso sobre a

    matria da concesso da penso vitalcia aos Soldados da Borracha.

    Segundo a parlamentar amazonense, os constituintes utilizaram de um

    momento histrico para beneficiar um setor que, h mais de quatro dcadas, se

    encontrava em total abandono e que necessitava de uma medida com o carter de

    justia social.

    Em seguida, foi editada a Lei n 7.986, de 28 de dezembro de 1989, que

    regulamenta o art. 54 do ADCT. Tal lei foi alterada pela Medida Provisria n.

    1.663-15, de 22 de outubro de 1998, posteriormente, convertida na Lei n.

    9.711/1998, onde passou a se exigir a apresentao de incio de prova documental

    para a concesso do benefcio.

    Tal exigncia, praticamente, inviabilizou a concesso do benefcio aos

    seringueiros, pois muitos desses ex-combatentes no possuem quaisquer

    documentos exigidos para a comprovao de sua condio. E, em situao pior,

    ficaram as vivas, j que a maior parte dessas senhoras analfabetas encontram todo

    o tipo de dificuldades para comprovar que seus esposos foram alistados como

    Soldados da Borracha na poca da Segunda Guerra Mundial.

    14

    AZIZE, Beth. Correio Braziliense, Braslia, n 9197, pgina 4, 22-6-1988. Disponvel em: http://www2.senado.gov.br/bdsf/item/id/121577 Acesso em agosto de 2012.

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    20

    Finalmente, no dia 5 de novembro de 2013, o Plenrio da Cmara dos

    Deputados aprovou a Proposta de Emenda Constituio (PEC) n. 346/2013,

    sugerida pelo lder do governo o deputado Arlindo Chinaglia em desconsiderao

    antiga PEC n. 556/2002, apresentada pela Senadora Vanessa Graziotin, a qual tinha

    o aval das associaes de soldados da borracha.

    Meses depois viria a ser promulgada a Emenda Constitucional n. 78, de 14

    de maio de 2014, que d nova redao ao caput do art. 54 do ADCT e acrescenta

    art.54-A. Aps essa emenda, ficou positivada a concesso de uma indenizao de

    R$ 25 mil reais e a fixao da penso mensal vitalcia em R$1.500,00, resultando

    em aumento concreto de apenas R$144,00 aos cerca de 12 mil soldados da

    borrachas vivos e seus dependentes.

    Aparentemente e sem a devida profundidade na anlise do assunto, uma

    grande parte da populao pode estar pensando que os soldados da borracha tm e

    muito a comemorar com a promulgao da EC n. 78/2014, a qual saldaria as

    dvidas social, patritica e histrica com esse segmento.

    Ledo engano pensar desta maneira! que o ideal de justia para os soldados

    da borracha e para seus dependentes consiste em obter tratamento jurdico em

    patamar similar aos direitos dos pracinhas ou mesmo de outros grupos de pessoas

    que foram vtimas de violncias praticadas pelo Estado Brasileiro, a exemplo dos

    anistiados polticos e dos parentes de desaparecidos polticos, durante o regime

    ditatorial ps-1964.

    Assim, a Emenda Constitucional n. 78/2014 no representou a redeno dos

    soldados da borracha, mas um engodo simblico incapaz de trazer efetiva reparao

    s feridas do passado, uma vez que a indenizao nela prevista tem valor irrisrio.

    1.4 DA DESIGUALDADE DE TRATAMENTO ENTRE OS PRACINHAS E

    OS SOLDADOS DA BORRACHA

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    21

    Assim como aquelas pessoas recrutadas para a extrao do ltex/seringa na

    regio amaznica, os ex-combatentes da Fora Expedicionria Brasileira,

    conhecidos como pracinhas, participaram ativamente da campanha criada pelo

    governo brasileiro para auxiliar nas atividades em prol dos Aliados durante a

    Segunda Guerra Mundial.

    Os pracinhas foram recrutados e/ou arregimentados por instituies oficiais

    brasileiras, receberam tratamento diferenciado para atuarem em favor da causa

    aliada na guerra, alm de terem suas tarefas e trabalhos estimulados e vinculados ao

    patriotismo e ao dever de contribuir com o seu pas durante um perodo de exceo.

    Nos idos dos anos de 1942, o que os diferenciavam dos soldados da borracha

    era apenas o lugar de atuao: as pessoas que se tornaram soldados da borracha

    foram encaminhadas para os seringais amaznicos e aqueles que escolheram se

    tornar pracinhas foram designados para exercerem suas atividades no front da Itlia.

    Contudo, a legislao que sucedeu ao perodo da Segunda Guerra foi

    responsvel por abrir um grande fosso entre o tratamento oferecido pelo Brasil aos

    pracinhas e aos soldados da borracha.

    Os seringueiros que foram convocados para trabalhar na Amaznia, tendo em

    vista o acordo firmado pelo governo brasileiro e americano, que foi homologado por

    meio do Decreto-Lei n 5.813, de 14 de setembro de 1943, no tiveram assegurados

    nessa legislao qualquer direito quanto do trmino do auxlio prestado causa

    Aliada. Neste decreto, apenas ficou estabelecida a estrutura administrativa da

    Comisso Administrativa de Encaminhamento de Trabalhadores para a Amaznia

    CAETA.

    A primeira norma editada para assegurar direitos aos ex-combatentes foi a

    Lei n 1.147, de 25 de junho de 1950, que estabeleceu as seguintes medidas de

    amparo e assistncia: (i) financiamento em condies vantajosas por meio de

  • DEFENSORIA PBLICA DA UNIO EM BELM DO PAR

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    22

    instituto de previdncia para aquisio ou construo de moradia; (ii) doao de

    terrenos pela Unio para aqueles no beneficiados pelo referido financiamento; (iii)

    preferncia no acesso a empregos pblicos, mediante concurso; e (iv) preferncia na

    matrcula dos estabelecimentos de ensino pblico para o ex-combatente e seus

    filhos.

    Em seguida, a Constituio Federal de 1967, em seu art. 178, assegurou ao

    ex-combatente os seguintes direitos: (i) estabilidade, se funcionrio pblico; (ii)

    aproveitamento no servio pblico, sem a exigncia de concurso; (iii) aposentadoria

    com proventos integrais aos 25 anos de servio efetivo, tanto na Administrao

    pblica quanto iniciativa privada; (iv) promoo, aps interstcio legal e se

    houvesse vaga; e (v) assistncia mdica, hospitalar e educacional, se carente de

    recursos.

    Numa comparao entre os direitos dos Soldados da Borracha e dos Ex-

    Combatentes da 2 Guerra Mundial observamos que:

    A Lei n 5.315, de 12 de setembro de 1967, que dispe sobre os ex-

    combatentes da Segunda Guerra Mundial, foi editada para regulamentar o art. 178

    da Constituio do Brasil de 1967, tendo sido recepcionada em parte pela

    Constituio Federal de 1988. A norma em questo definiu com detalhes quem so

    os ex-combatentes e seus direitos garantidos na Constituio.

    Foi acrescida mais uma garantia aos ex-combatentes, por meio da Lei n

    5.507, de 10 de outubro de 1968, que estabeleceu prioridade para matrcula nos

    estabelecimentos de ensino pblico de curso mdio e disps sobre a concesso de

    bolsas de estudo para os filhos de ex-combatentes e rfos menores carentes de

    recursos.

    Em seguida, foi editada a Lei n 5.698, de 31 de agosto de 1971, que dispe

    sobre as prestaes devidas a ex-combatente segurado da previdncia social, norma

    essa recepcionada pela Constituio Federal de 1988. A referida legislao detalha a

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    23

    relao do ex-combatente com o regime geral da previdncia social e a forma de

    clculo dos benefcios em razo da garantia de aposentadoria integral aos 25 anos

    de servio.

    Na Constituio Federal de 1988, foram mantidos os direitos ao

    aproveitamento no servio pblico sem concurso, assistncia mdica, hospitalar e

    educacional e aposentadoria aos 25 anos de servio e acrescidas s seguintes

    garantias no art. 53 do Ato das Disposies Constitucionais Transitrias: (i) penso

    especial correspondente deixada por segundo-tenente, transfervel ao dependente e

    (ii) prioridade na aquisio da casa prpria.

    Por fim, para regulamentar a penso especial devida ao ex-combatente, foi

    editada a Lei n 8.059, de 4 de julho de 1990.

    Vale ainda destacar a existncia de memorial construdo pelo Governo

    Federal Brasileiro e que se destina a homenagear todos aqueles expedicionrios

    brasileiros que foram mortos no front da Itlia. Lugar de grande simbolismo ptrio,

    onde se dedica a cultivar a memria histrica desses bravos brasileiros.

    Trata-se de um Monumento aos Pracinhas ou Monumento aos Mortos da

    Segunda Guerra Mundial que desponta na paisagem do Parque e Aterro do

    Flamengo na cidade do Rio de Janeiro. Dentro da construo existe um pequeno

    museu, com fotos, peas e artefatos usados pelos pracinhas durante a Segunda

    Guerra Mundial. O local contm tambm os nomes de todos os soldados que

    tombaram na guerra na Europa, lutando pela Fora Expedicionria Brasileira.

    No local ainda esto sepultados os restos mortais dos soldados brasileiros

    que tombaram na campanha da Itlia, e que anteriormente estiveram sepultados

    naquele pas. Outra homenagem de grande simbolismo ptrio a participao dos

    ex-combatentes expedicionrios ainda vivos no desfile em que comemora a

    independncia do Brasil (o desfile de Sete de Setembro).

  • DEFENSORIA PBLICA DA UNIO EM BELM DO PAR

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    24

    Por outro lado, sem qualquer tipo de honrarias militares (participao no

    desfile da independncia - 7 de setembro) e sem resgate da memria histrica

    nacional (seja atravs de mausolus ou de monumentos que busquem cultivar o

    civismo e o patriotismo das geraes que sucederam, seja atravs dos livros oficiais

    da Histria Brasileira) esto os soldados da borracha ainda vivos.

    A situao desses idosos calamitosa e de completo abandono por parte das

    autoridades do nosso pas. Estas que, infelizmente, pouco conhecem a histria da

    importante participao dos soldados da borracha na Segunda Guerra Mundial e,

    por isso, no buscam tambm valorizar a figura destes heris nacionais.

    Note-se que, enquanto os pracinhas foram recebidos como heris nacionais,

    foram includos no servio pblico, tiveram acesso aos hospitais pertencentes ao

    Ministrio da Defesa, receberam salrios e atualmente percebem aposentadoria

    correspondente ao soldo militar de um segundo-tenente, os soldados da borracha

    ainda vivos s a partir da Constituio de 1988, exatos quarenta e trs anos depois

    do fim da Segunda Guerra Mundial, passaram a receber um benefcio assistencial na

    forma de penso vitalcia correspondente a dois salrios-mnimos (ADCT - art. 54)

    e, ainda sim, tendo que cumprir o requisito legal irrazovel de apresentar incio de

    prova material, consideradas as condies fticas que envolve o caso.

    Por fora da Emenda Constitucional n. 78, de 14 de maio de 2014, que d

    nova redao ao caput do art. 54 do ADCT, previu-se a concesso de indenizao

    de R$ 25 mil reais. Trata-se de beneplcitos irrisrios quando comparados aqueles

    conferidos aos soldados que foram para o front .

    1.5 EPLOGO FTICO

    A atual situao dos Soldados da Borracha de completo abandono. Toda a

    explorao, coisificao e humilhao por eles sofrida no foi capaz de sensibilizar

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    25

    os mandatrios da nao e as maiorias parlamentares no sentido de implementar

    mudanas concretas para reverso da dura realidade enfrentada pelo grande

    contingente de flagelados.

    Uma concluso salta aos olhos: o governo brasileiro, durante a Guerra,

    preocupou-se, unicamente, com a produo de borracha, esquecendo-se da situao

    dos trabalhadores, enquanto seres humanos dotados de dignidade.

    Aps o conflito, os sobreviventes foram relegados prpria sorte. Sequer

    houve responsabilizao das autoridades pblicas e privadas que engendraram a

    catstrofe descrita nesta pea e que foi to bem analisada no relatrio final da

    Comisso Parlamentar de Inqurito sobre a campanha da borracha.

    Mesmo com a Constituio Federal de 1988, as medidas assistenciais no se

    efetivaram, sendo irrisria a indenizao prevista na Emenda Constitucional n. 78,

    de 14 de maio de 2014, a qual no foi capaz de recompor a dvida da Repblica

    Federativa do Brasil para com os nordestinos utilizados na explorao da borracha

    durante a Segunda Guerra Mundial.

    Os soldados da borracha tambm so verdadeiras vtimas da Segunda Guerra

    Mundial e da ditadura de inspirao fascista conhecida como Estado Novo, cujo

    ultraje amargado tambm tem que ser reparado pela parte r.

    2 DOS DIREITOS

    2.1 CONSIDERAES PROCESSUAIS PRELIMINARES SOBRE A

    PRESENTE AO CIVIL PBLICA

    2.1.1 Da legitimidade ativa da Defensoria Pblica

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    DEFENSORIA PBLICA DO ESTADO DO PAR

    26

    Nos termos do art. 134 da Constituio Federal de 1988, a Defensoria Pbli-

    ca instituio essencial funo jurisdicional do Estado, tendo como misso ga-

    rantir assistncia jurdica integral e gratuita aos necessitados.

    Atualmente, a atuao cvel da Defensoria Pblica no se limita mera

    propositura de aes ou elaborao de defesas e recursos em processos

    individuais, podendo alcanar a tutela jurisdicional de direitos difusos, coletivos e

    individuais homogneos.

    De fato, aps alterao promovida pela Lei n. 11.448, de 15/01/2007, o art.

    5, inciso II, da Lei n. 7.347/1985 passou, expressamente, a contemplar essa

    instituio como legitimada ativa para a propositura da ao civil pblica.15

    Na realidade, antes mesmo dessa inovao legislativa, havia precedentes

    reconhecendo a legitimidade ativa da Defensoria Pblica para o ajuizamento de

    aes civis pblicas. Entendia-se que, sendo legitimados a Unio e os Estados, as

    Defensorias Pblicas respectivas, na condio de rgos daquelas pessoas jurdicas

    de direito pblico, tambm poderiam ingressar com aes coletivas em juzo.16

    Da

    mesma forma, os intrpretes se valiam da redao elstica do art.82, III, do CDC. 17

    A abertura das portas do microssistema processual coletivo s Defensorias

    Pblicas igualmente encontra-se prevista no art. 4, inciso VII, da Lei

    Complementar n. 80/1994, com redao dada pela Lei Complementar n. 132/2009,

    verbis:

    Art. 4 So funes institucionais da Defensoria Pblica, dentre outras:

    15

    Art. 5 Tm legitimidade para propor a ao principal e a ao cautelar:

    [] II - a Defensoria Pblica; (Redao dada pela Lei n 11.448, de 2007) 16

    Neste sentido: REsp 912849/RS, Rel. Min. Jos Delgado, 1 Turma, julgado em 26/02/2008, DJe

    28/04/2008 17

    Art. 82. Para os fins do art. 81, pargrafo nico, so legitimados concorrentemente: [] III - as entidades e rgos da Administrao Pblica, direta ou indireta, ainda que sem personalidade jurdica, especificamente destinados defesa dos interesses e direitos protegidos por este cdigo;

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    DEFENSORIA PBLICA DO ESTADO DO PAR

    27

    [] VII promover ao civil pblica e todas as espcies de aes capazes de propiciar a adequada tutela dos direitos difusos, coletivos ou

    individuais homogneos quando o resultado da demanda puder beneficiar

    grupo de pessoas hipossuficientes;

    Por fim, por fora da Emenda Constitucional n. 80, de 04 de junho de 2014,

    o art. 134, caput, da Constituio Federal passou a ter a seguinte redao:

    Art. 134. A Defensoria Pblica instituio permanente, essencial

    funo jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, como expresso e

    instrumento do regime democrtico, fundamentalmente, a orientao

    jurdica, a promoo dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus,

    judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma

    integral e gratuita, aos necessitados, na forma do inciso LXXIV do art. 5

    desta Constituio Federal.

    Nota-se, portanto, que a atribuio de defesa dos direitos coletivos passou a

    ter envergadura constitucional, o que afasta qualquer dvida, por ventura ainda

    existente, sobre a constitucionalidade da legislao que legitima a Defensoria

    Pblica para ajuizar aes civis pblicas.

    Portanto, todos esses dispositivos legais e constitucionais tornaram clara a

    seguinte regra jurdica: a Defensoria Pblica tem legitimidade para patrocinar

    interesses de necessitados por meio de demandas coletivas.

    Aqui, dvidas no h de que os soldados da borracha vivos e os dependentes

    daqueles falecidos so pessoas em situao de hipossuficincia econmica

    (necessitados), eis que a renda mdia de seus ncleos familiares gira em torno de

    dois salrios-mnimos (art. 54 do ADCT).

    Tais pessoas tem idade mdia de 85 anos e, em sua maioria, vivem nas zonas

    rurais de baixo IDH na regio Amaznica ou no Nordeste. Para elas o acesso

    justia extremamente difcil, seno impossvel por meio da advocacia privada,

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    28

    razo por que os soldados da borracha e seus dependentes so um grupo de pessoas

    com o perfil de assistidos da Defensoria Pblica.

    2.1.2 Abrangncia territorial da deciso: eficcia nacional da sentena coletiva

    Nos termos do art. 16 da Lei n. 7.347/1985 (Lei da Ao Civil Pblica), na

    redao que lhe foi dada pela Lei n. 9.494/1997, estabeleceu-se que a "a sentena

    civil far coisa julgada erga omnes, nos limites da competncia territorial do rgo

    prolator [...]". V-se, pois, que o legislador criou uma restrio aos efeitos da

    sentena proferida no julgamento de pedidos contidos em aes civis pblicas.

    Na prtica, se um juiz federal de uma dada Seo Judiciria, por exemplo,

    profere uma sentena coletiva no julgamento de ao civil pblica, os efeitos do

    decisium seriam restritos ao mbito territorial dessa Seo Judiciria, englobando

    somente as pessoas fsicas e jurdicas l residentes, bem como rgos e entidades

    pblicas l existentes.

    Com isso, buscou o legislador, animado por esprito conservador, evitar que

    uma sentena coletiva tenha efeitos mais amplos, como regionais ou nacionais. A

    deciso, portanto, deve ficar acantonada aos limites territoriais da competncia do

    juzo, no podendo abranger limites alm de sua jurisdio.

    No preciso muito esforo para perceber que se trata de disposio

    processual que, se interpretada em sua literalidade e fora de contexto, esvazia por

    completo a razo de ser dos processos coletivos (celeridade e economia processuais,

    evitando o efeito multiplicador de demandas). Nesse sentido, vejam-se as lies de

    Leonel Ricardo Barros:

    A necessidade de reconhecimento de maior extenso aos efeitos da

    sentena coletiva consequnciada da indivisibilidade dos interesses

    tutelados (material ou processual [no caso especfico dos direito

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    DEFENSORIA PBLICA DO ESTADO DO PAR

    29

    individuais]), tornando impossvel cindir os efeitos da deciso judicial,

    pois a leso a um interessado implica leso a todo, e o proveito a um a

    todos beneficia. a indivisibilidade do objeto que determina a extenso

    dos efeitos do julgado a quem no foi parte no sentido processual, mas figura como titular dos interesses em conflito

    18.

    Dentro de uma perspectiva constitucional, a interpretao literal do art. 16 da

    Lei n. 7.347/1985 viola o princpio do acesso justia, sendo curial reconhecer a

    inconstitucionalidade material dessa limitao da atuao jurisdicional, uma vez que

    a Constituio de 1988, em seu art. 5, XXXV, reconhece o direito ao coletiva.

    Nesse passo, considerando que os soldados da borracha e seus dependentes

    encontram-se dispersos em reas do Norte (em especial, no Acre, Amazonas, Par e

    Rondnia) e do Nordeste do pas (em especial no Cear e no Maranho), sendo

    vtimas de violaes aos seus direitos bsicos ao longo dos anos, v-se que o dano

    extrapola a jurisdio da Subseo Judiciria do Par. Claramente, uma sentena

    limitada aos limites do rgo prolator seria um ato de eficcia mnima.

    Portanto, dependendo do caso concreto, os efeitos da deciso podem

    abranger todo o territrio nacional ou local diverso da jurisdio do juzo, quando o

    dano se perpetuar em mais de um municpio, dentro ou no de mesmo Estado.

    Assim, em relao abrangncia da deciso na presente ao civil pblica, a melhor

    soluo consiste na aplicao subsidiria do art. 93 da Lei n 8.078/1990 (Cdigo de

    Defesa do Consumidor):

    Art. 93. Ressalvada a competncia da Justia Federal, competente para

    a causa a justia local:

    I - no foro do lugar onde ocorreu ou deva ocorrer o dano, quando de

    mbito local;

    II - no foro da Capital do Estado ou no do Distrito Federal, para os danos

    de mbito nacional ou regional, aplicando-se as regras do Cdigo de

    Processo Civil aos casos de competncia concorrente.

    18

    LEONEL, Ricardo Barros. Manual do processo coletivo. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 259.

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    DEFENSORIA PBLICA DO ESTADO DO PAR

    30

    O emprego desse dispositivo em relao s aes civis pblicas em geral

    possui expressa autorizao no art. 21 da Lei n 7.347/1985, verbis:

    Aplicam-se defesa dos direitos e interesses difusos, coletivos e

    individuais, no que for cabvel, os dispositivos do Ttulo III da Lei n.

    8.078, de 11 de setembro de 1990, que instituiu o Cdigo de Defesa do

    Consumidor.

    Portanto, h que se observar, no efeito da sentena, no os aspectos da

    organizao judiciria (limites territoriais da comarca, da seo ou da subseo),

    mas a extenso do dano:

    (...) A regra do art. 16 da Lei 7.347/85 deve ser interpretada em sintonia

    com os preceitos contidos na Lei 8.078/90, entendendo-se que os "limites

    da competncia territorial do rgo prolator", de que fala o referido

    dispositivo, no so aqueles fixados na regra de organizao judiciria,

    mas, sim, aqueles previstos no art. 93 do Cdigo de Defesa do

    Consumidor. Assim: a) quando o dano for de mbito local, isto , restrito

    aos limites de uma comarca ou circunscrio judiciria, a sentena no

    produzir efeitos alm dos prprios limites territoriais da comarca ou

    circunscrio; b) quando o dano for de mbito regional, assim

    considerado o que se estende por mais de um municpio, dentro do

    mesmo Estado ou no, ou for de mbito nacional, estendendo-se por

    expressiva parcela do territrio brasileiro, a competncia ser do foro de

    qualquer das capitais ou do Distrito Federal, e a sentena produzir os

    seus efeitos sobre toda a rea prejudicada (...).19

    Assim, luz do dispositivo supracitado (art. 93 da lei n 8.078/1990) e do

    carter transcendente do caso, bem como dos reflexos dos danos para todo territrio

    nacional, pugna-se que a deciso a ser proferida nestes autos no reste adstrita a

    uma nica regio/ mbito da jurisdio deste Juzo, mas a todo o pas.

    19

    Nesse sentido, conferir: AG 2006.04.00.026331-1/SC, Rel. Min. Ricardo Teixeira do Valle Pereira, DJU

    01/11/2006, p. 766/768.

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    31

    2.2 DAS GRAVES VIOLAES A DIREITOS HUMANOS SOFRIDAS

    PELOS SOLDADOS DA BORRACHA

    2.2.1 Violaes Declarao Universal dos Direitos do Homem e ao Pacto

    Internacional de Direitos Civis e Polticos

    Com o trmino da Segunda Guerra Mundial, os direitos humanos passam por

    processo de positivao em tratados e convenes internacionais, com a finalidade

    de proteger e promover a dignidade humana e a paz a nvel mundial, mediante

    garantias internacionais institucionalizadas.

    Nesse contexto, o marco inicial desse processo de consolidao

    internacional dos direitos humanos a Carta das Naes Unidas de 1945.20 Em

    suas justificativas, o texto assinala a necessidade de preservar as geraes

    vindouras do flagelo da guerra e reafirmar a f nos direitos fundamentais do

    homem, na dignidade e no valor do ser humano, na igualdade de direito dos

    homens e das mulheres. Seu artigo 55, c, assinala a necessidade de os Estados

    membros das Naes Unidas favorecer o respeito universal e efetivo dos direitos

    humanos e das liberdades fundamentais para todos, sem distino de raa, sexo,

    lngua ou religio.

    A Carta das Naes Unidas no elencou um rol de direitos humanos. Em

    razo dessa omisso, em 10 de dezembro de 1948, a Assembleia Geral da ONU

    promulgou a Declarao Universal dos Direitos Humanos. Inicialmente, tratava-

    se de mera declarao de cunho poltico e moral; contudo, passou a ser reconhecida

    20

    Promulgada pelo Decreto n. 19.841, de 22 de outubro de 1945.

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    DEFENSORIA PBLICA DO ESTADO DO PAR

    32

    como fonte do direito internacional na condio de costume internacional.21

    Portanto, cuida-se de documento de indiscutvel fora normativa.

    Poucos anos depois, foram discutidos e assinados por diversas naes o

    Pacto Internacional de Direitos Civis e Polticos22

    e o Pacto Internacional de

    Direitos Econmicos, Sociais e Culturais23

    .

    Note-se que o que diferencia os Direitos Humanos dos demais direitos a

    proteo de bens bsicos, os quais favorecem qualquer plano de vida. Tais bens

    bsicos so a liberdade, a igualdade, a justia, a paz, a segurana, entre outros.

    No bastasse estar inserida na Segunda Guerra Mundial, cujas atrocidades

    so a fonte material do processo de universalizao dos humanos, a Batalha da

    Borracha e seus posteriores desdobramentos em relao aos soldados da borracha

    revelam uma srie de violaes a direitos previstos na Declarao Universal e no

    Pacto Internacional de Direitos Civis e Polticos.

    De fato, o recrutamento ardiloso dos soldados da borracha organizado pelo

    SEMTA, as condies degradantes de trabalho e o abandono estatal perpetrados

    pelo Estado brasileiro, claramente, revelam violaes aos seguintes dispositivos da

    Declarao Universal dos Direitos do Homem: a) Artigo 3: Todo o homem tem

    direito vida, liberdade e segurana pessoal; b) Artigo 4: Ningum ser man-

    tido em escravido ou servido; a escravido e o trfico de escravos esto proibidos

    em todas as suas formas; c) Artigo 5: Ningum ser submetido a tortura, nem a

    tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante.

    21

    [...] a Corte Internacional de Justia decidiu expressamente pelo carter de norma costumeira da Decla-rao Universal dos Direitos do Homem, considerada como elemento de interpretao do conceito de direi-

    tos fundamentais insculpido na Carta da ONU. RAMOS, Andr de Carvalho. O Supremo Tribunal Fede-ral e o Direito Internacional dos Direitos Humanos. In: Direitos fundamentais no Supremo Tribunal Fede-

    ral: balano e crtica. Coord.: SARMENTO, Daniel e SARLET, Ingo Wolfgang. Rio de Janeiro: Lumen Juris,

    2011, p. 05. 22

    Promulgado pelo Decreto n. 592, de 6 de julho de 1992. 23

    Promulgado pelo Decreto n. 591, de 6 de julho de 1992.

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    DEFENSORIA PBLICA DO ESTADO DO PAR

    33

    Da mesma forma, as referidas aes e omisses do poder pblico ptrio

    constituem claras violaes aos seguintes preceitos do Pacto Internacional dos

    Direitos Civis e Polticos: a) Artigo 7 (Ningum poder ser submetido tortura,

    nem a penas ou tratamento cruis, desumanos ou degradantes. Ser proibido

    sobretudo, submeter uma pessoa, sem seu livre consentimento, a experincias

    mdias ou cientficas.) e b) Artigo 8 (1. Ningum poder ser submetido

    escravido; a escravido e o trfico de escravos, em todos as suas formas, ficam

    proibidos. 2. Ningum poder ser submetido servido).

    2.2.2 Violaes Conveno Interamericana de Direitos Humanos

    A saga dos soldados da borracha tambm traz luz uma variedade de

    violaes Conveno Americana de Direitos Humanos, a qual, por ter como

    mbito o territrio americano e ser aplicada pela Corte Interamericana de Direitos

    Humanos, merece uma anlise mais minuciosa.

    De fato, o Pacto de So Jos da Costa Rica consagra, em seus artigos, o

    regime de liberdade pessoal e de justia social, fundado no respeito dos direitos

    essenciais do homem, bem como reconhece que os direitos essenciais do homem

    tem como fundamento os atributos da prpria pessoa humana, razo por que

    justificam uma proteo internacional. Mais ainda o artigo 1 determina a todos os

    Estados-partes a obrigao de respeito aos direitos e liberdades reconhecidos.

    Artigo 1. Obrigao de respeitar os direitos

    1. Os Estados-Partes nesta Conveno comprometem-se a respeitar os

    direitos e liberdades nela reconhecidos e a garantir seu livre e pleno

    exerccio a toda pessoa que esteja sujeita sua jurisdio, sem

    discriminao alguma por motivo de raa, cor, sexo, idioma, religio,

    opinies polticas ou de qualquer outra natureza, origem nacional ou

    social, posio econmica, nascimento ou qualquer outra condio

    social.

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    DEFENSORIA PBLICA DO ESTADO DO PAR

    34

    A Corte Interamericana de Direitos Humanos j se pronunciou anteriormente

    a respeito da responsabilidade internacional do Estado em relao a atos violatrios

    de direitos humanos:

    Para estabelecer se houve uma violao de direitos consagrados na Conveno, no se requer determinar, como ocorre em direito penal

    interno, a culpabilidade de seus autores, sua inteno, nem preciso

    identificar individualmente os agentes aos quais se atribui os fatos

    violatrios. suficiente a demonstrao de que houve apoio ou

    tolerncia do poder pblico na infrao dos direitos reconhecidos na

    Conveno. Ademais, tambm se compromete a responsabilidade

    internacional do Estado quando este no realiza as atividades

    necessrias, de acordo com seu direito, para identificar e no caso, punir

    os autores das prprias violaes.24

    O artigo acima mencionado estabelece claramente a obrigao do Estado de

    respeitar os direitos e liberdades reconhecidos na Conveno e garantir o seu livre e

    pleno exerccio a toda a pessoa a que esteja sujeita a sua jurisdio, de tal modo que

    toda violao dos direitos reconhecidos na Conveno que possam ser atribudos,

    conforme as normas de direito internacional, ao ou omisso de qualquer

    autoridade pblica, constitui um ato de responsabilidade do Estado, conforme j se

    manifestou a prpria Comisso Interamericana25

    :

    O Estado est, por outro lado, obrigado a investigar toda situao em que se tenha violado os direitos humanos protegidos pela Conveno. Se

    o aparato do Estado atua de modo que tal violao reste impune e no se

    restabelea o quanto possvel, a vtima na plenitude de seus direitos,

    pode-se afirmar que se descumpriu o dever de garantir o livre exerccio

    das pessoas sujeitas a sua jurisdio.

    24

    Corte Interamericana de Direitos Humanos, Caso Paniagua Morales y otros, sentena de 8 de maro de

    1998. 25

    Caso Velasquez Rodriguez, sentena de 29 de julho de 1988, par.174. Caso Gondnez Cruz, sentena de 20

    de janeiro de 1989, par. 187.

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    DEFENSORIA PBLICA DO ESTADO DO PAR

    35

    No mbito da referida Conveno, as obrigaes constantes dos artigos 1.1 e

    2 constituem a base para a determinao de responsabilidade internacional de um

    Estado. O artigo 1.1 da Conveno atribui aos Estados Partes os deveres

    fundamentais de respeitar e de garantir os direitos, de tal modo que todo menoscabo

    aos direitos humanos reconhecidos na Conveno que possa ser atribudo, segundo

    as normas do direito internacional, ao ou omisso de qualquer autoridade

    pblica, constitui fato imputvel ao Estado, que compromete sua responsabilidade

    nos termos dispostos na mesma Conveno.

    2.2.2.1 Direito vida

    O artigo 4 da Conveno Interamericana de Direitos Humanos determina o

    respeito ao Direito vida, sem que haja qualquer tipo de discriminao por

    condio social: Toda pessoa tem o direito de que se respeite sua vida.

    A Corte Interamericana reiteradamente afirma que o direito vida um

    direito humano fundamental, cujo gozo constitui um pr-requisito para o desfrute de

    todos os demais direitos do ser humano. Em razo do carter fundamental do direito

    vida, no so admissveis enfoques restritivos a tal direito26

    .

    Em virtude deste papel fundamental que se atribui ao direito vida na

    Conveno, a Corte tem reiteradamente afirmado em sua jurisprudncia que os

    Estados tm a obrigao de garantir a criao das condies necessrias para que

    26

    Cf. Caso Balden Garca; Caso Comunidade Indgena Sawhoyamaxa; Caso do Massacre de Pueblo Bello;

    Caso do Massacre de Mapiripn;Caso Comunidade Indgena Yakye Axa; Caso Huilca Tecse, Sentena de 3

    de maro de 2005. Srie C, n 121, par. 65 e 66; Caso Instituto de Reeducao do Menor. Sentena de 2 de setembro de 2004. Srie C, n 112, par. 156 e 158; Caso dos Irmos Gmez Paquiyauri. Sentena de 8 de

    julho de 2004. Srie C, n 110, par. 128 e 129 ; Caso 19 Comerciantes. Sentena de 5 de julho de 2004. Srie

    C, n 109, par. 153; Caso Myrna Mack Chang. Sentena de 25 de novembro de 2003. Srie C, n 101, par.

    152 e 153; Caso Juan Humberto Snchez; e Caso dos Meninos de Rua (Villagrn Morales e outros) . Sentena de 19 de novembro de 1999. Srie C, n 63, par. 144.

  • DEFENSORIA PBLICA DA UNIO EM BELM DO PAR

    DEFENSORIA PBLICA DO ESTADO DO PAR

    36

    no se produzam violaes a esse direito inalienvel e, em particular, o dever de

    impedir que seus agentes atentem contra ele.

    Observa-se que o artigo 4 do Pacto de So Jos da Costa Rica garante, em

    essncia, no somente o direito de todo ser humano de no ser privado da vida

    arbitrariamente, mas tambm o dever dos Estados de adotar as medidas necessrias

    para criar um marco normativo adequado que dissuada qualquer ameaa ao direito

    vida; estabelecer um sistema de justia efetivo, capaz de investigar, castigar e

    reparar toda privao da vida por parte de agentes estatais ou particulares; e

    salvaguardar o direito de que no se impea o acesso a condies que assegurem

    uma vida digna, o que inclui a adoo de medidas positivas para prevenir a violao

    desse direito.27

    A Corte Interamericana tem subscrito sistematicamente sobre o carter

    especial dos direitos vida e a um tratamento humano. Vejamos:

    Los derechos a la vida a un trato humano son centrales para la Convencin [Americana]. De acuerdo con el Artculo 27(2) de dicho tratado, esos derechos

    forman parte del ncleo no derogable, porque han sido establecidos como

    derechos que no pueden ser suspendidos en caso de guerra, peligro u otras

    amenazas a la independencia o seguridad de los Estados partes.28

    Como o direito a vida to essencial para o exerccio de todos os demais

    direitos, o Estado tem uma obrigao particular de proteg-lo e preserv-lo, assim

    como de evitar a sua violao. Tambm faz parte do entendimento da Corte:

    27

    Cf. Caso Balden Garca; Caso Comunidade Indgena Sawhoyamaxa; Caso do Massacre de Pueblo Bello; Caso do Massacre de Mapiripn; Caso Comunidade Indgena Yakye Axa; Caso Huilca Tecse, Sentena de 3

    de maro de 2005. Srie C, n 121, par. 65 e 66; Caso Instituto de Reeducao do Menor. Sentena de 2 de setembro de 2004. Srie C, n 112, par. 156 e 158; Caso dos Irmos Gmez Paquiyauri. Sentena de 8 de

    julho de 2004. Srie C, n 110, par. 128 e 129 ; Caso 19 Comerciantes. Sentena de 5 de julho de 2004. Srie

    C, n 109, par. 153; Caso Myrna Mack Chang. Sentena de 25 de novembro de 2003. Srie C, n 101, par.

    152 e 153; Caso Juan Humberto Snchez; e Caso dos Meninos de Rua (Villagrn Morales e outros) . Sentena de 19 de novembro de 1999. Srie C, n 63, par. 144. 28

    Corte IDH, Caso de la Masacre de Pueblo Bello vs. Colombia. Sentencia de 31 de enero de 2006. Serie C

    no. 140, prr.. 219. Ver tambin: Corte IDH, Caso Bmaca Velasquez Vs. Guatemala. Sentencia de 25 de

    noviembre de 2000. Serie C No. 70.

  • DEFENSORIA PBLICA DA UNIO EM BELM DO PAR

    DEFENSORIA PBLICA DO ESTADO DO PAR

    37

    Los Estados tienen la obligacin de garantizar la creacin de las condiciones que se requieran para que no se produzcan violaciones de

    ese derecho inalienable y, en particular, el deber de impedir que sus

    agentes atenten contra l. El cumplimiento de las obligaciones impuestas

    por el artculo 4 de la Convencin Americana, relacionado con el artculo

    1.1 de la misma, no slo presupone que ninguna persona sea privada de

    su vida arbitrariamente (obligacin negativa), sino adems, a la luz de su

    obligacin de garantizar el pleno y libre ejercicio de los derechos

    humanos, requiere que los Estados adopten todas las medidas apropiadas

    para proteger y preservar el derecho a la vida (obligacin positiva). (...)

    En razn de lo anterior, los Estados deben adoptar las medidas

    necesarias, no solo a nivel legislativo, administrativo y judicial, mediante

    la emisin de normas penales y el establecimiento de un sistema de

    justicia para prevenir, suprimir y castigar la privacin de la vida como

    consecuencia de actos criminales, sino tambin para prevenir y proteger

    a los individuos de actos criminales de otros individuos e investigar

    efectivamente estas situaciones.29

    2.2.2.2 Direito integridade pessoal, honra, dignidade e proteo da famlia

    Nos termos do Artigo 5 da Conveno Interamericana, consagra-se o Direito

    integridade pessoal, segundo o qual toda pessoa tem o direito de que se respeite

    sua integridade fsica, psquica e moral.

    O direito integridade pessoal, como os outros Direitos Humanos, inerente

    pessoa com relao a sua natureza humana. Esse direito assegura a integridade

    fsica e psicolgica das pessoas e probe a ingerncia arbitrria do Estado e dos

    particulares nesses atributos individuais. Implica em um sentido positivo, i) o direito

    a gozar de uma integridade fsica, psicolgica e moral30

    e em sentido negativo, ii) o

    dever de no maltratar, no ofender, no torturar e no comprometer ou agredir a

    integridade fsica e moral das pessoas31

    .

    29

    Corte IDH. Caso de la Masacre de Pueblo Bello vs. Colombia. Sentencia de 31 de enero de 2006. Serie C

    no. 140, prr.. 120. 30

    CORTE CONSTITUCIONAL DE COLOMBIA. Sentencia T-427 de 1998. 31

    CORTE CONSTITUCIONAL DE COLOMBIA. Sentencia T-427 de 1998.

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    DEFENSORIA PBLICA DO ESTADO DO PAR

    38

    um direito que est vinculado necessariamente com a proteo dignidade

    humana e tem estreita relao com outros direitos fundamentais, como o direito

    vida e sade. Sendo tambm possvel fixar entre esses trs direitos uma diferena

    baseada no objeto jurdico protegido de maneira imediata.

    A vida protege de maneira prxima o ato de viver e a qualidade de vida das pessoas em condies de dignidade. A integridade pessoal, por sua

    vez, protege a integridade fsica e moral, a plenitude e a totalidade da

    harmonia corporal e espiritual do homem, bem como o direito sade, o

    normal funcionamento orgnico do corpo e o adequado exerccio das

    faculdades intelectuais 32.

    de tamanha importncia que a Conveno Americana o protege

    particularmente ao estabelecer a proibio da tortura, tratos cruis, inumanos e

    degradantes, assim como a impossibilidade de suspend-los durante estados de

    emergncia,33

    devendo os Estados adotar todas as medidas apropriadas para garanti-

    lo.

    A falta de respeito e a manuteno de abandono ao longo do tempo sofrida

    pelos soldados da borracha revela o indesculpvel desrespeito as leis brasileiras e a

    Conveno Americana. Situao que delata a falta de respeito com a dignidade

    humana e integridade psquica e moral dos antigos recrutados pelo governo

    brasileiro!

    Os demais direitos fundamentais, como aqueles relativos sade,

    integridade fsica e moral e ao tratamento digno no podem continuar a ser afetados

    e violentados pelo grave abandono das autoridades brasileiras. o teor do artigo 11

    da Conveno Americana de Direitos Humanos:

    32

    REYES V, Alejandra. El derecho a la integridad, p. 17-19. 33

    Artculos 5 y 27 de la Convencin Americana. Vase, adems, Caso Instituto de Reeducacin del Menor Vs. Paraguay. Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 2 de septiembre de 2004. Serie C No. 112, prr. 157.

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    39

    Artigo 11. Proteo da honra e da dignidade

    1. Toda pessoa tem direito ao respeito de sua honra e ao reconhecimento

    de sua dignidade.

    3. Toda pessoa tem direito proteo da lei contra tais ingerncias ou tais

    ofensas.

    Vale destacar que a situao enfrentada por muitas famlias de soldados da

    borracha revela tambm violao ao artigo 17 da Conveno Americana de Direitos

    Humanos (proteo da famlia), pois existem relatos e fontes histricas que

    confirmam o recrutamento pelo Governo Brasileiro de jovens com 16 anos para a

    participao na batalha da borracha34

    .

    Muitos dos soldados da borracha foram afastados dos seus entes queridos e,

    por no ter sido garantindo o retorno a sua terra natal aps o trmino da Segunda

    Guerra Mundial, mesmo sendo esse um dos compromissos assumidos pelas

    autoridades da poca, inmeros laos familiares foram rompidos.

    Infelizmente, frequente o relato de que muitos no puderam enterrar seus

    pais e irmos que faleceram com o passar dos anos, j que no sabia do paradeiro

    dos seus parentes.

    O meio familiar exerce uma das mais importantes influncias no

    desenvolvimento das capacidades cognitivas e na estruturao das caractersticas

    afetivas dos filhos. A famlia desempenha um papel de extrema importncia no

    desenvolvimento da sociedade, uma vez que atravs desta saudvel relao que se

    constroem pessoas adultas com uma determinada autoestima e onde estas aprendem

    a enfrentar desafios e a assumir responsabilidades, tendo por isso sua proteo

    consagrada tanto pelo Estado quanto pela sociedade.

    Infelizmente, o Estado Brasileiro violou o seu dever de proteo quando no

    garantiu o retorno do soldado da borracha a sua terra natal e por ter sido o vnculo

    34

    Artigo 17. Proteo da famlia1. A famlia o elemento natural e fundamental da sociedade e deve ser

    protegida pela sociedade e pelo Estado.

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    40

    familiar desfeito e s reconstitudo muitas dcadas aps. Esse grave desrespeito

    gerou graves consequncias tanto no aspecto psicolgico quanto no processo de

    desenvolvimento da sociabilidade de muitos soldados da borracha, pois, ao invs de

    eles terem asseguradas e estimuladas as ligaes afetivas entre seus familiares

    (relaes que favoreciam a aprendizagem e a formao da personalidade no

    momento em que deveria ter sido proporcionada melhores condies para os seus

    desenvolvimentos enquanto seres humanos), as autoridades brasileiras estimularam

    o abandono, a negligncia, a falta de cuidado, a revolta e no protegeram a famlia

    como deveria ter sido feita.

    As condies de abandono, o crescente embrutecimento causado pelas ms

    condies dos soldados da borracha, o desrespeito da lei, tudo isso contribuiu para a

    disseminao do sentimento de impotncia frente omisso das autoridades

    responsveis.

    2.2.2.3 Direito igualdade

    A situao dos soldados da borracha tambm revela permanentes violaes

    ao princpio da igualdade e ao dever de no-discriminao.

    Com efeito, apesar da bravura demonstrada ao participarem do recrutamento

    militar e ao executarem as atividades ordenadas, esses indivduos so, hoje, vtimas

    de grave injustia perpetrada pelas autoridades pblicas brasileiras. Enquanto aos

    ex-combatentes de operaes blicas na Europa se asseguraram diversos direitos,

    entre os quais uma penso especial de cerca de sete salrios mnimos, aos soldados

    da borracha se oferece apenas uma penso mensal correspondente a dois salrios

    mnimos conforme estabelece o art. 54 do ADCT.

    Assim, o art. 54 do ADCT norma de vis discriminatrio por estabelecer

    diferena de trato injusta no que tange ao reconhecimento financeiro entre dois

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    41

    grupos anlogos de indivduos, que contriburam para a satisfao dos interesses do

    pas, em um momento importante da histria mundial. J manifestou a Corte

    Interamericana que:

    La nocin de igualdad [...] es inseparable de la dignidad esencial de la persona, frente a la cual es incompatible toda situacin que, por

    considerar superior a un determinado grupo, conduzca a tratarlo con

    privilegio; o que, a la inversa, por considerarlo inferior, lo trate con

    hostilidad o de cualquier forma lo discrimine del goce de derechos que s

    se reconocen a quienes no se consideran incursos en tal situacin de

    inferioridad35.

    Para examinar se uma diferena de tratamento ou no discriminatria, o

    Tribunal de San Jos adota critrios de razoabilidade e de proporcionalidade.

    Emprega-se o termo distino para se referir diferena de trato admissvel, por

    atender a tais parmetros e no ofender a dignidade humana. Por sua vez, utiliza-se

    a palavra discriminao para aludir excluso ou ao privilgio que no passe no

    referido teste, violando os direitos humanos dos indivduos36

    . Em todo o caso, uma

    vez questionada a diferena de tratamento realizada pelo Estado, cabe a ele provar

    que conta com uma justificao legtima para proceder de tal maneira.

    O tratamento desigual conferido aos soldados da borracha no atende aos

    critrios acima mencionados, tratando-se de uma forma odiosa e ilegtima de

    discriminao de jure. Sem dvida, a diferena entre o valor da penso oferecida

    aos pracinhas e o valor da penso paga aos soldados da borracha desproporcional.

    O montante da renda que lhes concedida, atualmente, equivalente ao

    valor da penso paga aos trabalhadores rurais comuns, o que demonstra a fraqueza

    do ponto de vista financeiro do reconhecimento oficial das caractersticas

    35

    CORTE IDH. Propuesta de Modificacin a la Constitucin Poltica de Costa Rica Relacionada con la

    Naturalizacin. Opinin Consultiva OC-4/84 del 19 de enero de 1984. Serie A No. 4. 55. 36

    CORTE IDH. Condicin Jurdica y Derechos de los Migrantes Indocumentados. Opinin Consultiva OC-

    18/03 de 17 de septiembre de 2003. Serie A No. 18. 84.

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    42

    especiais dos servios prestados nao pelos soldados da borracha. A diferena de

    tratamento , pois, desarrazoada e desproporcional, constituindo lamentvel prtica

    discriminatria do Estado brasileiro.

    Para definir o conceito de discriminao, como o Pacto de San Jos no

    especifica o significado deste termo, a Corte Interamericana utilizou, no caso Atala

    Riffo vs. Chile37

    , a explicao dada pelo Comit de Direitos Humanos das Naes

    Unidas, de acordo com a qual o termo se refere a:

    [...] toda distincin, exclusin, restriccin o preferencia que se basen en

    determinados motivos, como la raza, el color, el sexo, el idioma, la

    religin, la opinin poltica o de otra ndole, el origen nacional o social,

    la propiedad, el nacimiento o cualquier otra condicin social, y que

    tengan por objeto o por resultado anular o menoscabar el reconocimiento,

    goce o ejercicio, en condiciones de igualdad, de los derechos humanos y

    libertades fundamentales de todas las personas38

    .

    Como se bem sabe, o princpio fundamental de proteo contra a

    discriminao deve ser aplicado no apenas em relao a cada pessoa ou indivduo,

    mas tambm e especialmente em relao aos grupos vulnerveis. Quanto aos

    motivos de discriminao, tanto a definio do Comit da ONU quanto o art. 1.1 da

    Conveno Americana elencam um rol exemplificativo de categorias protegidas.

    Ambos os documentos deixam abertos os critrios proibidos de discriminao,

    atravs da expresso outra condio social, a qual deve ser interpretada da

    maneira mais favorvel possvel39

    . Nessa categoria aberta, enquadram-se os

    soldados da borracha, que acabaram esquecidos e marginalizados pela Unio.

    37

    CORTE IDH. Atala Riffo y Nias Vs. Chile. Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia del 24 de febrero

    de 2012. Serie C No. 239. 81. 38

    NACIONES UNIDAS. Comit de Derechos Humanos. Observacin General No. 18. No discriminacin.

    10 de noviembre de 1989. CCPR/C/37. 6. 39

    CORTE IDH. Caso Atala Riffo y Nias Vs. Chile. Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia del 24 de

    febrero de 2012. Serie C No. 239. 85

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    43

    2.2.2.4 Direito Verdade e Memria

    Outrossim, o descaso e a inrcia do Poder Pblico desrespeitam e

    vilipendiam os direitos daquelas pessoas idosas que participaram da Batalha da

    Borracha, principalmente na questo da obrigao estatal de assegurar o acesso ao

    Direito Verdade e Memria.

    O Direito Verdade e Memria fundamenta-se na busca e no

    estabelecimento de uma verdade oficial sobre