acÃo civil pÚblica - soldados da borracha
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Ação Civil Pública ajuizada pela Defensoria Pública da União do Pará em prol de vítimas do recrutamento e negligência estatal de trabalhadores nos seringais durante a 2 Guerra MundialTRANSCRIPT
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DEFENSORIA PBLICA DA UNIO EM BELM DO PAR
DEFENSORIA PBLICA DO ESTADO DO PAR
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EXCELENTISSMO SENHOR JUIZ FEDERAL DA ___ VARA DA SEO
JUDICIRIA DO ESTADO DO PAR
PRIORIDADE IDOSOS
E confesso que, talvez, a histria das migraes humanas, nas suas crnicas, jamais tenha registrado
um drama de igual proporo, somente comparvel
com o dos judeus no seu xodo, dispora e perseguio
milenria; com o dos povos africanos, a bordo dos
navios negreiros e na escravido das senzalas; e o das
tribos indgenas, expulsas de suas terras, aps a
destruio de suas culturas1.
A DEFENSORIA PBLICA DA UNIO e a DEFENSORIA
PBLICA DO ESTADO DO PAR, atuando em prol dos SOLDADOS DA
BORRACHA, no uso de suas atribuies, com esteio no artigo 134, caput, da
Constituio, com redao dada pela Emenda Constitucional n. 80/2014, no art.
4, inciso VII, da Lei Complementar n. 80/1994, com redao dada pela Lei
Complementar n. 132/2009, e no art. 5, II, da Lei n. 7.347/1985, com redao
dada pela Lei n. 11.448/2007, vm presena de Vossa Excelncia propor a
presente
AO CIVIL PBLICA COM PEDIDO DE CONCESSO
DE MEDIDA LIMINAR
1 BENCHIMOL, Samuel. Amaznia: um pouco-antes e alm-depois. Coleo Amazoniana 1. Editora
Umberto Calderaro. Manaus. 1977, pgina 257.
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em face da UNIO, pessoa jurdica de Direito Pblico Interno,
situada no endereo profissional Boulevard Castilhos Frana, 708, Campina, Belm,
Par, CEP 66010-020, pelos fatos e fundamentos a seguir expostos:
1 DOS FATOS
1.1 CONTEXTUALIZAO HISTRICA
Entre 1939 e 1945, a humanidade testemunhou a Segunda Guerra Mundial. O
sangrento conflito teve abrangncia global, sendo polarizado por duas alianas
militares opostas: os Aliados, formados notadamente pela Inglaterra, Unio
Sovitica e Estados Unidos da Amrica e o Eixo, constitudo, sobretudo, pelo Reich
Alemo, Reino da Itlia e o Imprio do Japo.
Enquanto a Alemanha e a Itlia lanaram sua poltica expansionista em
regies da Europa e Norte da frica, o imprio japons expandiu seus tentculos
territoriais sobre vastas pores da sia, dominando a quase totalidade das regies
produtoras de Borracha no Pacfico.2
Diante desse fato, os Aliados viram-se sem fontes da matria-prima da
borracha, a qual era uma dos mais importantes materiais empregados na indstria
blica. De fato, o esforo de guerra, por si s, consumia rapidamente os estoques de
matrias-primas estratgicas, sendo certo, que por conta do bloqueio japons, a
escassez da borracha assumiu ares de desespero, a ponto de por em cheque a vitria
sobre o Eixo.
A fim de evitar seu colapso civil e militar, o Governo dos Estados Unidos
passou a buscar sadas estratgicas para contornar a escassez de matrias-primas.
2No final de 1941, os pases aliados viam o esforo de guerra consumir rapidamente seus estoques de matrias-primas
estratgicas. E nenhum caso era mais alarmante do que o da borracha. A entrada do Japo no conflito determinou o blo-
queio definitivo dos produtores asiticos de borracha. J no princpio de 1942, o Japo controlava mais de 97% das regi-
es produtoras do Pacfico, tornando crtica a disponibilidade do produto para a indstria blica dos aliados. NECES, Marcus Vinicius. A herica e desprezada batalha da borracha.
http://www2.uol.com.br/historiaviva/reportagens/a_heroica_e_desprezada_batalha_da_borracha.html
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Atento para essa realidade, o ento Ditador Getlio Vargas lanou as
atenes ianques para o imenso reservatrio natural de borracha da regio
amaznica. A conduta do Governo Brasileiro objetivava no s evitar o colapso dos
Aliados, mas garantir o monoplio do Brasil no fornecimento da produo do ltex
e obter outras vantagens econmicas com a aproximao poltica e militar com os
Aliados.
Assim, a diplomacia brasileira e a norte-americana iniciaram intensas e
regulares negociaes, que resultaram na celebrao dos acordos de Washington.
Em relao borracha, estabeleceu-se que o governo norte-americano
investiria maciamente no financiamento de sua produo na Amaznia e, como
contrapartida, o Poder Executivo federal arregimentaria pessoas para trabalhar nos
seringais.
Surge, ento, a saga dos soldados da borracha: trabalhadores recrutados,
em especial no Nordeste, pelo aparato repressor do Estado Novo para trabalhar,
como seringueiros, na regio amaznica a fim de suprir as necessidades de borracha
da mquina de guerra dos Aliados, bem como os nativos daquela regio, os quais,
atendendo a apelo do Governo brasileiro, contriburam para esse esforo de
guerra.
Infelizmente, o desfecho dessa histria revela um dos mais graves episdios
de violao a direitos humanos ocorridos em territrio nacional, por conta de
condutas comissivas e omissivas, perpetradas por agentes pblicos federais, em
pleno regime ditatorial do Estado Novo.
Vtimas do recrutamento ardiloso, de condies de trabalho desumanas e de
total abandono moral e material por vrias dcadas, os soldados da borracha
sobreviventes e seus sucessores requerem, por meio desta ao, tutela jurdica capaz
de recompor os direitos lesados, o que fazem nos termos da Constituio Federal de
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1988 e dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos dos quais o Brasil
signatrio.
1.2 OS SOLDADOS DA BORRACHA DURANTE A SEGUNDA GUERRA
MUNDIAL
1.2.1 Recrutamento e falsas promessas
Objetivando cumprir com o que fora acordado com os EUA nos famosos
acordos de Washington, o governo federal brasileiro, ento estruturado como uma
ditadura em moldes fascistas, iniciou o recrutamento de um grande nmero de
brasileiros, em sua maioria, residentes na Regio Nordeste.
Para tanto, foi instituda pelo Decreto-Lei n. 5.813, de 14 de setembro de
1943, a Comisso Administrativa do Encaminhamento de Trabalhadores para
a Amaznia - CAETA, que transmitiu ao Exrcito Brasileiro o nus de alistar os
voluntrios explorao da Borracha.
A fim de garantir o sucesso da empreitada, outro rgo, o Servio Especial
de Mobilizao de Trabalhadores para a Amaznia - SEMTA, criou um
departamento de propaganda, com o objetivo de persuadir, sobretudo, a mo-de-
obra masculina para se deslocar aos seringais amaznicos. Este servio convocou
padres, mdicos e professores para o recrutamento de todos os homens aptos ao
grande projeto que precisava ser empreendido nas florestas amaznicas.
Descrevendo a Amaznia como osis de fartura e prosperidade, as atividades
de propaganda do SEMTA foram exitosas, uma vez que atraram para o
recrutamento milhares de nordestinos abalados pelas frequentes secas e misria dos
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sertes. Assim, um grande nmero de sertanejos se disps a ser enviado aos
seringais amaznicos, para auxiliar os Aliados na luta contra o Eixo.
Infelizmente, por trs das falsas promessas de vida nova, havia um contrato
de trabalho em condies anlogas de escravos e um ambiente permeado por
doenas tropicais e animais hostis.
At artistas foram contratados para produzir material de divulgao para
persuadir os nordestinos. Trabalhando no departamento de propaganda do SEMTA,
o artista plstico suo Jean-Pierre Chabloz (1919-1984) dedicou-se criao de
estudos, cartazes, folhetos, logomarcas, ilustraes para conferncias e a Cartilha
do Soldado da Borracha que tinham como nico objetivo o de convencer a
transferncia de um grande contingente de trabalhadores para a Amaznia.
A seguir, seguem ilustraes da poca mostrando o empenho do Governo
Federal em seduzir os trabalhadores do Nordeste para o inferno verde:
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Segundo pesquisas histricas, os nordestinos, alm de todas as agruras pelas
quais passavam, sofriam discriminao em razo do tipo corporal considerado
inferior. Por isso, eram submetidos a sesses dirias de ginstica para o
melhoramento do vigor fsico e construo da disciplina e ideologia militares.
O recruta, aps ser adestrado e submetido ao treinamento militar, era
embarcado na cidade de Fortaleza em modernos navios negreiros, levando
consigo uma cala de mescla azul, blusa de morim branco, um chapu de palha, um
par de alparcatas de rabicho, uma caneca, um prato fundo, um talher (garfo e colher
juntos), uma rede e um saco de estopa no lugar da mala e como presente do caridoso
presidente Getlio Vargas uma carteira de cigarros Colomy.
Amontoados como animais de carga, muitas das vezes sofrendo fome e
humilhaes, os soldados da borracha partiam rumo ao inferno verde. No meio do
caminho, muitos adoeciam e tambm descobriam do perigo do navio ir a pique no
meio do mar, caso algum dos submarino alemo o interceptasse e torpedeasse.
1.2.2 Relaes de trabalho anlogas escravido
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Quando chegavam aos seringais depois de uma longa viagem, de
aproximadamente 15 a 60 dias, os soldados da borracha eram entregues ao
seringalista com quem assinavam um contrato de trabalho padro, disciplinando as
relaes de trabalho. O soldado comprometia-se a vender, com exclusividade, o
produto (seringa) ao patro, mas o preo do ltex no correspondia ao esforo
desempenhado.
Na realidade, os trabalhadores eram reduzidos condio anloga de
escravos, sendo proibidos de realizar culturas de subsistncia nas terras do
seringalista, para, assim, se vincularem obrigatoriamente ao barraco e ao seu
respectivo patro, de quem compravam os gneros alimentcios.
Segundo o doutrinador Arthur Reis,
os preos das mercadorias eram
exorbitantes, razo por que o soldado da borracha encontrava um mecanismo
estrutural que o prendia definitivamente ao seringal pela extrao do ltex. Diz o
referido autor:
O seringueiro era uma espcie de assalariado de um sistema absurdo. Era aparentemente livre, mas a estrutura concentracionria do seringal o
levava a se tornar um escravo econmico do patro. Com dvida que
crescia rapidamente, porque tudo o que se recebia no seringal era anotado
na sua conta corrente e cobrado: mantimentos, ferramentas, tigelas,
roupas, armas, munio, remdios, etc. (...) E no adiantava argumentar
que o valor cobrado pelas mercadorias era cinco, ou mais vezes maior do
que aquele praticado na cidade.3
Essa descrio tambm foi relatada pela Revista poca,4na srie de
reportagens, datada do ano de 2002, que denunciou o abandono sofrido pelos
soldados da borracha sobreviventes. Vejamos:
3 REIS, Arthur Cezar Ferreira. Seringal e o Seringueiro. 2 Ed. Manaus: Editora da Universidade do
Amazonas, 1997, pgina 77. 4 Revista poca, n. 306. 29 de maro de 2004, PP 54-59.
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O soldado da borracha j chegava endividado no seringal. O seringalista anotava cada centavo que gastava com o trabalhador: comida, roupa,
arma, material de trabalho e remdio. O preo das mercadorias no
barraco do patro era pelo menos o dobro praticado nas cidades. O
pagamento era feito com a produo da borracha- que, essa sim, tinha a
cotao l embaixo.
Em sntese, o trabalhador estava sempre endividado com o patro, o qual lhe
tomava a borracha a um preo baixo e vendia os mantimentos, instrumentos de
trabalhos, e demais insumos a preos altos, estabelecendo a obrigatoriedade deste
comrcio desleal. O trabalhador no podia abandonar o seringal at pagar sua
dvida, que nunca conseguia saldar porque o patro se encarregava de que assim o
fosse.
Quanto jornada de trabalho, os soldados iniciavam seus trabalhos muito
cedo. Ainda na madrugada, s quatro horas da manh, saiam de suas taperas para
cortar e colocar as tigelas que serviam como depsito do ltex extrado nas rvores
espalhadas no caminho de estradas abertas por elas prprias para o desempenho da
atividade de extrao vegetal.
No interior do seringal, os imigrantes trabalhadores, alm de sofrer
exploraes, sofriam total restrio em sua liberdade de manifestao e expresso,
j que no havia condies nem espao para demonstrao de insatisfao.
Qualquer soldado da borracha que deixasse transparecer insatisfao, ou at mesmo
buscasse desistir do trabalho, era reprimido e, muita das vezes, sofria duras
punies por parte dos patres seringalistas. Os soldados da borracha descobriam,
no seringal, que a palavra do patro era a lei.
Era, ainda, proibido o seringueiro abandonar o servio ou passar para outro
seringal pertencente a outro seringalista sem que houvesse a liquidao das contas e
obrigaes contratuais. Relatos da antroploga Lucia Arrais Morales5 destacam:
5 MORALES. Lucia Arrais. Vai e vem, vira e volta: as rotas dos soldados da borracha. So Paulo:
Annablume Editora, 2002, pgina 230.
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Os seringalistas tambm aplicava recursos (...) havia riscos no seu investimento. Alm de juros pelo capital empatado, ele tinha que contar
com a possibilidade de doena, morte ou fuga do seringueiro. Em
qualquer uma destas situaes, perderia dinheiro. Portanto, ele tomava
providncias para zelar por seu investimento. Havia fora armada
localizada em pontos estratgicos do seringal garantindo a permanncia
da mo-de-obra e, consequentemente um nvel de produtividade que
auferisse bons lucros. Tentativas de fuga ou apenas o desejo de saldar a
dvida e sair do seringal eram tratadas com severas punies. Ao falarem
sobre o que ouviram dessa poca, os soldados da borracha relataram a
presena da instituio do tronco onde o seringueiro era amarrado
durante dias, aoitado e deixado a merc do ataque de insetos e animais.
Por fim, todas as solues dos conflitos ocorridos entre os contratantes
deveriam ser dirimidos junto a Justia do Trabalho. Tratava-se, evidentemente, de
uma soluo puramente simblica, pois esse ramo do Poder Judicirio era incipiente
na poca.
V-se, pois, que os soldados da borracha estavam submetidos a todo tipo de
explorao, coao e humilhao no seu cotidiano de trabalho. Ao invs de ter um
inimigo corporificado, esses homens enfrentavam inimigos ferozes e, muitas das
vezes, silenciosos. Viviam batalhas dirias incomuns, tendo que superar o medo,
a solido, o desprezo do patro, a angstia, a doena, a fome e a morte dentro das
suas choupanas.
Eles se tornavam refns do isolamento e, solitariamente, lutavam contra as
adversidades encontradas na mata. Aqueles que buscavam apoio no seringalista, ao
invs de encontrar solidariedade, recebiam palavras duras de ameaas, pois, acaso
no cumprida a meta de produo estipulada, sofreriam graves punies, desde a
proibio de acesso ao barraco (o que implicava na falta de gneros alimentcios
bsicos, ou seja, na fome) at a decretao da sua morte.
Na atividade dos soldados da borracha, destaca-se a juno dos seguintes
fatores: grande nvel de improvisao, somado a falta de responsabilidade com as
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vidas e destinos de milhares de famlias nordestinas, a carncia organizacional e a
desordem administrativa, todos foram os elementos responsveis pela grande
catstrofe que foi a atabalhoada convocao dos soldados da borracha para a
Amaznia.
1.2.3 O saldo da catstrofe
Durante a Segunda Guerra Mundial, aproximadamente 60 mil soldados da
borracha foram deslocados para a Amaznia.6 Quase metade desapareceu na selva
ou morreu em razo das pssimas condies de transporte, do alojamento, dos
surtos epidmicos (malria, febre amarela, beribri e ictercia), dos ataques dos
animais e ndios e da pssima alimentao7.
Sem qualquer demrito aos corajosos pracinhas, dados coletados poca
mostram que, dos 20 mil combatentes brasileiros na Itlia, 465 morreram
bravamente no conflito.8 V-se, pois, que o nmero de soldados da borracha mortos
substancialmente superior.
Com o trmino do conflito, os soldados da borracha sobreviventes foram
desmobilizados. Contudo, grande parte no pde deixar os seringais, em virtude das
astronmicas dvidas assumidas com os seringalistas/patres.
6 Sobre as estatsticas, a antroploga Lcia Arraias Morales fala da batalha dos nmeros. Depois de
reconhecido o desastre, os funcionrios do governo tenderam a diminuir as cifras enquanto os denunciadores
a aumentar. As diferenas so grandes. Os primeiros afirmam terem sidos encaminhados 34,4 mil e os outros
54,4 mil entre trabalhadores e dependentes. A prpria CPI realizada em 1946 no conseguiu chegar a uma
concluso a este respeito. Porm, um dos grandes problemas, tanto para a pesquisa realizada pela CPI como
para as prprias famlias dos trabalhadores, foi saber qual tinha sido o destino final de cada um dos
trabalhadores, quantos morreram, as circunstncias de sua morte e posterior sepultamento. 7 Disponvel em http// WWW.ariquemes.com.br e WWW.geocities.com/2a_guerra/borracha.htm.
8 Estima-se que entre 15 mil a 20 mil soldados da borracha tenham morrido nas profundezas da Amaznia.
Para comparao, o nmero de brasileiros mortos na Batalha da Europa ficou em 465. BOTELHO, Jos Francisco. In: 10 anos de Aventuras na Histria: as reportagens fundamentais. So Paulo: Abril, 2013, p.
110.
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O lamentvel episdio talvez seja o maior genocdio cometido dentro do
territrio ptrio no sculo XX! So palavras do grande estudioso do tema, o
pesquisador amaznida Samuel Benchimol testemunha ocular responsvel pela
brilhante e premiada tese de trabalho intitulada O Cearense na Amaznia: um
inqurito antropogeogrfico apresentada no X Congresso Brasileiro de Geografia,
realizado no ano de 1944:
E confesso que, talvez, a histria das migraes humanas, nas suas crnicas, jamais tenha registrado um drama de igual proporo, somente
comparvel com o dos judeus no seu xodo, dispora e perseguio
milenria; com o dos povos africanos, a bordo dos navios negreiros e na
escravido das senzalas; e o das tribos indgenas, expulsas de suas terras,
aps a destruio de suas culturas9.
1.3 OS SOLDADOS DA BORRACHA APS A SEGUNDA GUERRA
MUNDIAL: A OMISSO ESTADO BRASILEIRO
1.3.1 Perodo democrtico (1946 a 1964)
Com a queda do regime ditatorial do Estado Novo e o retorno de instituies
democrticas com a Constituio de 1946, os apelos de milhares de Soldados da
Borracha e de seus familiares chegaram at os gabinetes de deputados federais.
Eram frequentes relatos de esquecimentos, de amarguras sofridas e das
dolorosas consequncias resultantes da insalubridade e periculosidade vivificadas
nas regies inspitas da Amaznia. Denunciava-se tambm a mortandade e a falta
da assistncia mdica contnua e eficiente, bem como as dificuldades de
subsistncia daqueles familiares que permaneceram na terra natal.
9 BENCHIMOL, Samuel. Amaznia: um pouco-antes e alm-depois. Coleo Amazoniana 1. Editora
Umberto Calderaro. Manaus. 1977, pgina 257.
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Preocupado com toda a situao originada pelo denominado Exrcito da
Borracha, o ento deputado federal Caf Filho apresentou, no dia 3 de julho de
1946, o requerimento n. 268/1946, objetivando a instaurao de uma Comisso
Parlamentar de Inqurito, para apurar a situao dos que tomaram parte no
Exrcito da Borracha, ou seja, daquelas pessoas que atenderam ao chamado
patritico10
.
O deputado ressaltou nas justificativas de seu requerimento: o no
cumprimento dos compromissos assumidos pelos agentes recrutadores dos Soldados
da Borracha, a necessidade de apurar a forma que se deu o recrutamento, os
contratos de trabalho injustos, a assistncia s famlias, o retorno aos lares, as
enfermidades e a necessidade de se levantar todas as informaes necessrias para o
esclarecimento ao pblico da situao de desgraa a que foram levados milhares de
brasileiros, em nome da produo de matria-prima na Segunda Guerra Mundial.
Consoante texto publicado no Dirio do Congresso Nacional11
, o Relatrio
Final da CPI, apresentado em reunio de encerramento ocorrida no dia 17 de
setembro de 1946, est dividido nas seguintes partes: introduo; depoimentos;
correspondncia; nmero de emigrantes; mortos e extraviados; o problema
alimentar; assistncia mdica; falta de unidade nos servios; o transporte para os
seringais; fracasso? Importncia dispendida pelos Estados Unidos; amparo aos
desajustados e concluses.
Nesse relatrio, podem ser destacadas os seguintes testemunhos acerca do
descontrole do Governo Federal em relao ao recrutamento e trabalho dos soldados
da borracha na Amaznia. Vejamos:
Sr. Bartolomeu Guimares Falta de uma indispensvel unidade de
comando competente e autorizado, que, subordinado ao seu controle todos esses
10
DIRIO DA ASSEMBLEIA NACIONAL CONSTITUINTE..., 1946, p. 256. 11
Dirio do Congresso Nacional. Ano I. n. 3. Quinta-feira 26 de setembro de 1946, p. 37.
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departamentos, tirasse dos mesmos os grandes benefcios que esto destinados a
prestar a Amaznia.
Sr. Paulo Assis - O SEMTA (Servio Especial de Mobilizao de
Trabalhadores para a Amaznia) fazia o seu trabalho, SAVA (Superintendncia de
Abastecimento do Vale Amaznico) cuidava do abastecimento; e o SNAPP (Servio
de Navegao e Administrao dos Portos do Par) tratava do transporte. Mas no
havia cooperao de trabalho;
Sr. Carvalho Leal insucesso da campanha da borracha residia no
otimismo descabido, na incompreenso ou mesmo na ignorncia dos planificadores
e executores da iniciativa. Seus dirigentes tudo pareciam ignorar a respeito da
Amaznia e seu problema.
Por sua vez, as concluses do Relatrio Final foram divididas nos seguintes
tpicos:
a) Nmero de emigrantes: Utilizando o cruzamento de uma informao
repassada pelo depoente Pricles de Carvalho diretor do Departamento Nacional
de Imigrao, com a resposta escrita prestada pelo citado departamento comisso,
os deputados no conseguiram apresentar nenhum nmero absoluto. A estimativa
que eles chegaram quanto ao nmero de encaminhamentos realizados pelos rgos
oficiais foi de um pouco mais de 52.000 (cinquenta e dois mil) trabalhadores
brasileiros, incluindo neste os familiares.
b) Mortos e extraviados: Infelizmente outro dado importantssimo que no
foi possvel ser apresentado ou fixado pela Comisso de Inqurito foi o nmero de
mortos e extraviados na Batalha da Borracha.
c) O problema alimentar: Outra concluso importante a que chegaram os
deputados foi quanto insuficincia de alimentos durante o desenvolvimento da
Campanha da Borracha. A falta de conhecimento e experincia do meio, dos
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costumes e da Regio Amaznica por parte da companhia americana Rubber
Development Corporation contribuiu e muito para o agravamento deste problema.
d) Assistncia Mdica: Com relao temtica da assistncia mdica, o
relatrio final destacou que, muito embora os trabalhos da SESP/Servio Especial
de Sade Pblica, devam render elogios tal ateno e cuidado especial aos Soldados
da Borracha no puderam ser sentidos devido tamanha amplitude e as prprias
condies geogrficas da Regio Amaznica.
e) Falta de unidade nos servios: Outros graves problemas indicados no
relatrio para o insucesso da campanha relacionado ao material humano foram
falta de unidade de chefia dos servios, a ausncia de uma maior cooperao entre
as instituies e rgos responsveis pela Campanha da Borracha e o
desconhecimento das condies ambientais por parte das autoridades responsveis.
f) O transporte para os seringais: Neste ponto, o relatrio frisa a grande
quantidade de queixas e crticas quanto aos transportes que disseminaram os
Soldados da Borracha no interior da Regio Amaznica, principalmente quanto a
grave falha na maneira lamentvel e deficiente de transportar as pessoas recrutadas
e suas famlias.
g) Amparo aos desajustados: Outro importante desfecho contido no
relatrio quanto o grande nmero de trabalhadores desviados na Regio
Amaznica devido a sua inadaptao s condies ecolgicas e aos meios de
trabalhos peculiares a esse territrio.
h) Consideraes finais: o relatrio final aponta quatro concluses.
1 - Foi das mais oportunas e proveitosas a campanha que se fez na
Assembleia e fora dela, em torno da situao dos soldados da borracha, pois teve o mrito de despertar para o problema a ateno dos Poderes
Pblicos que, j agora, esto diretamente interessados na sua soluo.
2 - Impe-se, como j reconheceu o prprio governo atravs de medidas
recentes, o amparo imediato aos soldados da borracha, que por quaisquer motivos, no se hajam ambientado na Amaznia e pretendam
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retornar aos pontos de origem, bem assim queles que, por doentes, no
se acham em condies de trabalhar aps o regresso.
3 - As famlias que ficaram no nordeste e cujos chefes pereceram no
vale Amaznico ou ali permanecem, fazem jus, igualmente assistncia
oficial que lhes fora prometida na fase da propaganda.
4 - Um plano geral de Assistncia social e econmica deve ser
elaborado e executado, sem demora, em benefcio dos que continuam
votados produo da borracha, na selva amaznica.
De conformidade com o resolvido pela Comisso, o presente relatrio,
com depoimentos tomados e os documentos que acompanham, deve ser
remetido Cmara dos Deputados, para que promova as medidas
legislativas julgadas necessrias, enviando-se cpia de tudo, por igual, ao
Poder Executivo, para a apurao de responsabilidades. (DIRIO DO
CONGRESSO NACIONAL, 1946, p. 37).
Como medida de irrecusvel justia e amparo dos Poderes Pblicos a esses
milhares de miserveis da Batalha da Borracha, os deputados indicaram, como
forma imediata e inadivel de soluo, o patrocnio para o retorno desses aos seus
Estados de origem.
Indicaram tambm como soluo a ideia trazida pelo depoente Valentim
Bouas, que props, como medida solucionadora, a elaborao de um programa
governamental de reajustamento econmico nos seringais para o amparo aos
homens que ali trabalham e ou trabalhavam, custeado com os recursos oriundos do
fundo especial do Banco da Borracha e os saldos da CAETA/Comisso
Administrativa de Encaminhamento de Trabalhadores para a Amaznia.
Antes mesmo do trmino dos trabalhos da CPI da Borracha, no dia 16 de
setembro, o ento Presidente da Repblica Eurico Gaspar Dutra, utilizando da
atribuio conferida pelo artigo 180 da Constituio Federal de 1946, autorizou,
atravs do Decreto-lei n. 9.882, 16 de setembro de 1946, a elaborao de um
plano de assistncia aos trabalhadores da borracha12
.
12
Decreto-Lei n 9.882 de 16.09.1946. Autoriza a elaborao de um plano para a assistncia aos trabalhadores da borracha. Art. 1 O Departamento Nacional de Integrao* do Ministrio do Trabalho,
Indstria e Comrcio e a Comisso de Controle dos Acordos de Washington do ministrio da Fazenda,
elaboraro um plano para a execuo de um programa de assistncia imediata aos trabalhadores
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O referido decreto determinava que o Departamento Nacional de Imigrao
do Ministrio do Trabalho, Indstria e Comrcio e a Comisso de Controle dos
Acordos de Washington do Ministrio da Fazenda elaborassem um plano para a
execuo de um programa de assistncia imediata aos trabalhadores encaminhados
para o Vale Amaznico durante o perodo de intensificao da produo da
borracha para o esforo de guerra.
Vale destacar, ainda, que o plano deveria ser elaborado imediatamente e
submetido aprovao do Ministro do Trabalho, Indstria e Comrcio e do
Ministro da Fazenda. Tendo sido prevista a criao de uma comisso para a
execuo desse plano composta pelo Diretor do Departamento Nacional de
Imigrao e pelo Diretor Executivo da Comisso de Controle dos Acordos de
Washington sob a presidncia do Ministro do Trabalho ou seu representante, tendo
este ltimo responsabilidade de baixar as instrues e regulamentos de
funcionamento desta comisso.
Em 25 de julho de 1947, foi apresentado o Projeto de Lei n. 509/1947,
determinando a concesso financeira aos Soldados da Borracha incapacitados e as
famlias dos ausentes ou falecidos em virtude da mobilizao para o esforo de
guerra na Amaznia13
.
V-se, portanto, que o perodo subsequente batalha da borracha foi
marcado por atividades que, embora reconheam a grave dimenso do
problema social, tiveram aspecto puramente formal, sem qualquer medida
concreta de melhoria das condies de existncia dos soldados da borracha.
Sobraram boas intenes e faltaram medidas concretas.
A prpria Comisso Parlamentar de Inqurito, em seu relatrio final, omitiu-
se em apontar responsveis pela catstrofe resultante da campanha da borracha e at
encaminhados para o Vale Amaznico, durante o perodo de intensificao da produo da borracha para o
esforo de guerra. 13
DIARIO CONGRESSO NACIONAL, 1947, p.4081
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hoje no se sabe quantos soldados da borracha continuam desaparecidos, quantos
foram escravizados e quantos faleceram. Violaes de Direitos Humanos que ainda
no cessaram!
1.3.2 Regime militar (1964-1985)
Durante o regime militar, os soldados da borracha continuaram em situao
de abandono e esquecimento. A viso autoritria ignorou, por completo, os
episdios ocorridos na Amaznia, durante a Segunda Guerra Mundial.
No poderia ser diferente. Graas ao golpe militar de 1964, autoridades com
o mesmo perfil ideolgico das que atuaram no Estado Novo estavam novamente
poder, engendrando projetos econmicos e migratrios, cuja metodologia autoritria
pouco se diferenciava da que fora aplicada duas dcadas antes na Amaznia.
Ainda sim, vozes dissidentes no se calaram. Com efeito, no decorrer da
dcada de 1970, o deputado federal Jernimo Santana denunciou o calamitoso
abandono sofrido pelo grande contingente humano que ainda vivia marginalizado
na Amaznia, requerendo as devidas providncias e o amparo prometido pelo
Estado Brasileiro.
No seu discurso Os Soldados da Borracha proferido na Cmara dos
Deputados na sesso de 12 de maio de 1972, ele assim denunciou a vergonhosa
situao:
Os contratos de trabalho foram cumpridos pelos seringueiros que prestaram seu trabalho e produziram a borracha em torno da qual foram
mobilizados todos esses esforos; os patres, porm, nada cumpriram
daquilo estipulado e prometido aos seringueiros. O negcio foi bom para
os seringalistas, que dispuseram de crdito vontade e farta mo-de-
obra, que tambm lhes era oferecida pelo governo. As levas de
seringueiros subiam os rios e os seringalistas, a moda dos senhores de
escravos, em cada localidade escolhiam os que mais lhes agradasse.
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SEMTA, SAVA e CAETA funcionavam como navios negreiros
transportando escravos. Os Soldados da Borracha no tinham os mesmos
direitos dos soldados nos campos da Europa. Seus comandantes eram os
seringalistas que se beneficiavam de seu trabalho e os exploravam de
toda forma. E prova est nos que sobreviveram das doenas e abandono
nos seringais, pois desafiamos que se aponte um deles que prosperou ou
se tornou independente economicamente. Criou-se a estrutura mais
desumana e violenta de que se d notcia em matria de relaes de
propriedade. Nunca o seringueiro conseguiu ou conseguir alcanar a
condio de seringalista, pois os favores governamentais no esforo de
guerra e depois dele foram apenas para os seringalistas. (SANTANA,
1972, p. 46-47).
1.3.3 Constituio de 1988 aos dias atuais: medidas legislativas tmidas e pouco
eficazes
Com o advento da Constituio da Repblica Federativa do Brasil, de 05 de
outubro de 1988, surgiram avanos em prol dos soldados da borracha; contudo, as
medidas jurdicas foram tmidas em relao ao tamanho das violaes de direitos
humanos por eles sofrida.
Exatos 43 (quarenta e trs) anos aps as agruras sofridas por esses brasileiros
esquecidos nos vales amaznicos, o constituinte de 1988 estabeleceu, no art. 54 do
Ato das Disposies Constitucionais Transitrias, o benefcio assistencial aos
Soldados da Borracha e os seus dependentes, nos seguintes termos:
Artigo 54 Os seringueiros recrutados nos termos do Decreto-Lei n5.813, de 14 de setembro de 1943, e amparados pelo Decreto-Lei n
9.882, de 16 de setembro de 1946, recebero, quando carentes, penso
mensal vitalcia no valor de dois salrios-mnimos.
1- O benefcio estendido aos seringueiros que, atendendo a apelo do
Governo brasileiro, contriburam para o esforo de guerra, trabalhando
na produo de borracha, na Regio Amaznica, durante a Segunda
Guerra Mundial.
2- Os benefcios estabelecidos neste artigo so transferveis aos
dependentes reconhecidamente carentes.
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3- A concesso do benefcio far-se- conforme lei a ser proposta pelo
Poder Executivo dentro de cento e cinquenta dias da promulgao da
Constituio.
Uma questo de ordem puramente emocional14 essa foi a justificativa dada
pela deputada federal amazonense Beth Azize quanto ao art. 54 dos Atos de
Disposies Constitucionais Transitrios, o qual fora aprovado no dia 21 de junho
de 1988 pelo plenrio da Assembleia Constituinte, por 351 votos a favor, 22 contra
e 28 abstenes. Na reportagem do jornal Correio Braziliense, na qual a deputada
foi entrevistada, informa-se, ainda, a inexistncia de qualquer discusso sobre a
matria da concesso da penso vitalcia aos Soldados da Borracha.
Segundo a parlamentar amazonense, os constituintes utilizaram de um
momento histrico para beneficiar um setor que, h mais de quatro dcadas, se
encontrava em total abandono e que necessitava de uma medida com o carter de
justia social.
Em seguida, foi editada a Lei n 7.986, de 28 de dezembro de 1989, que
regulamenta o art. 54 do ADCT. Tal lei foi alterada pela Medida Provisria n.
1.663-15, de 22 de outubro de 1998, posteriormente, convertida na Lei n.
9.711/1998, onde passou a se exigir a apresentao de incio de prova documental
para a concesso do benefcio.
Tal exigncia, praticamente, inviabilizou a concesso do benefcio aos
seringueiros, pois muitos desses ex-combatentes no possuem quaisquer
documentos exigidos para a comprovao de sua condio. E, em situao pior,
ficaram as vivas, j que a maior parte dessas senhoras analfabetas encontram todo
o tipo de dificuldades para comprovar que seus esposos foram alistados como
Soldados da Borracha na poca da Segunda Guerra Mundial.
14
AZIZE, Beth. Correio Braziliense, Braslia, n 9197, pgina 4, 22-6-1988. Disponvel em: http://www2.senado.gov.br/bdsf/item/id/121577 Acesso em agosto de 2012.
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Finalmente, no dia 5 de novembro de 2013, o Plenrio da Cmara dos
Deputados aprovou a Proposta de Emenda Constituio (PEC) n. 346/2013,
sugerida pelo lder do governo o deputado Arlindo Chinaglia em desconsiderao
antiga PEC n. 556/2002, apresentada pela Senadora Vanessa Graziotin, a qual tinha
o aval das associaes de soldados da borracha.
Meses depois viria a ser promulgada a Emenda Constitucional n. 78, de 14
de maio de 2014, que d nova redao ao caput do art. 54 do ADCT e acrescenta
art.54-A. Aps essa emenda, ficou positivada a concesso de uma indenizao de
R$ 25 mil reais e a fixao da penso mensal vitalcia em R$1.500,00, resultando
em aumento concreto de apenas R$144,00 aos cerca de 12 mil soldados da
borrachas vivos e seus dependentes.
Aparentemente e sem a devida profundidade na anlise do assunto, uma
grande parte da populao pode estar pensando que os soldados da borracha tm e
muito a comemorar com a promulgao da EC n. 78/2014, a qual saldaria as
dvidas social, patritica e histrica com esse segmento.
Ledo engano pensar desta maneira! que o ideal de justia para os soldados
da borracha e para seus dependentes consiste em obter tratamento jurdico em
patamar similar aos direitos dos pracinhas ou mesmo de outros grupos de pessoas
que foram vtimas de violncias praticadas pelo Estado Brasileiro, a exemplo dos
anistiados polticos e dos parentes de desaparecidos polticos, durante o regime
ditatorial ps-1964.
Assim, a Emenda Constitucional n. 78/2014 no representou a redeno dos
soldados da borracha, mas um engodo simblico incapaz de trazer efetiva reparao
s feridas do passado, uma vez que a indenizao nela prevista tem valor irrisrio.
1.4 DA DESIGUALDADE DE TRATAMENTO ENTRE OS PRACINHAS E
OS SOLDADOS DA BORRACHA
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Assim como aquelas pessoas recrutadas para a extrao do ltex/seringa na
regio amaznica, os ex-combatentes da Fora Expedicionria Brasileira,
conhecidos como pracinhas, participaram ativamente da campanha criada pelo
governo brasileiro para auxiliar nas atividades em prol dos Aliados durante a
Segunda Guerra Mundial.
Os pracinhas foram recrutados e/ou arregimentados por instituies oficiais
brasileiras, receberam tratamento diferenciado para atuarem em favor da causa
aliada na guerra, alm de terem suas tarefas e trabalhos estimulados e vinculados ao
patriotismo e ao dever de contribuir com o seu pas durante um perodo de exceo.
Nos idos dos anos de 1942, o que os diferenciavam dos soldados da borracha
era apenas o lugar de atuao: as pessoas que se tornaram soldados da borracha
foram encaminhadas para os seringais amaznicos e aqueles que escolheram se
tornar pracinhas foram designados para exercerem suas atividades no front da Itlia.
Contudo, a legislao que sucedeu ao perodo da Segunda Guerra foi
responsvel por abrir um grande fosso entre o tratamento oferecido pelo Brasil aos
pracinhas e aos soldados da borracha.
Os seringueiros que foram convocados para trabalhar na Amaznia, tendo em
vista o acordo firmado pelo governo brasileiro e americano, que foi homologado por
meio do Decreto-Lei n 5.813, de 14 de setembro de 1943, no tiveram assegurados
nessa legislao qualquer direito quanto do trmino do auxlio prestado causa
Aliada. Neste decreto, apenas ficou estabelecida a estrutura administrativa da
Comisso Administrativa de Encaminhamento de Trabalhadores para a Amaznia
CAETA.
A primeira norma editada para assegurar direitos aos ex-combatentes foi a
Lei n 1.147, de 25 de junho de 1950, que estabeleceu as seguintes medidas de
amparo e assistncia: (i) financiamento em condies vantajosas por meio de
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instituto de previdncia para aquisio ou construo de moradia; (ii) doao de
terrenos pela Unio para aqueles no beneficiados pelo referido financiamento; (iii)
preferncia no acesso a empregos pblicos, mediante concurso; e (iv) preferncia na
matrcula dos estabelecimentos de ensino pblico para o ex-combatente e seus
filhos.
Em seguida, a Constituio Federal de 1967, em seu art. 178, assegurou ao
ex-combatente os seguintes direitos: (i) estabilidade, se funcionrio pblico; (ii)
aproveitamento no servio pblico, sem a exigncia de concurso; (iii) aposentadoria
com proventos integrais aos 25 anos de servio efetivo, tanto na Administrao
pblica quanto iniciativa privada; (iv) promoo, aps interstcio legal e se
houvesse vaga; e (v) assistncia mdica, hospitalar e educacional, se carente de
recursos.
Numa comparao entre os direitos dos Soldados da Borracha e dos Ex-
Combatentes da 2 Guerra Mundial observamos que:
A Lei n 5.315, de 12 de setembro de 1967, que dispe sobre os ex-
combatentes da Segunda Guerra Mundial, foi editada para regulamentar o art. 178
da Constituio do Brasil de 1967, tendo sido recepcionada em parte pela
Constituio Federal de 1988. A norma em questo definiu com detalhes quem so
os ex-combatentes e seus direitos garantidos na Constituio.
Foi acrescida mais uma garantia aos ex-combatentes, por meio da Lei n
5.507, de 10 de outubro de 1968, que estabeleceu prioridade para matrcula nos
estabelecimentos de ensino pblico de curso mdio e disps sobre a concesso de
bolsas de estudo para os filhos de ex-combatentes e rfos menores carentes de
recursos.
Em seguida, foi editada a Lei n 5.698, de 31 de agosto de 1971, que dispe
sobre as prestaes devidas a ex-combatente segurado da previdncia social, norma
essa recepcionada pela Constituio Federal de 1988. A referida legislao detalha a
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relao do ex-combatente com o regime geral da previdncia social e a forma de
clculo dos benefcios em razo da garantia de aposentadoria integral aos 25 anos
de servio.
Na Constituio Federal de 1988, foram mantidos os direitos ao
aproveitamento no servio pblico sem concurso, assistncia mdica, hospitalar e
educacional e aposentadoria aos 25 anos de servio e acrescidas s seguintes
garantias no art. 53 do Ato das Disposies Constitucionais Transitrias: (i) penso
especial correspondente deixada por segundo-tenente, transfervel ao dependente e
(ii) prioridade na aquisio da casa prpria.
Por fim, para regulamentar a penso especial devida ao ex-combatente, foi
editada a Lei n 8.059, de 4 de julho de 1990.
Vale ainda destacar a existncia de memorial construdo pelo Governo
Federal Brasileiro e que se destina a homenagear todos aqueles expedicionrios
brasileiros que foram mortos no front da Itlia. Lugar de grande simbolismo ptrio,
onde se dedica a cultivar a memria histrica desses bravos brasileiros.
Trata-se de um Monumento aos Pracinhas ou Monumento aos Mortos da
Segunda Guerra Mundial que desponta na paisagem do Parque e Aterro do
Flamengo na cidade do Rio de Janeiro. Dentro da construo existe um pequeno
museu, com fotos, peas e artefatos usados pelos pracinhas durante a Segunda
Guerra Mundial. O local contm tambm os nomes de todos os soldados que
tombaram na guerra na Europa, lutando pela Fora Expedicionria Brasileira.
No local ainda esto sepultados os restos mortais dos soldados brasileiros
que tombaram na campanha da Itlia, e que anteriormente estiveram sepultados
naquele pas. Outra homenagem de grande simbolismo ptrio a participao dos
ex-combatentes expedicionrios ainda vivos no desfile em que comemora a
independncia do Brasil (o desfile de Sete de Setembro).
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Por outro lado, sem qualquer tipo de honrarias militares (participao no
desfile da independncia - 7 de setembro) e sem resgate da memria histrica
nacional (seja atravs de mausolus ou de monumentos que busquem cultivar o
civismo e o patriotismo das geraes que sucederam, seja atravs dos livros oficiais
da Histria Brasileira) esto os soldados da borracha ainda vivos.
A situao desses idosos calamitosa e de completo abandono por parte das
autoridades do nosso pas. Estas que, infelizmente, pouco conhecem a histria da
importante participao dos soldados da borracha na Segunda Guerra Mundial e,
por isso, no buscam tambm valorizar a figura destes heris nacionais.
Note-se que, enquanto os pracinhas foram recebidos como heris nacionais,
foram includos no servio pblico, tiveram acesso aos hospitais pertencentes ao
Ministrio da Defesa, receberam salrios e atualmente percebem aposentadoria
correspondente ao soldo militar de um segundo-tenente, os soldados da borracha
ainda vivos s a partir da Constituio de 1988, exatos quarenta e trs anos depois
do fim da Segunda Guerra Mundial, passaram a receber um benefcio assistencial na
forma de penso vitalcia correspondente a dois salrios-mnimos (ADCT - art. 54)
e, ainda sim, tendo que cumprir o requisito legal irrazovel de apresentar incio de
prova material, consideradas as condies fticas que envolve o caso.
Por fora da Emenda Constitucional n. 78, de 14 de maio de 2014, que d
nova redao ao caput do art. 54 do ADCT, previu-se a concesso de indenizao
de R$ 25 mil reais. Trata-se de beneplcitos irrisrios quando comparados aqueles
conferidos aos soldados que foram para o front .
1.5 EPLOGO FTICO
A atual situao dos Soldados da Borracha de completo abandono. Toda a
explorao, coisificao e humilhao por eles sofrida no foi capaz de sensibilizar
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os mandatrios da nao e as maiorias parlamentares no sentido de implementar
mudanas concretas para reverso da dura realidade enfrentada pelo grande
contingente de flagelados.
Uma concluso salta aos olhos: o governo brasileiro, durante a Guerra,
preocupou-se, unicamente, com a produo de borracha, esquecendo-se da situao
dos trabalhadores, enquanto seres humanos dotados de dignidade.
Aps o conflito, os sobreviventes foram relegados prpria sorte. Sequer
houve responsabilizao das autoridades pblicas e privadas que engendraram a
catstrofe descrita nesta pea e que foi to bem analisada no relatrio final da
Comisso Parlamentar de Inqurito sobre a campanha da borracha.
Mesmo com a Constituio Federal de 1988, as medidas assistenciais no se
efetivaram, sendo irrisria a indenizao prevista na Emenda Constitucional n. 78,
de 14 de maio de 2014, a qual no foi capaz de recompor a dvida da Repblica
Federativa do Brasil para com os nordestinos utilizados na explorao da borracha
durante a Segunda Guerra Mundial.
Os soldados da borracha tambm so verdadeiras vtimas da Segunda Guerra
Mundial e da ditadura de inspirao fascista conhecida como Estado Novo, cujo
ultraje amargado tambm tem que ser reparado pela parte r.
2 DOS DIREITOS
2.1 CONSIDERAES PROCESSUAIS PRELIMINARES SOBRE A
PRESENTE AO CIVIL PBLICA
2.1.1 Da legitimidade ativa da Defensoria Pblica
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Nos termos do art. 134 da Constituio Federal de 1988, a Defensoria Pbli-
ca instituio essencial funo jurisdicional do Estado, tendo como misso ga-
rantir assistncia jurdica integral e gratuita aos necessitados.
Atualmente, a atuao cvel da Defensoria Pblica no se limita mera
propositura de aes ou elaborao de defesas e recursos em processos
individuais, podendo alcanar a tutela jurisdicional de direitos difusos, coletivos e
individuais homogneos.
De fato, aps alterao promovida pela Lei n. 11.448, de 15/01/2007, o art.
5, inciso II, da Lei n. 7.347/1985 passou, expressamente, a contemplar essa
instituio como legitimada ativa para a propositura da ao civil pblica.15
Na realidade, antes mesmo dessa inovao legislativa, havia precedentes
reconhecendo a legitimidade ativa da Defensoria Pblica para o ajuizamento de
aes civis pblicas. Entendia-se que, sendo legitimados a Unio e os Estados, as
Defensorias Pblicas respectivas, na condio de rgos daquelas pessoas jurdicas
de direito pblico, tambm poderiam ingressar com aes coletivas em juzo.16
Da
mesma forma, os intrpretes se valiam da redao elstica do art.82, III, do CDC. 17
A abertura das portas do microssistema processual coletivo s Defensorias
Pblicas igualmente encontra-se prevista no art. 4, inciso VII, da Lei
Complementar n. 80/1994, com redao dada pela Lei Complementar n. 132/2009,
verbis:
Art. 4 So funes institucionais da Defensoria Pblica, dentre outras:
15
Art. 5 Tm legitimidade para propor a ao principal e a ao cautelar:
[] II - a Defensoria Pblica; (Redao dada pela Lei n 11.448, de 2007) 16
Neste sentido: REsp 912849/RS, Rel. Min. Jos Delgado, 1 Turma, julgado em 26/02/2008, DJe
28/04/2008 17
Art. 82. Para os fins do art. 81, pargrafo nico, so legitimados concorrentemente: [] III - as entidades e rgos da Administrao Pblica, direta ou indireta, ainda que sem personalidade jurdica, especificamente destinados defesa dos interesses e direitos protegidos por este cdigo;
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[] VII promover ao civil pblica e todas as espcies de aes capazes de propiciar a adequada tutela dos direitos difusos, coletivos ou
individuais homogneos quando o resultado da demanda puder beneficiar
grupo de pessoas hipossuficientes;
Por fim, por fora da Emenda Constitucional n. 80, de 04 de junho de 2014,
o art. 134, caput, da Constituio Federal passou a ter a seguinte redao:
Art. 134. A Defensoria Pblica instituio permanente, essencial
funo jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, como expresso e
instrumento do regime democrtico, fundamentalmente, a orientao
jurdica, a promoo dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus,
judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma
integral e gratuita, aos necessitados, na forma do inciso LXXIV do art. 5
desta Constituio Federal.
Nota-se, portanto, que a atribuio de defesa dos direitos coletivos passou a
ter envergadura constitucional, o que afasta qualquer dvida, por ventura ainda
existente, sobre a constitucionalidade da legislao que legitima a Defensoria
Pblica para ajuizar aes civis pblicas.
Portanto, todos esses dispositivos legais e constitucionais tornaram clara a
seguinte regra jurdica: a Defensoria Pblica tem legitimidade para patrocinar
interesses de necessitados por meio de demandas coletivas.
Aqui, dvidas no h de que os soldados da borracha vivos e os dependentes
daqueles falecidos so pessoas em situao de hipossuficincia econmica
(necessitados), eis que a renda mdia de seus ncleos familiares gira em torno de
dois salrios-mnimos (art. 54 do ADCT).
Tais pessoas tem idade mdia de 85 anos e, em sua maioria, vivem nas zonas
rurais de baixo IDH na regio Amaznica ou no Nordeste. Para elas o acesso
justia extremamente difcil, seno impossvel por meio da advocacia privada,
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razo por que os soldados da borracha e seus dependentes so um grupo de pessoas
com o perfil de assistidos da Defensoria Pblica.
2.1.2 Abrangncia territorial da deciso: eficcia nacional da sentena coletiva
Nos termos do art. 16 da Lei n. 7.347/1985 (Lei da Ao Civil Pblica), na
redao que lhe foi dada pela Lei n. 9.494/1997, estabeleceu-se que a "a sentena
civil far coisa julgada erga omnes, nos limites da competncia territorial do rgo
prolator [...]". V-se, pois, que o legislador criou uma restrio aos efeitos da
sentena proferida no julgamento de pedidos contidos em aes civis pblicas.
Na prtica, se um juiz federal de uma dada Seo Judiciria, por exemplo,
profere uma sentena coletiva no julgamento de ao civil pblica, os efeitos do
decisium seriam restritos ao mbito territorial dessa Seo Judiciria, englobando
somente as pessoas fsicas e jurdicas l residentes, bem como rgos e entidades
pblicas l existentes.
Com isso, buscou o legislador, animado por esprito conservador, evitar que
uma sentena coletiva tenha efeitos mais amplos, como regionais ou nacionais. A
deciso, portanto, deve ficar acantonada aos limites territoriais da competncia do
juzo, no podendo abranger limites alm de sua jurisdio.
No preciso muito esforo para perceber que se trata de disposio
processual que, se interpretada em sua literalidade e fora de contexto, esvazia por
completo a razo de ser dos processos coletivos (celeridade e economia processuais,
evitando o efeito multiplicador de demandas). Nesse sentido, vejam-se as lies de
Leonel Ricardo Barros:
A necessidade de reconhecimento de maior extenso aos efeitos da
sentena coletiva consequnciada da indivisibilidade dos interesses
tutelados (material ou processual [no caso especfico dos direito
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individuais]), tornando impossvel cindir os efeitos da deciso judicial,
pois a leso a um interessado implica leso a todo, e o proveito a um a
todos beneficia. a indivisibilidade do objeto que determina a extenso
dos efeitos do julgado a quem no foi parte no sentido processual, mas figura como titular dos interesses em conflito
18.
Dentro de uma perspectiva constitucional, a interpretao literal do art. 16 da
Lei n. 7.347/1985 viola o princpio do acesso justia, sendo curial reconhecer a
inconstitucionalidade material dessa limitao da atuao jurisdicional, uma vez que
a Constituio de 1988, em seu art. 5, XXXV, reconhece o direito ao coletiva.
Nesse passo, considerando que os soldados da borracha e seus dependentes
encontram-se dispersos em reas do Norte (em especial, no Acre, Amazonas, Par e
Rondnia) e do Nordeste do pas (em especial no Cear e no Maranho), sendo
vtimas de violaes aos seus direitos bsicos ao longo dos anos, v-se que o dano
extrapola a jurisdio da Subseo Judiciria do Par. Claramente, uma sentena
limitada aos limites do rgo prolator seria um ato de eficcia mnima.
Portanto, dependendo do caso concreto, os efeitos da deciso podem
abranger todo o territrio nacional ou local diverso da jurisdio do juzo, quando o
dano se perpetuar em mais de um municpio, dentro ou no de mesmo Estado.
Assim, em relao abrangncia da deciso na presente ao civil pblica, a melhor
soluo consiste na aplicao subsidiria do art. 93 da Lei n 8.078/1990 (Cdigo de
Defesa do Consumidor):
Art. 93. Ressalvada a competncia da Justia Federal, competente para
a causa a justia local:
I - no foro do lugar onde ocorreu ou deva ocorrer o dano, quando de
mbito local;
II - no foro da Capital do Estado ou no do Distrito Federal, para os danos
de mbito nacional ou regional, aplicando-se as regras do Cdigo de
Processo Civil aos casos de competncia concorrente.
18
LEONEL, Ricardo Barros. Manual do processo coletivo. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 259.
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30
O emprego desse dispositivo em relao s aes civis pblicas em geral
possui expressa autorizao no art. 21 da Lei n 7.347/1985, verbis:
Aplicam-se defesa dos direitos e interesses difusos, coletivos e
individuais, no que for cabvel, os dispositivos do Ttulo III da Lei n.
8.078, de 11 de setembro de 1990, que instituiu o Cdigo de Defesa do
Consumidor.
Portanto, h que se observar, no efeito da sentena, no os aspectos da
organizao judiciria (limites territoriais da comarca, da seo ou da subseo),
mas a extenso do dano:
(...) A regra do art. 16 da Lei 7.347/85 deve ser interpretada em sintonia
com os preceitos contidos na Lei 8.078/90, entendendo-se que os "limites
da competncia territorial do rgo prolator", de que fala o referido
dispositivo, no so aqueles fixados na regra de organizao judiciria,
mas, sim, aqueles previstos no art. 93 do Cdigo de Defesa do
Consumidor. Assim: a) quando o dano for de mbito local, isto , restrito
aos limites de uma comarca ou circunscrio judiciria, a sentena no
produzir efeitos alm dos prprios limites territoriais da comarca ou
circunscrio; b) quando o dano for de mbito regional, assim
considerado o que se estende por mais de um municpio, dentro do
mesmo Estado ou no, ou for de mbito nacional, estendendo-se por
expressiva parcela do territrio brasileiro, a competncia ser do foro de
qualquer das capitais ou do Distrito Federal, e a sentena produzir os
seus efeitos sobre toda a rea prejudicada (...).19
Assim, luz do dispositivo supracitado (art. 93 da lei n 8.078/1990) e do
carter transcendente do caso, bem como dos reflexos dos danos para todo territrio
nacional, pugna-se que a deciso a ser proferida nestes autos no reste adstrita a
uma nica regio/ mbito da jurisdio deste Juzo, mas a todo o pas.
19
Nesse sentido, conferir: AG 2006.04.00.026331-1/SC, Rel. Min. Ricardo Teixeira do Valle Pereira, DJU
01/11/2006, p. 766/768.
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2.2 DAS GRAVES VIOLAES A DIREITOS HUMANOS SOFRIDAS
PELOS SOLDADOS DA BORRACHA
2.2.1 Violaes Declarao Universal dos Direitos do Homem e ao Pacto
Internacional de Direitos Civis e Polticos
Com o trmino da Segunda Guerra Mundial, os direitos humanos passam por
processo de positivao em tratados e convenes internacionais, com a finalidade
de proteger e promover a dignidade humana e a paz a nvel mundial, mediante
garantias internacionais institucionalizadas.
Nesse contexto, o marco inicial desse processo de consolidao
internacional dos direitos humanos a Carta das Naes Unidas de 1945.20 Em
suas justificativas, o texto assinala a necessidade de preservar as geraes
vindouras do flagelo da guerra e reafirmar a f nos direitos fundamentais do
homem, na dignidade e no valor do ser humano, na igualdade de direito dos
homens e das mulheres. Seu artigo 55, c, assinala a necessidade de os Estados
membros das Naes Unidas favorecer o respeito universal e efetivo dos direitos
humanos e das liberdades fundamentais para todos, sem distino de raa, sexo,
lngua ou religio.
A Carta das Naes Unidas no elencou um rol de direitos humanos. Em
razo dessa omisso, em 10 de dezembro de 1948, a Assembleia Geral da ONU
promulgou a Declarao Universal dos Direitos Humanos. Inicialmente, tratava-
se de mera declarao de cunho poltico e moral; contudo, passou a ser reconhecida
20
Promulgada pelo Decreto n. 19.841, de 22 de outubro de 1945.
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como fonte do direito internacional na condio de costume internacional.21
Portanto, cuida-se de documento de indiscutvel fora normativa.
Poucos anos depois, foram discutidos e assinados por diversas naes o
Pacto Internacional de Direitos Civis e Polticos22
e o Pacto Internacional de
Direitos Econmicos, Sociais e Culturais23
.
Note-se que o que diferencia os Direitos Humanos dos demais direitos a
proteo de bens bsicos, os quais favorecem qualquer plano de vida. Tais bens
bsicos so a liberdade, a igualdade, a justia, a paz, a segurana, entre outros.
No bastasse estar inserida na Segunda Guerra Mundial, cujas atrocidades
so a fonte material do processo de universalizao dos humanos, a Batalha da
Borracha e seus posteriores desdobramentos em relao aos soldados da borracha
revelam uma srie de violaes a direitos previstos na Declarao Universal e no
Pacto Internacional de Direitos Civis e Polticos.
De fato, o recrutamento ardiloso dos soldados da borracha organizado pelo
SEMTA, as condies degradantes de trabalho e o abandono estatal perpetrados
pelo Estado brasileiro, claramente, revelam violaes aos seguintes dispositivos da
Declarao Universal dos Direitos do Homem: a) Artigo 3: Todo o homem tem
direito vida, liberdade e segurana pessoal; b) Artigo 4: Ningum ser man-
tido em escravido ou servido; a escravido e o trfico de escravos esto proibidos
em todas as suas formas; c) Artigo 5: Ningum ser submetido a tortura, nem a
tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante.
21
[...] a Corte Internacional de Justia decidiu expressamente pelo carter de norma costumeira da Decla-rao Universal dos Direitos do Homem, considerada como elemento de interpretao do conceito de direi-
tos fundamentais insculpido na Carta da ONU. RAMOS, Andr de Carvalho. O Supremo Tribunal Fede-ral e o Direito Internacional dos Direitos Humanos. In: Direitos fundamentais no Supremo Tribunal Fede-
ral: balano e crtica. Coord.: SARMENTO, Daniel e SARLET, Ingo Wolfgang. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2011, p. 05. 22
Promulgado pelo Decreto n. 592, de 6 de julho de 1992. 23
Promulgado pelo Decreto n. 591, de 6 de julho de 1992.
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Da mesma forma, as referidas aes e omisses do poder pblico ptrio
constituem claras violaes aos seguintes preceitos do Pacto Internacional dos
Direitos Civis e Polticos: a) Artigo 7 (Ningum poder ser submetido tortura,
nem a penas ou tratamento cruis, desumanos ou degradantes. Ser proibido
sobretudo, submeter uma pessoa, sem seu livre consentimento, a experincias
mdias ou cientficas.) e b) Artigo 8 (1. Ningum poder ser submetido
escravido; a escravido e o trfico de escravos, em todos as suas formas, ficam
proibidos. 2. Ningum poder ser submetido servido).
2.2.2 Violaes Conveno Interamericana de Direitos Humanos
A saga dos soldados da borracha tambm traz luz uma variedade de
violaes Conveno Americana de Direitos Humanos, a qual, por ter como
mbito o territrio americano e ser aplicada pela Corte Interamericana de Direitos
Humanos, merece uma anlise mais minuciosa.
De fato, o Pacto de So Jos da Costa Rica consagra, em seus artigos, o
regime de liberdade pessoal e de justia social, fundado no respeito dos direitos
essenciais do homem, bem como reconhece que os direitos essenciais do homem
tem como fundamento os atributos da prpria pessoa humana, razo por que
justificam uma proteo internacional. Mais ainda o artigo 1 determina a todos os
Estados-partes a obrigao de respeito aos direitos e liberdades reconhecidos.
Artigo 1. Obrigao de respeitar os direitos
1. Os Estados-Partes nesta Conveno comprometem-se a respeitar os
direitos e liberdades nela reconhecidos e a garantir seu livre e pleno
exerccio a toda pessoa que esteja sujeita sua jurisdio, sem
discriminao alguma por motivo de raa, cor, sexo, idioma, religio,
opinies polticas ou de qualquer outra natureza, origem nacional ou
social, posio econmica, nascimento ou qualquer outra condio
social.
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A Corte Interamericana de Direitos Humanos j se pronunciou anteriormente
a respeito da responsabilidade internacional do Estado em relao a atos violatrios
de direitos humanos:
Para estabelecer se houve uma violao de direitos consagrados na Conveno, no se requer determinar, como ocorre em direito penal
interno, a culpabilidade de seus autores, sua inteno, nem preciso
identificar individualmente os agentes aos quais se atribui os fatos
violatrios. suficiente a demonstrao de que houve apoio ou
tolerncia do poder pblico na infrao dos direitos reconhecidos na
Conveno. Ademais, tambm se compromete a responsabilidade
internacional do Estado quando este no realiza as atividades
necessrias, de acordo com seu direito, para identificar e no caso, punir
os autores das prprias violaes.24
O artigo acima mencionado estabelece claramente a obrigao do Estado de
respeitar os direitos e liberdades reconhecidos na Conveno e garantir o seu livre e
pleno exerccio a toda a pessoa a que esteja sujeita a sua jurisdio, de tal modo que
toda violao dos direitos reconhecidos na Conveno que possam ser atribudos,
conforme as normas de direito internacional, ao ou omisso de qualquer
autoridade pblica, constitui um ato de responsabilidade do Estado, conforme j se
manifestou a prpria Comisso Interamericana25
:
O Estado est, por outro lado, obrigado a investigar toda situao em que se tenha violado os direitos humanos protegidos pela Conveno. Se
o aparato do Estado atua de modo que tal violao reste impune e no se
restabelea o quanto possvel, a vtima na plenitude de seus direitos,
pode-se afirmar que se descumpriu o dever de garantir o livre exerccio
das pessoas sujeitas a sua jurisdio.
24
Corte Interamericana de Direitos Humanos, Caso Paniagua Morales y otros, sentena de 8 de maro de
1998. 25
Caso Velasquez Rodriguez, sentena de 29 de julho de 1988, par.174. Caso Gondnez Cruz, sentena de 20
de janeiro de 1989, par. 187.
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No mbito da referida Conveno, as obrigaes constantes dos artigos 1.1 e
2 constituem a base para a determinao de responsabilidade internacional de um
Estado. O artigo 1.1 da Conveno atribui aos Estados Partes os deveres
fundamentais de respeitar e de garantir os direitos, de tal modo que todo menoscabo
aos direitos humanos reconhecidos na Conveno que possa ser atribudo, segundo
as normas do direito internacional, ao ou omisso de qualquer autoridade
pblica, constitui fato imputvel ao Estado, que compromete sua responsabilidade
nos termos dispostos na mesma Conveno.
2.2.2.1 Direito vida
O artigo 4 da Conveno Interamericana de Direitos Humanos determina o
respeito ao Direito vida, sem que haja qualquer tipo de discriminao por
condio social: Toda pessoa tem o direito de que se respeite sua vida.
A Corte Interamericana reiteradamente afirma que o direito vida um
direito humano fundamental, cujo gozo constitui um pr-requisito para o desfrute de
todos os demais direitos do ser humano. Em razo do carter fundamental do direito
vida, no so admissveis enfoques restritivos a tal direito26
.
Em virtude deste papel fundamental que se atribui ao direito vida na
Conveno, a Corte tem reiteradamente afirmado em sua jurisprudncia que os
Estados tm a obrigao de garantir a criao das condies necessrias para que
26
Cf. Caso Balden Garca; Caso Comunidade Indgena Sawhoyamaxa; Caso do Massacre de Pueblo Bello;
Caso do Massacre de Mapiripn;Caso Comunidade Indgena Yakye Axa; Caso Huilca Tecse, Sentena de 3
de maro de 2005. Srie C, n 121, par. 65 e 66; Caso Instituto de Reeducao do Menor. Sentena de 2 de setembro de 2004. Srie C, n 112, par. 156 e 158; Caso dos Irmos Gmez Paquiyauri. Sentena de 8 de
julho de 2004. Srie C, n 110, par. 128 e 129 ; Caso 19 Comerciantes. Sentena de 5 de julho de 2004. Srie
C, n 109, par. 153; Caso Myrna Mack Chang. Sentena de 25 de novembro de 2003. Srie C, n 101, par.
152 e 153; Caso Juan Humberto Snchez; e Caso dos Meninos de Rua (Villagrn Morales e outros) . Sentena de 19 de novembro de 1999. Srie C, n 63, par. 144.
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no se produzam violaes a esse direito inalienvel e, em particular, o dever de
impedir que seus agentes atentem contra ele.
Observa-se que o artigo 4 do Pacto de So Jos da Costa Rica garante, em
essncia, no somente o direito de todo ser humano de no ser privado da vida
arbitrariamente, mas tambm o dever dos Estados de adotar as medidas necessrias
para criar um marco normativo adequado que dissuada qualquer ameaa ao direito
vida; estabelecer um sistema de justia efetivo, capaz de investigar, castigar e
reparar toda privao da vida por parte de agentes estatais ou particulares; e
salvaguardar o direito de que no se impea o acesso a condies que assegurem
uma vida digna, o que inclui a adoo de medidas positivas para prevenir a violao
desse direito.27
A Corte Interamericana tem subscrito sistematicamente sobre o carter
especial dos direitos vida e a um tratamento humano. Vejamos:
Los derechos a la vida a un trato humano son centrales para la Convencin [Americana]. De acuerdo con el Artculo 27(2) de dicho tratado, esos derechos
forman parte del ncleo no derogable, porque han sido establecidos como
derechos que no pueden ser suspendidos en caso de guerra, peligro u otras
amenazas a la independencia o seguridad de los Estados partes.28
Como o direito a vida to essencial para o exerccio de todos os demais
direitos, o Estado tem uma obrigao particular de proteg-lo e preserv-lo, assim
como de evitar a sua violao. Tambm faz parte do entendimento da Corte:
27
Cf. Caso Balden Garca; Caso Comunidade Indgena Sawhoyamaxa; Caso do Massacre de Pueblo Bello; Caso do Massacre de Mapiripn; Caso Comunidade Indgena Yakye Axa; Caso Huilca Tecse, Sentena de 3
de maro de 2005. Srie C, n 121, par. 65 e 66; Caso Instituto de Reeducao do Menor. Sentena de 2 de setembro de 2004. Srie C, n 112, par. 156 e 158; Caso dos Irmos Gmez Paquiyauri. Sentena de 8 de
julho de 2004. Srie C, n 110, par. 128 e 129 ; Caso 19 Comerciantes. Sentena de 5 de julho de 2004. Srie
C, n 109, par. 153; Caso Myrna Mack Chang. Sentena de 25 de novembro de 2003. Srie C, n 101, par.
152 e 153; Caso Juan Humberto Snchez; e Caso dos Meninos de Rua (Villagrn Morales e outros) . Sentena de 19 de novembro de 1999. Srie C, n 63, par. 144. 28
Corte IDH, Caso de la Masacre de Pueblo Bello vs. Colombia. Sentencia de 31 de enero de 2006. Serie C
no. 140, prr.. 219. Ver tambin: Corte IDH, Caso Bmaca Velasquez Vs. Guatemala. Sentencia de 25 de
noviembre de 2000. Serie C No. 70.
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Los Estados tienen la obligacin de garantizar la creacin de las condiciones que se requieran para que no se produzcan violaciones de
ese derecho inalienable y, en particular, el deber de impedir que sus
agentes atenten contra l. El cumplimiento de las obligaciones impuestas
por el artculo 4 de la Convencin Americana, relacionado con el artculo
1.1 de la misma, no slo presupone que ninguna persona sea privada de
su vida arbitrariamente (obligacin negativa), sino adems, a la luz de su
obligacin de garantizar el pleno y libre ejercicio de los derechos
humanos, requiere que los Estados adopten todas las medidas apropiadas
para proteger y preservar el derecho a la vida (obligacin positiva). (...)
En razn de lo anterior, los Estados deben adoptar las medidas
necesarias, no solo a nivel legislativo, administrativo y judicial, mediante
la emisin de normas penales y el establecimiento de un sistema de
justicia para prevenir, suprimir y castigar la privacin de la vida como
consecuencia de actos criminales, sino tambin para prevenir y proteger
a los individuos de actos criminales de otros individuos e investigar
efectivamente estas situaciones.29
2.2.2.2 Direito integridade pessoal, honra, dignidade e proteo da famlia
Nos termos do Artigo 5 da Conveno Interamericana, consagra-se o Direito
integridade pessoal, segundo o qual toda pessoa tem o direito de que se respeite
sua integridade fsica, psquica e moral.
O direito integridade pessoal, como os outros Direitos Humanos, inerente
pessoa com relao a sua natureza humana. Esse direito assegura a integridade
fsica e psicolgica das pessoas e probe a ingerncia arbitrria do Estado e dos
particulares nesses atributos individuais. Implica em um sentido positivo, i) o direito
a gozar de uma integridade fsica, psicolgica e moral30
e em sentido negativo, ii) o
dever de no maltratar, no ofender, no torturar e no comprometer ou agredir a
integridade fsica e moral das pessoas31
.
29
Corte IDH. Caso de la Masacre de Pueblo Bello vs. Colombia. Sentencia de 31 de enero de 2006. Serie C
no. 140, prr.. 120. 30
CORTE CONSTITUCIONAL DE COLOMBIA. Sentencia T-427 de 1998. 31
CORTE CONSTITUCIONAL DE COLOMBIA. Sentencia T-427 de 1998.
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um direito que est vinculado necessariamente com a proteo dignidade
humana e tem estreita relao com outros direitos fundamentais, como o direito
vida e sade. Sendo tambm possvel fixar entre esses trs direitos uma diferena
baseada no objeto jurdico protegido de maneira imediata.
A vida protege de maneira prxima o ato de viver e a qualidade de vida das pessoas em condies de dignidade. A integridade pessoal, por sua
vez, protege a integridade fsica e moral, a plenitude e a totalidade da
harmonia corporal e espiritual do homem, bem como o direito sade, o
normal funcionamento orgnico do corpo e o adequado exerccio das
faculdades intelectuais 32.
de tamanha importncia que a Conveno Americana o protege
particularmente ao estabelecer a proibio da tortura, tratos cruis, inumanos e
degradantes, assim como a impossibilidade de suspend-los durante estados de
emergncia,33
devendo os Estados adotar todas as medidas apropriadas para garanti-
lo.
A falta de respeito e a manuteno de abandono ao longo do tempo sofrida
pelos soldados da borracha revela o indesculpvel desrespeito as leis brasileiras e a
Conveno Americana. Situao que delata a falta de respeito com a dignidade
humana e integridade psquica e moral dos antigos recrutados pelo governo
brasileiro!
Os demais direitos fundamentais, como aqueles relativos sade,
integridade fsica e moral e ao tratamento digno no podem continuar a ser afetados
e violentados pelo grave abandono das autoridades brasileiras. o teor do artigo 11
da Conveno Americana de Direitos Humanos:
32
REYES V, Alejandra. El derecho a la integridad, p. 17-19. 33
Artculos 5 y 27 de la Convencin Americana. Vase, adems, Caso Instituto de Reeducacin del Menor Vs. Paraguay. Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 2 de septiembre de 2004. Serie C No. 112, prr. 157.
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Artigo 11. Proteo da honra e da dignidade
1. Toda pessoa tem direito ao respeito de sua honra e ao reconhecimento
de sua dignidade.
3. Toda pessoa tem direito proteo da lei contra tais ingerncias ou tais
ofensas.
Vale destacar que a situao enfrentada por muitas famlias de soldados da
borracha revela tambm violao ao artigo 17 da Conveno Americana de Direitos
Humanos (proteo da famlia), pois existem relatos e fontes histricas que
confirmam o recrutamento pelo Governo Brasileiro de jovens com 16 anos para a
participao na batalha da borracha34
.
Muitos dos soldados da borracha foram afastados dos seus entes queridos e,
por no ter sido garantindo o retorno a sua terra natal aps o trmino da Segunda
Guerra Mundial, mesmo sendo esse um dos compromissos assumidos pelas
autoridades da poca, inmeros laos familiares foram rompidos.
Infelizmente, frequente o relato de que muitos no puderam enterrar seus
pais e irmos que faleceram com o passar dos anos, j que no sabia do paradeiro
dos seus parentes.
O meio familiar exerce uma das mais importantes influncias no
desenvolvimento das capacidades cognitivas e na estruturao das caractersticas
afetivas dos filhos. A famlia desempenha um papel de extrema importncia no
desenvolvimento da sociedade, uma vez que atravs desta saudvel relao que se
constroem pessoas adultas com uma determinada autoestima e onde estas aprendem
a enfrentar desafios e a assumir responsabilidades, tendo por isso sua proteo
consagrada tanto pelo Estado quanto pela sociedade.
Infelizmente, o Estado Brasileiro violou o seu dever de proteo quando no
garantiu o retorno do soldado da borracha a sua terra natal e por ter sido o vnculo
34
Artigo 17. Proteo da famlia1. A famlia o elemento natural e fundamental da sociedade e deve ser
protegida pela sociedade e pelo Estado.
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familiar desfeito e s reconstitudo muitas dcadas aps. Esse grave desrespeito
gerou graves consequncias tanto no aspecto psicolgico quanto no processo de
desenvolvimento da sociabilidade de muitos soldados da borracha, pois, ao invs de
eles terem asseguradas e estimuladas as ligaes afetivas entre seus familiares
(relaes que favoreciam a aprendizagem e a formao da personalidade no
momento em que deveria ter sido proporcionada melhores condies para os seus
desenvolvimentos enquanto seres humanos), as autoridades brasileiras estimularam
o abandono, a negligncia, a falta de cuidado, a revolta e no protegeram a famlia
como deveria ter sido feita.
As condies de abandono, o crescente embrutecimento causado pelas ms
condies dos soldados da borracha, o desrespeito da lei, tudo isso contribuiu para a
disseminao do sentimento de impotncia frente omisso das autoridades
responsveis.
2.2.2.3 Direito igualdade
A situao dos soldados da borracha tambm revela permanentes violaes
ao princpio da igualdade e ao dever de no-discriminao.
Com efeito, apesar da bravura demonstrada ao participarem do recrutamento
militar e ao executarem as atividades ordenadas, esses indivduos so, hoje, vtimas
de grave injustia perpetrada pelas autoridades pblicas brasileiras. Enquanto aos
ex-combatentes de operaes blicas na Europa se asseguraram diversos direitos,
entre os quais uma penso especial de cerca de sete salrios mnimos, aos soldados
da borracha se oferece apenas uma penso mensal correspondente a dois salrios
mnimos conforme estabelece o art. 54 do ADCT.
Assim, o art. 54 do ADCT norma de vis discriminatrio por estabelecer
diferena de trato injusta no que tange ao reconhecimento financeiro entre dois
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grupos anlogos de indivduos, que contriburam para a satisfao dos interesses do
pas, em um momento importante da histria mundial. J manifestou a Corte
Interamericana que:
La nocin de igualdad [...] es inseparable de la dignidad esencial de la persona, frente a la cual es incompatible toda situacin que, por
considerar superior a un determinado grupo, conduzca a tratarlo con
privilegio; o que, a la inversa, por considerarlo inferior, lo trate con
hostilidad o de cualquier forma lo discrimine del goce de derechos que s
se reconocen a quienes no se consideran incursos en tal situacin de
inferioridad35.
Para examinar se uma diferena de tratamento ou no discriminatria, o
Tribunal de San Jos adota critrios de razoabilidade e de proporcionalidade.
Emprega-se o termo distino para se referir diferena de trato admissvel, por
atender a tais parmetros e no ofender a dignidade humana. Por sua vez, utiliza-se
a palavra discriminao para aludir excluso ou ao privilgio que no passe no
referido teste, violando os direitos humanos dos indivduos36
. Em todo o caso, uma
vez questionada a diferena de tratamento realizada pelo Estado, cabe a ele provar
que conta com uma justificao legtima para proceder de tal maneira.
O tratamento desigual conferido aos soldados da borracha no atende aos
critrios acima mencionados, tratando-se de uma forma odiosa e ilegtima de
discriminao de jure. Sem dvida, a diferena entre o valor da penso oferecida
aos pracinhas e o valor da penso paga aos soldados da borracha desproporcional.
O montante da renda que lhes concedida, atualmente, equivalente ao
valor da penso paga aos trabalhadores rurais comuns, o que demonstra a fraqueza
do ponto de vista financeiro do reconhecimento oficial das caractersticas
35
CORTE IDH. Propuesta de Modificacin a la Constitucin Poltica de Costa Rica Relacionada con la
Naturalizacin. Opinin Consultiva OC-4/84 del 19 de enero de 1984. Serie A No. 4. 55. 36
CORTE IDH. Condicin Jurdica y Derechos de los Migrantes Indocumentados. Opinin Consultiva OC-
18/03 de 17 de septiembre de 2003. Serie A No. 18. 84.
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especiais dos servios prestados nao pelos soldados da borracha. A diferena de
tratamento , pois, desarrazoada e desproporcional, constituindo lamentvel prtica
discriminatria do Estado brasileiro.
Para definir o conceito de discriminao, como o Pacto de San Jos no
especifica o significado deste termo, a Corte Interamericana utilizou, no caso Atala
Riffo vs. Chile37
, a explicao dada pelo Comit de Direitos Humanos das Naes
Unidas, de acordo com a qual o termo se refere a:
[...] toda distincin, exclusin, restriccin o preferencia que se basen en
determinados motivos, como la raza, el color, el sexo, el idioma, la
religin, la opinin poltica o de otra ndole, el origen nacional o social,
la propiedad, el nacimiento o cualquier otra condicin social, y que
tengan por objeto o por resultado anular o menoscabar el reconocimiento,
goce o ejercicio, en condiciones de igualdad, de los derechos humanos y
libertades fundamentales de todas las personas38
.
Como se bem sabe, o princpio fundamental de proteo contra a
discriminao deve ser aplicado no apenas em relao a cada pessoa ou indivduo,
mas tambm e especialmente em relao aos grupos vulnerveis. Quanto aos
motivos de discriminao, tanto a definio do Comit da ONU quanto o art. 1.1 da
Conveno Americana elencam um rol exemplificativo de categorias protegidas.
Ambos os documentos deixam abertos os critrios proibidos de discriminao,
atravs da expresso outra condio social, a qual deve ser interpretada da
maneira mais favorvel possvel39
. Nessa categoria aberta, enquadram-se os
soldados da borracha, que acabaram esquecidos e marginalizados pela Unio.
37
CORTE IDH. Atala Riffo y Nias Vs. Chile. Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia del 24 de febrero
de 2012. Serie C No. 239. 81. 38
NACIONES UNIDAS. Comit de Derechos Humanos. Observacin General No. 18. No discriminacin.
10 de noviembre de 1989. CCPR/C/37. 6. 39
CORTE IDH. Caso Atala Riffo y Nias Vs. Chile. Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia del 24 de
febrero de 2012. Serie C No. 239. 85
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2.2.2.4 Direito Verdade e Memria
Outrossim, o descaso e a inrcia do Poder Pblico desrespeitam e
vilipendiam os direitos daquelas pessoas idosas que participaram da Batalha da
Borracha, principalmente na questo da obrigao estatal de assegurar o acesso ao
Direito Verdade e Memria.
O Direito Verdade e Memria fundamenta-se na busca e no
estabelecimento de uma verdade oficial sobre