dou te meus olhos uma analise da violencia

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    Pró-Reitoria de GraduaçãoCurso de Psicologia

    Trabalho de Conclusão de Curso

    “DOU-TE MEUS OLHOS”: UMA ANÁLISE DA VIOLÊNCIADOMÉSTICA NA PERSPECTIVA DA CONSCIÊNCIA

    E DO CUIDADO 

    Brasília - DF2012

    Autor: Enercílio de Almeida NetoOrientadora: Msc. Mariana Martins Juras

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    ENERCÍLIO DE ALMEIDA NETO

    “DOU-TE MEUS OLHOS”: UMA ANÁLISE DA VIOLÊNCIADOMÉSTICA NA PERSPECTIVA DA CONSCIÊNCIAE DO CUIDADO

     

    Artigo apresentado como requisito para aconclusão do curso de Graduação em Psicologiada Universidade Católica de Brasília, comorequisito parcial para obtenção do Título deBacharel em Psicologia.

    Orientadora: Professora Msc. Mariana MartinsJuras.

    Brasília - DF2012

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    À minha esposa Divany Xavier da Silva Almeida,pelos anos de cuidados que desperta em mim a

    consciência do amor e sentido de ser.

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    AGRADECIMENTOS

    À Profa. Mariana Martins Juras pela diligente orientação deste trabalho. Ao Prof.

    Marcos Aurélio Fernandes que além de compor gentilmente a banca se tornou para

    mim um mestre nessa pesquisa através das suas obras. À minha esposa Divany a

    quem dedico com todo esmero esse trabalho. Ao Prof. Dr. José Lisboa Moreira de

    Oliveira, gestor do Centro de Reflexão de Ética e Antropologia da Religião (Crear), e

    sua esposa Ana Márcia Guilhermina de Jesus, pelos incentivos e companheirismo.

    Aos demais colegas Docentes, Discentes e amigos que compartilham esse

    momento e me deram apoio nessa nova etapa da minha vida.

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    “O Ser humano é a um só tempo, físico, biológico,psíquico, cultural, social e histórico. Esta unidadefundamental complexa é fundamentalmentedesintegrada na educação por meio das disciplinas,tendo se tornado impossível apreender o quesignifica ser humano. É preciso restaurá-la, de modoque cada um, onde quer que se encontre, tomeconhecimento e consciência, ao mesmo tempo, desua identidade complexa, e de sua identidadecomum a todos os outros humanos”1.

    1 , . , 2002, . 15.

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    “DOU-TE MEUS OLHOS”: UMA ANÁLISE DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA NAPERSPECTIVA DA CONSCIÊNCIA E DO CUIDADO

    ENERCÍLIO DE ALMEIDA NETO

    RESUMO:

    A violência doméstica se apresenta sempre como um grande desafio para apsicologia em qualquer perspectiva teórica. Esta pesquisa investiga aspossibilidades de contribuição dos conceitos filosóficos de consciência e cuidadoarticulando-os com algumas considerações da teoria sistêmica para uma análise daviolência no âmbito conjugal e familiar. O estudo emprega uma metodologia

    qualitativa através da pesquisa teórica e da análise do filme espanhol “Dou-te meusolhos” produzido pela cineasta Icíar Bollaín, indicando uma submissão da mulherfrente à possessão do marido. A proposta visa uma compreensão das vivências decasais e famílias em situação de violência. Ao analisar esse problema, estamospreocupados com o processo de expansão da consciência nas relações, muitasvezes “neutralizadas” pela violência, e da formação do eu e suas complexidades,evitando a dicotomia das concepções materialistas e espiritualistas, ou do olharlimitado e estigmatizante da qualificação de vitima-agressor, embora não ignoramossuas implicações. A proposta pressupõe a visão da dimensão ontológica do serhumano evocando a perspectiva do “cuidado”, seu modo de ser e suas vivências, dapercepção mais clara do ser, da existência e de suas capacidades de compreender

    o mundo, a si mesmo e o outro. Os estados de “cegueira” e significados dasvivências requerem um olhar mais amplo para o fenômeno da violência além dasquestões sociais, de gênero, da cultura e dos estados patológicos e sintomáticosreclusos na psique humana. São reflexões desse estudo para futuras análises epossibilidades terapêuticas de casais e famílias que vivenciam as emoções de dor, ovazio, e o ódio contrastados com afirmações de amor.

    Palavras-chave: Violência doméstica. Consciência. Cuidado. Teoria Sistêmica.

    1. INTRODUÇÃO

    A violência nas famílias é um fenômeno que tem uma magnitude alarmante,

    ela perpassa diferentes classes sociais e ocorre em todos os países e culturas.

    Conforme Ravazola, (2007) entre 30 e 50% das famílias passam por problemas

    dessa natureza, envolvendo não somente a violência física, mas, sobretudo,

    psicológica. Não são poucos os esforços na compreensão e análise psicológica no

    intuito de combater e prevenir os episódios de violência ocorridos no ambiente

    familiar. É uma situação que requer consciência, cuidado e um olhar sistêmico que

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    nos permita ampliar tais problemas em todas as dimensões, para melhor

    compreendê-los.

    O nosso objetivo não foi o de buscar causalidades, embora estas possam ter

    sido apresentadas no primeiro momento ao identificar as regras e os padrões rígidos

    de funcionamento das relações familiares. Mudamos o foco, ao invés das

    preocupações lineares, de perguntar “por que” a violência acontece, como se

    houvesse alguma justificativa que valide o ato de violência, buscou-se a

    compreensão do problema perguntando na perspectiva dos conceitos de

    consciência e cuidado sobre o “como” ocorre a violência, no intuito de despertar

    percepções e possibilidades de ajuda psicoterapêutica que, quando não estão

    claras, muitas vezes reduzem a agressão, simplificando-a e distorcendo seus efeitos

    levando a pessoa a situações de impotência e de vitimização.

    Trazendo para o âmbito da terapia familiar e mais propriamente sobre a

    violência doméstica, estudamos autoras como Maria Cristina Ravazzola, Hirigoyen,

    Mônica McGoldricki, Rosana Papizo, entre outras, que fazem menção sobre a

    importância da consciência e do cuidado nas relações familiares, sobretudo na

    abordagem construcionista social, mas em nossa investigação não foi encontrado

    nenhum estudo específico sobre o assunto.As questões que nos motivaram para esse estudo foram algumas

    interrogações: se seria possível expandir a consciência e pensar o cuidado através

    das psicoterapias de casais e famílias em situação de violência doméstica.

    Perguntamos-nos como a consciência se manifesta em um homem que afirma amar

    a esposa, mas a agride de forma violenta, e embora procure ajuda terapêutica

    desejando mudar seu comportamento e evitar as agressões, se vê impotente para ir

    além de seus impulsos? Ou na mulher, que não suportando mais esse tipo detratamento decide sair de casa, recomeçar sua vida, e lida com os sentimentos

    como: o vazio, o preconceito social, o medo, a culpa e a ansiedade? São cenas

    apresentadas no filme analisado nesse artigo, muito próximas da vida real.

    Em sua complexidade, a consciência abrange todas as instâncias humanas,

    todas as áreas da ciência, ela perpassa os diferentes ângulos da cultura e das

    relações sociais, etnias, regras e comportamentos definidos socialmente, envolve a

    formação do “Eu”, o pensar, o querer, a dor, e o amor, entre outros aspectos. Sendo

    um dos mais importantes, senão o principal objeto de estudo da psicologia, têm sido

    pouco indagada pelos estudiosos dessa ciência, provavelmente devido a sua

    complexidade, ou por ser denominada uma questão introspectiva e pouco

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    experimental, embora tenha sido muito debatida ao longo da história entre filósofos

    idealistas e materialistas após a concepção dualista de Descartes (1596-1650) entre

    mente e corpo. No início da psicologia como ciência experimental as pesquisas de

    Wundt (1832-1920), conhecido como o pai da psicologia moderna, seguiram o

    modelo das ciências naturais, que culminaram em duas psicologias com enfoques

    metodológicos diferentes: a fisiológica e a experimental. Juntar as duas unidades

    psicofísicas foi o desafio encontrado por seus discípulos e abandonado por acharem

    soluções menos complicadas, porém, talvez, mais pobres, negando a experiência

    subjetiva (FIGUEIREDO, 1991, p. 36).

    Em relação ao cuidado, Heidegger em suas obras nos mostrou que em meio

    às nossas ocupações e preocupações nos encontramos na profundidade da vida,

    que é em sua essência, cuidado. No cuidado existimos “com o outro”, ou seja, não

    estamos sozinhos, isolados. Isso significa que somos enquanto nos relacionamos

    com tudo o que existe. Deixar de “cuidar”, ou “descuido” é um modo de ser disperso,

    ou “perder-se” da possibilidade mais própria de “ser”, ou “existir”, enquanto que

    “cuidar” é resgatar ou “curar”, “desvelar o ser”, cultivar, construir, habitar

    (FERNANDES, 201, p. 279).

    O estudo não teve a pretensão de esgotar o tema investigado ao analisar aviolência doméstica por um ângulo bem específico. Também não se quer apresentar

    uma definição fechada do conceito de consciência, o que equivaleria a “desvendar”

    um mistério que envolve o ser humano na busca de si mesmo. Da mesma forma,

    não nos foi possível dentro de uma breve análise do cuidado, aprofundar todo o seu

    sentido epistemológico delineado por Heidegger e pelos grandes expositores dessa

    temática. Longe de tal empreendimento, limitamo-nos primeiramente à compreensão

    das abordagens filosóficas de algumas epistemologias da consciência, priorizando aontológica, investigando uma possível equivalência com o conceito de cuidado para

    analisar a violência doméstica e seus grandes desafios, no intuito de ampliar nosso

    olhar, buscando identificar novas possibilidades de ajuda terapêutica para esses

    casos.

    2. MATERIAIS E MÉTODOS

    De acordo com a natureza deste estudo, optou-se pela pesquisa qualitativa

    através da análise de processos argumentativos. Os recursos metodológicos

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    buscam primeiramente um levantamento epistemológico dos conceitos filosóficos de

    consciência e cuidado no intuito de agregá-los à teoria sistêmica familiar e em

    seguida realizar uma análise do problema. Após a investigação dos fenômenos

    filosóficos os procedimentos técnicos buscam uma interpretação de um material

    filmográfico partindo da base teórica estudada. Dessa forma, busca-se uma

    compreensão das vivências de casais e famílias em situação de violência doméstica,

    evidenciadas à luz da teoria e do filme espanhol que na tradução para o português

    traz o título: “Pelos meus olhos”.

    Observamos que a tradução do título em português perde-se o sentido

    original pretendido pela autora, a cineasta Icíar Bollaín, que, ao discutir o tema da

    violência doméstica, do espanhol “Te Doy Mis Ojos”, traz o significado literal “Te dou

    meus olhos”, indicando a submissão da mulher frente à possessão do marido. O

    filme foi produzido em 2003, na cidade de Toledo, Espanha, retratando cenas de

    violência e mostrando um quadro de violência intrafamiliar onde os protagonistas

    vivem cenas de amor, entrelaçadas de sentimentos de dor e medo. No ano de seu

    lançamento o filme foi campeão de bilheterias, ganhador de Sete prêmios Goyas, o

    Oscar espanhol, tornando-se naquele país referência nos debates sobre esse tema.

    A análise dos sistemas familiares que envolvem a violência doméstica nospermite conhecer como ocorrem as interações entre pai, mãe, filhos (as) e as

    diferentes formações contidas nas famílias. A abordagem tradicional da teoria

    sistêmica procura conhecer a história psicossocial da família dentro de seu contexto

    histórico-cultural na sociedade, e em seguida as suas relações de poder para

    explicar a situação de violência contida na família (RIBEIRO e BAREICHA, 2008,

    apud GONÇALVES, 2009). Nesta investigação faremos um estudo diferenciado

    desse fenômeno no que tange à vivência da significação da violência, através daconsciência dos elementos que produzem efeitos nas relações, como as emoções, a

    neutralização da dor, a falta de defesa, etc.

    Serão analisadas cinco cenas do filme procurando sua correspondência aos

    conceitos desta investigação. As cenas selecionadas trazem os relatos que

    correspondem aos objetivos da pesquisa. Os episódios apresentam a realidade

    entre os diferentes ângulos da cultura, das relações sociais, das regras e

    comportamentos definidos socialmente conforme McGoldriki (2003). São cenas que

    também envolvem a formação do “eu”, o pensar, o querer, a dor, o amor, e a

    proteção, descritos por Hebeche (2002) mostrando o modo de ser das famílias e das

    relações do casal envolvido nesse caso de violência doméstica.

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    3. FUNDAMENTAÇÃO FILOSÓFICA E EPISTEMOLÓGICA

    3.1 Epistemologia da consciência

    A palavra “consciência” como é conhecida atualmente foi usada

    primeiramente na filosofia moderna por Descartes para designar o que se

    convencionou chamar de “consciência de si mesmo”, cujo objetivo era expressar o

    sentido de existência: “eu existo”, termo que passou a ser conhecido como forma de

    colocar “algo como evidente” (HEIDEGGER, 2009, p. 265).

    Para Descartes, apud Fernandes (2011), o cogito é o modo de acesso pelo

    qual o homem é capaz de estar consciente: compreende “tudo aquilo que é em mim

    e do qual eu sou imediatamente consciente (p. 109)” . O método cartesiano coloca

    tudo o que é possível ser cogitado dentro de uma evidência imediata, para o ego,

    (cogito ergo sum) e o que eu sou (ego sum res cogitans): duvidando, pensando,

    negando, afirmando, querendo, sentindo, imaginando, etc. para chegar ao substrato

    de tudo o que é cogitado, pelo “ego”, colocando em evidência a consciência do

    mundo que se diferencia da consciência de si mesmo.A concepção cartesiana resultou em uma separação radical entre corpo e

    espírito dando origem às discussões filosófica sobre a consciência. Hoje, a maioria

    dos teóricos contesta a proposição de que o ser humano teria duas realidades

    separadas: mente (alma, espírito) e corpo; a mente consciente seria uma substância

    pensante, capaz de produzir imagens, idéias e representações; e o corpo seria uma

    matéria cujas propriedades físicas dão origem ao comportamento, incluindo o

    cérebro (HILL, 2011).Posteriormente, com o idealismo Kantiano, o conceito recebeu um significado

    relacionado aos objetos experienciáveis de natureza sensorial, ou seja, na sua

    objetividade, em que o “ser” dos entes é orientado para a consciência. Para

    Brentano, seguido por Husserl, a consciência é ato, ela “se orienta para algo”,

    referindo-se à “intencionalidade da consciência”. Nesse sentido, a consciência “re”-

    presenta algo, ou seja, torna algo presente para mim, numa relação comigo, da qual

    eu sou representante. Assim, a consciência se torna “consciência de si”, ou

    “autoconsciência” (HEIDEGGER, 2009, p. 187).

    Na contemporaneidade alguns filósofos fizeram o caminho contrário ao

    cartesiano, retirando a consciência do reduto metafísico em que se encontra, saindo

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    da redução dos fenômenos da consciência do que é “ôntico”, trazendo-a para o

    âmbito ontológico, um caminho mais difícil, porém, mais originário do ponto de vista

    filosófico.

    Em Heidegger (2011), o fenômeno da consciência não é um conceito

    necessariamente isolado. Em Ser e tempo, embora tenha dedicado um capítulo de

    sua magna obra sobre a consciência, não a apresenta como um conceito à parte, ou

    seja, ela está situada no “modo de ser próprio” do Dasein. A consciência é um

    “apelo” da “cura” (cuidado) para um “poder-ser-si-mesmo”, como uma voz que

    impele o homem para seu sentido mais próprio de ser, o Dasein.

    Para Wittgenstein, (apud Hebeche, 2002), o problema da consciência é um

    problema de conceito. Wittgenstein rejeita as duas formas interpretativas da

    psicologia: mentalista e fisicalista, ou seja, os fundamentos da psicologia não são

    alcançados pelo método empírico, nem experimental, mas pressupõe uma

    compreensão do conceito através da linguagem. Para esse autor, a psicologia

    realiza uma confusão conceitual quando se dirige para objetos, tratando em terceira

    pessoa, vivências que dizem respeito o uso lingüístico da primeira pessoa, ou vice

    versa.

    A partir do pressuposto acima, percebe-se que na psicologia existemdiferentes formas de abordar a consciência, mas em geral, as investigações sobre a

    consciência estão basicamente centradas em três principais formas, e entre elas

    outras diversas subdivisões (HILL 2011), mas vamos concentrá-las da seguinte

    maneira: a consciência introspectiva; a consciência perceptual; e a consciência

    fenomênica. O foco do nosso estudo é esta última, portanto, será feito uma

    exposição breve sobre as outras, dando preferência ao estudo da consciência

    fenomênica.a) A consciência introspectiva: Os estados de consciência introspectiva

    foram discutidos com a maior relevância científica por autores consagrados, entre

    eles destacam-se Wundt e Freud. Embora sejam em muitos aspectos questionados,

    a consciência introspectiva tem sua importância. Em geral, os estados mentais são

    descritos pela fala, evidenciados pela capacidade lingüística do sujeito, pois

    envolvem conceituação e são geralmente assumidos em forma de juízos, como por

    exemplo: “os sentimentos de uma pessoa em relação à sua irmã, podem ser

    conscientes, mas em relação a seu irmão podem estar reprimidos”. São informações

    da consciência, que independente do mundo exterior também está ligada à

    experiência imediata, no sentido de que não derivam de raciocínio (HILL 2011).

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    Em Leipzig, na Alemanha, Wundt criou seu laboratório tendo em sua

    companhia vários estudantes que se tornaram pioneiros de seu trabalho, entre eles

    diversos americanos, mas, seu trabalho foi difundido em maior escala entre os

    russos. Além do método introspectivo trabalhado em laboratório, Wundt dedicou-se

    às questões filosóficas, políticas e culturais, de onde surgiram as duas vertentes da

    chamada “nova ciência”: a experimental e a social. O projeto de Wundt consistia em

    adequar a psicologia ao método das ciências naturais, sobretudo através das

    técnicas utilizadas pelos fisiologistas. Utilizando o método da análise ou redução, o

    interlocutor teria de ser capaz de definir o objeto em uma palavra, na consciência. As

    informações tinham de ser relatadas através da experiência imediata, para não

    sofrer nenhuma influência de interpretações pessoais, para uma descrição mais

    próxima da realidade. Dessa forma, a introspecção refere-se ao método de auto-

    análise da mente, através da percepção interna, onde o sujeito relata os

    pensamentos ou sentimentos pessoais, pretendendo ser uma experiência objetiva,

    através do método positivista conforme o modelo das ciências naturais (SCHULTZ &

    S. CHULTZ, 2005). Para Wundt, apud Schultz (2005), a experiência consciente teria

    de apresentar as partes elementares dos processos mentais de forma unificada,

    onde formaria uma unidade como uma “síntese criativa”, denominada apercepção,uma estrutura com leis e propriedades própria, tradicionalmente conhecida como: “a

    totalidade não é igual à soma das partes”, uma expressão que fora disseminada pela

    Gestalt.

    b) A consciência perceptual:  Essa abordagem hoje tem vários pontos de

    vista, o conceito aos poucos foi assumindo diferentes formas, e sua análise nos

    permitirá investigar a consciência fenomênica.

    Partindo da lingüística, a consciência perceptual é compreendida a partir dasidéias de “saber”, “conhecer”, ou “pôr algo como evidente”. Quando afirmamos que

    alguém é “consciente” de algo significa que ele tem uma orientação para aquele

    objeto. Como sabemos, esse ponto de vista partiu do método cartesiano, já exposto

    acima, seguido por vários teóricos, a partir da dualidade entre mente e corpo;

    espírito e matéria, de onde surgiu posteriormente, na psicologia, a dicotomia entre a

    psique e o comportamento, e diferentes concepções entre espiritualistas e

    materialistas.

    Orientar-se para determinado objeto é percebê-lo conscientemente, ou seja,

    estar ciente desse objeto. Esse estado perceptual, ou apercepção do que nos

    rodeia, permite-nos uma verificação, ou distinção entre o que “eu sou” e o objeto que

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    se apresenta; ou seja, há uma “consciência” dessa diferença. Para os defensores

    dessa teoria, essa percepção é “interna”, e distinta daquela que se apresenta como

    “externa”. Nessa perspectiva, a consciência me revela a presença de um “outro”,

    que possibilita que “eu” me perceba como distinto, ou seja, o sujeito se torna cônscio

    da sua exterioridade, e aqui estaria o sentido da autoconsciência (BESSANT, 1995).

    Para melhor analisar essa concepção, colocamos uma dúvida: se a

    consciência perceptual é essencialmente representacional, ou uma forma de acesso

    a objetos que não envolvem representações? (HILL, 2011). Optando pela segunda

    hipótese passamos do ponto de vista das investigações das “evidências” de

    Descartes, por onde seguiram os empiristas, para entrarmos no fenomenológico,

    que será exposto mais à frente.

    A teoria de uma consciência perceptual e intencional, analisada por Husserl,

    distingue duas formas de percepção:  percepção imanente e transcendente

    (FERNANDES, 2011, p.112). Nos atos imanentes, estão as nossas vivências:

    percepções, fantasias, recordações, desejos, sentimentos, etc. enquanto que os

    atos transcendentes são as vivências de outra consciência, o das essências.

    Assim, Husserl desenvolve uma fenomenologia da consciência, a partir da

    subjetividade transcendental, com a pretensão de fundar uma ciência psicológica emoposição ao naturalismo, ou psicologismo. Dessa forma, a análise perceptual de

    Husserl pretende superar o método experimental para fazer uma análise sistemática

    da consciência, que daria lugar a uma base mais segura das investigações positivas,

    denominando-a de “fenomenologia pura”. A semelhança das ciências positivistas,

    Husserl coloca na subjetividade, num sujeito, “eu”, a condição de conhecer,

    relacionada a um objeto, através do cogito. É o cogito que cogita, sobre o que se vê,

    através da percepção imanente, sobre a coisa percebida. Tais atos são vivênciasconhecidas pela consciência como algo transcendente, pois está fora da unidade

    com o próprio perceber. Mas as duas realidades só podem ser separadas

    abstrativamente, pois elas estão em uma estreita unidade. As primeiras vivências

    foram denominadas por Husserl como “atos reflexivos”, representam grande

    importância para a estrutura da consciência, e indicam uma região de fenômenos,

    mas não se restringe a estes. Portanto, a consciência é vista como uma região de

    fenômenos, acessados pela apercepção, ou percepção do imanente, também

    conhecida como percepção interna do sujeito (IDEM, 2011).

    c) A consciência fenomênica: Assim como as concepções anteriores sobre

    a consciência, a fenomênica também passa por diversos pontos de vista. Ao analisar

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    os fenômenos, surge uma série de teorias que indagam se o conhecimento sobre

    suas propriedades são conhecidas objetivamente ou são propriedades subjetivas,

    por exemplo, uma dor, perguntamos: qual seria o modo adequado de evocá-la? As

    propriedades qualitativas da consciência não são fáceis de delinear, pois se trata de

    uma região de fenômenos complexos, que abrem diversos caminhos para serem

    explorados.

    Neste estudo procuramos esclarecer o ponto de vista ontológico. O caminho

    que estamos trilhando é um dos mais difíceis, muito explorado, mas que ainda se

    mantém em seu mistério (IDEM, 2011).

    Para a compreensão da consciência precisamos romper com um caminho

    trilhado pela ciência positiva para entrarmos nas estruturas das vivências em sua

    relação com a vida, e como ela se manifesta a nós, em seu sentido mais originário.

    Essa proposta da fenomenologia não se trata de uma consciência transcendental,

    como queria Husserl, interpretada como fenômeno psíquico, em sua relação oposta

    aos eventos físicos. Nessa perspectiva, o fenomenólogo Marcos Fernandes, afirma

    que a psicologia, tomando por objeto os processos psíquicos, tidos por eventos que

    ocorrem com o sujeito, ou aquilo que consideramos de natureza psíquica, é

    coisificada e objetificada, deixando de lado a dimensão originária das vivências. Oscomportamentos humanos regidos ou não por um “eu”, são analisados como

    processos psíquicos, onde os fatos, e ocorrências se dão à semelhança das coisas

    físicas, ora declaradas distintas destas, ora vistas apenas como comportamentos,

    seguindo leis rígidas como as leis físicas, e são, portanto, despidos de um evento

    psíquico em seu sentido originário. Exemplos da natureza desses eventos são as

    sensações, as representações, as emoções, etc. assumidas como formas em que o

    eu se manifesta.Na consciência, o eu não aparece como “algo” que sofre estímulos e que

    provocam no sujeito reações, externas ou internas, mas como o próprio

    acontecimento da vida, como evento da vida, que se dá através de uma consciência,

    pela qual se manifesta em toda ocorrência da vida. Nesse sentido, a vida não é

    meramente algo orgânico ou biológico, que se apresenta dentro de um

    comportamento mecânico. Trata-se então de resgatar o sentido original, “natural” da

    vida, muito embora se admita, ao menos a priori, que ela se apresenta “como uma

    subjetividade empírica, individual, um “eu” com esta ou aquela identidade particular”

    (IDEM, 2011).

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    Na concepção “natural”, fenomenológica, a percepção é uma vivência

    cotidiana, que não necessita de um esforço para verificar a presença de algo, de um

    objeto, pois ali já está dado o seu significado. Por exemplo, quando vejo uma

    cadeira, o objeto é percebido como tal, de modo imediato, como ele se mostra, mas

    ao se tentar descrever tal objeto, encontramos dificuldades, perdendo a simplicidade

    da percepção cotidiana, pois, se partimos da investigação técnica, mediata, o

    ontológico perde seu sentido.

    Somente se conseguirmos manter um olhar fenomenológico para o que se

    mostra de modo natural e imediato na percepção, a partir da percepção e

    como percepção, é que conseguiremos também trazer à fala, de modoapropriado, o que se dá como o fenômeno, a coisa mesma da percepção. E

    o fenômeno da percepção é sempre algo concreto (FERNANDES, 2011, p.

    128).

    A percepção é intencional, um ato, um comportamento. Isso não significa

    como já exposto, que ela seja um processo interno do sujeito, que corresponde a

    algo fora dele, externo, como uma ocorrência psíquica, que corresponde a uma

    coisa real e física. “Essa concepção, de onde o sujeito parte da consciência” como

    vinda de dentro, para a realidade de um objeto externo, conforme o autor é uma

    forma ingênua de interpretação, e também um equívoco quanto ao fenômeno da

    percepção (relação entre dentro e fora, psíquico e físico, imanente e transcendente).

    Por outro lado, a percepção não precisa ser algo que exista realmente, como ocorre,

    por exemplo, nas alucinações, pois nesse processo psíquico não está presente

    nenhum objeto real, mas há uma percepção. E quanto à percepção falaz, quando

    estou “andando pela estrada e vejo um homem que me vem ao encontro; quando

    chego mais perto, vejo que não era um homem, mas uma árvore”. Também nesse

    caso, o percebido não é o objeto que me aparecia, mas algo ilusório. Resumindo,

    não há necessidade de que o objeto seja real, para que se tenha uma percepção, e

    por esse motivo é intencional, ou seja, parte do sujeito, mas não tem que ser um

    objeto real:

    A percepção presumida é um ato intencional: um dirigir-se a alguma coisa,

    no caso, um dirigir-se a um percebido presumido. Não é assim que uma

    percepção seja intencional só graças ao fato de que um elemento físico

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    entre em relação com o psíquico e não seja mais intencional se este real

    não existisse, mas é a percepção em si mesma, autêntica ou falaz, “normal”

    ou “patológica”, a ser intencional. Com outras palavras, intencionalidade não

    é uma propriedade que se acrescentaria à percepção em certos casos, masa percepção é por natureza, a priori, intencional, prescindindo do fato de o

    percebido ser realiter simplesmente dado ou não. E justamente porque a

    percepção como tal é um dirigir-se a alguma coisa, porque a

    intencionalidade constitui a estrutura do comportamento mesmo, é que pode

    se dar algo como a percepção falaz e a alucinação (FERNANDES, 2011, p.

    129-130).

    Passemos agora para a análise da consciência conforme Luiz Hebeche, queembora busque outro fundamento, uma “filosofia da psicologia”, devido à

    semelhança das argumentações, poderia estar inclusa no conceito da consciência

    fenomênica. Hebeche (2011) fez um estudo sobre a filosofia de Wittgenstein em sua

    obra “Investigações Filosóficas”, que investiga o “mundo da consciência”, deixando

    de lado a concepção de um sujeito transcendental ou de processos mentais

    neurológicos e passa a considerar a consciência a partir da linguagem.

    Hebeche (2011) também propõe um estudo da consciência que se afaste do

    modelo científico positivista, pelo qual se procura explicar tudo. Para esse autor, o

    conceito de consciência é vago, e só pode ser apresentado dentro do que

    Wittgenstein convencionou chamar de “visão panorâmica”, no entanto, não pode ser

    considerado como um super conceito. A filosofia da linguagem de Wittgenstein tem a

    pretensão de sair do pensamento objeto-designação, que utiliza a linguagem

    partindo de informações que estejam além dela, ou seja, da metafísica, e mais

    precisamente dos dados sensíveis ou estados mentais. Sua crítica à psicologia parte

    da mesma hipótese da fenomenologia do Prof. Marcos Fernandes, quando eventos

    psíquicos, mentais, são tratados da mesma forma que nas ciências naturais, dos

    aspectos físicos, conforme o método da psicologia empírica. Luiz Hebeche afirma

    que é preciso retirar a psicologia da redução metafísica em que ela se encontra, pois

    ela dirige seus conceitos a objetos, tornando confusa a distinção entre primeira e

    terceira pessoa, ou vice-versa:

    A filosofia da psicologia tem o mesmo objetivo da gramática da consciência,

    isto é, a eliminação da idéia de que a linguagem se refira a processos

    internos ou processos externos. O mundo da consciência não se refere a

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    eventos a que se possa ter acesso por introspecção, e tampouco pela

    observação comportamental. A fonte dessa ilusão é o modelo que orienta a

    linguagem para os objetos. O interesse em fazer-se uma tematização do

    psicológico é o de retirar a consciência do reduto metafísico em quegeralmente se encontra, pois à medida que a psicologia se torna ciência

    mental, assim como as outras ciências naturais, ela dirige seus conceitos

    para os objetos, isto é, ela opera desde uma confusão central, ao tratar em

    terceira pessoa vivências que dizem respeito ao uso lingüístico na primeira

    pessoa. Essa confusão, aliás, origina o caráter nebuloso do conceito de

    consciência, pois, nesse caso, ao se fazer essa passagem ilegítima entre a

    gramática do “eu” e a do “ele”, passa-se a considerar os eventos internos

    desde os eventos externos, e vice-versa (HEBECHE, 2002, p. 17 – 18)

    Desse problema surge a crítica: se “explicar” é “chegar ao conhecimento das

    coisas”, a visão é unilateral, então só seria legítimo um método para determinar o

    que as coisas são. Para evitar esse engano, Hebeche apresenta outro modelo,

    diferente da relação objeto-designação. Trata-se de uma “teoria da visão”, partindo

    de uma metáfora visual do rosto. É um método que se apresenta na forma da

    linguagem do “ver-como”, ou “revelação do aspecto”, e na “vivência da significação”.

    Na revelação do aspecto, o conceito de “ver” se distancia da concepção

    física, ver não se limita ao domínio de técnicas que se padronizam na medida em

    que apresentamos sua causalidade, mas seu uso está na própria linguagem. O

    exemplo dado por Wittgenstein é o do rosto que oscila, ou da figura pato-lebre:

    quando eu olho para certa figura e vejo um rosto que se parece com outro, ou olho e

    vejo uma imagem de um pato que se “transforma” em uma lebre, tenho figuras que

    oscilam. Conforme o autor, e aqui podemos concordar com o Prof. Marcos

    Fernandes, dizer que se trata de uma visão que envolve a mente ou interior é umailusão, pois ela só é possível ser notada a partir da sua exterioridade: “como

    sabemos, a revelação do aspecto é a exteriorização da surpresa quando da

    oscilação da figura”. Assim, a revelação do aspecto envolve o ver, o pensar, o

    querer e o representar, ou seja, o “ver-como” provoca interrogações na medida em

    que os “fenômenos” nos surpreendem, portanto, não está limitado apenas à

    percepção. Isto é, ela se caracteriza como algo dinâmico, que não se reduz ao

    simples “ver”, é uma questão que envolve o pensar, e “pensar é uma ação”.A relação do ver, nesse caso, não é causal, mas conceitual. Essa seria a

    confusão da psicologia descritiva, usar o conceito de ver como termo técnico: “eu

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    vejo uma árvore”, “ele vê uma árvore”. Os termos não são equivalentes, pois à

    medida que tento explicar o que vejo, a minha descrição não corresponde ao que

    “ele” vê, ou seja, para explicar eu apenas usaria conceitos, tão diferentes do que o

    outro descreve, quanto a sua relação causal. Nesse sentido, Hebeche afirma que a

    psicologia não pode nos ensinar o que é ver, pois o ver está limitado a uma ação, ou

    comportamento, pois “um conceito se impõe na tessitura da vida”. Aqui temos uma

    regra determinada pelo uso da palavra, mas ela se diversifica, se torna ambígua,

    como por exemplo, quando observo um rosto que se modifica e se “transforma” em

    outro, na verdade, a figura permanece a mesma, é o meu modo de ver que percebe

    dessa ou daquela maneira, o objeto que vejo é figurado. Se assim descrevo, a

    ambigüidade desaparece, resultando apenas numa percepção.

    A partir dessa explanação, podemos compreender o sentido da consciência,

    ela está presente quando consigo ver um aspecto, mas não designando-o como isto

    ou aquilo, descrevendo-o ou explicando-o, mas apenas notando-o, sendo que

    “notar” corresponde a “ver algo como algo”. A consciência é “dar-se conta” do que é

    esse algo que se apresenta. Para uma pessoa que é “cega para o aspecto”, a

    consciência lhe escapa, ela não tem aquela habilidade para “ver como” as coisas se

    apresentam. Utilizando-se do método objeto-designação, associando uma palavra acada coisa, ele perde a apresentação panorâmica da linguagem. Analogamente

    podemos compreender a cegueira comparando-a a ausência do ouvido musical de

    uma pessoa que domina algumas técnicas, mas não consegue perceber as sutilezas

    da música, que estão na beleza do “como” a técnica pode permitir que ele

    compreenda as graduações da música, pois lhe escapa a vivência da significação.

    A vivência da significação das palavras está relacionada à familiaridade como

    que lidamos com os conceitos. O cego para o aspecto que não domina a técnica emque a linguagem apresenta tal coisa, não consegue compreendê-la. Ao observar o

    aspecto e lidar com suas sutilezas, aquele que possui a capacidade de “ver-como”,

    tem uma vivência da palavra, como a criança que ao aprender as regras da

    linguagem sobre os lados de um triângulo, por ter a vivência, consegue distinguir a

    convenção da base, fazendo uso correto dessa figura. Se não vivenciamos uma

    palavra, ou determinada letra, ela poderá se apresentar apenas como ruído ou

    riscos sem uma significação, assim como as palavras: “gordo” e “magro”. Se eu uso

    a expressão de uma terça-feira “gorda”, e se torna estranha para alguém, é porque

    ele não vivenciou a significação dessa palavra.

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    Através dessas concepções, podemos concluir que a “ percepção intencional”

    e “ver um aspecto” se assemelham enquanto posição de onde parte a consciência.

    Ambas partem da crítica à psicologia apresentando um modelo de análise dos

    fenômenos psicológicos que não estejam baseados na descrição, na interpretação

    dos mesmos, mas na pura concreção de como eles se apresentam, em sua

    naturalidade.

    3.2 A Epistemologia do cuidado

    Até o presente momento desse artigo, apresentamos alguns aspectosconceituais da consciência. Antes de partirmos propriamente para a análise da

    violência familiar, pretendemos abordar a temática do cuidado para em seguida

    realizar uma perspectiva qualitativa dos serviços terapêuticos desse espaço

    doméstico.

    Vale rememorar o sentido da palavra através da lenda de onde se tornou

    conhecida:

    Diz uma lenda que,

    Certo dia, ao atravessar um rio, Cuidado viu um pedaço de barro. Lobo teve

    uma idéia inspirada. Tomou um pouco de barro e começou a dar-lhe forma.

    Enquanto contemplava o que havia feito, apareceu Júpiter. Cuidado pediu-

    lhe que soprasse espírito nele. O que Júpiter fez de bom grado. Quando,

    porém, Cuidado quis dar um nome à criatura que havia moldado, Júpiter

    proibiu. Exigiu que fosse imposto o seu nome. Enquanto Júpiter e Cuidado

    discutiam, surgiu, de repente a Terra. Quis também ela conferir o seu nome

    à criatura, pois fora feita de barro, material do corpo da terra. Originou-se

    então uma discussão generalizada. De comum acordo pediram a Saturno

    que funcionasse com árbitro. Este tomou a seguinte decisão que pareceu

     justa: “Você, Jupiter, deu-lhe o espírito; receberá, pois, de volta este espírito

    por ocasião da morte dessa criatura. Você, Terra, deu-lhe o corpo;

    receberá, portanto, também de volta o seu corpo quando essa criatura

    morrer. Mas como você, Cuidado, foi quem, por primeiro, moldou a criatura,

    ficará sob seus cuidados enquanto ela viver. E uma vez que, entre vocês,

    há acalorada discussão acerca do nome, decido eu: esta criatura seráchamada Homem, isto é, feita de húmus, que significa terra fértil (BOFF,

    2004, p. 99).

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    O sentido etimológico do termo cuidado, tratados nos textos clássicos de

    filosofia, é colocado por vários estudiosos na temática do pensar, como empenho

    em curar, no sentido terapêutico, conforme o verbo latino: “curare”. Pensar alguma

    coisa tem um significado de “agitar o pensamento”, ou “co-gitar”, um revolver no

    espírito, ou tornar essa coisa pensada, “revirada”, para que ocorra nela, mudanças.

    No contexto das relações, por exemplo, a cura está ligada diretamente ao amor e a

    amizade, e nesse sentido implica um “tratar”, ou melhor, “cuidar” para se curar.

    Conforme Duarte (2011), esse cuidado implica uma relação com o outro em

    toda a dimensão humana, seja física ou emocional, que implica o pensamento em

    termos de ação. Mas ao mesmo tempo, o cuidado não está limitado a uma

    assistência no âmbito da saúde, seja qual for. Ele requer uma ação mais ampla, uma

    atitude ética em relação à vida e a tudo que existe. Nesse sentido, implica uma

    responsabilidade, mais do que um ato interventivo que possamos fazer com o uso

    de técnicas. Quando eu cuido, eu me torno responsável pelo outro, e, o contrário do

    cuidado seria então um descaso, ou descuido. A responsabilidade pelo outro requer

    participar de seu destino, de suas buscas e sofrimentos, sucessos e insucessos, e

    enfim, de sua vida. Por último, podemos afirmar que o cuidado requer dois

    significados: o de solicitude, atenção para com o outro, e a preocupação, ou umainquietação por estar envolvido, ligado ao outro (FERNANDES, 2011).

    Para Heidegger (2009), primeiro filósofo a retomar o sentido original da

    palavra, o cuidado tem um sentido existencial, isto é, ontológico, em que “a analítica

    do Dasein pergunta pela sua constituição fundamental ontológica  e não quer

    simplesmente descrever fenômenos ônticos do Dasein (p. 210)”, é, portanto, uma

    questão própria do ser do homem, da sua origem. Sobre essa questão, Heidegger

    critica a visão meramente biológica das ações humanas, que seriam mecânicas,fazendo alusão à psicanálise, quando coloca o querer, o desejar, e o ansiar como

    atos psíquicos. Heidegger chega a fazer a pergunta: nessa concepção “seria mesmo

    o homem que está aí”? Para ele, esses atos não seriam de um “si-mesmo”, ou seja,

    de um “eu” (sujeito) em ação, mas da própria ocupação do Dasein com as coisas do

    mundo, como um “ser-no-mundo”, no sentido de que há uma “abertura” para isso

    como modos de ser.

    Portanto, falar de cuidado é antes de tudo entender seu sentido original, não

    simplesmente aplicá-lo às nossas relações. Ele é o modo de ser, conforme

    Heidegger (2011) em um tríplice momento, já antes mesmo de existir no mundo, em

    “sendo no mundo” e em relação a outro.

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    Por “ser-no-mundo” o homem frequentemente se dispersa perdendo seu

    sentido próprio de ser, pois ele se ocupa com o mundo, colocando sempre metas e

    objetivos a conquistar, distanciando de si mesmo, até o ponto de se alienar, isto é,

    ficar longe de si mesmo, encontrando o vazio. Nessa perda do cuidado consigo, ele

    se agarra a algo que lhe dê segurança, que torna mais fácil e cômodo para si. Essa

    perda também ocorre nos relacionamentos com os outros (solicitude), pois ele vai da

    indiferença e do ódio, por um lado, à diligência e amor por outro lado (FERNANDES,

    2011).

    Concluímos que nós despertamos dessa dispersão quando ouvimos a “voz da

    consciência”, sugerida por Heidegger que também é para ele a voz do cuidado, que

    nos solicita a cuidarmos do nosso modo mais próprio de ser. Em todas as nossas

    relações com tudo o que existe, a consciência e o cuidado, nos possibilita a

    compreensão do nosso sentido de ser.

    4. A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA À LUZ DA ANÁLISE SISTÊMICA

    4.1 A violência doméstica

    Marie Hirigoeyen (2006), em seu livro: “A violência no casal”, afirma que a

    violência doméstica no sentido epistemológico é difícil de ser definida, devido a seus

    diferentes significados, que estão relacionados a maus tratos físicos, psicológicos,

    emocionais, institucionais, simbólicos e sexuais. Um dos motivos apontados refere-

    se às dificuldades de se verbalizar o que ocorre. Conforme a autora, a “vítima” 2 

    pode ser aniquilada psicologicamente, mas não conseguir falar sobre isso. Ao tentardiferenciar a violência psicológica da violência física, encontramos dificuldades, pois

    quando ocorre agressão física, ela não está separada da psicológica. Constataram-

    se em algumas pesquisas, uma tomada de consciência nos relatos de vítimas em

    situações que foram reavaliadas violências que não tinham sido percebidas de

    imediato, no entanto elas são na maioria encobertas. O motivo principal é deflagrado

    pela dominação, que não ocorre apenas pelo uso da força física, mas também

    2  , ,

    , , ,

    () (, 2008), .

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    quais se perpetuam algumas condutas que não desejamos. Também nos

    habilita a buscar como podemos nos relacionar com os protagonistas dos

    circuitos familiares nos quais há violência, considerando a singularidade de

    cada situação e as possibilidades de mudança de cada um (a), chegar amanter diálogos frutíferos com os perpetradores de violências sem agredi-

    los nem demonizá-los (RAVAZOLA, 2008, p. 16). 

    4.2 A influência da cultura nas relações familiares

    Para ampliar nossa análise e fazer uma leitura mais clara através da

    consciência e do cuidado, precisamos compreender a influência que a cultura exerce

    nas relações familiares. Conforme Falicov (1995, apud LAIRD, 2003), “a cultura é

    encarada como ocorrendo em muitos contextos que criam ‘fronteiras culturais’

    comuns, e também diversidade; imprevisibilidade e possibilidade, assim como

    regularidade e pressa (p.25)”. Segundo a autora, o terapeuta que não estiver

    consciente das exigências da cultura poderá ficar “cego para o não familiar” e até

    “estimular injustiça”, enquanto que o aprendizado sobre a cultura (s) pode nos

    ensinar a investigar melhor os padrões existentes dos nossos clientes e seus

    significados culturais. Porém, a cultura não pode ser vista como se fosse formada

    por características imutáveis, mas, antes, é preciso, aprender como aprender sobre

    cultura, ou seja, aprender a olhá-la de forma crítica e problemática:

    Essas idéias normativas, em que estamos todos incorporados, encorajam

    os estereótipos, estreita nosso campo de possibilidades e nos impede de

    reconhecer a complexidade dinâmica e a natureza continuamente mutante

    da identidade e da experiência étnica, de gênero, de classe social ou

    orientação sexual. (LAIRD, 2003, p. 25).

    Para Ravazzola (2007), nos sistemas familiares são reproduzidas algumas

    idéias abusivas, rígidas afirmações mantidas culturalmente e reforçadoras dos

    papéis dentro da família. Algumas situações são naturalmente aceitas e reforçadas

    na sociedade, como as idéias de que as mulheres que sofrem violência sentiriam

    supostamente prazer com o maltrato ou estão passando por isso porque

    provocaram. Visivelmente também são as discriminações que caracterizam os

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    olhares sobre os outros, de acordo com suas raças, etnias, religião, gênero, etc.

    aplicando-lhes algum tipo de desqualificação: “Isso é serviço de preto”, ou “as

    mulheres são emotivas, frágeis, não podem ser objetivas” (p. 19). Tais estereótipos

    criam situações de desigualdades, hierarquias e discriminações, muito presentes

    nas famílias, sobretudo, em situações de violência.

    4.3 As relações de gênero como favorecedor da violência familiar

    Conforme já afirmamos acima, normalmente quando nos referimos a “ensinar

    a cultura”, entendemos que “aprender sobre cultura” é “respeitar” as diferençasculturais e não questioná-la. Essa postura por melhor que seja torna-nos inertes

    para promover mudanças significativas em relação a elas, mesmo quando

    inaceitáveis. Analisando as relações de gênero, estabelecidas por culturas

    predominantemente patriarcais, mantenedoras da hierarquização na sociedade, de

    domínio do outro, no caso mais comum a mulher, “domesticada” para ser “dócil”,

    “mãe”, “companheira”, etc. para manutenção do status masculino, alimentado

    também por uma moral religiosa, fator que em algumas etnias justifica a violênciacontra a mulher (LAIRD, 2003, p. 26).

    Segundo o antropólogo Felipe Areda (2006), “ninguém nasce homem, nem se

    é homem, empenha-se constantemente na busca de tornar-se homem (p. 1)”,  ou

    seja, ninguém nasce com uma identidade sexual, e nesse caso, masculina. O

    indivíduo “se faz homem” e o outro “se faz mulher”.

    Conforme o autor, nessa relação onde a mulher é o “outro”, de onde parte a

    masculinidade, dentro de uma rede agonística de afirmação da própria virilidade,

    criou-se uma hierarquia. É uma moral sustentada na figura do outro, que parte de

    uma relação consigo. Esse outro se caracteriza como uma categoria tão original

    quanto à própria “consciência”, ou até mais. Nessa relação é construída

    culturalmente uma subjetividade, uma masculinidade distanciada do gênero

    feminino. Esse processo de negação do feminino é uma forma de se sentir viril, para

    a conquista do falo-narcísico, (expressão lacaniana), às vezes exibido pela figura da

    mulher, sobretudo na relação sexual, para depois expurgá-la de si, para não se

    confundir com o outro, e para a manutenção da construção hierárquico-violenta

    como um ato político das relações de gênero.

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    Percebe-se então que uma identidade é construída fundamentada na

    opressão do outro, porém sem identidade comum, como afirma Clímaco (2008):

    “Hipoteticamente, esse modelo não aceitaria a existência de masculinidades, mas

    sim, de uma masculinidade, devidamente viril (com as mulheres), dominante,

    provedora e, de preferência, branca (p.73).”  Demonstrando assim  que circulando

     junto com a discriminação sexual, existe também um viés racista. 

    Essas diferenças tornam-se um dilema para terapeutas ao lidar com essa

    narrativa subjugadora. Os discursos dominantes também se apresentam dentro de

    uma imposição política pessoal (HOLFFMAN, 1992, apud LAIRD, 2003). Nesse ato

    político, o terapeuta precisa ajudar o cliente a “desconstruir, não somente suas auto-

    narrativas, mas também essas narrativas culturais dominantes e as práticas

    discursivas que constituem suas vidas” (IBID, 2003, p. 26). Porém, esse “deixar” os

    próprios pressupostos, para que o outro possa emergir, é uma prática do cuidado, e

    só podemos fazê-lo mediante a consciência do terapeuta que somos que está ali

     para ajudar o outro a “ver”, ou sair de sua “cegueira”. Ele se percebe e percebe o

    outro como o “especialista”, pois adentrará no espaço do outro, não como dotado de

    um saber, mas com sua “ingenuidade cultural” e a “curiosidade respeitosa” na

    expressão de Laird, (2003), como habilidades importantes para desconstruir osparadigmas culturais do cliente, e ampliar suas visões.

    Conforme Michael Kaufman (1999, apud Clímaco, 2008), para a manutenção

    da masculinidade e sustentação da violência existe o que ele chamou de “Sete ‘P’  

    da violência dos homens” contra homens e mulheres:

    • Poder patriarcal : sociedades dominadas por homens são estruturadas na

    hierarquia e violência de homens sobre mulheres e também sobre outros

    homens e na 'auto-violência', constituindo um ambiente que tem como

    principal função a manutenção do poder da população masculina;  

    • Privilégios: as violências cometidas pelos homens não acontecem apenas

    devido às desigualdades de poder, mas também, a uma crença de

    merecimento de privilégios que devem ser concedidos pelas mulheres;

    • Permissão: conforme Kaufman, a violência contra a mulher é abertamente

    permitida e até estimulada pelos costumes sociais, códigos penais e por

    algumas religiões. Do mesmo modo, a violência de homens contra outros

    homens não só é permitida, como também celebrada e banalizada emfilmes, esportes e na literatura;

    • Paradoxo do poder masculino: para desenvolver seus poderes individuais

    e sociais, os homens constroem armaduras que os isolam do contato afetivo

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    com o próximo e da arena do cuidado, seja esse cuidado para outros ou

    para ele mesmo;

    • Armadura psicológica da masculinidade: constituída a partir da negação e

    rejeição de qualquer aspecto que possa parecer feminino;• Pressão psíquica: os homens são educados desde a infância para não

    experienciar ou expressar emoções e sentimentos como medo, dor e

    carinho. A raiva, por outro lado, é uma das poucas emoções permitidas e,

    assim, outras emoções são canalizadas por esse canal;

    • Experiências passadas: o fato de muitos homens crescerem observando

    atos de violência realizados por outros homens - muitas vezes seus pais -

    pode caracterizar tais situações como a norma a ser seguida (p. 76).

    Para Nascimento (2001, apud Clímaco, 2008) as possibilidades de se exercer

    a masculinidade passa pela desvinculação do modelo hegemônico atrelado ao

    patriarcado, mas de forma que se dê conta de toda a riqueza e expressão da

    criatura humana, pois:

    As masculinidades não são outorgadas, mas construídas enquantoexperiência subjetiva e social que são. Se elas são construídas social,

    cultural e historicamente, podem ser desconstruídas e reconstruídas ao

    longo da vida de um homem (p. 74). 

    É preciso, portanto, na perspectiva da consciência e do cuidado, pensar

    estratégias que evidenciem tais práticas e as modifique. Notamos que o ser humano,

    por ser dinâmico e estar em constante processo de estruturação-desestruração,inserido em um contexto histórico, precisa refletir e modificar suas percepções,

    romper a alienação secular e pensar em novas formas de convívio com as

    diferenças.

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    5. O ENTENDIMENTO DAS SITUAÇÕES DE VIOLÊNCIA ATRAVÉS DA

    CONSCIÊNCIA E DO CUIDADO

    Para compreender melhor essa análise, de agregar os valores dos conceitos

    de consciência e cuidado aplicados à nossa temática, podemos apontar uma

    experiência que se assemelha a abordagem que estamos apresentando.

    Rosana Papizo (2008), fala de uma experiência de atendimento a famílias em

    situação de violência, através do Instituto de Terapia Familiar do Rio de Janeiro,

    baseando em alternativas de novos métodos, a partir da abordagem “poética social”

    de John Shotter, inspirado em Wittgenstein, procura compreender a influência da

    cultura, entre outros aspectos presentes na violência doméstica. Conforme a autora,

    essa abordagem evita buscar explicações, ou descobrir questões ocultas que

    desencadearam a violência, mas buscam o “como” construir novos caminhos através

    da reflexão e da troca de experiências: “questiona-se menos: como posso explicar o

    que acontece? E mais: como, a partir daqui, continuar coordenando nossas ações”.

    Em vez de explicar o que aconteceu, ou conceitualizar, busca-se o entendimento

    das situações de violência.

    O que se manteve, independente das situações, foi nossa visão de que a

    violência não é um episódio fortuito na vida familiar ou mesmo uma soma de

    episódios, mas um processo complexo de formas de se relacionar que uma

    família desenvolve, coerentemente com a cultura em que vivemos e na qual

    a família está incluída de diversas maneiras. Fazem parte dos ingredientes

    que culminam em episódios violentos muitas formas de relação que não

    necessariamente estariam descritas como violentas, e isoladas, bem comocertas formas de falar e dúvidas a respeito de limites entre o eu e o outro

    (PAPIZO, 2008, p. 480).

    Assim como na experiência descrita acima, essa análise procurou investigar

    formas de construir novas relações entre as famílias através de recursos ainda

    pouco explorados em terapias de família. A experiência mostra que é necessário

    criar nessa relação, um espaço mútuo de cuidado, que possibilite um despertar da

    consciência da violência, viabilizando caminhos que possam discuti-la em umespaço de escuta e superação.

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    mais apropriadamente de pantufas3, um calçado com estofo, de uso doméstico, para

    agasalhar os pés. Quando Ana, sua irmã, pergunta o que está acontecendo, ela

    responde: “vim de “pantufas”... Chora e abraça a irmã, dizendo: “estou desnorteada”.

    Conforme o roteiro do filme, anunciado pela autora: “Ela sabe que o marido vai

    procurá-la e isso a deixa apavorada”. “Ela é tudo para ele, é o seu sol”. Quando ele

    a procura depois do ocorrido, insiste para que ela volte para “sua casa”, e para

    tentar convencê-la entrega-lhe um presente e declara: “você é a luz dos meus olhos,

    não posso viver sem você”.

    Os elementos da comunicação revelam uma habilidade utilizada pelo marido

    ao tentar uma reaproximação, que embora se apresente como cuidados são na

    verdade, articulações inconscientes para manipular a companheira. O cuidado é

    antes de tudo uma solicitude, uma atenção para com a pessoa, que se sente

    responsável por ela. Os olhos que declaram afeto não tiveram a capacidade de

    “enxergar” a si mesmo, ou seja, quem é o “eu”, (consciência), e perceber quem é o

    “outro” que lhe dá amor (cuidado), mas se torna “vítima” da violência, dentro de um

    lar onde não se percebe reciprocamente abrigada, mostrando ingredientes de

    olhares de medo, sofrimentos, ameaças constante e dúvidas. Isso é identificado ao

    longo do filme, as cenas mostram o modo de ser da família em suas relações e osacontecimentos que imprimem a violência em sua complexidade, intrínseca à

    cultura, dentro de uma visão sistêmica e de gênero.

    O entendimento da situação de violência requer uma análise da consciência

    dos elementos que produzem os efeitos nas relações, conforme Ravazzola (2007).

    As vivências dos fatos, as emoções, as sensações, as representações, a dor são

    neutralizadas, deixando a mulher em situação de vítima. As estruturas de suas

    vivências revelam seu modo de ser, inclusive familiar: desnorteada, apavorada, semsaber o que fazer e o que vai acontecer após ter deixado seu lar. “Como” ela se

    manifesta, são os fatos, as vivências que pertencem à própria pessoa, em seu

    sentido mais originário.

    Na consciência, o eu não é “algo” que sofre estímulo e provoca reações no

    sujeito, mas se manifesta como o próprio acontecimento da vida, evento da vida

    (FERNANDES, 2011). Ao perceber que está sem os sapatos adequados, a

    3  . .

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    personagem se espanta, vendo a si mesma perdida no mundo de ameaças,

    insegura, na companhia de uma criança, assustada e indefesa.

    O fato de “sair de casa”, “deixar o lar”, também a deixa mais desestruturada,

    pois o “lar” é um conceito representado culturalmente como o lugar das relações

    estáveis, de abrigo, segurança, proteção, e de cuidados, que se transformam para

    ela e para seu filho, um lugar de evasão, fuga. Sair de casa também pode

    representar a vergonha social, que é o medo do preconceito, além da incerteza

    quanto ao futuro, devido às necessidades básicas de sobrevivência perante as

    condições da vida, a dependência financeira e a perda da estabilidade de um lugar

    para morar. Esse fato é evidenciado no filme com a expressão da personagem, ao

    ser interpelada pela irmã, por que não se separa: “De que eu vou viver? De ar?

    Nesse contexto, a consciência da própria capacidade defensiva está obnubilada

    pelas emoções de amor, e pelas normas culturais, embora a personagem tenha

    percebido que naquele momento o melhor para a sua proteção e da criança seria

    evadir. Tais fatos são entendidos como violência física e psicológica, deflagrando

    questionamentos culturais e sociais dos direitos da família e dos conceitos

    adjacentes. Não são poucos os casos em que a mulher em tal situação de violência

    tem que deixar a casa, em busca de proteção.

    6.2 As relações de gênero e os discursos neutralizadores

    A segunda cena proposta nessa análise apresenta mais diretamente as

    relações de gênero, refere-se ao momento em que a personagem, em tomdescontraído entrega-se ao marido que a assume como sua propriedade: “Te dou

    meus braços, te dou minhas pernas, te dou minha boca, te dou meus olhos”. A

    relação com o outro, aqui descrita, é de dominação, perpetuado pelas distinções

    culturais de gênero, dos papéis definidos conforme a estrutura dos sistemas

    familiares sempre rígidos, afirma Sérgio Bitencourt (2000), em que os padrões são

    definidos. A mulher assume serviços domésticos, compreendida como “frágil”, dócil,

    mãe, companheira, e dependente do marido. Por outro lado, o homem assume o

    papel de provedor, com uma promessa de dar segurança à companheira, entre

    outros papéis que reproduzem as condições de gênero alimentadas pelos discursos

    dominantes, sendo constantemente reforçadas pela sociedade.

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    Os efeitos da comunicação tornam-se mecanismos dissociativos, ou

    manipulações inconscientes, que distorcem a realidade e provoca uma “dispersão”,

    da originalidade do ser, ao assumir o outro como propriedade. Estes também são os

    efeitos do condicionamento cultural comum nas relações familiares de dominação

    sobre o outro, são, portanto, relações de poder, revelando não a força, mas uma

    fraqueza disfarçada, pois as relações são revertidas em dependência, apego e

    controle.

    No condicionamento de ambos não há espaço para a reflexão, para um

    “pensar juntos”, anestesiando as consciências acerca da violência, disfarçada de

    amor, pois o tratamento que recebem não é de afeto, de cuidado (solicitude),

    resultando em “promessas não cumpridas e esperanças não alcançadas”, na

    expressão de Ravazzola (2007), restando-lhes os sentimentos de culpabilidade,

    incertezas, autoestima baixa, medo, insegurança entre outras percepções.

    6.3 O funcionamento das famílias através dos rígidos padrões culturais e

    transgeracionais repetitivos

    Na terceira cena dessa análise, consideramos os aspectos da cultura e da

    tradição familiar através dos episódios em que a matriarca da família demonstra ter

    sofrido o mesmo problema, mas encontra-se presa ao passado, mesmo depois do

    marido morto. A cena ocorre no terraço do prédio onde Ana mora. A mãe que havia

    questionado a filha que está para se casar apenas no civil afirmando que se trata de

    um casamento de “qualquer jeito”, exigindo que ela se case no religioso e propõeinclusive que use o seu vestido de casamento, já utilizado por Pilar. Ana rejeita a

    sugestão da mãe. Pilar demonstra tristeza e a mãe diz: “Você tem que se acertar

    com Antônio”. Dá-se início a uma discussão em torno do casamento de Pilar, Ana

    diz que a irmã deveria divorciar-se e pedir à justiça uma restrição para o marido,

    antes que algo pior aconteça. A mãe afirma que Ana não sabe nada do que se

    passa entre Pilar e Antônio. Ana se revolta e diz “- Quem não sabe é você... Ou não

    quer saber...”, e diz para a irmã: - “Por que não conta? Todos os tombos nas fichas

    do hospital? Quantas vezes você já caiu da escada?" Você não olha para onde

    anda?”A mãe ignora e diz simplesmente: “Deixe sua irmã em paz”. “Ela sabe o que

    fazer”. Ana fica mais exaltada e fala sobre os espancamentos, as contusões

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    musculares, a perda de uma vista... - “O maldito até chutou o rim dela”. Pilar se

    revolta, pega o vestido e joga para fora, deixando-o preso nos cabos da fiação

    elétrica.

    Conforme Salvador Minuchin (2008), “as famílias são sistemas complexos

    compostos de indivíduos que necessariamente vêem o mundo de suas próprias

    perspectivas individuais (p. 57)”. De acordo com o autor, são muitas as interações

    que promovem ou não os conflitos e o equilíbrio em suas relações. Conforme a

    abordagem sistêmica, dentro dessa ordem algumas famílias também apresentam

    padrões de funcionamentos, dentro dos seus subsistemas, para manter o equilíbrio,

    a homeostase. Em certos momentos, quando as questões não são resolvidas

    satisfatoriamente, os membros da família buscam hierarquicamente os meios de

    solucionar tais problemas. Em seu funcionamento, algumas famílias mais

    tradicionais tentam manter a autoridade através dos padrões rígidos, mas, conforme

    afirma o autor, se essas forças vêm por imposição, elas apresentam uma má

    adaptação.

    Nessa análise, da cena descrita, a matriarca sustenta esse tipo de

    funcionamento, mas as situações não encontram soluções. A tentativa de simplificar

    o problema, e manter a ordem pela tradição e os valores culturais e religiosos emmanter o casamento da filha, ela dá sinais de ocultação da violência sofrida,

    ignorando o próprio sofrimento e o da filha. Parece que Icíar Bolain, a autora do

    filme, pretende revelar que existe um quadro da violência em padrões

    transgeracionais repetitivos, que é naturalmente reproduzido nos sistemas

    familiares.

    Sabemos que esses padrões, hábitos, valores e costumes são transmitidos

    de uma geração para outra, mas são também questionados por alguns de seuspares. Na personagem Pilar, a violência intrafamiliar mostra que a

    transgeracionalidade pode estar relacionada a um segredo familiar, que imprime a

    seus membros, ou pelo menos parte deles o olhar do silêncio, o não dito, mantido

    pela lealdade familiar como regras para a sua sustentação, conforme Ribeiro e

    Bareicha (2008). Essa manutenção neutralizada pela personagem Pilar e

    simplificada pela mãe é inconsciente, ela se estabelece como uma forma de justiça e

    a equidade de uma ética contida no sistema familiar que precisa ser reproduzida.

    Analisando a partir da perspectiva de Wittgenstein, a “cegueira para o

    aspecto”, na expressão de Hebeche (2008), estaria representada pelo simbolismo

    do “vestido” de noiva impresso na figura da matriarca que sustenta através do seu

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    próprio silêncio e tenta manter a reprodução das estruturas vivenciadas em sua

    geração, sendo transmitida e até então mantida pela filha. Dessa forma, a

    neutralidade e a ocultação, são aspectos que revelam o “como” a família vê,

    interpretam e mantêm a sua cultura procurando permanecer vivo o seu sistema

    familiar. O questionamento de Ana leva Pilar a arremessar o vestido como se tivesse

    rompendo essa tradição, pondo em crise a manutenção desse sistema rígido, dando

    lugar a um funcionamento mais dinâmico na família, possibilitando que Ana se case

    ao seu próprio modo.

    6.4 Desafios da terapia para mudar o comportamento agressivo

    A quarta cena apresenta as técnicas de um grupo terapêutico do filme. Nesta

    cena vamos analisar se as técnicas e as reuniões do grupo favorecem ou não a

    consciência, o cuidado e a superação da violência intrafamiliar. Podemos também

    analisar brevemente o papel do Estado perante o problema da violência doméstica e

    os paradoxos do duplo vínculo nas relações familiares.A cena destaca a intervenção terapêutica grupal. Antônio busca a terapia com

    a promessa de mudar seu comportamento agressivo. Enquanto estão separados,

    envia mensagens impetrantes e presentes à mulher insistindo que o aceite de volta.

    Quando acompanha a primeira sessão do grupo, ele parece assustado com as

    narrativas de violência contra as mulheres. Fica em silêncio num tom reflexivo. Os

    homens são convidados a evitar o comportamento violento. O terapeuta pede que

    um dos participantes fale sobre como conseguiu vencer suas reações de fúria. Elenarra um acontecimento em que havia espancado a mulher a ponto de deixá-la

    inconsciente, achando que a tinha matado: “Isso me fez acordar, entendem?”, diz o

    participante. Diante dos assombros dos presentes, o terapeuta pergunta: “Como

    controlar os impulsos?”. Um deles responde: “Sair para fora um pouco”, depois o

    terapeuta afirma: “Estamos começando a reconhecer o ódio, mas ainda não

    sabemos como controlá-lo”. “Quero que pensem num momento de paz, de prazer e

    escrevam sobre essa sensação...”.

    Após a sua adaptação, e do retorno da mulher para a casa, o filme mostra

    Antônio tendo encontros freqüentes em diálogos abertos com o terapeuta após seus

    “ataques de nervos”, procurando-o a cada sinal de descontrole emocional. Sua

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    intenção de mudar parece sincera, mas conseguir o controle parecia um esforço

    ineficaz. Recebe do terapeuta a orientação de registrar suas experiências e

    sensações num caderno colorido, amarelo para alertar os perigos, vermelho para as

    coisas negativas, e, verde para as positivas.

    Outro fato importante para ser abordado nessa análise, são os paradoxos

    vividos pelo personagem, ele quer mudar e não consegue. Conforme a teoria

    sistêmica esse paradoxo é denominado por Bateson de duplo vínculo, que, aliás,

    existe em quase todo o filme, por ser muito comum às relações humanas como

    aspectos muito peculiares às famílias e às culturas. O duplo vínculo diz respeito às

    mensagens contraditórias contidas na comunicação entre os pares, duas pessoas

    ou mais. “Devido a uma adaptação inadequada, as pessoas procuram modificar a

    realidade para que ela se torne menos ameaçadora, tendo com conseqüência a

    alienação mental ” (VINÍCIUS, 2010). Uma das cenas que retratam mais claramente

    esse paradoxo, é a cena em que Antônio ajuda o irmão em um mutirão para

    construção da casa, surge um diálogo em que ele dá uma opinião e se sente

    frustrado com a má resposta do irmão. No retorno para casa faz perguntas à Pilar

    sobre o ocorrido deixando-a sem opções para responder, e como a esposa não

    responde, ele se irrita, depois que lhe dá uma resposta para satisfazê-lo, ele se irritamais ainda, interpretando os fatos como desdenho. Descontrola-se, pára o carro,

    desce e começa a dar pontapés e socos.

    Olhando para a figura do personagem, sabemos que sozinho ele não

    consegue controlar seus impulsos, o que seria simplificador apenas responsabilizá-

    lo de seu comportamento, sem ter um olhar mais amplo do problema. Uma denúncia

    colocaria o Estado para punir o agressor, quando impugnado pelas leis penais, mas

    teria a sua subjetividade ignorada, conforme os autores Angelim e Diniz (2006),muito embora, isso não tenha ocorrido no filme, apenas uma tentativa da esposa de

    registrar a queixa. Parece que a cineasta quer apontar a omissão do Estado (no

    caso, Espanhol, mas também ocorre no Brasil), mostrando um ato de delação de

    Pilar numa delegacia, onde o atendente era um homem que não consegue entender

    as declarações da mulher. Mas sabemos também que o Estado não consegue

    mudar o agressor, embora utilize da força, da punição (FOUCAUT, 1977, apud

    ANGELIM e DINIZ, 2006). No Brasil, muitos casos são encaminhados para as

    instituições representantes como os NUPS (Núcleo de intervenção Psicossocial),

    para intervir nos relacionamentos violentos ou chegam ao Juizado Criminal, que

    embora, muito bem assessorados não são suficientes para conter a violência. Da

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    mesma forma, com as denúncias nas delegacias, a aplicação da lei Maria da Penha,

    não obstante o avanço nessa área, ainda não conseguiu minimizar os efeitos dos

    atos violentos cometidos contra as mulheres.

    Segundo Kaufman (1999 apud Clímaco, 2008) a compreensão do indivíduo

    “violento” está ligada mais diretamente às construções sociais, onde a formação do

    indivíduo é machista. Os homens constroem armaduras que os isolam do contato

    afetivo com o próximo e do cuidado, seja para outros ou para ele mesmo. Ele é

    impedido de manifestar sentimentos de medo, dor e carinho, tendo a raiva como

    uma das poucas emoções permitidas pela sociedade. No filme, a imagem projetada

    pelo grupo dos homens é aquela da crença de merecimento de privilégios que

    devem ser concedidos pelas mulheres. Por serem geralmente os provedores,

    quando chegam em casa, querem um jantar pronto, atenção e reconhecimento das

    esposas. Nesse enquadre, o personagem Antônio vivencia um comportamento

    inseguro, de um homem que comete agressão, mas se apresenta com uma baixa

    autoestima, desconhece suas habilidades, não têm objetivos e imputa na mulher as

    mesmas impressões, impedindo-a de seguir seus sonhos. Houve um momento em

    que Pilar ouvia suas queixas sobre seus fracassos e percebendo que sua ascensão

    despertava ciúmes no marido, disse: “Você tem medo Antônio... De que você temmedo?”. Para Edgar Morin (2005), o medo é a fonte do ódio e da incompreensão. A

    falta de amor leva a pessoa ao ciúme, que o impede de reconhecer a própria

    autonomia e as qualidades do outro.

    Voltando à questão da terapia, podemos afirmar que ele não teria vivenciado

    a significação dos efeitos da violência, e dos seus impulsos nervosos. Ele seguiu

    todas as regras, mas não conseguiu expandir sua consciência para mudar seu

    comportamento. Na perda do cuidado consigo e com a esposa/e filho, ele se agarraa algo que lhe dê segurança (terapia), e que torna mais fácil e cômodo para si

    (anotações no caderno), interpretando o que diz Fernandes (2011), é indiferente

    quanto ao ódio, e à diligência de amor para com os pares. Isso mostra que, as

    técnicas do grupo terapêutico por si só não foram suficientes, embora bem aplicadas

    pelo terapeuta. Nesse sentido, os atos interventivos vão além do uso das técnicas,

    implicam, antes de tudo, uma responsabilidade maior e envolvimento e cuidados

    com as vivências do paciente.

    Nesse âmbito, a terapia encontra um grande desafio: por um lado a

    necessidade de desconstruir as imagens patologizantes do indivíduo, e por outro, a

    desconstrução das ideologias dominadoras presentes na sociedade, partindo das

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    próprias vivências do terapeuta. Entendemos essa formação como um processo de

    intersubjetividade, como um olhar das próprias vivências para compreender a do

    outro. Isso nos permite reconhecer nossas próprias violências, e ampliar nossa

    visão, ajudando à medida do possível a mudar esses contextos, uma vez que

    estamos envolvidos e também somos responsáveis pelas mudanças das condutas

    que não desejamos (RAVAZZOLA, 2008). Nesse sentido, a consciência do

    terapeuta se dá através da compreensão da cultura, e como ele está nela inserido,

    de tal forma que, se for ignorada pode deixá-lo “cego” para o problema da violência,

    ou estimular a injustiça, se não estiver atento aos padrões e os significados culturais

    (LAIRD, 2003).

    Concluímos que, ao mesmo tempo em que as ferramentas técnicas

    contribuem para o êxito da intervenção, o terapeuta deve estar preparado para essa

    mediação apresentando todos os recursos que lhe tem em mãos. Saber que

    nenhuma terapia por si só, e por melhor que seja não pode solucionar os problemas

    surgidos da violência intrafamiliar. O próprio terapeuta pode indicar outros meios que

    contribuem para esse processo, além da terapia tradicional e individual é indicado

    associar aos sistemas de agentes de saúde e de controle, buscando a medida do

    possível uma inter-relação, bem como outras modalidades de atendimento: a terapiafamiliar sem o agressor e terapias grupais, em um programa conjunto (RAVAZZOLA,

    2007).

    6.5 O despertar da consciência e da autonomia

    Completando a análise da violência a partir do filme “Dou-te meus olhos”,

    destacamos a última cena, quando a personagem demonstra ter recuperado sua

    identidade, a consciência e o valor pessoal. Conforme Hebeche (2011), a psicologia

    não pode nos ensinar a “ver”. Entendendo a expressão “ver” no sentido ontológico e

    não físico. Mas essa é uma discussão epistemológica, que já tratamos em outro

    momento. Basta evocar aqui um adendo apresentado pelo autor, que nos faz

    compreender a consciência em relação à psicologia, pois “O mundo da consciência

    não se refere a eventos a que se possa ter acesso por introspecção, e tampouco

     pela observação comportamental (p. 17)” . Assim, a pretensão da objetividade sem

    considerar como se dá a subjetividade, reduzindo o psicológico ao mental, de acordo

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    com o modelo das ciências naturais, como afirma o autor, cria uma confusão das

    vivências do sujeito ignorando suas próprias interpretações de mundo.

    É interessante ressaltar que o despertar da consciência de Pilar não ocorre

    numa terapia, mas ao longo das novas descobertas realizadas nas relações

    interpessoais com a irmã e a mãe, nas novas interações no trabalho, na evolução de

    seu pensamento ao refletir na mitologia e no aprendizado da arte, e, sobretudo, mas

    infelizmente nos próprios atos violentos do marido. A cena que vamos analisar agora

    se refere a esse último fato. Pilar está prestes a ser promovida no trabalho,

    desempenhando uma atividade almejada por ela, é impedida pelo marido, que teme

    ser traído, ou trocado por outro “melhor que ele”, mas também não aceita a

    ascensão da esposa. Antônio cometeu um último ato violento tolerado por ela. Ele

    rasga as roupas de Pilar deixando-a nua, e a expõe brutalmente na sacada do

    prédio para que as pessoas na rua a vejam. Com tal humilhação sofrida, ela não só

    decide deixá-lo, como também confronta as chantagens do marido que simula uma

    tentativa de suicídio. No diálogo final com a irmã, Pilar diz: “Acho que agora acabou.

    Não vou ficar com ele, não mesmo!”. Depois continua: “Preciso me enxergar... Não

    sei quem sou... Há tanto tempo não me olho... Não consigo explicar...”.

    Em meio às dores e ao sofrimento, Pilar desperta para uma consciência deseu valor pessoal, recupera sua autoestima e enfrenta o problema da violência.

    Percebe que o tratamento que recebe não é amor, não confunde mais amor e

    envolvimento emocional com os maus-tratos, não tem receio da dependência

    financeira, pois sabe de seu potencial. Enfrenta sua vergonha social, e pode até sair

    de “pantufas” em caso de emergência, como o fez ao socorrer o marido para o

    hospital na tentativa de suicídio. O sofrimento a fez enxergar a si mesma e o uso da

    arte expandiu sua consciência. A cegueira tinha anestesiado a sua consciênciaimpedindo-a de olhar para si e para a vida, e só após muito sofrimento descobre que

    existe, mas quando olha novamente para si ao ver seu passado e seu presente,

    surgem incertezas quanto ao futuro, ou seja, enfrentar seu próprio modo de existir,

    ela diz: “Não sei quem sou...”.

    Para Heidegger (2007), a essência do ser humano é existir. O existir, ou ek-

    sistência, significa estar na verdade, na clareira do ser, isto é, a pessoa só existe

    num sentido próprio, é o único capaz de perceber o seu ser, como um ser-no-

    mundo, diferentemente dos outros seres. Esse sentido próprio é chamado pelo autor

    de “Dasein”, uma expressão alemã do século XVIII e assumida por ele para

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    expressar a realidade do existir do ser humano, significando que ele é antes de tudo

    um “ser”.

    A vitimização é também um fenômeno de desconexão que perpetua os atos

    de violência. Não se pode associar como prazer ou masoquismo por parte das

    mulheres. Compreende-se que suas emoções estão distorcidas em função da

    negação dos fatos por razões culturais, ameaças sofridas, medo de confrontar-se

    com o problema e outras sensações vivenciadas na violência. Inclusive, afirma

    Ravazzola, que não é comum pedirem ajuda por vergonha. Tem esperança de que

    aquela agressão sofrida seja a última, e geralmente prometida pelo marido. Nesse

    sentido, é valiosa a descoberta da protagonista, e certamente como ela muitas

    mulheres podem ser identificadas, mas com isso não queremos exaltar a atitude

    isolada para tentar superar da violência. É extremamente necessário buscar ajuda e

    contar com o apoio das instituições competentes, da família, amigos e outros.

    7. CONSIDERAÇÕES FINAIS

    Nessa reflexão pensamos na “consciência” como objeto principal da

    psicologia, tendo como peça importante nesse processo, o cuidado, como

    constituição mais própria do ser humano, na concepção heideggeriana. A matriz

    epistemológica evocada aqui é a fenomenológica, procuramos uma possível

    integração aos conceitos e técnicas da abordagem familiar sistêmica.

    Estivemos, portanto, mais preocupados com a dimensão ontológica do

    sujeito, seu modo de ser e suas vivências, do que com os sintomas apresentadosem sua disfunção, não desconsiderando sua importância, mas mudando o foco da

    relação objeto-designação, e do sentido biológico, de um estímulo que provoca uma

    série de respostas (RILEY, 1998). Pensamos essa interação, com o intuito de

    promover um processo de expansão da consciência e da transformação dessas

    relações na ordem do cuidado, ou seja, da percepção mais clara de seu ser, de sua

    existência, para uma compreensão de si mesmo e do outro. No entanto, essa

    compreensão não é meramente subjetiva, ela engloba também os aspectos e a

    estruturação objetiva da interação humana, como afirma Edgar Morin (2005),

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    submission against the possession of the woman's husband. The proposal seeks anunderstanding of the experiences of couples and families in situations of violence. Inanalyzing this issue, we are concerned with the process of expanding consciousnessin relationships often "neutralized" by the violence, and the formation of the self and

    its complexities, avoiding the dichotomy of spiritual and materialistic conceptions, orlook limited and the stigmatizing qualification victim-aggressor, although not ignore itsimplications. The proposal vision presupposes the ontological dimension of humanevoking the prospect of "care", his way of being and their experiences, the clearerperception of being, existence and their ability to understand the world, yourself andthe other . The states of "blindness" of meanings and experiences require a broaderperspective in the phenomenon of violence beyond social issues, gender, culture andpathological states and symptomatic inmates in the human psyche. They arereflections of this study for future analysis and therapeutic possibilities for couplesand families experiencing the emotions of pain, emptiness, anger and contrasted