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  • Crtica e Sociedade: revista de cultura poltica. v. 4, n.1,

    Dossi: Relaes Raciais e Diversidade Cultural, jul. 2014. ISSN: 2237-0579

    ARTIGO

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    DOS QUILOMBOS PERIFERIA: REFLEXES SOBRE

    TERRITORIALIDADES E SOCIABILIDADES NEGRAS URBANAS NA

    CONTEMPORANEIDADE

    Claudelir Correa Clemente1

    Jos Carlos Gomes da Silva2

    Resumo: O artigo, baseado em etnografias de afrodescendentes de diferentes cidades,

    engajados em praticas culturais urbanas, sendo um contingente da metrpole paulistana

    e o outro da cidade mineira de Uberlndia, busca apresentar analises que problematizem

    as experincias sociais de cada grupo com seus territrios e formas de sociabilidades.

    Apesar de universos socioculturais diferentes - os paulistanos so praticantes do hip-hop

    e dos saraus na periferia, e os mineiros das tradies congadeiras - observamos que

    ambos revelam elementos tnico-culturais comuns, tais como a memria da ascendncia

    escravizada, a experincia de estar sempre subjugado pelo racismo e proximidades no

    que diz respeito s relaes com seus territrios sociais, que, embora marcados pela

    segregao espacial, permitem instaurar redes de sociabilidade que reafirmam o

    pertencimento a cultura negra.

    Palavras-chave: territorialidades, sociabilidades negras, espao urbano.

    Abstract

    The article seeks from ethnographies of afrodescent engaged in cultural practices urban

    inhabitants of different cities, with a contingent in the metropolis paulista and the other

    in the city of Uberlndia, present analysis that problematize the social experiences of

    each group with their territories and their ways sociability. Although different

    actitioners of hip hop and soirees in the

    common ethno-cultural elements, such as the memory of the slave ancestry, the

    experience of being always overwhelmed by racism. And nearby in regards relations

    with their social territories, which, though marked by spatial segregation, social

    networks allow you to establish that reaffirm membership in black culture.

    Key-words: territorialities, black sociability, urban space.

    Introdu o

    Abordamos neste artigo referncias simblicas e experimentos concretos que

    orientaram, e continuam a orientar os processos de reestruturao das comunidades

    1 Doutora em Antropologia e professora do Instituto de Cincias Sociais da Universidade Federal de

    Uberlndia (INCIS/UFU), lder do grupo de pesquisa Cnpq: Mobilidades, Vnculos Sociais e Territrio

    (MOVITE). 2 Doutor em Antropologia e professor do Departamento de Cincias Sociais da Universidade Federal de

    So Paulo, lder do grupo de pesquisa Cnpq: Culturas Urbanas e Musicalidades Afro-brasileiras.

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    negras no Brasil. Analisamos, especialmente, a fora imagtica da territorialidade,

    traduzida em conceitos como quilombos, terreiros e territrios negros. A categoria

    territrio negro se apresenta, a propsito, como um importante fio condutor das nossas

    reflexes. Sabemos que o termo territrio tem merecido amplas discusses nas cincias

    sociais e seria oneroso no momento refazer o percurso terico que data dos primeiros

    estudos da Escola de Chicago (Perlongher, 1991).

    99) nos parecem mais pertinentes

    que as noes sociolgicas inaugurais. A autora focaliza experincias que nos so

    prximas e por isso mais ricas em possibilidades de anlise. Recorremos tambm ao

    conceito de sociabilidade desenvolvido por Simmel e reapropriado criativamente por

    Maria Nilza da Silva (2010, 2012) no entendimento das relaes sociais construdas

    pelos negros em nos espaos urbanos.

    A tradio norte-americana de estudos das comunidades negras urbanas

    originou-se com Louis With (1962), mas se manteve enquanto temtica renovada,

    estendendo-se a Ulf Hannerz (2004). Para os clssicos da sociologia e antropologia

    urbana norte-americanas, os pares territrio e gueto se apresentam como categorias

    anlogas. O gueto concebido invariavelmente como um espao fsico delimitado,

    etnicamente homogneos e segregado. Para Raquel Rolnik a formao de territrios

    negros em metrpoles brasileiras comporta especificidades. O termo gueto seria, do

    ponto de vista da autora, inadequado compresso da nossa realidade, exatamente por

    presumir homogeneidade tnica.

    Antes de mapear territrios negros em So Paulo na Primeira Repblica

    importante notar a natureza da territorialidade paulistana do ponto de vista

    tnico. Longe de se tornarem guetos, onde a localizao de elementos de

    certas origens tnicas exclui outros e define espaos segregados com limites

    definidos, em So Paulo era possvel identificar reas de concentrao de

    certos grupos tnicos. Esses bairros, ou partes de bairros, concentravam

    instituies tnicas (...) Tambm agregavam residncias em vrios nveis de

    mistura com outros grupos sociais (Rolnik, 1999, p. 75)

    A populao negra se organizou historicamente na metrpole paulistana em

    micro-localidades culturalmente heterogneas. Em alguns desses fragmentos do urbano,

    os negros se tornaram agentes hegemnicos. A segregao socioespacial , porm, uma

    dimenso que aproxima os territrios negros da noo de gueto. Embora, em nossa

    histria, inexistam registros de legislao segregacionista, nota-se a persistncia de

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    [assim] uma poltica de afastamento do negro daquelas regies tidas como as melhores

    (...); ser moradores dessas constitua um privilgio que no podia ser concedido ao

    negro (SILVA, 2012, p. 104).

    Os exemplos paulistanos da Barra Funda e do Bixiga, analisados, por Rolnik

    (1988, 1989, 1999) exprimem empiricamente forma histrica dos territrios negros

    urbanos. A Barra Funda se desenvolveu, por exemplo, como bairro em que uma

    comunidade portuguesa migrante se fixou a priori. A seguir vieram os negros. Estes

    trabalhadores braais - nos

    Armazns de Caf e na Estao Ferroviria. Assim, um importante ncleo da

    comunidade negra foi se formando progressivamente em um espao originariamente

    branco. Fenmeno semelhante se verificou tambm no bairro do Bixiga, inicialmente

    formado por segmentos expressivos de italianos. Em seguida uma importante

    comunidade negra foi-se adensando no prprio bairro, fixando-se nas proximidades da

    Liberdade e Cambuci. As reas mencionadas tinham em comum o fato de se situar em

    terras baixas e desvalorizadas, sujeitas s cheias dos rios e crregos.

    Os registros de Roberto Moura

    estruturou na no Rio de Janeiro, no incio do sculo passado, enquanto ncleo de

    populao negra migrante originria da cidade de Salvador. Lentamente, nos bairros da

    Sade e Gamboa, prximos ao Cais, uma rea socialmente excluda foi se constituindo,

    mas os principais elementos que iriam conferir-lhe identidade tinham origem em

    prticas culturais de matriz africana. O candombl e o samba se articularam de maneira

    nica nesse momento. A regio foi sendo redefinida pelos smbolos da cultura negra,

    abrigando personagens fundamentais na formao do samba urbano, como Donga,

    Pixinguinha e Joo da Baiana. Embora a comunidade negra se tenha formado em

    consequncia da segregao racial, territorial, geogrfica, as produes simblicas

    papis importantes na formao destes ncleos de sociabilidades negras urbanas nas

    primeiras dcadas do sculo passado.

    Era comum as baianas de maior peso irem Bahia tratar de suas coisas de

    santo e dos negcios de nao, progressivamente centralizados nas casas de

    candombl de Salvador, como os negros baianos iam eventualmente frica,

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    voltando com informaes e mercadorias. Tia Bebiana e suas irms-de-santo,

    Mnica, Carmem do Xibuca, Ciata, Perciliana, Amlia e outras, que

    pertenciam ao terreiro de Joo Alab, formam um dos ncleos principais de

    organizao e influncia sobre a comunidade (MOURA, 1995, p. 134).

    Outras tias tambm fizeram a histria da Pequena frica. Tia Perptua, que

    morou na rua de Santana, Tia Veridiana, me do Chico Baiano, Calu Boneca,

    outrame-de-santo, Maria Amlia, Rosa Ol, da Sade, Sadata da Pedra do

    Sal, que foi uma das fundadoras do Rei de Ouro com Hilrio Jovino, o

    primeiro rancho organizado no Rio de Janeiro (MOURA, 1995, p. 135)

    As inscries culturais das comunidades negras em So Paulo surgiram tambm

    como produto de instituies nas quais as mulheres atuaram de maneira decisiva. A

    msica tradicional aparecia nessas instncias como principal smbolo delimitador de

    fronteiras.

    O bloco [carnavalesco] de Dionsio Barbosa, que nasceu na Barra Funda, na

    rua Vitorino Carmilo, 141, mas tarde denominado Cordo Camisa Verde

    (uma das principais escolas de samba paulista hoje em dia), e o Cordo do

    Geraldino tiveram origem em famlias extensas de origem africana, lideradas

    por matriarcas as tias que praticavam o jongo ou o samba de roda como

    extenso da prpria vida familiar. A casa da Tia Olympia, por exemplo, na

    rua Anhanguera, prxima linha de trem, era um desses locais que acabou

    agregando outros moradores do bairro, transformando, assim, o bloco

    familiar em cordo (ROLNIK, 1999, p. 77).

    Os exemplos confirmam que a cultura afro-brasileira se apresentava como

    elemento fundamental na construo das redes de sociabilidade. A noo de

    compreender os processos culturais que

    conduziram elaborao de importantes instituies nos territrios negros: clubes,

    terreiros, escolas de samba. Conforme o autor, mais que finalidades econmicas, o

    (SIMMEL, p. 168) so os elementos que possibilitaram prticas de sociabilidade. As

    associaes especficas formadas pelos negros nas primeiras dcadas do sculo XX

    ribudo por Simmel.

    Conforme lembra Maria Nilza, esse movimento de natureza tnica daria origem

    aos Clubes Negros em diferentes contextos, um fenmeno registrado at mesmo em

    cidades mdias como Londrina (SILVA, 2012, p. 116). Os estudos desenvolvidos pela

    autora na cidade de So Paulo (SILVA, 1999, 2006) revelam em outro sentido as razes

    estruturais que impeliram os negros elaborao de espaos de interao especficos. A

    forte discriminao racial, ao mesmo tempo que expulsava os afrodescendentes das

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    reas nobres, produzia aproximaes em redutos marcadas pela excluso social. As

    prticas discriminatrias explcitas ou veladas nos bairros nobres conduziram ao

    sentimento do encontrar-

    conduziram os negros percepo de que existiam locais em que no seriam

    As sociabilidades negras no foram construdas, contudo, apenas em decorrncia

    dos fatores excludentes. Elementos simblicos de matrizes africanas foram selecionados

    positivamente ao longo do processo de elaborao das identidades negras. Os territrios

    negros, embora no tenham sido marcados pela exclusividade tnica, reconfiguraram

    fronteiras simblicas, que possibilitaram a reconstituio de redes de amizade e

    parentesco e elaboraram sentimentos de pertena em nvel microscpico. Alguns locais

    se tornaram referncias histricas de inegvel valor simblico: os quilombos - Palmares,

    Ambrsio, Jabaquara, os terreiros de candombl em

    Rio de Janeiro, a Barra Funda na cidade de So Paulo, a comunidade dos Arturos em

    Belo Horizonte (Gomes e Pereira, 1988), o Bairro Patrimnio em Uberlndia (SILVA,

    2013).

    As populaes negras analisadas no presente artigo habitam diferentes cidades,

    um contingente, o de praticantes da cultura hip-hop e os escritores negros, habita a

    cidade de So Paulo/ SP e o outro, os praticantes da cultura congadeira, vive em

    Uberlndia/MG. Aparentemente dois universos socioculturais extremamente diferentes,

    uns localizados na metrpole, outros na segunda maior cidade do interior do Brasil. No

    entanto, ambos revelam, elementos tnico-culturais comuns, semelhanas e

    proximidades. O que h em comum a afrodescendencia, a memria da ascendncia

    escravizada, a experincia de estar sempre subjugado pelo racismo. O que h de

    proximidade so as relaes com seus territrios sociais, que,no obstante marcados

    pela segregao espacial, permitem instaurar redes de sociabilidade que reafirmam o

    pertencimento cultura negra.

    O apreo aos vnculos e ao territrio sociocultural dos atuais negros e negras

    dessas cidades nos revela a permanncia de uma categoria historicamente significativa

    ao longo da dispora escravocrata, o par mato/terra, representado nas simbologias dos

    quilombos (LIENHARD, 1998). Este referencial permanece significativo em diferentes

    prticas culturais afro-brasileiras, que alinhavam ao nvel do imaginrio a afirmao de

    um sentimento de prtica guerreiro-quilombola de resistncia opresso.

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    Sob a perspectiva do simbolismo, compreendemos as razes que tm conduzido

    conforme constatamos no movimento hip-hop

    paulistana, at os bairros de forte presena de negros congadeiros em Uberlndia, cujas

    sociabilidades so constitudas em torno dos quartis como assim chamam os locais da

    prtica congadeira. Enfim, espaos que se tornam referncias simblicas indicativas da

    inscrio de uma comunidade negra no plano local.

    A categoria quilombo adquiriu, no imaginrio social, contemporneo sentidos

    que ultrapassam a noo de evento histrico singular. A ressignificao da prtica

    movimentos negros. Desde ento, quilombo deixou de ser uma noo relacionada ao

    passado inerte e se tornou um conceito politicamente carregado de sentido no presente.

    A sbita apario de comunidades negras ento esquecidas, por vezes,

    reelaborao do conceito de quilombo. A propriedade da terra como direito, garantido

    Disposies Constitucionais Transitrias, em seu artigo 68. Desde ento a sociedade

    passou a tomar conscincia de um fenmeno at ento submetido ao apagamento pela

    Histria oficial.

    Pretendemos analisar sob dupla perspectiva - terica e emprica, - as

    territorialidades negras, aqui entendidas como diferentes modalidades de apropriao

    da terra pelos afrodescendentes

    experincias em diferentes tempos e espaos desejamos tambm resgatar o valor

    semntico atribudo localidade na contemporaneidade. Constatamos que atualmente

    quilombo e periferia se articulam nas prticas discursivas afro-brasileiras no por mero

    -se ao etnogrfico e

    ambos buscam revelar aspectos de um presente constitudo nos entrelaamentos de fios:

    da memria, da histria, dos acontecimentos e das atualidades negras. Tempos

    vivenciados em territrios de culturas negras diaspricas.

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    Territorialidades negras na contemporaneidade

    A terra sempre ocupou um lugar importante no imaginrio dos povos centro-

    africanos. A floresta se apresentava, por exemplo, como um espao sacralizado entre os

    bakongo. Aes de colheita e derrubada de matas implicavam, via de regra, em

    solicitao prvia aos ancestrais. A estes eram reservados locais considerados sagrados

    (KAGAME, 1978). A mata tambm assumiu sentidos polticos na luta que se travou

    contra os colonizadores. Foi assim que o kilombo se estruturou como acampamento de

    guerreiros jagas ocultos nas florestas. De acordo com Martin Lienhard (1998) quilombo

    de fato uma categoria de origem centro-africana reelaborada posteriormente na

    dispora.

    (...) imagem do quilombo banto sobreviveu, sem dvida, na conscincia

    coletiva dos escravos americanos procedentes da rea Congo-Angola.

    legtimo supor que eles, para lutar contra o seu cativeiro na Amrica, se

    inspirassem nessa forma de organizao poltico-militar, particularmente

    adequada a uma existncia incerta e sem base geogrfica permanente. Ora, na

    Amrica escravista, os quilombos, palenques, cumbes se inscreviam em uns

    projetos muito variveis segundo o lugar e a poca, todos bem diferentes dos

    que animavam os jagas ou a prpria Nzinga. Alguns quilombos foram

    redutos mais ou menos autnomos de escravos de procedncia africana

    (LIENHARD, 1998, p. 109-110).

    O termo quilombo permaneceu durante muito tempo na historiografia oficial

    descrito como experincia vinculada exclusivamente ao passado escravocrata, mas,

    contemporaneamente, o conceito foi ressignificado (ALMEIDA, 2002). At as dcadas

    de 1970/80 utilizava-se academicamente

    designar os espaos ocupados no presente pela populao negra que se reproduzia por

    meio da agricultura de subsistncia (BAIOCCHI, 1983; BANDEIRA, 1988). Conceitos

    referncia ao mesmo fenmeno. Foi seguindo a trilha de uma surpreendente

    aram no final

    dos anos 70, em Salto de Pirapora, com o Cafund.

    A comunidade do Cafund falava uma lngua autoclassificada como cucpia.

    Posteriormente descobriu-se que no municpio de Patrocnio, em Minas Gerais, um

    grupo mais disperso de indivduos tam

    kalunga

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    , para tanto, lxicos africanos

    ordenados pela sintaxe fornecida pela lngua portuguesa.

    Apesar do lxico extremamente limitado, o sistema do Cafund vivo e

    produtivo. Do ponto de vista estritamente lexical, observa-se uma constante

    expanso do vocabulrio atravs do uso de expresses formadas por

    processos metafricos e analgicos. Essa expanso se d em geral atravs do

    uso de palavras do lxico africano que concorrem para a formao de novas

    expresses cuja estrutura gramatical , grossso modo, a de nome +

    preposio + nome (VOGT & FRY, 1996, p. 129).

    Estudos posteriores constataram que a comunidade do Cafund seria apenas uma

    dentre tantas outras que tomavam a lngua como sinal diacrtico para estruturar a

    identidade tnico-racial. Os negros da Tabatinga (QUEIROZ,1998), os garimpeiros do

    Rio Bagagem em Estrela do Sul (MG) (SILVA, 2013) lanavam mo de semelhantes

    estratgias lexicais. Reatualizavam em tais prticas patrimnios lingusticos bantos

    (kimbundo, kikongo e umbundo).

    As comunidades negras reconhecidas prticas culturais de origem banta,

    localizadas no sudeste brasileiro, foram interpretadas por Robert Slenes (1991/92) como

    expresso da presena macia de povos centro-africanos, mercantilizados durante o

    ciclo cafeeiro. Alm das etnias de origem Angola-Congo, tambm se acentuou, no

    perodo o fluxo da Costa do Pacfico, regio do atual Estado de Moambique. Desta

    localidade vieram os macondes, shonas, macuas, swhaili. Os dados apresentados por

    Robert Slenes comprovam que, em meados do sculo XIX os bantos predominaram nos

    estados do sudeste. Cidades como Vassouras (RJ) e Campinas (SP) se destacaram por

    em So Paulo e Minas

    Gerais filiam-se a este processo histrico.

    foram re-conceituadas como quilombos. A viso arqueolgica, passadista, fossilizada da

    histria, foi substituda por uma nova concepo de natureza jurdico-poltica, expressa

    formulao os movimentos negros e, em parte, acadmicos e instituies como a

    Associao Brasileira de Antropologia. A questo dos quilombos foi, ento,

    subitamente atualizada. O direito propriedade da terra aos dos ex-escravos, indivduos

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    e grupos que nela trabalhavam e a habitavam desde tempos imemoriais, foi consagrado

    no texto constitucional. O Artigo 68 dos Atos das Disposies Constitucionais

    Transitrias garantiu juridicamente aos quilombolas a posse definitiva da terra. O artigo

    surgiu como um primeiro intento de reparao aos descendentes de africanos, pois estes

    no tiveram nenhuma recompensa aps a Abolio da Escravatura (1888).

    Seguiu-se posteriormente uma grande polmica sobre a auto-aplicabilidade do

    Artigo 68, sobre como se daria a posse coletiva da terra em uma sociedade regida pelo

    direito privado, e o aspecto mais polmico, como se comprovaria a pertena histrica

    localidade. O estado de So Paulo criou um rgo especial, o Instituto de Terras, para

    encaminhar a questo, mas outros nada fizeram. A contratao de antroplogos se

    imps aos demandantes do reconhecimento como uma nova exigncia. Os chamados

    Laudos Antropolgicos iriam se tornar pea-chave nas decises jurdicas.

    Todos esses cuidados comearam a ser tomados, porque, comumente, as terras

    quilombolas se situam, em reas de litgio, reivindicadas por grupos econmicos

    poderosos. Os Laudos Antropolgicos, via de regra, confirmam que a maioria das terras

    quilombolas foram historicamente objeto de brutal expropriao. Muitas reas

    continuam, inclusive, sendo griladas, demandadas no apenas por fazendeiros, mas

    tambm por grandes imobilirias. O decreto 4.487, de 20/11/2003, representou um

    esforo ltimo no sentido de regulamentar o artigo 68. Do ponto de vista legal afirma:

    (...) a caracterizao dos remanescentes de quilombos ser atestada mediante

    autoidefinio da prpria comunidade [entendendo-se como] grupos tnicos-

    raciais, segundo critrios de autoatribuio, com trajetria histrica prpria,

    dotados de relaes territoriais especficas, com presuno de ancestralidade

    negra relacionada com a resistncia opresso histrica sofrida (MATTOS,

    2005, p. 106).

    A Fundao Palmares passou a responder, na instncia federal, pelas funes de

    pesquisa, mapeamento das terras e apoio aos quilombolas na luta pela titulao. Os

    primeiros registros realizados por Rafael Snzio Arajo dos Anjos indicaram, no ano

    2000, a presena de 848 quilombos no Brasil (ANJOS, 2000). Em 2005 esse nmero

    saltou para 2.228. Ou seja, os estudos confirmaram que o quilombo era de fato um dado

    da realidade, mas que se encontrava soterrado na memria social.

    Os terreiros de candombl inscrevem-se nessa mesma rubrica de territrios

    negros submetidos ao apagamento, invisibilidade. Os terreiros em geral no

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    apresentam smbolos que permitem a identificao luz do dia. Apenas no perodo

    noturno, quando seguimos os sons dos tambores nos certificamos da sua presena.

    Diferentemente do quilombo, os terreiros pertencem a um solo que de natureza

    assentamentos dos

    (SODR, 1988, p. 90).

    O terreiro tambm um espao de afirmao da comunidade de santo. Para

    Sodr, a fora do terreiro de candombl no reside nas suas propriedades fsicas,

    geogrficas, mas na capacidade de agregao que deriva do ax. A trajetria de Me

    Aninha, importante yalorix do Il Ax Op Afonj, quando em visitas ao Rio de

    Janeiro, vista pelo autor como exemplar do poder do sagrado na constituio de uma

    comunidade de santo. Todas as redes de sociabilidades instauradas derivam, neste caso,

    do princpio primordial, o ax.

    De fato, Me Aninha viveu em diversas ocasies no Rio de Janeiro,

    hospedando-se em casa de gente amiga ou mesmo estabelecendo residncia

    prpria depois de 1930. sua residncia (portanto, espao bem diverso do

    implicado no terreiro baiano) que passa a acolher as demandas litrgicas de

    um nmero crescente de pessoas. O ax carregado pela yalorix supria a

    diferenciao espacial estabelecida pela topografia do terreiro tradicional,

    abrindo caminho para iniciaes e para o desdobramento de lugares sagrados.

    O terreiro define-se assim, no por sua territorialidade fsica, mas enquanto

    centro de atividades litrgicas, polo irradiador de fora (SODR, 1988, p.

    96).

    O conceito de territrios negros elaborado por Rolnik (1989) difere da noo de

    terreiro, pois nesse caso, a fora do ax, que funda a territorialidade, a pertena ao

    lugar. A comunidade de santo que se forma em torno do terreiro comunga, porm,

    afinidades e laos especficos de sociabilidade que identificamos nos territrios negros.

    O espao do terreiro no meramente local de culto. Desde sempre, e at

    hoje isto verdade, tem sido simultaneamente um espao sagrado e profano,

    funcionando tambm como local de residncia permanente ou temporria de

    vrios membros da comunidade do terreiro, pais e filhos-de-santo (ROLNIK,

    1999, p. 65).

    O terreiro apresenta semelhanas com os territrios negros, especialmente no

    que tange ao fato de serem espaos de residncia. Embora os territrios negros no

    possuam o componente da sacralidade unificadora do terreiro, a msica desempenha

    papel central na constituio das sociabilidades.

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    O rito congadeiro, em geral organizado pelas Irmandades Negras, instaura outra

    modalidade de territorialidade. O cortejo em louvor a Nossa Senhora do Rosrio e a So

    Benedito transcorre como se sabe nos espaos pblicos. As prticas ritualsticas, que se

    a igreja de Nossa Senhora do Rosrio. Os ternos de Moambique, Congo, Marinheiro e

    Catup percorrem, aps este momento, amplos espaos da cidade, em visitao s

    pessoas que solicitaram a presena dos congadeiros como pagamento de promessa. O

    espao territorial nesses momentos se amplia, ultrapassando os limites da igreja, fixados

    pelo catolicismo.

    Os ternos

    capito, iniciado comumente nas religies afro-brasileiras, umbanda ou candombl. A

    visita aos terreiros de umbanda, em muitas congadas, prtica obrigatria. No terno

    Moambique Pena Branca, objeto de nossos estudos, esse papel vinha sendo

    ternos tambm recebem visitas de outros no quartel.

    O quartel o local de inscrio especfica de um terno. Durante os trs dias

    dedicados ao ritual, a casa do capito de congado acolhe uma infinidade de membros.

    Parentes que moram em outros municpios passam a residir momentaneamente no

    quartel. Constatamos que, no caso especfico do Pena Branca, o bairro Patrimnio

    assumiu as feies de territrio negro, embora, tambm merecesse a classificao de

    quilombo urbano. Nesse caso, observamos que uma comunidade de adensada em torno

    do quartel, imageticamente estruturado como um quilombo. No dia da festa, no

    faltava, inclusive, o simbolismo mais forte, as folhas de palmeiras.

    Quartis congadeiros: territrio negro, vnculos sociais e redes de sociabilidade

    Atualmente a cidade de Uberlndia conta com 25 ternos de Congado cujos

    quarteis, locais de ensaio e convivncia social, esto distribudos em bairros perifricos

    como demonstra a seguir o mapa antropolgico do congado de Uberlndia:

  • Dos quilombos periferia: reflexes sobre territorialidades e sociabilidades negras urbanas na

    contemporaneidade

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    Localizao dos ternos de Congado na cidade de Uberlndia/MG. Fonte: Mapa Antropolgico do

    Congado de Uberlndia/Observatrio Etnogrfico das Culturas(OBEC/UFU)

    Nos cinco meses que antecedem o ms de outubro, ms dedicado celebrao

    dos santos do Congado, os quartis renem devotos e simpatizantes para preparar a

    festa e exaltar seus laos sociais. Um conjunto de atividades mais visvel: campanhas,

    eventos gastronmicos, como congalinhada e churrasco, leiles e novenas so

    realizados para angariar fundos, mas, sobretudo, para fortalecer laos sociais.

    Nesses momentos as praticas culturais congadeiras ganham as ruas e as casas

    locais e a cidade. Inicia-se um processo intenso de deslocamentos intra-bairro e

    interbairros, locais onde h a presena de ternos, de membros e de simpatizantes do

    congado.

    Configura-se um tipo de cartografia negra dentro do territrio uberlandense.

    Como cada terno possui alm dos capites e madrinhas dezenas e por vezes centenas de

    soldados, os laos de amizade desses membros so mobilizados e espraiados pelo

    territrio da cidade.

    So amigos e amigas que durante o primeiro semestre do ano pouco se visitam,

    mas que refirmam seus laos no segundo semestre do ano.

    Em observaes etnogrficas feitas em 2012 pela equipe do Observatrio

  • Claudelir Correa Clemente e Jos Carlos Gomes da Silva

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    Etnogrfico das Culturas da Universidade Federal de Uberlndia3, acompanhamos

    eventos que so ilustrativos deste tipo de rede social congadeira. Dentre os observados

    destacamos: a congalinhada, realizada pela terno Marinheiro Nossa Senhora do Rosrio

    no bairro Santa Monica; um evento musical, domingo de samba realizado pelo terno

    Moambique de Belm localizado tambm no bairro Santa Mnica; e o Boteco do terno

    Marujos Azul de Maio, no bairro Roosevelt. L constamos a participao de

    congadeiros de vrios bairros da cidade.

    A ocorrncia desses eventos potencializa a amizade e solidariedade negra,

    porque rompem com a experincia cotidiana do racismo e da discriminao sentidos por

    esses afrodescendentes no seu cotidiano urbano. Esses eventos so um tipo de ruptura.

    belecida, ruptura na calma repetio da vida comum. Uma

    insurreio que suscita a solidariedade que liga entre si os homens e as mulheres que

    (DUVIGNAUD,1995 p.170).

    Esses atos, mesmo que passageiros, acabam gerando em intensidade aquilo que

    perdem em durao, fazendo com que as pessoas descubram, no curso dessas situaes,

    breves iluminaes que escapam s previses.

    Vale citar Duvignaud, autor que discute solidariedade

    A marcha oficial dos acontecimentos acompanhada por uma existncia

    subterrnea e os prprios acontecimentos estendem razes para terrenos

    desconhecidos. E podemos dizer que o desconhecido, a experincia ainda no

    assimilada, age mais vigorosamente que o conjunto das causas que

    acumulamos no cotidiano (DUVIGNAUD,1995 p.167).

    O sentido de comunidade redescoberto, como Martin Buber descreve, ao

    afirmar

    lado, mas umas com as outras. E esta multido, embora se movimente na direo de um

    objetivo, experimenta, no entanto por toda a parte uma virada para os outros,

    TUNER, 1978 p.154).

    O esprito comunitrio crucial para congadeiros, nele ancora as bases para a

    afirmao tnica e mudanas das relaes tnico-raciais urbanas.

    A marginalizao dos afrodescendentes nas reas perifricas viabiliza, no nvel

    3 Pesquisa coordenada pela antroploga e professora Claudelir Correa Clemente [email protected]

    mailto:[email protected]
  • Dos quilombos periferia: reflexes sobre territorialidades e sociabilidades negras urbanas na

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    urbano um tipo de segregao racial, criando obstculos para sua explicitao publica.

    A populao negra, ao se organizar em praticas culturais como o Congado, que, nos

    momentos de seu preparo, movimenta seus membros pela cidade, busca irromper com

    esse tipo de segregao, ao transitar e frequentar locais de toda a cidade, inclusive os

    destinados as elites de Uberlndia.

    J nos bairros dos quartis tende a germinar uma resistncia, informalmente

    organizada, mediada por contedos culturais selecionados pela comunidade como

    definidoras de identidades culturais e de sua etnicidade. A identidade tnico-cultural

    cimenta a coeso interna e os suportes da resistncia externa (CLEMENTE, 2013).

    A atitude dessas pessoas expressa uma ao poltica que no constituda nas

    relaes que envolvem partidos polticos, disputas pelo Estado, ou mesmo debates em

    assembleias e fruns que discutem afirmao, antes resulta de um trabalho paulatino

    que incentiva afrodescendentes congadeiros a engajar-se culturalmente em seu terno,

    em sua gente, em sua histria. Nesse sentido, realam, em seu protagonismo, que as

    manifestaes culturais constituem tambm estratgias de afirmao da identidade

    individual e do grupo, ao mesmo tempo que engendram uma rede de apoio social.

    Esse trabalho de afirmao tnica realizado por meio de aes e relaes

    sociais que no tm aparentemente cunho poltico, mas tm o poder de arregimentar

    pessoas, reuni-las, organiz-las e transform-las em agentes em prol de causas sociais.

    oriza os laos interpessoais, a solidariedade, a ajuda mtua e a

    participao entre iguais.

    Quilombo cultural na periferia paulistana

    Atualmente, os jovens integrantes do movimento hip-hop e os poetas que

    participam dos saraus literrios na periferia, vm procurando ressignificar a categoria

    quilombo. No Sarau da Cooperifa assistimos, semanalmente, Jairo Periafricania, um dos

    ao simblica entre a Cooperifa e

    QUILOMBO CULTURAL

  • Claudelir Correa Clemente e Jos Carlos Gomes da Silva

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    Jairo Periafricania

    Uh! Cooperifa meu quilombo cultural

    poesia literatura marginal

    Uh! Cooperifa no risco da caneta

    poesia Academia das Letras.

    D licena aqui nis que t de novo

    Que memo no veneno no abandona o posto

    Leal at o osso sem tempo pr errar

    De cabea erguida que o sol ir brilhar

    (...)

    Tem que acreditar e no fugir da luta

    Chega cola que a causa justa

    Truta escuta de cor

    Ler poder faz enxergar melhor

    (...)

    A letra remete a uma srie de aspectos inscritos na vida cotidiana da periferia. A

    ideia de o sarau se metamorfosear simbolicamente em quilombo est presente em

    expressivos da Zona Sul, retoma em linguagem sonora o simbolismo do quilombo. Em

    1997 a

    empregado para se referir ao grupo (SILVA, 1998). Identificamos pela primeira vez

    nexos entre os experimentos culturais juvenis atuais e o imaginrio ancestral. A

    presena de grupos de rap nos saraus literrios confirma a existncia de laos de

    entoada nos saraus, enfatiza elementos que aproximam simbolicamente os antigos

    quilombos e a periferia.

    ANTIGAMENTE QUILOMBO HOJE PERIFERIA

    A que sentido flores prometeram um mundo novo?

    Favela, viela morro tem de tudo um pouco

    Tentaram alterar o DNA da maioria

  • Dos quilombos periferia: reflexes sobre territorialidades e sociabilidades negras urbanas na

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    Rei Zumbi! Antigamente quilombo hoje periferia!

    Levante as caravelas aqui no daremos trguas, no, no

    Ento que venha a guerra

    A distncia colocada no eixo temporal entre o perodo escravocrata e a

    contemporaneidade subitamente superada. O recurso potico em produzir

    aproximaes recorrente. Assim, o passado deixa de ser objeto inerte. Por meio de

    estratgias discursivas e visuais, diferentes elementos simblicos so recuperados e

    inscritos em um mesmo plano. O encarte do CD Tem cor age

    A diacronia submetida sincronia, assim, quilombo, favela, hip-hop, grafite, periferia,

    entre outros elementos simblicos se posicionam lado a lado. Como obra de bricoleur,

    Figura 2