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Dos cortes das piaçavas à pesca da garoupa: contrabandista, presidentes da câmara, juízes experiências de Professores Públicos primários no século XIX Antonio Lisboa 1 Resumo Esse texto analisa atuações de professores públicos na comarca de Porto Seguro Província da Bahia (1849-1883). O intuito é apreender suas experiências sociais e históricas enquanto homens e enquanto professores primários, tais como seus variados negócios, contrabando e participação política institucional que se articulavam ao exercício do magistério de forma costumeira e como passaram a ser negativizados em consonância a constituição de um sistema de ensino provincial a partir da criação da Diretoria Geral dos Estudos, em 1849. Esse trabalho dialoga com conceitos da história social da cultura, atrelado ao campo/área história da educação.Do lugar de professores construíram uma rede de apoiadores que permitiu aos mesmos, experiências favoráveis dentro e fora do magistério, e nelas contornaram a disciplinarização do tempo escolar. As relações sociais construídas em torno do magistério estabeleceram-se de forma a contribuir em autoreconhecimentos e inter-reconhecimentos entre os professores e demais detentores de capitais sociais daquela sociedade. Palavras-chave: Professores primários. Instrução pública. Atuações e disciplina. Experiências. Apresentação O professor e seus predicados [...] Encarregado de educar as novas gerações, essas gerações que nascem, o professor como que de algum modo completa a obra de Deus, e, seguindo a maneira porque desempenha o seu sagrado ministério póde ser um poderoso instrumento de civilização e de progresso ou germen de corrupção e de morte. [...]Apostolo da religião, ao mesmo tempo que da civilização o professor aproxima-se do sacerdote. [...]. 2 “Completar a obra de Deus” talvez não fosse uma tarefa fácil! Para alguns, a profissão do magistério era mesmo um sacerdócio, mas não os encontrei na Comarca de Porto Seguro. Os professores da comarca tinham outros bons predicados, estavam envolvidos com a política na câmara; envolvidos com as disputas dos negócios, desde a pesca da garoupa ao contrabando de piaçavas. Estavam envolvidos em uma teia de capital social que os protegiam. Atuaram diretamente nos espaços públicos da municipalidade através das relações com outros 1 Mestrando em História pela Universidade Estadual de Feira de Santana UEFS. Graduado em História UNEB. E-mail: [email protected]. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Ione Celeste Sousa. Essa pesquisa tem financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia FAPESB. 2 O documento está hospedado no site da Unicamp, no Grupo de Estudo HISTEBR. Incompleto, não podemos listar a autoria. Foi, contudo, escrito no Império. Os predicados do professor, São Paulo, 1875. Disponível em: <http://www.histedbr.fe.unicamp.br/navegando/fontes_escritas_imperio_manuscritos.html > Com acesso em: 10 maio 2014.

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“Dos cortes das piaçavas à pesca da garoupa”: contrabandista, presidentes da câmara,

juízes – experiências de Professores Públicos primários no século XIX

Antonio Lisboa1

Resumo

Esse texto analisa atuações de professores públicos na comarca de Porto Seguro – Província

da Bahia (1849-1883). O intuito é apreender suas experiências sociais e históricas enquanto

homens e enquanto professores primários, tais como seus variados negócios, contrabando e

participação política institucional que se articulavam ao exercício do magistério de forma

costumeira e como passaram a ser negativizados em consonância a constituição de um sistema

de ensino provincial a partir da criação da Diretoria Geral dos Estudos, em 1849. Esse

trabalho dialoga com conceitos da história social da cultura, atrelado ao campo/área história

da educação.Do lugar de professores construíram uma rede de apoiadores que permitiu aos

mesmos, experiências favoráveis dentro e fora do magistério, e nelas contornaram a

disciplinarização do tempo escolar. As relações sociais construídas em torno do magistério

estabeleceram-se de forma a contribuir em autoreconhecimentos e inter-reconhecimentos

entre os professores e demais detentores de capitais sociais daquela sociedade.

Palavras-chave: Professores primários. Instrução pública. Atuações e disciplina.

Experiências.

Apresentação

O professor e seus predicados

[...] Encarregado de educar as novas gerações, essas gerações que nascem, o

professor como que de algum modo completa a obra de Deus, e, seguindo a

maneira porque desempenha o seu sagrado ministério póde ser um poderoso

instrumento de civilização e de progresso ou germen de corrupção e de

morte. [...]Apostolo da religião, ao mesmo tempo que da civilização o

professor aproxima-se do sacerdote. [...].2

“Completar a obra de Deus” talvez não fosse uma tarefa fácil! Para alguns, a profissão

do magistério era mesmo um sacerdócio, mas não os encontrei na Comarca de Porto Seguro.

Os professores da comarca tinham outros bons predicados, estavam envolvidos com a política

na câmara; envolvidos com as disputas dos negócios, desde a pesca da garoupa ao

contrabando de piaçavas. Estavam envolvidos em uma teia de capital social que os protegiam.

Atuaram diretamente nos espaços públicos da municipalidade através das relações com outros

1 Mestrando em História pela Universidade Estadual de Feira de Santana – UEFS. Graduado em História –

UNEB. E-mail: [email protected]. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Ione Celeste Sousa. Essa pesquisa tem

financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia – FAPESB. 2O documento está hospedado no site da Unicamp, no Grupo de Estudo HISTEBR. Incompleto, não podemos

listar a autoria. Foi, contudo, escrito no Império. Os predicados do professor, São Paulo, 1875. Disponível em:

<http://www.histedbr.fe.unicamp.br/navegando/fontes_escritas_imperio_manuscritos.html> Com acesso em: 10

maio 2014.

2

detentores de capitais sociais para garantir seus lugares, seu magistério e demais interesses. E

afinal, por que eles estavam nessas atividades; o que os fizeram possuir tais experiências

sociais e históricas; o lugar, ou título de professor contribuiu para isso, e em que medida?

No contexto imperial,3 os professores possuíam o árduo trabalho de levar civilização

aos meninos e, também meninas. Mas entre o desejo de que os mestres fossem sujeitos

polidos e a realidade, havia um distanciamento extremamente avassalador. Nem todos os

mestres mantinham nas suas relações de trabalho um comportamento condizente com

regulamentos e normas disciplinares da profissão.Esse hiato está relacionado às suas

experiências. E os que analiso neste texto fizeram outros usos desse lugar – o ser professor.

No intuito de perceber as experiências sociais e históricas, esse texto investiga

atuações de professores públicos na comarca de Porto Seguro – Província da Bahia (1849-

1883), atreladas avariados negócios, contrabando e a participação política institucional.

Aquelas se articulavam ao exercício do magistério de forma costumeira, contudo, passaram a

ser negativizadas em consonância com a constituição de um sistema de ensino provincial

tendente a disciplinar cada vez mais o (a) professor (a), com vistas a disciplinar a escola e seu

universo.

A proposição desse texto se funda na ideia de experiênciassociais, a partir da

interpretação do conceito thompsoniano para história da educação4, numa perspectiva de sua

vinculação a categoria de trabalho e compartilhamento do mesmo sentido social da profissão,

analisando como e em que aspectos o título de professor as possibilitou.

As experiências desses profissionais tornaram o cenário do magistério um oposto às

propostas educacionais da Diretoria Geral dos Estudos da Província da Bahia. Além de que

não estavam desatreladas de outras realidades na Província, as propostas de educação e

civilização da população sofreram modificações em virtude daquelas experiências.Desse

modo, se compreende que o processo da composição, construção e desenvolvimento do

magistério permitevislumbrar novos planos de fundo tanto da instituição, como dos sujeitos.

“Tal perspectiva nos permite pensar como o processo de escolarização, as culturas escolares

3 Cf. SOUSA, Ione Celeste de J. Prover as aulas, regular o Tempo: uma leitura sobre cultura escolar na Bahia

Oitocentista; SOUSA, Ione Celeste de J. Presença masculina na educação baiana do século XIX. 4FARIA FILHO, Luciano Mendes de; BERTUCCI, Liane Maria. Experiência e Cultura: contribuições de E. P.

Thompson para uma história social da escolarização. Currículo sem Fronteiras, v.9, n.1, pp.10-24, Jan/Jun 2009.

3

não são um pressuposto, elas são o processo e o resultado das experiências dos sujeitos, dos

sentidos construídos e compartilhados e/ou disputados pelos atores que fazem a escola.”5

Concebe-se que:

As ações de homens e mulheres reais são os retratos mais fiéis das

experiências sociais e históricas organizadas. [...]

A construção das experiências históricas e sociais perpassam todos os

segmentos da existência humana e elas se organizam em função das

formações religiosas, das atitudes e também das atividades profissionais

exercidas.6

A partir do raro escrito de Thompson sobre educação, essa reflexão é clarificada:

A experiência modifica, às vezes de maneira sutil e às vezes mais

radicalmente, todo o processo educacional; influencia os métodos de ensino,

a seleção e o aperfeiçoamento dos mestres e o currículo[...].7

A experiência modifica a constituição do processo educacional, tão quanto pode

influenciar os próprios sujeitos. Para Thompson aquela, mesmo sendo uma categoria

imperfeita, é necessária ao historiador, “já que compreende a resposta mental e emocional,

seja de um indivíduo ou de um grupo social, a muitos acontecimentos inter-relacionados ou a

muitas repetições domesmo tipo de acontecimento”.8

[...] O que queremos dizer é que ocorrem mudanças no ser social que dão

origem a experiência modificada; e essa experiência é determinante, no

sentido de que exercepressões sobre a consciência social existente, propõe

novas questões eproporciona grande parte do material sobre o qual se

desenvolvem os exercícios intelectuais mais elaborados. [...].9

O crucial nesse complexo é entender que os sujeitos não estão desatrelados da

consciência social, e que há entre eles, um diálogo.10Para esse estudo, aplicamos a seguinte

hermenêutica: não é possível analisar os professores sem conceber o mínimo de relação entre

os seus pensamentos (e como reflexo, as ações) com o lugar de trabalho.

Thompson ressaltou quanto a negação da experiência (empiria):

5FARIA FILHO, Luciano Mendes de; BERTUCCI, Liane Maria. Op. Cit., p. 18. 6MELO JÚNIOR, João Alfredo C. de C. A noção de experiência histórica e social em Edward Thompson:

Percursos iniciais. História e Perspectivas, Uberlândia (1): 393-413, jan./jun. 2014, p. 400. 7 THOMPSON, E. P. Os românticos: A Inglaterra na era revolucionária. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira,

2002, p. 13. 8 THOMPSON, E. P. A miséria da Teoria. Ou um planetário de erros – uma crítica ao pensamento de Althusser.

Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1981, p. 15. 9 THOMPSON, E. P. op. Cit., 1981, p. 16. 10 THOMPSON, E. P. op. Cit., 1981, p. 17; p. 34.

4

[...] não é perdoável em alguém que se propõe a refletir sobre a história, já

que experiência e prática são manifestas; nem é perdoável num "marxista",

já que a experiência é um termo médio necessário entre o ser social e a

consciência social: é a experiência (muitas vezes a experiência de classe) que

dá cor à cultura, aos valores e ao pensamento: é por meio da experiência que

o modo de produção exerce uma pressão determinante sobre outras

atividades: e é pela prática que a produção é mantida. A razão dessas

omissões se tornará clara quando examinarmos a outra expulsão, a expulsão

da agência humana.11

Nessa perspectiva a análise da instrução não se dá apenas observando as modificações

nas legislações com vista a compreender os processos de disciplina que a Diretoria de Estudos

propunha aos professores; as propostas educacionais; ou o discurso ideológico do Estado em

busca da formação de identidades nacionais, por exemplo. É preciso sentir esse colorido que

está presente na ação humana, nas experiências12.

No intercalar de experiência e cultura, Thompson acreditava haver maior riqueza.

Pois as pessoas não experimentam sua própria experiência apenas como

idéias, no âmbito do pensamento e de seus procedimentos, [...]. Elas também

experimentam sua experiência como sentimento e lidam com esses

sentimentos na cultura, como normas, obrigações familiares e de parentesco,

e reciprocidades, como valores ou (através de formas mais elaboradas) na

arte ou nas convicções religiosas. Essa metade da cultura (e é uma metade

completa) pode ser descrita como consciência afetiva e moral.13

É dessa amarração teórica que se propõe a leitura da vida dos professores e suas ações.

Tanto como um conjunto de atividades no magistério, quanto a partir deste. Nas maneiras

como lidaram com a política, como atuaram na sociedade, como articularam suas redes de

apoio e como isso decorreu nos anos de suas vidas, mas, essencialmente, como o papel de

professor está vinculado a tais experiências.

“Dos cortes das piaçavas à pesca da garoupa”: professores na Comarca de Porto Seguro

– formações, aquisitivos e suas experiências sociais e históricas

O quadro de professores (a) públicos (a) encontrado na Comarca de Porto Seguro é

bem diverso.A partir de 1850 esse quadro de mestres foi marcado principalmente pelas

11 THOMPSON, E. P. op. Cit, 1981, p. 122. 12 THOMPSON, E. P. op. Cit, 1981, p. 182. 13 THOMPSON, E. P. op. Cit, 1981, p. 189.

5

atividades dos professores nos espaços públicos, essencialmente nas câmaras municipais,

atreladas a experiênciascomerciais ou políticas, principalmente a última.

Os três professores que trato neste texto fizeram parte da legislação municipal ou

outras atividades na Câmara. Suas atuações variaram entre os empregos públicos14 como

vereadores (alguns presidentes da câmara), juízes de paz, juízes de órfãos, e outros. Essas

atividades permitiram aos mesmos a consolidação de capitais (políticos e econômicos).Foi a

partir desse capital social, definição de Pierre Bourdieu, de que o mesmo é uma rede durável

de relações úteis de interconhecimento e inter-reconhecimento,15 que os professores da

Comarca asseguraram lugares de ‘destaque’ na sociedade. Suas experiências como sujeitos

estão atreladas a esses aquisitivos, ou a economia de apoio através dos capitais.

Os professores da Comarca se empenharam em construir uma teia que os colocavam

entre os detentores de capitais sociais. Suas experiências parecem ter tons distintos de

professores que em primeira instância exerciam outras atividades por maior renda, o que de

fato era necessário se observado os seus salários. Os aqui estudados foram mais ‘famintos’

por relações sociais e participações políticas, garantidas pelo lugar de professor.

Tenho até aqui utilizado o termo professor (o que masculiniza a profissão). Os perfis

que traçarei neste artigo são de homens que estavam no magistério. Isso resultante da escassez

de fontes sobre as mestras.16

Comentei acima sobre os salários, e para uma ilustração, segue oQuadro 01.

QUADRO 01: Valores do ordenado (salários) dos mestres e mestras – divisão por categorias

de classes das aulas.

Ano Ordenado em Mil réis anuais

Por categorias das aulas Categoria por sexo do valor

do ordenado Das de 1ª Classe Das de 2ª Classe Das de 3ª Classe

1851 400$000rs. Feminino/Masculino

1856 400$000rs. Feminino/Masculino

1863 600$000rs. Feminino/Masculino

1870 800$000rs. 900$000rs. 1:000$000rs. Feminino/Masculino

14 Optou-se por utilizar o termo, ao invés de cargos, devido os documentos. 15 Cf. BOURDIEU, Pierre. Escritos de educação. Petrópolis, RJ: Vozes, 1998, p. 67. 16 Isso pede uma nota de esclarecimento! Não pude até o momento me ater às experiências das mulheres mestras

em virtude da extensa ausência de fontes. Ainda está por vi tal possibilidade. Alguns questionamentos podem

esclarecer melhor essa argumentação: as fontes sobre as professoras são escassas por quais razões; a maior parte

das aulas era de meninos (ensinadas apenas por homens), o que isso significa; além disso, onde encontraremos

indícios sobre essas mulheres? Essas inquietações serão adiadas, elas por si, resultarão em outro texto a partir de

uma análise pelas relações de gênero.

6

1883 800$000rs. 1:000$000rs. 1:400$000rs. Feminino/Masculino

FONTE: (1) Relatório da Diretoria Geral dos Estudos (1851/1856/1863/1883); (2) Reforma Barão de

São Lourenço; (3) Relatório do Presidente da Província (1870).17

Esses salários anuais eram valores irrisórios. Em outro estudo,18 analisei as

possibilidades dos gastos mensais de uma casa com 2 filhos em comparativo entre os valores

do salário dos professores e a carestia dos bens de consumo do período na Comarca. Desse

gráfico, computei que os salários quando não apertados, eram insuficientes, principalmente

nos casos em que o professor tivesse mais de 2 filhos – o que era comum.

Para melhor ilustrar a composição do quadro de professores na Comarca, apresento o

Quadro 02, contendo operíodo aproximado em que estavam na cadeira, ou da posse.

QUADRO 02: Professores/a da comarca de Porto Seguro – BA, com listagem dos (a) mestres

(a) públicos (1850-1883).

Vila Nome Formação Cadeira do

sexo Ano

Porto Seguro

José Martins Sampaio - Masculino 1854

José Gabriel da Rocha Ley Aluno-mestre Masculino 1857

José Baptista dos Santos Silva Junior - Masculino 1877

Jozé Martins de Lima e Mello - Masculino 1878

Brazilino Machado Viegas - Masculino 1879

Hygino Coelho dos Reis Não era aluno-

mestre

Masculino 1880

D. Antonia Miquelina Gonçalves - Feminino 1854

D. Maria Joaquina da Silva Netto Aluna-mestra Feminino 1855

D. Ursulina Maria das Virgens Dourado Aluna-mestra Feminino 1879

Santa Cruz

Manoel Auxilio de Figueredo Aluno-mestre Masculino 1854

Pedro Jorge de Gusmão Rocha - Masculino 1878

José Leonardo Marinho Junior Aluno-mestre Masculino 1879

João Pereira de Souza - Masculino 1881

D. Maria Eufemia Correia Aluna-mestra Feminino 1874

D. Leopoldina Adaria Moreira Aluna-mestra Feminino 1882

Trancoso

Vicente Ferreira Ramos - Masculino 1844

Alexandre José de Mello Moraes Filho - Masculino 1872*

Caetano [Ulberto] da Rocha Guimarães - Masculino 1874

Luis Apollinario da Rocha Guimarães - Masculino 1875

17Devem ser compreendidas nesta tabela que entre as décadas de 1850 e 1870 existiram diversas discussões

sobre a divisão de cadeiras (aulas primárias). No entanto, somente a partir de 1870 estão divididas entre 1ª, 2ª e

3ª classe nos relatórios. As de primeiras eram as mais comuns, e poderiam existir em todas as localidades; as de

segunda classe eram as que estavam nas cabeças de comarca (na Comarca de Porto Seguro, eram as da Vila de

Porto Seguro [uma de meninos e outra de meninas]); e as de terceira classe eram as da capital baiana. A partir

de 1881 na Reforma Bulcão estabeleceu-se nova divisão, sendo que as de primeiras classes passaram quando se

tratava de povoados e distritos (lugar sem câmara)para denominação de contratadas, com remunerações

baixíssimas de 500$000 réis anuais; e as demais na sequência: 1ª – vilas; 2ª – cabeça de comarca e 3ª – as da

capital. 18 Durante a monografia cruzei alguns dados de gasto e consumo. Cf. Lisboa, 2015.

7

Vila Verde

Manoel Alexandrino Borges Aluno-mestre Masculino 1854

Joaquim Cancella de Figueiredo Aluno-mestre Masculino 1857

Manoel de Lima Rocha Pitta - Masculino 1874

Belmonte

Bernardino d'Oliveira Pinto - Masculino 1854

Manuel Alexandrino Borges Aluno-mestre Masculino 1856

Raphael Rodriguez Cardozo - Masculino 1864

Canavieiras Manuel Francisco Soares - Masculino 1854

Arraial

D’Ajuda

Manuel Joaquim Bemfica Não é aluno-

mestre

Masculino 1875

FONTE: (1) APEB, Seção Colonial e Provincial – Maços: 1448/3958/3960/3961/6551; (2) Relatórios

dos Diretores de Instrução de 1854, 1880 e 1881; (3) Relatório do Presidente do ano de 1860.

Quando foi possível identifiquei a formação, a localidade da cadeira e o nome do

mestre ou mestra. Para alguns casos, o ano é o de provimento na cadeira (aula), mas em

outros, é a referência de quando os encontrei listados em algum documento enquanto

professores.

Esboçarei abaixo traços das experiências de três professores da Comarca. As fontes

permitiram tratar de: José Sampaio na Vila de Porto Seguro; Manoel Auxílio em Santa

Cruz; e Vicente Ferreira Ramos na Vila de Trancoso, na respectiva ordem. Que entremos ao

mar, entre fios de piaçavas e da rede, rede da pesca, mas também, rede de relações. Os fios de

piaçavas, que finos como as penas que cobriam o papel branco e hoje podem dar cores aos

movimentos da instrução e dos professores, são fios que tecem a história.

Não apenas professores: traços das experiências de professores públicos na Comarca

Professor, vereador e Juiz de Paz: assim posso definir o professor público José

Sampaio. Nascido em dez de junho de 1813, era cidadão brasileiro, natural de Porto Seguro,

casado com D. Antonia Miquelina Gonsalves Sampaio com quem teve uma filha legitima.

Além dessa filha, teve mais dois ilegítimos com Maria Francisca de Souza, mulher que era

desimpedida. O professor faleceu em vinte de fevereiro de 1890. 19

19 APEB. Seção Judiciária. Doc. 08/3397/17. Inventário José Martins Sampaio (1890).

8

José Sampaio começou a exercer o magistério antes de 1854, isso por que se jubilou20

em fins da década de 1850 na cadeira de primeiras letras da Vila de Porto Seguro. Do seu

exercício no magistério, não obtive muitas evidências. Contudo, é valioso salientar que

quando da visita de inspeção das aulas feita em 1850/5121 o professor não foi listado entre

aqueles sem zelo com o ensino. Isso pode significar que o mesmo possuía uma prática no

ensino dentro das regularidades básicas exigidas.

Em 1851 para o exercício da cadeira de primeiras letras o Prof. J. Sampaio recebia o

ordenado no valor de 400$000 réis anualmente. Esse era o valor pago ao professor (a) de

primeiras letras. A forma de pagamento era extremamente penosa, uma vez que os mesmos

recebiam em parcelas, que podiam ocorrer somente ao final do ano (casos comuns), ou

dividia-se em 3 ou 4 parcelas anualmente.22 Isso colocava os professores em alguns

“arrochos”.23

Devo ressaltar que no período de seu exercício no magistério, as aulas eram dadas

(obrigatoriamente pelo Regulamento) em duas sessões diárias. Também se incluíam na

atividade do ensino primário, as obrigações com as missas aos domingos, onde o professor

primário acompanhava seus discípulos como meio do ensino religioso.24Isso demanda discutir

quais possibilidade o professor teria para complementação de renda, ou outras atividades na

sociedade.

Já quanto a característica apresentada no início desse texto, de que os professores da

Comarca exerceram atividades políticas na câmara, identifiquei que o Prof. José Sampaio era

em 1857, vereador da Câmara Municipal de Porto Seguro. Havia pouco mais de um ano de

sua jubilação de professor público.Um ano antes (1856), o professor estava também listado

entre os eleitores da Vila de Porto Seguro para deputados. Entre os vários homens que

20 Jubilar-se é o ato de ‘aposentar’ no serviço do magistério. Desde 1836 (Lei n.º 35/1836) até a década de 1860

essas jubilações oscilavam, sem um parâmetro especifico. Comumente recebia-se vitaliciedade aos 5 anos de

exercício, e muitos pediam jubilação a partir de 10 anos de exercício. Essa prática a partir de 1870 foi mais bem

regulada, conseguindo-se a jubilação com ordenado integral somente após 20 anos de exercício, acompanhada da

proibição de ficarem em exercício recebendo outras gratificações (comumente era mais um terço do salário). 21Relatório sobre o estado da Instrução Pública da Provincia da Bahia apresentado [...] por Casemiro de Sena

Madureira, Director [...] 1851. Bahia, Typographia Const. de Vicente Riveiro Moreira, rua do Tijolo nº 10, 1851.

Disponível em: <http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/114/>. Acesso em: 12 maio 2014. 22 APEB. Seção Colonial e Provincial. Série Instrução Pública. Maços (3958/3961/3961). E Relatório (1856). 23APEB. Seção Judiciária. Livro de Nota 366/CX102 – Escrituras. Escritura de hipoteca (1866). 24 Resolução 379 de nov. de 1849 e o Regulamento de 26 de fev. de 1850 – Francisco Gonçalves Martins. In:

Relatórios dos Diretores de Instrução. Disponível em: <http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/114/>. Acesso em: 12 maio

2014. Não encontrei relatos sobre essa atividade do professor aos domingo.

9

participaram, Prof. J. Sampaio estava entre os quatro mais votados.25 Devo ainda destacar que

neste mesmo ano, Prof. José Rocha Ley e Prof. Vicente F. Ramos também foram listados

enquanto candidatos a eleitores, tendo diminutos votos. Eram novos na vila, fator que pode ter

influenciado o baixo número de votos, ainda não haviam consolidado seus lugares.

Essa informação de que o professor foi bem votado demonstra o seu alcance de

capitais sociais e das relações estabelecidas que o fazia estar entre os que detinha ‘destaque’

na sociedade porto-segurense. Notou-se que o lugar de ser professor público na Vila de Porto

Seguro garantiu ao mesmo tal possibilidade.

Terminada a atuação na câmara, o professor Sampaio continuou a exercer emprego

público.Pela “Relação nominal dos Juizes de Paz Eleitos”26 encontrei o Prof. J. Sampaio

eleito para exercer o lugar de Juiz de Paz do 4º ano (1860). Após esta aparição nos

documentos da câmara, não o encontrei novamente em exercício de alguma função/atividade

pública. Tanto como presidente da Câmaraou juiz, esse lugar garantia ao mesmo maior

destaque na sociedade. Esse tipo de juizado resolvia pequenos atritos, uma espécie de

moderador local desses conflitos. Isso lhe garantia algumas possibilidades, e principalmente, a

visibilidade. Poder social: talvez seja a melhor colocação para o status do juiz de paz.

O aquisitivo acumulado pelo professor José Sampaio não foi um dos maiores entre os

professores analisados. A partir de cadernetas e apólices percebe-se que tinha meios

acumulativos de ‘dinheiro’. O que é importante na realidade da comarca, que não era tão

próspera. O professoroptou por manter seus acúmulos financeiros em apólices. O único

professor que encontrei na pesquisa com tal prática.27 No seu testamento, informou: “Declaro

que tenho depositado na Thezouraria de Fazenda Geral da Bahia, [...], duas de conto de réis

(cada uma) e uma de quinhentos mil réis,[...].”28Deixou a caderneta ao neto Constancio, de

723$000 réis.

Além desses e de outros pequenos bens móveis, o professor deixava em 1890 alguns

bens de raiz. Dentre eles estavam três casas, uma no valor de 1:500$000rs. (um conto e

quinhentos mil réis), e a mais simples de 300$000 réis na Vila Alta. Outra casa simples,

25APEB. Seção Colonial e Provincial. Série C. das Câmaras Municipais. Maço 1384 –Porto Seguro – (1856). 26APEB. Seção Colonial e Provincial. Série C. das Câmaras Municipais. Maço 1384 –Porto Seguro – (1857). 27 Deve-se ressaltar a importância dada a isso por Mattoso, ela se referiu ao ato de guardar dinheiro em poupança

por aqueles que se encaixavam na classe de ricos. Isso levando em consideração a capital baiana quem tivesse

10:000$000rs. acima, a autora denominou de ricos. MATTOSO, Katia M. de Queirós. op. cit., p. 609. 28APEB. Seção Judiciária. Doc. 08/3397/17. Inventário José Martins Sampaio/ Cópia Testamento (1890).

10

situada na rua 15 de Novembro que só tinha uma porta e uma janela, e nesta não havia

divisão.29Sendo que o Prof. J. Sampaio não recebia nenhuma gratificação por aluguel de casa,

indicamos que esta possa ter sido a casa-escola em que o professor trabalhava quando exerceu

o magistério público. Também, onde sua mulher podeter ensinado mais tarde juntamente com

o mesmo, no magistério particular. Era comum que o professor tivesse um sobrado, ou duas

casas contíguas, uma para o magistério e outra para morada.

A “fortuna” deixada pelo Prof. José Sampaio foi de 6:044$820rs. (seis contos quarenta

e quatro mil e oitocentos e vinte réis). Esse valor foi deixado sem dívidas. Tomando por base

o cálculo usado por Kátia Mattoso de dez contos de réis para ser incluído entre os ricos,

podemos pensar que, numa realidade da vila de Porto Seguro, ter ficado um total líquido

acima de seis contos já era alguma boa quantia.

O Prof. J. Sampaio também fez parte de duas irmandades. No seu inventário faz

referência a um morgado30 que as envolvia, uma era a Irmandade d’Ajuda e a outra

Irmandade dos Passos (já extinta em 1890). Sendo assim, obtive evidências de que o

professor tinha não somente o capital social devido seus vínculos com a Câmara, mas

também, pela experiência na irmandade, que é prenhe de relações de interconhecimentos.

Na Villa de Santa Cruz, da mesma Comarca, encontrei o ex-professor Manoel Auxílio

criticado não somente no aspecto moral, mas principalmente pelo seu comportamento

autoritário. Foi assim que o denominaram de: “O homem é o diabo”. Se tratava de Manoel

Auxílio, que de professor público esteve envolvido nocontrabando de piaçava em Santa Cruz.

Manoel Auxilio de Figueredo, professor público da Vila de Santa Cruz, provido em

1854 foi um homem de muitas disputas, muitos inimigos e de forte ação na mesma vila. Do

seu magistério, ressalto a importância de ser aluno-mestre. Da sua prática no magistério, são

parcas as considerações. Mas através do sujeito Manoel Auxílio, apreende-se as ações do

professor público. As experiências do homem político tiveram, nitidamente, reflexos na vida

social daquele lugar.

29APEB. Seção Judiciária. Doc. 08/3397/17. Inventário José Martins Sampaio (1890). 30 A definição do termo Morgado, é segundo dicionário do século: Herdeiro de morgado. Morgado. Bens

vinculados em certos sucessores, que não se podem alhear. Para melhor compreensão, alhear, é: traspassar a

alguém a posse, o direito a propriedade do que he nosso. Cf. PINTO, Luiz Maria da Silva. Diccionario da

Lingua Brasileira. Typographia de Silva: Ouro Preto, 1832. Esse morgado era acima de um conto de réis.

11

Prof. Manoel Auxílio teve a política imbricada à sua vivência como cidadão de Santa

Cruz. Através de diversos processos cíveis surgiram suas várias experiências sociais. Um

homem de políticas e negócios, detentor de uma rede de protetores, na câmara e noutros

cargos públicos. “O homem é o diabo”, foi uma expressão encontrada em um dos processos

cíveis movidos contra o professor. O mesmo sabia que detinha essa rede de apoio e a utilizava

muito bem. Fervoroso nos negócios públicos, segundo os documentos, o mesmo possuía

influência nas atividades políticas do local. Por ter algumas pequenas propriedades de

plantações, como, por exemplo, de mandioca e piaçavas, constantemente tinha disputas com

alguns desafetos na vila de Santa Cruz e com a câmara de Belmonte.

Em 1879, identifiquei queixas que a Câmara Municipal de Santa Cruz fez contra o

Juiz comissário das comarcas de Porto Seguro e Canavieiras. Em resposta ao juiz de direito, o

juiz comissário apresentou parte do nosso professor. Denunciava que “Em primeiro lugar

tenho a ponderar-a V.Exª que tal representação é obra de Manoel Auxilio de Figueredo, que

se dizendo influencia eleitoral da localidade, se julga authorisado a devastar os terrenos

devolutos, nos fundos de sua propriedade de coqueiros sita a Mugiquiçaba:[...].”31 Na mesma

correspondência ainda informava que a câmara era favorável às devastações que o ex-prof. M.

Auxílio realizava ao longo da costa em terrenos devolutos próximo ao Rio Mogiquiçaba

(atualmente município de Belmonte), o que por lei era proibido segundo os autos de processo.

Essa devastação era da mata e dos coqueiros de piaçava. Manoel Auxilio comercializava

piaçava extraída ‘ilegalmente’.32

Noutra correspondência do mesmo ano, a câmara de Santa Cruz comunicou a

presidência da província os “reais motivos da demarcação das terras entre Santa Cruz e

Belmonte”.33 Em defesa do Prof. Manoel Auxílio, acusou o juiz comissário de estar

interessado na piaçava do terreno para enriquecer o sogro e a si mesmo. Esse documento

demonstra a relação estabelecida por Prof. M. Auxilio para consolidação de seu capital

(político e econômico) através do capital social, o que fez de sua experiência uma verdadeira

zona de disputas na política.

31APEB. Seção Colonial e Provincial. Série Justiça. Doc. 2545. Correspondências de Juízes (1878-1889). 32APEB. Seção Colonial e Provincial. Série Justiça. Doc. 2545. Correspondências de Juízes (1878-1889). 33APEB. Seção Colonial e Provincial. Série Justiça. Doc. 2545. Correspondências de Juízes (1878-1889).

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Também no ano de 1879 ainda havia outros problemas com professor Auxílio. O Juiz

Municipal o representaria pelo contrabando de piaçavas.34 Nessa conjuntura foi expedido

mandato para que fosse apreendida toda piaçava armazenada na Fazenda Coqueiros,

propriedade de Prof. Manoel Auxílio. Em todas essas correspondências havia elementos de

articulação dos grupos. De um lado a câmara e seus vereadores a favor de Prof. M. Auxílio,

do outro, o Juiz Municipal e o Juiz Comissário também com seus interesses lucrativos. A

câmara de Belmonte também estava envolvida diretamente, pois era vinculada ao juiz

comissário.35

Além desses indícios, encontrei diversas dividas do professor.36 Essas negociações

ultrapassaram em 1879 o valor de 3:319$119rs. (três contos trezentos e dezenove mil cento e

dezenove réis).Assim como os demais professores, Manoel Auxílio também convivia com

essas dependências de credores, em vista dos outros negócios que fazia (resultante talvez do

módico ordenado do magistério).

Contudo, as brigas de professor Auxílio não eram apenas pelos interesses econômicos.

Anos depois das disputas na Câmara pela devastação das terras e retiradas de piaçava,

identificamos Prof. M. Auxílio envolvido em questões políticas muito acirradas. No ano de

1890, Manoel Auxílio exercia o emprego de 2º juiz de paz da vila, e como tal encabeçou as

atividades da mesa de alistamento eleitoral. O problema em torno disso foi a divergência de

ideais políticos e as radicalidades desses grupos em Santa Cruz.

No papel de juiz foi acusado de caprichos, injustiças e desmandos no alistamento.

Também de ocultação das atas e livros da mesa, de ter inserido somente conteúdos que quis

na ata, trancado a intendência entre 18 a 24 de maio de 1890, e de ter ordenado que não

fossem despachadas diversas petições e requerimentos de cidadãos de Santa Cruz, e que de

não ter repassado a cópia da ata do alistamento e da lista final.37

De fato, ao que tudo indica, a casa da intendência ficou fechada por diversos dias,

enquanto Prof. Manoel Auxílio articulava com outros poderes a manutenção da ordem,

34 Essa piaçava era principalmente comercializada em Belmonte (como consta nos documentos), sendo a mesma

‘exportada’ para fora (possivelmente Minas Gerais e Salvador). 35APEB. Seção Colonial e Provincial. Série Documentos avulsos. Maço 1418 –Santa Cruz – 1846 a 1888. 36APEB. Seção Judiciária. Doc. 70/2506/06. Processo Cível. (1881). 37APEB. Seção Judiciária. Doc. 65/2516/11. Processo Cível. (1891).

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comorelatou nos autos. O professor em sua defesa justificava os atos.38 Em torno desses

desentendimentos, a vila foi marcada por ameaças e tramas. A favor do denunciante, alguns

empregados públicos, como o 1º juiz de paz que não assumiu as eleições, fazendo depois uma

segunda lista. A favor do professor, diversos empregados da intendência e outras

autoridades.O conflito foi tão emblemático, que no referido período foram realizados dois

alistamentos na Vila. E neste contexto, apareceu denominado de homem “endiabrado”, em

quem todos temiam.

Tão importante como os já citados, foram alguns outros processos encontrados em que

o professor disputava a construção de uma casa e a posse de um terreno com uma lavradora e

seu compadre. Em meio a essa documentação algumas evidências deixaram a possibilidade de

o mesmo ter tido relações com a lavradora Prudencia Brito. Os documentos explicitaram

evidenciaram também um perfil “conservador” do professor em relação a participação social

de negros (ou como indicou em uma apelação, de um homem africano). Essa evidência será

explorada em outro momento. O Prof. M. Auxílio descortinou a possibilidade de uma longa

abordagem, mas que devo por ora estanca-la.

Estanca-la porque os fios da piaçava não poderão ofuscar as redes de pesca das

garoupas. Estamos nos passos de Vicente Ferreira Ramos, o professor da aula primária da

Villa de Trancoso que terminou a vida como comerciante de garoupas. Este estava na

regência da cadeira de primeiras letras da vila a partir de 1844. É bem provável que já atuasse

no magistério a mais tempo.

Não há evidências de que era aluno-mestre da Escola Normal, possivelmente era leigo.

A aula em que Prof. Vicente Ramos ensinava era uma cadeira atípica, pelo número de

discípulos que frequentava e a capacidade de a mesma ficar aberta por muitos anos com a

média de frequência de 10/15 alunos,39número inferior aos regulamentos. O mesmo atuou na

cadeira de Trancoso até 1855, e após suspensão da cadeira não o encontrei no magistério

novamente.

38 Consta nos autos do processo que o eleitor não poderia se alistar em duas localidades distintas e nem em

comarcas diferentes. Neste caso, o eleitor estava alistado em Canavieiras e Manoel Auxílio provou por atestados

que anexou ao processo para servir a sua defesa. 39 Essa baixa frequência de alunos já foi analisada em outro momento (Lisboa, 2015), e a justificativa era pelo

fato de ser uma vila de índios.

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Em 1856, a aula de Trancoso estava extinta, com isso o ex-professor Vicente Ferreira

mudou-se para a Vila de Porto Seguro. Nesta mesma vinda à Vila, o professor fez parte das

eleições de Juiz de Paz, sendo eleito ao 2º ano. Contudo, não tomou posse:

[...] sendo convidado pela Camara para no dia 7 do corrente mez de janeiro

vir tomar a competente posse, chegado este dia oficiou dizendo qe em quanto

não tivesse demissão de Professor de um[a] Freguezia diferente d’esta não

podia tomar posse, como se mostra do officio por copia junto, cujo officio

sendo submethido á consideração d’esta Camara foi resolvido que não

constando, que o referido Cidadão fosse Professor de alguma Freguezia

[...].40

Deve-se indagar por que Vicente Ramos não quis tomar posse de juiz de paz.

Provavelmente porque ocuparia muito tempo? Essa pode ter sido uma, dentre tantas

possibilidades. Mas o interesse do ex-professor Vicente Ramos era mesmo de ser reintegrado

na cadeira, ao menos foram estas suas justificações. Encerrou sua carreira enquanto mestre no

magistério após ter sido removido da cadeira de Trancoso entre os anos de 1854 a 1856.

Após sua saída da cadeira de professor, já em 1856, Vicente Ramos estava entre os 18

homens eleitores da Paroquia Nossa S.ª da Pena (Porto Seguro), era o primeiro suplente

eleitor para deputados. Talvez um dos primeiros esforços para alcançar a participação política.

Muito similar ao Prof. Manoel Auxílio de Santa Cruz, Prof. Vicente Ramos exerceu

diversas atividades paralelas ao magistério. Uma delas era o empreendimento de pesca de

garoupa ao longo da costa entre Porto Seguro e Comandatuba em Canavieiras. E por isso

possuiu uma longa trajetória de ações e disputas nas Vilas de P. Seguro, Trancoso e na capital.

Em meio as ações políticas, também notamos seu afastamento do magistério e

permanência nos ramos de negócios. Um hyate com mercadorias do mesmo foi embargado

em 1864 no Porto de Salvador, devido ao não pagamento de uma dívida na Cidade da Bahia.

O barco ficou apreendido no porto para quitação de 361$228réis de dívida restante doutra de

2:076$082réis.41 Também não demorou muito após ter se fixado na vila de Porto Seguro, para

que Vicente fizesse parte da câmara municipal. Em 1865, o mesmo era vereador daquela

vila.42 Fator importante para compreendermos como o professor público construiu seus

40APEB. Seção Colonial e Provincial. Série Correspondências das Câmaras Municipais. Maço 1384. (1857). 41APEB. Seção Judiciária. Doc. 28/973/28. Processo Cível (1864), fls. 5-7. 42APEB. Seção Colonial e Provincial. Série Correspondências das Câmaras Municipais. Maço 1384. (1865).

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espaços políticos e futuras defesas em suas disputas. A câmara pareceu-nos uma possibilidade

de facilitação dos seus negócios.

Ao final da década de 1870 encontrei Vicente Ramos também com suas ações

judiciais para defesa de seus interesses econômicos. Em um processo que movia contra

Jesuíno Conceição, notamos que o mesmo comercializava farinha e peixes. Em 1880 a dívida

era de quatro contos de réis,43e como resultado do não pagamento perdeu a Fasenda Bomfim,

em Água Branca44 (Trancoso) que apareceu no inventário de Vicente em 1893.

Em 1880, através de um processo cível apareceu o ramo dos negócios do antigo

mestre. Em virtude do afundamento da garoupeira “Flor do Brazil” em Comandatuba e a

perda de mais de 2 mil garoupas, notou-se que o mesmo não apenas comercializava peixes,

mas também, que este era seu grande empreendimento mar a dentro. Na representação contra

a Companhia Brazileira de Paquetes a Vapor, destaca-se que “Vicente Ferreira Ramos, [é]

residente em Porto Seguro, [...] dono e possuidor de uma embarcação armada á garopeira sob

o nome de “Flor do Brazil” destinada á pesca de garôpas, [...]”.45

O elemento que mais chamou atenção é a possibilidade de que Prof. Vicente Ramos

tenha utilizado mão de obra escravizada no empreendimento.46Durante o afundamento, houve

a perda de um escravo que se encontrava na pescaria das garoupas. Conforme a justificação

de Vicente, “6º Que da [abuleação], resultante de impericia ou negligencia de gente de bórdo

do Vapor, proveio a perda total da garopeira e a morte de um dos seos tripolantes de nome

José, africano, de 40 á 50 annos de idade, solteiro, escravo de D. Maria do Rozario

Cancella.”47

A partir dos depoimentos dos sobreviventes, identifiquei que o dito José era o único

escravizado presente. Isso nos impulsiona a questionar se o escravizado era alguma troca de

favores, se era uma espécie de aluguel usado em tempos de pesca, se era uma sociedade no

barco ou em última instância apenas um deslocamento do mesmo. É preciso atentar-se para a

relação estabelecida entre D. Rozario Cancella e Vicente Ramos.

43APEB. Seção Judiciária. Doc. 33/1157/4. Processo Cível – ação decendiária. (1878), fls. 108-115. 44APEB. Seção Judiciária. Doc. 56/2007/11. Processo Cível – Arrematação dos Bens de Jesuíno. (1880). 45APEB. Seção Judiciária. Doc. 43/1520/23. Processo Cível – Justificação. (1880). 46 Similar a este, está o Prof. Manoel Auxilio em que não excluo também de tal possibilidade para os cortes de

piaçava. Em diversos documentos apareceu tal suspeita, mas que ainda não se confirmou. 47APEB. Seção Judiciária. Doc. 43/1520/23. Processo Cível – Justificação. (1880).

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É importante perceber que o ex-professor da Vila de Trancosose tornou um

‘importante comerciante’ em Porto Seguro e talvez na praça da Cidade da Bahia. E seus

aquisitivos não eram baixos. Sua fortuna ficava em 8:829$680réis em saldo líquido. Seus

bens totalizaram 10:290$510réis e dívidas de 1:460$830réis. Isso não era das maiores

riquezas, mas Vicente Ramos foi entre os quatro professores, o de maior aquisitivo.48 Não

seria arriscado considera-lo rico! Já quanto ao seu capital social (político) compreendemos

que suas ações na câmara foram em detrimento de seus interesses comerciais. A câmara

representou para o mesmo a possibilidade de produzir a rede de apoio necessária. Entre

farinha, garoupas, câmara e a antiga aula, Vicente Ramos, em essência, era um homem de

negócios, razão de ter sido punido com a perda da aula por baixa frequência de alunos e faltas

do professor.

Em traços gerais e ainda inconclusivos, com o cruzamento dos dados dos professores

apresentados aqui, destaco que o principal elemento que os envolveu foi a câmara municipal.

Fosse esta relação pelo interesse comercial, como foi a de Vicente Ramos, fosse pela política

como José Sampaio, fosse pelas duas coisas como foi o caso de Manoel Auxílio em Santa

Cruz. O espaço mais representativo para as disputas e alianças políticas desses professores foi

a câmara municipal, e elas partiram do lugar de ser professor. Na Câmara apoiavam e eram

apoiados, o que culmina profundamente em um rico capital (social e político) e suas

experiências não estão desatreladas desses capitais. Eles articularam a carreira do magistério

ou os negócios, ao capital social possibilitado pela ação política e pelos empregos públicos.

Não encontrei indícios dos professores na comarca dentro de outras instituições que

fomentassem o desenvolvimento da instrução, como, por exemplo, clubes, associações de

caridade para meninos e meninas, etc. Ainda sobre o envolvimento destes com o

desenvolvimento da instrução, é preciso aprofundar-se, principalmente pelas raras evidências

na documentação. Os caminhos ainda estão abertos para traços!

Referências

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48APEB. Seção Judiciária. Doc. 08/3397/19. Inventário de Vicente Ferreira Ramos (1894).

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