do underground ao udigrudi edmar junior
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Fundação Armando Álvares Penteado
DO UNDERGROUND AO UDIGRUDI
Cultura Brasileira II – Prof.ª Mônica Rodrigues da Costa
Edmar Júnior 2113103313
Resumo: este trabalho tem como objeto de análise os movimentos contraculturais, procurando estabelecer as conexões entre as manifestações que se desencadearam no mundo e no Brasil. O ensaio traz apontamentos sobre o contexto histórico dos anos 1960, da Tropicália e do udigrudi, indicando o caráter experimental e híbrido da cultura contemporânea, sobretudo na música. Palavras-chave: Underground, contracultura, Tropicália, Udigrudi.
INTRODUÇÃO
Em tempos e lugares distintos, a arte liga o homem a seu passado,
contribuindo para sua compreensão do presente e preparando-o para os
acontecimentos futuros. Deixar de rever os eventos que podem explicar os
fenômenos de uma sociedade tão complexa como a nossa é uma postura um tanto
arriscada. Corre-se o risco do conformismo, da alienação ou – o que é pior – da
rebeldia sem causa.
No mundo globalizado, a cultura se manifesta em todos os lugares, quase que
ao mesmo tempo e de maneira incontrolável, carregando influências de um lado
para o outro, deixando marcado aqui o que de mais significativo está acontecendo
acolá. Nesse sentido, ficar alheio ao que acontece à nossa volta é praticamente
impossível. Basta observar o impacto das redes sociais nos levantes populares
recentes. Poderíamos apontá-los como contraculturais? Não. Falta-lhes um
ingrediente fundamental: a arte.
Este trabalho procura traçar um breve voo panorâmico sobre os
acontecimentos socioculturais dos anos 60, quando a revolta popular tinha o
respaldo de realizações artísticas, principalmente no campo da música. Segue-se
com reflexões sobre a Tropicália, movimento brasileiro que se apresenta como um
legítimo representante do espírito underground. Enfim, é apresentado o udigrudi,
que assim como os eventos que o precederam, torna-se referência para os tempos
vindouros.
OS ANOS 60
Marcado por eventos que se irradiavam de diversas partes do mundo, os
anos 60 constituíram uma período repleto de episódios políticos e culturais
importantes para a compreensão do homem contemporâneo. O esforço dos Estados
Unidos em estabelecer a supremacia do capitalismo espalhou regimes totalitários
pela América Latina e, somado à guerra do Vietnã, despertou o descontentamento
daqueles que se viam sob o jugo de uma postura ditatorial e imperialista. O
sentimento de repúdio a esses sistemas desencadeou atitudes assinaladas pela
ousadia, já que um outro conflito mais insólito - a Guerra Fria - também concorria
para a insatisfação que se avultava. Na Europa, ao expressar ideias revolucionárias,
o movimento estudantil na Paris de 68 deixava claro que a situação política
incomodava. Frases como "a imaginação no poder" passavam a fazer parte do
vocabulário daqueles que queriam combater os valores sociais vigentes.
"Os jovens começavam a pontuar uma ação transformadora em direção aos
costumes" observa Ligia Canongia (2005, p. 61), e o surgimento do movimento
hippie é um dos mais contundentes sinais de que aqueles garotos estavam em
busca de uma alternativa à situação opressiva universal. Sexo, drogas e rock'n roll
formaram o tripé no qual se sustentavam ideias e comportamentos, e desta forma o
legado cultural de uma década estava sendo estabelecido.
Primeiro vieram os Beatles, depois os Rolling Stones, e no final da década a guitarra de Jimmy Hendrix e as canções de Janis Joplin uniam-se à poesia da geração beatnik de Jack Kerouac e Allen Guinsberg, fomentando um
núcleo de incompreendidos, como não se via desde a Paris de Rimbaud. (CANONGIA, 2005, p. 61)
Estes "incompreendidos" foram responsáveis por uma onda underground que
se propagou pelo mundo. A cultura jovem tornou-se a matriz da revolução cultural
nos modos e nos costumes, nos meios de gozar o lazer e nas manifestações
artísticas que cada vez mais passavam a fazer parte da atmosfera respirada nos
meios urbanos. No Brasil, "os hippies, independentemente do fato de serem ou não
'artistas', propõem um 'novo estilo de vida', uma nova 'sensibilidade', que procura
fazer da vida uma constante explosão de arte." (HOISEL, 1980, p. 42). Ao fazer uma
crítica aos valores éticos, morais e estéticos da cultura estabelecida, o movimento
hippie afirma-se como um movimento da "contracultura", cuja essência está em ser
um:
Conjunto de comportamentos, valores e obras que, de maneira desafiadora e contestadora, opõe-se, de um lado, aos códigos sociais, aos sistemas políticos ideológicos ou às tradições artísticas vigentes e hegemônicas; e, de outro, reivindica novos modelos e formas expressivas não convencionais no âmbito sociocultural, ou mesmo a extinção de regras condutoras. O termo ganhou notoriedade a partir de meados do século XX, em decorrência de movimentos artísticos, políticos-universitários e comportamentais de jovens da época. (CUNHA, 2003, p. 206)
Nesse cenário, a música teve um papel decisivo, principalmente o rock'n roll
por sua natureza rebelde. Há 50 anos, quando os Beatles tocaram pela primeira vez
nos Estados Unidos, nem aquele país nem o resto mundo podiam imaginar a força
que as figuras da cultura pop viriam a adquirir. Em 1969 mais de 500 mil pessoas se
reuniram para três dias de paz, amor e música no Festival de Woodstock, evento
que se tornou um dos maiores símbolos do movimento da contracultura.
O Brasil não ficou de fora desses acontecimentos. A partir de 1964, quando
os Estados Unidos apoiaram o golpe militar que instaurou a ditadura no País, uma
ruptura em relação aos discursos artísticos anteriores pôde ser percebida, seja por
produções de artistas como José de Agrippino de Paula, seja pelas demais
produções da arte tropicalista. Esses discursos, nos diz Evelina Hoisel (1980, p. 14),
se produzem em tensão com os acontecimentos compreendidos no período de 1964
a 1969. "São por eles engendrados, mas apresentam deles uma interpretação
altamente irônica, desconstrutora e reveladora dos mecanismos que configuram a
malha aparente através da qual eles se deram a conhecer." (op. cit.)
Remetendo ao ensaio Cultura e Política: 1964-69, escrito por Roberto
Schwarz, Evelina Hoisel observa que a cultura no Brasil antes do golpe já fazia da
arte um instrumento de ação política e de denúncia social. Realizado pelos Centros
Populares de Cultura (CPC), a arte era levada às favelas, sindicatos, vilas operárias
etc. Uma ação só possível porque naquele tempo "o processo político social permitia
uma participação das camadas populares na vida política" (op. cit). O golpe militar
deteve esta experiência, mas o movimento cultural logo tomaria novos rumos.
Observa Schwarz que as forças culturais foram desviadas dos operários para os intelectuais (professores, escritores, estudantes etc.) que, naquele momento, ainda não representavam ameaça ao novo sistema. Representariam mais adiante, daí o enrijecimento em 68 com o AI-5. (op. cit., p. 23).
O deslocamento da arte para as questões que envolviam a realidade política
daquele período deu início a uma profícua produção cultural. Em consequência da
necessidade de encontrar uma saída para a repressão, os artistas brasileiros
percebem que existia um ponto de conexão entre as propostas que elaboravam e
aquelas oriundas do movimento underground internacional. Incorporar as tendências
de seu tempo seria justamente uma das principais características do movimento que
se tornaria um dos mais importantes acontecimentos no cenário musical brasileiro: a
Tropicália.
A TROPICÁLIA
O campo de experiência da Tropicália torna-se alvo do cruzamento de
diversas informações, proporcionadas por estudiosos que forneceram múltiplas
interpretações a seu respeito. Mas basta a aproximação e entrelaçamento dessas
informações coletadas para entrever que esse fenômeno está envolto em um
mesmo ideal de revolução e engajamento artístico. É assim que a Tropicália surge
em meio à atuação da Jovem Guarda, da Bossa Nova e de outros gêneros e artistas
que também trilhavam os caminhos da vanguarda, caso do cinema, do teatro, da
poesia e das artes plásticas.
Tomando para si elementos de culturas as mais variadas, a Tropicália
misturou e abarcou diversos gêneros: música, poesia, teatro, performances,
instalações. “A pureza não existe mais”. Ligia Canongia (2005, p.54) aponta que
com essa fala Hélio Oiticica teria apresentado, em 1967, sua obra intitulada
Tropicália. Naquele mesmo ano, a obra de Hélio Oiticica daria nome ao movimento
que marcou produções que entrariam para a história da arte brasileira, notadamente,
na música.
“Ali iniciava-se o trabalho de Caetano Veloso, Gilberto Gil, Torquato Neto e outros autores, hoje consagrados, fazendo a síntese da poesia concreta, da bossa nova e da contracultura, e unindo os dados artísticos a uma visão elevada do senso político.” (op. cit.)
A noção de conexões e justaposições de discursos, típico da arte
contemporânea, forneceu a tônica para as produções da Tropicália. As fronteiras
entre pop e regional, erudito e popular, tradição e vanguarda foram ao poucos sendo
borradas. À imagem da Tropicália estavam associadas a literatura dos modernistas
de 1922, a poesia concreta dos irmãos Augusto e Haroldo de Campos, o Cinema
Novo de Glauber Rocha, o teatro de José Celso Martinez Corrêa, as artes plásticas
de Hélio Oiticica e a influência artística de Ligia Clark. Celso Favaretto valida a ideia
de que, “ao participar de um dos períodos mais criativos da sociedade, os
tropicalistas assumiam as contradições da modernização, sem escamotear as
ambiguidades implícitas em qualquer tomada de posição.” (2000, p. 25)
Tudo isso foi possível graças ao experimentalismo empregado no processo
criativo dos artistas que aderiram ao movimento. Aqui, os conceitos de
“transculturação”, “tradução” e “hibridismo” defendidos por Moacir dos Anjos (2005)
são adequados para compreender a produção daquele período. O contato entre
culturas distintas promovido pela globalização “invoca a contaminação mútua, em
um mesmo tempo e lugar, de expressões culturais antes apartadas por injunções
históricas e geográficas”. (op. cit., p. 16). É neste sentido de “transculturação”,
colocado por Moacir dos Anjos, que vislumbramos a chegada da cultura pop e da
contracultura no Tropicalismo. Uma vez posto em marcha os processos de trocas
culturais, a maneira como a “cultura local” se posiciona ante ao encontro com a
“cultura hegemônica” é exemplificada pela ideia presente no conceito de “tradução”,
isto é, “primeiro, apreender os sentidos dos produtos gestados em uma cultura; em
seguida, recriá-los nos termos de uma outra.” (op. cit., p. 20). Uma leitura recorrente
que se faz do Tropicalismo é a forma como ele mescla e incorpora elementos
culturais de origens distintas. Na música, encontramos registros do rock, da bossa
nova, do samba, da rumba, do bolero, do baião. Em muitas composições
tropicalistas a presença de mais de um destes estilos é recursiva e, apesar de
estarem em uma mesma canção, são perfeitamente reconhecíveis isoladamente. O
termo “hibridismo” encontra aqui sua aplicação, pois “sugere a impossibilidade da
completa fusão entre componentes diferentes de uma relação.” (op. cit., p. 28).
Recorrendo ao que Sarat Maharaj definiu como a “intradutibilidade do outro”, Moacir
dos Anjos observa que “as ressignificações locais da cultura global sempre
engendram recriações originais de produtos alheios.” (op. cit., p. 21). Essa ideia,
também implícita no conceito de “hibridismo”, permite concluir o quão autêntico
foram os procedimentos tropicalistas.
O Tropicalismo usava e abusava da confluência de mídias e linguagens, da dispersão dos suportes de trabalho e do contágio direto entre várias áreas da arte e da cultura. Fazia, assim, a “antropofagia da antropofagia” modernista e, em surpreendentes voos experimentais, unia o imaginário da semana de 22 à poesia de Souzândrade, a prosa de Guimarães Rosa às construções concretas dos anos 50, passando ainda pela cultura underground, tão em voga no mundo, na ocasião. (CANONGIA, 2005, p. 54)
As letras das canções tropicalistas compunham um quadro crítico e complexo
da realidade nacional, incorporando as referências do momento político e cultural
pelo qual o País atravessava. A explosão da Tropicália colocou em evidência dois
dos maiores expoentes do movimento: Caetano Veloso e Gilberto Gil. Em seus
primeiros discos e na antológica obra coletiva Tropicália ou Panis et Circensis
(1968), vários clássicos seriam registrados. Os músicos e os estilos que formaram a
base de referência desses artistas iam do samba à música pop inglesa e norte-
americana - impressões que podem ser facilmente identificadas nas composições
daquele período. Caetano Veloso, ao lembrar-se da composição da letra de
Tropicália, (música do disco que levava seu nome, também de 1968), associa o
movimento às festas populares. Ele cita que na música constam menções à Carmem
Miranda e Elis Regina, aponta sua proximidade com Coisas Nossas, samba de Noel
Rosa, e ressalta que ainda faziam parte de seu universo o “carnaval, o próprio
movimento tropicalista (que ainda não tinha esse ou qualquer outro nome), a
miséria e a opressão, a Jovem Guarda de Roberto Carlos, tudo teria lugar legal ali –
as palavras encontram rimas; as ideias, contrastes e analogias; as imagens,
espelhos, lentes e ângulos insuspeitados. Mas eu não queria que a canção fosse,
como “coisas nossas” um mero inventário” (VELOSO, 1997, p. 184). Caetano
realmente não fez de sua música "um mero inventário", mas sim uma das mais
contundentes e inventivas músicas de protesto compostas naquele momento.
Fazendo surgir referências múltiplas, o próprio Tropicalismo em cena se multiplicava.
A Tropicália de Caetano, junto a Geléia Geral de Gilberto Gil e Torquato Neto,
se tornariam hinos clássicos do movimento, bem como viriam a ser a marcha Alegria
alegria (Caetano) e a cantiga de capoeira Domingo no parque (Gil). Essas últimas
composições foram apresentadas no III Festival da Música Popular Brasileira da TV
Record, em 1967, e entrariam para a história como sendo uma das mais
representativas referências musicais midiáticas daquele momento. Celso Favaretto
(2000) ressalta que embora não se intitulassem “como porta vozes de qualquer
movimento (...) destoavam das outras canções por não se enquadrarem nos limites
do que se denominava MMPB (Moderna Música Popular Brasileira)” (op.cit, p. 19).
A televisão foi fundamental para o sucesso e a propagação do Tropicalismo
por todo País. No momento em que eclodiam pelo mundo manifestações
reivindicando novas alternativas de se viver pacificamente em sociedade, os
brasileiros foram tomados de assalto por jovens cabeludos vestindo roupas coloridas
e entoando canções de protesto. Libertária por excelência, a Tropicália – que
figurava como uma força cultural contrária à política ditatorial e opressora – exercia
sua influência com irreverência e originalidade. Entretanto, seu momento de glória
durou pouco. O governo militar intensificou a perseguição aos que eram contrários
ao regime, e com o Ato Institucional N.º 5 acirrou as ações para silenciar seus
‘inimigos’. Em dezembro de 1968, Gilberto Gil e Caetano Veloso foram presos,
infringindo ao movimento um golpe tão abrupto que acabou por encerrá-lo. Contudo,
a semente já estava lançada, e a Tropicália colheria seus frutos em outros recantos
do País.
O UDIGRUDI
A abertura musical engendrada pelo legado tropicalista a partir dos anos 70
permitiu experimentalismos com timbres e arranjos incomuns, resultado da
conjunção entre o virtuosismo psicodélico do rock'n roll e os variados estilos do
cancioneiro popular do País. A despeito da radicalização política do AI-5, os jovens
continuaram agindo dentro de suas possibilidades, entre as quais a música ainda se
apresentava como um gênero artístico acessível e adequado para uma expressão
mais livre tanto em sua forma estética, quanto no conteúdo das mensagens que
carregavam.
No âmbito contracultural, além do Tropicalismo, as manifestações
precedentes continuavam a ecoar no imaginário daquela geração, como a literatura
beatnik, o orientalismo, o Maio de 68, o Woodstock e o movimento hippie (e sua
consequente abertura para o sexo, para as drogas, para a paz e para o amor). Sob
a insígnia do underground, jovens artistas e músicos insistiam em abrir os caminhos
em direção a uma arte contestatória e libertária, criando as condições necessárias
que possibilitavam vivenciar experiências paralelas àquelas estabelecidas por um
sistema opressor.
No Recife dos anos 70, a música adquire relevância dentro do fenômeno
underground a partir dos comportamentos e atitudes apontadas pelo movimento
hippie e pela Tropicália. Acompanhadas de perto pela vigilância militar, as iniciativas
contraculturais que ganhavam espaço no campo artístico eram realizadas às
margens do sistema, onde o risco de serem silenciadas era menor. O “udigrudi”,
corruptela abrasileirada do underground (tradução: subterrâneo) norte americano, foi
o termo encontrado capaz de suportar todas as referências desviantes que a postura
marginal dos jovens daquela época suscitava. Suas atuações formavam a “cena
mais udigrudi (e pouquíssimo documentada) surgida no Brasil durante a fase mais
plúmbea da ditadura militar” (TELES, 2000, p. 152). O termo foi largamente utilizado
para elucidar a produção de artistas e grupos da música experimental do Recife,
entre os quais se destacaram “Ave Sangria, Lula Cortês, Zé Ramalho, Marconi
Notaro, Flaviola e o Bando do Sol”. (op. cit, p. 155).
O movimento, que também ficaria conhecido como "udigrudi da
pernambucália" (TELES, 2000), reuniu os jovens de Recife em torno das ideias já
anunciadas pelo Tropicalismo: a ruptura, o hibridismo e o experimentalismo. O
músico e artista plástico Lula Cortês, sintonizado com estas premissas e atento às
suas múltiplas possibilidades, já 'experimentava' em suas composições tocando com
instrumentos típicos de outras culturas, como o tricórdio marroquino. Por subverter
as linguagens da música popular produzida no nordeste do País, suas atitudes o
levaram a ser considerado um "guru do movimento" (op. cit., p. 211). A contracultura
entrava em cena com artistas que, assim como ele, souberam somar nos seus
trabalhos as múltiplas referências de seu tempo.
O palco em que ocorreu um dos atos mais emblemáticos dessa história ficava
localizado em Nova Jerusalém, Pernambuco. Lá, no dia 11 de novembro de 1972,
foi realizada a "I Feira Experimental de Música da Fazenda Nova" (op. cit., p. 155),
um evento aberto a todos os tipos de música. Sem ter a pretensão de lucros e com
nenhuma outra intensão a não ser a de promover um espaço para que os grupos
alternativos pudessem se apresentar para o maior número de pessoas possível, os
organizadores realizaram a feira no mesmo local em que era encenada a Paixão de
Cristo de Nova Jerusalém (peça conhecida por sua estrutura grandiosa).
Aproveitando o equipamento de som utilizado para a encenação da peça, os
organizadores também não cobraram ingressos do público, não pagaram cachês
aos artistas e não investiram em muita divulgação. O evento ficou conhecido como
"Woodstock do Nordeste" (op. cit., 150) e, além de Lula Cortês, ali se apresentaram
Marco Polo e o Tamarineira Village, Flaviola, Pitti (que tocou com Caetano e Gil em
Salvador), Otávio Bzz, Tiago Araripe e outros artistas. José Teles afirma que se
tratava de "músicos que trabalhavam cada um na sua, dispersos, pouco
profissionalmente, muitos deles nem se conheciam." (op. cit., 152). "Infelizmente,
sabe-se muito pouco do que aconteceu durante esse festival", observa José Teles
(op. cit, p. 217), mas foi a partir dele que estes artistas se aproximaram e deram
início a um trabalho que alcançaria o reconhecimento da crítica e do público, com
especial destaque para o Tamarineira Village.
Capitaneada pelo músico e poeta Marco Polo, a primeira apresentação do
Tamarineira Village fora ali mesmo, na I Feira Experimental de Música da Fazenda
Nova. Com uma interpretação de ritmos que iam do samba ao blues, do maracatu ao
jazz e do baião ao rock, o grupo passou a tocar também nos bares e teatros de
Recife. O sucesso da banda viria sob um novo nome: Ave Sangria. Com ele, o grupo
se caracterizou por fundir, com ampla assimilação artística, elementos de vários
estilos regionalistas com a cultura pop, sobretudo o rock’n roll. Suas apresentações
eram envoltas num clima festivo e psicodélico, o que lhes rendeu a alcunha de
“Rolling Stones do Nordeste” (TELES, 2000, p. 146). Guitarras distorcidas e letras
lisérgicas expressavam um tipo de musicalidade moderno e subversivo, numa
mistura de sonoridades experimentais, aleatórias e abstratas.
A partir das primeiras apresentações, a fama do grupo foi espalhando-se boca a boca. Sua música não tinha parâmetros: tanto poderia ser um rockão (sic) com os solos ensandecidos da guitarra de Ivinho, quanto um chorinho
movido a cavaquinho e bandolim. As incursões de Marco Polo pela poesia deixaram-lhe marcas que ele agora passava para sua música. Os nomes dos shows colaboravam para inflar o mito. O primeiro depois da Feira de Fazenda Nova foi Fora da Paisagem. Vieram em seguida Corpo em Chamas, e o Concerto Marginal (este o último com o nome de Tamarineira Village). Sem nenhum marqueteiro, as lendas foram sendo formadas ao redor da banda: “São um perigo para as moças de família”; “É tudo coisero (maconheiro)”; “São uns frangos (veados, em pernambuquês)”; “Usam batom e se beijam na boca”. (TELES, 2000, p. 34)
Performáticos, o uso de batom e o beijo na boca faziam mesmo parte do
espetáculo, mas foi com a música Seu Waldir, de Marco Polo, que o grupo
incomodou de fato as autoridades. Presente no LP Ave Sangria, lançado em 1974
pela gravadora Continental, a música nada mais é do que um samba escrito em 1ª
pessoa e descreve o lamento de um amor não correspondido pela indiferença do
‘Seu Waldir’. O problema estava no fato de ser um homem, Marco Polo, o autor e
intérprete da canção. Supreendentemente, isto foi motivo para que a música fosse
considerada um atentado à moral da sociedade pernambucana. O regime militar
então vetou a sua veiculação pelas rádios e a tiragem dos LPs foi recolhida das
lojas. José Teles considera que a “censura não poderia ser mais competente. Não
proibiu apenas uma obra de arte, acabou também com seus criadores. O disco
chegou a voltar às lojas, sem a faixa maldita, mas aí o grupo entrou no maior baixo
astral” (op. cit, p. 175). Esse episódio afastou o interesse grupo em continuar
trabalhando e naquele mesmo ano o Ave Sangria parou de atuar.
O udigrudi da pernambucália foi uma convergência das diversas leituras que
os aristas locais faziam de sua realidade, impregnada pela tradição nordestina e
pela influência da cultura pop. Souberam, assim como os representantes da
Tropicália, assimilar o local ao global (ANJOS, 2005), criando uma arte autêntica e
original. Embora pouco conhecido, o movimento que agitou a cena cultural de Recife
é um registro indelével da força que a cultura underground propagou pelo mundo.
A turma udigrudi dos 70 não se preocupou em cerzir uma cena local através
de manifestos ou trajes com que fossem identificados. Se cena houve, foi
uma colcha de retalhos, de muitas tonalidades e feita com tecidos de
procedências variadas. Não houve, enfim, uma ação premeditada: a “cena”
foi acontecendo sem muito respaldo da imprensa, que, feito o Mr. Jones da
canção de Bob Dylan, sabia que algo estava acontecendo, mas não do que
se tratava.(TELES, 2000, p. 148)
A abertura promovida pelo udigrudi antecipou procedimentos que se
tornariam a marca da música Pernambucana. Ao formular a concepção da
“identidade cultural nordestina na contemporaneidade”, Moacir dos Anjos (2000, p.
61) aponta que ela “veio da música pernambucana feita a partir da década de 90,
principalmente dos artistas ligados ao Mangue Beat.” (op. cit.). Associada à ideia de
isolamento e do contato entre o doce do rio – local – e o sal do mar – global –, o
mangue evoca a ideia das “trocas culturais” que alimentaram a arte produzida
naquela região. Moacir dos Anjos indica que a atuação de bandas como Chico
Science & Nação Zumbi, Mundo Livre S.A. e outros grupos constituíam uma
“resposta àqueles que não viam alternativas entre a consagração histórica e
folclorizada dos ritmos nordestinos (...) e a adoção acrítica de ritmos e formas
musicais criados em outros lugares.” (op. cit., p. 61-62). A identidade da música
nordestina atual está, portanto, no seu “hibridismo”.
Em vez de causar a morte de tradições musicais, o movimento Mangue
tornou-as contemporâneas dos que se ocupavam da criação artística local.
De fato, há muito não se tocavam nem se ouviam tanto e tão longe alfaias
de maracatu, toadas de cavalo-marinho, a cadência hipnótica da ciranda,
cantos de embolada ou a batida quebrada do coco (...). (op. cit., p. 62)
De volta ao centro da produção artística, o contato entre o tradicional e o
moderno é o que distingue a música pernambucana recente. Tendo em vista a
produção musical dos anos 60 e 70, é razoável argumentar que o experimentalismo
continuou a fornecer os parâmetros para que estas criações fossem possíveis. Aí
reside a importância que os movimentos contraculturais tiveram para a história: com
a distância do tempo, eles nos permitem compreender melhor a pluralidade e a
riqueza do que hoje é realizado no campo das artes.
CONCLUSÃO
Não só o medo da repressão fez tremer o mundo nos anos 60. As
manifestações da contracultura também mexeram com as mentes e os corpos dos
jovens daquela época, apresentando-se como antídoto para a opressão dos regimes
totalitários. No Brasil e no mundo, o que se viu foi uma resposta positiva em relação
às adversidades, uma postura que fez da arte a arma de combate de toda uma
geração.
Na perspectiva daqueles jovens, uma sociedade mais justa e igualitária era
possível, e a coragem com que colocaram em prática seus ideais hoje nos parece
algo ainda mais fascinante. Proclamar a paz e o amor em meio às ameaças de
tortura e de prisão não demonstra somente um comportamento sensível e
humanitário, mas sobretudo uma maneira coerente de encarar o mundo.
Nesse sentido, a contracultura dos anos 60, a Tropicália e o udigrude são
acontecimentos luminares para a sociedade contemporânea. Nestes tempos em que
manifestações de protesto eclodem em diversas partes do mundo (e enquanto
observamos atônitos a incapacidade dos Estados em lidar com elas) voltar o olhar –
e os ouvidos – para a música e para arte do passado é fundamental para nos
mantermos alertas e preparados para os acontecimentos da atualidade e aqueles
que estão por vir.
REFERÊNCIAS
ANJOS, Moacir dos. Local/Global: arte em trânsito. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,
2005.
CANONGIA, Ligia. O legado dos anos 60 e 70. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,
2005.
CUNHA, Newton. Dicionário Sesc: a linguagem da cultura. São Paulo: Perspectiva:
Sesc São Paulo, 2003.
FAVARETTO, Celso. Tropicália: alegoria alegria. 3ª Edição. São Paulo: Ateliê
Editorial, 2000.
HOISEL, Evelina. Supercaos: os estilhaços da cultura em PanAmérica e Nações
Unidas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Salvador: Fundação Cultural do
Estado da Bahia, 1980.
TELES, José. Do Frevo ao Manguebeat. São Paulo. Ed. 34. 2000.
VELOSO, Caetano. Verdade Tropical. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.