do rio ao mar – impressões do brasil

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Livro do Turista Aprendiz com as produções dos alunos do Módulo II do projeto. Participaram da publicação 20 alunos que se destacaram nas oficinas da primeira etapa do projeto, ocorridas em 2014 nas Bibliotecas Parque do Alemão, Estadual, de Manguinhos e da Rocinha.

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PROJETO TURISTA APRENDIZ

Praga Conexões

1a edição

Rio de Janeiro

2015

Do Rio ao marI m p r e s s õ e s d o B r a s i l

Page 3: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

Do Rio ao mar: Impressões do Brasil© Praga Conexões © Turista Aprendiz

CoordenaçãoMaria Pereira

Consultoria e organizaçãoRoberto TaddeiIsabel Ostrower

P 436r Pereira, Maria

Do Rio ao mar: Impressões do Brasil. / Maria Pereira (Org.) – Rio de Janeiro: Praga Conexões, 2015.

Inclui Bibliografia, Projeto Gráfico

ISBN 978-85-69208-00-6

1. Poesia. 2. Literatura Juvenil. 3. Literatura Brasileira. I. Pereira, Maria. II. Título.

CDD - 22.ed. – 869.91

Orientação Textos Alice SoutoFlávio MelloGuilherme GonçalvesRafael Zacca

Textos Bruna AlvesBruno Lima Caroline Rodrigues Davi NascimentoDouglas de Paulo Emely Helen Estefani Basilo

Fabrícia MelloGabriel LeonneGabriel Mação Guilherme CunhaJuliana Lourenço Karen CamposLuana Batista

Lucas Silva Robson CascianoThainar XavierThamires Bonifácio Valeska Angelo

RevisãoHeyk Pimenta

Projeto gráfico e capaFernando Timba

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Page 6: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

Dentro das variadas maneiras de se definir o que é Cultura, a dimensão

antropológica vem ganhando cada vez mais força nas políticas públicas,

oferecendo uma compreensão que vai bem além daquilo que é produzi-

do por indivíduos ou coletivos, reforçando a interação e a modelagem de

identidades e de diferenças.

O projeto Turista Aprendiz utilizou com maestria conceitos e instru-

mentos baseados nesta dimensão, ampliando a reflexão de jovens sobre os

possíveis modos de existência e de convivência.

Este era o objetivo central do eixo de Formação do Favela Criativa,

programa da Secretaria de Estado de Cultura, da qual este projeto faz par-

te: além de disponibilizar ferramentas fundamentais para a sustentabilida-

de de empreendimentos e projetos culturais, contribuir para a qualificação

da formação cultural e artística de jovens de diversos territórios. Com o

Turista Aprendiz, eles viveram a incrível experiência de ser estrangeiros no

próprio país, dando um novo sentido para as suas raízes.

Assim, o projeto torna-se um importante resultado de um dos programas

mais arrojados e transformadores da Secretaria, o que nos traz imensa alegria.

Eva Doris Rosental Secretária de Estado de Cultura

Vera Schroeder Superintendente da Leitura e do Conhecimento

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Page 8: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

Por acreditar que o trabalho cultural e educativo, apesar de apre-

sentar resultados no longo prazo, é sem dúvida a ação mais eficaz

para cristalizar o comportamento do cidadão, é um grande prazer

para a Light fazer parte do Programa Favela Criativa, em parceria

com a Secretaria de Estado de Cultura, ANEEL e o Banco Intera-

mericano de Desenvolvimento - BID.

Composto por um conjunto de projetos, o Programa Favela Cria-

tiva oferece formação artística e especialização em gestão cultural a

jovens de 20 favelas do Rio de Janeiro e estabelece canais de diálogo

entre eles, possíveis parceiros e patrocinadores potenciais, e também

fomenta a reflexão sobre a cidadania e sustentabilidade através da

Cultura, beneficiando três mil pessoas de forma direta e 40 mil, de

forma indireta.

E certamente o Turista Aprendiz atingiu esse objetivo, ampliando

as referências culturais dos jovens, desenvolvendo suas habilidades de

expressão e reflexão sobre seu papel na sociedade.

Equipe Light

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Sumário

10, Apresentação, Maria Pereira, Roberto Taddei e Isabel Ostrower

14, Prefácio Carlito Azevedo

26, Fabrícia MelloRelato Lírico

34, Davi NascimentoCéu; Lembrança; Noite em Sagarana

38, Luana BatistaCaminhos do Norte

44, Bruna AlvesRegião do Pajeú; Umbuzeiro; Oh, senhor!

53, Guilherme CunhaAbismo; Hematita: Procura-se: em verso ou prosa; Caligem

61, Gabriel LeonneTortura de Classe; Borborema; O menino que aprendeu a mandar beijos para o céu

73, Robson CascianoÁrvore da lembrança

79, Karen CamposNos pés das pedras-vidas

89, Valeska AngeloDois Irmãos – parte I, II e III; Dabucuri

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97, Thamires BonifácioTerror à beira rio

101, Juliana LourençoOs quatro gatos

116, Gabriel MaçãoO Mbaêtata

123, Thainar XavierO homem do coração de pedra

137, Estefani BasiloProjeto Luz

152, Caroline RodriguesDo tambor ao mar

158, Emely HelenOxente

160, Lucas SilvaOlho d’água; Coração de folhas; Cerrado Seco

163, Bruno LimaUma história para lembrar

169, Douglas de PauloUma Aventura em Manaus, conhecendo o desconhecido

173, Sobre os autores

178, Agradecimentos

Page 11: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

10 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil

Apresentação

Vinte jovens cariocas partiram em viagens para as regiões Norte,

Nordeste e Centro-Oeste do país em janeiro de 2015. O objetivo era

visitar cidades muito distantes do Rio de Janeiro, abrir-se ao choque

cultural e experimentar um deslocamento etnográfico para, a partir

dessa vivência, produzir textos não ficcionais, poéticos, ou criar his-

tórias ficcionais que ecoassem a viagem.

Antes, porém, todos eles participaram de um semestre de aulas

e oficinas de criação literária ao longo de 2014, dentro da primeira

fase do Projeto Turista Aprendiz, realizado nas Bibliotecas Parque de

Manguinhos, Rocinha, Alemão e Estadual, que integra o Programa

Favela Criativa.

Bruna Alves, Gabriel Leonne, Estefani Basilo, Emely Helen e

Fernanda Vidal viajaram para cidades dos estados de Pernambuco e

Paraíba, capitaneados por Flávio Mello, também professor do grupo

no primeiro módulo do curso. Conheceram seus mercados e feiras

livres, museus de arte popular, praias, rodas de ciranda e capoeira.

Participaram também de oficinas de ritmos e de recitais de poesia,

interagindo com artistas da região.

Page 12: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

11Apresentação

Davi Nascimento, Guilherme Cunha, Karen Campos, Lucas Silva

e Thainar Xavier fizeram um percurso que chamaram de O coração

do Brasil é vasto, passando por Brasília, onde entraram em contato

com coletivos de jovens artistas e percorreram trilhas da Chapada

dos Veadeiros, em Goiás. Depois, em Sagarana, distrito de Minas

Gerais, mergulharam no universo que marcou a obra de Guimarães

Rosa, participando de festas de Folia de Reis, conhecendo as veredas

da região e as histórias dos sertanejos. A aventura foi conduzida por

Maria Pereira, coordenadora do Turista Aprendiz.

Bruno Lima, Caroline Rodrigues, Juliana Lourenço, Luana Ba-

tista e Robson Casciano seguiram a rota Do reggae ao batidão, ao

lado do educador Guilherme Gonçalves, que já acompanhava parte

dos alunos desde a Oficina ministrada na Biblioteca Parque de Man-

guinhos. Na capital do Maranhão, conheceram pontos de cultura,

museus, trabalhos de confecção de instrumentos musicais e dan-

çaram o tambor de crioula, expressão de matriz afro-brasileira que

compõe nosso patrimônio imaterial. Em Barreirinhas, visitaram os

Lençóis Maranhenses e depois seguiram para Belém, onde foram

recebidos por um coletivo de teatro. Finalizaram a viagem na Ilha de

Marajó onde, hospedados numa vila de pescadores, sentiram a força

dos búfalos brasileiros e aprenderam a dançar o carimbó.

Page 13: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

12 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil

Fabrícia Mello, Gabriel Mação, Douglas de Paulo, Thamires Bo-

nifácio e Valeska Angelo escolheram viajar para a Amazônia, no ro-

teiro Raízes indígenas e o canto das águas, conduzido pela educadora

e também produtora do Projeto, Alice Souto. Encharcado de chuva

e navegando por imensos rios, o grupo percorreu Manaus, participou

de saraus com poetas da região e, depois de uma longa travessia pelo

Rio Madeira, chegou finalmente a Porto Velho.

Nessas viagens etnográficas, os jovens passaram por uma forma-

ção sólida, sendo desafiados a conviver com diferentes grupos sociais

e confrontar suas percepções sobre o Brasil.

Neste livro, coleção dos textos produzidos após as viagens, esses

jovens autores partilham as marcas de uma jornada inédita em seus

contos, poemas e relatos, e nos fazem reencontrar o turista aprendiz

Mário de Andrade. Não apenas no registro etnográfico, mas, prin-

cipalmente, na exploração do choque cultural como redefinidor de

nossa própria identidade, elaborada aqui a partir da narrativa em gê-

neros diversos.

Qual é o Brasil que surge a partir do contato entre adolescen-

tes de comunidades do Rio de Janeiro com conterrâneos nas regiões

mais distantes do território nacional? Quais são, afinal, as narrativas

que começam a se desenhar neste início de século 21 entre jovens

Page 14: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

13Apresentação

brasileiros e que precisamos conhecer para participar deste enigma

chamado nação?

É este o convite que fazemos aos leitores deste livro, que se abram

aos universos apresentados aqui, ficcionais ou não, como registros de

um país ao mesmo tempo sonhado e esquecido. E, assim como nas

viagens de Mário de Andrade, que o exercício da alteridade fortaleça

nossa capacidade de enxergar, no outro, aquilo que também somos

ou esperamos ser.

Isabel Ostrower

Maria Pereira

Roberto Taddei

(Idealizadores do Projeto Turista Aprendiz)

Page 15: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

14 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil

Prefácio

Ao terminar a leitura deste extraordinário livro que reúne poe-

mas, contos e narrativas de novíssimos escritores do Rio de Janei-

ro, livro que nos leva a visitar lugares tão distantes e de nomes tão

belos, lugares reais, como São José do Egito, Catarata dos Couros,

Cachoeira das Jibóias ou a comunidade ribeirinha de São João do

Tupé; livro que nos faz experimentar sabores tão especiais como o do

taperebá, do camu-camu, do tambaqui assado e do jaraqui frito; que

nos confronta com retirantes, manauaras, pajés, e até com o lendário

Mbaêtata; que nos faz dançar com tantos ritmos, do reggae ao tam-

bor de crioula; enfim, ao terminar a leitura deste extraordinário livro,

é impossível não exclamar: o Brasil ficou mais perto de todos nós,

ficou maior, ficou mais nosso.

A literatura sempre foi a arte de transformar desvantagem em

vantagem, o longe em perto, o impossível em corriqueiro. Muito an-

tes da invenção do avião, ela, a literatura, nos fazia voar em tapetes

mágicos, viajar no tempo e no espaço, sempre alimentando o nosso

sonho de conhecer o que não conhecíamos, de entender o extraordi-

nário, tocar o intocável. E tudo isso para ampliar a vida, negar suas

insuficiências, conhecer suas potencialidades, contribuir para que

Page 16: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

15Prefácio

floresçam todas as flores do possível, que ainda vivem só como se-

mente enterrada no jardim do impossível.

Quando um grupo de escritores e poetas, como esses aqui reu-

nidos, se dispõe a viajar para além de si, turistas aprendizes, nôma-

des do coração, olhando, registrando, conhecendo, enriquecendo sua

capacidade crítica e inventiva com novas cores, novos sabores, no-

vas relações humanas, a literatura passa a, além de instruir e divertir,

cumprir sua missão mais secreta: transformar.

Como o próprio nome do projeto que o gerou sugere, Turista

Aprendiz, Do Rio ao mar - impressões do Brasil é um livro cheio de

trajetos, itinerários, errâncias, dos mais longos aos mais curtos. Dos

mais velozes, como a incrível perseguição entre cães e gatos de “Os

quatro gatos”, de Juliana Lourenço, um texto cheio de tensão e sus-

pense pelas ruas e vielas de São Luís do Maranhão, aos mais lentos,

vertiginosamente lentos, como a viagem de barco pelo Rio Madeira,

no Amazonas, narrada por Fabrícia Mello em “Relato lírico”, que

retrata tão bem e sem máscaras o desejo e as dificuldades do processo

sempre necessário de encontro com o “outro”, com o diferente.

Este é um livro cheio de brasileiros. O poeta Mário de Andra-

de, cujo livro Turista aprendiz inspirou o projeto que originou esse

novo livro, certa noite, estando em casa, em São Paulo, teve uma

Page 17: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

16 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil

espécie de “iluminação profana” que descreveu belissimamente no

poema “Descobrimento”:

DESCOBRIMENTO

Abancado à escrivaninha em São Paulo

Na minha casa da rua Lopes Chaves

De supetão senti um friúme por dentro.

Fiquei trêmulo, muito comovido

Com o livro palerma olhando pra mim.

Não vê que me lembrei que lá no Norte, meu Deus!

muito longe de mim

Na escuridão ativa da noite que caiu

Um homem pálido magro

de cabelo escorrendo nos olhos,

Depois de fazer uma pele com a borracha do dia,

Faz pouco se deitou, está dormindo.

Esse homem é brasileiro que nem eu

Este livro também é cheio de brasileiros que nem todos nós, com

suas histórias, suas vidas. Vidas que conhecemos um pouco mais agora,

graças ao fenômeno da literatura e da imaginação, que diminuem as

Page 18: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

17Prefácio

longas distâncias de um país tão imenso, graças ao olhar atento e ao

verbo ágil e seguro desses novos mestres-aprendizes da narrativa.

É assim que no excepcional conto “Caminhos do norte”, de Luana

Batista, somos apresentados a um personagem que narra em primeira

pessoa suas aventuras pela Ilha de Marajó para pagar uma dívida. A

jovem Luana se põe no lugar do personagem, organiza uma narrativa

em monólogo com mestria absoluta, cede sua voz a este personagem

de modo tão vivo e natural, que é como se ele estivesse na nossa frente,

conversando com a gente, contando sua vida. “Esse homem é brasileiro

que nem eu”. E agora faz tão parte da gente quanto aquele outro bra-

sileiro lá do Norte, pálido e magro, do poema de Mário de Andrade.

É assim também que no conto “Região do Pajeú”, de Bruna Alves,

de intensa simpatia social, nos deparamos com uma família fugindo

da seca, da dor, num calvário que termina em conquista e poesia.

Todos os membros dessa família são brasileiros, como nós. E uma de

suas poucas posses, a vaca Jurema, só realça essa atmosfera de falta e

escassez. Se como já se disse, somos humanos e nada do que é huma-

no nos é estranho, nós somos um pouco essa família fugindo de tudo

o que impede a vida de brotar.

Deixando um pouco em segundo plano a questão social, mas sem

esquecê-la, e privilegiando o aspecto psicológico, também de intenso

Page 19: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

18 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil

valor literário, “Abismo”, de Guilherme Cunha, parece ser o texto

que mais empenho colocou na criação e fixação de um personagem:

Ema. Uma mulher tão rica de tensões internas e valor dramático que

é quase maior que sua história, quase do tamanho de todos os muitos

fenômenos naturais que a cercam e abraçam. “Sou errante e um passo

em falso me faz feliz”, diz Guilherme Cunha em outro de seus textos,

definindo muito de sua poética.

Guilherme Cunha trabalha na fronteira entre a prosa e o poema,

de modo que talvez seja interessante ressaltar aqui, agora, os autores

que escolheram a poesia, ou foram escolhidos por ela, para sua ex-

pressão particular. O que ainda nos coloca sob o generoso descortinar

do mundo realizado por Mário de Andrade, que é tanto o prosador

genial de romances como Macunaíma e Amar, verbo intransitivo,

como o poderoso poeta de Paulicéia desvairada e Clã do Jaboti.

Davi Nascimento é o poeta do cosmos e dos elementos. Em Bra-

sília, mais que qualquer outra coisa, ele vê o céu, uma boca enorme

que ameaça comer tudo; sua poesia fala dos raios, do vento e da água.

Não perde de vista o homem, mas é o seu ambiente, o planeta e sua

circunstância cheia de luz e mistério (“sons que se diluem / no escuro

do sertão”) que acendem nele a chama do poema.

Page 20: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

19Prefácio

Em seus poemas e na prosa de “O menino que aprendeu a man-

dar beijo para o céu”, Gabriel Leonne gira o radar poético para o ou-

tro extremo: em lugar da dimensão cósmica de Davi, ressalta aqui o

cotidiano feito de violência e injustiça: “Invadiram minha casa /Re-

viraram meu armário / Dizendo “cadê a porra da droga?” /Ajoelhei

implorando pela vida”. Açude, feijão roxo, colheita de milho, uma

exuberante proliferação de frutas e o real do semiárido nordestino

são alguns dos elementos concretos que sustentam sua poesia.

Uma mescla de narrativa cotidiana com alto lirismo é o que nos

traz a poesia de Valeska Angelo. Sua viagem pelo rio, pelas popula-

ções ribeirinhas, é feita de recorte de vozes, de imagens, de citações

literárias (Iracema, de José de Alencar, e Macunaíma, de Mário de

Andrade, fazem parte desse recorte). Com uma rica sonoridade, esses

poemas atingem o ponto alto na tematização lírica e política da cor

negra no poema “Dabucuri”: “Da mesma forma que no céu negro

/ dentro da água escura / lembrei do meu nego / Estou debaixo da

água / Um zumbido / Zumbi dos Palmares / Aqui ele é de cor parda”.

Emelly Helen realiza no poema “Oxente” uma aproximação brus-

ca e de alta voltagem poética entre a atividade de plantar, colher e

preparar a refeição, com a escrita e a leitura de poesia. Com olhos

atentos para o que vê, e ouvidos abertos para o que escuta, a poeta

Page 21: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

20 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil

atua como uma câmera e um gravador ao mesmo tempo. Seus versos

fluem como cinema. Nisso, seus poemas, aparentemente tão diferen-

tes da produção de Lucas Silva, com ela se assemelha. Pois também

Lucas Silva fala da criação que vem da terra semeada e da criação que

vem da mente dos poetas, mas enquanto na poesia de Emelly o que

ressalta é a alegria, dos versos de Lucas o que sobressai é o espanto,

ele escreve poemas que buscam reproduzir o grande espanto diante

da magia e do mistério da criação. Para ele o coração é “Tambor /

Máquina de vida / Fonte de mistérios”.

De grande sofisticação literária, usando recursos complexos para

falar do tempo, da memória, da viagem e da descoberta, é o conto

“Árvore da lembrança”, de Robson Casciano. Cheia de referências

míticas, essa narrativa envolve índios, totens, vida selvagem, a flo-

resta, a figura do antropólogo, e esses elementos surgem aos nossos

olhos enriquecidos por uma espécie de confusão mental do narrador,

o que dá, kafkianamente, grande qualidade literária ao texto. A perda

de contorno exato das coisas significa aqui, paradoxalmente, um ga-

nho de sentidos possíveis para tudo.

Karen Campos, em “Nos pés das pedras-vidas”, desenvolve vários

níveis narrativos. Ela começa analisando a narrativa jornalística sen-

sacionalista, daí salta energicamente para um nível narrativo antagô-

Page 22: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

21Prefácio

nico ao do jornal popular: o poema. “Morro, como as ondas da jiboia

/ nos pés das pedras-vidas. / Renasço como o dia, / reconstruindo.

/ Me refazendo / somente para ti, Sertão.” Por fim, desenvolve uma

espécie de imitação da narrativa oral em volta da fogueira, narrativa

com todos os toques hiperbólicos típicos da tradição oral.

Também Thamires Bonifácio, no conto “Terror à beira rio”, se

utiliza de recursos narrativos tradicionais, que já são apresentados

na primeira linha: “Na cidade de Javé, no baixo Rio Madeira, muito

se fala de um acontecimento que até hoje aterroriza as famílias.” E

passa-se daí à história. Como em outros textos do livro, aqui a morte

de uma jovem é o motor da história. Como se vê, muitos desses no-

víssimos escritores de Do Rio ao mar – impressões do Brasil, não só

se deixaram influenciar pelas paisagens e lugares visitados, mas tra-

zem profundamente arraigados um modo de fazer literatura que tem

longa tradição no nordeste, das narrativas orais às histórias de cordel.

Uma das mais curiosas experiências apresentadas neste livro traz

a assinatura de Gabriel Mação, trata-se do texto: “O Mbaêtata”.

Aqui se vai, num salto sem escalas, do depoimento pessoal (inclusive

utilizando os nomes dos companheiros de viagem do projeto Tu-

rista Aprendiz) ao lance surreal e mágico (como a aparição do Boi-

tatá, o Mbaêtata do título), que impõe um desfecho originalíssimo

Page 23: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

22 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil

ao enredo. Não menos surreal é a narrativa, quase cinematográfica

pela precisão das imagens, de Thainar Xavier, “O homem do coração

de pedra”. Tratando um tema sério, o mais sério de todos os temas,

aquele que William Shakespeare resumiu na preciosa fórmula “ser

ou não ser?”, Thainar construiu um verdadeiro poema em prosa cheio

de detalhes e delicadezas sobre a pulsão de vida e a pulsão de morte.

“Projeto luz”, de Estefani Basilo, é outro texto que chega ao limite

da auto-ficção. Também construído como depoimento direto da via-

gem do grupo ao estado de Pernambuco, o texto de Estefani põe em

cena os outros turistas da equipe, Bruna Alves, Gabriel Leonne, Emely

Helen, Fernanda Vidal além do professor orientador. Porém, o recurso

da narrativa dentro da narrativa nos coloca em contato com um drama

cotidiano em dois tempos, um presente e um passado, da personagem

Leninha, uma brasileira como nós, para recordar o já citado poema de

Mário de Andrade. Aqui não se sabe em momento algum, ao contrário

do texto de Thainar, quando se passa da realidade para a ficção.

“Do tambor ao mar”, de Caroline Rodrigues, é um daqueles tex-

tos, citados no início desse prefácio, montados sobre trajetos, itine-

rários e velocidades. Uma rodoviária, uma casa no litoral, uma festa

típica, um caso de confronto entre aqueles que Mário de Andrade

chamava de “os donos da vida” e os que apenas a tentam viver, e outra

Page 24: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

23Prefácio

viagem, dessa vez no tempo, confrontando duas visões do mundo,

dois instantes e um desejo. Neste conto se pode ler uma frase que

talvez seja representativa de toda a aventura do Turista Aprendiz: “o

Brasil não tem distância quando se trata de paixão.”

Também uma história de paixão, mas centrada no universo juve-

nil, é o que lemos em “Uma história para lembrar”, de Bruno Lima.

Relato que troca o final feliz pelo final aberto, sugestivo. Como aber-

tas ainda estão as estradas todas, pelo país e pela vida, para estes

jovens autores.

E muitos deles se encontram na narrativa que fecha o volume,

“Uma Aventura em Manaus, conhecendo o desconhecido”, de Dou-

glas de Paulo. Aqui estamos de novo em território amazonense, com

tudo o que isso supõe de pés d’água, chuva de meteoros, esplendor

cósmico enfim: “No caminho, vimos um arco-íris pela janela direita

do ônibus. Do lado esquerdo, o sol se punha e o céu era alaranjado.

Chegamos a Ponta Negra no finalzinho do dia. Dava para ver diver-

sos tons rosados, avermelhados, azulados e um pouco da mistura de

azul escuro com preto. Era a noite chegando.” Não se podia pedir

final melhor para essa aventura que nos levou a correr com cães e

gatos pelo Maranhão, molhar os pés em Sagarana, dançar na Ilha de

Marajó, fugir da seca do Pajeú, entrar no açude, brilhar como hema-

Page 25: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

24 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil

tita em Alto Paraíso, pendurar bandeirinhas em Borborema, sentar

à beira do Rio Preguiça (Maranhão), ouvir histórias de velhos no

sertão mineiro, aprender a belíssima palavra “dabucuri”, revisitar cri-

mes na região do Rio Madeira, desaparecer goela adentro do Boitatá,

contemplar o voo das araras azuis de Catarata dos Couros, receber a

benção do sol Recife, questionar o amor num cais de São Luis, ouvir

poetas em São José do Egito, mirar o mistério da vida num olho

d’água, navegar de voadeiras ao encontro de pajés.

No início desse prefácio anunciei que o Brasil tinha ficado mais

perto, maior, mais nosso. Do Rio ao mar – impressões do Brasil, fru-

to do projeto Turista Aprendiz, reunindo uns poucos jovens e uma

série de mestres empenhados, dá em grande medida a ideia de toda

a potencialidade contida nesta terra.

Não hesito em dizer que a literatura brasileira também chegou

mais perto de nós, também ficou maior e também ficou mais nossa,

graças a esses novíssimos autores. Se de algum modo consegui des-

pertar a curiosidade dos leitores para esse livro, estou recompensado.

Agora é assumir o seu lugar à mesa, longa mesa brasileira de tantos

sabores ainda por descobrir, e mergulhar os cinco sentidos na leitura.

Carlito Azevedo

Page 26: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil
Page 27: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

26 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil

Fabrícia Mello

Relato Lírico

Os Turistas nas alturas...

Cortando as nuvens, atravessando os estados brasileiros, seguimos

nós, os aprendizes, perdendo nossa naturalidade carioca e nos me-

tamorfoseando manauaras, dispostos a nos entranharmos nas expe-

riências e mergulhar na imensidão negra que foi capaz de sensibilizar

os poetas e fazer transbordar de amores até o mais desatento ao som

do uhaa! Por cima dos banzeiros, ao gosto do taperebá e deslumbra-

dos com a paisagem que a natureza tratou de esculpir, seguimos, via-

jando com o corpo, a mente e os sentidos, seguimos nós, aprendizes,

à caça de novas experiências e com a bagagem cheia de curiosidade...

Acelera Diego!

Chegamos em Manaus perdidos do Rio de Janeiro, do horário e do

nosso guia, Diego, que tinha a incrível missão de nos guiar pelas aven-

turas que nos aguardavam pelos rios, pelas matas e construções arquite-

tônicas, pelos pratos tradicionais, pelos ônibus que sempre nos causaram

muito sono, pelos vocabulários e pelas histórias... Mas Diego sempre

Page 28: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

27Fabricia Mello

chegava atrasado, acredito que propositalmente, afinal, essa condição au-

mentava muito nossa ansiedade. Foi assim que esperamos quase todas as

manhãs por ele, aguçados, e ele chegava no mesmo ritmo do barco que

nos transportou a Rondônia, mas isso já é uma outra história.

Sorvete de quê?

O sorvete, ah, o sorvete! Nossos paladares se atentaram aos pri-

meiros sabores peculiares amazonenses. Senhores, cogitem a pos-

sibilidade de experimentar uma dessas delícias, mas, por favor, não

idealizem nada comum, nenhum sabor tradicional, nada de morango

ou chocolate... Pensem no Cupuaçu, Açaí verdadeiro, Tucumã das

estrelas, Buriti, Camu-camu ou uma tapioca diferente, transforma-

dos em sorvetes da massa, um sabor incrível e forte, nada leve.

A tecnologia já chegou por aqui...

Aquele estereótipo de índio que todos acreditam, de um ser com

cocar e uma lança na mão, pronto a matar quem se arrisca a entrar

em sua mata, ainda existe sim. Contou-nos um senhor no barco que

uma dona chamada Maria morava sozinha na mata próxima a uma

tribo indígena e presenciou um evento em que os índios se juntaram

para matar um homem branco, que entrou na mata e se relacionou

com uma índia, mataram o cujo a pauladas...

Page 29: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

28 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil

Mas felizmente aquela não foi a tribo que conhecemos. Visitamos

uma tribo “civilizada”, que por apenas dez reais por pessoa concordou

em mostrar os seus rituais. Mas senhores, não sejam apressados e

nem tirem conclusões precipitadas, esse dinheiro era apenas para a

manutenção da oca, afinal toda casa tem seus custos. Assistimos ao

curioso ritual de recepção. Alguns possuíam até Facebook, isso mes-

mo! Os índios, ou pelo menos boa parte deles, também começaram

a desfrutar da tecnologia atual, eles não são mais os mesmos que Ca-

bral encontrou por aqui. Isso é bom, pois se naquela época tivessem

acesso a esses meios, não teriam sido enganados tão facilmente...

Dois irmãos e uma mesma velocidade:

No quarto dia de viagem seguimos para o barco e, pelo rio Ma-

deira, que por dentro de sua lama esconde algumas ferinhas que po-

dem devorar algum corajoso que ouse imergir em sua tranquilidade,

fomos guiados.

Talvez, senhores, este seja o capítulo mais extensivo do relato, o

resultado do tédio e de inúmeros sentimentos diferentes que se con-

trariavam e se anulavam durante a estadia no barco.

O barco, que se chamava “Dois irmãos”, era bem velhaco e capenga.

Durante a viagem fez inúmeras paradas indesejáveis, que nos deixa-

Page 30: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

29Fabricia Mello

vam sempre impacientes. Ele era grande, com três andares, o piso de

uma madeira antiga e esburacada, a pintura já estava lá pelo fim e os

banheiros tão sujos que às vezes chegavam a ser assustadores. Pelo teto,

espalhava-se uma quantidade insuficiente de salva-vidas. No primeiro

andar ficavam os mantimentos, no segundo, muitas redes estendidas

e os camarotes, no terceiro havia um ponto de distração, o salão onde

acontecia a manifestação da música popular brega amazonense.

Na calada da noite, às margens do Madeira, casebres foram se

destacando em toda sua simplicidade e despertando dúvidas de

como alguém tinha a tamanha coragem de morar na beira do rio

tendo como vizinhos cobras, corujas e jacarés, e ainda usando como

meio de iluminação o velho lampião...

Já na hora de dormir, bichos resolveram nos amedrontar. Em ple-

na noite era como se estivessem recorrendo ao lugar que era deles por

direito, besouros e baratas voadoras estacionaram na pia do banheiro

impedindo o trâmite, uma lacraia completamente envolvida nos len-

çóis nos arrancaram gritos...

A lentidão da travessia era agonizante e, por isso, dou um conse-

lho a qualquer turista que pense em fazer esse roteiro: Pense muito

bem! Principalmente se for algum morador de cidade grande acostu-

mado com o ritmo acelerado da vida, ou então alguém que sofra de

Page 31: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

30 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil

síndrome do pânico... Para os senhores terem uma fagulha de ideia,

ficamos em um barco grande de três andares, porém com a veloci-

dade de uma formiga. Durante o percurso, outro barco da mesma

proporção passou por nós e as pessoas a bordo nos acenaram com

tom irônico nas faces, além de deixar escapar muitas gargalhadas.

Parecíamos atração turística, pela nossa tamanha vagarosidade.

Uma casa flutuante atravessou o rio de uma margem à outra, com

o dobro da nossa velocidade e, para nos deixar ainda mais pasmos, as

canoas, isso mesmo!, as canoas ficavam a perder de vista de tão rápidas.

Já não bastava toda essa lentidão, o barco parou. Algo de errado

no motor fez com que a viagem não pudesse mais continuar, fomos

tomados por desespero, era inacreditável o que acontecia...

Ficamos parados próximo a um matagal que nos separou por me-

tros da imensa floresta que moldava os arredores do rio. Os mosquitos,

aquelas pestes, queriam nos devorar e a água barrenta não dava nem

para arriscar um mergulho. Disseram alguns curiosos que apenas à

noitinha iríamos retornar à lentidão do barco. E o que nos restou?

Esperar... Esperar... Esperar... Enquanto para muitos o dia foi

corrido, para nós, os turistas aprendizes, passou bem devagarinho.

Como essa gente manauara suporta encarar uma trajetória dessas

com tanta tranquilidade? Será que só turistas se sentem aflitos assim?

Page 32: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

31Fabricia Mello

Mais tarde o barco retornou à sua funcionalidade em uma lentidão

tão severa que eu estava esperando o momento em que também os

ribeirinhos iriam rir de nós.

No meio de uma boa prosa, um bicho estranho invadiu o camarote

e interrompeu a conversa... Por alguns segundos nos entreolhamos para

observar a reação alheia. Quando um de nós se espantou, todos, num pulo

de desespero, saíram correndo gritando: Acho que é um rato! Todos do

barco se alarmaram e subiram para suas redes. Por instantes foi o maior

auê... Até que um senhor gritou: - É um pequeno inseto, sem desespero!

Na terceira noite, quando me ajeitava para deitar e a música brega

já ia diminuindo de volume, um som perseverante de buzina come-

çou a soar por todo barco, a luz ia e voltava e os passageiros se pu-

seram à beira do barco perguntando-se: O quê há? Eu gelei, tremi e

tentei não me concentrar naqueles burburinhos, mas era inevitável

pois, segundos depois, o barco parou e veio a notícia: vamos ancorar!

Tem uma forte chuva chegando por aí, se continuarmos já era... É

melhor não arriscar. E a tempestade foi diminuindo, até que cessou.

Page 33: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

32 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil

Boto, traz a alegria de volta!

Olho para o rio Madeira, o clima hoje está meio fúnebre, céu cin-

zento e um interminável chuvisco parece afetar todos os passageiros,

alguns se jogam em suas redes, outros se juntam aos amigos para

participar de algum joguinho sem graça. Olhaaa, o boto!!! Alguém

grita. Arrisco-me a assisti-lo e a contemplar o pulo de uma criaturi-

nha feliz que talvez possa me contagiar. Mas ele parece fugir de vista,

pula lá longe, próximo às margens. Quando eu já ia desistindo, ele me

presenteia com o ar de sua graça...

Gotas de desespero:

Dentro do bendito barco passamos a maior parte dos problemas

de choque cultural. No penúltimo dia, já no finzinho da tarde, uma

forte tempestade nos atingiu, no meio do percurso as águas começa-

ram a entrar pelos cantos, as lonas tiveram que ser esticadas a fim de

conter a rajada. A imagem que se via era o branco da chuva tentando

ofuscar a bela paisagem que a essa altura já havia me enjoado. Feliz-

mente a tempestade logo cessou...

“Deus ouviu minhas preces”.

Page 34: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

33Fabricia Mello

O encontro das águas:

Formado a partir dos afluentes Gabriel, Thamires, Alice, Fabrícia,

Valeska e Douglas, somos o “Rio Amazonas”. Agora, senhores, nossa

junção acontecerá no encontro das águas. Se acaso um dia passar por

lá e observar aquele encontro, não se esqueça: somos nós, os turistas

aprendizes, nos reunindo novamente!

Page 35: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

34 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil

Davi Nascimento

Céu

Que boca é o céu

Que ameaça comer Brasília

Tudo cabe no céu da boca

As hélices e turbinas

Cabem os prédios

As torres de TV

Cabem todas as igrejas

O céu comeria

Cada peça do avião

Retorcendo com a língua

Cada cabo de carga

A língua desse céu

Ora ou outra se pinta como

A língua das crianças

Rosa quando não laranja

Roxo quando não vermelho

Sempre áspero e sem forma

Page 36: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

35Davi Nascimento

A boca devoradora

Paira sobre as cabeças

Ignoramos a ameaça em silêncio

Dizem que por vezes Brasília

Fica mais próxima da garganta

Ainda mais próxima do que a noite

E tudo termina em raio

No bater dos dentes

Page 37: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

36 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil

Lembrança

Toques líquidos do sino de vento

O som do sino de vento transpassa

O vidro a pedra e se derrama por toda casa

Permeia o espaço como o anjo transpassa

Os campos as árvores as ruas os prédios

E sopra nos meus ouvidos o mesmo líquido

A mesma água

Page 38: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

37Davi Nascimento

Noite em Sagarana

Todo sono em Sagarana

É castanha do cerrado

As rosas pendem

De tão escuro

O mato molha nossos pés

Notívagos

Convites que o vento sussurra

Máquinas em galpões

Calado mistério que jaz

Em cada grão de arroz

Cada fibra de algodão

Líquidos nossos passos

Fincadas à sombra

Garras de onças

Cortam o silêncio

Lunar

O voo da coruja

E dos morcegos

Sons que se diluem

No escuro do sertão

Page 39: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

38 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil

Luana Batista

Caminhos do norte

Então, você quer ouvir minha história... Companheiro, eu cresci na

periferia de São Luís do Maranhão, num lugar chamado Bairrinho.

A maioria das pessoas pobres de lá tem problemas em casa, e comigo

não foi diferente não, sabe? Papai era usuário de cocaína desde que

me lembro e nossa família estava na dureza. Lá nessa área acontecem

muitos roubos, nos noticiários não se fala noutra coisa. Eu nunca tinha

pensado em me envolver naquilo, pois apesar das dificuldades, eu via

longe, e corria atrás de ser uma pessoa digna e instruída.

Minha melhor lembrança de São Luís é o reggae. O reggae acal-

ma, vem da cultura africana e de lugares de sofrimento. Lá no bair-

ro tinha um grupinho que sempre me convidava pros descaminhos.

Eram tempos duros lá em casa, naquela semana meu pai tinha che-

gado muito machucado por conta das dívidas. A gente sabia que era

um aviso de que o pior estava para acontecer. Isso assustava muito a

gente, sabe? Mamãe chorava a noite inteira, no cantinho dela. Na-

quela situação eu me vi obrigado a fazer o que nunca pensei... Eu

pensava sozinho: o que é o certo a fazer? Eu sabia o que tinha de

Page 40: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

39Luana Batista

fazer, mas não era o certo. Foi assim que eu me vi procurando o tal

grupo. Marcamos o assalto numa loja de eletrodomésticos lá perto

mesmo. Com o dinheiro do roubo, eu pagaria todas as dívidas do

meu pai e não deixaria ele morrer, estava preparado para o que fosse.

No dia combinado, eu e mais quatro seguimos para a loja, eu fiquei

na porta de vigia enquanto os outros anunciaram o assalto. Os pen-

samentos seguiam em minha cabeça: o que estou fazendo aqui? E

essa arma? Não quero matar ninguém, só quero salvar uma vida, uma

família, parece até irônico...

Era tanta adrenalina que ainda hoje parece um sonho, eu lembro

de pouco. Sei que na hora de ir embora, demos de cara com a polícia,

que tinha sido acionada. Os outros deram no pé com o dinheiro,

mas foram pegos e presos, eu soube depois... Eu consegui escapar,

me meti numa feirinha de rua, joguei a arma fora, tomei um ônibus

qualquer e fui sem rumo nem direção. A única coisa que tinha em

mente era que não voltaria. Eu tive muita vergonha. Fui parar no

porto e dormi numa canoa. Eu estava decidido a fugir e a conseguir

esse dinheiro por meu pai.

Fiquei um tempo pelo porto. De dia eu tirava um troco carre-

gando mercadoria e de noite, dormia por lá. Certa vez, eu tive uma

conversa com um canoeiro que dormia estacionado na doca e des-

Page 41: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

40 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil

cobri que ele trabalhava na Ilha de Marajó. Ele me ofereceu uma

oportunidade pra trabalhar no porto da Ilha. Tinha até um lugar pra

ficar. Era a minha chance, a oportunidade pra juntar um dinheiro. A

viagem seria longa e o trabalho puxado. Trabalho de estivador, dizia

ele. Eu não tinha nada a perder.

Chegando pelo rio, vi as docas e a costa da Ilha onde faria meu

novo começo. Estava sozinho e sem minha família, mas otimista. Es-

perava não demorar tanto aqui. O trabalho era pesado mesmo. Com

o tempo, aprendi a pescar e larguei o porto, que não dava dinheiro.

Agora eu ficava na feira e na pescaria. Já conhecia o local, me dava

com as pessoas. Era bem diferente do meu bairro, gostei demais des-

se lugar. Mas eu não estava em paz, tinha o meu objetivo. Enquanto

trabalhava, pensava somente nisso.

Nesta época, depois de um tempo numa pousada barata para tra-

balhadores do porto, morei com uma família de pescadores numa

dessas casinhas de madeira na beira do mar. Eles foram muito bons

pra mim. Estar junto ao mar me acalmava, e por alguns instantes os

pensamentos ruins sobre meu pai iam com as águas. Após o trabalho,

eu costumava voltar para a casinha, descansar um pouco e ir à praia

fazer uma boa caminhada. Terminava contemplando o fim de tarde e

dando um mergulho para garantir minha higiene mental. As pessoas

Page 42: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

41Luana Batista

eram quietas e muito humildes. Eram como os búfalos que andam

por aqui, que são fortes para carregar o peso, mas parecem sempre

mansos. E assim as semanas seguiram...

O dinheiro que eu ganhava era pouco, mas sobrava para juntar, e isto

me confortava. Telefonei para os meus pais, mas não contei onde estava.

Disse que quando eu juntasse o dinheiro, voltaria. Meu pai não foi mais

ameaçado, mas sua dívida ainda existia, e a tensão era constante.

No mais, morar na Ilha não foi difícil. Os costumes foram sendo

incorporados em mim. Quase sem perceber fui me tornando um tí-

pico morador. Por mais que a gente trabalhasse, a preguiça fazia parte

do clima, e o tempo corria diferente. Fiz novas amizades num centro

comunitário perto da minha casa, onde encontrei o pessoal animado

do carimbó. Quis entrar para o grupo, e eles me receberam bem.

Além de distração, pensei que a dança poderia me dar um rumo, uma

nova perspectiva das coisas.

Entre essas pessoas conheci alguém especial, uma moça de olhar

sereno, sorriso doce. Me encantei logo de cara e parecia que ela tam-

bém gostava de mim. Nas aulas de dança, era sempre meu par e me

ensinava os passos com paciência e delicadeza. Eu não faltava ne-

nhuma aula, só pra ver aquele anjo, que dançando parecia voar. Um

dia, depois da aula, eu a chamei pra dar uma volta pela Ilha. A gente

Page 43: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

42 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil

conversou timidamente, tomamos água de coco e nos beijamos. De-

pois ficamos juntos e, desde esse dia até hoje, nunca faltou coco nem

beijo pra gente, eu e minha Chiquinha.

Mas como eu te dizia, teve uma tarde que o porto estava cheio e apa-

receu um trabalho arriscado. O povo precisava se alimentar, faltava peixe

e um temporal se anunciava, com cada trovão... Eu precisava do dinheiro

e fui pro mar junto com um companheiro. Nosso barco era pequeno e

velho, mas assim mesmo a gente foi. Enquanto esperava a rede, pensan-

do no meu anjo, o céu escureceu. O barco sacolejava sobre o mar agitado.

Nos afastamos da praia e eu não conseguia enxergar mais nada. Então

uma onda alta levantou o barco e o virou. Num segundo, parei no fundo

do mar, desnorteado. Nadei buscando a superfície na escuridão. Ondas

grandes bateram em mim com força, eu bebi muita água. Quando pude

respirar, abri os olhos e não vi mais o barco. Não podia mais voltar.

Fechei os olhos e pensei por um momento: e se me entrego, se me

deixo morrer, aqui, agora... Mas na minha cabeça passaram meus pais,

passou Chiquinha e meus sonhos mal começados. Tirei forças disso e

comecei a nadar sem parar. Recuperando o fôlego, pude enxergar uma

pequena luz. Nadei naquela direção, até sentir meus pés encostarem na

areia. Andei um pouco e me joguei na areia seca, meus braços estavam

tão pesados e o cansaço tão grande que cheguei a pensar que era uma

Page 44: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

43Luana Batista

miragem. Depois, fui acordado pelos pescadores locais e levado para

um posto médico. Nosso barquinho também estava lá, pois a maré

havia baixado. Meu companheiro estava internado, mas sobreviveu

também. Ele foi resgatado por um dos barcos da praia.

Depois deste acidente, decidi voltar a São Luís para tentar sal-

var minha família. Meu anjo me esperou em Marajó. Ao chegar no

Bairrinho, nem passei em casa, fui direto para o traficante negociar a

dívida de meu pai. Lá, coloquei minhas economias na mesa e contei

minha história, de um modo mais resumido que esse que te conto

agora. Ele me disse que estava tudo resolvido, que a dívida já não

existia, que tinha sido paga e que meu pai tinha deixado a cocaína.

Fui correndo para casa e confirmei o que tinha ouvido. Meu pai

disse que a minha luta o inspirou na sua mudança, e que estava se

tratando em uma clínica, por vontade própria. E que pagou sua dí-

vida com os rendimentos da vendinha. Daí eu voltei, companheiro, e

construí esse lugarzinho que você vê aqui.

No final de tudo, penso que foi o amor que me trouxe pra cá. Aqui

eu o encontrei, e sou eternamente grato por isso. Tudo na minha vida

veio desse mar, de onde eu vim.

Essa é mais ou menos a minha história. E então, o que o senhor

vai comer?

Page 45: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

44 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil

Bruna Alves

Região do Pajeú

Eu era um menino franzino e orelhudo, que morava no sertão de

Pernambuco com meus pais. Filho único, fazia o que queria quando

eles estavam cuidando do sítio, trabalhando. Subia no pé de umbu,

catava seriguela, montava nas cabritinhas, esbanjava e explorava tudo

o que tinha ao meu alcance.

Um dia, fui até o açude me refrescar, como sempre fazia, e vi que

estava secando. De pé eu tremulei... Se-can-do?! Mil coisas se passa-

ram em minha mente, uma mente de menino com 12 anos, que não

sabia fazer outra coisa além de merendar na escola. Logo depois, vi

um bezerro morrer. Sua mãe não tinha mais leite.

Vi os olhos de minha mãe molhados mesmo sem ter o que beber

nem poder catar o milho que não vingou. Não chovia há anos. Ela

não ganhava nem o do pão, porque não tinha onde colher e nem o

que colher. O cafezal estava seco.

Se-co! Cheio de mato, queimado de sol. O dono das terras cagava

pra nós, agricultores. Nós que cuidávamos de sua terra. Mas ele tinha

outras, tinha água e morava no litoral.

Page 46: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

45Bruna Alves

Minha família vinha de uma longa linhagem de retirantes. Pobres

que dependiam de facão, macaxeira e fogão a lenha. Éramos retiran-

tes sem ter o que fazer com o gado morrendo, as cabras desfalecendo,

nem borboletas havia mais na minha cozinha.

Arrumamos nossas trouxas e fomos embora, nós, duas cabras e

nossa vaca, que se chamava Jurema e carregava três tonéis de água na

carroça. Fomos embora!

Papai, mamãe e eu.

Na metade do outro dia já estávamos a 20,7 km em direção ao

Norte.

Passamos por Brejinho.

Continuamos...

Sabe do que eu tive medo? Do frio, do vento naquela estrada de

terra à noite, do breu que era estarmos sozinhos no sertão. Passaram-

se dias... Não tomava banho há meio mês. Comida? Comia os tatus e

passarinhos que papai caçava para não ter que matar as cabritas. Elas

davam-nos o leite, que faz bem para os ossos, fortalece!

Jurema carregava as trouxas e mamãe não aguentava mais andar,

sentia dor em tudo e por todos. Para dormir tínhamos dois lençóis e

uma lona. Eu me divertia. Eles diziam que estávamos de férias. Mas

com o passar das noites e as dificuldades em encontrar o que comer,

Page 47: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

46 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil

percebi que estávamos a milhas de casa. Na verdade, eu vi que a nossa

casa agora era onde encontrássemos água!

As pernas foram fraquejando, a mente foi enlouquecendo debaixo

de um sol de 45º e um frio de 12º de noite. Já estava cansado! Mamãe

não se aguentava de dor e Deus não me aguentava de tanto ouvir pe-

dir proteção para que não fosse atacado por nenhum bicho selvagem.

A água acabou! Outra vez...

No meio da noite vi papai cavar com uma pazinha de pedreiro um

poço no barro seco para esperar juntar água. Estávamos perto de uma

estrada conhecida dele. Disse que seus pais também já tinham parado

ali. Lembrou-se que em seu tempo também havia porcos selvagens.

Ele os temia, pois suas presas mais fáceis e indefesas eram os retirantes.

“Eram porcos com presas enormes que tinham cara de malvados”,

disse meu pai.

Eu, já assustado, ouvi um uivo bem de longe. Acho que naquele

momento só pensava em não ser comido por nenhum lobo, porco

selvagem, lobisomem, ou sei lá. Minha mãe nada falava, mas estava

sentindo o mesmo. Do nada, percebemos que o poço estava enchen-

do, estava mesmo funcionando.

No dia seguinte acordamos mais uma vez com o barulho do sini-

nho de Jurema, que comia capim. Andamos mais um pouco e logo

Page 48: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

47Bruna Alves

percebemos no horizonte uma margem de casas, talvez... Sei lá! Nós

andávamos a passos de formiga, né... Não tínhamos mais o que fazer

quando eu percebi uma cruz. Ela só podia ter vindo de Deus, nosso

Pai. Era uma igreja singela e amarela como ouro, gritei meus pais e

Jurema. As cabritinhas, que estavam amarradas, vieram também!

– Painho e Mainha, ói lá longe. Aquilo lá é uma igreja, num é?

Minha mãe chegou a chorar: “Deus ouviu minhas preces.”

Meu pai disse: “Depois de mais de 200 km, tava na hora de

achar uma cidadezinha que prestasse. Tenho fé que lá tem o que a

gente precisa.”

Andamos até a cidade. Ao chegar na igreja e conversar com o

Padre Cícero, que tomava conta da paróquia, meu pai contou a nossa

história e ganhou um pedacinho de terra deles. Lá conseguiríamos

nos reerguer e fazer da nossa lona um barraco, quem sabe do barraco

uma casa de sopapo e futuramente uma de tijolos e alvenaria.

Meu pai, emocionado com um sorriso de orelha a orelha, olhou

para minha mãe e disse: “Estamos no Rio Grande do Norte, ao norte

de São José, na região de Jucurutu. Acho que agora conseguimos nos

virar por alguns meses. Tem escola, água e muito serviço pra nós. De

fome a gente não vai morrer e menos ainda de sede, o Padre disse que

podemos construir uma cisterna como a da igreja e usar pra irrigar as

Page 49: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

48 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil

plantas, tomar banho e dar de beber à Jurema e às cabritinhas. Vamos

criar João aqui!”

Eu já estava de banho tomado e preparado para a missa. Era do-

mingo e Deus queria falar comigo - sempre fui devoto de nossa mãe,

Nossa Senhora, Mãe de Deus de Nazaré. E sei que quando avistei

aquela cruz lá no alto era para eu crescer aqui. Jucurutu não tinha

muita coisa a oferecer, mas eu sabia que ia ser ótimo nossa estadia.

Durante a missa, agradeci à minha Mãe Nossa Senhora e pedi que

viesse muita chuva para irrigar toda a região e o Pajeú também. Para

que pudéssemos plantar, logo naquela semana, e recomeçar do zero.

Após a missa, agradecemos novamente ao Padre Cícero e fomos para

o nosso barraco.

Ao chegar no terreno atrás da igreja, percebemos que havia uma

plantação de palma e, no cantinho, um mandacaru sem espinho que

estava florindo. Sorrimos daquela situação e fomos descansar, pois o

dia seguinte seria longo.

Em uma semana já fui à escola. Ficava na mesma paróquia que

nos recebeu tão bem. Era completamente diferente da escola que

frequentava quando morava em Pernambuco. Tinha água, merenda e

gente que sempre tentava ajudar nossa família. Era um paraíso perto

do sertão.

Page 50: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

49Bruna Alves

Mas eu sentia falta de uma coisa só...

Não tinha glosa, não tinha repentista e nem tinha cordelista na

nova escola. Então, eu recitava e declamava alguns versos que apren-

di lá no Pajeú:

“Cajueiro abaixa a galha

que eu quero chupar caju

menina traga a cachaça

que eu quero tomar Pitu

menina diga a seu pai

que eu quero casar com tu.”

Logo fiz colegas e amigos. Pude curtir minha juventude nova-

mente e aproveitar a água do rio que banhava Jucurutu com minhas

novas amizades.

Cresci. Terminei meus estudos e logo quis mais, muito mais. Meus

pais estavam bem por lá. Tinham tudo o que pediram a Deus. Mas

eu queria mais que água, comida e horta, mais que vaca e cabra pra

cuidar. Eu queria desenvolver minha língua, meus conhecimentos

sobre os lugares, principalmente sobre o sertão e a cultura nordestina.

Eu escrevia sobre tudo, tudo o que eu imaginava ser, viver futuras

aventuras, conhecer novos costumes, tudo, tudo. Estava louco pra ir

para a faculdade.

Page 51: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

50 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil

Me inscrevi no vestibular. Fiz e passei. Me inscrevi para Letras

e passei, para Agronomia e passei. Então eu fui viver. Fui morar, es-

tudar e trabalhar para o lado de outra cidade. Quando dei por mim

estava morando na Paraíba, declamando poesia nos cafés de João

Pessoa e escrevendo livretos. Hoje, participo de projetos patrocina-

dos pela Secretaria de Cultura de Campina Grande, dou aula na

graduação de Literatura e publico contos como este.

Page 52: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

51Bruna Alves

Umbuzeiro

Eu e um umbuzeiro

Conheci um nordeste inteiro

Comi comida com tempero

E peguei cabra na mão

Eu e o sertão

Vi a caatinga, a seca e o molhado

Cheguei a suar um bocado

Até num açude entrei

Me molhei

Me banhei

com a água que o boi lambeu

Fui eu e a Paraíba

Fui eu e o Pernambuco

Fui eu e a Bahia

Fui eu e Deus

No meu sertão

Page 53: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

52 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil

Oh Senhor!

Tenha paciência com essa juventude

Que tem nojinho de entrar no açude

Sabia que tem quem beba dessa água?

Não. Não é do seu interesse!

Se o nordestino bebe ou come

o problema é dele.

Mas se o carioca deixa de lavar a mão

é problema do mundo.

Então ...?

Não. Não é!

Meu caro, todo esforço é muito suado

E zoado pelo povo desunido da minha terra

Mas o que eu posso fazer sozinho?

Não é muito, mas sei que o que é escrito

É lido e o que é visto sempre existiu!

Page 54: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

53Guilherme Cunha

Guilherme Cunha

Abismo

Crepúsculo. Ema já podia ver o céu se transformando com o pôr

do sol que gradativamente descia sobre as nuvens. Estava na hora,

o poente era o convite para que esse momento seguisse num ritmo

poético. Ela estava pronta, podia sentir a água em seus pés, carregan-

do-a para o abismo que estava a poucos metros. As forças das águas

atuavam em suas canelas, às vezes contrárias ao fluxo, às vezes em

direção ao destino. Em passos curtos, Ema caminhava. Enquanto

isso, o vento lhe contava ao pé do ouvido seus próprios segredos. Ela

podia ouvir, vindo das profundezas de seu consciente, uma música

quase esquecida, abafada. Olhando ao seu redor, podia ver nas mar-

gens do rio em que caminhava, árvores de troncos solitários erguidos

num convite ao abraço. Neles se viam faces que estampavam sorrisos

enormes e faziam escorrer lágrimas de seiva. Ema continuava cami-

nhando enquanto borboletas dançavam e tocavam amigavelmente

as palmas de suas mãos. No momento em que as delicadas libélulas,

que repousavam nas pedras que estavam no caminho, levantaram voo

para que Ema pudesse passar, ela olhou para baixo e viu um semblan-

Page 55: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

54 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil

te na água: era o seu rosto... Não aquele que vira no espelho assim

que acordara pela manhã, mas seu rosto quando tinha dez anos. Ema

sorriu, pois estava usando o batom vermelho de sua mãe, que sempre

a proibiu de usar. Levou as pontas dos dedos aos seus lábios, tocando

-os. Estavam quentes e macios. Olhou então para seu corpo e estava

usando o vestido que ganhara para sua primeira apresentação de balé.

Os pássaros cantavam uma melodia em tons precisos, similares ao de

um piano, e Ema rodopiava sobre as águas. Tentava recordar-se da

coreografia de sua primeira apresentação de balé e, de alguma manei-

ra, realizava-a com perfeição, como se não controlasse suas articula-

ções. As borboletas se confundiam com as pétalas das flores que eram

sopradas pelo vento, ambas participavam com Ema de sua dança.

Em ritmos leves, continuava a caminhar sobre as pequenas pedras

da água. Com corpo e alma em sincronia. De repente, a melodia dos

pássaros foi cortada pelo estrondo de um trovão. Ema olhou para as

nuvens negras no céu e, ao fundo deste cenário medonho, também

podia ver clarões que a cada pestanejada davam vida a uma imagem

que Ema ainda não conseguia distinguir. Sobre as águas continuou,

mesmo com a tempestade. A correnteza que atuava sobre suas pernas

agora parecia mais forte, como se quisesse atraí-la às pressas para o

seu destino final. Já não se via flores, já não se via mais cor. Tudo era

Page 56: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

55Guilherme Cunha

cinza em Ema, seu vestido de balé se transformara em trapos velhos

que sua mãe guardava no porão. E com a agitação das águas, Ema já

não conseguia mais enxergar seu rosto sobre as pedras. O clarão no-

vamente apareceu no céu, e desta vez Ema pôde enxergar a silhueta

que se estampava atrás das nuvens. Pôde ver, então, duas mãos que só

se uniam com muita dificuldade, como se de alguma forma estives-

sem sendo obrigadas a se separar. Nos dedos de uma das mãos, pôde

ver, claramente, o anel que tinha ganhado de seu primeiro amor. O

anel que usava desde a primeira vez que fora posto em seu dedo. O

“para sempre” esculpido brilhava com a luminosidade dos raios. Uma

daquelas mãos, que unidas estavam sobre os céus, era de Ema. A ou-

tra portava também um anel, e Ema percebeu que era a mão delicada,

de dedos finos, de seu primeiro. Ele que viveu momentos intensos ao

lado de Ema, mas que também viveu momentos fora de si. Ele que

preenchia vazios com insanidade e loucura. Ele que correspondia um

amor de forma facciosa. Ele que deixava infinitas feridas no coração

de Ema, que sempre se recompunham involuntariamente. Ele que,

com suas perplexidades, completava as incertezas que ela suportava.

Passaram momentos tão reais e ao mesmo tempo tão superficiais

que, para Ema, o sentimento entre os dois era impreciso. Mas tal

imprecisão fazia crescer cada vez mais afeição por esta pessoa, que

Page 57: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

56 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil

oferecia não um simples romance, mas a vertigem das margens de

um abismo. E agora já não passavam de lembranças. Seu amor já

não era mais presente, nem futuro. Só a assombrava com um passado

que Ema tentava esquecer. Ele se foi, de uma forma tão... Injusta. E

agora os relâmpagos e nuvens negras se transformaram no sol laranja

de fim de tarde de que ele tanto gostava. Ema continuou a caminhar.

Já não via, não ouvia e nem sentia. Ema já estava prestes a chegar ao

abismo, a vibração da queda d’água se fazia sentir nas suas entranhas.

Tudo ao seu redor deixava de ser mágico, eram apenas árvores por

árvores, pedras por pedras, Ema por Ema. De alguma forma, Ema

não conseguia mais ver seu corpo, como se estivesse e também não

estivesse ali em sua pluralidade. Finalmente, Ema deu seu último

passo antes de não ter mais passos para dar. Estava na beira de tudo.

Imóvel, de olhos bem fechados, por alguns instantes. Com a cabeça

erguida, sem olhar para baixo. No fundo de sua mente, podia ouvir,

crescendo, aquela composição, antes abafada, dos porões da memó-

ria. Tomou coragem, inclinou sua cabeça para baixo, e aos poucos

foi abrindo os olhos. ABRIU. A trilha sonora cessou. Ema estava

perplexa, pois não via o que imaginara. Não avistava a queda d’agua.

Não avistava natureza. Não havia vista. Ema percebeu que embaixo

dos seus pés só havia carros, trânsito, ruas, pessoas e pessoas, andan-

Page 58: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

57Guilherme Cunha

do, correndo. Ao seu redor, prédios, arranha-céus, guindastes. Ema

já não sentia mais a brisa de antes, e o som dos pássaros que antes

cantarolavam era agora barulho de buzinas e obras. Tudo era plano

piloto disforme, o concreto da capital. Ema não entendia porque o

abismo que imaginava já não era o que via, porque sua vida não saíra

como o planejado, porque tantos problemas e preocupações, porque

seu amor não estava ao seu lado, porque uma voz em sua cabeça a

todo tempo narrava tudo que via, ouvia, fazia, sentia e pensava. Eram

muitas dúvidas. Mas Ema não tinha tempo, estava na hora, o sol já

estava se pondo, transitando, convidando-a.

Foi como a primeira vez quando o viu, ele que sempre se despedia

com um convite, dizia: “Me encontre no pôr do sol”. Seu amor era o

abismo, a que Ema, finalmente, se entregou.

Page 59: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

58 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil

hematita

Pedras expostas em formato de cachimbo e fumaça. O antro-

pólogo nos propunha uma oferta: Das preciosas, seis seriam nossas

por um preço especial. Mas ainda tínhamos que comer, e os recur-

sos eram limitados, quase escassos. Voltamos logo (falamos). Sem

compromisso, jantamos. Com os trocados restantes, retornamos às

compras. Escolham a que brilhar para cada um (falou). E, para mim,

brilhou, naquela noite em Alto Paraíso, hematita.

“hematita: auxilia na circulação do sangue e reumatismo. Melhora a

autoestima.”

Page 60: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

59Guilherme Cunha

Procura-se: em verso ou prosa

Turistas desconhecidos com ânsia de criação são flagrados em di-

versos pontos de Brasília cometendo calúnias. Boatos procedem ao

fato de que o grupo foi flagrado subindo os blocos do Teatro Muni-

cipal, num feito totalmente imprudente e que desrespeita a arquite-

tura de Niemeyer. Não satisfeitos com tal ato, a quadrilha também

foi vista desmazeladamente em mergulhos no Pontão do Lago Sul,

onde os banhistas são proibidos. Testemunhas, que almoçavam la-

gostas nas margens do lago ou que estavam de passagem em suas

lanchas, relataram que o grupo não só mergulhou como também pe-

gou pororocas como se estivessem na Praia de Ipanema. Uma guia

do Congresso Nacional ainda prestou queixa para a polícia local ale-

gando que os mesmos tentavam entrar de penetra em uma das visitas

guiadas. Os turistas seguem desaparecidos.

Page 61: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

60 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil

Caligem

Eu gosto da sensação de andar no escuro. Não sinto medo, sinto a

explosão na minha mente. Quando ligo a lanterna, me guio por um

feixe de luz que ilumina o caminho de terra à minha frente e que me

dá a segurança de que uma finalidade existe em algum ponto desta

diretriz retilínea, mesmo que ainda não seja hábil para alcançar esta

realidade. Ainda assim, ouço diversos sons que, num simples mo-

vimento, desmistificam a imagem que a priori enxergo às cegas em

meu inconsciente. Porém, não me contento. Quando a desligo, pos-

so sentir além dos limites que meus sentidos me reservam, que não

satisfazem minha conduta moral. Despoluo o céu que me designa

milhares de constelações e estrelas céleres. Vejo muito além do que

fótons elétricos podem me proporcionar. Posso pressupor infinitudes

quando não distingo os planos a guiar-me próprio. Sou errante e um

passo em falso me faz feliz.

Page 62: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

61Gabriel Leonne

Gabriel Leonne

Tortura de classe

Invadiram minha casa

Reviraram meu armário

Dizendo “cadê a porra da droga?”

Ajoelhei implorando pela vida

Gritos e lamentos não cessavam

As crianças só choravam

Fui arrastado para o beco

Mergulharam minha cabeça na água,

Me encostaram o fio desencapado.

“Coloca o saco no infeliz!”

Acordei com tapa na cara,

Mas o pesadelo nunca acabava

Sob o bute preto suplicava piedade

E reafirmava, “sou um trabalhador”.

Page 63: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

62 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil

Depois das marcas da injustiça

Disseram: “Vaza vagabundo

Tu é mais um favelado”.

Saí desorientado, ensanguentado

As lágrimas iam me lavando.

Entrei no meu barraco

E abracei a todos desesperado.

Respirando mais aliviado

Agora fico sentado no banco

Aguardando o próximo esculacho.

Page 64: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

63Gabriel Leonne

Borborema

Grande terra redonda

Vida terrena de rua

Fecundo solo seco

Que com o sereno

A morte se esverdeia

Terreiro com rachaduras de pés

Sinal de trabalho duro

Boca sedenta falando poesia

Até o açude vai

Caminhando em cantoria

Na semeadura do brejo

Lanço fava branca, orelha de vó

Feijão roxo e guandu

Todos na cova da vida

Planto o milho em janeiro

Para colher em São João

Maracujá, acerola, mamão

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64 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil

não preocupam

Porque da feira nunca desaparecerão.

De janeiro a abril

No semiárido nordestino

Desta formosura só sai uma brasileira

A seriguela filha do caju

Quem a acompanha é estrangeira.

A jaca indiana suculenta

E a manga verde amarela

Quem na folia olha seu rodado

Diz que é baiana sua forma bela.

A graviola entra no carnaval

Com sua forra carnuda

Falsa espinhuda!

Balançando no pé até julho.

O abacate, a pitomba

A cada dia de carnaval

Page 66: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

65Gabriel Leonne

São foliões diferentes

Ora garrafinha ora redondo.

O cajá e a jabuticaba

Nunca chegam a tempo da folia

Ficam sempre rezando

Com São João, Toinho e Pedro

Pendurando as bandeirinhas

E acendendo a fogueira.

Menina caseira envergonhada

É a goiaba rosada

Chega na feira em agosto

Passa pela fruteira

E volta em outubro para casa.

São Chico talhando em angico

Abre a colheita do Sabiá;

Laranja, aroeira e limão

Já montando a árvore de Natal

Decorando com pitanga e pinhão.

Page 67: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

66 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil

O menino que aprendeu

a mandar beijos para o céu

Numa cidade no Nordeste brasileiro, zona de labuta, semiárida e

de mata branca, vivia alegremente, numa casinha bem humilde mas

espaçosa, um menino cuja graça era Turmalino, moleque arteiro e

sagaz, que morava com seu pai e sua avó.

Passava o dia brincando na beira do açude, mergulhava, rolava

na lama da margem, montava nas ovelhas, cabras, bodes, e em tudo

que andava e divertia, corria, corria e corria mais, imitava os pássaros

durante todo alvorecer.

Seu pai, Jandir, boiadeiro de sexta geração, dominava uma ma-

nada como ninguém, exímio cavaleiro. Como pai dedicado que era,

ensinou Mali, chamado assim em sua casa, como lidar com todas as

intempéries da profissão.

Vovó Inhá era uma cabocla que se desdobrava para fazer as von-

tades do moleque. Uma vó que dava gosto de ficar perto. Passava o

dia inteirinho cuidando dos serviços de casa. Quando ia ao quintal,

colocava seu chapeuzinho de palha com três fuxicos na aba, olhava

a plantação e regava, dia sim, dia não, seus milhos, mandiocas, favas,

feijão, verduras e legumes plantados no barranco perto do casebre.

Ela é quem tomava conta de tudo quando Jandir tinha que transferir

Page 68: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

67Gabriel Leonne

a boiada de região. O tempo em que ele ficava longe de casa era gran-

de, pois tinha que cruzar todo o latifúndio da família para encontrar

pastos saudáveis.

De suas viagens, Jandir sempre trazia grandes histórias: um jacaré

que aparecia para dar um oi, uma cobra peçonhenta no meio do gado.

Sem contar que, quando alguns dos boiadeiros deixavam a retaguarda

e a onça surgia e pegava um boi, toda a manada se debandava e para

reestabelecer a ordem só com muita experiência e jogo de cintura.

Mali se sentava na varanda com seu pai depois dessas longas viagens.

Ele era um menino curioso e adorava prosear. No fim das histórias, vi-

nha com aquelas invenções de menino arteiro que se acha homem feito,

falando pelos cotovelos sobre as atitudes corajosas que tinha em seu dia

a dia de brincadeiras. O pai ria... Ria de montão daquelas mitologias.

Todas as noites vovó Inhá contava uma das histórias que ouvira

de sua mãe, descendente da tribo dos tabajaras, e o menino dormia

com ar de sonhador.

Logo ao acordar, Mali levantava e corria por toda a casa a gritar:

– Bom dia! Bom dia! Papai, vem tomar café!

Jandir, que estava sempre pelo terreiro conversando com seus

primos e amigos de trabalho, ouvia a doce voz e ia depressa para a

cozinha. Chegando, dava um abraço em seu filho e o levantava, em

Page 69: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

68 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil

seguida um beijo na testa de sua mãe. Então, o café era servido para

Jandir, e com leite para Mali. Pãozinho fresquinho e broa, feitos no

fogão a lenha do quintal, brotavam na mesa das mãos da velha cabo-

cla. Assim transcorriam as poucas manhãs em que o pai de Mali não

estava viajando.

Mas, não demorava muito, o moleque arteiro, com seu cabelo de

fogo e suas pintinhas amorenadas na maçã do rosto, ia se embrenhar

na mata dizendo que era um dos personagens indianistas da história

de sua avó. Sempre com uma vara de pau na mão, desbravava aquele

mesmo local.

Por ser tão inventivo, criou um espaço por entre o bambuzal onde

realizava brincadeiras autênticas, sozinho, ou melhor, com seu potinho

de palha cheio de louva-a-deus. Criava cabaninhas com a galhada do

chão; com o barro vermelho, pequenos morros como o que sua avó

plantava; com as linhas de tricô de Inhá, fazia varinhas de pescar; mas

nunca conseguia encher o seu buraquinho no chão, porque a água era

sugada rapidamente pela terra esturricada. Seu brinquedo preferido

era um caminhãozinho de madeira que o pai trouxera da feira de Ca-

ruaru, com suas quatro rodas vermelhas e um barbante amarrado em

sua frente, ele era puxado vigorosamente pelo menino, que subia nos

piores lugares, só para ver como o caminhãozinho se saía.

Page 70: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

69Gabriel Leonne

Não existia nada que impedisse o moleque de abrir um sorriso de

ponta a ponta, mesmo quando vovó Inhá não o levava ao ensaio de

maracatu. Mali ficou durante uma manhã inteira quebrando bambu

com pedra dizendo que era para fazer a lança de caboclo do mara-

catu. Inhá era uma baiana do movimento, ou simplesmente dama do

passo, e não deixava de participar dos ensaios. Começara a levar Mali

para ver a festa, com o acordo dele se comportar e ficar quietinho

durante a reunião e também com a promessa de comprar, na volta

para casa, um doce de abóbora, que o menino adorava, na tendinha

do seu Maneco.

Mali, apesar de toda sua simpatia, era um menino muito tímido

para falar com adultos estranhos na rua. Em certo momento do ma-

racatu, ele entrou na ala das baianas e se meteu por entre os panos

coloridos da saia de sua avó. Ela percebeu logo e ficou impressionada

com a peripécia do moleque. Mirou-o com olhar de esporro, mas não

demorou muito para cair na risada. Antes que vovó Inhá falasse algo,

Mali se mandou com a criançada, fazendo brincadeiras de rua.

No fim de toda folia estava a carroça do Bastião, compadre e em-

pregado de Jandir, esperando Inhá e seu neto que cambaleava de tão

cansado. Naquela noite, Inhá se despediu das amigas e caminhou

gritando por Mali, que logo apareceu e deram as mãos, continua-

Page 71: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

70 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil

ram os dois caminhando pela Rua Calunga. Quando chegaram na

altura da tendinha do seu Maneco, Mali puxou o braço de sua avó e

apontou para a venda. Inhá já sabia o que o moleque queria, era o seu

doce predileto. Ela pegou sua bolsinha, decorada com ponto cruz que

ela mesma fez, puxou algumas moedas, e pediu para ele apanhar um

doce de abóbora e um de batata para Jandir, enquanto aproveitava

para pegar um quilo de sal.

Maneco adorava quando eles passavam por ali, afinal Jandir era

seu fornecedor e amigo de bar.

Inhá pagou os doces e o quilo de sal, agradeceu a Maneco e dese-

jou boa vendagem. Na saída estava Bastião, aguardando os dois, que

subiram na carroça e debandaram para o sítio.

Já em casa, o moleque deixou o doce de batata de seu pai numa

caixinha de madeira que ficava na mesa da cozinha. Sua avó foi es-

quentar a água para o banho. Sem perder tempo, Mali sentou na

porta de entrada olhando para o quintal e começou a abrir seu doce,

maravilhado, e comeu vagarosamente para que demorasse a acabar.

Enquanto comia não conseguia pensar em nada, a não ser no sabor.

Quando terminou, ficou muito pensativo... Sua avó estranhou o si-

lêncio e seguiu para onde ele estava. Viu o menino de cabeça baixa,

ajoelhou com dificuldades, levantou a sua cabeça e viu que uma lá-

Page 72: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

71Gabriel Leonne

grima escorria. Inhá deu um forte abraço e perguntou o que havia

acontecido para ele estar tão sentido. O menino não sabia o que di-

zer, apenas miava tristonho. Até que depois de uma longa conversa

ele desabafou:

– Vovó, eu não sei o que acontece comigo. O meu amigo fala uma

palavra que eu não tenho para quem falar, por isso eu fico triste.

Inhá, experiente que só, já sabia do que se tratava e pensava na

resposta. No entanto, ela perguntou:

– Ocê sabe que vó sempre vai estar ao seu lado. O que te deixa

triste?

– Eu... Eu... Não encontrei mainha. Meu amigo falou que toda

mãe ia tá no maracatu, mas não encontrei a minha.

– Ocê sempre está com a sua, por isso não encontrou.

O menino parou de chorar e continuou escutando sua avó:

– Bote sua mão no peito e sinta. Tá vendo aquela estrela lá no céu?

Aquela! A mais brilhante. Então, sua mãe mora lá e quando anoitece

ela acende o fogo só procê consegui olhá a estrela, que brilha... Bri-

lha.... Como uma Turmalina colorida.

O menino abriu um sorriso tão grande, e pensou alto:

– Mainha liga a estrela só pra mim...?

– Sim, só procê. Me dê um abraço e vamo entrá pra banhá.

Page 73: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

72 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil

Os dois se levantaram, se abraçaram e quando Inhá ia fechar a

porta, Mali olhou as estrelas mais uma vez. Eles ficaram parados até

vovó falar que estava na hora de ir. Mali colocou uma mão no coração

e com a outra mandou um beijo para o céu.

Eles entraram e Inhá fechou a porta.

Page 74: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

73Robson Casciano

Robson Casciano

Árvore da lembrança

Sento-me às margens do Rio Preguiça, que não me transmite essa

sensação, mas sim contemplação. As árvores emparelhadas por toda

a imensidão compõem uma paisagem única. Pelo estado da madeira,

talvez meu barco não suporte mais do que alguns dias, mas há de me

aguentar, decidido que estou a seguir o convite das águas. Pulei delica-

damente para a sua popa, a fim de não prejudicar as emendas feitas à mi-

nha navegação. A correnteza me trouxe um galho grande, espesso, com

um trevo de quatro folhas na ponta. Decidi que este seria meu remo.

Mexo com o galho para frente e para trás tentando movimentar a

embarcação, mas está acordoada, então a solto – e a acalento. Começo

então minha viagem ao tempo desconhecido. Busco uma árvore que

revelará o meu passado e meu destino, e sei que estou perto. Passo por

dentro de um canal e alcanço os bancos de areia, onde faço questão de

saltar. A solidão destas pequenas ilhas é como a minha, elas e eu estamos

perdidos no tempo.

Esqueço às vezes minhas preocupações para observar os pássaros

cruzarem o céu azul, gorjeando feito a canção do Danúbio da Orquestra

Page 75: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

74 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil

de Viena. Na pequena ilha, encontro um cupuaçuzeiro, que me traz um

sentimento azedo. Mesmo assim, o pego e separo a casca dura de cor

castanho-escuro do fruto, e o levo até minha boca. As sementes brancas,

as cuspo. “Tão duro quanto isso somente a minha realidade, e meu medo

de saborear os fragmentos ácidos em minha memória”, penso comigo.

Avanço vagarosamente, com medo de perder a trilha. Sempre que

passo por alguma árvore deixo uma fitinha de Nossa Senhora da Apa-

recida, para reconhecer o meu caminho. Passo agora perto de um Farol,

que cogito visitar, mas opto por não ir. Se eu me distraio um pouco meu

passado ficará no fundo desse rio para sempre. Sigo para o norte e chego

até a pororoca, onde o rio corre depressa para o encontro das águas. Es-

tou tão longe da vila que só me restam duas fitinhas. Não ouso ir adiante,

mantenho-me fora do alcance do mar violento. Paro meu barco contra

uma rocha lodosa, grande. O lugar me parece familiar. Minha cabeça

começa a ficar confusa, como se entrasse em um turbilhão. Então me

recordo daquela noite: estava frio, escuro como um breu, partíamos de

volta para casa em um barco, quando batemos em algo e, neste momen-

to, estava eu na proa. O impacto imediatamente me jogou para fora e caí

de cabeça em uma rocha. Antes de perder a consciência, havia alguém

gritando por mim, mas o rosto era escuro, como se faltasse luz na me-

mória, ocultando-me esta peça do quebra-cabeça.

Page 76: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

75Robson Casciano

Não tenho tempo de me recuperar desta lembrança, tenho de

continuar, e estou tão cansada... Recuo um pouco para seguir as fitinhas

e ter a segurança de que poderei retornar ao píer, todavia meu cérebro

me prega peças e atribui lembranças a lugares por onde não passei. A

memória é a última coisa em que posso confiar. Ponho-me a pensar com

o rosto mirado para as águas, que dizem ser o espelho da alma. O espe-

lho reflete meu rosto com uma interrogação. De onde vem a esperança

de que encontrarei minha alma naquela árvore?

Entro pela floresta, seguindo a intuição, que é meu único norte neste

momento. Ouço barulho de mato sendo levemente pisado, seguido por

um grunhido baixo. Esta sensação eu já havia conhecido antes. Lembro-

me de uma caça, um índio trajava tanga, tinha um cordão com presas,

uma lança e um arco e flecha nas costas. Sobre o seu corpo, uma tinta

verde parecia camuflá-lo. Havia também um homem branco carregando

uma câmera fotográfica, estávamos correndo no meio de uma flores-

ta junto de uma presença assassina, a lança foi arremessada contra essa

presença, que foi silenciada após um urro. Lembro de pensarmos que

tínhamos vencido, mas, sorrateiramente, saltou sobre o homem bran-

co a cria do animal ferido que, sedenta, desviou-se das flechas que lhe

disparavam e prosseguiu com sucessivos ataques a jugular do índio. Sua

silhueta deixava transparecer sua fúria. Depois, seguiu em minha dire-

Page 77: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

76 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil

ção e me encarou durante um longo instante e seguiu seu caminho. Sua

face escurecia conforme retrocedia, deixando somente a mim e os corpos

largados ao chão.

Diante desta visão brutal, questiono-me sobre quem era o “homem

branco”, pois ele estava presente em outra memória, mas não consigo

ver seu rosto. Começo a conectar as peças e me lembro vagamente de

uma foto enterrada sob uma árvore. Uma árvore que era, para mim, um

totem. Recordo de tirar aquela foto, onde ele parecia feliz ao centro de

uma roda de índios.

Durante este lapso, segui a corrente do rio, e agora tenho em minha

frente um píer antigo. Ao pisar nas madeiras velhas, elas rangem. Ando

por alguns minutos e chego num acampamento de casas de bambu, que

parece uma aldeia abandonada. Forço a porta de uma cabana, que se

abre. Entro em uma sala repleta de teias de aranha e formigas. Encontro

ao centro uma escultura colorida, feita artesanalmente, com formato de

cabeça de onça.

Fuxico outras cabanas e descubro que nelas existem objetos como

este, que eu reconheço serem totens. Representam espíritos da nature-

za. Cada pessoa tem seu espírito ligado a um totem, que o fortalece e

o protege, mas que também tem influência sobre seu comportamento.

Rebuscando meus objetivos, lembro-me da tal foto soterrada, e volto até

Page 78: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

77Robson Casciano

a primeira cabana. Algo tinha me levado até ela, talvez o próprio totem.

Cavo com minhas próprias mãos a terra embaixo do chão de madeira e

encontro a fotografia.

Lembro-me então que antes daquela caça de trágico final, a tribo

estava reunida para um rito de passagem, todos rodavam, cantavam e

murmuravam palavras. Homens e mulheres mostravam suas vergonhas

a todos, e a única coisa que lhes cobria o corpo era a tinta vermelha. No

centro da roda estava o homem branco, o mesmo da caçada. Resolvi

fotografar, quando finalmente recuperei a consciência de que aquele que

estava ao centro era o meu pai, mas ainda não sabia o porquê de estar-

mos ali. Esta era a foto que eu buscava. Meu pai com os índios, que já

não estão mais aqui. Junto da foto há uma carta, onde está escrito: “Os

exploradores querem este território por sua riqueza natural e mão de

obra barata. Para terem a percepção de tal grandeza com os próprios

olhos, eles querem a sua ajuda, mesmo sabendo que você é um antropó-

logo, e não um bandeirante. ”

Olho pela janela da cabana e vejo o grande açaizeiro de quase vinte

metros que eu via no escuro de minhas lembranças. Sim, eu me lem-

bro de tudo... Quantas manhãs eu passei debaixo desta árvore, junto das

crianças índias, enquanto meu pai fazia sua pesquisa na tribo. Meu pai e

o índio foram as vítimas daquele filhote de onça que vingava o seu cria-

Page 79: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

78 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil

dor. Ele me deixou viver como se dissesse “estamos quites”. Depois disso,

fui adotada pelos índios que me deram como talismã o totem da onça.

Disseram-me que havia uma ligação entre nós, já que eu sobrevivi a seu

ataque na floresta. Depois a tribo foi expulsa pelos exploradores. Houve

uma luta. Eu caí no rio ferida e fui arrastada pela correnteza, até bater

com a cabeça em uma rocha e perder a consciência. Quem gritava por

mim, na minha queda, era meu pai pajé adotivo, sendo levado embora

pelos homens armados. Não posso descrever como tais memórias me

fazem sofrer, chego a pensar que preferia não as ter recuperado.

Retorno ao rio e não encontro meu barco. Estou sozinha e longe de

tudo. Olho para as águas e me vejo claramente. Tenho olhos de onça

ferida, que me ajudarão a encontrar meu caminho.

Page 80: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

79Karen Campos

Karen Campos

Nos pés das pedras-vidas

O Sensacionalismo não é um gênero jornalístico novo. Em

1946, findado o Estado Novo, Francisco Clementino, diretor do

Jornal do Commercio, enviou Pedro Simas Oliveira à pequena

cidade de Sagarana, noroeste de Minas Gerais, para investigar o

caso de uma moça que fora enterrada viva. Diz o diário de Simas

que, chegando à cidade, o jornalista encontrou uma feira de ali-

mentos, onde buscou suas primeiras informações. Teria sido ali

que encontrou um contador de histórias, já em idade avançada.

Ao entrevistá-lo sobre o caso da enterrada viva, Simas foi convi-

dado para saber mais sobre essa história à moda antiga – à noite,

diante de uma fogueira, junto a outros ouvintes. Antes, porém,

o contador o levaria até a casa da falecida. Os papéis contam de

uma casa abandonada. Pedro pôde entrar sozinho e vasculhou

cada canto, em busca de alguma pista concreta. Entrou no quar-

to que provavelmente era o da moça, tudo estava no lugar. Uma

estante com livros no canto esquerdo, a cama bem feita. Do lado

Page 81: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

80 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil

da estante, uma escrivaninha que tinha sido totalmente vascu-

lhada. Muitos papéis foram postos em cima da cama, entre eles

uma carta com o poema que ora se reproduz:

Morro, como as ondas da jiboia

nos pés das pedras-vidas.

Renasço como o dia,

reconstruindo.

Me refazendo

somente para ti, Sertão.

Mais uma vez,

o barro, vermelho sangue.

Sangue da terra

Sangue dos meus.

Quero de volta,

umedecer a pele

sentir o corpo pulsar

viver.

E mais uma vez.

Morrer!

Page 82: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

81Karen Campos

Essa carta foi encontrada junto aos papéis do jornalista, que

morreu no mesmo ano, três semanas depois de voltar da viagem.

A matéria não foi publicada. O Jornal do Commercio conside-

rou que o material encontrado era insuficiente e desinteressante.

Segue abaixo um dos relatos transcritos pelo jornalista Pedro

Simas Oliveira a respeito da noite na fogueira. Está datado de

21 de abril de 1946. Exatos 30 dias antes da morte do autor.

Nele, quatro moradores conversam.

Noite da Fogueira

Virgílio: Como dizia procês, era início do dia aqui mesmo,

nas redondezas de Sagarana, perto do riachinho, que a menina

Sara morreu de amor...

Enésio: Calma moço, cê tá contando tudo adiantado! Essa

estória correu sozinha todos os cantos dessa cidade. Era começo

do dia em Sagarana e o sol já cantava na cabeça da gente. O

galo berrava despertando quem tinha de despertar. A brisa fina

trazia o leve cheiro de mata fresca, recém moiada. As águas do

correguinho que passava lá embaixo, estava tudo quente, àquela

hora da manhã! O dia ia ser...

Virgílio: Mas cabra, cê demora por demais, desenro...

Page 83: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

82 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil

Enésio: Calma homi!.

Virgílio: Ia dizendo o quê?

Enésio: Que... Sara era o nome da moça, bonita até. De es-

trutura fina. Jeitosinha. E amava o meio irmão Homero. Moço

trabaiador, sabe? Morava com Sara, desde quando perdeu os

pais, num acidente, na Cachoeira das Jiboias. Mas essa é outra

história...

Virgílio: Meu Jesus... Só termina no raiá do dia!

Enésio: A moça tava lá, debruçada na janela, espiando o

moço no meio do pasto, que já cedinho tava tratando de arrumar

o carro de bois. Mais tarde naquele dia ia fazer uma entrega nos

meados de Arinos. Lá praquelas bandas. O dia tinha acabado

de clarear. Os bichos cantava um novo dia. Seu Lino, o pai de

Sara, decerto estava nas estradas, a caminho da cidade. Dona

Ema, mãe de Sara, parece que estava na cozinha, a modo de

preparar um lanche pro menino levar na viagem. Porém, cês não

sabe! Esse tal dia a moça Sara tinha separado para se confessar

ao moço. Um amor que guardava desdos tempos de menininha,

ainda debruçada na janela de sua casa miúda. Lembro que me

contaram que a moça estava lembrando de um tempo longe da-

quele. De quando eies dois passeavam nas beiras das veredas.

Page 84: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

83Karen Campos

“A noite estava escura como um prego”. A nuvem pesada, apro-

ximava deies. Até que pegou. Por ora, continuaram na chuva,

correndo. Aproveitando do lamaçal de terra, misturada com foia,

chuva... Mas logo voltaram pra casa tincando. Moço! Chegaram

lá com os coração nas mão. Sentaram na varanda coberta e lá

desataram uma conversação serena. Sem os dois dá conta, foram

chegando perto, e mais perto até que... Os pai de Sara chegaram

da cidade.

Virgílio: Bem se sabe que naquele dia eies se apaixonaram!

Enésio: Ara! Dá pra calar essa matraca, Virgílio?

Virgílio: Ôxe, volta pra estória, homi! Para de dá xingo n’eu.

Enésio: Aí, a moça se desbruçô da janela. Foi andando na di-

reção do moço Homero. Com os nervos tremósos, tanto quanto

podia se estar. Ninguém sabia o que aconteceu. Só o que se sabe

é que a moça tinha uma maldição.

Lena: Não entendi, Tio Enésio! Ela já morreu? Acabou a

estória?

Virgílio: Calma moça, que ainda tem chão pra andar!

Enésio: A menina Sara foi andando junto da cerca. E quan-

do chegou perto do moço bambeou e caiu durinha. Com corpo

rijo. Homero pegou a moça nos braços e levou de volta pra casa.

Page 85: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

84 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil

Na casa, a mãe andava pra cima e pra baixo. Não se sabia o que

fazer. Até que pediu pro moço pegar a carroça e buscar o pai e o

Dr. Emílio. E assim o moço fez. Cês carece de saber que a moça

tudo ouvia. Sentia tudo. Mas não podia mover nenhum lugar

do corpo. Não porque não queria! Não conseguia mesmo! O

pai de Sara chegou desmontado em lágrimas. Dr. Emílio tratou

logo de entrar e ver o acontecido. Ninguém acreditou que só

de olhar ele dissesse que a moça havia morrido. A própria quis

desmentir, mas não conseguia. O doutor examinou, daqui, dali,

e deu o veredito. Morta mesmo – era um mequetrefe. Nada se

sabia das coisas. Moço, Sagarana toda já sabia do acontecido.

Ô povo! Parece até que a notícia foi no vento! Dali a pouco, foi

chegando gente que nem se sabe donde. E depois de encher a

casinha, ficaram tudo debaixo das árvores. Cada pouco entrava

de vez em quando. De fato, não se fez conta da cabeçada de gen-

te que foi. Todos careciam de ver a bela moça, petrificada, igual

morta. Toda de branco. No centro da sala. O padre foi o último a

aparecer. Sisudo sempre. Para o gosto da mãe, anunciou o início

da leitura. Discursou um pequetito sermão, uma ave-maria, dois

padre-nosso. E foi, e ponto. O moço de tão abalado, coitado,

não teve sangue a modo de ficar ali. Subiu ao quarto da moça,

Page 86: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

85Karen Campos

antes de tudo. E lá ficou, vendo na espreita as nuvens negras for-

mando no longe do céu. Adiante. Da janela viu saindo primeiro

Seu Lino. Logo mais atrás, Dona Conceição. Os seis primos

mais chegados levando a moça. E chorou mais ainda. Desviou

os olhos. Logo tornou a olhar. A comitiva vinha atrás. Aquele

tanto de gente, entoando uma ladainha. Uma tristeza só... O sol

foi coberto. E a nuvem negra chegou, escurecendo tudo. Mas

chuva não se via ainda. Caminhada durou pouco. A casa deis era

perto do cemitério, ali embaixo, ocês passaram perto, vindo pra

cá! Não ouviram nada?

Lena: Não mesmo. Pra falar a verdade, não seria de meu gosto!

Enésio: Aí, disseram, não se sabe quem, que a moça Sara,

quando criança, teve um troço desse. Enquanto brincava, na es-

cola. E, no mesmo dia, o seu Doutor, das bandas de Paracatu,

daquelas beiradas de lá, examinou a menina e disse que ela tinha

uma probleminha, mas que era só ficar de zoio nela. A moça,

coitada, ficou apagada um tempão. E, quando chegou em casa,

nada contou pra mãe.

Lena: Quantos anos ela tinha, tio?

Enésio: Moça, ela era pequetita, de dez anos... Em casa, su-

biu direto ao quarto. Escreveu uma cartinha, como fazia todos

Page 87: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

86 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil

os dias. Nada se sabe o que tinha nela. A moça escrevia que só.

Dormia com os papéis. Destacou a cartinha do diarinho e pôs

dentro da fronha. O moço Homero, ainda na janela. Triste que

só ele. Ficou mais um tempo e saiu, deitou na cama da moça e...

Cês num sabe! Contaram que quando ele pôs a cabeça no tra-

vesseiro, ouviu o barulhinho. Era a carta. Pegou e leu... A comi-

tiva, naquelas altura, já tinha dispersado. Cada qual prum lado.

Disseram que a coitada ouvia o choro do povo. As lamúria toda.

Lena: Mas como, tio? Ela não estava morta!

Enésio: Moça, dá pra ouvir sem resmungar? Aí, quando che-

garam no cemitério, nunca se viu despedida mais rápida. Foi

saindo um, dois, três. Quando se viu, só tinha os pais da moça.

Sozinhos. Tiveram d’enterrar a fia! A moça viva, lá dentro, res-

pirava tão fino. Quase não usava o ar. Lá dentro sofria. Não sei

como souberam, só sei que se sabe que tentava mexer o corpo,

gritar, e nada. Ouvia o som agoniante da terra, caindo e caindo.

E nada se podendo fazer. A coitada só tentava, tentava. Em vão.

O moço depois de ler a carta enlouqueceu. Andou de lá a cá.

Virou. Mexeu no papel. Riu. Chorou. E saiu ticado. Aturdido.

Foi atrás da casa, pegou a enxada, e voltou a correr, mais ainda.

Page 88: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

87Karen Campos

Moço! O homi correu por demais! Chegando no pé do túmulo,

me parece...

Delina: Ô, Enésio, contando mentira pras visita de novo?

Enésio: Mentira uma merda, cê não tava com eu quando ouvi.

Delina: Nem era preciso! Gente, trouxe procês uns bolinho,

venham logo.

Virgílio: Deixa aí, muié, depois eis come!

Enésio: Então, gente, o moço Homero começou a cavar e

cavar... Aí logo Sara ouviu, menino, alguma coisa, e sentiu seu

corpo voltando aos poucos. Mexeu os dedos, e tudo foi voltando.

Aí a moça começou a se debater, gritar, e o moço ouviu. Moça!

Ele cavou o mais rápido possíve. Só que não adiantou muito não,

porque o barulho parou. E a moça morreu! A menina Sara tinha

dado seu último suspiro quando o moço abriu a cova... A dana-

da da chuva aproveitou a hora e desatinou a cair. Ali perdido, o

moço chorou, com a moça nos braços. E a noite ficou num escu-

ro que só vendo. Chuva caindo de jeito. Doía até lombo. Virava

e mexia um raio cortava o céu no meio. E o moço lá, caído no

chão. Aí, estava eu e a moçada em volta da fogueira, como hoje.

E, de repente, um vento frio passou, quase que apagando o fogo.

Deixou ele baixinho. Uma neblina veio chegando perto. Até que

Page 89: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

88 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil

ouvimos um som de lamento, que saía da mata de trás de nós,

igualzinho aqui. A diferença é que a casa ali acesa não tinha na-

queies tempos não. Moço! Um grito fino saiu da mata escura, e

de novo o vento frio, que dessa vez trouxe um papel plainando,

que caiu perto d’eu. Moço! Me meti num medo, mas fui espiar.

Pra quê? Quando peguei no danado do papel, tava escrito: De

Sara, para os meus queridos de Sagarana. Na hora senti um ar-

repio e taquei o troço pra queimar no fogo.

Page 90: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

89Valeska Angelo

Valeska Angelo

Dois irmãos

Parte I

Ninguém pode mandar no que é dele!

– a mulher do barco disse

A índia tinha olhos de mel

Enquanto o barco desliza

tem um homem sorrindo para as matas

lembrando da sua virgem

a indiazinha dos olhos sem nome

da cor do rio madeira

Ninguém manda no homem

que fincou algumas madeiras

na beira do rio

Ah! Rio de Janeiro, ainda és cidade maravilhosa?

Desbravo as serpentes do mundo

serpenteando o rio

olhando tudo

quatro crianças prematuras

Page 91: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

90 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil

e uma senhora caduca

em frente ao grande teatro

maior que a jiboia

que se entrelaça em meus braços

dentro da rede

Um salto entre as estrelas

e um encontro em ponta negra

Uma lua

Entre o cinza e o negro

mais negro que o índio Macunaíma

mais preto que as meias do menino

que acaba uma rima

na rede do pesqueiro

Caboclo da Terra

de facão na mão

que matou um peixe

no Rio Solimão

Page 92: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

91Valeska Angelo

Dois irmãos

Parte II

Entres as nuvens,

o inferno,

mais quente que o brega dessa gente,

se abre no horizonte

E nas matas

o mistério latente

entranhado

na raiz do solo sagrado

criado por entidade Tupi

Dessana

Criança santa

diz que gosta de mim

mas não me dá comida

Me sinto uma menina

A gente dessa terra

já conhece os botos

insetos

que sugam nosso sangue

Page 93: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

92 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil

enquanto um caboclo

dá o sangue pra cuidar do pulmão

Será que aqui o ar é mais puro?

Tão puras como essas crianças que

margeiam o rio

hoje a noite é breu

É Deus.

Page 94: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

93Valeska Angelo

Dois irmãos

Parte III

Aflita

um ser que aos poucos me devora

Piranha do rio negro

chega forte

e lasca a madeira que me cobre

O sol quente

as águas barrentas

a saudade

Nunca serei viajante

enquanto houver meus pais

me esperando na esperança

Hoje sonhei com asfalto

o asfalto onde jaz viva uma plantinha.

Dois irmãos

é o que eu tenho agora

e no dia da minha ida

e em toda a minha vida

Porque em toda cidade há igrejas?

Page 95: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

94 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil

Filhos e mais filhos

de tantos ribeirinhos

crentes na fé

carentes de quê?

A mesma carência escondida no asfalto

O suor é o mesmo

Procurando se livrar do sofrimento de ser o que sou

de ser quem sou

Nem no meio da mata

minha condição se afasta

As copas das árvores sussurram

Você é nada

Nada

Page 96: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

95Valeska Angelo

Dabucuri

Faço uma busca

Procuro destroços

Ouço o som das águas

E a queda de um barco

alavancado por um banzeiro

vai quebrar

vai partir ao meio

Da mesma forma que no céu negro

dentro da água escura

lembrei do meu nego

Estou debaixo da água

Um zumbido

Zumbi dos Palmares

Aqui ele é de cor parda

Ohhdabucuri!

Ohhdabucuri!

Seja bem vindo a Manaós

dançando pra celebrar sua chegada

Pode entrar

Dança do ventre

Gerada do ventre

Page 97: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

96 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil

Filha de algum Arigó

Bebeu leite da árvore

Seringueira

Nunca voltaram pra sua Terra Ceará.

Cortado pela linha do Equador

uma linha traçada na parede das casas

Dizendo até aonde a água chegou.

Por dentro das matas o que há?

Na margem ribeirinha

há uma mulher com uma dúzia de meninas.

Quero fugir

Próxima parada

Terra Arigóca

Lá eu vi gente cheia de vida

e um pouco soFrida

Lá nos galhos da castanheira

eu nunca me Kahlo.

No coração do meu Velho há um Porto

que serra as Madeiras

e me leva de novo

para as fronteiras de um povo

que ainda faz o mundo respirar

Page 98: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

97Thamires Bonifácio

Thamires Bonifácio

Terror à beira rio

Na cidade de Javé, no baixo Rio Madeira, muito se fala de um acon-

tecimento que até hoje aterroriza as famílias. Moradores relatam com

tristeza a morte trágica de Ana Lídia, uma cunhã muito bonita que

faleceu nas águas do Rio Madeira. Devido a esse fato, muitas pessoas

têm evitado nadar na região do acidente, já que em dado momento do

dia o rio se torna violento. A questão é que nem todos os moradores

sabem dessa informação, tampouco do acidente, por isso muitos tu-

ristas insistem em dar mergulhos, no entanto... Nem sempre voltam.

Numa tarde de domingo, um grupo de turistas oriundo de uma

cidade do interior teve como programação visitar o tal lugar. Já estava

tarde e resolveram então armar acampamento, acenderam uma foguei-

ra e montaram a barraca. Foi quando ouviram um choro que soava

como um miar desafinado. Todos ficaram em desespero, pegaram lan-

ternas e seguiram até o local de onde vinha o som.

O miado os levou até uma clareira rodeada de árvores, onde se

esconderam atrás de uma castanheira esperando ouvir o ruído nova-

mente. O medo era aparente na face de cada membro do grupo. Não

Page 99: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

98 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil

demorou muito e apareceu uma sombra que, em silêncio, deslizou seu

corpo sobre o tronco de uma árvore até sentar-se sobre suas raízes. Fi-

caram imóveis observando-a durante um tempo. Ansiosos para saber

o que de fato era, o grupo foi se aproximando. A verdade é que, a cada

passo dado, a angústia aumentava assustadoramente.

Com lanternas em punho, iluminaram o vulto que, sob a intensa

luz, fez reluzir o rosto de uma jovem. Estava muito ferida, seminua,

aparentando ter sido atacada. Assustados, resolveram levá-la ao acam-

pamento para cuidá-la melhor. Próximo ao meio-dia, todos estavam

apreensivos, mas felizes por terem salvado uma vida. Quando come-

çaram a servir o almoço, perceberam que a barraca estava sendo aberta

e dela saindo a jovem que eles tinham acabado de resgatar. Ela tinha

baixa estatura e muitas escoriações, mas ainda assim continuava bonita.

Ela sorriu para todos e, a partir desse gesto carinhoso e afirmativo,

foi convidada a se sentar com eles, iniciando assim uma longa con-

versa. A moça revelou que lembrava-se de pouca coisa. Afirmou que

enquanto estava em casa, sozinha, um vizinho invadiu a sua residência

e a atacou violentamente. Ela conseguiu se livrar e mesmo com muito

medo conseguiu fugir. No entanto, veio a se perder ao longo do cami-

nho. Como estava há horas caminhando e sem se alimentar, sofreu um

desmaio e quando acordou estava no acampamento.

Page 100: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

99Thamires Bonifácio

Todos se comoveram com a história. Mas como estavam muito

cansados, combinaram de ir à delegacia ao entardecer, depois que des-

cansassem um pouco. Horas depois, Carolina, uma integrante do gru-

po, acordou e se deu conta de que algo errado estava acontecendo. Ao

apalpar a cama ao lado, a encontrou vazia. A jovem que tinha sido salva

pelo grupo havia sumido.

Após horas caminhando pela beira do rio, Carolina avistou de lon-

ge a jovem ajoelhada diante da margem. As mãos estavam sob as águas,

sua palidez ainda era visível, mesmo com a pouca luz do entardecer, e

os cabelos lisos e negros cobriam seu rosto. Carolina ficou anestesiada

pelo horror ao ver a jovem vomitar pequenos peixes ainda vivos e hesi-

tou em chamá-la. Então, correu até o acampamento para pedir ajuda,

mas o tempo foi insuficiente.

Horas depois, já na madrugada, os amigos não tinham mais forças

para fazer orações. As equipes de busca e salvamento não davam mais

respostas. Caía uma forte chuva no local, os troncos desabavam nas

águas devido às fortes correntezas, o frio era intenso e todos desistiram

de esperar.

No dia seguinte, o grupo foi convidado a se apresentar na delega-

cia. Chegando lá, foram informados de que teriam que reconhecer um

corpo ou, pelo menos, o que restou dele. Ao verem as fotos, tiveram

Page 101: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

100 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil

certeza, era Carolina. Não fora um simples afogamento, depois das

buscas terem sido finalizadas, a polícia recebeu um chamado de pes-

cadores da região.

Quando chegaram ao local, se depararam com uma cena terrível.

Os peixes capturados tinham um enorme tamanho, o que costuma ser

fora do comum para aquela espécie de candiru, peixe típico da Amazô-

nia, e eles regurgitavam uma gordura amarela. Mais à frente, submerso

na beira do rio, se encontrava um corpo que claramente tinha servido

de alimento para os animais. Até então, o mistério fora resolvido, mas

onde estava a jovem resgatada?

Esta nunca foi encontrada, nem sequer seu nome as pessoas sa-

biam. Ela simplesmente desapareceu, mas a polícia informou que na-

quela semana não fora registrado nenhum desaparecimento.

O último caso que ocorreu nas mesmas circunstâncias foi o de Ana

Lídia, há alguns anos atrás. Também pouco se sabe sobre ela, tinha ca-

belos negros e sumiu de casa. Moradores disseram tê-la visto mergulhar

no rio com um vizinho. Seu corpo nunca foi encontrado e o vizinho

está foragido. Amigos e parentes da garota acreditam que seu fantasma

perambula na região e assusta banhistas, dizem que ela está em busca de

justiça. Mantenhamos expectativas. A polícia investiga a relação entre os

casos e, em nota, afirmou que o caso Ana Lídia será reaberto.

Page 102: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

101Juliana Lourenço

Juliana Lourenço

Os quatro gatos

Certa noite, vinham descendo as ladeiras do Reviver dois pares

de gatos. Um gato malhado de branco, preto e laranja, um preto, um

cinza bem peludo e um laranja. Tudo vira-lata. Alguns com cara de

gato de madame (o Preto, o Cinza e o Laranja; o Malhado não, esse

tinha cara de vira-lata mesmo). Apesar de ser o menos interessante à

simples vista, o Malhado era o mais malandro. O Cinza era vaidoso

demais com seus pelos e bigode. O Laranja já era largado e mais

camarada que o anterior. O Preto era desconfiado e falava pouco,

mas era gente boa; e o Malhado era o mais extrovertido, descolado.

Era vira-lata com muito orgulho e dizia que os da sua raça têm um

pouco de todas as raças felinas, por isso se achava sortudo. “Viva a

miscigenação!”, ele dizia. De fato, vira-lata tem um pouco de tudo:

o formato da cabeça de um, os pelos de outro, o rabo assim, as patas

tal, tudo num só gato.

Os quatro amigos felinos iam distraidamente descendo a ladeira

lado a lado na rua larga. Quem visse, acharia inusitado. Sempre an-

davam tarde da noite para passar despercebidos, mas não tão tarde

Page 103: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

102 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil

a ponto de perder a agitação da Praça Nauro Machado. Com todo

aquele molejo que só os gatos e os brasileiros têm, desciam as ruas,

viravam esquinas e brincavam entre si. Apesar de fazer de tudo para

não chamar a atenção (o que era difícil, visto que eram muito ba-

rulhentos), uma senhora que estava na janela (como todos os dias)

os viu passar e comentou com o marido que estava dentro de casa

entretido com o futebol. Com uma voz aguda, gritou:

– Olha lá, Zé, a raça mais vagabunda que existe: os gatos! Sem-

pre de telhado em telhado, nunca fazendo nada pra agradar Nosso

Senhor Jesus Cristo! Dera eu ser gata e ficar assim, de bobeira! – os

gatos perceberam que o comentário era sobre eles e riram alto.

– Minha Senhora – começou o Cinza – apenas estamos curtindo

as sete vidas que Deus nos deu de bom grado. Se Ele quisesse que tra-

balhássemos, nos tinha feito burros ou humanos, ou coisa do gênero.

– Imagine que gata gorda e feia ela seria! – disparou o Laranja.

As piadas continuavam e a robusta senhora negra ficava cada vez

mais constrangida e furiosa.

– Zé, olha o que esses gatos filhos da puta tão falando de mim! Cê

num vai fazer nada não?!

Em resposta, ouviu-se de dentro da casa uma voz alta e rouca:

“Quem mandou mexer com os gatos?! Agora cala a boca e me deixa

Page 104: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

103Juliana Lourenço

ver o jogo! Fecha essa janela!” Aos resmungos, a senhora entrou, mas

não sem antes mostrar o dedo do meio em riste para os gatos, que se

fingiram de ofendidos.

Virando a esquina, estava a Homero de Paz. Uma rua estreita com

casarões coloniais, altos, coloridos, com grandes janelas e portas, que

naquela hora da noite estavam fechadas. A rua fazia curvas suaves em

sua descida. A luz amarela que emanava dos postes lhe dava um ar

sombrio. Tudo parecia dormir ou jazer morto num leito amarelado.

Aquilo dava uma sensação estranha ao Cinza, que tentava tirar da

cabeça essa ideia mórbida. Logo se distraiu ao observar o parceiro

Laranja rasgando um saco de lixo por ter sentido um cheiro bom. O

Malhado olhava inquieto para o final da rua.

– Tô ouvindo passos... Tem alguém vindo.

Todos acompanharam seu olhar, esperando ansiosamente saber

quem virava a esquina. De repente, rompe-se no ar, lá embaixo, um

som de risadas. Eram os cachorros da vizinhança. Cinco grandes ca-

chorros, todos pitbulls muito mal encarados. O líder do bando se

chamava Brutos, um cachorro musculoso e esbelto. Bonito, o danado,

e mau. Tinha acabado de ganhar a cicatriz na cara que o deixara fa-

moso. Cicatriz que ia da testa passando pelo olho esquerdo. Brigou

feio com o líder anterior do bando. Disse que tinha se cansado de ser

Page 105: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

104 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil

subordinado e ia virar patrão, pois não tinha gênio para seguir ordens

de quem não sabia mandar. Estava de saco cheio de ver seus amigos

de bando sendo feitos de idiotas pelos gatos da vizinhança, decidiu

que isso mudaria quando tomasse posse.

Brutos ainda não tinha visto os gatos. Dois cachorros de cada

lado seu, e ele lá, no meio. Risonho e assustador como só um cachor-

ro com uma cicatriz gigante pode ser. Estavam bêbados e anima-

dos. Pareciam voltar do Reviver. “O negócio lá deve estar quente”,

comentou o Malhado, meio fora de contexto, por puro nervosismo.

Sentia o coração bater forte, num ritmo confuso e descompassado; a

frieza nas patas e a cabeça a fervilhar. Os amigos o olhavam nervosos

esperando uma reação. Nada.

– Puta merda, se virem a gente, vai dar encrenca! – disse o Laran-

ja, com a cara toda suja de molho.

– A noite tá bonita e boa demais para terminar com a gente apa-

nhando deles. Vamos passar batidos, correr o máximo que der. Acho

que em pelo menos duas quadras, eles deixam a gente em paz.

– Duas quadras? Malhado, duas quadras é demais! Quanto seria

isso em quilômetros? Ou melhor, quanto seria isso em ruas? – disse

o Laranja em protesto.

– Seriam umas cinco ruas contando com essa – ele falou obser-

Page 106: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

105Juliana Lourenço

vando os cachorros subindo a rua sem os notar devido à evidente

embriaguez.

– Olha, eu estou a favor do Laranja – disse o Cinza que estava

cagado de medo.

De fato, eram cachorros bem grandes e nada amigáveis àqueles que

andavam por aquelas bandas. E a última coisa que aquela matilha queria

era topar com gatos arruaceiros que desciam das ruas de cima fazendo

baderna. Os gatos das ruas de cima nunca se deram com os cachorros

daquela região, mas aqueles quatro camaradas tinham histórias com tais

caninos, ou melhor, tinham diploma em fazer os coitados de otários.

O plano dos gatos parecia bom, e mais, que daria certo. Mas se

desse, não haveria história pra contar. Claro que deu errado. Quando

os cachorros chegaram no meio da rua, viram os gatos e ficou um

clima de “o que esses malditos estão fazendo aqui?”. Já, por parte

dos gatos, a sensação foi “pronto, danou-se!”. Os cachorros pareciam

não acreditar que os gatos tiveram a audácia de aparecer por aquelas

bandas, “a área deles”. Os gatos, por sua vez, estavam paralisados de

medo, sem ação e sem ter o que fazer senão correr (loucamente).

– Malhado, não tem outro jeito? – perguntou o Cinza com um

nervosismo notável.

– Não – disse o gato com o rosto impassível.

Page 107: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

106 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil

E de fato não tinha. A rua, apesar de longa, era estreita. Não era

possível escalar e nem entrar nos casarões, já que estavam completa-

mente trancados. Não havia qualquer espaço em que os gatos pudes-

sem se esconder. Os casarios eram todos coladinhos. A única via de

fuga estava bloqueada pelos cachorros.

Apesar do medo, o Preto foi o primeiro a correr. Ele deu o ponta-

pé em direção ao final da rua. Todos ficaram surpresos em ver aque-

le vulto preto avançando com tamanha velocidade. Era difícil até de

acompanhá-lo com os olhos de tão rápido que fugiu. Laranja disparou

logo depois, seguido pelo Malhado, e o Cinza foi o último. Ele não

corria bem. Era gato, mas não era ágil. Muitas vezes se questionava se

era de fato gato, pois suas habilidades de felino eram tão limitadas...

“Você só precisa fazer mais exercícios, praticar mais seus pulos e sua

corrida”, diziam os amigos do bando. Ele não dava ouvidos. Nasceu

mesmo para ficar no conforto de um bom lar, não nas ruas correndo

de cachorros babões e ranzinzas. Corria o mais rápido que suas patas

podiam aguentar. “Até que estou indo bem”, pensou. Não estava. O

braço-direito de Brutos, Hérico, estava bem atrás dele pronto para pe-

gá-lo quando ele cansasse, o que logo-logo iria acontecer.

Malhado era o único que segurava um pouco a corrida, saben-

do da limitação do amigo sedentário. Preto parecia um relâmpago.

Page 108: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

107Juliana Lourenço

Cinza seguia o Malhado, que seguia o Laranja, que seguia o Preto

que, à frente, mostrava o caminho conforme as ruas surgiam. Nem

sabia mais onde estava. Olhava as ruas apavorado à procura de uma

localização. “Que diabo de rua é essa? Que beco é aquele? Pra onde

leva? Preciso de uma localização urgente!”, pensava com seus botões.

Preto foi subindo uma rua íngreme, sem suspeitar de que lugar era

aquele. No topo, alcançou uma praça que ficava no ponto mais alto

do Centro Histórico.

A Praça Alto Bragança era vazia. Não era uma área nobre, mas era

contemplada com algo que quanto mais perto do centro, mais se per-

dia: a tranquilidade. Tinha mesas daquelas em que os senhores jogam

xadrez ou dama nas tardes mornas. Bancos de madeira com os pés

pintados de verde escuro mostravam não serem novos, mas bem pre-

servados, o que permitia que as senhorinhas sentassem para conversar

sobre as futilidades diárias durante os crepúsculos quentes. Os postes

foram calculadamente postos ao redor da pracinha circular e perto das

ruas, de modo a iluminar tanto a praça quanto o seu entorno.

A “pracinha de cima” (como era chamada), apesar do diminutivo, era

na verdade o oposto. O que tornava aquele lugar especial era o que havia

no meio dele. No seu coração estava uma enorme árvore de Pau-Ferro

que ninguém sabia dizer como ou quando, mas cresceu forte e frondosa

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108 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil

bem ali. Diziam que antes de tudo aquilo se tornar uma grande ladeira,

a árvore podia ser avistada de longe no topo do morro. Quando o sol se

retirava para brilhar em outros cantos, deixava escorrer lentamente seus

raios por detrás dos telhados coloniais das casas antigas. A descida dos

raios produzia uma visão quase mágica da copa verde e alta da árvore,

iluminando cada folhinha de seus galhos. O vento as balançava, fazendo

as folhas farfalharem sobre os que se refrescavam debaixo delas.

No entanto, naquela ocasião em que os gatos corriam perigo, o

frondoso Pau-Ferro era apenas uma árvore enorme no meio de uma

praça vazia. Devido ao tamanho e à grande quantidade de folhas e

galhos, a luz não penetrava no interior da árvore, dando a ela um ar

de “assombrada”. Preto passou batido pela árvore, mas chegou a ver

o Laranja correr sobre ela na vertical e desaparecer dentro da copa

quase sem movê-la. Na mesma direção que a árvore estava, havia

uma rua. O gato seguiu direto e sumiu descendo a rua. O Malhado o

seguiu, mas não o Cinza.

O Cinza ficou atrás com Hérico no seu encalço. Ele estava longe

do restante do grupo, não fazia ideia de onde ir e perdeu os com-

panheiros de vista. Seguiu seus instintos, e estes (erroneamente) o

levaram para a rua da esquerda. Mas ele continuou a plenos pulmões

pensando consigo mesmo “esse cão não se cansa?”. Tudo que passava

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109Juliana Lourenço

na cabeça do seu adversário era como apertar o pescoço gordo do

gato com a mandíbula, quando o pegasse.

Depois de um tempo, a sensação de que não aguentaria por muito

mais dominou-o. Cinza estava exausto e Hérico poderia estar também,

mas a exaustão não abalava seus músculos. Ele corria atrás do Cinza com a

língua grande e rosada para fora, tentando pegar o máximo de ar possível.

Tudo o que ambos ouviam eram as próprias respirações ofegantes e o bati-

mento forte dos corações cansados como um tambor contra os tímpanos.

A pressão fazia suas cabeças latejarem, os corpos pareciam em chamas.

Mas Cinza preferia correr a descobrir o que aconteceria se parasse. A rua

descia até onde a visão permitia. Estava quieta, toda a gente dormindo. De

repente, sem saber de onde, Hérico tirou fôlego para gritar.

– Rapaz! Ei, gato! Espero que esteja me ouvindo, – sentia a gar-

ganta queimar e a voz falhar – pois tô que não aguento mais. Faz

favor, vamos fazer um acordo.

Cinza estava muito assustado para dar ouvidos. “Não confio nos

da sua raça! Não tem acordo nenhum!”

– Nem eu na sua, rapaz! Mas vamos, me deixe lhe propor algo.

– Te ouço...

– Que tal desistirmos disso? Eu posso dizer pros meus compa-

nheiros que te matei e você e os da tua laia somem de lá.

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110 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil

– Não te creio... – aquilo parecia muito suspeito para ele, nunca

soubera de nenhum cachorro querendo fazer acordo com um gato.

– Olha, você está mesmo me irritando, mas eu estou tão exausto

que deixo de lado minha raiva só para poder ir para casa. Estou mui-

to bêbado, meu estômago está dando voltas, minha cabeça rodando,

meus olhos estão quase fechando, eu preciso dormir, comer algo. Es-

tou quase desmaiando e sei que você também. Vamos parar.

– Sei não...

– Então se você não quer trégua, mesmo que você escape de mim,

uma marca eu vou deixar, um pedaço do rabo faltando, uma pata

quebrada, um osso exposto. Garanto, não serei gentil quando eu te

pegar! – Aquilo fez o Cinza engolir a seco. Sentiu-se mole como

quem vai desmaiar e deixar as forças se esvaírem.

Os dois seguiram em marcha lenta e chegaram ao cais. Estava escuro,

a não ser por uma lâmpada que pendia num poste velho. A cena parecia

final de filme de terror onde o mocinho foge do monstro. O gato não

tinha para onde fugir. O Cais das Dores era apenas uma ponte onde em-

barcações de todos os tamanhos ficavam amarradas em volta. Naquela

noite, tudo o que se podia ver eram as águas escuras, frias e salgadas do

mar. Cinza foi correndo até o final da ponte sem notar que esta acabaria

e ele daria com a água. Quando notou, conteve os passos, mas o cachorro

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111Juliana Lourenço

vinha logo atrás enlouquecido. Ou ele pulava, ou era abocanhado. Ele

não sabia nadar, Hérico sim. Com certeza morreria afogado. Que pobre

fim, não? Depois de tudo isso, morrer afogado. Depois de pensar por

um minuto, pulou. Sentiu a água gelada entrar-lhe pelas narinas e pela

boca sufocando-o. Sentiu-se pesado dentro d’água, como um saco de

batatas afundando. Com dificuldade extrema, tentou por a cabeça para

fora d’água, em vão. Bateu as patas tentando nadar, mas não servia. Viu

o cachorro no cais olhando-o se afogar com um sorriso malicioso no fo-

cinho. Depois de muito se debater, desistiu. Afundou solto, permitindo

o corpo tragar a água para os pulmões na procura por ar.

Sobre a ponte, Hérico olhava satisfeito o inimigo parar de se de-

bater. Soltou uma gargalhada alta e deu meia-volta, ansioso para avi-

sar os companheiros que pelo menos um tinha ido. Faltavam três.

Os dois gatos chegaram no Reviver fazendo a maior bagunça. O

lugar estava cheio, havia pessoas dançando, música ao vivo e muitas

mesas de bares nas calçadas. Quando os dois gatos passaram corren-

do e pulando em todos os lugares que podiam, seguidos por quatro

pittbuls que faziam o mesmo, o caos foi total. Era mesa pra lá, gen-

te caindo pra cá, bebidas ali, pessoas xingando aqui. Os gatos eram

muito rápidos e, por serem menores, não eram tão vistos, ao contrá-

rio dos cachorros que eram maiores e mais barulhentos (latiam his-

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112 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil

tericamente). Era um alvoroço só. Quando as pessoas os viam derru-

bando a mesa e as bebidas, ou elas próprias, batiam neles. Chutavam

com força, acompanhando os chutes com ofensas.

Os gatos cruzaram um grupo de rapazes que já estavam para lá

de altos, mas neles só roçaram os rabos. Os moços olharam os vultos

passarem por suas canelas e riram, mas quando foi a vez dos ca-

chorros passarem querendo pegar os gatos, não acharam graça. Os

dois gatos subiram em uma árvore alta que ali estava e negaram-se

a descer. Os cães se puseram ao redor da árvore, latindo para que os

gatos se rendessem. Os rapazes da mesa foram atrás dos pittbuls co-

brar satisfação. Um rapaz alto, de cabelos cacheados, ombros largos e

rosto comprido tomou a frente dizendo:

– Seu cachorro idiota, você derrubou minha bebida! – falou alto,

para todos ouvirem. Falou cuspindo, estava bêbado.

– Não se mete! – respondeu Brutos rosnando.

– Me meto sim! Você me deve uma bebida e vai me pagar, ou vai

ver só!

Nesse instante, o cão se afastou da árvore, deixando os amigos de

olho nos gatos e foi em direção ao rapaz ousado para olhar bem no

rosto dele. Era visível que o guri não tinha medo do bicho. Enquanto

Brutos se aproximava, ele não deu um passo para trás, nem tirou os

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113Juliana Lourenço

olhos dele. Talvez fosse a bebida que o deixasse corajoso, mas nos

seus olhos havia um brilho lúcido.

– Você sabe com quem está falando? – perguntou Brutos em tom

ameaçador.

– Sim, com um saco de pulgas que se acha melhor do que eu.

– Não me chame assim, já matei um por muito menos que isso.

– Não tenho medo de você.

– Vejo que não.

Brutos foi com tudo abocanhar a perna do rapaz, mas este foi

mais rápido e chutou com força a boca aberta do cão, que caiu de

lado com a boca sangrando e dois dentes a menos. Sem esperar, o

garoto partiu pra cima do cão, que ainda estava se recuperando do

chute bem dado. Chutou-o mais seis vezes em vários lugares dife-

rentes. Para finalizar com chave de ouro, deu outro no focinho. Seus

companheiros, no primeiro chute, já tinham abandonado o líder, que

ficou sozinho caído no chão inconsciente. Os gatos surpresos e as-

sustados ainda estavam na árvore sem acreditar na cena.

Desceram desconfiados, ainda mais o Preto que, pelo fato de sua

coloração, sofria preconceito devido à superstição do povo. Aos pou-

cos o ambiente foi se acalmando. Os gatos saíram de coitadinhos e

ganharam mimos daquela gente inocente. Dali a pouco, chegou o

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114 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil

Laranja que, depois de se safar um tempo na árvore, quis saber dos

amigos e seguiu seus rastos. Quando o sol estava anunciando sua

vinda, deixando o céu rosado, e todos estavam cansados e indo para

casa, os três parceiros se jogaram na calçada e puseram-se a recordar

como tinha sido a noite.

– Meu Deus, que noite foi essa? – comentou o Laranja, pensando

na corrida louca que dera.

Os amigos limitaram-se a concordar com a cabeça. Ficaram em

silêncio durante um tempo.

– E o Cinza? – disse o Malhado que, como um lampejo, lembrou

da imagem do companheiro ruim de briga e de corrida.

– Ele não estava atrás da gente? Deveria estar aqui! – falou o Preto.

– Pois é! A última vez que o vi ele estava logo atrás de mim! Que

belos amigos somos, deixamos o gordo sem auxílio. Quem sabe onde

ele está agora?

– Aqui! – gritou o Cinza saindo detrás de um poste e causando

um enorme susto na gataria. Preto chegou a soltar um berro, para o

prazer de Cinza que seguia os amigos há um tempinho, com o plano

de assustá-los.

Ainda eletrizado, contou como as coisas se sucederam naquela noi-

te. Depois que Hérico foi embora, um senhor que morava ali perto do

Page 116: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

115Juliana Lourenço

cais, numa casinha sobre palafitas, ouviu o barulho de algo se batendo.

Cinza já estava inconsciente quando foi retirado da água fria. Seu An-

tônio e sua senhora cuidaram do gato que passou o resto da noite lá,

recuperando-se. O velho contou que seus filhos, já crescidos, moravam

em lugares muito melhores que aquela casinha pobre e que, quando

insistiam em querer tirá-lo dali, ele respondia “Não, eu sou uma árvore

e aqui minha raiz se fixou.”. Era um homem estudado e inteligente,

apesar de extremamente humilde. Cinza aceitou um pote de leite e

se mandou. Chegou ao Reviver cheirando os rastros dos cães e gatos,

pedindo informação aos bêbados e a outras pessoas que naquela hora

do dia se dispersavam de volta a suas casas.

Cansados, os companheiros se despediram e cada qual foi catar

seu pedaço de chão para dormir. Antes de sumir na esquina, Cin-

za escutou o Malhado chamar-lhe e virou com os olhos amarelos e

grandes brilhando.

– Amanhã tem Tambor de Crioula, meu velho! Acho justo irmos

pra bagunçar mais um pouco.

Na noite seguinte, voltariam à sua rotina de eventos imprevisíveis.

Aquela sim, foi uma noite... Mas essa é outra história.

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116 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil

Gabriel Mação

O Mbaêtata

Foi na madrugada do terceiro dia que tudo parou. Eu pensei que

seria legal, é verdade. No primeiro dia foi encantador, todo o verde, o

céu de várias cores, o rio imenso que parecia café com leite. Mas após

três dias no barco, tudo parecia chato, nada mais era novidade. O que

eu queria mesmo era um momento de aventura, que algo acontecesse

e fizesse com que todos pulassem de suas redes. E então, na madru-

gada, ninguém esperava por isso: as luzes se apagaram e o barco pa-

rou de navegar. A maioria das pessoas estava dormindo. Eu levantei

da minha rede e fui até cada um dos meus amigos, companheiros de

viagem. A luz do celular me ajudou a chegar até eles. Valeska, a poe-

sia ambulante, estava dormindo de boca aberta, como sempre, e nem

percebeu o acontecido. Ela tem uma enorme facilidade de escrever

poemas, por isso a chamo assim, poesia ambulante.

Douglas estava acordado e mergulhava cada vez mais fundo em

uma empolgada conversa com as senhoras da República Dominica-

na. Esse menino já conhecia metade dos tripulantes no primeiro dia

da viagem.

Page 118: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

117Gabriel Mação

Chegou a vez de Alice, a capitã do grupo. Quando me aproximei,

pensei que estava acordada, mas dormia com uma máscara nos olhos,

que imitava os enormes olhos abertos de Carmen Miranda. Quase

morri de susto.

Havia ainda Fabrícia, “a mais corajosa do grupo”, mas me lembrei

que ela fora para o camarote, com medo dos insetos do Rio Madei-

ra. Só restava Thamires, que estava acordada com a cara emburrada.

Aproximei-me e perguntei:

– O que houve? Que cara é essa?

– Essa mulher aqui do lado não me deixa dormir, fica se debaten-

do igual um peixe boi – respondeu com uma cara...

Perguntei se ela sabia o que havia acontecido com o barco que

estava encostado na margem do rio. Thamires começou a andar até a

frente do barco e disse que ia perguntar ao capitão o porquê do barco

estar parado e da luz ter acabado.

– O combustível acabou, vamos ter que ficar de bubuia até ama-

nhã de manhã, quando um barquinho chega com gasolina – disse o

capitão com sotaque amazonense.

A hora demorava a passar, já eram duas da manhã e ficamos en-

costados na mureta do barco, Thamires e eu, admirando a escuridão

da floresta que nos cercava. A madrugada estava sem estrelas e o

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118 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil

único som era dos grilos que pareciam dar um baile de tão alto que

gritavam:

- Cricri, cricri, cricri...

Depois de um tempo ali parados, vimos uma luz meio alaranjada

que passou no meio da escuridão, na floresta. Foi como um reflexo

por entre as árvores. Thamires e eu nos entreolhamos com cara de

curiosidade e susto.

– Você viu aquilo? – perguntou ela.

– Claro que vi!

Ela caminhou para perto da escada que levava para a parte debai-

xo do barco.

– Onde você vai?

– Será que tem alguma possibilidade da gente ir atrás daquela

coisa?

Demorei um pouco para raciocinar. O que ela havia proposto?

Ela pensa que é Indiana Jones ou o quê pra sair entrando na floresta

atrás de uma luz voadora? Eu sei que não era algo comum, uma luz

muito diferente, parecia fogo, não era muito pequena a ponto de ser

um vagalume, mas também não era tão grande para ser um disco

voador.

– Thamires, você ficou louca? Não podemos descer do barco e sair

Page 120: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

119Gabriel Mação

pela floresta, ainda mais a uma hora dessas.

– Eu sei que é arriscado, Gabriel, mas também sei que você está

louco por uma aventura, assim como eu, não é verdade?

– Bom, isso é verdade. Realmente não aguento mais o tédio neste

barco, já são três dias sem fazer nada, só vento, mato e água.

– Então, o que você está esperando? Vamos logo lá embaixo!

É... Ela me convenceu e lá fomos nós descendo as escadas com

cuidado para não fazer barulho. Por alguns instantes, não pude acre-

ditar no que estávamos fazendo, descer do barco a uma hora daquelas

seria a última coisa que eu faria, ainda mais no meio da Amazônia.

Era hora de pular para fora do barco.

– Você primeiro – disse Thamires.

–De jeito nenhum, primeiro as damas.

– Seu medroso!

Ploft! E lá se foi ela.

– Espere por mim!

Ploft! Consegui pular.

O mato estava molhado e em nossa frente não se via nada além

da escuridão.

– Thamires, você troxe a lanterna?

– Sim, a lanterna do celular.

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120 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil

Click!

– Agora sim consigo ver alguma coisa.

À nossa frente algumas árvores bem altas pareciam muralhas,

e os grilos continuavam a fazer barulho. Começamos a andar para

dentro da mata.

– Pra onde será que aquela coisa foi?

– Não sei, Thamires. Acho que foi pra esquerda.

No caminho conversávamos baixinho sobre o que poderia ser a

luz que vimos:

– Será que foi o Curupira? – perguntei.

– Claro que não, Gabriel! Isso é só uma lenda.

– Ah, pode ser verdade, tanta gente fala nele. Talvez a Caipora ou

a Mãe-de-Ouro.

– Mãe-de-Ouro?! – perguntou Thamires com dois tons de sur-

presa a mais na voz.

– Sim, você nunca ouviu falar dela? Diz a lenda que a Mãe-de

-Ouro é uma mulher que se transforma em bola de fogo e fica voan-

do perto das jazidas de ouro para protegê-las dos ladrões – respondi

com um tom de erudição improvisada.

– Mas tem ouro por aqui?

– Não sei, talvez tenha. Mas e se for a Mula-Sem-Cabeça?

Page 122: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

121Gabriel Mação

– Uma mulher que transou com um padre? Por que não foi o

padre quem virou mula?

– Ah, você sabe. Na época em que a lenda foi criada, a igreja cató-

lica dominava a população e o padre era uma espécie de santo. Então,

se alguém estava errado, com certeza não era a igreja – expliquei

para ela.

– Caipora, Curupira, Mãe-de-Ouro, Mula-Sem-Cabeça... O que

mais poderia ser a coisa que avistamos?

– MBAÊTATA! – disse uma voz grave e rouca atrás de nós.

– Ah...! Quem disse isso? – gritou Thamires.

– Desculpa ter assustado vocês - respondeu um homem alto e

moreno.

– Quem é o senhor? – perguntei.

– Rogério, moro ali na frente, numa casa perto do rio. E vocês ? O

que estão fazendo aqui?

– O combustível do nosso barco acabou, ficamos encostados ali na

margem. Aí vimos uma luz passar na floresta e resolvemos segui-la -

respondeu Thamires.

– Mas o que o senhor disse? Bata... – indaguei com curiosidade.

– Eu disse Mbaêtata.

– E o que é isso?

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122 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil

– Isso é a coisa que vocês viram. Mbaêtata é uma cobra maceta, no

lugar dos olhos tem duas bolas de fogo.

– O senhor está falando sério?

– Mas é claro, meu jovem! O que você acha que eu ia estar fazen-

do aqui fora a uma hora dessas?

Seu Rogério mostrou a espingarda.

– Pra que o senhor está atrás do Mbaêtata?

– Meus jovens, esse monstro está acabando com as minhas ga-

linhas. Só essa semana já se foram oito delas. Sem falar que se eu

capturar o bicho vou conseguir uma boa grana e ficar bem famoso

aqui no Amazonas.

– Thamires – comecei a falar – acho que já está na hora de voltar-

mos pro barco.

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123Thainar Xavier

Thainar Xavier

O homem do coração de pedra

O sol estava a pino quando Alberto Onofre Ferreira da Concei-

ção, ou Dr. Onofre, como gostava de ser chamado por seus colegas do

Supremo Tribunal, caminhava em direção às Cataratas dos Couros.

O grupo de turistas à sua volta estava em êxtase, com unânimes ex-

pressões de contentamento e admiração diante da paisagem.

Pela trilha, uma pequena estrada de terra com pedras escorrega-

dias, a principal atração era a mata e a estranha fauna do cerrado.

Araras azuis voavam em direção ao infinito e as montanhas acen-

diam com os raios solares. Na chegada à nascente dos Couros, a água

translúcida formava uma piscina que escorregava por uma abertura e

despencava pelo paredão.

Onofre detestava tudo isso. Odiava ter que estar debaixo do sol

escaldante, odiava estar suando feito porco, odiava ter que sorrir para

essa gente. Aliás, ele não gostava de gente. A descida até a prainha foi

a mais sacrificante. Seu coração de pedra pesava mais de dez quilos.

Onofre se arrastava pelo caminho, humilhado. “Vou matar a Lucie-

the!”, pensou. “O que ela tem na cabeça? Sabe muito bem que eu

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124 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil

odeio essa coisa de natureza, por mim isso aqui já tinha se tornado

um condomínio de luxo!”

– Seu Onofre, tá tudo bem aí? – perguntou o guia.

Ele deu um breve aceno com a cabeça, com ar enfurecido, disfar-

çando um risinho no canto da boca. Nada iria atrapalhar seus planos.

Respirou fundo e prosseguiu. Depois de longos minutos, chegaram

até a segunda parte dos Couros. Uma enorme poça, rodeada de ro-

chas esculpidas pela força da água. O rio tinha um aspecto tranquilo,

mas sua correnteza parecia pronta para levar a alma dos marinheiros

de primeira viagem.

Os lábios de Onofre se curvaram num sorriso lúgubre. Eis o lugar

perfeito! Diminuiu o ritmo, deixando-se ficar para trás, e esperou até

que aquele terrível grupo de gente feliz desaparecesse de sua visão.

Retirou o par de tênis italiano que comprara recentemente, ajeitou-o

num canto perto de uma pedra, ao lado de sua pochete de couro pre-

ta e o bilhete que escrevera previamente para esta ocasião.

Onofre caminhou vagarosamente pelo rio, tomando cuidado para

não escorregar. Embora o clima continuasse quente, seu corpo já não

transpirava tanto. Seu coração fazia que ia explodir. Pesava, puxava

os ombros para dentro. Tinha de fazer um esforço tremendo. De

repente, seu corpo estremeceu diante da imagem mais terrivelmente

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125Thainar Xavier

bela que já tinha visto. O rio desembocava num grande desfiladeiro.

“Deve ter pra lá de 20 metros. Isso é ótimo, será uma morte e

tanto. Já vejo a notícia nos principais jornais de Brasília, aqueles abu-

tres abomináveis! Espero que na eternidade eu não tenha que olhar

pra cara de nenhum deles. Aliás, quando eu me for, vou assombrar

minha ex-mulher pra sempre, aquela salafrária, ainda bem que não

vai herdar nada!”

A ideia de que a ex-mulher ficaria pobre lhe causou uma crise de

risos. Onofre ria fino e desritmado.

“Onofre, acalme-se. Você precisa se concentrar, talvez fosse bom

pensar em algumas últimas palavras. Uma oração talvez fosse pru-

dente nesta hora, afinal, você foi batizado. Então vamos lá, deve ser

fácil fazer isso... Rezar. Pai nosso que estais no céu...”

Seus olhos se abriram imediatamente. Sentia que não estava sozi-

nho, havia alguém se aproximando.

“Droga! Nem na hora da morte essas pessoas me deixam em paz!”

Ao se virar, tudo o que viu foi uma garotinha, que o encarava com

grandes olhos. Ergueu as sobrancelhas e resmungou alguma coisa

que parecia um xingamento. A menina não podia ouvir, estava dis-

tante, mas seu olhar de curiosidade lhe chamara a atenção. Por um

instante, Onofre sentiu que a menina sabia de tudo.

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126 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil

A menininha continuava parada na areia quando o guia chegou

com o grupo de turistas. Um homem parou ao lado dela e acompa-

nhou a direção do seu olhar.

Onofre se resignou a responder o cumprimento do homem, bu-

fando. “Tenho que esperar esse povo ir embora, não posso executar

meu plano na frente deles.”

O grupo resolveu dar uma pausa para o lanche. O guia, que apa-

rentava ser o pai da menina, era alto, magro e tinha os cabelos longos

em trança. A menininha mostrava o mesmo nariz e tamanho dos

olhos. Sua pele, da cor de canela, tinha um brilho dourado que ilu-

minava seu rostinho redondo. Ela piscou profundamente, querendo

enxergar melhor na claridade e buscar novamente o paradeiro de

Onofre. Avistando-o, sentou ao seu lado na beira do rio e lhe ofere-

ceu seu melhor sorriso.

– Oi – disse a menina timidamente.

– Olá – resmungou Onofre depois de um tempo, sem desviar o

olhar da cachoeira.

A garota não deixava de mirar o peito de Onofre. Tentava disfarçar,

mas sua curiosidade era maior. Volta e meia olhava para o rio, mas logo

retornava sua atenção para Onofre, pensando no que iria falar.

– Qual o seu nome?

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127Thainar Xavier

– Não tenho nome – Onofre bufou, rabugento.

– O meu é Marguelli! O senhor é médico?

– Não, sou procurador da República.

– O que um procurador da República faz?

– Bom, eu... Isso não interessa, não é assunto pra criança.

Os dois ficaram em silêncio. A garota olhava para o rio e Onofre

praguejava mentalmente por ter que conversar com uma criança.

– Você tem quantos anos?

– Digamos que eu já fiz muitos aniversários.

– Eu já fiz dez aniversários – disse Marguelli empolgada, contan-

do os dedinhos das mãos.

“Aniversários demais”. Ele sentiu um leve rubor de irritação, que-

ria que aquela gente fosse logo embora, queria ficar sozinho e fazer

logo o que precisava.

– Por que o seu coração é assim?

Onofre sentiu como se tivesse levado um soco no estômago, a

menina lhe pegara tão desprevenido que começou a tossir, fingindo

um engasgo. Mas a falta de ar era verdadeira, sua garganta ardia e

sua cabeça latejava. Levantou-se depressa, pegou suas coisas e fugiu.

Correu toda a trilha com as mãos no peito, suportando o coração.

Naquele final de tarde, Onofre não conseguiu dormir depois do

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128 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil

pesadelo que o invadiu. Sonhara que seu coração engolia seu corpo,

transformando-o numa estátua de pedra. À noitinha, enquanto vi-

rava de um lado para o outro naquela cama barata, o telefone tocou.

Era sua irmã. Ele hesitou em atendê-la, mas as badaladas insistentes

do celular acabaram vencendo-o:

– E aí maninho, curtindo a viagem?

– Claro que não.

– POR QUÊ?! Você está num lugar MARAVILHOSO! – A voz

cheia de vida da irmã piorava a enxaqueca que lhe atormentava.

– Você sabe que eu não gosto de sair de casa, ainda mais para ficar

na natureza.

– Bebeto, deixe de ser mal humorado! Te dei essa viagem de pre-

sente, pra você relaxar.

– Eu não estou nem um pouco relaxado, Luciethe!

– Olha, por que você não dá uma volta, pensa um pouco na vida,

quem sabe até arruma uma namorada, você tá precisando.

Onofre desligou o telefone, não suportava mais a voz da irmã. Não

suportava o cheiro de mofo daquele quarto misturado com incenso

barato, precisava beber, precisava de um uísque escocês. Resolveu sair.

A lua iluminava a pequena cidade de Alto Paraíso, dando ao lugar

uma aura mística. Pelas ruas, jovens e velhos barbudos, hippongas do

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129Thainar Xavier

melhor grau passeavam com seus cachorros de estimação. Os bares

estavam lotados de turistas eufóricos, mas os restaurantes quase to-

dos fechados.

Onofre procurou por seu uísque em cada bar, tudo que encontrava

era vinho e cerveja de má qualidade. Sentiu o estômago reclamar e se

deu conta de que não comia desde o café da manhã.

Foi até a lanchonete em frente à pracinha, deu uma olhada rápida

no cardápio, não gostou de nada. A atendente bonitinha, impaciente

com sua demora, sugeriu tapioca com pequi. Na falta de um sanduí-

che de mozzarella de búfalo com tomate seco, e simpático à beleza da

moça, acabou aceitando. Não conseguia parar de pensar na pergunta

que a garotinha fizera. “Por que o seu coração é assim?” Como ela

sabia? Estaria seu coração ficando aparente? Encarou seu peitoral no

espelho do bar. Enquanto afundava em pensamentos, a tapioca lhe

foi servida. Ele deu uma mordida despretensiosa e até que gostou,

“sabor estranho, certamente nobre”.

Com a barriga cheia, começava a achar que Alto Paraíso não era

de todo ruim, havia algo de agradável naquele lugar, talvez fosse a lua

cheia ou talvez tivessem colocado alguma coisa na tapioca. Onofre

não sabia... Mas a sensação era de paz. Seu coração ficara mais leve,

ele achou quase inacreditável. Por um instante uma faísca de espe-

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130 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil

rança se acendeu em seus olhos. Poderia haver uma cura para este

mal? Ele esboçava um leve sorriso, quando topou com um jovem alto,

moreno, meio sujo, que trazia enormes alargadores nas orelhas.

– Boa noite, txai. Tô sentindo uma vibração em você, shazam! Pô,

compra um cristal aí, pra dar uma força.

– Não, obrigado, já estou de partida.

– Pô, não vai não. Olha, vou fazer o seguinte: você leva duas pe-

dras que eu faço por quinze reais, fechou?

– Eu não tenho interesse em pedras.

– Fecho por dez, aí tu escolhe a que quiser.

– Ouça, rapaz, eu não vou comprar nenhuma pedra!

– Tá bom, txai, beleza, já entendi. Que a paz de Jah te acompanhe.

Onofre respondeu um xingamento tão feio que não será escri-

to aqui, saiu pisando fundo e bufando de raiva. Odiava vendedores

ambulantes, ainda mais os que fediam. Qual era a dificuldade dessas

pessoas em ouvir um não?

Entrou numa rua deserta onde a única luz vinha das três ou qua-

tro casas ao redor, viu um bar que parecia vazio no final da rua. Tinha

aparência um tanto diferente, com símbolos tribais esculpidos nas

paredes, iluminação de candelabros antigos, um espaço para medi-

tação. Na varanda, algumas mesas onde se reuniam uma jovem to-

Page 132: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

131Thainar Xavier

cando violão, um senhor bebendo seu vinho e um artesão com suas

bijuterias.

– Boa noite – disse o artesão.

– O bar está fechado? – adiantou-se Onofre.

– Está. Mas pegue uma cadeira e beba conosco.

Onofre, na vontade de beber, assentiu, sentou-se perto do grupo e

logo ganhou uma taça. O artesão mostrava para o senhor sua caixa de

pedras. A cada gole de vinho, o senhor admirava um novo cristal. Ono-

fre tinha começado a se arrepender de ter parado naquele lugar. Que

vinho doce, detestável! Antes que pudesse se levantar, o artesão, um

chileno, tirou da caixa um de seus melhores cristais e entregou para ele.

– Veja, o cristal mais puro de Alto Paraíso. Tome, fique com você.

Sinto que você precisa dessa energia, che, vamos, pegue!

Ao tocar na pedra, Onofre sentiu uma força transpassar por seu

corpo. Não sabia explicar se isso era possível, a pouca luz não lhe

deixava enxergar nada que pudesse ser diferente. Perguntou quanto

custava a pedra, e o vendedor disse que era um presente. Achou es-

tranha a atitude dele, mas não questionou, não queria mesmo mexer

no bolso.

O grupo conversou durante um bom tempo, bebeu, e curtiu a

mulher tocando seu violão. Onofre ficou de observador embriagado.

Page 133: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

132 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil

Algo estava acontecendo naquela noite, algo que Onofre não sabia ao

certo o que era. Sentiu seu coração de pedra estalar levemente dentro

do peito. O chileno o convidou para irem à casa de um amigo, havia

uma fogueira lá esta noite.

A casa tinha um enorme quintal. No centro, a fogueira acesa, ao

redor, bancos de madeira, cobertores estendidos pelo chão e muitas

almofadas. Tinham pelo menos vinte pessoas ali, uns contavam suas

histórias, outros tocavam instrumentos e outros apenas contempla-

vam as estrelas sob o calor aconchegante do fogo.

O anfitrião falava da magia de Alto Paraíso, seu discurso era belo

e impactante, suas palavras ecoavam pela mente de Onofre, como

uma profecia. “Alto Paraíso é só o início da transformação do mundo,

assim como as rochas estão se tornando cristais, esse também será

o caminho natural do homem. Você tem o poder de escolha, hoje

você pode escolher ter uma vida de amargura ou uma vida de perdão

e paz, você pode escolher ser uma rocha ou escolher o caminho da

purificação, sendo um cristal.”

Onofre reconheceu o anfitrião, era o guia, provável pai da Mar-

guelli. Aquela era a casa da Marguelli? Olhou para os lados procu-

rando a menininha. Ela estava do outro lado da fogueira, atenta ao

discurso do pai, fazia carinho num cachorro que estava deitado perto

Page 134: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

133Thainar Xavier

dela. Onofre se lembrou do filho e de como ele gostava de cachorro.

Sentiu os olhos enchendo de água. Como sentia falta do seu filho!

Seu coração de pedra deu mais uma fisgada.

Na manhã seguinte, Onofre estava bem mais disposto, tomou o

suco verde oferecido pelo hotel e foi andar pela vizinhança. Cumpri-

mentava todos que via pela frente, fotografava as árvores, entrava nas

lojinhas, comprou até um presente para Luciethe.

Quando chegou à loja de produtos naturais, viu uma mulher com

os cabelos loiros presos num coque milimetricamente arrumado,

óculos escuros que cobriam quase todo o rosto, e vestido vermelho

gritante. Só podia ser Jezebel, sua ex-mulher. Onofre ficou tão sur-

preso em vê-la que pensou que fosse um espírito maligno que tinha

vindo atormentá-lo. Suas pernas começaram a tremer e sua cabeça

a latejar. Seus olhos assumiram um tom ameaçador e seu rosto ficou

roxo de tanta raiva. Antes que pudesse pensar, deu um passo para trás

e começou a correr. Tinha que sair dali, tinha que ir para um lugar

bem longe.

Seu coração estava mais pesado do que nunca, era muito difícil

carregá-lo. Mesmo assim, subiu uma encosta até chegar a um antigo

templo em ruínas. O mato cobria algumas das construções. Apesar

de estar deteriorado pelo tempo, o lugar possuía uma energia que o

Page 135: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

134 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil

distinguia dos outros parques.

Sentou no tronco de uma árvore que estava caído perto de uma

das construções. Sua respiração era ofegante, mas tentava se contro-

lar. Botou a mão nos bolsos procurando a carta que havia escrito para

a hora de sua despedida.

“O que ela está fazendo aqui? Justo aqui! Essa mulher quer me

enlouquecer, maldita! Eu seria capaz de...”

Seus pensamentos foram interrompidos com a chegada de Mar-

guelli, que segurava um coelho com a pata machucada.

– Oi – disse a menina sorridente.

– O que está fazendo aqui sozinha?

– Vim procurar o Sr. Tomás – disse apontando para o coelho.

– O que houve com ele?

– Ele se machucou numa armadilha, tenho que fazer um curativo.

Quer me ajudar?

– Esse não é um bom momento... Por favor, gostaria de ficar so-

zinho agora.

Onofre olhou nos olhinhos de Marguelli e viu os olhos do seu filho.

– Tome, segure o Senhor Tomás – ela insistiu.

Marguelli colocou o coelho nos braços de Onofre, que segurava

o bicho de forma desajeitada. Ela, então, pegou em sua mochila um

Page 136: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

135Thainar Xavier

vidro de mertiolate e atadura para enfaixar a pata do bicho. Em pou-

co tempo os dois tinham cuidado do animal, que parecia mais calmo.

Onofre continuava com o bichinho nos braços. Sem pensar, passou a

mão pela cabeça do Sr. Tomás. Seu coração de pedra pareceu ter sido

atingido por um raio. Dessa vez o estalo foi tão alto que olhou para

Marguelli, procurando testemunha.

– Seu Onofre, posso fazer uma pergunta? Por que seu coração é

assim?

– Marguelli... Eu não sei... Acho que ele é assim desde quando eu

era criança. Quando meu pai foi embora, depois minha mãe... E o

meu filho... Meu coração ficava mais duro a cada ano, a cada aniver-

sário não comemorado, a cada briga sem motivo...

A voz de Onofre fraquejava, ele tentava esconder as lágrimas que

escorriam pelo canto do olho. Eram muitas lembranças, lembranças

que ele evitara durante a vida toda, sentimentos que pesavam o seu

coração. A verdade é que seu coração era petrificado pelo acúmulo de

sentimentos nunca extravasados.

Marguelli abraçou Onofre como abraçava seu pai. O silêncio pai-

rava no ar trazendo uma paz que era sentida de longe. Tentou acari-

ciar seu coração, pegá-lo com suas mãozinhas. Onofre se lembrou da

profecia do pai de Marguelli. Sabia que era chegado o momento, ele

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136 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil

tinha de deixar a pedra para trás. A luz invadiu o seu coração como

uma flor que desabrocha no deserto.

Um leve tremor percorreu o parque. Marguelli mal podia acredi-

tar no que estava vendo. Afastou-se de Onofre para poder enxergar

direito. Pasmos diante do que estava acontecendo, viram o coração

do homem rachar por completo e começar a descascar. O cinza da

pedra dava lugar a um branco translúcido que se espalhava pelo peito

de Onofre feito um ribeirão de águas cristalinas. Sua pedra no cora-

ção virara um coração de cristal.

De volta a Brasília, ao procurar a carteira para pagar a corrida de

táxi, sentiu um pequeno volume no bolso. Pegou-o e, quando abriu

sua mão, deparou-se com o coração de cristal que o amigo chileno

lhe dera de presente.

Page 138: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

137Estefani Basilo

Estefani Basilo

Projeto luz

O sol de Recife parecia nos dar bom dia com brilho e calor inten-

so. Era o mesmo sol, todos sabíamos, mas era diferente a sensação.

Era a primeira vez que estávamos ali e nossos corações estavam a mil.

O aeroporto era bem movimentado, do jeito que mostram os fil-

mes, lojas de diversos tipos se espalhavam pelo local.

O nosso professor Fábio, engraçado como sempre, veio com seu

sorriso gigante e seus sapatos mocassim. Por trás dos óculos de grau,

seus olhos escuros também estavam emocionados. Ele deixou que

andássemos pelo aeroporto, porém Emília, Nanda e eu continuáva-

mos sentadas, vigiando as malas.

Observei meus outros amigos se afastarem. Os cachos escuros de

Brum pulavam junto com sua animação. Já Bil mantinha o sorriso

branco no rosto, os olhos escuros diminuindo conforme o tamanho

de seu sorriso:

– O que vamos fazer depois daqui? – perguntei.

– Acho que alugar um carro e ir a João Pessoa – disse Emília com

as bochechas comprimidas pela risada.

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138 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil

– Por aí! – Nanda gargalhou, passando a mão nos cachos, rebeldes

como os meus.

Nanda sacudia meu braço violentamente para me acordar:

– Chegamos, Esther.

– Até que enfim! – sorriu Emília abrindo os braços e se espregui-

çando já do lado de fora do carro alugado, um Doblô.

Passei a mão no cabelo, na blusa rosa, na saia jeans e saí do carro.

O professor apertou a campainha e quem abriu foi uma moça, Alice,

ela tinha um olhar infantil. Na porta da casa nos deparamos com

outra mulher, já mais velha, loira e cheia de graça. Se chamava Nina.

– Oi meninos, que prazer. Sejam bem vindos – ela disse com jeito

doce.

A casa dela... Sem palavras! Era uma mansão na verdade. Na va-

randa havia duas espreguiçadeiras e uma piscina incrível em forma-

to arredondado. A casa era pintada de branco com acabamento em

madeira marrom. Na parte de cima tinha uma pequena sacada e no

muro uma namoradeira.

Entramos na sala sofisticada. Nina nos mostrou um quarto onde

Page 140: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

139Estefani Basilo

poderíamos deixar as malas. Na parede tinha várias fotos, dois sofás-

camas e um armário branco.

Passamos quase todo aquele dia na piscina e depois conversando

com Nina.

No dia seguinte, a manhã foi calma e gentil, nós pudemos fazer

tudo ao nosso tempo. Porém já tínhamos atividades para mais tarde.

Iríamos almoçar na casa de dona Leninha, uma senhora de idade.

Leninha era um doce, como a maioria das senhorinhas que eu

conhecia. Parecia ter mais de 80 anos, se movia com dificuldade com

a ajuda de uma bengala de madeira. Ela era gordinha, tinha a pele

flácida e com marcas de sol, os cabelos de neve presos num coque no

alto da cabeça.

Joana, uma moça que trabalhava na casa, nos serviu água, senta-

mos na sala, prontos para conhecê-la mais. Ela foi muito pobre na

infância, e vivia com o pai e o irmão mais novo em Massaranduba,

até que aos 20 anos casou-se e foi morar com o finado marido em

João Pessoa. O único filho, Miguel, morava no Rio de Janeiro desde

os 27 anos.

Page 141: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

140 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil

Na verdade, nem mesmo durante o almoço eu prestava atenção

no que Leninha falava. Eu observava mais os retratos espalhados

pela sala, cuja figura ressaltava uma mulher belíssima com roupas

escandalosas para a época, roupas que pareciam mais fantasias de

Rainha de Bateria.

Seria Leninha? E se fosse, ela estava nos escondendo algo? Por

quê?

O tempo passou devagar até que o nosso professor anunciou a

nossa partida. Todos se despediram de Leninha, eu não:

– Professor, posso ficar aqui?

Ele olhou como se já fosse negar, mas fez o contrário:

– Tudo bem. Nós vamos ficar na praia, te buscamos antes ou de-

pois do jantar?

– Depois! – disparei de imediato. Olhei para Leninha que sorriu

– depois do jantar.

Esperei que todos saíssem, junto com Joana, e sentei no chão de

frente para Leninha:

– Só sobrou você, criança. O que quer de mim? – perguntou se-

gurando minha mão.

– Quero saber sua história.

– Minha história? – ela riu e um olhar distante se fez – Na sua

Page 142: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

141Estefani Basilo

idade, eu já era casada e tinha uma filha.

– Filha? Achei que tivesse casado aos 20 e que só tinha um filho.

Ela então esticou a mão e abriu a gavetinha da estante ao seu lado,

me entregou um porta-retrato branco e rosa com a foto de um bebê

deitado de vestidinho vermelho com sapatos e laços combinando,

com um sorriso encantador. Eu olhei para Leninha e logo ela come-

çou a falar com uma voz cansada e rouca:

Nasci em abril de 1928 e me chamo Helena Prado, mas desde que

me entendo por gente sou chamada de Leninha. Sempre tive uma

vida complicada, de família muito pobre, uma mãe falecida e um

irmão mais novo, eu fazia tudo dentro de casa desde pequena e meu

pai trabalhava para nos sustentar. Na época era difícil chegarmos no

científico.

Mas eu diria que minha vida começou mesmo em dezembro de

1944, quando aos 16 anos, tive uma filha e a chamei de Mariana.

Meu marido, Carlos, alguns anos mais velho, era um negro forte por

conta do trabalho pesado de pedreiro. Logo que engravidei, ele cons-

truiu uma casa pequena para morarmos os três juntos.

No ano seguinte, no mês do meu aniversário, fui sorteada e ga-

nhei uma cabra do Fundo Rotativo Solidário, que privilegiava um

jovem com uma cabritinha. A primeira cria fêmea eu deveria dar

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142 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil

a eles, para que outro jovem tivesse a oportunidade. Trabalhava em

casa lavando e passando para fora, e além disso eu fazia artesanato

de cadernos, o que mais me rendia lucro, principalmente em épocas

de volta às aulas.

Desde muito pequena sei desenhar, então eu desenhava o que as

crianças me pediam em cartolinas, que eu plastificava e se tornava a

capa. Folhas em quantidades diferentes recheavam o caderno.

No dia do meu aniversário, eu estava alimentando a cabra, que

batizei de Fine, quando Carlos chegou e me abraçou por trás:

– Feliz aniversário, meu amor.

– Obrigada de novo – sorri.

– E Mariana?

– Logo mais acorda para mamar.

– Eu trouxe um presente para você – ele tirou da calça jeans velha

dois papéis e me entregou.

Quando eu vi o que era, meu queixo caiu:

– Dois ingressos para assistir à Banda Eternal hoje à noite? Mas

meu amor, e as despesas?

– Andei economizando e seu pai me ajudou.

– Mas eu nem tenho o que vestir – resmunguei.

Page 144: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

143Estefani Basilo

– Tenho certeza que sua amiga Ângela terá algo. Acha que seu pai

fica com nossa filha?

– Obrigado, Carlos. Eu te amo.

– Eu também te amo, e quero você bem bonita hoje à noite. Mas

agora eu preciso voltar ao trabalho, venho te buscar às 20 horas.

Eu usava um vestido vermelho de alcinhas tão apertado que dei-

xava meus seios saltados, e estava bem mais alta com os sapatos de

salto fino de Ângela. Eu não me arrumava assim desde o meu pri-

meiro encontro com Carlos, quando tinha apenas 15 anos.

Peguei Mariana nos braços no mesmo momento que Carlos ba-

teu na porta. Olhou-me de cima a baixo e disse:

– Ângela, estou com medo de perder minha esposa hoje.

– Bobo! – eu ri. – Só temos que deixar Mariana com meu pai

e irmão.

Foram mais de duas horas eletrizantes de show. Eu cheguei a tirar

os sapatos para pular e dançar com meu marido. Franci, o cantor da

banda, jogou rosas no fim do show, e consegui pegar uma. Quando

a banda saiu do palco, logo entrou outra, mas Carlos me puxou le-

vando-me para trás do palco, onde ficava o camarim de Franci. Não

eram muitas pessoas, já que a maioria ficou para ver a outra banda.

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144 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil

Quase uma hora depois Franci apareceu rodeado de seguranças:

– Franci, um autógrafo, por favor! – berrei quase ultrapassando a

barra de segurança que passava do meu umbigo.

O segurança me barrou:

– Tira a mão da minha mulher – disse Carlos.

O pequeno confronto chamou atenção de Franci, que me olhou

e disse:

– Deixe o casal passar.

O segurança abriu passagem e mostrei a língua para ele feito

criança birrenta.

– Como se chama?

– Helena.

Franci me olhou de cima a baixo e me senti quase nua com aquele

vestido:

– Quase 1,70m, jovem, cabelos ondulados, olhos bonitos, sorriso

infantil e corpo de modelo – ele disse sorrindo.

Eu dei um passo para trás procurando Carlos, que apertou minha

mão:

– Desculpe se fui grosseiro. É que estou procurando uma dança-

rina e o seu perfil é perfeito. Se souber dançar, é claro.

– Eu sei dançar – respondi grosso.

Page 146: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

145Estefani Basilo

– Se quiser, farei uma turnê de três meses pelo Brasil, faço con-

trato por esse tempo somente se quiser, depois te deixo aqui mesmo

em Massaranduba.

Eu comecei a sonhar. Eu como dançarina da Banda Eternal via-

jando pelo Brasil por três meses!

– Carlos! – olhei-o cheia de sonhos.

– Nem pensar! Você não vai ficar rebolando a bunda e se esfre-

gando nele. Esqueceu que você tem uma família?

– Eu disse que pago muito bem por mês? – instigou Franci.

– Carlos... – comecei, mas não soube terminar.

– Eu disse que não, Leninha.

– Bem, se ele mudar de ideia, nos vemos amanhã às 7 horas na

rodoviária. Leve os seus documentos – Franci pegou minha mão des-

caradamente e beijou.

Não deu nem tempo de dizer tchau, pois Carlos me arrastou para

longe dali.

Deitada na cama de barriga para cima eu deveria já estar dor-

mindo, mas era difícil com tudo aquilo na minha cabeça. Carlos me

abraçou e disse baixinho:

– Seu lugar é aqui Leninha, comigo e Mariana.

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146 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil

– Mas... – eu o olhei e sentei. – Vou ganhar um bom dinheiro e,

se soubermos investir podemos ter uma vida melhor.

– Eu disse NÃO, Helena!

Seu não foi tão firme que me assustou e acordou Mariana. Eu

levantei para pegá-la e, com ela aninhada em meus braços, disse:

– Eu vou Carlos. Você já deu a sua opinião.

– Você ainda é menor de idade.

– Mas eu tomo conta do meu próprio nariz.

Naquela noite não dormi, fui incapaz de pregar os olhos. Às 5

horas da manhã eu já estava de malas prontas. Chamei meu irmão

para me ajudar, eu ainda tinha que me despedir de meu velho pai e

ganhar a sua benção. Sabia que de nada adiantaria me despedir cor-

retamente de meu marido. E as minhas coisas já estavam no carro

velho emprestado do vizinho.

Cheguei à rodoviária exatamente às 7 horas. Franci e toda a ban-

da estavam lá esperando o seu ônibus particular. Franci me recebeu

com um beijo no rosto:

– Sabia que viria. Essa é sua filhinha? – perguntou mexendo com

a menina.

– Sim, Mariana – sorri. – Mas não se preocupe, meu irmão irá

levá-la.

Page 148: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

147Estefani Basilo

– Venha comigo um minutinho – disse Franci me levando.

Entramos juntos no ônibus e ele pegou Mariana que sorriu e a

deitou no banco. Então bateu uma fotografia de minha filha sorrindo:

– Para levar durante a viagem – explicou.

Sorri agradecida.

E então foi só pé na estrada.

Os três meses da minha vida foram rolando pelos cantos mais

lindos do Brasil. Conheci Rio de Janeiro, São Paulo, Bahia e todo

lugar tinha seu jeito especial de me encantar.

Nosso tempo não parava, Franci parecia querer só a minha aten-

ção, quase sempre me agarrando pela cintura ou atrapalhando minha

coreografia para dançar comigo nos shows.

Quando já estávamos subindo de novo para o nordeste, hospe-

dados em um hotel, todos saíram para comemorar, mas eu não quis,

preferi ficar em casa e acabei escrevendo para minha família. Foi

neste dia que me dei conta das verdadeiras intenções de Franci. Ele

bateu na porta do quarto e entrou sem esperar resposta.

– Muitas saudades da tua filha?

– Muitas – eu sorri – Talvez eu perca mesmo o marido quando

voltar.

– Então você terá a mim – disse colocando a mão na minha perna.

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148 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil

Eu me levantei e fui até a cozinha pegar água. Ofereci a Franci,

mas ele apenas sorriu, eu o ignorei. Terminei de beber água e ele se

levantou e tirou o copo de minha mão, então me beijou. Eu fiquei tão

surpresa que não soube o que fazer. Deixei-me ser beijada por aquele

segundo, quando ele se afastou, eu disse:

– Não repita isso. Eu sou casada e amo meu marido de corpo e alma.

Franci sorriu, passou a mão nos cabelos e disse:

– Um dia você vai me pedir esse beijo, Helena – e saiu.

Desde esse dia Franci mudou comigo. Ao invés de me agarrar e

me elogiar, ele dizia que eu fazia tudo errado e me desprezava. Franci

passou a me maltratar. Tive que aguentar por mais um mês, afinal,

contrato é contrato.

Quando meu último dia na Banda Eternal chegou, já estávamos

em Campina Grande. Como o show só seria a noite, dava tempo

suficiente de ir à casa. Mas quando cheguei logo dei falta de tudo, da

cabra, das galinhas, de Carlos e muito da minha filha. Chamei por

Carlos, mas não houve resposta.

Ninguém pode imaginar como fiquei. Disse para mim mesma

que Carlos nunca seria capaz. Mas a confirmação veio quando che-

guei à casa de meu pai:

Page 150: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

149Estefani Basilo

– Eles se foram, Leninha – disse meu pai quase chorando. – Car-

los nunca aceitou sua decisão, mas nunca imaginei algo assim. Ele

vendeu a cabra e todas as galinhas. Há um mês, ele não deixou a

menina aqui no horário de seu trabalho, então entendemos tudo.

– Polícia! – disse como súplica, como se chamasse o próprio Deus.

– Já demos queixa. Mas disseram que como você os deixou e Car-

los é o pai biológico da menina, pouco podem fazer – disse meu

irmão.

Meu pai me aninhou em seus braços e naquele momento quis

voltar a ser menina e caber em seu colo por inteiro, ou quem sabe

voltar ao ventre de minha mãe.

No dia seguinte, após o almoço, nos arrumamos e fomos à praia

do Jacaré. O sol deixou nossas fotos em tom alaranjado, numa beleza

sem igual, porque ali era especial, o sol começava a se deitar, e a mú-

sica suave que saía da flauta do músico no barco se levantava, assim

como a lua.

Sem nada para fazer à noite em casa, fiquei de bobeira deitada na

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150 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil

cama. Quando me deu sede, fui até a cozinha para pegar água, mas

logo que entrei percebi um clima tenso no pessoal sentado à mesa,

todos com cara de defunto. Inclusive Nina e Alice:

– Ai gente, o que foi? – perguntei.

– Esther... – começou o professor incapaz de terminar.

- Esther, querida, Dona Leninha faleceu esta tarde – disse Nina.

Na hora perdi a vontade de beber água e de fazer qualquer coisa.

Eu queria só dormir. Dormir e poder sonhar com Leninha. Naque-

le momento, qualquer lembrança dela ficou embaçada, coberta pela

fina camada de lágrima que se formava nos meus olhos.

Acordei com muito frio. Sem abrir os olhos procurei o lençol,

mas encontraram primeiro do que eu e me cobriram. Abri os olhos,

Emília e Nanda estavam lá, velando meu sono:

– Você está bem? – perguntou Emília me fazendo cafuné.

Neguei e funguei para não chorar.

– Vai ficar tudo bem.

– Eu sei. É que ela só teve tempo de me contar sua história.

– Talvez era só o que ela precisava.

Suspirei como se o ar pudesse limpar a minha dor, mas não lim-

pou. Então perguntei:

– Como souberam?

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151Estefani Basilo

– Joana ligou. Foi ver Dona Leninha de manhã e ela já estava pas-

sando mal, à tarde, ela acabou parando no hospital com insuficiência

respiratória.

As meninas não entenderam o meu sentimento por ela, e nunca

iriam entender. Do mesmo jeito que só poderia imaginar a dor de

Leninha quem fosse mãe.

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152 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil

Caroline Rodrigues

Do tambor ao mar

Foi uma longa viagem da rodoviária de São Luís até a casa onde eu

seria acolhida. Talvez porque pesassem em meu corpo as doze horas de

estrada, a falta de sono e o jejum, que cortei com um café com leite e

bastante açúcar antes de tomar o ônibus municipal. Da janela, meus olhos

seguiram as casas e os lugares de comércio, sempre coloridos, obedecendo

um padrão harmônico. Meu pensamento entrava pelas portas enormes e

os janelões espalhados. Pessoas iam e voltavam tornando a cidade viva por

toda a tarde, ao contrário da noite, que eu veria deserta e obscura.

Quando cheguei ao litoral, a tarde acabava de cair e poucas tra-

vessas eram iluminadas. Eu as cruzei depressa, tomada por uma sen-

sação de medo e mistério. São Luís me recebeu com frieza, as cores

do dia se apagaram e as portas e janelas fecharam seus cadeados.

Chegando ao instituto ComoVer, fui recebida pela Darcy, respon-

sável pelas atividades do lugar. Dalva, sua filha, também esperava-

me à porta, e chamou-me para entrar com um longo abraço. Nossa

empatia foi imediata, talvez por termos a mesma idade, os mesmos

sonhos de dançarina, os mesmos calos.

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153Caroline Rodrigues

– Como foi de viagem, Helena? Animada para dançar amanhã?

Aceita uma xícara de café com pão?

– Tudo bem, agora que cheguei! Estou ansiosa!

Conversamos um pouco e nos retiramos. Estendi minha es-

teira de dormir no quarto, junto das outras meninas, Dalva entre elas.

Ali tive um sonho estranho, no qual corria pela noite deserta de São

Luís carregando uma tocha na mão. No sonho, eu sabia que estava

sendo perseguida por um leão branco, e que o fogo que eu carregava

era a única maneira de me defender. Um tambor tocava ao fundo,

e eu o buscava. Acordei suada e contei o sonho a Dalva, que tinha

insônia, mesmo depois de dançar a noite toda.

Pela manhã, chegando ao Reviver, fizemos nosso cortejo até o

Larguinho. Foi tempo de cozinhar todos os preparativos, que tam-

bém triscamos. A caracterização das dançarinas estava pronta, as

saias rodadas, tecidas e estampas à mão. Experimentamos as blusas

rendadas, flores, colares, pulseiras, torças. Assim que o dia escu-

receu no Larguinho, os tocadores começaram a afinar o couro da

parelha em frente à fogueira. Armamos nossa roda e o fogo foi

aproveitado para as tochas que iluminavam o entorno. Em seguida,

os instrumentos foram arrastados pelos tocadores, que estavam nus

da cintura para cima.

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154 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil

A animação foi feita pelo canto puxado pelos homens e o som da

parelha. O coro se levantou em louvor aos santos protetores. Após pedir

proteção, passamos ao canto festejando o povo negro. Nele, a roda se

formou conforme as dançantes se apresentavam individualmente, cum-

primentando os tocadores. Acompanhamos o ritmo com palmas, ani-

mando-o com gritos. As cinturas giravam para brincar as umbigadas e

pungar, convidando os que compõem a roda para entrar na dança. Três

tambores tocavam, o crivador, o meião e o roncador. Dalva, entusias-

mada, veio com sua marcação de passo na minha direção. Arriscamos

passos livres e variados, seguindo o compasso cada vez mais veloz dos

tocadores. A chama das tochas dançava acompanhando nossa cintura.

De repente, a iluminação revelou sombras se aproximando. O

tambor parou. Da direção do Palácio dos Leões, sete homens bran-

cos sugiram da escuridão. Seu chefe se apresentou questionando:

– Como ousam festejar na minha propriedade?

– Estamos fora da sua residência! Podemos festejar na Avenida

Pedro II!

– Ordeno que essa zoeira acabe agora mesmo! Não aceito festan-

ça de negros na minha propriedade!

– Se sente superior por ser filho do coronel? Você não dá ordens,

não somos escravos!

Page 156: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

155Caroline Rodrigues

– Homens, acabem com tudo!

Diante daquela confusão, percebia que os olhos dele estavam fixados

em mim, e me perguntava por que aquele homem extremamente rude

me trazia uma sensação estranha. Por que estaria me olhando? Me reparei

retribuindo os olhares, mas logo desviei. Senti vontade de pôr um ponto

final nesse pensamento. Perguntei a Darcy quem era aquele homem.

– Esse é Chico, da família Cavalcante, são conhecidos por sua

riqueza, abusando do poder com violência na região...

Como ordenado pelo Sr. Cavalcante, os homens atacaram os

nossos com pauladas. Para nos proteger, estes usaram golpes de ca-

poeira, que lhes davam grande vantagem sobre os brancos. Mesmo

durante a confusão, continuamos com o ritmo dos tambores. O suor

escorria, saias rodopiavam para um lado e para o outro. Os tocadores

não pararam, batendo no couro com a mesma força com que os pés

saltavam na roda de capoeira que se formava. Gritos e palmas acom-

panhavam os compassos da melodia, dando força para quem estava

lutando, protegendo nossa festança.

Chico não entrou na briga. Seus homens perdiam a luta e aban-

donavam seus cassetetes de madeira. Alguns foram derrubados no

chão da avenida em frente ao palácio. Aos poucos, os capangas foram

desistindo e escaparam. Chico permaneceu, me olhando. Fui tomada

Page 157: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

156 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil

pelo impulso de fugir daquela cena, agarrei uma tocha e corri em

direção à praia. Atravessei a fachada do palácio e vi acima de mim a

estátua branca do leão. Cheguei a pensar que ela saltaria sobre meu

corpo. Finalmente, pus os meus pés no mar.

Eu conhecia aquele homem, do tempo em que ele esteve embar-

cado na Vila do Pesqueiro, de onde vim. Ele tentava se aproximar de

mim, me agradar. Eu tinha medo dele, sei como são os navegadores.

Um dia, ele foi embora e me deixou uma carta, que eu li e atirei no

mar. E lá estava eu no mesmo mar, e sabendo que ele viria até mim.

Eu segurava minha tocha quando vi sua sombra se aproximar. Na-

quele momento, lembrei-me do sonho e um arrepio percorreu meu

corpo. Ele me perguntou se eu tinha lido a carta.

– A carta em que você dizia “o Brasil não tem distância quando

se trata de paixão.” Nem seu destino você me disse, só me deixou a

esperança de um novo amor, lembranças e um rastro no mar, que não

fiz questão de seguir!

– Eu era muito jovem, sempre estive aos mandos do meu pai. Per-

dão se te causei tamanho desconforto, não foi minha intenção. Eu quis

voltar pra te ver, mas tenho minhas responsabilidades aqui. Você sem-

pre vagou por minha mente por todo esse tempo, por mais que não

tenhamos nos encontrado. O destino nos deu uma segunda chance.

Page 158: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

157Caroline Rodrigues

Por mais clichê que soassem, as palavras dele mexeram comigo.

Que estranha coincidência aquele sonho e este encontro, logo aqui

nesta cidade, para onde vim sem olhar para trás e sem intenções de

voltar. Minhas pernas ficaram trêmulas e a tocha se apagou enquanto

as ondas batiam em nós.

Page 159: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

158 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil

Emely Helen

Oxente

Arroz? Feijão?

O que é isso?

É impressionante

Como alguns simples caroços,

Temperados, fazem uma refeição boa

Enchem o estômago e o coração

De qualquer pessoa

Agricultores?

O que é isso?

São jovens

Dedicados àquilo que gostam

Semeando, semeando

Cidade da poesia?

Onde é isso?

Page 160: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

159Emely Helen

São José do Egito

É a casa dos poetas

Tudo falado é agora

Acordado ou dormindo

Para recitar não tem hora

Paraíba?

O que me diz sobre isso?

Quem tem a visão de seca

Deve se impressionar

Com o tanto de água

Que tem por lá

E não é só de água não

Também tem suas praias

Suas paisagens, manias

Costumes, gírias

E seu jeito paraibano de ser

“Oxentemainha”

Vamos comigo conhecer

Page 161: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

160 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil

Lucas Silva

Olho d’água

Terra mágica

Pura de criação

Brota a vida de vida

A suavidade é uma mera lágrima que escorre

Faz crescer um mundo

Que de pouco a pouco se

Forma

Pura forma

Beleza sem fim

E o seu dom me transborda

Em plenitude...

Page 162: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

161Lucas Silva

Coração de folhas

Suas veias fazem correr

Brotos

Vida

Transformada em saber

(Você e o conhecido mais desconhecido)

Onde o coração que pulsa

Não sangra

Chora sem lágrimas

Bate como

Tambor

Máquina de vida

Fonte de mistérios

Page 163: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

162 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil

Cerrado seco

Virgem

verde sangue

mistérios da vida

grilo

salvo

moradia

água que corre pra cima

para quando estiver preso

sem saída

Borboletas azuis.

Page 164: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

163Bruno Lima

Bruno Lima

Uma história para lembrar

Esta história começa com um garoto que chamaremos de Alex e

que, com seus onze anos, já tinha sua cota de problemas. De segunda

a sexta-feira era possível avistar um grupo correndo atrás de um úni-

co garoto de pernas finas, que com facilidade cortava as ruas de São

Luiz, dissolvendo o bando perseguidor de rua em rua. Não era um

garoto popular, isso era perceptível a todos que passassem em frente

ao portão da escola quando o sinal batesse. Era o que menos sabia

lutar, era perseguido, e as brigas vinham a ele como a montanha para

Maomé. Como você pode perceber, Alex era um garoto-problema.

Alex também tinha amigos. Júlia e André andavam com ele, e

participavam de suas aventuras. Júlia era uma menina tímida, que só

saía por incentivo de sua mãe, que a encorajava a brincar com os vi-

zinhos. André era o típico dono da bola, um garoto animado e cheio

de si, até ouvir os gritos de sua mãe chamando para dentro de casa,

com apelidos que deixavam sua cara corada.

Eram só os três, e isso era o máximo que a vida oferecia a Alex.

Até que ele ouviu boatos de que alguém estava para se mudar para

Page 165: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

164 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil

as redondezas. Um dia, em uma destas confusões, Alex se viu en-

curralado e preso por cinco garotos em um beco sem saída, prestes a

levar uma surra. Mas ele, orgulhoso, respirou fundo, jogou a mochila

para o lado e tentou abrir caminho derrubando um dos membros

do grupo. Foi ele que encontrou o chão, onde os cinco chutaram-no

covardemente. Alex não gritava, não pedia ajuda, apenas ficava em

silêncio esperando aquilo acabar. No meio desta selvageria, uma pes-

soa entrou na sua frente para protegê-lo dos trogloditas mirins. Ela

disse algumas coisas, que Alex não ouviu por estar confuso, com o

pensamento voado. Quando ele “voltou” à consciência, viu os agres-

sores indo embora, debochando dele.

Olhou depois para a garota de olhos claros e cabelos longos que

o destino lhe enviou. Ela perguntou se Alex estava bem, mas ele,

envergonhado, correu dali segurando o choro. No caminho, lembrou

que não agradeceu à menina que, além de muito bonita, arriscou-se

por ele. Ele não tinha sequer o nome dela. As cenas se repetiam na

sua cabeça, os golpes, a menina, e ele tentava voltar a si enquanto

rumava para casa.

Chegando à casa, Alex reparou que tinha esquecido sua mochila

naquela rua sem saída. A esta altura, voltar lá para buscá-la estava

fora de cogitação. A menor possibilidade de topar com aqueles cinco

Page 166: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

165Bruno Lima

de novo o apavorava. Perder a mochila era, para ele, o menor de seus

problemas. Sua mãe, preocupada com os episódios da vida de Alex,

passou remédio em seus machucados e mandou que ficasse fora de

confusões, em vez de colecioná-las.

Tempos depois, a campainha da casa de Alex tocou. Ele assistia

à TV quando, gritado por sua mãe, viu a garota que há dias o tinha

salvado. Ela acenou para ele com a mochila em mãos, pronta para

lhe entregar. Disseram “oi” um para o outro e Alex pegou a mochila.

– Você esqueceu isso lá. Toma, é sua.

– Obrigado, mas como descobriu onde eu moro?

– Perguntei à Júlia e ela me disse.

– À Júlia?

– Sim, somos vizinhas agora. Prazer, meu nome é Carol, e o seu?

A impressão repentina da beleza de Carol lhe tirou a atenção por

um segundo, fazendo com que ele demorasse a responder o próprio

nome e, consequentemente, ficasse com cara de idiota na frente dela.

– É... Alex.

– Tá, até mais, a gente se vê.

Ele começou a visitar a casa da Júlia todos os dias com o intuito

de ver Carol mais uma vez. E se viam. Juntos, não se comportavam

como na companhia de outros amigos. Havia entre eles um senti-

Page 167: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

166 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil

mento novo. Não brincavam muito e conversavam horas seguidas, a

ponto de a família dela, toda vez que via Alex chegar, chamá-la para

dentro de casa, com o objetivo de afastá-los. Porém, quanto mais

tentavam, mais os dois ficavam próximos.

Alex e Carol contavam um ao outro sobre tudo. Eram amigos

inseparáveis. Carol costumava dizer que amigo como ele só existia

um na vida, e Alex também a elogiava enquanto acariciava os cabe-

los dela sobre seu colo. Certa vez, seus olhares se encontraram e o

silêncio tomou os dois. Aproximaram-se um pouco. Por impulso, ela

o beijou. Os dois nunca souberam o quanto o beijo durou. Permane-

ceram mais um tempo mudos, olhando fixo um para o outro, até que

Carol, envergonhada, virou-se para ir embora. Alex a segurou pela

mão e, com uma voz trêmula, sussurrou:

– Quer namorar comigo?

– Hahã, quer dizer, sim – ela disse, antes de beijá-lo na bochecha

e ir embora.

– Nos vemos!

Eles se divertiam juntos, mas só se aproximavam mais quando

estavam escondidos de seus pais, já que estes não aceitavam o rela-

cionamento por uma razão que nem eles mesmos sabiam. Mas isso

não mais importava para o casal. Ficaram especialistas em improvisar

Page 168: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

167Bruno Lima

“esconderijos” para namorar. Alex aprendia muito com ela, com o

jeito dela ver as coisas, mesmo sendo de sua idade.

Três anos se passaram e o namoro escondido continuava. Apesar

de todos na rua saberem, os pais deles permaneciam na ignorância.

Alex via Carol todo dia. Mas parecia que sua sorte estava mudando.

Após três dias sem encontrá-la, foi até a rua dela mas, para sua

surpresa, viu a família carregando malas para o carro. A irmã mais

velha de Carol o notou e se aproximou.

– Estamos nos mudando, meu pai conseguiu uma oportunida-

de no Rio de Janeiro. Carol está muito triste de se afastar de você,

passou os últimos dias fechada no quarto. Disse pra mim que se te

encontrasse seria pior.

Em poucos segundos, o coração de Alex acelerou e congelou.

– Agora vai embora, antes que meus pais te vejam! Ela disse que

vai te escrever. Quem sabe vocês não se encontram aqui ou no Rio.

Alex buscou o olhar de Carol na sua janela, e o encontrou. Os

dois miraram um ao outro com os olhos embaçados. Tão novo como

aquele sentimento era a perda. Na vida as coisas vêm e vão, agora

ele sabia disso. Foi embora chutando objetos pelo caminho, olhando

para baixo. Melhor apanhar do que viver isso, pensou num instante

de descontração.

Page 169: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

168 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil

Esta história foi há muito tempo. Depois disso, Alex apanhou

algumas outras vezes dos garotos. Carol, ele não viu mais. Como

dizem por aí, virou história. Nem todas as histórias têm final feliz. O

que importa é terem uma palavra dizendo: continua...

Page 170: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

169Douglas de Paulo

Douglas de Paulo

Uma Aventura em Manaus,

conhecendo o desconhecido

Turistas Aprendizes... Nós somos, fomos e seremos. Junto com

os amigos Gabriel, Valeska, Fabrícia, Thamires e Alice, embarcamos

para a aventura de passarmos dez dias conhecendo e explorando a

Amazônia. Começamos no dia dezesseis de janeiro de dois mil e

quinze, quando aterrissamos em Manaus. Logo pudemos sentir o

clima úmido da cidade. De repente, quando menos esperávamos, fo-

mos surpreendidos por um baita pé d’água, uma chuva de meteoros,

com pingos gigantes que pareciam furar nossa pele. Inundados por

tanta chuva, conseguimos encontrar nosso guia, Diego, morador de

Manaus, que ficou encarregado de apresentá-la a nós.

Começamos pela visita a Ponta Negra. No caminho, vimos um

arco-íris pela janela direita do ônibus. Do lado esquerdo, o sol se pu-

nha e o céu era alaranjado. Chegamos a Ponta Negra no finalzinho

do dia. Dava para ver diversos tons rosados, avermelhados, azulados

e um pouco da mistura de azul escuro com preto. Era a noite che-

gando.

Page 171: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

170 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil

Avistamos o Rio Negro e então chegamos mais perto. Segundos

depois, passou um vendedor com uma bacia na cabeça, cheia de

saquinhos com banana frita. É isso mesmo, banana, e o gosto era

bem parecido com as batatas chips que comemos. Não aguentamos

de ansiedade e entramos no rio de água morna e cor escura. Ao

olharmos debaixo d´água, víamos tudo negro, como se nossos olhos

estivessem vendados.

Também conhecemos o histórico Teatro Amazonas, com suas co-

lunas que formam uma lira, e que nos impressionou pela acústica e

beleza. Em cada coluna, um escudo grafado carregava nomes de mú-

sicos e artistas como Beethoven e Shakespeare, entre outros. No topo

das colunas, um céu com imagens de dança, teatro, tristeza e alegria.

O salão, com assentos bem vermelhos, parecia repleto de morangos

maduros diante de um palco onde a arte fazia festa.

Não pudemos deixar de visitar também o Tambaqui de Banda,

um restaurante onde experimentamos a comida regional. Comemos

tambaqui assado, pacu e o famoso jaraqui frito. Como diz o ditado:

“quem come jaraqui, não sai mais dali.”

Continuamos nossa aventura pela Praia da Lua, que recebe as

águas mornas do Rio Negro. Tomamos dois banhos ao mesmo tem-

po, numa mistura de quente e frio, pois chovia na hora em que está-

Page 172: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

171Douglas de Paulo

vamos mergulhando e nossos corpos piravam com uma sensação que

nem mesmo sei explicar.

Visitamos também a comunidade ribeirinha São João do Tupé.

Foi preciso pegar uma voadeira para chegar ao local. Voadeira, para

quem não conhece, é um barco pequeno onde cabem cerca de oito

pessoas, incluindo o piloto, e que, pulando devido ao banzeiro do rio,

viaja rápido e parece que vai nos derrubar a qualquer momento, com

bastante vento na cara e muita adrenalina.

Conhecemos o pajé da aldeia, chamado Kissibi, e seu filho Regi-

naldo. As casas da comunidade eram de madeira e algumas de tijolos.

Havia uma enorme oca e ao lado uma árvore cheia de Urucum, fruto

que eles usam para tingir o corpo. Reginaldo nos mostrou como se

faz a tinta: abre-se a planta, esfrega-se os dedos nas sementes e de-

pois aplica-se a tintura na pele. Quanto mais maduro estiver o fruto,

mais vermelha será a tinta.

O pajé então pediu para que sentássemos, pois iria começar a

fazer um ritual de inicialização. Ele nos mostrou seus instrumentos,

fez algumas danças, e nos chamou para participar. Foi como se tivés-

semos crescido no local.

Voltando para a voadeira, Regis e o pajé nos contaram histórias da

região. Eles têm celulares modernos, com redes sociais, fazem conta-

to com o exterior, e o pajé Kissibi já tinha até visitado a França.

Page 173: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

172 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil

Nossa última parada foi novamente em Manaus, para participar-

mos de um sarau na Livraria Valer. Lá conhecemos os artistas lo-

cais Lucinha Cabral, Dori Carvalho e Tenório Teles. Devo destacar

que Lucinha parecia ter engolido um passarinho, quiçá um tuiuiú da

Amazônia, pois fazia sons inexplicáveis com a boca.

Page 174: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

173Sobre os autores

Sobre os autores

Bruna Alves

Bruna tem 20 anos, é moradora da Zona Norte do Rio de Janeiro

e estuda no município de Duque de Caxias (Baixada Fluminense).

Cursou o Turista Aprendiz na Biblioteca Parque do Alemão.

Bruno Lima

Bruno tem 18 anos, estuda no Colégio Estadual Compositor

Luiz Carlos da Vila e mora em Manguinhos. Foi aluno do Turista

Aprendiz na Biblioteca Parque de seu bairro.

Caroline Rodrigues

Caroline tem 16 anos, mora com os pais na comunidade da Roci-

nha e está na 2a série do Ensino Médio. Cursou a Oficina na Biblio-

teca Parque da Rocinha.

Davi Nascimento

Davi tem 17 anos, mora em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense.

Acaba de concluir o Ensino Médio na Escola Municipal Thomas Mann.

Sua formação no Turista Aprendiz foi na Biblioteca Parque Estadual.

Page 175: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

174 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil

Douglas de Paulo

Douglas tem 19 anos, é estudante, nasceu e cresceu em Niterói,

mas mora atualmente na comunidade da Rocinha onde cursou a

Oficina na Biblioteca Parque local.

Emely Helen

Emely está com 15 anos e acaba de concluir o Ensino Funda-

mental na Escola Municipal João Barbalho. Fez a Oficina Turista

Aprendiz na Biblioteca Parque do Alemão.

Estefani Basilo

Estefani tem 17 anos, mora em Ramos e está iniciando a 2a sé-

rie do Ensino Médio no Colégio Estadual Jornalista Tim Lopes,

no Complexo do Alemão. Cursou o Turista Aprendiz na Biblioteca

Parque da mesma comunidade.

Fabrícia Mello

Fabrícia tem 18 anos, mora no bairro de Santa Cruz, zona oeste

carioca, e estuda no Colégio Estadual Erich Walter Heine. Cursou o

Turista Aprendiz na comunidade da Rocinha.

Page 176: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

175Sobre os autores

Gabriel Leonne

Gabriel tem 18 anos, vive com sua família na zona oeste do Rio

de Janeiro. Cursa o Ensino Médio na FAETEC, mas acaba de passar

para Jornalismo na PUC-Rio. Fez o Turista Aprendiz na Biblioteca

Parque do Alemão.

Gabriel Mação

Gabriel Mação tem 19 anos e mora na zona norte do Rio de Janeiro.

Cursou o Turista Aprendiz na Biblioteca Parque de Manguinhos.

Guilherme Cunha

Guilherme tem 18 anos, mora na Tijuca, concluiu o Ensino Mé-

dio no Colégio Pedro II e entrou para o curso de Estudos de Mídia

na Universidade Federal Fluminense. Participou da Oficina na Bi-

blioteca Parque Estadual.

Juliana Lourenço

Juliana mora em Inhaúma, zona norte do Rio, tem 17 anos e faz o

Ensino Médio no Colégio Estadual Compositor Luiz Carlos da Vila.

Foi aluna do Turista Aprendiz na Biblioteca Parque de Manguinhos.

Page 177: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

176 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil

Karen Campos

Karen tem 20 anos, mora na Cidade de Deus, zona oeste do Rio

de Janeiro. Está empenhada no cursinho pré-vestibular para entrar

para a faculdade de Letras. Cursou o Turista Aprendiz na Biblioteca

Parque Estadual.

Luana Batista

Luana tem 19 anos, nasceu em Niterói, mas mora na comunidade

da Rocinha desde pequena. Faz parte do Grupo de Break Conscien-

te da Rocinha (GBCR) e cursou o Turista Aprendiz no seu bairro.

Lucas Silva

Lucas cresceu em Nilópolis, município da Baixada Fluminense,

mas hoje mora em Paquetá (ilha da Baía de Guanabara – RJ). Tem

16 anos e estuda no Centro Educacional Ebenezer. Participou da

Oficina na Biblioteca Parque Estadual.

Robson Casciano

Robson tem 17 anos, é violinista, toca na Escola de Música da

Rocinha e estuda no Colégio Estadual André Maurois. Morador da

Rocinha, cursou a Oficina na Biblioteca Parque de sua comunidade.

Page 178: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

177Agradecimentos

Thainar Xavier

Thainar tem 19 anos e mora em Realengo. Acaba de se formar na

FAETEC e ingressar na faculdade de Serviço Social da UFRJ. Foi

aluna do Turista Aprendiz na Biblioteca Parque Estadual.

Thamires Bonifácio

Thamires tem 15 anos, mora em Bonsucesso e estuda no Colégio

de Aplicação da UFRJ. Cursou a Oficina na Biblioteca Parque de

Manguinhos.

Valeska Angelo

Valeska tem 18 anos, mora na zona norte do Rio de Janeiro e aca-

ba de se formar no Colégio Estadual Mato Grosso. Cursou o Turista

Aprendiz na Biblioteca Parque de Manguinhos.

Page 179: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

178 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil

Agradecimentos

Agradecemos imensamente a solidariedade das instituições que

nos acolheram durante as viagens pelo estado do Rio de Janeiro e

pelo país. Sem o apoio desta rede e a receptividade de seus produ-

tores, coordenadores e jovens atendidos, o Projeto Turista Aprendiz

seria inviável.

ASPTA – Agricultura Familiar e Agroecologia (Campina Grande – PB)

Associação Beneficente Arcanjo Gabryel (Penedo – RJ)

Associação das mulheres do Pesqueiro (Ilha de Marajó – PA)

ASSORAC Raízes da Cultura (Campina Grande – PB)

Casa de Cultura Arigóca (Porto Velho – RO)

Casa de Cultura Manoel Gonçalves de Souza Portugal (Rio Claro – RJ)

Casa do Coletivo Dirigível (Belém – PA)

CDDH – Centro de Defesa dos Direitos Humanos (Petrópolis - RJ)

Ciep 465 Dr Amilcar Pereira da Silva (Quissamã – RJ)

Colégio e Curso Eximius (Araruama – RJ)

CRESERTÃO (Sagarana – MG)

Ecovilinha (Alto Paraíso – GO)

Page 180: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

179Agradecimentos

Escola Estadual Augusto Meshick (Petrópolis – RJ)

Fora do Eixo

Instituto Manaós (Manaus – AM)

Jovens de Expressão (Ceilândia – DF)

Laborarte (São Luiz – MA)

Mau Mau Galeria (Recife – PE)

Movimento Cultural Supernova (São Sebastião – DF)

PIM – Programa Integração pela Música (Vassouras – RJ)

Ponto de Cultura “Arte nos lençóis” (São Luiz – MA)

Ponto de Cultura Aprendendo a Construir Arte e Cultura (São Luiz – MA)

Ponto de Cultura Lumiar (Lumiar – RJ)

Pousada Serra da Bocaina (Paraty – RJ)

Prefeitura de Rio Claro (Rio Claro – RJ)

Quilombo do Campinho (Paraty – RJ)

Sarau Café e Prosa ( João Pessoa – PB)

Secretaria municipal de educação de Manaus (Manaus – AM)

Secretaria municipal de educação de Quissamã (Quissamã – RJ)

Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Massaranduba (Massaranduba – PB)

Sobrado Cultura Rural (São Pedro da Serra – RJ)

Page 181: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

180 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil

Aos nossos anfitriões pelas cidades do estado do Rio de Janeiro e

do país, e aos escritores e artistas que gentilmente aceitaram trocar

conosco durante esta jornada, seremos eternamente gratos. Guarda-

mos, com respeito e admiração, a convivência maravilhosa e as se-

mentinhas que plantaram nos turistas aprendizes.

Alex Varella

Ana Cristina Ribeiro

Andrea Alves

Ângela Melim

Antônio Cícero

Antônio Marinho

Aziel Lima

Bruno Borja

Bruno dos Santos

Bruno Gaudêncio

Carlito Azevedo

Creuza Barbosa

Cris Penante

Diego Batista Gama

Dori Carvalho

Écio Salles

Elizeu Braga

Erick Moraes

Flavia Avla

Gonçalo Ferreira da Silva

Gustavo Praça

Heyk Pimenta

Isaac Mendes

Ivan Anjo Diniz

Jesse Andarilho

José Renato Vianna

Keila dos Santos

Lana Almendra

Leize Maciel

Leninha

Page 182: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

181Agradecimentos

Lucinha Cabral

Luiz Filho Igbá

Luiza Borba

Manoel Belizário

Márcio Calixto

Matheus Mineiro

Michelle Azevedo

Ovídio Poli Junior

Patrícia Azevedo

Paulo Dagomé & família

Pedro Lago

Ramón Rivera

Rafael Bacelar

Raphael Vidal

Regina Mourão

Ricardo Chacal

Steven Bates

Suzy Lopes

Tenório Telles

Virgílio

Zelma Rabelo

Zezito Freire

Waldeci

Waldir Júnior

Page 183: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

182 Do Rio ao mar - Impressões do Brasil

Por fim, agradecemos à maravilhosa equipe que construiu essa

primeira edição do Projeto. Estamos juntos e misturados até o final!

Alexandre Aquino

Alice Souto

Clarissa Calado

Eduardo Lamas

Fernanda Schnoor

Fernando Timba

Flávio Mello

Guilherme Gonçalves

Glenda Albuquerque

Janete Farias

Julia Barreto

Marcelo Castañeda

Patrícia Azevedo

Paulo Almeida

Rafael Zacca

Ricardo Mölnar

Simone Vieira

Valeska Angelo

Page 184: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil
Page 185: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil

Rio de Janeiro, abril de 2015

Page 186: Do Rio ao mar – Impressões do Brasil