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1 Do liberalismo clássico ao liberalismo pedagógico contemporâneo: uma análise do fundamento histórico e seu alcance educacional. Paulo Emílio de Assis Santana UEM Universidade Estadual de Maringá Resumo O presente trabalho apresenta alguns elementos históricos, filosóficos e educacionais sobre o pensamento liberal clássico procurando fazer a relação com aspectos pedagógicos contemporâneos. O autor busca nas figuras de John Locke e Jean Jaques Rousseau os fundamentos necessários para o entendimento das raízes do pensamento liberal, analisando cada um destes autores desde os fatos históricos mais importantes das suas vidas até as suas principais propostas políticas e filosóficas. A partir destes aspectos o articulista faz uma breve análise crítica sobre algumas manifestações liberais presentes na prática pedagógica contemporânea, e das relações existentes com os fundamentos estabelecidos por aqueles autores clássicos. Ao final, apresenta algumas estratégias práticas para que os docentes articulem uma forma de fazer frente ao pensamento hegemônico liberal a partir da prática pedagógica desenvolvida por eles no contexto escolar. Palavras-chave: liberalismo, história, pensamento educacional, prática pedagógica Introdução Temos a compreensão que a educação, em sua essência, deve ser entendida como uma ciência que tem tanto em seus fundamentos históricos como nos filosóficos as diretrizes necessárias para o seu desenvolvimento. Sem tais diretrizes, a compreensão sobre os desdobramentos sociais e políticos que têm como base a prática educativa será incompleta e, portanto, destituída da direção necessária para a correta interpretação dos fenômenos educacionais em sua correta perspectiva. Nesse sentido, quantos aos interesses do presente artigo, a história e a filosofia oferecerão o direcionamento necessário para o entendimento objetivo da filosofia liberal radical, bem como dos desdobramentos presentes na prática educativa contemporânea. O surgimento histórico da filosofia liberal e os fundamentos políticos que se constituíram em elementos norteadores para uma nova forma de educação contrária à estrutura educacional que perdurou até o século XVIII, serão de fundamental importância para a constituição da sociedade capitalista desde o seu início até aquele que se constitui nos termos dos dias atuais. Em virtude das exigências metodológicas que giram em torno deste artigo, não nos deteremos de forma aprofundada na amplitude teórica esboçada pelos teóricos escolhidos para nos fundamentar. Entretanto, temos a convicção que os excertos selecionados aqui, nos fornecerão as sementes históricas, filosóficas e educacionais necessárias para a compreensão do alcance que os fundamentos radicais liberais têm até os dias atuais.

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Do liberalismo clássico ao liberalismo pedagógico contemporâneo: uma

análise do fundamento histórico e seu alcance educacional.

Paulo Emílio de Assis Santana

UEM – Universidade Estadual de Maringá

Resumo O presente trabalho apresenta alguns elementos históricos, filosóficos e educacionais sobre o pensamento

liberal clássico procurando fazer a relação com aspectos pedagógicos contemporâneos. O autor busca nas

figuras de John Locke e Jean Jaques Rousseau os fundamentos necessários para o entendimento das raízes do

pensamento liberal, analisando cada um destes autores desde os fatos históricos mais importantes das suas

vidas até as suas principais propostas políticas e filosóficas. A partir destes aspectos o articulista faz uma

breve análise crítica sobre algumas manifestações liberais presentes na prática pedagógica contemporânea, e

das relações existentes com os fundamentos estabelecidos por aqueles autores clássicos. Ao final, apresenta

algumas estratégias práticas para que os docentes articulem uma forma de fazer frente ao pensamento

hegemônico liberal a partir da prática pedagógica desenvolvida por eles no contexto escolar.

Palavras-chave: liberalismo, história, pensamento educacional, prática pedagógica

Introdução

Temos a compreensão que a educação, em sua essência, deve ser entendida como

uma ciência que tem tanto em seus fundamentos históricos como nos filosóficos as

diretrizes necessárias para o seu desenvolvimento. Sem tais diretrizes, a compreensão

sobre os desdobramentos sociais e políticos que têm como base a prática educativa será

incompleta e, portanto, destituída da direção necessária para a correta interpretação dos

fenômenos educacionais em sua correta perspectiva.

Nesse sentido, quantos aos interesses do presente artigo, a história e a filosofia

oferecerão o direcionamento necessário para o entendimento objetivo da filosofia liberal

radical, bem como dos desdobramentos presentes na prática educativa contemporânea. O

surgimento histórico da filosofia liberal e os fundamentos políticos que se constituíram em

elementos norteadores para uma nova forma de educação contrária à estrutura educacional

que perdurou até o século XVIII, serão de fundamental importância para a constituição da

sociedade capitalista desde o seu início até aquele que se constitui nos termos dos dias

atuais.

Em virtude das exigências metodológicas que giram em torno deste artigo, não nos

deteremos de forma aprofundada na amplitude teórica esboçada pelos teóricos escolhidos

para nos fundamentar. Entretanto, temos a convicção que os excertos selecionados aqui,

nos fornecerão as sementes históricas, filosóficas e educacionais necessárias para a

compreensão do alcance que os fundamentos radicais liberais têm até os dias atuais.

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Na intenção de definir as relações do pensamento liberal com as questões

educacionais, procuraremos delinear os elementos históricos específicos que caracterizam

o fundamento do liberalismo tanto em sua vertente clássica quanto na pedagógica. Para

isso tomaremos como ponto de partida alguns excertos de dois teóricos clássicos do

liberalismo que são: John Locke e Jean Jaques Rousseau. Ao mesmo tempo procuraremos

apontar alguns desdobramentos do pensamento liberal presentes na prática pedagógica

hodierna. Na parte final deste artigo deixaremos alguns encaminhamentos teóricos e

políticos visando futuros estudos sobre a temática discutida aqui.

1. John Locke: vida, alguns fundamentos teóricos e concepção educacional

Devemos entender que as idéias liberais têm o seu embrião no pensamento

filosófico de John Locke (1632-1704), que, a partir de seu pensamento político e filosófico,

vai influenciar de maneira decisiva a maioria dos pensadores políticos dos séculos XVIII e

XIX. Torna-se evidente que para a compreensão do pensamento liberal de Locke

precisamos nos deter de maneira breve num rápido histórico desse filósofo e político, que,

de forma perseverante, lutou contra o autoritarismo do soberano inglês de seu tempo.

1.1 Um breve relato das condições históricas e políticas que forjaram o

pensamento teórico de John Locke

O Liberalismo econômico como teoria hegemônica caracterizou-se, inicialmente,

como uma estratégia filosófica e política fundamental para legitimar as práticas verificadas

na Revolução Industrial burguesa na segunda metade do século XVIII. A questão essencial

para o pensamento burguês seria estabelecer uma filosofia política que abarcasse a

totalidade da sociedade européia da época. Segundo Dewey o “uso das palavras liberal e

liberalismo para denotar uma particular filosofia social não surgem senão na primeira

década do século dezenove” (DEWEY, 1970, p.17). Ou seja, trinta anos após o início da

Revolução Industrial é que se vai postular uma teoria política sobre aquilo que já estava

materializado na sociedade, através dos desdobramentos que o capital havia produzindo

nela.

Como fruto de sua época, Locke vivenciou de maneira ativa os conflitos políticos

da Inglaterra. Filho de burgueses comerciantes, da cidade de Bistrol, presenciou quando

criança a revolução puritana de 1648, naquele país. Certamente, por perceber o ativismo

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político-religioso do seu pai que se alistou no exército do parlamento, Locke foi

tremendamente influenciado pela causa histórica do Parlamento inglês. Depois de estudar

em Oxford, e de sofrer grande influência filosófica e religiosa de John Owen (1616-1683),

tornou-se um combatente teórico das idéias filosóficas de Descartes (1596-1650) e

trabalhou como médico particular de Antony Ashley Cooper (1621-1683). Cooper, que se

transformaria no primeiro Lorde de Shafsterbury, atribuiu ao jovem médico funções de

assessoria política, encaminhado Locke em direção aos círculos intelectuais e políticos da

época.

A dupla ascensão política de Cooper e Locke estava relacionada aos interesses do

Parlamento inglês, que de maneira sistemática, opunha-se às medidas políticas adotadas

por Carlos II (1630-1685). Os conflitos históricos, portanto, entre o Parlamento inglês e o

Soberano formaram o contexto político para o surgimento das teorias políticas de Locke.

Para ele, um dos alvos políticos centrais de qualquer ser humano se constituía em ser livre

do domínio do soberano, e, portanto, nada mais revolucionário para o ambiente onde o

mesmo travou as suas lutas políticas mais agudas.

Com os acontecimentos que deram início à Revolução Gloriosa ou vitória dos

Comuns, contra Jaime II em 1688, sobem ao trono Guilherme de Orange e sua esposa

Maria, dando início a um novo período monárquico na Inglaterra, definindo-se aquele

sistema como uma monarquia burguesa, já que a mesma estava plenamente submetida aos

interesses da burguesia inglesa emergente da época. À luz dos acontecimentos, Locke

retorna no mesmo navio de Guilherme de Orange e sua esposa, em 1689, para a Inglaterra

e dois livros seus, dos mais importantes, são publicados entre 1689 e 1690 os "Dois

tratados sobre o governo Civil”, além da edição do "Ensaio sobre o Entendimento

Humano".

Podemos perceber nesse breve relato da história de vida de Locke como que e tais

fatos foram essenciais para definir o pensamento filosófico e político daquele pensador. A

ação política e histórica serão os elementos práticos necessários à constituição dos seus

escritos em torno do confronto contra o autoritarismo do soberano de sua época. A

fundamentação teórica que Locke oferecerá ao liberalismo posterior foi certamente

determinada pelas ações práticas e políticas de. Passemos agora a uma breve análise de

alguns dos elementos teóricos, considerados por nós como basilares para o entendimento

do pensamento liberal como um todo.

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1.2 John Locke e a liberdade natural do indivíduo como ponto de partida.

A defesa da liberdade natural do indivíduo diante do absolutismo estatal da época

de Locke terá um caráter eminentemente revolucionário, já que o soberano não poderia

segundo este pensador, dispor de algo que não lhe pertencia. A filosofia liberal deixava

evidente que o indivíduo era dono da sua própria vida, que em essência, constituía-se num

direito natural em sua base existencial.

Os direitos individuais dos cidadãos deveriam ser preservados, não cabendo ao

Governo nenhuma ingerência. Para Locke, “os governos são instituídos para proteger os

direitos individuais, que preexistem à organização política das relações sociais” (DEWEY,

1970 p. 17). As palavras do pensador inglês são elucidativas quanto a isso ao afirmar que,

O motivo que leva os homens a entrarem em sociedade é a preservação da

propriedade; e o objetivo para o qual escolhem e autorizam um poder legislativo

é tornar possível a existência de leis e regras estabelecidas como guarda e

proteção às propriedades de todos os membros da sociedade, a fim de limitar o

poder e moderar o domínio de cada membro da comunidade (LOCKE, 1978, p.

83).

Na conformação do novo Estado burguês que surgiria no século XVIII, a partir da

Revolução Francesa, as idéias de Locke postuladas ainda em meados do século XVII,

formaram o fundamento necessário para o seu estabelecimento. Conforme afirma Cunha, o

novo sistema social fundado na propriedade e no direito natural dos seres humanos, na

visão de Locke ultrapassaria de longe a velha ordem monárquica. Diz ela,

Longe de crer, como Hobes que é a sociedade que cria os direitos, Locke acha

que a sociedade foi instituída para defender direitos que moralmente lhe pré-

existem. Tais direitos são: o de propriedade – justificado pelo trabalho; o de

autoridade de pai de família e o de liberdade pessoal – que implica na liberdade de culto. Não poderia nesse sistema haver religião de Estado. O direito de

legitima defesa é da mesma forma um direito natural. É este direito o único que

o pacto social vai transferir para o Estado, posto que, em uma sociedade

organizada, o cidadão não faz justiça por si próprio, ou seja, pelas próprias mãos

(CUNHA, 1986, p.19).

Apesar de as idéias de Locke terem primariamente a finalidade de garantir a

individualidade do ser humano diante do Estado, que, em sua época, agia de maneira

déspota com relação às questões religiosas, o legado deixado por este filósofo aos futuros

pensadores liberais foi útil no sentido de formular as idéias básicas do sistema capitalista,

como a propriedade privada e a idéia da livre iniciativa. Mais uma vez o pensamento de

Dewey sobre a contribuição de Locke é importante, diz ele, “o liberalismo de Locke legou

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ao pensamento social posterior uma rígida doutrina de direitos naturais inerentes aos

indivíduos, independente da organização social” (1970, p.18).

Quando aborda a questão da escravidão, no capítulo IV do livro, Dois Tratados

sobre o Governo, Locke é enfático quanto à necessidade do desenvolvimento da liberdade

natural necessária ao indivíduo, como um pressuposto político de confronto com o poder

estabelecido.

A liberdade natural do homem consiste em estar livre de qualquer poder superior

sobre a Terra e em não estar submetido à vontade ou à autoridade legislativa do

homem, mas ter por regra apenas a lei da natureza. A liberdade do homem em

sociedade consiste em são estar submetido a nenhum outro poder legislativo

senão aquele estabelecido no corpo político mediante consentimento, nem sob o domínio de qualquer vontade ou sob a restrição de qualquer lei afora as que

promulgar o legislativo, segundo o encargo a este confiado. (LOCKE, 1998, p.

402).

1.3 John Locke e a questão da propriedade: um dos fundamentos do liberalismo

Fruto do ambiente religioso vivenciado em sua época, Locke procurou estabelecer

as bases para a defesa da propriedade do indivíduo em relação ao Estado a partir da

concessão que Deus fez ao homem desde Adão. Afirma ele,

Não me contentarei em responder que, se é difícil formular a propriedade

partindo da suposição que Deus deu o mundo a Adão e a sua posteridade comum, é impossível que qualquer homem que não um monarca universal

pudesse ter qualquer propriedade baseando-se na suposição de que Deus deu o

mundo a Adão e seus herdeiros em sucessão, com exclusão de todo o resto de

sua posteridade. Todavia esforçar-me-ei para mostrar como os homens podem

chegar a ter uma propriedade em várias partes daquilo que Deus deu à

Humanidade em comum, e tal sem qualquer pacto expresso entre todos os

membros da comunidade (LOCKE, 1978, p.45).

Locke enxergava a propriedade como um bem amoral, ou seja, destituído de uma

qualidade política em si, mas como um direito que Deus em sua soberania havia concedido

a todos os seres humanos. Em sua concepção, havia nas pessoas uma propensão social e

natural, quase como um senso de obrigação, a possuir sua própria existência, e esta como

um direito individual básico transferido do Todo Poderoso aos seres mortais. É nessa

perspectiva que ele vaticina,

Deus que deu o mundo aos homens em comum, também lhes deu a razão para que o utilizassem para maior proveito da vida e da própria conveniência.

Concedeu-se a terra e tudo quanto contém ao homem para sustento e conforto da

sua existência. [...] Embora a terra e todas as criaturas inferiores sejam comuns a

todos os homens, cada homem tem uma propriedade em sua própria pessoa; e

esta ninguém tem qualquer direito se não ele mesmo. O trabalho do seu corpo e a

obra das suas mãos pode dizer-se, são propriamente dele (LOCKE, 1978, p. 45).

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O Estado não poderia, portanto, estabelecer nenhuma restrição legal a este aspecto

da natureza da pessoa. Caso o fizesse estaria se insurgindo a uma instituição divina. O que

o mesmo deveria fazer segundo Locke, era prover os meios necessários para que o direito à

propriedade do cidadão fosse legalmente protegido e naturalmente exercido. É nessa

direção que ele defende a função do magistrado civil em relação às propriedades dos

indivíduos no interior da sociedade.

Parece-me que a comunidade é uma sociedade de homens constituída apenas

para preservação e melhoria dos bens civis de seus membros. Denomino de bens

civis a vida, a liberdade, a saúde física e a libertação da dor, e a posse de coisas

externas tais como terra, dinheiro, móveis, etc. É dever do magistrado civil,

determinando imparcialmente leis uniformes, preservar e assegurar para o povo em geral e para cada súdito em particular a posse justa dessas coisas que

pertencem a esta vida. Se alguém pretende violar tais leis, opondo-se à justiça e

ao direito, tal pretensão deve ser reprimida pelo medo do castigo, que consiste na

privação ou diminuição dos bens civis que de outro modo podia ou devia

usufruir (LOCKE, 1978, p. 5).

Para Bianchetti,

Uma derivação desta concepção de direito de propriedade é que este se converte

em um pressuposto originado na natureza e, portanto, direito de propriedade e

justiça se consideram sinônimos, antes da existência do contrato político. Se a

propriedade individual é a base do que é justo (já que não supõe relação de

conflito) a justiça da propriedade nunca pode ser posta em discussão (2001, pp.

50 e 51).

Está estabelecido, dessa forma, um dos fundamentos da filosofia liberal que

dominará os países centrais da Europa nos séculos seguintes. A defesa da propriedade do

corpo humano como algo que apenas lhe pertence, será o ponto de destaque original para a

nova ordem social que será instalada na Europa a partir das Revoluções Industrial e

Francesa. O indivíduo será teoricamente livre, para comprar ou vender a capacidade de

trabalho do corpo das pessoas. Esta liberdade intrínseca do indivíduo definirá a forma

como os seres humanos se relacionarão socialmente nos primórdios do capitalismo.

1.4 John Locke e a questão da educação a partir dos pressupostos liberais

Não podemos concluir a análise desse expoente do liberalismo histórico, sem nos

determos um pouco em sua concepção educacional, e, mais precisamente, nas relações que

podemos estabelecer entre o seu pensamento filosófico liberal e os fundamentos da

moderna educação burguesa, que será estabelecida no início do século XIX.

Seu ponto de vista era de que a educação deveria ter fins práticos, de preparar o

homem para a vida, e não para o deleite intelectual e para o êxito universitário. Como

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legado na área educacional, Locke deixou para a sociedade de seu tempo e para o futuro

pensamento educacional dois livros que podem ser considerados essenciais quanto à forma

liberal de se pensar a educação. São os seguintes: Thoughts concerning Education

(Pensamentos sobre a Educação) e Conduct of the Understanding (Condução do

Conhecimento). O primeiro encontra-se em processo de tradução para o português através

do trabalho dos professores Avelino da Rosa de Oliveira e Gomercindo Ghiggi, enquanto

que do segundo é desconhecida alguma tradução para o nosso vernáculo. Ambos os livros,

contudo, têm lugar de destaque na história da filosofia educacional, enfatizando neles o

valor da experiência, como elemento central no processo de aprendizado das crianças.

No sentido de objetivar a nossa análise, nos deteremos no livro Pensamentos sobre

a Educação que foi fruto das cartas escritas por Locke quando se encontrava exilado na

Holanda. Foi escrito a pedido do Senhor e Senhora Clarke que tinham o desejo de tornar o

seu único filho um excelente cavalheiro. Tais cartas de recomendação sobre a educação do

filho dos Clarke se transformaram num referencial para a época, fazendo com que, no ano

de 1693, a primeira edição do referido livro fosse publicada como a filosofia lockeana de

educação para todos os indivíduos, que politicamente defendiam o liberalismo em relação

ao domínio do soberano.

Em seu âmbito mais amplo, o texto em foco trata-se de uma obra que reflete a

constante preocupação de Locke com o desenvolvimento do caráter moral, mas sem perder

de vista a força da mente para a formação intelectual das crianças.

Depois de tomar as devidas precauções para conservar o corpo forte e vigoroso,

para que possa ser obedecer e executar as ordens do espírito, a próxima e

principal tarefa seguinte é a de tornar reto o espírito para que esteja sempre

disposto e não consentir a nada que não seja conforme com a dignidade e

excelência de uma criatura racional. (LOCKE,1999, p. 159).

No sentido de apresentar um projeto de educação para o futuro homem liberal,

Locke enfatiza o poder da construção moral do indivíduo como aspecto extremamente

necessário para a sociedade, afirma ele:

Se o que eu disse no início deste discurso for verdadeiro, como não duvido que

seja, a saber: que a diferença encontrada nas maneiras e habilidades dos homens

é devida mais a sua educação do que a qualquer outra coisa, temos razões para

concluir que há de ser tomado muito cuidado em formar as mentes das crianças e

dar-lhes cedo aquele tempero que influenciará toda a sua vida posterior. Pois que

quando eles fizerem o bem ou o mal, o mérito ou a culpa será lá assentada; e quando qualquer coisa for feita impropriamente, aplicar-se-lhes-à o dito comum

de que tal é devido a sua criação. (LOCKE, 2000, p. 165).

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A concepção de Locke sobre a educação se constituirá em uma marca indelével

para o processo educacional da sociedade burguesa dos séculos posteriores. Isso se deve ao

fato de defender, segundo Monroe (1979, p. 239), a educação disciplinar com base em três

fundamentos básicos: o físico, o moral e o intelectual. O vigor do corpo, a virtude e o

saber, demonstrarão que “os objetivos da educação são como diz em outra passagem de

sua obra, virtude, sabedoria, civilidade e instrução, nesta ordem de importância”

(MONROE, 1979, p. 239). A idéia de que um corpo saudável como fundamento inevitável

para um intelecto produtivo, será, para Locke a fonte do sucesso educacional. A criança

deverá possuir uma boa educação física, uma alimentação adequada e dura disciplina nos

compromissos com o cuidado com o corpo. A defesa que Locke faz da educação física

como fundamento para a virtude e a formação acadêmica é tão intensa que os trinta

primeiros parágrafos do livro Pensamentos Acerca da Educação são dedicados a este

fundamento (MONROE, 1979).

Locke defende a perspectiva de que o processo educativo não poderia ser feito de

forma impositiva, pelo contrário, às crianças não deveriam ser impostas obrigações

relacionadas ao aprendizado para que elas não se desgostassem da educação formal. É

seguindo este pensamento que o filósofo inglês afirma:

Observamos anteriormente que a variedade e a liberdade eram mais o que entusiasmava e seduzia as crianças em suas brincadeiras; portanto, os estudos, ou

qualquer outra coisa que desejássemos que aprendessem não lhes deveriam ser

impostos como obrigação. Os pais, os tutores e os professores tendem a esquecer

esse fato, e a impaciência em mantê-las ocupadas em ações que sejam

inconvenientes não os deixa usar quaisquer artifícios para persuadi-las.

(LOCKE, 2004, p. 228, itálicos nossos).

Quanto aos objetivos deste trabalho que é perceber as relações do pensamento

educacional do autor em destaque com os elementos presentes na formação pedagógica da

atualidade, voltada para a competição e para o individualismo, uma das suas asseverações

mais contundentes pode ser encontrada quando o mesmo defende o pressuposto da

liberalidade que as crianças devem ter nas suas relações com as outras crianças. Afirma

Locke:

Quanto ao ter e à posse das coisas, ensinai-os a partilhar fácil e livremente com

seus amigos o que têm e deixai-os descobrir pela experiência que o mais liberal sempre tem mais fartura, contando ainda com estima e distinção; e eles

rapidamente aprenderão a praticá-la. Imagino que isto tornará os irmãos e irmãs

mais gentis e corteses entre si e, conseqüentemente, para com os outros do que

vinte regras sobre boas maneiras com as quais as crianças geralmente são

sobrecarregadas e com as quais ficam perplexas. Sendo a inveja e o desejo de ter

sob nossa posse e domínio mais do que necessitamos a raiz de todo mal, cedo

devem ser cuidadosamente extirpados e deve ser implantada a qualidade

contrária da disponibilidade de partilhar com os outros. Isto deve ser encorajado

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através da confiança e de grande distinção, bem como pelo constante cuidado de

que ele não perca qualquer coisa com sua liberalidade. Fazei que todas as

recompensas que ele ofereça através desta liberdade sejam sempre

retribuídas, e com juros; e fazei-o perceber sensivelmente que a gentileza

que demonstra para com outros não é mau negócio para si, mas que lhe traz

um retorno em gentileza tanto daqueles que a recebem quanto dos que

vêem. Fazei disto uma competição entre os filhos que, assim, deverão

superar uns aos outros. Por estes meios, através de uma prática constante,

tendo os filhos tornado simples partilhar o que têm, esta boa disposição poderá

estabelecer-se como hábito e eles poderão sentir prazer e orgulhar-se de serem

gentis, liberais e corteses em relação aos outros (LOCKE, 2004, p. 225, grifos nossos e itálicos do autor).

Para Locke a liberalidade individual das crianças deveria ser encarada como um

negócio que renderia a elas o respeito e a gentileza das outras crianças. Dessa forma, ao

assumirem este pensamento, elas estariam participando de um processo competitivo no

qual superariam uns aos outros no decorrer da vida. Nesta mentalidade ficam evidentes os

princípios liberais da concorrência e da superação dos mais fracos diante das oportunidades

da vida. Assim, sem saberem, as crianças estarão se comportando conforme o modelo de

sociedade que seria estabelecida na base do sistema capitalista, que nos séculos seguintes a

Locke seria estabelecido como hegemônico até os dias atuais.

O filósofo inglês entendia que quando as crianças eram despertadas pela

curiosidade e metodologia dos educadores, elas mesmas iriam desejar o aprendizado. A

proposta de encarar tal processo de maneira recreativa e livre proporcionará uma

metodologia criativa e livre, sem imposições contrárias à livre natureza dos seres humanos.

Quando ele (o filho dos Clarke) puder falar, será hora de começar a aprender a ler. Com relação a este ponto, entretanto, concedei-me aqui a oportunidade de

novamente inculcar algo que facilmente tende a ser esquecido, a saber, que é

preciso muito cuidado para que a leitura nunca seja tornada uma obrigação, nem

que ele a veja como tarefa. Conforme já afirmei, amamos naturalmente a

liberdade, desde o berço, e temos, portanto, aversão a muitas coisas, não por

outra razão, senão porque nos são impostas. Sempre imaginei que o aprendizado

poderia ser transformado em brinquedo e recreação para as crianças e que elas

poderiam ser levadas a desejar ser ensinadas, uma vez que lhes fosse proposto

como algo que traz honra, confiança, prazer e recreação, ou como recompensa

por fazerem outra coisa, e ainda, se não fossem jamais censuradas ou corrigidas

por negligenciá-lo (LOCKE, 2005, p. 197, itálicos do autor).

Percebe-se nas citações acima como Locke valorizava de maneira exacerbada as

metodologias em detrimento dos conteúdos que deveriam ser aprendidos no processo

educativo. A filosofia liberal terá a partir das suas idéias uma caracterização extremamente

voltada para o „como aprender‟ deixando de lado o „que aprender‟. A visão liberal de

educação não se centrará mais na figura do professor, mas nas necessidades do educando,

como aprendiz que precisa ser valorizado e respeitado, conforme o seu ritmo de

aprendizagem, sem imposições autoritárias dos educadores. A metodologia passará a ser a

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grande arma dos educadores no sentido de despertar a capacidade de aprendizado do aluno.

Isto fica evidente quando Locke esclarece a função da metodologia preconizada por ele:

Quando, através desses métodos brandos, ele começar a ser capaz de ler, algum

livro fácil e agradável, adequado a sua capacidade, deve ser posto em suas

mãos, de tal modo que a diversão que encontre possa estimulá-lo e

recompensar-lhe o esforço da leitura, e que não seja algo que possa encher-lhe a

cabeça com ilusões perfeitamente inúteis nem deitar os princípios do vício e da tolice (LOCKE, 2005, p. 186, itálicos nossos).

Entendemos, portanto, que, os argumentos acima esposados, são suficientes no

sentido de clarificar o pensamento de John Locke como uma das sementes essenciais para

as teorias neoliberais que assumem o controle da atual sociedade. O discurso do

individualismo pragmático tão presente nos vários aspectos sociais hodiernos, e

fundamentalmente, na questão educacional, demonstra as suas evidentes relações com as

idéias do pensador inglês do século XVII. Em nada difere, em essência, daquele, o discurso

que o neoliberalismo faz hoje em defesa da propriedade privada como elemento de

segregação social. Ou seja, a transformação do direito em um privilégio adquirido a partir

da superação dos mais fortes sobre os mais desfavorecidos financeiramente.

A seguir faremos uma breve análise de alguns aspectos relacionados à vida de

Rousseau como sendo, em nossa concepção, aquele pensador que contribuiu de forma

decisiva com a formação do Estado burguês e da teoria pedagógica de caráter liberal.

2. Jean Jaques Rousseau: as contradições da vida e a defesa da liberdade

Nascido em Genebra, Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) teve uma infância

conturbada em virtude do falecimento prematuro de sua mãe, Suzanne Bernard e da vida

intempestiva do seu pai, Isaac Rousseau. Aos sete anos de idade, alimentava-se

intelectualmente das leituras saudosas deixadas pelos romances escritos por sua mãe e pela

biblioteca deixada pelo pai de Suzanne. Entretanto, um conflito pessoal vivido pelo seu pai

com certo Gauthier, fez com que este abandonasse Genebra obrigando a viver em exílio

forçado e distante da educação do filho. Rousseau passa a viver uma adolescência nômade,

sendo enviado de um lugar para o outro, procurando de todas as formas encontrar meios

para enfrentar a luta pela sobrevivência, sendo que em uma delas abraçou a fé católica em

troca de abrigo, no Asilo do Espírito Santo em Turim, na Itália. O instinto da sobrevivência

fez o jovem Rousseau suportar os aspectos religiosos contrários aqueles ensinados pela sua

mãe em Genebra.

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Um dos aspectos mais criticados por aqueles que conhecem a vida de Rousseau um

pouco mais profundamente relaciona-se à sua vida familiar. Quando chega a Paris,

disposto a viver na cidade e desenvolver ali sua carreira de músico profissional, sem muito

sucesso, enamora-se de Thérèse Levasseur, com quem casa-se e tem cinco filhos, que

foram entregues por Rousseau para serem criados em orfanatos, com a desculpa de que ele,

o pai, era doente e sem condições financeiras suficientes para sustentá-los. Esta atitude

revelava a contradição do caráter do filósofo genebrino, que arvorou a escrever sobre a

educação infantil, mas que, de maneira irresponsável, procriava para internatos.

Certamente, o fato de ter vivido parte da infância e toda adolescência sem a segurança de

uma família emocionalmente estabilizada, pode ter sido uma das causas gerais para este

tipo de contradição educacional na vida de Rousseau.

Entretanto, para compreendermos o desenvolvimento intelectual do homem

Rousseau precisamos nos remeter ao ano de 1749, quando o mesmo sente-se desafiado a

participar de um concurso promovido pela Academia de Dijon para discorrer sobre o

seguinte tema: “Se o progresso das ciências e das artes contribuiu para corromper ou

apurar os costumes”. Propõe-se dessa forma, a responder negativamente à questão,

demonstrando de forma profunda como que o progresso científico contribuiu para o

aumento das desigualdades entre os seres humanos. É desse primeiro texto produzido por

Rousseau que surge o Discurso Sobre a Origem da Desigualdade, e também tem início a

sua carreira como filósofo, amante da liberdade natural dos seres humanos e de teórico

vinculado à Economia Política da classe burguesa, que ainda nesta época não tinha tomado

o poder de forma violenta como o fez no ano de 1789.

Os dois principais escritos de Rousseau foram publicados em 1762: O Contrato

Social e Emílio, ambos considerados livros subversivos pelas autoridades da época. Depois

de publicados Rousseau foi obrigado a sair da França antes que fosse preso. As autoridades

da França e a opinião pública estavam contra o filósofo de Genebra e este se refugia na

Prússia até 1765, quando tem que sair fugido mais uma vez em virtude da perseguição dos

protestantes daquela cidade, que entendiam a presença de Rousseau ali um problema

religioso irreparável, em virtude do histórico inconseqüente do filósofo. Vai para a

Inglaterra a convite de David Hume (1711-1776), onde tem um bom período de

tranqüilidade até a chegada de uma carta escrita por Frederico II (1712-1786), onde

criticava de forma irônica a sua conduta moral por onde passava. Convivendo com delírios

de perseguição mental, imaginado haver contra ele um grande complô internacional,

Rousseau se indispõe contra Hume saindo da Inglaterra e voltando para a França, em 1770,

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onde casa-se com aquela que fora a sua amante e mãe dos seus cinco filhos Thérèse

Levasseur. Ali permanece lutando contra seus inimigos imaginários e suas alucinações. Os

últimos dois anos de sua vida foram tranqüilos em ralação aos sintomas psicóticos de

perseguição, escrevendo de forma serena e dedicada a sua última obra, que pelo nome

resume de forma clara a vida do romancista Rousseau: Devaneios de um Caminhante

Solitário. No dia 2 de julho de 1778, Rousseau morre na cidade de Ermenonville e é

enterrado na ilha dos Choupos.

Apesar de discordar do pensamento filosófico de Locke em alguns aspectos como a

questão do exagero lockeano sobre o individualismo do ser humano, Rousseau soube

aproveitar as formulações teóricas do filósofo inglês no que diz respeito à defesa da pessoa

livre em sua relação ao Estado e à sociedade. Para ele a liberdade e o contrato social eram

os elementos fundantes da existência humana, e dessa forma entendida como direito e

dever. Em seus escritos, demonstra que a única base legal para uma comunidade viver em

plena liberdade é o contrato social, que os indivíduos livremente fazem entre si. A

liberdade, então, em sua concepção, se constituía no fundamento definitivo que qualificava

o ser humano, sendo assim um direito inalienável e exigência essencial da própria natureza

espiritual e social do homem.

Um dos traços mais significativos da teoria de Rousseau é a sua praticidade para

que os seres humanos possam alcançar a felicidade, tanto no que se refere ao indivíduo

quanto no que diz respeito à sociedade. O caminho para a felicidade passa por um contrato

racional e livre que os seres humanos fazem entre si, na tentativa de construírem um

mundo diferente, pleno de justiça e distante das desigualdades. Por outro lado o homem

que constituirá esse tipo de sociedade deverá ser educado conforme os ditames da lógica

natural, para que dessa forma possa contribuir significativamente com aquela sociedade

por ele idealizada. Para traduzir a sua perspectiva de felicidade no âmbito da sociedade,

escreve Do Contrato Social, conhecido como Contrato Social, e para apresentar o seu

modelo de homem para a sociedade do Contrato escreve Emílio ou Da Educação,

conhecido popularmente apenas como Emílio, onde sistematiza o seu pensamento

pedagógico. Assim,

A idéia central de Rousseau é uma e a mesma, tanto em sua pedagogia como em

sua política. Trata-se de um problema delineado pela razão, enfocado

teoricamente a partir do ponto de vista quanto às finalidades. E assim é como no

Contrato Social ele intenta estabelecer as condições de uma sociedade que quer

regular-se segundo as exigências da razão, e o mais perto possível do ideal, em

Emílio apresenta o ideal de homem racional para o qual deve oferecer toda a

educação: o homem da natureza, que supõe uma formação centrada

exclusivamente na constituição da natureza humana (ZULUAGA, 1972, p.295).

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A seguir, portanto, passaremos à análise das principais idéias discutidas por

Rousseau no Contrato Social, para depois nos debruçarmos sobre o Emílio e assim

compreendermos as relações políticas e pedagógicas do pensamento filosófico do

iluminista de Genebra com o pensamento liberal.

2.1 A legitimidade política do contrato social entre os indivíduos: uma associação

fundada na liberdade.

Como ponto de partida argumentativo estabelecido por Rousseau no qual defende a

liberdade natural dos seres humanos como aspecto decisivo da sua plena humanidade o

autor abre seu primeiro capítulo do livro Do Contrato Social, com as seguintes palavras: “o

homem nasce livre, e por toda a parte encontra ferros” (1978, p. 22). Parece que a idéia

central do filósofo é demonstrar como que a liberdade natural dos seres humanos é

impedida pelas prerrogativas sociais. A condição natural de liberdade irrestrita dos

impulsos humanos é cerceada pelos impedimentos sociais.

Em defesa da liberdade humana e em confronto político e aberto contra o

pensamento absolutista francês, Rousseau reafirma que, “quando um povo é obrigado a

obedecer e o faz, age acertadamente; assim que pode sacudir esse jugo e o faz, age melhor

ainda, porque, recuperando a liberdade pelo mesmo direito por que lhe arrebataram, ou tem

ele o direito de retomá-la ou não o tinham de subtraí-la” (1978, p. 22). Para ele os seres

humanos possuíam uma liberdade natural comum que deveria ser preservada a qualquer

custo e esta seria conseqüência da natureza intrínseca da humanidade. É nesse sentido que

afirma:

Essa liberdade comum é conseqüência da natureza do homem. Sua primeira lei

consiste em zelar pela própria conservação, seus primeiros cuidados são aqueles

que se deve a si mesmo, e, assim que alcança a idade da razão, sendo o único

juiz dos meios adequados para conservar-se, torna-se, por isso, senhor de si

(ROUSSEAU, 1978, p. 23).

Vale à pena pontuar que Rousseau não defende a liberdade para manter os seres

humanos afastados dos ditames da soberania absolutista francesa e reforçar o

individualismo traçado por Locke. Sua defesa da necessidade de manutenção da natureza

livre dos indivíduos tem como objetivo a sua argumentação da criação do contrato social.

Em sua concepção, a criação de um pacto social entre os homens e construído por eles

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mesmos, seria estabelecido com base na liberdade que cada um deles tem no âmbito da

natureza.

A liberdade, portanto, deve ser advogada como pré-requisito para o contrato social,

e é através dele que a sociedade é organizada. Para Rousseau, era através do pacto social

que os próprios homens subsistiriam, buscando assim a auto-conservação. Na sua forma de

ver a sociedade, esta seria constituída a partir de um somatório de forças, “sendo, porém, a

força e a liberdade de cada indivíduo os instrumentos primordiais de sua conservação”

(1978, p. 32).

Ao associar mais uma vez a liberdade como prerrogativa fundamental para a

constituição do Estado burguês fundado no contrato social, o autor em questão define que a

tarefa para resolver os problemas conflitantes da civilização, encontra-se na seguinte

tarefa:

Encontrar uma forma de associação que defenda e proteja a pessoa e os bens de

cada associado com toda a força comum, e pela qual cada um, unindo-se a todos,

só obedece, contudo a si mesmo, permanecendo assim tão livre quanto antes.

Esse o problema fundamental cuja solução o contrato social oferece. [...] Enfim,

cada um dando-se a todos não se dá a ninguém e não existindo um associado

sobre o qual não se adquira o mesmo direito que se lhe cede sobre si mesmo,

ganha-se o equivalente de tudo que se perde, e maior força para conservar o que

se tem. (ROUSSEAU, 1978, p. 32 e 33).

Para o filósofo genebrino a sociedade precisava se libertar dos grilhões do

absolutismo, e, como caminho mais curto para a criação de um novo modelo societário, um

conjunto de leis organicamente criadas pelos próprios membros da sociedade, o faria, o

que de fato aconteceu após a Revolução Francesa. O soberano para Rousseau, é o Estado,

constituído pela coletividade, ao qual cada indivíduo deve obediência, e não um indivíduo

com prerrogativas divinas. É nessa direção que considerava a pessoa moral representada

pelo Estado como um ente da razão, e não um homem, e como tal, desfrutará dos direitos

do cidadão sem querer desempenhar os deveres de um súdito (1978, p. 35).

Delineando o caráter coletivo do soberano submisso ao contrato social, o autor

esclarece mais uma vez:

Mas o corpo político ou o soberano, não existindo senão pela integridade do

contrato, não pode obrigar-se, mesmo com outrem, a nada que derrogue esse ato

primitivo, como alienar uma parte de si mesmo ou submeter-se a um outro

soberano. [...] Ora o soberano, sendo formado tão só pelos particulares que o

compõem, não visa nem pode visar a interesse contrário ao deles, e

consequentemente, o poder soberano não necessita de qualquer garantia em face

de seus súditos, por ser impossível ao corpo desejar prejudicar a todos os seus

membros (ROUSSEAU, 1978, pp. 34 e 35).

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O domínio ideológico da classe burguesa sobre a sociedade, e especificamente

sobre as questões educacionais, tem sua origem, portanto, no surgimento do novo Estado

burguês do direito. Entendemos que um dos principais fundamentos desse modelo estatal

está na teoria do Contrato Social de Rousseau, a mesma que servirá como ponto de partida

para o modelo educacional criado por este teórico. Nesse sentido, torna-se evidente que a

ascensão da burguesia ao poder político na França determinou uma nova maneira de se

perceber a educação da população, que antes estava centrada nas mãos da igreja e, de

maneira excludente, como um privilégio apenas para os filhos da nobreza.

Os iluministas burgueses, portanto, tinham como uma das principais estratégias no

novo regime criarem um sistema educacional que estivesse de acordo com as novas idéias

libertárias. O liberalismo iluminista em seus primórdios precisava libertar-se das amarras

religiosas e monárquicas, defendendo o fato de que os seres humanos são essencialmente e

naturalmente livres para estabelecer os seus próprios caminhos na vida e na sociedade. É o

que veremos a seguir na análise da educação de Emílio.

2.2 Rousseau, e a revolução educacional: o estabelecimento do pensamento liberal

na educação

Como pressuposto essencial da sua formulação filosófica, Rousseau entendia que

os seres humanos eram em essência iguais e naturalmente bons. Nessa concepção

filosófica de homem, a humanidade não será desigual a partir de sua origem, mas uma,

única em essência, permeada de uma bondade inerente e igualitária.Pensando em uma

sociedade perfeita e baseada na bondade natural dos seres humanos, exemplificada no

comportamento dos primeiros índios, o iluminista Rousseau criou um personagem para o

pensamento pedagógico do seu tempo: Emílio. No romance criado em torno de Emílio,

Rousseau deixará claro que este deverá “educar-se sem nenhum contato com outros

homens, nem com religião alguma: apenas pelo convívio com a natureza. Privado do

contato dos pais e da escola, Emílio permanece nas mãos de um preceptor ideal, o próprio

Rousseau”. (GADOTTI, 2005, p. 88).

De forma sintética, o livro é a história da educação de um menino, Emílio, e de

uma menina, Sofia. “Dos cinco livros, os quatro primeiros tratam da educação de Emílio, e

o último, das necessárias diferenças na educação das meninas. Todavia quase todos os

princípios que se aplicam no caso de Emílio, aplicam-se igualmente no caso de Sofia”

(GILES, 1987, p. 177). No livro I a ênfase está na infância e na primeira fase da criança, o

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livro II trata da criança, de maneira específica, o livro III aplica-se ao processo educativo

dos primeiros anos da adolescência. Os livros IV e V se concentram na “última fase da

adolescência e do início da idade adulta, o que, conforme Rousseau corresponde às etapas

do crescimento e do amadurecimento da pessoa e das correspondentes formas adequadas

de educação” (GILES, 1987, p. 177).

O alvo de Rousseau ao escrever Emílio era demonstrar que, através de sua

estratégia educacional a formação plena de um ser humano deveria ser realizada conforme

a ordem natural da condição humana. O educador ou preceptor deveria colaborar de forma

significativa com a natureza, não devendo o mesmo adiantar-se ao desenvolvimento

natural da criança. Nesse sentido, na introdução do seu livro, ele vaticina:

Na ordem natural, sendo os homens todos iguais, sua vocação comum é a

condição de homem, e quem quer que seja bem educado para tal condição não

pode preencher mal as outras relacionadas a ela. Pouco me importa que destinem

meu aluno à espada, à igreja ou à barra. Antes da vocação dos pais, a natureza o chama para a vida humana. Viver é o ofício que quero ensinar-lhe. Ao sair de

minhas mãos, concordo que não será nem magistrado, nem soldado, nem padre;

será homem, em primeiro lugar; tudo que um homem deve ser, ele será capaz de

ser, se preciso, tão bem quanto qualquer outro (ROUSSEAU, 1995, p. 14).

Com efeito, perceberemos que os aspectos educacionais refletidos nas páginas de

Emílio, e destacados por nós a seguir no presente trabalho, estarão em consonância com o

pensamento liberal em educação, e por isso coerentes com o objetivo central deste

trabalho. Demonstraremos que as influências teóricas do pensamento educacional liberal

na atualidade estão totalmente alicerçadas nas prerrogativas teóricas de Rousseau e de

Locke como já vimos em argumentos anteriores. O discurso contemporâneo quanto à

formação de professores encontra nas orientações liberais de Locke e de Rousseau as

âncoras fundantes para a sua materialização, fazendo com que a radicalização neoliberal do

pensamento educacional da atualidade afete de maneira significativa a prática educativa e a

formação acadêmica dos futuros professores.

2.3 Elementos centrais do pensamento educacional de Rousseau em Emílio e a sua

relação direta com a filosofia liberal.

Três são os aspectos escolhidos por nós e delineados em Emílio que fazem relação

direta com o pensamento pedagógico liberal. A escolha deles é certamente emblemática

pois tem como objetivo plasmar a perspectiva educacional que nos dias atuais se configura

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como hegemônica na prática educativa. Dessa forma, não foram escolhas aleatórias, pelo

contrário, intencionais e relacionadas aos objetivos desse texto.

O primeiro elemento educacional que permeia a e educação de Emílio, considerado

por Rousseau como norma a ser seguida por todos os educadores interessados no

desenvolvimento das crianças, é a questão da importância da educação natural e

progressiva como ferramenta básica para o desenvolvimento correto das

crianças.Conforme o seu pensamento, o educador deveria deixar que a própria natureza se

encarregasse de produzir sobre o educando as capacitações naturais necessárias para que

este recebesse, em tempo oportuno, os conteúdos necessários para a vida em sociedade.

Interferir na ação da natureza seria um atentado contra o genuíno processo educacional. O

preceptor deveria descansar no sábio poder da natureza, pois é através dela que a criança

aprenderá os segredos da tenra idade. É assim que Rousseau aconselha os educadores:

Deixai a natureza agir bastante tempo antes de resolver agir em seu lugar,

temendo contrariar suas operações. Dizeis que conheceis o valor do tempo e não

quereis perdê-lo. Não vedes que o perdeis muito mais empregando-o mal do que

não fazendo nada, e que uma criança mal instruída está mais distante da

sabedoria do que aquela que não foi absolutamente instruída. (ROUSSEAU,

1995, pp. 112 e 113).

O segundo elemento educacional que deve orientar a educação de Emílio e de todas

as crianças tem a ver com o empirismo educacional ou em outras palavras, a educação a

partir dos sentidos. A educação deverá aguçar as percepções sensoriais do educando para

que a mesma seja efetiva. A primeira etapa da educação deve ser totalmente dedicada ao

aperfeiçoamento dos órgãos sensoriais, já que as primeiras necessidades das crianças são

essencialmente físicas e objetivas e não intelectuais e subjetivas. Para Rousseau, a criança

por ser incapaz de abstrações, deveria ser orientada a entrar em contato com o mundo

exterior através dos sentidos, fazendo ela mesma contato com as coisas concretas do

mundo exterior.

Digno de nota que para Rousseau a compreensão dos seres humanos tem seu ponto

de partida no uso adequado dos sentidos, fazendo do empirismo um dos fundamentos

necessários ao processo educativo. Para ele os sentidos e não os livros deveriam ser a base

do processo educativo. No segundo livro de Emílio ele assevera:

Como tudo o que entra no entendimento humano vem pelos sentidos, a primeira

razão do homem é uma razão sensitiva; é ela que serve de base para a razão

intelectual: nossos primeiros mestres de filosofia são nossos pés, nossas mãos,

nossos olhos. Substituir tudo isso por livros não equivale a nos ensinar a

raciocinar, mas sim a nos ensinar a nos servimos da razão de outrem; equivale a

nos ensinar a creditar muito e a nunca saber nada (ROUSSEAU, 1995, p. 141).

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O terceiro elemento educacional que gostaríamos de destacar quanto à formação

pedagógica de Emílio, e que se relaciona aos anseios deste artigo, diz respeito à prioridade

que o educador deve ter quanto às necessidades individuais da criança. Um dos elogios

feitos por educadores que hoje abraçam a concepção educacional de Rousseau, diz respeito

ao fato de que o livro Emílio constitui-se em uma forma bastante inteligente de demonstrar

amor pelas crianças, e aos filhos, especificamente. As crianças são priorizadas e

respeitadas de tal forma na sua individualidade que o intuito é fazer delas cidadãos

autônomos e livres da tirania das opiniões humanas dos adultos. Para ele as crianças devem

ser estimuladas a buscar coisas que correspondam às suas necessidades e desejos e não

porque são obrigadas a tê-las.

Retorno à prática. Já disse que vosso filho nada deve obter porque pede, mas

porque precisa, nem fazer nada por obediência, mas somente por necessidade.

Assim as palavras obedecer e mandar serão proscritas de seu dicionário, e mais

ainda os termos dever e obrigação, mas as palavras força e necessidade, impotência e constrangimento devem nele ocupar grande espaço. Antes da idade

da razão, não se poderia ter qualquer idéia sobre os seres morais ou sobre as

relações sociais. Assim, devemos evitar na medida do possível empregar

palavras que exprimam, por medo de que a criança relacione a essas palavras de

início falsas idéias que não conheceremos ou que não poderemos mais destruir

(ROUSSEAU, 1995, pp. 83 e 84, itálicos do autor).

Longe de qualquer ação impositiva, a prática professoral deve dar às crianças

suficiente liberdade de ação para que as mesmas se desenvolvam em direção às suas

necessidades básicas. A idéia de Rousseau era gerar em Emílio uma auto-suficiência

quanto à vida imediata dele, fazendo com que por si mesmo ele descobrisse que as suas

necessidades estavam acima dos seus desejos. Parece que está em jogo nas palavras do

pedagogo de Genebra é fazer com que o seu Emílio amadureça o suficiente a partir de uma

vida autônoma e independente, sem obrigatoriedade advindas de fora, mas como uma

decisão pessoal.

Está em jogo uma concepção não-diretiva de educação muito própria ao modelo

pedagógico liberal burguês que será apropriado pelos teóricos educacionais do século XIX

e também, até aos dias de hoje. O respeito à individualidade infantil como uma das

exortações básicas da teoria educacional de Jean Jacques Rousseau se tornará uma das

prerrogativas necessárias de demonstração de um genuíno amor pelas crianças.

Fica evidenciada a utilidade desse pensamento de Rousseau sobre a concepção

pedagógica dos dias contemporâneos quando lemos uma citação feita por Duarte advinda

do livro publicado no Brasil no ano de 1959, com o título de A Educação Nova, de autoria

do educador francês Roger Cousinet. Apesar de extensa, a citação abaixo se constitui em

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uma „pérola‟ esclarecedora para as intenções do presente trabalho, de demonstrar os

vínculos da teoria do autor de Genebra com as práticas pedagógicas de cunho liberal

predominantes sobre a educação contemporânea.

O elemento primordial da educação intelectual da criança é constituído por sua

atividade pessoal. A criança não deve aprender ciência, deve inventá-la. Cumpri

deixá-la “tocar em tudo, manejar tudo”, usar incessantemente essa experiência

que se “antecipa às lições”, deixá-la pensar em lugar de pensar por ela. [...] A

aprendizagem não é nem imitação mais ou menos servil, nem repetição, nem

mesmo exercício de imitação (como os temas do mesmo nome); é uma atividade

que não precisa ser provocada nem mantida pelo educador, porque se exerce e

se desenvolve naturalmente sempre que a criança julgue interessantes e úteis por si mesmos os objetos que se exercita. [...] Aí está a verdadeira educação, que

não tem necessidade de lições de mestres ou de livros. Basta colocar a criança

num meio suficientemente nutritivo do ponto de vista intelectual, para que

espontaneamente ela se mova e empregue a atividade que lhe permite conhecê-lo

sem qualquer intervenção do educador. Observa, experimenta e, a um tempo,

adquire, assim, conhecimentos científicos e forma em si mesma (o que é muito

mais precioso) um espírito científico. Aprende a conhecer o mundo que a cerca

imediatamente, e não segundo um programa estabelecido pelo mestre, que

decide tal ou qual fenômeno deve ser observado, mas de acordo com o seu

interesse. Interesse, observação científica, estudo do meio, tudo isso se encontra

na pedagogia de Rousseau (COUSINET apud, DUARTE, pp. 34 e 35, aspas do autor e itálicos nossos).

Rousseau tinha a consciência da importância dos pensamentos educacionais de

Locke para a constituição das suas idéias, e por isso em determinada altura do seu livro o

reverencia através das seguintes palavras, enfatizando o seu propósito de ampliar o

pensamento de Locke:

Todos os que refletiram sobre a maneira de viver dos antigos atribuem aos

exercícios da ginástica esse vigor de corpo e alma que os distingue mais claramente dos modernos. [...] O sábio Locke, o bom Rollin, o douto Fleury, o

pedante de Crouzas, tão diferentes entre si em tudo o mais, concordam todos

neste único ponto: exercitar bastante o corpo das crianças. É o mais judicioso

dos seus preceitos, é e será sempre o mais desdenhado. Já falei o bastante sobre a

sua importância, e, como não podemos dar a este respeito razões melhores nem

regras mais sensatas do que as que encontramos no livro de Locke

[provavelmente o livro “Pensamentos Acerca da Educação”], contentar-me-ei

com remeter a ele, depois de ter tomado a liberdade de acrescentar algumas

observações às suas (LOCKE, 1978, p. 142, itálicos e colchetes nossos).

Rousseau assume, portanto, a prerrogativa lockeana de que um corpo fisicamente

bem cuidado proporcionará uma mente sã. Ele entende, assim como Locke, a necessidade

de criar estratégias na infância para que as crianças possam exercitar os seus corpos da

melhor maneira possível, pois esse seria a primeira fora de educar a mente.

3. Breve análise crítica sobre os desdobramentos políticos e sociais do pensamento

liberal burguês em educação para a atualidade.

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O tipo de educação humanista, centrada na individualidade da criança foi um dos

fundamentos filosóficos da educação nova ou da “Escola Nova”, que permeará o

pensamento educacional das futuras sociedades burguesas. As idéias de Locke e de

Rousseau serão desdobradas e associadas ao pensamento liberal econômico do sistema

capitalista. A educação se tornará na ferramenta mais preponderante para a formação desse

novo homem burguês, forjado para atender às demandas da sociedade capitalista. O

indivíduo autônomo e competente diante do novo maquinário moderno capitalista será

fruto dessa nova educação burguesa orientada por Rousseau e Locke, dentre outros.

A filosofia social burguesa implantada na sociedade européia dos séculos XVIII e

XIX, como fruto da revolução política ocorrida na França, delineava-se como a alternativa

mais transformadora de todos os tempos, tendo como carro chefe da mudança social, as

novas relações econômicas capitalistas. A nova ordem republicana advinda do processo

revolucionário burguês contra as forças da monarquia confirma a nova postura do estado

burguês em relação à educação, e, em especial a sua luta contra a igreja. Laval aborda essa

questão da seguinte maneira,

Sabe-se que o Estado se definiu, inicialmente, como um educador da Nação em

luta contra a igreja, para assegurar sua hegemonia simbólica e ideológica e que

não hesitou em retomar muito de seu adversário tanto no plano organizacional

quanto no plano pedagógico para realizar essa grande obra. No entanto, segundo

uma sutil combinação, a escola sempre manteve ligações mais ou menos diretas,

segundo as épocas e os domínios, com o universo do trabalho. (LAVAL, 2004,

p.6).

A educação, portanto, passou a ser utilizada como estratégia ideológica para a

implementação da nova mentalidade burguesa de ver as relações sociais e políticas. Dessa

forma, antes de ser utilizada como um mecanismo de treinamento da classe operária da

nova empresa capitalista de produção fabril, a escola terá essencialmente uma nova função

política e cultural: ser o canal ideológico e político para o novo pensamento liberal que se

estabelece na Europa, e, de maneira mais específica, na França do século XVIII.

Não apenas em termos históricos ligados ao século XVIII o pensamento

educacional de Rousseau e Locke teve o seu alcance verificado, tais desdobramentos de

cunho liberalizante para o processo de escolarização podem ser percebidos na análise feita

por Saviani sobre as transformações que o pensamento pedagógico de Rousseau trouxe

para os dias atuais.

Compreende-se, então, que essa maneira de entender a educação, por referência

a pedagogia tradicional, tenha deslocado o eixo da questão pedagógica do

intelecto para o sentimento; do lógico para o psicológico; dos conteúdos

cognitivos para os métodos ou processos pedagógicos; do professor para o aluno;

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do esforço para o interesse; da disciplina para a espontaneidade; do diretivismo

para o não-diretivismo; da quantidade para a qualidade; de uma pedagogia de

inspiração filosófica centrada na ciência da lógica para uma pedagogia de

inspiração experimental baseada principalmente nas contribuições da biologia e

da psicologia. Em suma, trata-se de uma teoria pedagógica que considera que o

importante não é aprender, mas aprender a aprender (SAVIANI, 2006, p. 9).

À semelhança de Saviani entendemos que o pensamento educacional de Rousseau

produziu um modelo educacional circunscrito às crianças que, nos dias atuais, fazem parte

das famílias abastadas da sociedade capitalista, e por isso habilitadas a participar do tipo de

educação proposta por Rousseau e forjada em muitas escolas da atualidade. Em outras

palavras, a desigualdade social e econômica predominante nas sociedades capitalistas

contemporâneas é transferida de maneira acirrada para dentro das escolas, reproduzindo,

portanto, no modelo educacional a caracterização dualizada das sociedades capitalistas.

Uma das definições mais precisas sobre o caráter das sociedades dualizadas produzidas

pelo então sistema capitalista afirma que,

As sociedades dualizadas – sociedades de “ganhadores” e “perdedores” de

“insiders” e “outsiders”, de “integrados” e “excluídos” –, longe de

apresentarem-se como um desvio patológico do aparentemente necessário

processo de integração social que deveria caracterizar as sociedades modernas,

constituem hoje uma evidência indisfarçável da normalidade que regula o

desenvolvimento contemporâneo das sociedades competitivas. Embora seja certo

que no Terceiro Mundo este caráter dualizado (e dualizante) expressa-se com

inusitada selvageria, o apartheid social atravessa implacável a economia-mundo,

muito além das diferenças particulares com que se manifesta em cada cenário

regional (GENTILI, 2003, pp. 233 e 234).

Ao relacionar o caráter dualizante das sociedades capitalistas ao pensamento

educacional e político do liberalismo, contemplado nos pressupostos teóricos da

mentalidade escolanovista. Saviani deixa evidente que quando os teóricos da Escola Nova

criticavam a metodologia educacional da pedagogia tradicional, o fizeram com o intuito de

Aprimorar a educação das elites e esvaziar a educação das massas. Isto porque,

realizando-se em algumas poucas escolas, exatamente naquelas freqüentadas pelas elites, a proposta escolanovista contribuiu para o aprimoramento do nível

educacional da escola dominante. Entretanto, ao estender sua influência em

termos de ideário pedagógico às escolas da rede oficial, que continuaram

funcionando de acordo com as condições tradicionais, a Escola Nova contribuiu

pelo afrouxamento da disciplina e pela secundarização da transmissão de

conhecimentos, para desorganizar os ensinos nas referidas escolas. Daí, entre

outros fatores, o rebaixamento do nível de educação destinada às camadas

populares (SAVIANI, 2006, p. 67).

Considerações finais

A crítica que se faz ao pensamento liberal e pedagógico burguês é aprofundada ao

se pensar nas limitações da atividade docente e, conseqüentemente, nas funções da escola

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no seu todo. Nessa perspectiva o trabalho docente é secundarizado em detrimento das

carências e anseios dos discentes privilegiando-se os mecanismos psicoeducacionais. Em

certo sentido a atuação do professor em sala de aula será o mais útil possível na medida em

que ele dominar as estratégias pedagógicas voltadas o conhecimento individualizado do

aluno, abrindo mão de aspectos disciplinares e voltados para a priorização dos

conhecimentos necessários ao desenvolvimento acadêmico e intelectual do aluno.

Esta prática educativa que se constitui como hegemônica no atual contexto

educacional, certamente, reflete de maneira mais ampla a maneira liberal de se perceber a

realidade social atualmente. A filosofia que predomina na atual fase da sociedade

capitalista é de cunho liberal e é esta que se vê refletida nas relações educativas na escola

em todos os seus níveis. Como elemento presente no âmbito da sociedade, a escola, sofre

as determinações sociais, políticas, culturais e econômicas que predominam sobre o escopo

social, e por isso mesmo apresenta em sua prática interior os mesmos elementos liberais

experimentados socialmente.

Nessa perspectiva, entendemos como fundamental estabelecer no contexto da

escola algumas estratégias de embate que podem ser encaminhadas pelos educadores que,

em certo sentido, estão lutando contra o pensamento pedagógico liberal. Entendemos que a

prática docente é parte essencial de uma luta maior que busca a superação do modelo de

sociedade liberal predominante. Tais estratégias devem ser vistas como uma forma de luta

política e tremendamente necessária no atual estágio em que se encontra o processo

educativo.

A primeira seria o estudo aprofundado dos aspectos liberais históricos que, desde a

sua raiz, norteiam a formação da sociedade burguesa. Não resta alternativa mais

consistente aos educadores do que o estudo dos mecanismos formativos do pensamento

liberal. É preciso conhecer de maneira detalhada contra quem se está lutando, ou seja,

saber como se desenrolou na história da humanidade uma forma de pensar que após três

séculos permanece como grande capilaridade hegemônica.

Sem o conhecimento dos fundamentos liberais que formataram a nossa sociedade

será muito difícil perceber na prática educativa contemporânea as estratégias pedagógicas

liberais que, de maneira „camaleônica‟ se transmudam em cada período. Sugerimos para

isso que se formem grupos de estudo e de discussão em torno dos teóricos clássicos do

liberalismo político e que se perceba quais os desdobramentos pedagógicos manifestos na

prática educativa contemporânea.

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Infelizmente, muitos educadores já não querem mais estudar e, por conseguinte,

conhecer os fundamentos históricos e filosóficos que justificam a prática deles nos dias

atuais. Estão envolvidos num turbilhão ativista contínuo que se esquecem de que um dia

devem ter ouvido que a prática sem a teoria é cega. Nesse sentido, aceitam o apelo

pragmático filosófico tão comum no pensamento pedagógico hodierno, que repele a teoria,

exigindo que os cursos de formação de professores sejam mais práticos e menos teóricos.

Nesta onda de pragmatismo educativo, portanto, os fundamentos históricos e filosóficos

são abandonados, sendo essa uma norma formativa em muitos cursos vinculados à

licenciatura acadêmica.

Na esteira desse processo de estudo científico dos autores liberais, a segunda

atitude prática seria a apropriação, por parte dos professores, de uma ferramenta de análise

crítica da sociedade capitalista que estivesse na contramão do pensamento pedagógico

liberal clássico. Entender como o pensamento liberal funciona desde a sua raiz não é

suficiente, faz-se necessário apropriar-se de uma ferramenta política e pedagógica que o

confronte de maneira objetiva.

Nesse sentido, uma perspectiva crítica de combate pedagógico ao pensamento

liberal encontra no materialismo histórico dialético o seu oponente mais correto e vigoroso,

já que tal perspectiva desde a sua gênese se constitui em uma forma crítica de combate ao

liberalismo clássico. Assim, na medida em que os docentes estudem esta concepção de

análise e de entendimento do real para a construção de uma proposta pedagógica de caráter

antiliberal coerente com os interesses da emancipação humana em todos os seus níveis,

eles terão condições de dar o seguinte passo em direção à terceira estratégia.

Cumpre referenciar em tempo que este processo de conscientização pode ser feito a

partir de duas ações concretas: o estudo das teorias marxianas e o estudo da pedagogia

histórico-crítica. Tais aprofundamentos teóricos, certamente, instrumentalizarão os

professores de maneira séria na produção de ações coletivas pedagógicas antiliberais

A terceira estratégia como decorrência direta da segunda, é viabilizar ações

coletivas intencionais dos professores com o objetivo de confrontar em sala de aula

manifestações pedagogicamente liberais. Os professores quando se dispõem a agir

coletivamente podem muito mais do que quando têm atitudes solitárias. Na verdade, eles

deveriam saber o quanto o potencial deles se multiplica na medida em que atuam em torno

de propostas comuns e não fragmentadas.

As ações pedagógicas não liberais de caráter coletivo devem ser discutidas pelos

professores, a partir de fundamentos teóricos não liberais, mas emancipatórios. Elas devem

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seguir os teóricos que se aliem a discutir a função social da escola e que tenham como

finalidade a superação do modelo de sociedade liberal que se mantém no atual momento do

capitalismo contemporâneo.

Longe de ser uma proposta utópica, as ações pedagógicas não liberais levadas a

efeito pelos docentes, podem exercer o caráter de ação dialética contrário na relação

determinada/determinante. Em outras palavras, a escola ao mesmo tempo em que sofre as

determinações do todo social sobre ela, pode também, na medida em que os professores se

unam também, exercer uma ação de força sobre a sociedade. Ela sofre influência como

pode e deve também influenciar. A escola não é apenas um aparelho inerte de reprodução

ideológica do Estado, ela tem potencialidades para agir na contramão do discurso social,

desde quando saiba se utilizar dos mecanismos que ela dispõe. Para isso a ação dos

docentes é fundamental.

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