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RAILDE DA GLÓRIA FERNANDES DO FEMINISMO A AUTOAJUDA: uma análise a partir dos estudos de gênero UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MONTES CLAROS MONTES CLAROS Março/2013

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RAILDE DA GLÓRIA FERNANDES

DO FEMINISMO A AUTOAJUDA: uma análise a partir dos estudos

de gênero

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MONTES CLAROS

MONTES CLAROS

Março/2013

RAILDE DA GLÓRIA FERNANDES

DO FEMINISMO A AUTOAJUDA: uma análise a partir dos estudos

de gênero

Dissertação de mestrado apresentada ao

Programa de Pós-Graduação em História da

Universidade Estadual de Montes Claros,

como parte dos requisitos para obtenção do

título de Mestre em História.

Área de concentração: História Social

Linha de Pesquisa: Cultura, Relações Sociais e

Gênero

Orientadora: Profa.: Dra.: Regina Célia Lima

Caleiro

Co-orientadora: Profa.: Dra.: Cláudia de Jesus

Maia

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MONTES CLAROS

MONTES CLAROS

Março/2013

F363f

Fernandes, Railde da Glória.

Do feminismo a autoajuda [manuscrito] : uma análise a partir dos estudos

de gênero / Railde da Glória Fernandes. – 2013.

136 f. : il.

Bibliografia: f. 133-136.

Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual de Montes Claros -

Unimontes, Programa de Pós-Graduação em História/PPGH, 2013.

Orientadora: Profa. Dra. Regina Célia Lima Caleiro.

Coorientadora: Profa. Dra. Cláudia de Jesus Maia.

1. Feminismo – Gênero – Estudo. 2. Feminismo – Discurso -Subjetividade.

3. Autoajuda – Análise literária. I. Caleiro, Regina Célia Lima. II. Maia,

Cláudia de Jesus. III. Universidade Estadual de Montes Claros. IV. Título. V.

Título: Uma análise a partir dos estudos de gênero.

Dedico este trabalho a uma mulher forte e de muita

personalidade que inspirou muitas outras mulheres

em minha família, minha avó Romana, um exemplo

de vida. Ela nos deixou recentemente, mas está viva

em nossa memória e hoje descansa em paz...

AGRADECIMENTOS

Após uma longa caminhada de pesquisa, estudos e escrita, finalmente chega o

momento de agradecer a todos que contribuíram para que eu conseguisse alcançar o fim

da jornada.

Meus sinceros agradecimentos à minha orientadora professora Dra. Regina Célia

Lima Caleiro, por ter confiado em mim, e confiado no meu trabalho. Agradeço pela

compreensão nos momentos mais difíceis. Sobretudo agradeço por me tratar com

dignidade e humanidade.

À professora Dra. Cláudia de Jesus Maia, pela coorientação, pelas dúvidas tiradas,

pelos livros emprestados e por ter sido o impulso inicial para minhas pesquisas sobre

mulheres. Às professoras Dra. Helen Ulhôa e Dra. Telma Borges pelas contribuições na

qualificação. À Helen, ainda agradeço pelas conversas nos corredores, por tirar minhas

dúvidas sobre Análise de Discurso, e por ter me ouvido nos momentos de angústia

devido aos percalços da pesquisa.

Às pessoas que formaram o que eu sou hoje, meus pais Evanide e Jaime, duas

pessoas que tinham a educação e o conhecimento como um tesouro a ser conquistado.

Sinto-me imensamente satisfeita por poder realizar esse sonho por eles. À minha irmã

Rayanne em especial por acompanhar os momentos de escrita, por fazer partes das

discussões e pelas correções gramaticais. Ao meu cunhado Oscar que é como um irmão,

por sua presença constante. À Tia Vanda que sempre foi como uma mãe para mim,

oferecendo o mesmo apoio, e às suas filhas Gal e Leidy pela força. Agradeço à Maria

Clara, por me fazer rir com sua inocência de criança, uma pessoinha cheia de vida

sempre nos impulsiona a querer viver mais e melhor.

A uma pessoa mais do que especial, fundamental não só na caminhada desse

mestrado, mas em minha vida como um todo. Meu namorado, colega, amigo e porto

seguro, Fabiano César. Agradeço pelo apoio incondicional, por me compreender, por

me acalentar, por enxugar as minhas lágrimas, e por me dar a esperança de um futuro

melhor.

Agradeço à banca de avaliação composta pelas professoras Dra. Helen Ulhôa

Pimentel e Dra. Vera Lúcia Puga, por terem aceitado nosso convite.

Amigas são aquelas pessoas com quem podemos jogar conversa fora e esquecer-

se dos problemas, dessa forma agradeço à Chris com quem já compartilho as alegrias e

as tristezas há 10 anos. À Neiva, amiga, vizinha e companheira de caminhada que

escuta pacientemente a novela da minha vida. Nossa caminhada é um momento muito

especial do meu dia, pois é sempre bom conversar com pessoas sábias. À Clarice, que

entende como ninguém cada palavra do que eu digo, pois foi o meu espelho quando

ainda na graduação eu tracei meus objetivos acadêmicos.

A outras pessoas importantes a quem sou muito grata, o colega e professor Jânio

Marques Dias pelo empréstimo de material, e ao colegiado do PPGH por ter me

recebido como representante discente nas reuniões com as quais aprendi muito sobre a

vida acadêmica em suas nuances positivas e negativas.

Finalmente agradeço a CAPES, pela bolsa de estudo que me proporcionou

dedicação integral à pesquisa.

“Sinto necessidade de mudar de nível, de mudar, apenas.

Não, não sou contra a sexualidade, ao contrário. Tenho,

entretanto, um engajamento feminista, um engajamento

comigo mesma, que impede o cego assujeitamento às

imposições sobre meu corpo e meu ser. Procuro, ao

contrário, perfurar as evidências infladas de certezas e

verdades, as que criam obrigações e fixam identidades,

encobrindo a face do poder.” (Tânia Navarro Swain,

2008)

RESUMO

O objetivo deste trabalho é analisar a literatura de autoajuda no que tange à constituição

de um ideal feminino na primeira década do século XXI. Acreditamos que essa

literatura trabalhe em contraponto ao discurso feminista, visto que, estamos em uma

época em que as mulheres vivenciam novas possibilidades de atuação na sociedade e

uma subjetividade mais fundamentada pelos ideais de independência, ainda assim

encontramos esses livros, que trazem conselhos ainda pautados por valores patriarcais.

Buscamos então compreender como esta literatura constrói um modelo de feminilidade

e conduta para suas leitoras. Através dos estudos de gênero analisamos a constituição de

sujeito enquanto homem e mulher. Três livros de autoajuda foram escolhidos para a

análise, levando em conta seus índices de vendagem e a conformidade com o objetivo

proposto. Para a análise desse corpus documental laçamos mão da Análise do Discurso

de vertente francesa inspirada pelos estudos do discurso de Michel Foucault, que visa

analisar sentidos produzidos por um texto, levando em conta suas condições de

produção, como o contexto histórico, social e cultural em que é produzido.

PALAVRAS-CHAVE: autoajuda, gênero, feminismo, discurso, subjetividade

ABSTRACT

The objective of this study is to analyze the self-help literature regarding the formation

of a feminine ideal in the first decade of this century. We believe that this literature is

worksat counterpoint to the feminist discourse, since we are in a time when women

experience new possibilities of action in society and a more subjectivity groundedby the

independence ideals of these books that bring councils still ruled by patriarchal values.

Thereby, we seek to understand how this literature builds a model of femininity and

conduct for its readers. Through gender studies we intend to analyze the constitution of

the subject as man and wife. Three self-help books were chosen for analysis, taking into

account their levels of selling and compliance with the proposed objective. For the

analysis of this documentary corpus we used Discourse Analysis of French slope

inspired by studies of the speech of Michel Foucault, which aims to analyze meanings

produced by a text, taking into account their production conditions, such as the

historical, social and cultural that is produced.

KEYWORDS: self-help, gender, feminism, discourse, subjectivity

LISTA DE FIGURAS

FIGURA 1 – Capa do livro Porque os homens fazem sexo e as mulheres fazem

amor................................................................................................................................31

FIGURA 2 – Capa do livro Porque os homens mentem e as mulheres choram.............32

FIGURA 3 – Capa do livro Porque os homens amam as mulheres poderosas...............33

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 10

CAPÍTULO 1 - OS CAMINHOS DA PESQUISA................................. ................... 14

1.1 Contextualizando a leitura feminina ............................................................. 14 1.2 As leituras para o bello sexo ......................................................................... 16 1.3 Ideal feminino em mudança. ........................................................................ 17

1.4 A autoajuda ................................................................................................... 23 1.5 As fontes e seus recursos de legitimação...................................................... 27

1.6 A constituição do sujeito .............................................................................. 34 1.7 Estudos sobre as construções de gênero ....................................................... 37 1.8 Gênero como categoria analítica .................................................................. 41 1.9 Análise do discurso ....................................................................................... 44

CAPÍTULO 2 - CONSTRUINDO AS DIFERENÇAS .............................................. 54

2.1 A origem das diferenças ............................................................................... 55 2.2 As capacidades cognitivas ............................................................................ 73

2.3 Trabalho ........................................................................................................ 82

CAPÍTULO 3 - AMOR, CASAMENTO E SEXUALIDADE .................................. 92

3.1 A conquista do amor ..................................................................................... 92 3.2 Casamento .................................................................................................... 98 3.3 Conselhos para o cotidiano dos casais ........................................................ 105

3.4 Sexualidade ................................................................................................. 116 3.5 A atração sexual.......................................................................................... 121

CONSIDERAÇÕES FINAIS ..................................................................................... 127

FONTES.......................................................................................................................133

REFERÊNCIAS. ........................................................................................................ 134

10

INTRODUÇÃO

O século XX foi um marco no que diz respeito à condição feminina na sociedade.

Nele se situam vários esforços de grupos sociais diversos em busca da ampliação da

atuação feminina no mundo público. A entrada de maior número de mulheres nas

universidades fez ressurgir discursos acerca da condição de opressão por que passavam.

Os movimentos feministas levantaram a bandeira da independência, fizeram ouvir as

vozes de lutas e determinação em busca de uma sociedade com mais oportunidades para

as mulheres. Embora tendo sido considerado um movimento de mulheres de classe

média, aos poucos o discurso da independência se alastrou pela sociedade, forçando a

conquista de inúmeros direitos.

Na primeira década do século XXI, as mulheres encontram-se bem colocadas no

mercado de trabalho, apesar da defasagem salarial em relação aos homens. Elas são

maioria nas universidades, ocupam cargos públicos de destaque, como o de Presidente

da República como é o caso da história recente do Brasil. Neste contexto, observa-se

que as mudanças foram significativas para o mundo feminino, devido a isso, as

mulheres vivenciam uma época em que suas identidades se encontram cada vez mais

variadas e contraditórias; pois pesar de os discursos sobre mulheres independentes

serem fortes em alguns aspectos como o trabalho e a educação, em outros como o

casamento, a maternidade e o domínio sobre seu corpo ainda verifica-se resquícios de

uma cultura patriarcal. A instabilidade das identidades e a velocidade com que essas

mudanças aconteceram geraram uma busca por uma posição em que possam se afirmar

enquanto mulheres de uma nova época. A literatura de autoajuda serve então como uma

ferramenta útil, oferecendo um caminho a seguir, pois estabelece em seu discurso

formas de comportamento para as mulheres.

A literatura de autoajuda pode ser classificada como literatura de massa, que por

sua vez, está relacionada à cultura de massas, isto é, um produto cultural produzido em

massa com vistas ao consumo. Existem variadas temáticas dentro da categoria da

autoajuda, e dentre elas, a autoajuda sentimental. Esses livros se apresentam como um

manual para ajudarem homens e mulheres a se entenderem em suas relações amorosas.

Com isso definem papéis sociais para ambos os sexos, baseando-se em estudos

científicos, depoimentos de pessoas e exemplos de situações do cotidiano de casais.

Alguns livros se dirigem especificamente às mulheres e pretendem guiá-las para que

11

tenham relacionamentos saudáveis. Neste intuito estabelecem comportamentos ditos

adequados para se alcançar sucesso no amor.

O objetivo deste trabalho é analisar essa literatura de autoajuda no que tange à

constituição de um ideal feminino na primeira década do século XXI. Acreditamos que

essa literatura trabalhe em contraponto ao discurso feminista, visto que, estamos em

uma época em que as mulheres vivenciam novas possibilidades de atuação na sociedade

e uma subjetividade mais pautada pelos ideais de independência. Buscamos então

compreender como essa literatura constrói um modelo de feminilidade e conduta para

suas leitoras. Portanto, a problematização desta pesquisa girou em torno de duas

questões: A partir de que modelos a autoajuda constrói identidades para as mulheres no

início do século XXI? Essa literatura funciona como um contradiscurso ao discurso do

feminismo?

Partimos da hipótese de que a autoajuda ao mesmo tempo em que se utiliza das

ideias da nova condição feminina, reforça valores patriarcais na constituição de um

modelo ideal de mulher. Acreditamos ser possível extrair desses livros comportamentos

tidos como ideais para as mulheres e identificar assim o impasse vivido por muitas ao

vivenciar a experiência de ser uma nova e uma antiga mulher simultaneamente. Essa

literatura funciona então como uma prática discursiva que constrói uma realidade sobre

o comportamento feminino no novo século.

Para alcançar os objetivos que aqui propomos, fizemos uma pesquisa entre vários

livros de autoajuda sentimental e chegamos a três títulos que se encaixam no objetivo da

pesquisa. Levamos em consideração aqueles que estiveram mais tempo nas listas dos

livros mais vendidos no país entre os anos de 2000 a 2010. Os livros escolhidos foram:

Por que os homens fazem sexo e as mulheres fazem amor? dos autores Allan e Barbara

Pease, publicado no Brasil no ano 2000; Por que os homens mentem e as mulheres

choram?, dos mesmos autores e publicado no Brasil em 2003; e Por que os homens

amam as mulheres poderosas?, da escritora e radialista americana Sherry Argov, este

publicado no Brasil em 2009.

Para a análise do corpus documental laçamos mão da Análise do Discurso de

vertente francesa, que visa analisar sentidos produzidos por um texto, levando em conta

suas condições de produção, como o contexto histórico, social e cultural em que é

produzido. Ancoramo-nos nos estudos dos discursos feitos por Michel Foucault, em que

12

entende-se que um enunciado não se encerra em si mesmo, está situado em uma gama

de significados que dão sentido às palavras e expressões. Em síntese, um discurso

sempre remete a outros discursos. Portanto, buscamos na literatura de autoajuda

identificar os sentidos produzidos pelos livros; procuramos entender em que discursos

se apóiam para definir os comportamentos de homens e mulheres, bem como a

determinar os passos que as mulheres devem seguir para obter êxito e satisfação em

seus relacionamentos.

No primeiro capítulo, situamos o contexto histórico e metodológico que permeia

esta pesquisa. A leitura direcionada para as mulheres pode ser observada no Brasil

desde o século XIX, em que manuais de aconselhamento e romances procuravam

ensiná-las a desenvolver seu papel social de mãe, esposa e dona de casa. A literatura de

autoajuda se apresenta no início do século XXI como um manual para as mulheres

guiarem suas vidas e alcançarem sucesso em seus relacionamentos, embora em formato

diferente daqueles do século XIX, a autoajuda também constrói identidades para elas,

definindo os comportamentos aceitáveis. Ainda neste capítulo dissertamos acerca do

surgimento e do funcionamento na autoajuda, um produto da cultura de massas que vem

crescendo mais a cada dia. Apresentamos os estudos sobre a constituição do sujeito, os

estudos de gênero e a análise do discurso, sendo estes os referenciais teóricos e

metodológicos a qual nos ancoramos neste trabalho.

As discussões sobre as diferenças entre os sexos estão presentes em vários meios

de debates. Percebemos este assunto presente na mídia, nas revistas femininas, em

propagandas publicitárias entre outros. Na literatura de autoajuda esse tema não

somente é recorrente como existem títulos especificamente para definir, ou segundo os

autores, para esclarecer as diferenças entre os sexos. Devido a isso no segundo capítulo

analisamos a forma pela qual os livros selecionados definem a origem das diferenças

entre os sexos, e como essas diferenças refletem em questões como as capacidades

cognitivas e o mundo do trabalho.

As mulheres são associadas nos discursos sociais às questões sentimentais, são

caracterizadas como seres amorosos, carinhosos e prontos para oferecer esses

sentimentos aos outros. O casamento é visto até os dias de hoje, apesar de todas as

mudanças trazidas pelos feminismos, como um ponto alto na vida feminina, a realização

13

de um sonho; a literatura de autoajuda traz o mesmo discurso, associando o destino das

mulheres inevitavelmente ao matrimônio.

A sexualidade feminina foi alvo de muitas investidas por parte de várias

instituições. Segundo Regina Caleiro e Jacqueline Machado, “a conduta da mulher, a

feminilidade e a maternidade, sua sensibilidade e afetividade, sempre despertaram

receio e significaram mistério para os homens.” (CALEIRO, MACHADO, 2007, p. 7)

De acordo com essas autoras, viver seus desejos, ou desejar se deliciar com os prazeres

mundanos eram consideradas atitudes de mulheres loucas até meados do século XX.

Dessa forma a sexualidade feminina é vista com muito receio, devendo ser domesticada

das mais variadas formas. A literatura de autoajuda trata da sexualidade feminina como

destinada a dar prazer aos homens, para as mulheres, segundo esses livros, o importante

é o amor. Portanto, no terceiro capítulo, fizemos uma análise das questões relacionadas

ao amor, casamento e sexualidade das mulheres nos discursos da autoajuda.

Nas considerações finais trazemos nossas últimas reflexões sobre o tema

dissertado nesta pesquisa, e apresentamos o percurso que nos levou aos estudos de

gênero, do feminismo e da autoajuda.

14

Capítulo 1

OS CAMINHOS DA PESQUISA

1.1 Contextualizando a leitura feminina

A leitura é o que transforma em obras as letras, frases e enredos. E a leitura é

sempre determinada pelo lugar de fala ocupado por um leitor numa

sociedade, num dado momento histórico. Portanto é feita através do crivo de

classe, raça ou gênero. Essas mesmas noções, de classe, raça ou gênero são

mutáveis e construídas no decorrer da História. (TELLES, 1997, p. 402)

Para falarmos sobre uma literatura produzida para mulheres é preciso antes situar

o momento histórico em que as mulheres começaram a ser instruídas. Segundo Monica

Yumi Jingenzi, no século XIX, os termos educação e instrução aparecem interligados e

se diferenciam no tocante à finalidade de cada um. Educação pressupunha o

desenvolvimento das capacidades morais, enquanto instrução dizia respeito às

capacidades intelectuais. Deduzimos então que as mulheres foram ensinadas a ler

aumentando sua capacidade intelectual, com a intenção de que lessem textos específicos

que as educariam moralmente. O século XIX possui uma característica particular no que

diz respeito à educação:

A mudança da corte portuguesa para o Brasil representou o início de uma

fase de mudanças sócio culturais entre as quais destacam-se a promoção de

festas cívicas, e edificação do Real teatro de São João, o início oficial da

produção impressa e a defesa da imigração européia, com o intuito de

branquear a população, especialmente a carioca, mais próxima a corte. A

essas intervenções somaram-se a intenção de iluminar os espíritos por meio

da instrução ministrada numa variada gama de instituições, as quais iam

desde os próprios lares, até os cursos recém instalados de engenharia e

medicina. (FARIA FILHO et al, 2009, p. 72)

Os homens deveriam se ver como parte de um mundo civilizado, pautado pelo

ideal de progresso, a educação por via das Luzes era vista como um sintoma do

progresso. Essa temática passou a fazer parte dos discursos políticos da época. O

discurso da educação, no entanto, não era pautado como educação para todos, visto que

a educação era diferenciada levando-se em conta as hierarquias sociais de classes e de

gênero. O lugar de se educar não era somente a educação escolar, pois nos moldes de

15

um sistema educacional, esta ainda não existia, então outros lugares possuíam os

mesmos objetivos, como o teatro por exemplo.

(...) o teatro, verdadeira “escola da moral pública”, não sendo, pois, a

educação obra apenas da escola,(...) deveria conscientizar e servir como

veículo da razão, devendo para isso seduzir o espectador. Por sua vez, a

literatura, por meio de suas linguagens e discursos metaforizados, deveria

propagar intenções moralizadoras e civilizatórias. Não menos importante, a

imprensa deveria servir como instrumento da ação educacional posta em

marcha por uma elite que se auto-representava como portadora dos signos da

civilidade. (FARIA FILHO, et al, 2008, p. 72)

De acordo com Elisa Maria Verona, neste contexto de mudanças, as mulheres

exerciam um novo papel, e começaram a ser educadas para ocupar outro lugar a ser

desempenhado no ambiente social que surgia. Estavam mais expostas à vida pública,

pois apareciam nos eventos ao lado de seus maridos e precisavam se comportar de

acordo com as novas prerrogativas sociais do mundo civilizado1. Saber conversar sobre

assuntos agradáveis, ter fala suave, ar reservado, atitude modesta e silenciosa e nada de

bebidas alcoólicas. “A mulher da segunda metade do século deixou de ser tão alheia ao

mundo exterior à sua casa, alargou-se a paisagem de muita Iaiá brasileira no sentido de

maior variedade de contatos com a vida extradoméstica.” (VERONA, 2007, p.31)

Vale ressaltar que esta mudança não significou igualdade de direitos não

extrapolando os limites da casa, a mulher de elite passou a ser vista como formadora

dos indivíduos. A construção da nação civilizada requeria cidadãos valorizadores da

pátria, a mulher como mãe e esposa seria responsável pela harmonia familiar e pela

educação dos cidadãos para servir à pátria. Então era preciso “educá-la adequadamente

para o bem geral da nação.” (FARIA FILHO, et al, 2008, p.73) As famílias estando

bem, a nação também estaria, e dessa forma, as mulheres teriam uma contribuição muito

importante no estabelecimento dessa harmonia.

1 Aqui faz-se referencia à sociedade burguesa, as mulheres das classes mais baixas já faziam parte da

esfera pública, não no que diz respeito a direitos e importância, mas a esfera pública como espaço onde

trabalhavam.

16

1.2 As leituras para o bello sexo

A educação feminina estimulava a formação de um sujeito adequado aos moldes

do que a sociedade entendia como ideal para uma mulher. As moças aprendiam as

primeiras letras e os afazeres domésticos, até mesmo a maternidade e os cuidados com o

outro, seja marido ou filhos. Apesar de os serviços domésticos serem considerados

características naturais das mulheres, os bancos escolares ainda serviam como lugar

onde se aprendia a ser menina, reforçando assim suas habilidades supostamente natas.

“A instrução da mulher não deveria extrapolar o necessário para bem educar os filhos.”

(VERONA, 2007, p. 40)

A literatura teve um papel fundamental para os objetivos civilizatórios no

Oitocentos, na medida em que se percebe uma função pedagógica dos escritores. Em

suas narrativas instruíam os leitores com a intenção de contribuir para seu

aperfeiçoamento moral. Nos livros dedicados às mulheres, estas foram representadas

como seres amáveis, além de delicadas e recatadas. Enfatizavam sua natureza materna e

seu comprometimento em cuidar da família. As moças deveriam ler livros de instrução

que as tornassem boas senhoras, e os romances neste sentido eram proibidos, visto que

as tornavam bobas e sonhadoras, perdendo seu tempo com amores. Os romances eram

vistos como esvaziadores da mente das moças, e se não era possível controlar seus

pensamentos, sua imaginação, o esforço se direcionava a controlar suas leituras. Assim,

os romances perigosos, aqueles que versavam sobre romances, amores, e que

desenvolviam a inteligência das mulheres2, eram banidos e em seu lugar entravam

aqueles que contribuíam para a formação das moças e senhoras respeitáveis3.

Empecilhos a parte, o romance impôs-se à cena cultural brasileira no

decorrer do século XIX, e isso não obstante os variados ataques dos

incrédulos das suas intenções morais. Através desse ‘grande instrumento de

reconstrução social’, os literatos puderam exercer o poder de falar ‘à

numerosa classe dos que sabem ler’, ‘infiltrando nela os princípios de moral’

e exercendo uma influencia civilizadora. Também puderam estabelecer com

o público feminino relações bastante íntimas, quando a sua leitura com um

senso didático muitas vezes excessivo. (VERONA, 2007, p. 85)

2 As moças que adquiriam conhecimentos além daqueles próprios ao seu sexo, não eram bem vistas,

devido a isso, os livros que as proporcionavam conhecimento eram considerados perigosos. 3 Sobre este assunto ver: Madame Bovary de Gustave Flaubert, O primo Basílio de Eça de Queirós,

Senhora de José de Alencar, Helena de Machado de Assis entre outros.

17

Esses escritos trabalhavam então na constituição do sujeito feminino, seus

discursos estabeleciam um tipo de mulher ideal, com a ajuda de outros discursos, como

os discursos médicos, por exemplo, enfatizavam os detalhes da “natureza feminina”.

Além disso, determinavam as formas corretas de se comportar, de se vestir, passando

pelas principais ocupações das mulheres e até mesmo as doenças que sentiam, sempre

associando-as à constituição específica do corpo feminino. Enquanto o homem figurava

como o provedor do lar, a mulher devia se ocupar dos assuntos domésticos, quando

mãe, zelando pela educação dos filhos, aperfeiçoando cada vez mais suas “prendas”.

Deveria ainda aprender a agradar ao seu esposo, “mesmo depois que o pássaro já estava

preso ele poderia desinteressar-se e voar” (VERONA, 2007, p. 102). Estar sempre

bonita e ser cordial para receber bem o marido quando este chegava do trabalho eram

estratégias da boa esposa, mulher ideal. Os discursos da literatura do século XIX,

direcionados para mulheres, buscavam construir um modelo de mulher, mãe, esposa e

dona de casa, imbuídas de manter a ordem e a harmonia do lar, contribuindo assim para

o progresso da nação. Em meados do século XX, ocorre uma ruptura nessa forma de

representação feminina, não obstante, percebe-se muitas permanências. A nova mulher

que surge neste período deve conviver e manter suas atribuições “naturais”, mesmo

agregando novos papéis ao seu cotidiano.

1.3 Ideal feminino em mudança

O século XX é um marco na história no que se refere às mudanças culturais,

sociais e econômicas. Hobsbawn o caracteriza como um século curto iniciado em 1914

com a Primeira Guerra Mundial e terminando em 1991 com a queda da União Soviética.

Nesse período, considerado pelo autor como breve, as transformações foram muito

rápidas e deixaram um legado inquestionável na história contemporânea. É nele que se

situam as duas grandes guerras mundiais e com elas, mudanças políticas, econômicas e

sociais. Segundo Eric Hobsbawm, os anos pós-guerra foram de extraordinário

crescimento econômico e transformação social, anos que provavelmente mudaram de

maneira mais profunda a sociedade humana do que qualquer outro período de brevidade

18

comparável. (HOBSBAWN, 1995, p. 15) Para as mulheres, o século XX foi ainda mais

marcante, pois representou conquistas e visibilidade significativas. Interessa-nos em

particular neste trabalho as mudanças ocorridas no mundo feminino, pois segundo

Hobsbawm, houve uma “amplitude da nova consciência de feminilidade.”

(HOBSBAWN, 1995, p. 306) Houve uma entrada em massa das mulheres no mercado

de trabalho, assim como uma expansão da educação superior para elas, e com isso, de

forma direta ou indireta um reflorescimento dos movimentos feministas ocidentais.

Segundo Margareth Rago:

Ser mulher, até aproximadamente o final dos anos 1960, significava

identificar-se com a maternidade e a esfera privada do lar, sonhar com um

“bom partido” para um casamento indissolúvel e afeiçoar-se a atividades

leves e delicadas, que exigissem pouco esforço físico e mental. (RAGO,

2004, p. 31)

A maternidade foi por muito tempo um pressuposto básico na vida de toda

mulher, reinava um imaginário social construído de acordo com as formulações da

medicina do século XIX, em que todos os males do corpo feminino foram associados ao

útero. As transformações sociais e culturais ocorridas no século XX foram aos poucos

minando algumas concepções já enraizadas no corpo social. Os avanços tecnológicos,

os rearranjos da economia e as contestações dos movimentos sociais contribuíram para

promover uma visão diferente sobre o lugar das mulheres na sociedade. No Brasil,

como atesta Margareth Rago, essas mudanças foram sentidas.

Embora as mudanças culturais e mentais sejam muito difíceis e custosas,

esse regime de verdade foi questionado e derrubado, à medida em que a

acelerada modernização socioeconômica, desde a década de 1970 no Brasil,

levou milhares de mulheres ao mercado de trabalho e que o feminismo

emergente passou a pressionar incisivamente por uma redefinição de seu

lugar na sociedade. (RAGO, 2004, p. 33)

Dessa forma podemos considerar que o processo de mudança sobre a vida das

mulheres está associado a um contexto histórico específico. Com o passar do tempo o

discurso sobre a independência e a individualidade feminina foi cada vez mais se

alastrando na sociedade. Direitos civis lhes foram assegurados, principalmente no que

se refere às condições de trabalho. Segundo Hobsbawn, os fatores que levaram as

19

mulheres a trabalhar fora de casa não estão associados a uma nova consciência que elas

adquiriram de sua própria condição social. Está ligado, em maior grau, ao fato de serem

preferidas pelos patrões devido ao menor custo de mão de obra, à pobreza em que

muitas viviam, por serem consideradas dóceis e mais fáceis de lidar. (HOBSBAWN,

1995, p.309)

No entanto, essa conjuntura histórica não anula o fato de que a longo prazo a

consciência das mulheres sobre si mesmas foi modificada, o discurso sobre a nova

condição feminina foi se intensificando através de vários mecanismos, e a literatura é

um deles.

Logicamente que não pretendemos aqui homogeneizar esse fator como

pertencendo a todos os lugares e classes sociais. Porém, entende-se que a abrangência

do discurso pode ser percebida nos últimos tempos. Segundo Rago: “Ser mulher no

século XXI, deixou de implicar necessariamente gravidez e parto, o que traduz uma

enorme ruptura com a ideologia da domesticidade.” (RAGO, 2004, p.33) Inferimos

disso um domínio maior das mulheres sobre seu próprio corpo. A pílula

anticoncepcional, por exemplo, foi um fator de fundamental importância, uma vez que,

deu possibilidades de escolha para as mulheres serem mães quando quisessem ou

mesmo de não ter filhos, implicando assim uma possibilidade de dedicação maior à

carreira profissional.

No início do século XXI, as mulheres estão se valorizando mais. Aliás até

mesmo intelectuais pouco atentos às questões de gênero não podem deixar

de reconhecer que a única revolução que realmente vingou no século XX, foi

a feminista, provocando não apenas o acesso das mulheres à cidadania, mas

acentuando um fenômeno igualmente profundo, embora menos perceptível,

pelo menos até recentemente: a feminilização da cultura. (RAGO, 2004,

p.33)

O século XX proporcionou às mulheres um direito à existência cujo fundamento

deixa de girar em torno de seu parceiro/marido. Ainda há muito a ser avaliado, visto

que, essa condição pode ser generalizada, mas o mais importante a se assinalar é a

possibilidade de outra forma de vida.

As lutas femininas em prol da igualdade de direitos, entretanto, datam de bem

antes. Desde o século XIX, as mulheres, sobretudo as operárias, reivindicavam seus

direitos e melhores condições de trabalho. “O discurso que propõe a inserção da mulher

20

na vida política e civil em condição de igualdade com os homens, tanto de deveres

quanto de direitos, será repetido durante todo o século XIX pelas feministas na sua luta

pelo sufrágio.” (PITANGUY, 2003, p. 34). Esses momentos iniciais de lutas podem ser

chamados de “primeira onda do feminismo”, que em meados do século XIX agitou

países como Inglaterra, França, Rússia e Estados Unidos. “Essa primeira versão do

movimento caracterizou-se pela luta em prol de direitos civis e políticos que buscava

igualar juridicamente homens e mulheres.” (MESTRE, 2004, p. 12) Esses movimentos

são de fundamental importância para as mudanças de mentalidade de muitas mulheres,

pois demonstravam a possibilidade de outras formas de vida e, sobretudo, as

apresentavam a muitos direitos que desconheciam e que poderiam usufruir.

As mulheres que comandaram esses movimentos faziam parte das camadas

econômicas superiores da população. Suas reivindicações se restringiam ao mundo em

que viviam, como acesso ao mercado de trabalho e a conciliação deste com os afazeres

domésticos. Neste ponto, os movimentos não alcançavam as mulheres de menor poder

aquisitivo, uma vez que, as mulheres pobres já trabalhavam há algum tempo e estavam

mais preocupadas em se manter vivas e a sua prole.

Hobsbawm situa no século XX mais precisamente no pós-1945, a emergência de

uma nova consciência feminina.

A entrada em massa das mulheres casadas – ou seja, em grande parte mães –

no mercado de trabalho e a sensacional expansão do ensino superior

formaram o pano de fundo pelo menos nos países ocidentais típicos, para o

impressionante reflorescimento dos movimentos feministas a partir da

década de 1960. Na verdade os movimentos de mulheres são inexplicáveis

sem esses acontecimentos. (HOBSBAWN, 1995, p. 305)

As mulheres adentraram o século XX sem direito ao voto, a educação superior e

até mesmo sem serem reconhecidas como cidadãs. As mudanças ocorridas na sociedade

nesse período propiciaram transformações significativas para elas. Em tempos de

guerras, as mulheres foram incitadas a trabalhar fora de casa e exercer alguma atividade

remunerada. Com os homens nas frentes de batalha, estas se tornaram força de trabalho

útil, não só para sustentarem seus lares, mas também para continuarem movimentando a

economia e a própria indústria bélica. Com o fim da guerra, as mulheres eram

convencidas a retomarem os seus lugares no cuidado com os filhos e com os afazeres

21

domésticos que eram seus lugares por natureza. Muitas eram as propagandas que

utilizavam a imagem da mulher feliz em seu lar para convencê-las a voltarem ao seu

lugar natural. Assim foi na primeira e na segunda guerra. A grande questão é que com o

fim desta última, muitas questões mudaram a nível cultural, social e nas mentalidades

das pessoas, e no decorrer dos anos os papéis femininos foram se modificando e as

próprias mulheres já não consideravam o espaço privado como único lugar que

deveriam ocupar.

Segundo Hobsbawn as mulheres tiveram um papel impressionante nas mudanças

socais ocorridas a partir da segunda metade do século XX. A entrada em massa no

mercado de trabalho aliado ao acesso a melhores níveis de educação formal, sobretudo

no ensino superior, resultou em transformações nas formas como as mulheres viam a si

mesmas. O ressurgimento do movimento feminista está firmemente atrelado a essas

questões; as mulheres se tornaram não apenas um grupo com interesses específicos, mas

uma força política. Conseguiram visualizar melhor as desigualdades entre os sexos, a

separação estabelecida entre o público e o privado, a casa e o resto do mundo. Assim,

muitas delas voltaram suas forças para criticar e combater as desigualdades sexuais.

Vários movimentos feministas debruçaram-se sobre muitos e urgentes problemas: desde

o fardo que sobrecarrega as mulheres na carreira profissional e no trabalho doméstico

até a questão dos cuidados com os filhos; além “da injustiça das leis do casamento e a

falta de formação e de emprego para mulheres.” (THÉBAUD, 1995, p. 600)

A emergência das mulheres como sujeitos históricos visíveis, como agentes

políticos culminou em inúmeras mudanças no mundo feminino. No que se refere à

legislação, a política feminista segundo François Thébaud possuía abrangência nacional

e internacional. Em 1975, foi celebrado o ano da mulher e do mesmo ano até 1983 foi

um período considerado a década da mulher, o que sublinhou a visibilidade alcançada

pelas questões femininas. O aparecimento de uma sólida rede de mulheres ativistas e a

adoção pelas Nações Unidas de resoluções tendentes a dar uma maior atenção às

preocupações destas. (THÉBAUD, 1995, p. 584)

Em pouco tempo as conquistas femininas foram consideráveis, mas o feminismo

como um grupo único não existe. Vários autores sublinham que existem vários

feminismos, considera-se que a bandeira da independência e autonomia seja

preponderante em todos, mas questões pontuais mudam de acordo a cada grupo.

22

O feminismo não é um substantivo cujas propriedades possam ser definidas

de forma exata e definitiva, poder-se-ia dizer, antes, que o termo feminismo

indica historicamente conjuntos variados de teorias e práticas centradas em

volta da constituição e da legitimação dos interesses das mulheres. Nesta

perspectiva, o que o feminismo é ou foi é mais uma questão histórica do que

uma questão de definição. (ERGAS, 1995, p. 588)

Grande parte dos movimentos feministas proveio de grupos de mulheres

intelectualizadas que possuíam acesso ao conhecimento desenvolvendo uma visão mais

crítica de si mesmas e da sua condição social. O desenvolvimento tecnológico

visualizado na segunda metade do século XX, bem como as novas formas de relações

sociais, permitiram que o debate feminista alcançasse um número maior de mulheres.

Neste ponto, destacam-se os programas de rádio e televisão e os jornais impressos que

divulgavam as reivindicações feministas. Segundo Hobsbawn nas décadas de 1970 e

1980 uma forma política e ideologicamente menos específica de consciência feminina

se espalhou entre as massas do sexo, muito além de qualquer coisa alcançada pela

primeira onda do feminismo. (HOBSBAWN, 1995, p.306) As mulheres como um grupo

se tornaram uma força política importante.

As mudanças apesar de tudo não ocorreram de forma ampla, embora tivessem

sido significativas. As mulheres se viram carregando o duplo fardo de velhas

responsabilidades domésticas e novas responsabilidades no emprego, pois as

transformações nas relações entre os sexos ou nas esferas públicas e privadas ainda não

aconteceram de forma efetiva. Contudo, essas transformações foram significativas de

acordo com Hobsbawn, e até mesmo revolucionárias, no que tange as expectativas do

mundo sobre o lugar delas na sociedade.

Nos países desenvolvidos, o feminismo de classe média, ou o movimento de

mulheres educadas ou intelectuais, alargou-se numa espécie de sensação

genérica de que chegara a hora da libertação feminina, ou pelo menos da

autoafirmação das mulheres. Isso se dava porque o feminismo específico de

classe média inicial, embora às vezes não diretamente relevante para os

interesses do resto do grupo feminino ocidental, suscitava questões que

interessavam a todas e essas questões se tornaram urgentes à medida em que

a convulsão social que esboçamos gerava uma profunda e, muitas vezes

súbita, revolução moral e cultural, uma dramática transformação das

convenções de comportamento social e pessoal. As mulheres foram cruciais

nessa revolução cultural, que girou em torno das mudanças na família

tradicional e nas atividades domésticas – e nelas encontraram expressão – de

23

que as mulheres sempre tenham sido o elemento central. (HOBSBAWN,

1995, p. 310)

O movimento feminista e as mudanças sociais do século XX introduziram na

sociedade outra forma de se ver as mulheres, o privado deixou de ser o seu lugar

natural, o discurso sobre seus avanços e suas conquistas no mercado de trabalho e sobre

força feminina foi amplamente divulgado. No século XXI, as mulheres são consideradas

sujeitos que também habitam o “espaço público”, a independência feminina enquanto

discurso se tornou uma questão mais recorrente e de certa forma normal.

No entanto, a ideia do casamento como um fundamento natural da vida feminina

e sua responsabilidade em manter o matrimônio tem sido uma continuidade em alguns

meios sendo reforçada por diversas práticas discursivas dentre elas a literatura de

autoajuda. Com esse pressuposto, o objetivo deste trabalho é analisar a referida

literatura, mais precisamente a que tem como público alvo as mulheres. Funcionando

como os manuais de aconselhamentos para moças, semelhantes àqueles do século XIX,

esta literatura promove representações femininas através de discursos que transitam

entre as antigas atribuições femininas e as novas adquiridas após a década de 1960, com

o movimento feminista. Interessa-nos analisar os discursos dessa literatura no que tange

à constituição de um modelo de mulher e à contradição existente entre as formas de

comportamento feminino, ou até mesmo a convivência de discursos diversos.

1.4 A autoajuda

A literatura de autoajuda é composta por livros que funcionam como manuais de

aconselhamento, ensinando a seus leitores como proceder diante das mais variadas

situações da vida cotidiana. “Identifica-se, por meio dela, um amplo conjunto de livros

que visa a fornecer ao leitor variadas alternativas para a solução de seus problemas, ou

para o aprimoramento de suas habilidades.” (ALVES, 2005, p. 12) Ensinam a enfrentar

uma gama de circunstâncias, como comunicar-se corretamente, emagrecer, encontrar o

equilíbrio interior, gerir a própria carreira, ter melhor desempenho sexual, educar os

filhos, ser bem sucedida nas relações afetivas, dentre outros. De acordo com Francisco

Rüdiger, “a literatura de autoajuda constitui uma das mediações através das quais as

24

pessoas comuns procuram construir um eu de maneira reflexiva, gerenciar os recursos

subjetivos e, desse modo, enfrentar os problemas colocados ao indivíduo pela

modernidade.” (RÜDIGER, 1996, p. 14)

A autoajuda, segundo alguns estudos, surgiu no século XIX, através do trabalho

do médico e publicista vitoriano Samuel Smiles, em 1859. O livro foi intitulado Self-

help, e era destinado a trabalhadores comuns que estavam em busca de melhorias de

vida, através de estudos em conjunto, onde aprendiam a ler, escrever, e noções de

química, geografia e matemática. O autor pretendia mostrar aos seus leitores, o bem que

o indivíduo pode fazer a sim mesmo, e que a busca da felicidade depende de cada um,

da disciplina na busca de seus ideais e do cumprimento do dever individual, cultivando

um bom caráter.

Neste contexto, self-help significava, essencialmente, força de vontade

aplicada ao cultivo de bons hábitos. O conceito chave não era realização ou

prazer, mas caráter. A vida bem sucedida que a doutrina da autoajuda

pregava não se baseava na satisfação individual dos desejos, mas confundia-

se com a prática do trabalho e o cumprimento dos deveres estabelecidos pela

sociedade. A felicidade individual e o sucesso, caso se queira empregar o

termo, não eram conseguir qualquer coisa na vida, mas formar um bom

caráter. (RÜDIGER, 1996, p. 34)

A noção de autoajuda estava associada a uma transformação no indivíduo para se

viver bem na sociedade. As melhorias em seu interior beneficiariam todo um conjunto

de relações sociais. Percebe-se um aspecto moral imbricado na obra do médico Samuel

Smiles, o cultivo do caráter era visto como essencial, sendo este um dos maiores valores

que um homem poderia ter. Essa forma literária foi se tornando popular e visava guiar

os indivíduos em busca de uma vida plena e digna. “Com o passar dos anos, a expressão

autoajuda foi se tornando corrente, passando a designar na virada do século, uma

verdadeira tendência de comportamento.” (RÜDIGER, 1996, p. 34)

O conteúdo moral da autoajuda transformou-se em meados do século XX em

culto do sucesso e do cuidado da personalidade. A literatura de autoajuda tornou-se um

produto da indústria cultural, “caracterizado pelo sucesso de vendagem, a dependência

aos esquemas de marketing e a repetição de fórmulas padronizadas, que suplantaram as

barreiras nacionais.” (RÜDIGER, 1996, p16) A crença no poder da mente, no cultivo de

si, tornou-se fenômeno da cultura de massas. Inserindo-se então na chamada literatura

25

de massa, uma produção literária voltada para o consumo, produzida em larga escala,

com a finalidade de agradar ao público consumidor. Arnaldo Cortina ressalta que, “as

editoras investem nesse tipo de livros porque há um mercado que demanda o produto”

(CORTINA, 2011, p.135) Esse produto literário possui muitos temas, prometendo

ajudar o leitor a resolver os mais variados problemas do seu cotidiano, e assim, cada vez

mais, aumentam as vendagens desses livros, que começam a constar nas listas de livros

mais vendidos das editoras.

A literatura de massa tem no mercado o principal agente valorativo desta

produção. Assim, estar entre os “mais vendidos”, significa não apenas um

resultado, mas uma agregação de valor e consolidação da qualidade de uma

obra para a massa, legitimada pela própria massa através do consumo.

(ARANHA, BATISTA, 2009, p.127)

A passagem da autoajuda, que valorizava aspectos morais da vida do indivíduo,

para uma literatura voltada para o consumo em massa, prometendo sucesso em diversas

áreas da vida individual, tem estreita relação com as mudanças ocorridas na sociedade a

partir da transformação desta em sociedade de consumo. Segundo Rüdiger, na medida

em que, os pontos de referência dos indivíduos deixaram de ser pautados pela religião e

pela tradição, vivencia-se uma liberdade relativamente sem limites, a partir daí os

sujeitos vão em busca de referências para guiar suas vidas. Dessa forma, a literatura

oferece auxílio, servindo como um manual de sobrevivência numa sociedade em que o

sucesso é um valor imprescindível. De acordo com Arnaldo Cortina:

Com a complexidade do sistema econômico capitalista do mundo

globalizado, a dimensão do consumo cria novos padrões de comportamento

e altera as relações sociais. O homem contemporâneo ocidental não tem mais

as certezas e o padrão de crença e de comportamento característicos do

capitalismo do início do século XX. A intensificação do consumo e a

transformação na percepção do tempo causada pelos avanços tecnológicos

levam os homens a um estado de carência e, para supri-lo, precisa buscar

outras respostas. A busca da literatura de autoajuda é uma das consequências

desse estado. (CORTINA, 2011, p. 142)

Podemos situar então a literatura de autoajuda destinada ao público feminino.

Nesse contexto, levamos em conta que a partir da segunda metade do século XX, os

padrões de comportamento feminino foram se modificando, no que diz respeito à

26

sexualidade, à maternidade ao casamento e ao trabalho por exemplo. Os livros que

explicam as diferenças entre homens e mulheres reforçam a ideia de que, na atualidade

devido às mudanças ocorridas, homens e mulheres não sabem mais quais são os seus

papéis; a busca pela igualdade entre os sexos é para eles uma das causas das desavenças

entre os casais. Defendendo as diferenças, prometem selar a paz entre os sexos. Nos

manuais de comportamento feminino, as figuras da mulher independente e da mulher

submissa se intercalam. Apesar de se dizer destinado a ambos os sexos, os livros

deixam de forma clara a intenção de ajudar as mulheres a serem bem sucedidas em suas

relações com seus parceiros, visto que, para os autores são as mulheres quem reclamam

mais dos relacionamentos.

Estudamos aqui dois tipos de livros, os que delimitam as diferenças entre homens

e mulheres, e os que ensinam as mulheres a terem sucesso com seu parceiro, nas

palavras da própria autora, ensinam as mulheres boazinhas a se tornarem mulheres

poderosas. Ambos os livros intencionam guiar pessoas que estejam perdidas em seus

relacionamentos amorosos, leitores que estejam em busca de uma identidade, ou de um

modelo a seguir.

A literatura de autoajuda caracteriza-se textualmente pelo discurso

prescritivo, tendo como principal objetivo propor regras de conduta e

fornecer conselhos. Os livros que compõem seu acervo constituem manuais

para serem empregados, e não para exporem uma doutrina; constituem textos

técnicos, que são consumidos para serem objeto de aplicação prática por

parte de seu leitor. (RÜDIGER, 1996, p. 21)

A literatura de autoajuda possui duas características principais, em primeiro lugar,

valoriza o indivíduo como agente de sua própria vida, é ele quem tem o poder de

transformar aquilo que o incomoda. Em segundo lugar, possui consonância com

padrões e estilos de vida tidos como modelos e almejados pelo público leitor. Esses

padrões podem conduzi-lo a uma situação de maior felicidade e realização pessoal. “O

objetivo é que o leitor, seguindo as prescrições oferecidas pelos autores das obras, esteja

instrumentalizado para alcançar seus objetivos.” (ALVES, 2005, p. 13) Vera Lúcia

Alves, estudando as receitas de conjugalidade na literatura de autoajuda ainda identifica

mais três características marcantes dessa literatura: “Expõe claramente o assunto

tratado; faz a promessa de um benefício, que o leitor venha acreditar que receberá;

27

relata momentos embaraçosos por que tenha passado o autor, bem como o caminho por

ele utilizado na superação dos obstáculos.” (ALVES, 2005, p. 18)

A autoajuda em geral se pretende um manual para se alcançar vários objetivos, e

para tanto se apresenta de uma forma muito simples. Os exemplares dos livros que aqui

tratamos estão disponíveis de forma muito fácil, em supermercados, perfumarias,

padarias, rodoviárias, aeroportos e em revistas de cosméticos e variedades. Os preços

são muito acessíveis, destoando da média de preços de livros no Brasil4, mas isso não

acontece por acaso, uma vez que, os livros são produzidos para um público muito vasto

e assim sendo o material que o compõe é de qualidade inferior, o que influencia para

que o preço seja acessível.

1.5 As fontes e seus recursos de legitimação

A literatura de autoajuda contribui para criar representações de diversas formas de

sujeitos ideais, construindo assim o próprio sujeito. Utilizamos nesta pesquisa como

fontes, três livros de autoajuda publicados na primeira década do século XXI e que

foram amplamente consumidos em várias partes do mundo, entre elas o Brasil. Segundo

a Editora Sextante, uma das responsáveis pela publicação destas obras no país, elas

figuram na lista dos livros mais vendidos da Revista Veja, Época, jornal O Globo e

Folha de São Paulo. 5

Os livros Por que os homens fazem sexo e as mulheres fazem amor?, e Por que os

homens mentem e as mulheres choram? publicados no Brasil em 2000 e 2003

respectivamente, são dos autores Allan e Barbara Pease6, que são reconhecidos,

internacionalmente segundo o website dos próprios autores, por sua habilidade de fazer

rir ao mesmo tempo em que propõem o entendimento das diferenças entre homens e

mulheres, gerando menos conflitos e estresse e promovendo aceitação, tolerância e

harmonia entre os parceiros. Com mais de 25 milhões de livros vendidos sobre temas

como relacionamento humano e linguagem corporal, os autores vêm supostamente

ajudando pessoas do mundo inteiro a construir relações mais saudáveis e prazerosas.

4 Esses livros são encontrados em comércios variados e em revistas de variedade, e variam entre R$ 10 a

20 reais. 5 http://www.sextante.com.br/noticias/?p=3434

6Mais sobre os autores em: http://www.peaseinternational.com/

28

Suas obras já foram traduzidas para mais de 50 idiomas e estão disponíveis em 100

países.7 Os livros foram publicados originalmente na Austrália e nos Estados Unidos.

No Brasil até 2009 o primeiro já contava com mais de 800.000 cópias vendidas. Para a

escrita dessa obra, segundo os autores, eles percorreram vários países e consultaram

dezenas de cientistas sobre as diferenças entre homens e mulheres. Investigaram

conclusões das últimas pesquisas sobre o cérebro e a biologia Evolutiva, analisaram

trabalhos de psicólogos, observando as transformações sociais e entrevistaram dezenas

de pessoas.8

O outro livro que analisamos, Por que os homens amam as mulheres poderosas?

foi publicado no Brasil em 2009, é de autoria da escritora norte-americana Sherry

Argov, ela ainda é apresentadora de rádio nos Estados Unidos, onde fala sobre

relacionamentos aconselhando os ouvintes. O título original da obra é Why Men Love

Bitches. A expressão “bitch” não possui tradução literal em português, pode significar

“vacas” ou “cadelas”. Segundo a autora, essa foi uma provocação feita, já que as

mulheres independentes são assim denominadas. Evidentemente ela se refere à

realidade americana, e por isso no Brasil o título foi adaptado, assim como várias

questões do texto. A intenção da autora é transformar as mulheres “boazinhas” em

mulheres “poderosas” e ensinar as mulheres poderosas ter um relacionamento amoroso

feliz. Segundo informações da editora Sextante, Sherry Argov criou um verdadeiro

manual que vai promover uma guinada na vida amorosa das mulheres, utilizando

exemplos de histórias reais para demonstrar na prática as atitudes certas e erradas, além

de entrevistas com os homens, para que estes definam como uma mulher deve ser para

conquistá-los.9 A escritora mostra que é possível transformar-se de “capacho” para uma

mulher encantadora e cheia de magnetismo. “Não se trata de uma fórmula mágica, e sim

de um conjunto de mudanças de atitude que vão torná-la mais confiante e segura de si, e

conseqüentemente, muito mais atraente aos olhos deles.” 10

Partimos do pressuposto de que essa literatura dissemina discursos sobre mulheres

e funciona como uma prática discursiva que constitui sujeitos, além do mais definem

papéis sociais diferenciados para homens e mulheres e utilizam fortemente argumentos

7 http://www.esextante.com.br/publique/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=67&sid=2

8 http://www.esextante.com.br/publique/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=67&sid=2

9 http://www.esextante.com.br/publique/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=4431&sid=2

10 http://www.esextante.com.br/publique/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=4431&sid=2

29

de diferenças biológicas para criar as diferenças de gênero, hierarquizando as posições

que cada um deve ocupar.

Para que as ideias desses livros tenham legitimidade, seus autores se utilizam de

alguns recursos em sua produção. O primeiro deles é o uso de pesquisas de público,

com estas eles pretendem aproximar o leitor de uma maioria de indivíduos, e dessa

forma estabelecer uma verdade sobre o comportamento de homens e mulheres. Na

introdução de um dos livros que analisaremos os autores dizem o seguinte:

“Catalogamos as 40 perguntas mais frequentes de leitores de todo o mundo e

procuramos respondê-las usando nossa experiência e bom senso” (PEASE A., PEASE

B., 2003, p. 7) assim invocam o leitor a uma leitura confiável. Sherry Argov utiliza o

mesmo recurso:

O material dos meus livros advém menos da minha opinião e mais das

informações que reuni em centenas de entrevistas com homens que sentaram

e conversaram abertamente comigo. Eles me apresentaram sua perspectiva

em relação às informações que em geral estão reservadas apenas ao sexo

masculino, a respeito do que realmente faz um homem se apaixonar e fazer

um pedido de casamento. (ARGOV, 2010, p. 20)

Nesse trecho da autora, podemos ver ainda mais uma questão importante, além de

se basear em entrevistas, ela ainda reforça que são entrevistas com homens, que ao

dizerem aquilo que gostam, enquadram o comportamento feminino em uma visão

masculina do relacionamento. No livro Por que os homens amam as mulheres

poderosas?, a autora Sherry Argov afirma, “este livro trata daquilo que os homens

nunca comentam”, dessa forma, legitima seu texto através de supostos segredos que os

homens teriam contado apenas para ela.

No intuito de dar legitimidade aos seus argumentos e estabelecer padrões de

comportamento, os livros recorrem a expressões de generalização, com isso pretendem

demonstrar que onde houver homens e mulheres, esses comportamentos são verificados,

independente de sua cultura ou dinâmica social. “Mulheres de todo o mundo têm uma

aversão especial pelo hábito masculino de ficar mudando de canal. Ao fim de um longo dia, a

mulher prefere relaxar assistindo, de preferência, a uma novela cheia de relacionamentos e

emoção.” (PEASE A., PEASE B., 2000, p.38)

Outro elemento importante a ser analisado é a forma de se referir aos sexos, na

autoajuda estes são citados como “o homem” e “a mulher”, generalizando assim o

30

masculino e o feminino como portadores de uma identidade única, a partir disso

estabelecem comportamentos para cada sexo, sem levar em conta a subjetividade de

cada pessoa.

Os testemunhos utilizados pelos autores como exemplos servem para reforçar a

ideia da universalidade do comportamento, ao citar os milhares de depoimentos

relatando os mesmos fatos, os autores acreditam chegar à totalidade do comportamento

humano. Vale ressaltar que os livros enfatizam que depoimentos são de pessoas de

todas as partes do mundo. Com essa estratégia, a universalidade se faz presente, assim

como insere essa literatura de autoajuda em um âmbito de consumo global, uma vez que

esses livros foram traduzidos para várias línguas e revendidos em vários países.

O uso da segunda pessoa do singular para se referir ao leitor é mais um recurso

que visa o sucesso dos livros de autoajuda, a escrita do texto se estabelece em forma de

diálogo, com isso tem-se a impressão de que o autor está falando diretamente para uma

pessoa, fazendo com que cada leitor se sinta único.

Outro recurso importante utilizado pela autoajuda é o discurso de autoridade,

como as pesquisas científicas, usadas para confirmar seus argumentos. Esse recurso é

mais perceptível nos livros do casal Pease, como veremos no exemplo:

Em 1997, Berte Pakkenberg, do Departamento de Neurologia do Hospital

Municipal de Copenhague, na Dinamarca, demonstrou que, em média, o

homem possui cerca de 4 bilhões a mais de neurônios que a mulher, apesar

de que, em geral, ela alcança uma pontuação cerca de 3% mais alta nos

testes de inteligência. (PEASE A., PEASE B., 2000, p.33)

Embora citem muitas vezes pesquisas científicas, os autores não passam as

referências dessas pesquisas. Não colocamos em dúvida aqui o fato de biologicamente

homens e mulheres serem diferentes, mas analisamos a forma como a autoajuda se

utiliza dessas diferenças para criar modelos de conduta e diferenças de gênero em

relações amorosas hierarquizadas.

A estética do livro também é estratégica para a eficácia de sua circulação. A capa

possui letras e desenhos divertidos, e já dá uma ideia do que o leitor vai encontrar no

conteúdo. A imagem abaixo é do livro Por que os homens fazem sexo e as mulheres

fazem amor.

31

FIGURA 1 – Capa do livro Por que os homens fazem sexo e

as mulheres fazem amor?

A capa desse livro é chamativa possui desenhos divertidos e cores vivas. Como o

título indica, para os autores, em um relacionamento os homens estão focados em sexo e

as mulheres buscam amor. A imagem que ilustra a capa do livro demonstra a mesma

ideia. O casal está em sua cama e a caixa de texto acima de suas cabeças indica aquilo

que cada um quer. O mesmo desenho é usado para representar uma nádega feminina

como desejo dos homens e um coração representando o amor, desejo das mulheres. O

segundo livro dos autores Allan e Barbara Pease chama-se Por que os homens mentem e

as mulheres choram? e sua capa também já indica o conteúdo, assim como chama a

atenção do leitor.

32

FIGURA 2 – Capa do livro Por que os homens

mentem e as mulheres choram?

Nesta imagem as caixas de texto demonstram as dúvidas de homens e mulheres

em relação ao sexo oposto. O casal representado neste livro é o mesmo do livro anterior

indicando que os autores continuam a temática. Uma das características da autoajuda é o

status que seus escritos ganham quando um livro atinge um grande número de

vendagem. Como podemos perceber nessa capa o nome dos autores ganha destaque, e o

livro Porque os homens fazem sexo e as mulheres fazem amor?, serve como referência

para que o consumidor adquira mais um exemplar sobre o assunto.

Sherry Argov em seu livro Por que os homens amam as mulheres poderosas? ,

busca apresentar às suas leitoras uma mulher que consegue dominar seu parceiro, sem

33

perder a feminilidade. Dessa forma a capa de seu livro faz referência a uma mulher

poderosa que deixa os homens aos seus pés.

FIGURA 3 – Capa do livro Por que os homens amam as

mulheres poderosas?

Na imagem acima os desenhos foram colocados de forma proposital para

representar as ideias da autora. A mulher é representada por uma bota de cano longo

bico e salto fino, o que demonstra ao mesmo tempo força, poder e feminilidade. A

representação da mulher aparece em tamanho maior para simbolizar que a mulher

poderosa consegue ter poder sobre seu parceiro, que aparece na imagem representada

34

por um desenho de um homenzinho com uma expressão suave e apaixonada no rosto,

além de uma flor nas mãos simbolizando seu romantismo. Essas capas com desenhos

coloridos e divertidos servem para chamar a atenção do público consumidor,

aumentando o número de vendas.

No interior dos livros assuntos são postos em tópicos, muitas vezes seguidos de

resumos em forma de máximas para que o leitor memorize. Segundo Maria Lúcia P.

Alves, nos livros de autoajuda:

Temas complexos são apresentados, de forma a se dividirem em temas

menores, com seus pontos principais sumarizados, apresentados em

sequência lógica e frequentemente repetidos. Os capítulos têm, no máximo

três páginas e, em cada uma delas, frases sintetizando a ideia do autor que,

em muitos exemplares, aparecem em negrito ou em meio a ilustrações,

recebendo destaque gráfico especial, de forma a se sobressaírem. Os

conselhos são unificados. O leitor é envolvido no texto pelas perguntas que

lhe são colocadas. Em algumas obras, ele deve responder questionários e

testes que precedem a exposição do tema. (ALVES, 2005, p. 18)

A autoajuda sentimental, aquela direcionada a resolver assuntos amorosos e de

relacionamento, como os exemplares que analisamos nesse trabalho, são em sua maioria

direcionados a mulheres. Em seu estudo do ano de 2005 Alves, buscando dados de

pesquisas de mercado sobre o perfil dos leitores brasileiros, identificou que os leitores

de autoajuda são em sua maioria mulheres. No geral “o leitor de autoajuda é aquele que

acredita ou quer acreditar em seu poder pessoal a fim de aprimorar sua condição de

vida” (ALVES, 2005, p. 23)

1.6 A constituição do sujeito

Na segunda metade do século XX, alguns autores falam em um descentramento

do sujeito. Não mais um sujeito único e universal como o sujeito do Iluminismo nascido

com um núcleo interior que o acompanhava desde o início de sua vida. O sujeito na

modernidade tardia como denomina Stuart Hall não possui um centro de coesão,

“assume várias identidades em diferentes momentos, identidades que não são unificadas

em torno de um “eu” coerente.” (HALL, 2006, p. 13)

35

Start Hall salienta que o descentramento do sujeito seria uma ruptura nos

discursos do conhecimento moderno. O primeiro descentramento considerado por este

autor está ligado às tradições do pensamento marxista, segundo o qual os homens fazem

a história, mas somente em condições que são dadas entrando em um processo que já

está em andamento. Os marxistas da década de 1960 interpretaram esta questão no

sentido de que os indivíduos não são os autores ou agentes da história, eles podiam agir

sob as bases históricas que já foram alicerçadas por seus antecessores e sob as quais eles

nasceram, “utilizando os recursos materiais que lhes foram fornecidos por gerações

anteriores”. (HALL, 2006, p. 34) Essa abordagem abalou a ideia de essência universal

de homem.

A descoberta do inconsciente por Freud segundo Hall foi o segundo

descentramento. De acordo com esta visão a identidade do sujeito é formada em sua

interação com os outros e não adquirida desde o nascimento de forma permanente,

assim vai contra a ideia cartesiana de sujeito racional provido de uma identidade fixa e

unificada.

Assim a identidade é realmente algo formado ao longo do tempo, através de

processos inconscientes, e não algo inato, existente na consciência no

momento do nascimento. Existe sempre algo “imaginário” ou fantasiado

sobre sua unidade. Ela permanece sempre incompleta, sempre “em processo”

sempre “sendo formada”. (HALL, 2006, p. 38)

Sausurre através de seus estudos sobre a linguagem é citado como o terceiro

descentramento para Stuart Hall. Nesta perspectiva os indivíduos não são autores do que

dizem, suas afirmações estão envoltas por uma rede de significados, a linguagem não é

um sistema individual, ela preexiste a nós.

Nossas afirmações são baseadas em proposições e premissas das quais nós

não temos consciência, mas que são, por assim dizer, conduzidas na corrente

sanguínea de nossa língua. Tudo o que dizemos tem um “antes” e um “

depois” – uma “margem” na qual outras pessoas podem escrever. (HALL,

2006, p. 41)

Todas essas perspectivas teóricas constituem para Hall a discussão sobre o

descentramento do sujeito, refutam a ideia de um “eu” unificado, racional que não se

36

modifica desde o seu nascimento. Delineiam um sujeito formado através de inúmeras

intervenções sociais constituindo ao longo do tempo sua forma de pensar, de falar e de

relacionar com o mundo. O descentramento principal da identidade do sujeito seria

então, segundo este autor, como o sugerido por Michel Foucault, pensador que produziu

uma genealogia do sujeito moderno.

Michel Foucault é considerado o pensador mais importante dos estudos da

constituição do sujeito, “identificou o sujeito com algo que é fruto das relações de poder

e saber.” (MAIA, JARDIM, 2004, p. 82) Segundo Foucault o sujeito é atravessado por

práticas discursivas que o enquadra, fundado em um modelo desejável de sujeito.

As práticas discursivas instituem saberes e não podem ser vistas

independentes das práticas políticas e sociais. O sujeito é envolvido nessas

relações e é cortado pelos enunciados, surgindo enquanto objeto no dado

instante de sua enunciação. É quando a formação discursiva se consolida, se

agrupa em saberes a respeito de algo, para posteriormente, fundá-lo. (MAIA,

JARDIM, 2004, p. 82)

O poder na concepção foucaultiana não é uma coisa em si, não é um objeto

natural, são práticas sociais constituídas historicamente. Portanto o que é passível de

estudo são as relações de poder disseminadas por toda a estrutura social. Os exercícios

do poder se dão através de discursos que atravessam a vida dos indivíduos, enunciados

que criam efeitos de verdade e que acabam sendo naturalizados socialmente. Assim, o

objetivo do poder é controlar as ações humanas, guiando a vida dos homens, com vistas

a sua máxima utilização.

O poder possui uma positividade, visto que toda relação de poder produz um

saber. As relações de poder produzidas através de discursos estão presentes em todas as

relações sociais. Segundo Foucault:

As relações de poder existem entre um homem e uma mulher, entre aquele

que sabe e aquele que não sabe, entre os pais e as crianças, na família. Na

sociedade, há milhares e milhares de relações de poder e, por conseguinte,

relações de forças de pequenos enfrentamentos, microlutas, de algum modo.

(FOUCAULT, 2006, p.231)

37

Os indivíduos, portanto, estão sujeitos a uma maquinaria que os enquadra e

determina suas posições. A cada passo que se dá entra-se em uma nova relação de

poder. Na vida profissional, na família, nas relações amorosas. São disciplinados a agir

de um determinado jeito, cada tomada de decisão está submetida a uma teia complexa

de esquadrinhamento com vistas ao assujeitamento. Tratamos a literatura de autoajuda

como uma prática discursiva investida de saberes diversos, que ao ser consumida

penetra na vida dos leitores influenciando seus comportamentos e os constituindo

enquanto sujeitos femininos ou masculinos.

O feminismo é considerado por Hall o quinto descentramento, que propôs não só

uma crítica teórica, como também foi um movimento social de grande relevância.

O feminismo faz parte daquele grupo de “novos movimentos sociais”, que

emergiram durante os anos sessenta (o grande marco da modernidade tardia),

juntamente com as revoltas estudantis, os movimentos juvenis

contraculturais e antibelicistas, as lutas pelos direitos civis, os movimentos

revolucionários do “Terceiro Mundo”, os movimentos pela paz e tudo aquilo

que está associado com ‘1968’. (HALL, 2006, p. 44)

A relação desse movimento com o descentramento do sujeito se deu através de

vários questionamentos feitos por ele, como a distinção entre o “público” e o “privado”,

sendo essas esferas diferenciadas e fixas para homens e mulheres respectivamente.

Além disso o feminismo colocou no jogo das discussões áreas novas da vida social,

como a família, a sexualidade, o trabalho doméstico e sua divisão e o cuidado com as

crianças. “Ele também enfatizou, como uma questão política e social, o tema da forma

como somos formados e produzidos como sujeitos generificados. Isto é, politizou a

subjetividade, a identidade e processo de identificação (como homens/mulheres,

mães/pais, filhos/filhas). (HALL, 2006, p. 45) Assim este movimento contribui para a

noção de descentramento e constituição do sujeito, de forma significativa.

1.7 Estudos sobre as construções de gênero

A noção de sujeito constituído contribuiu para o desenvolvimento da

epistemologia feminista, na medida em que os historiadores procuravam compreender

38

as maneiras pelas quais as identidades de gênero são historicamente construídas e

constituintes do sujeito através das práticas discursivas. Segundo Margareth Rago, as

mulheres não poderiam mais ser pensadas “como uma essência biológica pré-

determinada, anterior à História, mas como uma identidade construída social e

culturalmente no jogo das relações sociais e sexuais, pelas práticas disciplinares e pelos

discursos/saberes instituintes.” (RAGO, 1998, p. 27) Esta noção é cara a este trabalho

na medida em que consideramos a autoajuda como uma prática discursiva que constrói

identidades de gênero para mulheres e homens. Assim como o “gênero” tem sido um

conceito chave para a história, quando esta trabalha investigando as formas pelas quais

as mulheres foram produzidas enquanto sujeito.

Assim as características ditas como masculinas e femininas são construídas

através de discursos que atravessam toda a vida do indivíduo, ajustando-o às normas

vigentes e aceitáveis socialmente. Esses discursos podem ser políticos, pedagógicos,

religiosos, midiáticos, entre outros, todos fazendo parte de uma mesma rede de

significação.

O texto da historiadora Joan Scott, professora de Ciências Sociais no Instituto de

Estudos Avançados de Princeton, historiadora militante feminista norte americana,

intitulado: “Gênero: uma categoria útil para a análise histórica”, publicado em 1986,

traduzido e divulgado no Brasil em 1990, se tornou um texto clássico para desvendar a

relação entre gênero e conhecimento histórico. Scott defende o gênero como categoria

analítica para entender como as diferenças socialmente construídas para os sexos

funcionam nas relações sociais humanas e como o gênero dá sentido à organização e a

percepção do conhecimento histórico. (SCOTT, 1990, p. 74) Para esta autora o uso do

termo gênero implica o reconhecimento político desse campo de pesquisa.

Nessas circunstâncias, o uso do termo “gênero” visa sugerir a erudição e a

seriedade de um trabalho, pois “gênero” tem uma conotação mais objetiva e

neutra do que “mulheres”. “Gênero” parece se ajustar à terminologia

científica das ciências sociais, dissociando-se assim da política ruidosa do

feminismo. (SCOTT, 1990, p. 75)

Assim, a historiadora defende o gênero como uma ferramenta teórica e política.

Enquanto a História das Mulheres buscava alçar as mulheres enquanto sujeitos

39

históricos, o gênero trata das mulheres sem lhes nomear (SCOTT, 1990, 75). É então,

uma busca de legitimidade acadêmica, uma vez que a História das mulheres levantava

uma bandeira de cunho político e militante mais acentuado, sofria então críticas e

preconceitos principalmente no que diz respeito à objetividade científica da pesquisa. O

termo gênero é usado de forma relacional, ao se estudar as mulheres, consequentemente

está se estudando também os homens, já que o mundo feminino faz parte do masculino.

Afasta dessa forma a ideia de esferas separadas, como se cada sexo vivenciasse suas

experiências independente do outro, “o termo gênero também é utilizado para designar

as relações sociais entre os sexos.” (SCOTT, 1990, p. 75)

O uso do conceito de gênero rejeita qualquer explicação biológica que determine

as diferenças e justificam a subordinação feminina pela sua inferioridade física. As

diferenças entre os sexos são construções culturais que determinam os papéis adequados

para homens e mulheres.

Trata-se de uma forma de se referir às origens exclusivamente sociais das

identidades subjetivas de homens e de mulheres. “Gênero” é segundo esta

definição uma categoria social imposta sobre um corpo sexuado. Com a

proliferação dos estudos sobre o sexo e sexualidade, “gênero” tornou-se uma

palavra particularmente útil, pois oferece um meio de distinguir a prática

sexual dos papéis sexuais atribuídos às mulheres e aos homens. (SCOTT,

1990, p. 75)

Para Scott, desvendar os sistemas de significado que concedem hierarquias sociais

para homens e mulheres, os modos pelos quais as sociedades representam o gênero, faz

parte de trabalhar com um processo de significação construído na sociedade. A

identidade generificada é construída através da linguagem. No entanto, o que se entende

por masculino e feminino em uma sociedade não é uma ideia fixa, posto que, depende

das suas utilizações contextuais. O sujeito então é constituído como homem ou como

mulher através de práticas discursivas e sistemas de significação que o assujeitam

durante toda a sua vida. Na autoajuda as prescrições dos autores para seus leitores

definem o que seria o comportamento ideal para cada sexo, e o entendimento das

diferenças é que traria a harmonia para os relacionamentos. Esses livros constroem

identidades generificadas como podemos verificar por este trecho do livro Por que os

homens amam as mulheres poderosas.

40

A mulher poderosa está disponível algumas vezes, mas outras não. Porém

ela é amável o suficiente para levar em consideração as preferências do

namorado quanto ao dia em que ele gostaria de vê-la, de forma que ela

possa, às vezes, adaptar seus planos aos desejos dele. A conseqüência disso?

Um relacionamento em que ninguém domina ninguém. (ARGOV, 2009, p.

14)

A autora Sherry Argov define o comportamento ideal para que uma mulher seja

poderosa, vemos o discurso trabalhando através de características de gênero muito

definidas para as mulheres, como amável por exemplo. A mulher ideal de Sherry Argov

deve se fazer de difícil, mas estar disposta a mudar de ideia e adaptar sua vida a vida de

seu parceiro, tudo isso em prol do desejo máximo da vida feminina segundo os

discursos sociais construtores de representações femininas: um excelente

relacionamento.

A dicotomia masculino e feminino é constante nas análises e na compreensão das

sociedades, homens e mulheres são entendidos como polos opostos que se relacionam

dentro de uma lógica de dominação e submissão. Para Scott é necessária uma “rejeição

do caráter fixo e permanente da oposição binária, de uma historicização e de uma

desconstrução genuína dos termos da diferença sexual.” (SCOTT, 1990, p. 84)

A desconstrução (...) faz perceber que a oposição é construída e não inerente

e fixa. A desconstrução sugere que se busquem os processos e as condições

que se estabelecem os termos da polaridade. Supõe que se historicize a

polaridade e a hierarquia nela implícita. (LOURO, 2001, p. 32)

Mulheres e homens não estão em posições fixas em pólos opostos, o trabalho da

desconstrução revela até mesmo que ambos os sexos não possuem identidades fixas. A

hierarquia entre um pólo dominado e outro dominante, sendo respectivamente o

masculino e o feminino, como uma via de mão única deve ser perturbada, pois a noção

do poder se exercendo de um só lado cria a ideia de mulheres vítimas e estáticas. Em

dois exemplares de livros de autoajuda que analisamos os pólos opostos já aparecem em

seus títulos, Por que os homens fazem sexo e as mulheres fazem amor? e Por que os

homens mentem e as mulheres choram?. Os homens são citados em primeiro nos dois

títulos, sinalizando que os homens são a referência e as mulheres são a diferença deles.

Nesta pesquisa, buscamos demonstrar o trabalho discursivo da autoajuda ao construir

posições opostas e hierarquizadas para homens e mulheres.

41

A história do movimento feminista é marcada pela negação das hierarquias e das

polarizações entre o masculino e o feminino, trabalhando assim pela desnaturalização da

condição de cada sexo. Os/as historiadores/as feministas estão agora bem

posicionados/as para teorizar suas práticas e para desenvolver o gênero como uma

categoria analítica.

1.8 Gênero como categoria analítica

As preocupações das teóricas feministas com os estudos de gênero concentravam-

se na formulação de uma categoria que servisse para elucidar os processos pelos quais

homens e mulheres eram colocados em uma hierarquia.

O termo gênero faz parte da tentativa empreendida pelas feministas

contemporâneas para reivindicar um certo terreno de definição, para

sublinhar a incapacidade das teorias existentes para explicar as persistentes

desigualdades entre as mulheres e os homens. (SCOTT, 1990, p. 85)

A proposta dessa categoria de análise buscava ainda superar o caráter

essencialmente descritivo e interpretativo dos primeiros estudos sobre as mulheres

(História das Mulheres) que evitavam colocar e resolver problemas analíticos. A

concepção de gênero de Scott repousa em duas proposições: “(1) O gênero é um

elemento constitutivo de relações sociais baseadas nas diferenças percebidas entre os

sexos e (2) o gênero é uma forma primária de dar significação às relações de poder.”

(SCOTT, 1990, p. 86) Ou seja, gênero é um primeiro campo, através do qual o poder é

articulado. Scott chama a atenção para a necessidade de se historicizar o gênero como

meio de desconstruir o próprio conceito. Segundo ela, “os homens e as mulheres reais

não cumprem os termos das prescrições de sua sociedade ou de nossas categorias de

análise”. Assim, ao se empreender a pesquisa, deve-se antes de tudo, “examinar as

maneiras pelas quais as identidades de gênero são realmente construídas e relacionar

seus achados com toda uma série de atividades de organizações e representações

historicamente situadas.” (SCOTT, 1990, p. 15)

Para Scott, quatro elementos intercalados constituem as relações sociais baseadas

nas diferenças percebidas entre os sexos. Em primeiro lugar estão os símbolos

42

culturalmente disponíveis que evocam representações simbólicas, a autora cita a

imagem de Eva e Maria como símbolos que carregam o significado de comportamento

feminino reprovável e aceitável. O segundo elemento se compõe de conceitos

normativos que expressam interpretações dos significados dos símbolos, que tentam

limitar e conter suas possibilidades metafóricas.

Esses conceitos estão expressos nas doutrinas religiosas, educativas,

científicas, políticas ou jurídicas e tomam a forma típica de uma posição

binária fixa, que afirma de maneira categórica e inequívoca o significado do

homem e da mulher, do masculino e do feminino. (SCOTT, 1990, p. 86)

Assim, são determinados os comportamentos de cada sexo, comportamentos que

são naturalizados através de várias práticas discursivas institucionalizadas. Para a

historiadora é necessário explodir essa noção binária de dominação, de fixidez, de

naturalização, de desvendar como essas representações são construídas como

evidências, e nesse ponto se encontra o terceiro elemento da análise, deve-se incluir

uma concepção de política bem como uma referência às instituições e a organização

social. As desigualdades de gênero são construídas em vários meios sociais e não estão

restritas as relações de parentesco. O mercado de trabalho sexualmente segregado, as

divisões masculinas e femininas, as instituições educativas definindo o que é útil se

ensinar a cada sexo, no meio político, o sufrágio universal masculino, todos esses

fatores fazem parte do processo de construção do gênero.

O quarto aspecto do gênero para Scott é a identidade subjetiva. Aqui a autora se

refere às formas pelas quais as pessoas realmente se representam através das identidades

generificadas. Os livros que analisamos nesta pesquisa definem de forma hierarquizada

a forma como cada sexo deve agir, constroem as diferenças de gênero utilizando

discursos de autoridade, citando cientistas, médicos, psicólogos, antropólogos e vários

campos do saber que podem legitimar seus argumentos.

Partindo desse raciocínio, inferimos que as identidades de gênero são construídas

historicamente e constituem o sujeito que passa a se identificar como masculino e

feminino. Essas identidades não são fixas, estão em permanente construção, são

múltiplas convivendo muitas vezes contraditoriamente em um mesmo sujeito. Ao se

adequarem às representações de gênero disponíveis na sociedades os indivíduos também

43

se autorrepresentam. As representações são absorvidas subjetivamente por cada pessoa

a quem se dirige. Teresa de Lauretis aponta questões fundamentais para se entender

esses processos de representações de gênero. Segundo essa autora gênero é uma

representação, “o sistema sexo-gênero é tanto uma construção sócio-cultural quanto um

aparato semiótico, um sistema de representação que atribui significado a indivíduos

dentro da sociedade. (de LAURETIS, 1994, p.212) Dessa forma, as características,

comportamentos e atitudes atribuídos a homens e mulheres são construções sociais.

Para Teresa de Lauretis, a construção do gênero é o produto e o processo tanto da

representação quanto da auto representação. (de LAURETIS, 1994, p.217) A forma

como se representa o gênero é sua construção.

A construção do gênero se faz segundo Lauretis através de tecnologias de gênero

e discursos institucionais. Esses meios produzem representações de gênero e podem

controlar o campo do significado social. Entendemos então que a construção do gênero

se faz através de práticas discursivas que estabelecem o real.

Guacira Lopes Louro também disserta sobre as identidades de gênero. Segundo

essa autora, as identidades de gênero identificam os sujeitos social e historicamente

como sendo masculinos ou femininos. Dessa forma, os sujeitos, identificando-se como

masculinos ou femininos a partir de suas identidades de gênero, possuem formas

específicas de vivenciar suas identidades. A pretensão então é entender o gênero como

constituinte da identidade do sujeito. Guacira Louro, fazendo também uma leitura de

Stuart Hall, compreende as identidades como estando constantemente sendo formadas, e

o sujeito é empurrado em diferentes direções.

Ao afirmar que o gênero institui a identidade do sujeito (assim como a

etnia, a classe, ou a nacionalidade, por exemplo) pretende-se referir,

portanto a algo que transcende o mero desempenho de papéis, a ideia

é perceber o gênero fazendo parte do sujeito, constituindo-o (LOURO,

2001, 25)

O gênero é, portanto, uma identidade que também constitui o sujeito, faz parte do

“eu” de cada um. E essa identidade, assim como as outras que constituem o sujeito, está

sempre se formando e reformulando de acordo com a direção e o momento da vida em

que é empurrado.

44

Vários elementos contribuem nessa dinâmica das identidades, “as diferentes instituições

e práticas sociais são constituídas pelos gêneros e são também constituintes dos gêneros.

Essas práticas e instituições ‘fabricam os sujeitos’”, (LOURO, 2001, 25) sendo assim,

pode-se entender a literatura de autoajuda como uma prática que institui um sujeito de

um tipo, oferece identidades para seus leitores e essas identidades não necessariamente

estão de acordo com todas as outras assumidas pelo indivíduo. Nos livros podemos

perceber a representação de mulheres enquanto mães, profissionais, donas de casa, e

amantes. Quatro identidades que ao longo da história relacionam as mulheres ao

cuidado com o outro, ao mercado de trabalho, aos afazeres domésticos e à sexualidade.

Na literatura de autoajuda uma mulher de verdade precisa desempenhar todos esses

papéis, como podemos ver pela afirmação da autora Sherry Argov: “O que a mulher

boazinha precisa saber é que, mesmo que ela faça o maior esforço para ser uma dona de

casa exemplar, o homem sempre vai querer uma prostituta na cama.” (ARGOV, 2009,

p. 39)

1.9 Análise do discurso

Ao longo do tempo, portanto, vários foram os mecanismos discursivos

direcionados às mulheres, como demonstrado aqui. No século XIX, romances, revistas e

jornais foram utilizados para ensiná-las a serem “verdadeiras damas”. Neste início de

século percebe-se a autoajuda como um mecanismo similar, que seguindo os rastros

históricos da subjetivação feminina, se apresenta como manuais de aconselhamento que

podem proporcionar às mulheres relacionamentos felizes e duradouros. Buscamos

através desses livros de autoajuda inverter as evidências de um discurso que se pretende

uma ferramenta para o bem estar feminino em tempos de revolução feminina, em que as

mulheres não mais são consideradas apenas esposas e mães por excelência, mas

conquistaram espaço na vida pública, e o movimento feminista se tornou um dos

grandes marcos na história das mulheres. Questionamo-nos a que veio essa literatura?

De que forma ela pretende constituir um novo “ser” mulher, moderno e moldado pelos

valores libertários da atualidade? Analisamos os livros de autoajuda como um

documento histórico que pode ser abordado pelo princípio da inversão das evidências de

Michel Foucault que busca nos discursos

45

(...) procurar cercar as formas da exclusão, da limitação, da apropriação (...)

mostrar como se formaram (os discursos), para responder a que

necessidades, como se modificaram e deslocaram, que força exerceram

efetivamente, em que medida foram contornadas.” (FOUCAULT, 1996, p.

60)

Os trabalhos de Michel Foucault contribuíram para uma modificação na forma de

abordagem dos documentos, não mais tomando estes como representantes fiéis da

realidade ou da verdade. Foucault desmistificou a razão unívoca do documento, sua

onipotência diante dos fatos. “A noção de arqueologia de Foucault traz uma profunda

transformação para a história ao modificar a maneira pela qual era visto o documento.”

(PIMENTEL, 2004, p. 18) A partir das proposições desse autor é possível interrogar o

documento em sua materialidade discursiva.

A história mudou a sua posição acerca do documento: ela considera como

sua tarefa primordial, não interpretá-lo, não determinar se diz a verdade, nem

qual é o seu valor expressivo, mas sim trabalhá-lo no interior e elaborá-lo:

ela organiza, recorta, distribui em séries, distingue o que é pertinente do que

não é, identifica elementos, define unidades, descreve relações.

(FOUCAULT, 2005, p. 7)

A análise do documento leva em conta as condições em que foi produzido, sua

finalidade, suas características, os sentidos emanados das suas camadas de

interpretação. Segundo Cláudia Maia:

O documento deve ser pensado em sua materialidade, não como memória ou

reflexo do acontecimento, mas como outro acontecimento: não aquilo que

me permite reconstruir o acontecimento do passado em sua totalidade, mas

como práticas discursivas que produzem objetos históricos. É o tratamento

dos documentos que os torna acontecimentos. (MAIA, 2011, p.48)

Busca-se elucidar dessa forma as produções de verdades através das quais são

regidas as práticas cotidianas; como essas verdades são produzidas, consolidadas num

jogo de forças que possuem determinado interesse, determinado fundamento. Buscamos

entender aqui, através dos documentos selecionados, as produções discursivas sobre as

mulheres no período que abarca os anos entre 2000 e 2010. Compreender a relação do

46

discurso da autoajuda com outros discursos sobre as mulheres ao longo da história,

levando em conta as modificações por que passaram a partir do ponto alto do

movimento feminista na década de 1960. Buscamos inverter as evidências de um

discurso que determina as atitudes necessárias para se tornar uma mulher ideal e feliz

em seu relacionamento. Entender em que matrizes de sentido essa literatura se apóia

para construir relações de gênero, e instituir representações das mulheres como

detentoras de poder sobre suas vidas, mas igualmente subordinadas a regras de

comportamento alicerçadas em valores patriarcais. Essa carga semântica que o

documento carrega é um dado cultural e é constituída por cada sociedade de acordo com

as condições históricas. Segundo Foucault:

Por mais que o livro se apresente como um objeto que se tem na mão, por

mais que ele se reduza ao pequeno paralelepípedo que o encerra, sua unidade

é variável e relativa. Assim que a questionamos ela perde sua evidência; não

se indica a si mesma, só se constrói a partir de um campo complexo de

discursos. (FOUCAULT, 2005, p. 26)

Os discursos produzidos pela literatura de autoajuda aqui analisada só se

sustentam em relação a outros discursos em trânsito pelo corpo social. São discursos

que instituem modelos de comportamento para as mulheres consumidoras de suas

ideias, que se utilizam destes aconselhamentos para guiar sua conduta em busca de

melhores formas de vida e relacionamentos supostamente mais saudáveis. Dessa forma,

entendemos a autoajuda como uma prática discursiva que constrói o real. As práticas

discursivas são “a linguagem em ação, isto é, maneiras a partir das quais as pessoas

produzem sentidos e se posicionam em relações sociais cotidianas.” (MAIA, 2011, p.

57)

Para esta abordagem recorremos aos princípios e procedimentos da Análise do

Discurso que se tornou uma ferramenta teórica e metodológica de grande utilidade para

historiadores. A análise do discurso procura compreender como a língua gera sentidos

em confluência com o trabalho simbólico e com a história. A análise do discurso então

visa compreender, segundo Eni Orlandi, como objetos simbólicos produzem sentido.

A Análise do discurso não estaciona na interpretação, trabalha seus

limites, seus mecanismos, como parte dos processos de significação.

47

Também não procura um sentido verdadeiro através de uma chave de

interpretação. Não há esta chave, há método, há construção de um

dispositivo teórico. Não há uma verdade oculta atrás do texto. Há

gestos de interpretação que a constituem e que o analista com seu

dispositivo, deve ser capaz de compreender. (ORLANDI, 1999, p. 26)

As palavras inscritas nos textos ou nas falas orais são, através desta abordagem,

retiradas de sua aparente fixidez, destituídas de uma ingenuidade despretensiosa, uma

vez que, são carregadas de sentidos estabelecendo formas de ver e de representar o

mundo. A AD11

está associada à ideia do sujeito descentrado, este é, o tempo todo,

constituído e atravessado pelo movimento da linguagem, não tem acesso aos

significados múltiplos do que diz, o “sujeito de linguagem é descentrado, pois é afetado

pelo real e pela língua e também pelo real da história, não tendo o controle sobre o

modo como elas o afetam.” (ORLANDI, 1999, p. 19) Cada palavra utilizada no dia a

dia dos sujeitos já chega carregada de significados que eles não sabem ao certo como

foram construídos.

O discurso funciona em um complexo processo de constituição de sujeitos e de

produção de sentidos. Assim, a subjetivação se efetiva através de discursos que se

movimentam na sociedade e que vão ganhando significância para os indivíduos. As

práticas de subjetivação feminina funcionam através de vários mecanismos, e ao longo

do tempo, construíram imagens e representações que determinaram “verdades” sobre as

mulheres. Segundo Michel Foucault, a verdade é uma “espécie de erro que tem a seu

favor o fato de não poder ser refutada, sem dúvida porque o longo cozimento da história

a tornou inalterável.” (FOUCAULT, 1979, p. 19)

Pretendemos, dessa forma, recortar superfícies discursivas nos livros de autoajuda

utilizados como fonte de pesquisa para extrair dessas superfícies os sentidos produzidos

acerca da condição das mulheres no início do século XXI. Não buscamos a origem

desse discurso, pois a busca da origem não é objetivo da análise, segundo Foucault “não

é preciso remeter o discurso à longínqua presença da origem, é preciso tratá-la no jogo

de sua instância.” (FOUCAULT, 2005, p. 28) O que é importante para a análise é a

emergência do discurso, suas condições de possibilidades.

11

AD se refere à abreviação de Análise do discurso, para facilitar a leitura do texto.

48

Os discursos devem ser entendidos em suas condições de produção, ou seja,

na situação circunstância em que emerge num enunciado, o que se faz uma

enunciação. As palavras significam pela língua e pela história. Assim o dito

está sempre constituído pelos já ditos; (...) (MAIA, 2011, p. 58)

Aquilo que a autoajuda determina como comportamento feminino, a ênfase dada

ao casamento como fundamento da vida das mulheres, o trabalho doméstico como

atribuição natural biologicamente determinado para o feminino está associado a

discursos que instituem essa mulher real em várias instâncias de enunciação. Segundo

os autores Allan e Barbara Pease “homens e mulheres evoluíram de modos diferentes

porque tinha de ser assim. Os homens caçavam, as mulheres ficavam com o grupo. Os

homens protegiam, as mulheres cuidavam.” (PEASE,PEASE, 2000, p.10) Os discursos

que determinam os homens como os provedores do lar e as mulheres como donas de

casa estão presentes em variados meios discursivos, dessa forma a afirmação feita nesse

livro de autoajuda está ligado a outros discursos de circulam na sociedade. Os sentidos

produzidos pelos discursos estão ancorados nos já-ditos, necessitando-se do trabalho do

pesquisador para identificar essas relações.

Supõe-se assim que tudo o que o discurso formula já se encontra articulado

nesse meio silêncio que lhe é prévio, que continua a correr obstinadamente

sob ele, mas que lhe recobre e faz calar. O discurso manifesto não passaria

afinal de contas, da presença repressiva do que ele diz; e esse não dito seria

um vazio minando, do interior tudo o que se diz. (FOUCAULT, 2005, p. 28)

O primeiro procedimento do pesquisador frente ao documento deve ser a

transformação da superfície linguística em um objeto discursivo, assim se delineia a

questão posta pelo trabalho e que orientará a análise das fontes. Nesse ínterim Eni

Orlandi destaca duas ferramentas para a análise: o dispositivo teórico e o dispositivo

analítico. O primeiro se refere aos princípios gerais da AD enquanto forma de

conhecimento em seus conceitos e métodos. O dispositivo analítico é o questionamento

do analista, aquilo que ele formula para desencadear a análise. “O que define a forma do

dispositivo analítico é a questão posta pelo analista, a natureza do material que analisa e

a finalidade da análise” (ORLANDI, 1999, p. 27) A partir disso mobiliza-se os

conceitos que fundamentarão a pesquisa. Neste trabalho o dispositivo teórico utilizado,

49

como salienta a autora, está baseado aos princípios da AD, sobretudo no que diz

respeito aos conceitos de memória discursiva e formação discursiva. O dispositivo

teórico abrange os estudos de gênero, buscando compreender como a autoajuda constrói

comportamentos ideais para homens e mulheres.

As condições de produção do discurso demonstram o seu funcionamento, se

referem aos sujeitos, à situação e ao contexto sócio-histórico em que é produzido.

Podemos considerar as condições de produção em sentido estrito, e temos as

circunstâncias da enunciação: é o contexto imediato. E se as consideramos

em sentido mais amplo, as condições de produção incluem o contexto sócio-

histórico, ideológico. (ORLANDI, 1999, p.30)

Um discurso está sempre em relação a outros discursos, se apóia em outros que o

sustentam, está sempre em processo de funcionamento e não se esgota em uma única

interpretação. As palavras possuem significados pela língua e pela história, possuem

uma memória que é ativada no momento de sua pronunciação. Esta é a memória

discursiva, também denominada interdiscurso:

Este é definido como aquilo que fala antes em outro lugar, independente, ou

seja, é o que chamamos de memória discursiva: o saber discursivo que torna

possível todo dizer e que retorna sob a forma do pré-construído, o já dito que

está na base do dizível, sustentando cada tomada de palavra. O interdiscurso

disponibiliza dizeres que afetam o modo como o sujeito significa em uma

situação discursiva dada. (ORLANDI, 1999, p. 31)

Quando o individuo fala, ele tem a ilusão de ser a origem daquela ideia, no

entanto esta está situada em uma rede de significação anterior a ele, e a qual ele não tem

acesso imediato. O esquecimento segundo Orlandi é o que faz com que essa situação

seja possível, ele é parte da constituição dos sujeitos e dos sentidos. Se todo o sentido já

estivesse óbvio e determinado não haveria a necessidade de dizer, mas pelo

esquecimento o sujeito fala e pode constituir novos sentidos. “Os sentidos se realizam

em nós, eles são determinados pela maneira como nos inscrevemos na língua e na

história e é por isto que significam e não pela nossa vontade.” (ORLANDI, 1999, p. 36)

A história assim determina a significação das palavras. O interdiscurso é um conjunto

50

de formulações já realizadas que são esquecidas e que se manifestam determinando

aquilo que é dito. A memória discursiva é assim a historicidade do discurso.

Os discursos funcionam relacionados a outros discursos, configurando assim

relações de sentido nas quais um dizer aponta para outro que o sustenta, assim como

para aquilo que ainda será dito. As fontes aqui estudadas propagam discursos que se

ancoram em outros tantos. Como demonstrado anteriormente, desde o século XIX já se

produzia manuais de aconselhamento para mulheres nos quais o romance e a

sensibilidade feminina, por exemplo, já eram características naturalizadas e

constituintes da mulher ideal.

Os sentidos se agrupam em regularidades discursivas que, segundo Foucault, são

“uma ordem em seu aparecimento sucessivo, correlações em sua simultaneidade,

posições assimiláveis em um espaço comum, funcionamento recíproco, transformações

ligadas e hierarquizadas.” (FOUCAULT, 2005, p. 42) As palavras se significam através

de relações constituídas em formações discursivas específicas, como define este autor:

No caso em que se puder descrever entre um certo número de enunciados,

semelhante sistema de dispersão, e no caso em que os objetos, os tipos de

enunciação, os conceitos, as escolhas temáticas, se puder definir uma

regularidade (uma ordem, correlações, posições e funcionamentos,

transformações), diremos, por convenção, que se trata de uma formação

discursiva. (FOUCAULT, 2005, p. 42)

A literatura de autoajuda se insere em uma formação discursiva que carrega em si

marcas do patriarcalismo, as proposições dos autores que analisamos aqui estão de

acordo com uma série de discursos sociais que definem esferas separadas para homens e

mulheres na sociedade. Além de cada sexo ocupar um lugar específico, esses lugares

são posições hierarquizadas, tendo os homens como seus principais agentes e as

mulheres como seguidoras deles; o mundo feminino gira em torno do masculino

estando as mulheres em constante posição de submissão.

A análise de discurso busca nos documentos superfícies discursivas, matrizes de

sentido e significações possíveis. Desse modo todo discurso não existe em si, ele faz

parte de uma posição sócio-histórica em que as palavras são produzidas.

As palavras falam com outras palavras. Toda palavra é sempre parte de um

discurso. E todo discurso se delineia na relação com outros: dizeres

51

presentes e dizeres que se alojam na memória. As formações discursivas

podem ser vistas como regionalizações do interdiscurso, configurações

específicas dos discursos em suas relações. O interdiscurso disponibiliza

dizeres, determinando, pelo já-dito, aquilo que constitui uma formação

discursiva em relação a outra. Dizer que a palavra significa em relação a

outras, é afirmar essa articulação de formações discursivas dominadas pelo

interdiscurso em sua objetividade material contraditória. (ORLANDI, 1999,

p. 43)

O enunciado, objeto de análise do pesquisador, deve ser interrogado em sua

relação com uma formação discursiva para compreender o sentido que ali está. É pelas

formações discursivas que se identificam os sentidos das palavras, uma vez que, uma

mesma palavra pode significar de forma diferente em formações discursivas diversas.

Quando existe uma coerência, uma regularidade de sentidos em torno de uma

representação, identifica-se uma formação discursiva. Quando nos livros de autoajuda

vemos afirmações como esta “O cérebro feminino é programado para nutrir, cuidar e

criar os filhos. Por isso, as mulheres vivem recolhendo as coisas que eles deixam pela

casa, preparam seus pratos favoritos, lhes dão dinheiro e os protegem das agruras da

vida.” (PEASE E PEASE, 2003, p. 51) Identificamos uma formação discursiva que

relaciona as mulheres à maternidade, não apenas no sentido de que possuem a

capacidade de gerar outro indivíduo, mas no sentido de que o cuidado com os filhos é

responsabilidade única da mãe, além do fato de que a maternidade aparece nesse sentido

como um destino inevitável para as mulheres, uma obrigação, não uma escolha.

As evidências dos sentidos que circulam na sociedade impedem que vejamos a

historicidade de sua construção. A constituição dos sujeitos se dá através da

interpelação que o inscreve em uma formação discursiva.

Atravessado pela língua e pela historia, sob o modo do imaginário, o sujeito

só tem acesso a parte do que diz. Ele é materialmente dividido desde a sua

constituição: ele é sujeito de e sujeito à. Ele é sujeito à língua e à história,

pois para se constituir, para se produzir sentidos ele é afetado por elas. Ele é

assim determinado, pois se não sofrer os efeitos do simbólico, ou seja, se ele

não se submeter à língua e à história ele não se constitui, ele não fala, não

produz sentidos. (ORLANDI, 1999, p. 49)

Pela análise das condições de produção dos discursos, percebemos que estes

possuem relações com outros tantos, evocando memórias ou interdiscursos que são

agrupados em uma formação discursiva que englobam o sujeito. Este é assujeitado, mas

52

ocupa um lugar de fala, uma posição para o que diz fazer sentido. A posição que o

sujeito ocupa é constitutiva do que ele diz, aí temos em questão a imagem que ele faz

dele, e a imagem que os outros têm dele. Não se trata aqui da posição real do sujeito,

mas de uma projeção imaginária dessa posição. Isso configura as relações de força, o

lugar a partir do qual fala o sujeito é determinante do que ele diz. “Não são os sujeitos

físicos nem os seus lugares empíricos como tal, isto é, como estão inscritos na

sociedade, e que poderiam ser sociologicamente descritos, que funcionam no discurso,

mas suas imagens que resultam de projeções.” (ORLANDI, 1999, p.42) Inferimos disso

que os livros de autoajuda estão carregados de sentidos e se utilizam de estratégias para

reforçar seus argumentos. Citam, a todo momento, médicos, psicólogos, etnólogos e

vários campos da ciência para legitimar aquilo que dizem, recobrindo assim o texto de

discursos de autoridade. Os leitores acreditam nas proposições dos manuais por se

basearem no discurso científico, que é, desde há muito tempo, considerado um discurso

de “verdade.” Na capa do livro Porque os homens fazem sexo e as mulheres fazem

amor?, encontramos os seguinte dizeres: “Uma visão científica (e bem humorada) das

nossas diferenças.” O termo “científico” serve para dar credibilidade ao discurso,

percebemos que a expressão “bem humorada” aparece entre parênteses, na intenção de

que o caráter supostamente científico do livro é que apareça em destaque.

Para análise deste trabalho selecionamos três livros de autoajuda tratados como

um documento histórico que produz efeitos de sentidos sobre mulheres na primeira

década do século XXI, invocando interdiscursos, memórias discursivas que visam

constituir novas/velhas mulheres. Este corpus foi selecionado por fazer parte de uma

gama de discursos que pretendem assujeitar as mulheres a uma específica forma de

comportamento. Ainda de acordo com Eni Orlandi, diante de um texto - que seria a

unidade que o analista tem à sua frente - o analista/pesquisador o remete imediatamente

a um discurso, que por sua vez, se explicita em suas regularidades pela sua referência a

uma ou outra formação discursiva que ganha sentido porque deriva de um jogo definido

pela formação ideológica dominante naquela conjuntura. (ORLANDI, 1999, p. 63) O ir

e vir constante entre a teoria, a consulta ao corpus e a análise é um dos pressupostos da

Análise de discurso.

A história se faz presente na língua porque as palavras refletem sentidos de

discursos já realizados ou possíveis. A historicidade do texto se faz através de uma

53

trama de sentidos. “O que constitui o texto como texto discursivo é o fato de, ao ser

referido à discursividade, constituir uma unidade em relação à situação.” (ORLANDI,

1999, p. 69) A compreensão do funcionamento do texto, enquanto trabalho simbólico,

se estabelece através dos fatos que determinam a memória da língua e é desse modo que

a história se faz presente. O discurso, por princípio, não se fecha. É um processo em

curso. Ele não é um conjunto de textos, mas uma prática. “É nesse sentido que

consideramos o discurso no conjunto das práticas que constituem a sociedade na

história, com a diferença de que a prática discursiva se especifica por ser uma prática

simbólica.” (ORLANDI, 1999, p. 71) Ao analisar os documentos chega-se aos

processos que produzem seus sentidos e que constituem os sujeitos e suas devidas

posições. A circulação do discurso permite que uma representação permaneça em vigor,

servindo de base para moldar o comportamento e as atitudes dos indivíduos. “O dizer se

sustenta na memória discursiva.” (ORLANDI, 1999, p. 83) É a partir dessas concepções

que buscamos os sentidos produzidos pela literatura de autoajuda sobre as mulheres, em

que memórias discursivas se apoiam para criar modelos de conduta que as levariam à

felicidade e ao sucesso conjugal.

54

Capítulo 2

CONSTRUINDO AS DIFERENÇAS

As representações de gênero estão presentes em vários discursos na sociedade. Os

papéis sociais de homens e mulheres são criados, recriados e reforçados em vários

campos como a educação, a religião e a mídia. Cada sexo é representado com

características próprias e muito definidas, não podendo um desempenhar a função do

outro. As mulheres estão relacionadas à beleza, aos afazeres domésticos, à

irracionalidade, à maternidade e ao casamento. São representadas muitas vezes como

seres superficiais, preocupadas apenas com sua aparência e a quantidade de sapatos que

têm. Enquanto os homens são a representação da força, eles são dotados de poder, são

os líderes, os provedores do lar. A identidade masculina está associada à racionalidade,

aos negócios, à vida pública, e ao heroísmo. Associá-los a uma característica feminina

se torna uma ofensa imperdoável.

Os estudos de gênero têm contribuído para revelar como essas características fixas

e hierarquizadas para homens e mulheres são construções sociais e culturais que

instituem um jeito de ser para cada um. Embora cada sexo seja biologicamente

diferente, o gênero trabalha para desconstruir aquelas características que nada tem a ver

com o biológico, mas que são criadas como naturais para o masculino e para o

feminino. Segundo Tânia Navarro Swain,

Em si, a diferença sexual não é positiva nem negativa, mas torna-se

política quando é marca da desigualdade, criada a partir de uma

evidência corpórea “natural”, o que oculta os mecanismos de poder de

sua construção. Se a diferença pode ser filosófica ou biológica em seu

ponto de partida, torna-se forma de poder política ao estabelecer a

desigualdade, a inferioridade sexual.

(NAVARRO-SWAIN, 2009, p.3)

Assim a forma diferenciada com que meninos e meninas são educados contribui

para determinar suas identidades de gênero, pois são perpassados em suas experiências

por discursos que os constituem enquanto homens ou mulheres, portanto, chegam à vida

adulta já moldados pelos ensinamentos que receberam desde o nascimento.

A diferenciação sexual é um tema constante de investida de variados meios

discursivos. Definir características, posicionamentos, comportamento de homens e

55

mulheres parece ser uma necessidade inerente à sociedade. Desse modo, são construídas

representações sociais, moldes de interpretação variados, plurais, ordenadores de

valores e lugares de fala. A circulação desses valores promove o que Michel Foucault

chama de regimes de verdade, ordenando o mundo em torno de pressupostos

historicamente construídos. Segundo Foucault: “A verdade está circularmente ligada a

sistemas de poder, que a produzem e apóiam, e a efeitos de poder que ela induz e que a

reproduzem.” (FOUCAULT, 1979, p. 14) Assim, ao afirmar e reforçar os papéis de

cada sexo cria-se uma verdade, evidente por si mesma, que preenche a vida dos

indivíduos que passam a conduzir-se da forma determinada para cada sexo.

Os livros que analisamos aqui são mecanismos discursivos que produzem

verdades sobre os sexos. Com a pretensão de facilitar a vida dos casais, constroem

comportamentos adequados para cada um. Neste capítulo, selecionamos enunciados que

nos permitem analisar três temas dessa literatura que definem o lugar que homens e

mulheres devem ocupar na sociedade: a origem das diferenças, as capacidades de cada

sexo e a divisão do trabalho.

2.1 A origem das diferenças

Os livros dos autores Allan e Bárbara Pease, Por que os homens fazem sexo e as

mulheres fazem amor? e Por que os homens mentem e as mulheres choram?, são

caracterizados por explicar as diferenças entre homens e mulheres a fim de facilitar a

convivência entre os sexos. Segundo os autores, os livros se baseiam em sólidas

evidenciais científicas, crenças, histórias e conversas do dia a dia.

O livro da Sherry Argov, Por que os homens amam as mulheres poderosas? ,

busca transformar uma mulher que a autora considera “boazinha” em uma mulher

poderosa. A mulher poderosa para a autora é:

(...) amável, porém decidida. Ela sabe quem é, conhece seus pontos fortes e

fracos e gosta da própria companhia. Ela não abre mão da sua vida e se

recusa a correr atrás de um homem, por mais que sinta atraída por ele. Ela

não permite que ninguém tenha controle total sobre ela e sabe se defender

quando os outros passam dos limites. ”(ARGOV, 2009, p.7)

56

Embora a autora não fale diretamente sobre as diferenças sexuais, ela se baseia na

mesma matriz que o casal Pease para argumentar sobre os modos de ser de cada sexo.

Os três livros analisados aqui buscam a explicação das diferenças no comportamento

dos homens e mulheres do passado, ou melhor, nos homens e mulheres das cavernas.

Para justificar os argumentos citam áreas do conhecimento científico, pois segundo

esses livros as diferenças são determinadas pela constituição cerebral, diversa em

homens e mulheres. Vemos aqui o funcionamento dos discursos de autoridade, estes são

discursos inseridos em um lugar de fala que o reveste de poder e verdade. Em todos os

livros observados, os autores se referem ao momento histórico em que homens e

mulheres não conseguem se entender, e os relacionamentos se tornaram sofridos. Esse

momento histórico se localiza por volta dos anos 1960 quando as lutas dos movimentos

feministas se intensificaram e a vida das mulheres foi aos poucos sendo modificada. Os

livros propõem-se como um manual de sobrevivência para os casais em busca da

felicidade conjugal. De acordo com esses livros, a crença na igualdade dos sexos é

responsável pelos problemas que os indivíduos enfrentam com seus parceiros e marcam

a diferença, ou a consciência sobre a diferença, como uma realidade que deve ser

enfrentada, pois é a solução de todos os problemas.

A questão aqui é simples, homens e mulheres são diferentes. Nem melhores,

nem piores – apenas diferentes. Cientistas, antropólogos e sociólogos sabem

disso, mas têm também certeza de que afirmar publicamente suas conclusões

poderia transformá-los em verdadeiros párias de uma sociedade determinada

a acreditar que homens e mulheres têm as mesmas habilidades, aptidões e

potencialidades. (PEASE, 2000, p. 7)

Os autores enfatizam a diferença como algo imutável e evidente. Citam áreas do

conhecimento para legitimarem sua fala, mas não apresentam as fontes que utilizam

para fazerem esta afirmação. A posição em que se colocam é de defesa, neste enunciado

já deixam claro os motivos pelos quais supõem que as pesquisas que eles estão citando

não estejam à disposição de qualquer pessoa, pois segundo eles, apresentar as provas

científicas de que homens e mulheres são realmente diferentes tornariam os

pesquisadores mal vistos pela sociedade fadada a acreditar na igualdade. Allan e

Bárbara Pease desqualificam a crença de que homens e mulheres possam ser capazes

que realizar as mesmas atividades, então a falta de compreensão das diferenças é a

57

responsável pelos desentendimentos, e não as desigualdades entre os sexos. Os autores

oferecem aos leitores um manual de instruções sobre o funcionamento de cada sexo,

acreditam que com esses conhecimentos os casais possam ser mais felizes e obter

sucesso nos relacionamentos, pois “somente entendendo a diferença entre homens e

mulheres, poderemos começar a entender nossa vida coletiva – em vez das fraquezas

individuais.” (PEASE, A. PEASE, B. 2000, p. 7)

A máxima dos livros que analisamos aqui é a de que, quando os indivíduos

tomarem consciência das suas diferenças, divididas em masculinas e femininas, poderão

viver em harmonia. De acordo com o livro, “os relacionamentos não dão certo porque

os homens não compreendem que as mulheres não podem ser como eles, e as mulheres

esperam que os homens se comportem do mesmo modo que elas”. (PEASE, A.,

PEASE, b. 2000, p. 8) Neste excerto, o sentido produzido pela colocação das palavras

mostra pistas do ponto de vista que os autores defendem. Os homens não entendem por

que as mulheres não podem “ser” como eles, os homens então possuem uma essência

que os definem e que as mulheres não podem alcançar, pois faz parte da identidade

masculina imutável e natural. Em contrapartida, as mulheres se frustram por que os

homens não se “comportam” do mesmo jeito que elas, comportar significa agir, reagir a

um estímulo ou meio. Os homens então possuem uma essência, um ser, enquanto as

mulheres possuem um comportamento em face daquilo que estabelece como deve ser

uma mulher. Os homens “são”, as mulheres se “comportam”.

A ideia geral desses livros é que homens e mulheres evoluíram de acordo com as

necessidades físicas e biológicas de cada sexo, guiados pelo funcionamento do cérebro.

A base de sustentação dos argumentos de Allan e Barbara Pease é o comportamento dos

ancestrais humanos, comprovados através de inúmeras pesquisas científicas, que são

determinantes no comportamento das pessoas enquanto estas existirem. Os autores

narram uma história de harmonia entre os casais de tempos remotos, para a partir desse

pressuposto, justificar o posicionamento dos sexos na sociedade.

Homens e mulheres evoluíram de modos diferentes porque tinham de

ser assim. Os homens caçavam, as mulheres ficavam com o grupo. Os

homens protegiam as mulheres cuidavam. Os homens se tornaram

mais altos e mais fortes do que a maioria das mulheres, e seus

cérebros de desenvolveram para cumprir as tarefas que lhes cabiam.

As mulheres ficavam satisfeitas de ver seus homens saírem para

trabalhar enquanto elas mantinham o fogo aceso na caverna. Seus

58

cérebros, então, evoluíram para atender às funções que precisavam

desempenhar. (PEASE, A. PEASE, B. 2000, p. 11)

A forma como os autores utilizam as palavras, possui a intenção de carregá-las de

um significado imutável, definitivo. Segundo o enunciado acima, homens e mulheres

evoluíram de modos diferentes, porque “tinha que ser assim”, ou seja, não havia

alternativa, os autores deixam claro suas concepções deterministas. Mesmo havendo

uma distância de milhares de anos, homens e mulheres de tempos remotos e de hoje

evoluíram e se constituíram pelos mesmos motivos e finalidades. Os autores nesse

excerto já deixam claro o lugar de cada sexo, os homens saíam de suas casas para

trabalhar, enquanto as mulheres ficavam em casa gratas pela coragem e força de seu

parceiro.

As mulheres “mantinham o fogo aceso nas cavernas”, sentiam satisfação em ver

seus homens trabalhando, e seu cérebro evoluiu para as atividades que “precisava

desempenhar”. Os cérebros das mulheres então se desenvolveram para serem habitantes

do privado, para manterem o cuidado com a casa. Ao dizer que se sentiam satisfeitas

quando seus maridos saíam para trabalhar, vemos como os autores determinam a

valorização e admiração da mulher pelo homem, e não o contrário. Os homens

evoluíram por sua força ao executar suas tarefas, e assim a sua existência foi

determinada. As mulheres evoluíram por sua satisfação pelo que os homens faziam, e

pela dedicação em cuidar de sua caverna, o que não era um ato heróico, mas algo

inerente à sua natureza12

; desde os primórdios, de acordo com as fontes, a vida das

mulheres gira em torno dos seus parceiros. A divisão do espaço de homens e mulheres

feita pelos livros de autoajuda está aí determinada, ao homem o público, às mulheres o

privado, o conforto de sua casa, essa concepção repousa em um interdiscurso que

localiza o feminino e o masculino em esferas privadas de atuação. A ideia do

público/masculino e privado/feminino é um regime de verdade que já estava presente na

literatura do século XIX que citamos no primeiro capítulo, constitui-se um valor que

circula e adensa-se em discurso de verdade sobre os sexos. Ao longo dos anos essas

representações vêm sendo demonstradas e reforçadas em vários meios discursivos,

como a mídia televisiva e as propagandas publicitárias, por exemplo.

12

Assim como o trabalho doméstico das donas de casa nos dias de hoje, por ser considerado uma

obrigação das mulheres não é valorizado e reconhecido como trabalho.

59

Os autores idealizam uma realidade construída por eles sobre o passado para

construir comportamentos adequados no presente.

Era uma vez, há muito, muito tempo, homens e mulheres vivendo juntos,

felizes e trabalhando em harmonia. O homem, a cada dia, arriscava sua vida

em um mundo perigoso e hostil, caçando para levar o alimento à sua mulher

e filhos e enfrentando inimigos e animais selvagens. Desenvolveu o senso de

direção e a pontaria, tornando-se capaz de localizar a caça, atingi-la mesmo

em movimento e levá-la até o lugar onde vivia. A definição de seu trabalho

era simples: caçador de comida. Isso era tudo o que se exigia dele.

(PEASE,A. PEASE, B, 2000, p. 13)

Neste trecho, os autores narram o papel desempenhado pelos homens em uma

época distante, fazem referência a uma época feliz e harmônica, em que cada um sabia o

que deveria ser, e o que deveria fazer. As representações de gênero delegam aos homens

a coragem, a força e a habilidade de lidar com situações de risco. Ao afirmar que os

homens viviam em um mundo “perigoso e hostil”, caracteriza o mundo fora da casa, o

mundo público, como lugar dos homens por natureza, uma vez que as mulheres não

possuem força e poder suficientes para enfrentar o perigo. São frágeis e delicadas,

inabilitadas para as funções da vida extradoméstica. Por serem caçadores, os homens

evoluíram como os provedores, aqueles que detêm o sustento e a sobrevivência. Assim

nesse enunciado vemos o funcionamento da memória discursiva que remete um

discurso a outros com o mesmo sentido. O discurso da autoajuda ao definir os papéis

sociais dos homens, está relacionado a uma matriz de sentido que constrói a imagem

dos homens como o chefe da casa, o herói, pois detém o poder sobre a vida daqueles

que sustenta. As mulheres se sentiam protegidas pela coragem de seus parceiros, como

salientam os autores:

A mulher, por seu lado, se sentia valorizada ao ver seu homem expor a vida

pela família. Homem de sucesso era aquele que conseguia bastante comida, e

sua autoestima dependia do reconhecimento da mulher aos seus esforços. A

família só esperava que ele cumprisse suas tarefas de caçador e protetor –

nada mais. Não era preciso “repensar o relacionamento” e ninguém lhe pedia

que levasse o lixo para fora nem trocasse as fraldas do bebê. ( PEASE A.,

PEASE, B. 2000, p. 14)

60

Neste excerto os autores fazem referência ao modo de vida dos antepassados a

partir de valores atuais. Reforçam a ideia de que os homens adquiriam poder através de

sua capacidade de promover a família, enquanto as mulheres lhes deviam gratidão. Os

sentidos produzidos neste enunciado fazem referência ao modelo de família patriarcal,

composto pelo homem como o responsável pelo sustento, proteção, e por conseqüência

pela vida de todos aqueles que dele dependem. “A família esperava que ele cumprisse

suas tarefas de caçador e protetor – nada mais”, aqui os autores estabelecem uma ordem

de funcionamento para as famílias, a ênfase dada ao trabalho dos homens como

caçadores e protetores está relacionada nos dias de hoje à valorização do trabalho

masculino. Os autores se utilizam dessa história, criada por eles, demonstrando como os

homens e as mulheres do passado viviam, para assim produzir uma imagem de como

homens e mulheres seriam felizes se mantivessem ou voltassem a viver esses padrões de

comportamento. Definem o papel das mulheres como em muitos outros discursos, que

as relaciona com a vida doméstica e a maternidade.

O papel da mulher era também muito claro. A necessidade de ser uma

perpetuadora da espécie apontou a direção em que devia evoluir e as

habilidades a desenvolver para cumprir suas funções. Precisava ser capaz de

detectar sinais que indicassem a aproximação do perigo, ter excelente senso

de direção a curta distância, orientando-se por detalhes da paisagem para

encontrar o caminho, e, com sua extraordinária sensibilidade, identificar

pequenas mudanças na aparência e no comportamento das crianças e adultos.

Tudo muito simples: ele era o caçador da comida; ela, a guardiã da cria.

(PEASE, A. PEASE, B. 2000, p. 14)

Segundo o casal Pease, a biologia de cada sexo determina a forma como deveriam

evoluir. Dos homens das cavernas até a época de publicação dos seus livros, cada sexo

se desenvolveu para cumprir as mesmas funções. Nesse sentido, as mulheres são

“perpetuadoras da espécie”, e as habilidades que desenvolveram ao longo de milhares

de anos, possui a única finalidade de cumprir a sua função de mãe, ou como eles dizem

“guardiã da cria”. A identidade feminina está relacionada às funções do seu útero, como

vimos no capítulo anterior, os discursos que relacionam as mulheres ao uso de seu

sistema reprodutor são muitos constantes. As mulheres constituem-se na literatura de

autoajuda aqui analisada, um ser pautado pelas determinações da biologia, a

maternidade é um pressuposto básico da vida de todas elas, sendo a função primordial

de sua existência. Segundo Swain, “receptáculo, depositário de sementes, as mulheres

61

são útero antes de serem humanas, classificadas em termos de orifícios e humores.”

(NAVARRO-SWAIN, 2009, p.14)

O enunciador continua, as mulheres deveriam ter “excelente senso de direção a

curta distância”, pela metodologia de trabalho que aqui empreendemos, buscamos os

sentidos produzidos pelas palavras que estão além de sua evidência no discurso, as

palavras não são dispostas nos textos de forma aleatória, sem intencionalidade. Como

sublinha Swain “se o discurso é uma forma de ação, a linguagem é também uma

tecnologia do gênero, pois sua instauração de sentidos é um vetor que nos aponta para a

construção de um real em grades de enunciação constituídas em sentido.” (NAVARRO-

SWAIN, 2009, p. 6) Através do enunciado em destaque acima, podemos compreender a

intenção desse discurso, ao dizer que as mulheres precisam ter senso de direção de curta

distância, os autores instauram uma forma de vida e existência para as mulheres que não

seja além daquilo que seu corpo biológico poderia determinar. As mulheres não

precisam ir além dos limites da casa, o espaço privado é o seu lugar por natureza, assim

não necessitam mesmo ter a capacidade de se guiar a distâncias longas, pois, o mundo

além da casa não lhe pertence. A capacidade de estar atenta a qualquer perigo

demonstra que as mulheres estão na maioria das vezes em posição de ameaça, os

autores dizem que os homens protegem as mulheres, são dotados de força, mas não

precisam detectar os perigos, pois não estão ameaçados, eles lutam contra aquilo que

possa colocar em risco seus dependentes, mas não a eles mesmos.

A mulher evoluiu como parideira e defensora da prole. Como resultado, o

cérebro feminino se programou para nutrir, educar e prover de amor e

carinho a vida das pessoas. O homem evoluiu com uma programação

totalmente diferente – caçar, guerrear, proteger, prover materialmente e

resolver problemas. Pesquisas científicas propiciadas pelas novas técnicas de

ressonância magnética do cérebro confirmam essas programações diferentes.

(PEASE, A. PEASE, B. 2003, p. 9)

Podemos perceber pelo enunciado acima que os autores não estão dizendo

somente que os antepassados eram caçadores e guardiões da cria, e sim que homens e

mulheres evoluíram para ocuparem essas posições. Ao longo da história, muitos foram

os discursos que buscaram assujeitar as mulheres e os homens a um padrão de

comportamento adequado ao seu sexo. Sobre essa constituição de meninos e meninas no

discurso social Margareth Rago afirma:

62

À menina são atribuídos qualificativos como passividade, docilidade, desejo

de poder em seu território natural, o lar, instinto de maternidade,

romantismo, enquanto que ao sexo masculino correspondem a vocação do

poder, a capacidade de formar iniciativas, tenacidade, desejo de liberdade e

racionalidade. (RAGO, 1997, p. 83)

A autoajuda é mais um desses discursos que no início do século XXI reduz as

mulheres apenas às funções de seu útero, assujeitando-as a uma posição dócil e

domesticada, devido a sua constituição natural amorosa e carinhosa. Nesses livros,

servir às pessoas faz parte da identidade feminina, sempre disposta a cuidar do outro. As

fontes fazem referência à sensibilidade feminina, característica imprescindível para ser

mulher. As emoções são determinantes de suas ações, ao passo que os homens agem

pela razão.

A mulher passava o dia cuidando das crianças, colhendo frutos e sementes e

se relacionando com outras mulheres do grupo. Não tinha que se preocupar

com a parte principal do abastecimento de comida, e seu sucesso estava

ligado à capacidade de manter a vida em família. Sua autoestima dependia

do valor que o homem dava a suas habilidades de zeladora e mãe. Ter filhos

era um ato mágico, sagrado mesmo, como se só ela conhecesse o segredo da

vida. Ninguém esperava que fosse caçar, enfrentar inimigos ou trocar

lâmpadas. (PEASE, A. PEASE, B., 2000, p. 14)

As representações femininas disseminadas pela literatura de autoajuda aqui

analisada busca estabelecer posições sociais para homens e mulheres, a maternidade

para estas é a função primordial de sua existência. O discurso da maternidade está

presente em várias outras instâncias discursivas, sobre o discurso da maternidade

Raquel Soihet afirma:

A maternidade tem se constituído num dos mitos da nossa cultura,

exercendo-se em seu nome forte manipulação sobre a mulher que, desde

muito cedo, é bombardeada com estímulos para o exercício de tal mister

como algo para o qual não cabe qualquer modalidade de opção. Com efeito,

repetem para a mulher desde a infância que ela é feita para conceber e

cantam-lhe o esplendor da maternidade; os inconvenientes de sua condição

– regras, doenças, o tédio das tarefas caseiras, etc. tudo é justificado por esse

maravilhoso privilégio de pôr os filhos no mundo. (SOIHET, 1986, p. 91)

63

O interdiscurso no último enunciado do livro de autoajuda analisado acima,

aponta para o instinto materno como um fator natural do qual as mulheres não podem

escapar. Margareth Rago estudando o discurso médico sanitarista entre 1890 e 1930

aponta que:

A valorização do papel materno difundido pelo saber médico desde meados

do século passado, procurava persuadir as mulheres de que o amor materno é

um sentimento inato, puro e sagrado e que a maternidade e a educação da

criança realizam sua ‘vocação natural. (RAGO, 1997, p. 79)

A estratégia dos autores da autoajuda não se difere dos estudados por Rago e

Soihet, pois recorrem à ideia de que “ter filhos era um ato mágico, sagrado mesmo,

como se só ela conhecesse o segredo da vida”, defendem o instinto materno como um

privilégio feminino, uma “graça” da qual ela possui o prazer de desfrutar. Essas

representações constroem a maternidade como algo obrigatório para as mulheres.

Embora a materialidade do corpo exista e as mulheres sejam mesmo dotadas da

capacidade de gerar outro ser em seu ventre, essa condição não deve ser definidora de

suas ações no mundo. A imagem da mulher como um ser iluminado, uma zeladora

natural, possuidora de um amor incondicional pela criança que gera, foi construído ao

longo do tempo, em “redes de significações que definem a maternidade como desejo

inato da mulher e constituinte de uma natureza feminina.” (MAIA, 2011, p. 286) O

enunciador, que analisamos, fixa a identidade feminina em torno de sua capacidade de

ser mãe, sendo essa a maior atribuição das mulheres, fator ao redor do qual todas as

capacidades femininas evoluíram. Dessa forma, possuem a intenção de convencer suas

leitoras de seu destino natural, assujeitando-as à representação de mãe, verdadeira

mulher. O assujeitamento é segundo Swain, “a resposta individual à interpelação do

social que cria as identidades e a identificação a um grupo, definindo sua inserção no

espaço societal.” (NAVARRO-SWAIN, 2000, p.54)

O movimento feminista teve como uma de suas reivindicações o direito das

mulheres poderem escolher ou não serem mães, ou em que momento isso poderia

acontecer. Dessa forma as mulheres teriam mais condições de construir suas carreiras

profissionais, além de terem o domínio sobre o próprio corpo. A literatura de autoajuda

que analisamos se apóia em uma memória discursiva que atrela as mulheres ao papel da

mãe santificada, para Tânia Navarro Swain,

64

Apesar das transformações ocorridas em algumas normas sociais (de

maneira pontual e localizada) graças em grande parte aos feminismos, o

casamento e a maternidade povoam os sonhos e o imaginário das mulheres,

que se consideram completas apenas se forem mães e esposas. (NAVARRO-

SWAIN, 2000, p.54)

A literatura que analisamos funciona como uma prática discursiva que produz

sentidos sobre as mulheres e traz um retrocesso neste sentido, pois constrói as

representações das mulheres primordialmente como mães; esses livros fazem parte de

uma gama de discursos que na última década clamam para as mulheres retornarem aos

lares, nas posições de mães esposas e donas de casa.

Ainda no enunciado que estamos analisando, segundo os autores, as mulheres não

precisavam se preocupar com a parte principal do abastecimento de comida, nesse ponto

o discurso deixa claras as desigualdades entre os sexos. A divisão de trabalho feita por

eles carrega o sentido daquilo que é mais e menos importante na dinâmica social e

familiar, sendo as atividades masculinas consideradas centrais, e as atividades femininas

aquelas que dão suporte e garantem o papel central aos homens.

Depois de comer, os homens se sentavam em volta do fogo, contavam

historias, faziam brincadeiras e riam. Era uma versão pré-histórica da

contínua troca de canais com o controle remoto ou da total concentração na

leitura do jornal. Estavam exaustos depois de tanto esforço e precisavam se

recuperar para caçar novamente no dia seguinte. As mulheres continuariam a

cuidar das crianças e a garantir o descanso e a alimentação dos homens.

Cada um apreciava o que o outro fazia – eles não eram considerados

preguiçosos e nem elas se sentiam como criadas oprimidas. (PEASE, A.

PEASE, B. 2000, p. 14)

Os autores recorrem a expressões de generalização para convencer os leitores da

naturalidade desses comportamentos. “Homens e mulheres de todas as culturas, credos e

raças vivem em constante duelo com seus parceiros por causa de opiniões,

comportamentos, atitudes e crenças.” (PEASE, A. PEASE, B. 2000, p. 9) Universalizam

os comportamentos na intenção se instaurar uma verdade sobre os sexos, uma verdade

tão evidente que ultrapassa os limites do tempo, da diversidade social cultural e

geográfica. “Colocar em questão não somente as evidências sociais, mas também

biológicas é um dos mecanismos que permite à modificação das representações sociais,

65

criadoras de seres e relações sociais que fixam os corpos e as significações sociais”.

(NAVARRO-SWAIN, 2009, p.20) No enunciado em destaque, narram uma cena bem

feliz e divertida, fazem analogia a uma situação da atualidade para reforçar o fato de que

homens e mulheres não mudaram ao longo do tempo. Cometem anacronismo quando

reportam a outras sociedades valores e situações da sociedade atual. Assim, no fim do

dia, os homens chegavam a suas cavernas e ficariam olhando para a fogueira da mesma

forma que fazem atualmente ao assistir televisão ou ler um jornal. Teriam o seu

descanso após um dia árduo de trabalho. As mulheres continuariam fazendo suas

tarefas, que inclui garantir o descanso dos seus parceiros, o discurso trabalha então

desqualificando o trabalho feminino, o trabalho doméstico. Isso porque, a atividade

importante é aquela que traz o alimento para casa, o trabalho feito ininterruptamente

pelas mulheres não deveria ter descanso, pois não é dotado de esforço, é uma obrigação

natural ligada a sua condição de mulher.

Ao construir a ideia de que no mundo dos antepassados os papéis eram marcados

e por isso os casais eram felizes, os autores inserem uma crítica à igualdade entre os

sexos. Dissertando sobre a divisão das tarefas eles afirmam que os homens não eram

considerados preguiçosos e nem as mulheres se sentiam criadas oprimidas. Essa

literatura tenta convencer seus leitores de que as diferenças sexuais são determinadoras

da divisão dos espaços que cada um deve ocupar e que essa divisão é natural, pois cada

sexo se desenvolveu de acordo com a natureza do seu corpo. O discurso desses livros

determina um momento datado para que os problemas enfrentados pelos casais

acontecessem. Segundo a autoajuda que utilizamos como fonte, nos dias atuais,

A família não mais depende unicamente do homem para sua sobrevivência e

não se espera mais que a mulher fique em casa exercendo as funções de mãe

e zeladora. Pela primeira vez na história as espécies humana, a maior parte

dos homens e mulheres se confunde na hora de definir suas atividades. Você

faz parte da primeira geração a ter que encarar situações que seus

antepassados nunca conheceram. Pela primeira vez, buscamos em nosso

parceiro amor, romance e realização pessoal, já que a sobrevivência,

garantida para muitos pela estrutura da sociedade moderna através de fundos

de pensão, aposentadorias, leis de proteção ao consumidor e varias

instituições não governamentais, não é tão prioritária. (PEASE, A., PEASE,

B., 2003, p. 15)

66

Através dessa fala é visível mais uma vez a posição dos autores, que além de

marcarem os papéis de gênero, universalizam os comportamentos, falam em “história da

espécie humana”, assim ignoram as diferenças culturais sociais e geográficas; para eles

todos os homens e mulheres do universo possuem o mesmo comportamento. Essa é uma

estratégia para convencer os leitores, pois se em todo o mundo a diferença é marcada

entre homens caçadores e provedores e mulheres mães e zeladoras, os livros não deixam

margem para que os leitores possam imaginar que poderiam ser diferentes. Tânia

Navarro Swain ao analisar essas teorias de homens e mulheres das cavernas como

moldes universais para os comportamentos atuais afirma que:

Essa universalização é totalmente desprovida de fundamento, na medida em

que os dados a respeito dessas sociedades – indícios – estão sujeitos à

interpretação dos analistas impregnados de suas representações sociais. Nada

pode provar esta divisão de trabalho, a não ser as pressuposições contidas em

suas próprias concepções de gênero. As generalizações históricas a respeito

das relações mulheres/homens são fruto de um positivismo anacrônico que

se fundamenta apenas na afirmação de suas premissas: é natural porque é, e

sendo assim, sempre foi. (NAVARRO-SWAIN, 2001, p. 36)

Os autores da autoajuda instauram papéis de gênero através de um discurso

universalizante marcado pela diferença e pela hierarquia entre os sexos. As mudanças

nos moldes de comportamento para homens e mulheres, tão desejadas e buscadas pelos

feminismos, aparecem para os autores como um acontecimento negativo que

desorganizou a sociedade, é um mal que deve ser combatido.

As transformações ocorridas nas relações sociais ocidentais desde a década de

1960 são o marco em que os autores situam o desequilíbrio nas leis naturais que regiam

as relações entre os sexos:

Se você nasceu antes de 1960, é bem possível que tenha crescido vendo seus

pais se relacionarem segundo os antigos princípios de sobrevivência entre

homem e mulher. Eles repetiam o comportamento que aprenderam com os

pais deles, que, por sua vez, imitaram os pais deles, que copiaram os pais

deles, e assim por diante, até chegar ao povo das cavernas com seus papéis

claramente definidos. (PEASE, A., PEASE, B., 2003, P. 15)

67

No livro Por que os homens fazem sexo e as mulheres fazem amor, o casal Pease

faz uma crítica indireta ao feminismo, situam a década de 1960 como o momento em

que as relações entre os casais foram modificadas. Na década em questão, ocorreram

muitas mudanças em algumas esferas da vida cotidiana, o movimento feminista foi um

dos responsáveis por questionar os lugares ocupados por cada sexo, e a hierarquia que

colocava os homens como detentores do mundo e as mulheres como submissas ao poder

masculino. Allan e Bárbara Pease afirmam que após a década de 1960, as famílias

foram desestruturadas, devido ao índice alto de divórcios que eles encontraram em suas

pesquisas. Em seu segundo livro, Por que os homens mentem e as mulheres choram?,

os autores fazem uma crítica mais contundente ao feminismo, responsabilizando-o

claramente pela infelicidade conjugal no início do século XXI.

No final do século XX, à medida em que as mulheres conquistavam cada vez

mais liberdade, e o homem era visto como inimigo a ser vencido, os

relacionamentos e as famílias passaram a viver em enorme tensão. As

mulheres estavam irritadas, e os homens, perplexos e confusos. Durante

gerações, os papéis haviam sido nitidamente definidos. O homem era o chefe

da família e o principal responsável por seu sustento, sua palavra era a lei e

suas áreas de decisão, claras. A mulher era a mãe, dona-de-casa, secretária,

professora ou assistente social. (PEASE, A. PEASE, B., 2003, p.8)

Como no primeiro livro, os autores afirmam que as diferenças são o ponto de

equilíbrio e harmonia entre os casais, portanto, saudáveis para a sociedade. No

momento em que o discurso feminista se alastra no campo social e que as mulheres

finalmente começam a tomar consciência de que podem e devem desempenhar outros

papéis, os autores afirmam que as famílias começaram a se desintegrar. Sabemos que a

ideia de família carrega uma memória discursiva associada a equilíbrio, a família é uma

instituição sagrada, dessa forma os autores se utilizam do discurso da família para

demonstrar o quanto a igualdade entre os sexos é nociva para a sociedade. No livro

anteriormente citado, a hierarquia entre os sexos continua muito presente e é

apresentada de forma mais enfática, o poder dos homens sobre as mulheres está bem

explicito, ele era o chefe da família e sua palavra era lei, e assim:

A vida parecia simples. De repente, tudo começou a mudar. Seriados e

comerciais de TV passaram a mostrar homens como idiotas incompetentes

68

diante de mulheres superiores, inteligentes e cada vez mais adeptas da causa

da igualdade. (PEASE, A., PEASE, B., 2003, p. 8)

Os livros de autoajuda que analisamos trabalham em prol da dominação de um

sexo sobre o outro, divide a sociedade em polos opostos e hierarquizantes, em que o

natural é o masculino dominar e o feminino servir. Numa época em que as mulheres

alcançaram mais espaço no mundo público, o discurso da autoajuda demonstra uma

inversão de papéis com a pretensão de desprezar o movimento feminista e a luta pela

igualdade.

Hoje em dia ser homem tornou-se uma árdua tarefa. Os homens estão

inseguros quanto à sua identidade e faltam-lhes exemplos a serem seguidos.

Desde que, na década de 1960, as feministas passaram a ter mais voz e mais

êxitos, a taxa de suicídio entre mulheres diminuiu mais de 34%, enquanto

que entre os homens aumentou 16%. Mesmo assim, as mulheres continuam

falando da cruz que carregam nesta vida. (PEASE, A., PEASE, B., 2003, p.

9)

Neste enunciado os autores colocam os homens como as maiores vítimas das

mudanças. A essência dos indivíduos nos livros de autoajuda está no sexo que os define,

“ser homem” se refere a um posicionamento constituído por discursos que definem o

que ser homem e o que é ser mulher na sociedade. Os indivíduos existem e vivem de

acordo com a posição que seu sexo define. Nesse excerto vemos que a identidade dos

homens foi atingida quando o poder que tinham sobre a vida das mulheres começou a

ser questionado, destituídos de poder, não se encaixam mais na representação que o

constitui. Ser homem no século XXI, já não seria mais sinônimo de deter poder, de ser o

chefe, aquele que dita as leis. É interessante notar que a autoajuda aqui analisada em

algumas partes do texto não faz referência ao “feminismo” enquanto movimento

político, mas sim às “feministas”, mulheres que se revoltaram contra o que a natureza

determina e instauraram o caos nas relações sociais. Vê-se aí o trabalho do interdiscurso

no que se refere às feministas, estas foram vistas e estereotipadas como mulheres

amarguradas e infelizes. A palavra “feminista” carrega a memória de mulheres feias,

mal amadas que tentaram tomar o poder, o que promoveu ao longo da história um

preconceito contra o movimento e suas representantes. Assim os autores ao invés de

localizar o feminismo como um movimento político, nomeiam as mulheres feministas e

criam um inimigo a ser vencido, responsável até pelo aumento da taxa de suicídio entre

69

os homens. Nesse excerto anteriormente citado, também chama atenção o fato de a

diminuição das taxas de suicídio feminino não ser visto como um avanço, uma

conquista. O texto enfatiza a dura realidade dos homens que destituídos do seu lugar

natural tiram a própria vida, pois, sem poder, esta já não tem mais sentido.

Ao fim do último enunciado os autores pretendem demonstrar que as feministas

não obtiveram êxito, pois as mulheres continuam insatisfeitas e infelizes em suas vidas,

reforçam que a ideia de igualdade entre os sexos foi prejudicial para homens e também

para as mulheres, e dizem:

Mas as coisas estão difíceis também para as mulheres. O feminismo

começou prometendo libertá-las dos grilhões que as mantinham aprisionadas

ao fogão, mas hoje cerca de 50% das mulheres do mundo ocidental

trabalham – mesmo quando não querem. (...) Elas agora enfrentam

enfermidades relacionadas ao estresse, exatamente como sempre aconteceu

com os homens. (PEASE A., PEASE., 2003, p. 9)

O casal Pease faz um trabalho contundente contra o feminismo, reduzem seu

significado e seus objetivos, a fim de torná-lo um acontecimento nocivo e fracassado. O

trabalho das mulheres é colocado como uma questão negativa, os autores afirmam que

elas ficaram mais estressadas devido ao trabalho fora de casa. Dão a ideia, portanto, de

que, a vida que as mulheres tinham antes era perfeita e não causava nenhum dano à

saúde, visto que era uma função natural do seu sexo, além do mais os autores

caracterizam o trabalho doméstico como menos importante. Suely Kofes estudando a

relação entre patroas e empregadas faz a seguinte afirmação:

Ser mulher seria, portanto constituir-se a partir do mundo doméstico e ser

parte constitutiva dele. Espaço que não é apenas de tarefas, de esferas

desenhadas pela divisão social e sexual do trabalho. Mas local definidor da

feminilidade. Ser mulher seria ser dona do espaço doméstico. É também ser

doméstica. O doméstico seria ele próprio feminino. (KOFES, 1994, p. 186)

Podemos entender então que a literatura de autoajuda define o trabalho doméstico

como atributo natural das mulheres, e por fazer parte de sua constituição enquanto

sujeito, não requer grande esforço, não é considerado um trabalho no sentido estrito do

termo, nada mais é do que sua obrigação por ser mulher. Segundo Michelle Perrot, o

70

trabalho doméstico resiste às revoluções igualitárias. As tarefas não são compartilhadas

entre homens e mulheres. (PERROT, 2012, p. 115) Os homens por sua vez sempre

“trabalharam”, apesar de também sofrerem das enfermidades advindas das suas

atividades, mas sendo eles mais fortes, não sofriam e seu trabalho era um ato de

bravura. Ao dizer que as mulheres sofrem as enfermidades “exatamente como sempre

aconteceu com os homens”, os autores determinam o trabalho fora da casa como

atividades especificamente masculinas, as mulheres, ao desempenhar essas atividades,

estão agindo como os homens e tendo as mesmas doenças que eles, devido à situação

não ser normal para elas. Mais uma vez percebe-se a polarização do mundo entre as

esferas masculinas e femininas.

As mulheres de hoje são superatarefadas, estressadas e cada vez mais

solitárias. Estima-se que 25% de todas as mulheres do mundo ocidental

serão solteiras permanentes no ano de 2020. Trata-se de uma situação

antinatural, em total desacordo com nossas necessidades humanas e

biológicas básicas. Estamos todos muito confusos. (PEASE, A., PEASE, B.,

2003, p. 9)

A principal consequência das mudanças na vida das mulheres, no entanto não era

somente o estresse causado pelo trabalho, e sim o fato de que sua nova posição afastaria

os homens delas. No trecho acima, os autores determinam que todas as mulheres devem

se casar, sendo a solteirice uma situação antinatural. Afirmam então a necessidade do

corpo de uma atividade sexual, pois não ter um parceiro sexual está em desacordo com

as necessidades humanas biológicas básicas. Nesse excerto notamos a presença do

dispositivo da sexualidade, termo criado por Michel Foucault e que se refere à noção de

que todas as pessoas têm pulsões sexuais sem que possam controlar, é um elemento

natural da vida de todos os indivíduos.

A sexualidade tornou-se fator de inteligibilidade nas sociedades modernas,

assim todas as pessoas, agora aprisionadas em corpos naturalizados e

sexuados, estão obrigadas a uma prática sexual, pois ela é que define o

sujeito, lhe atribui uma identidade, um significado e um lugar no mundo.

(FOUCAULT, apud, MAIA, 2011, p. 258)

Assim a literatura de autoajuda reforça o discurso que instaura a necessidade de

uma atividade sexual para os sujeitos, mas mais do que isso classifica as mulheres

71

solteiras como antinaturais. A imagem negativa da mulher solteira povoa o imaginário

cultural há muito tempo. A invenção da “solteirona” foi tema de pesquisa da

historiadora Cláudia de Jesus Maia, segunda ela, a solteirona foi vista por muito tempo

como “um sujeito marginal outrificado” (MAIA, 2011, p. 3), uma imagem criada

através de discursos instauradores da mulher ideal.

Se em outros contextos históricos, “solteirona” era apenas um status jurídico

ou uma condição de desprestígio social, com o discurso científico – moral –

sobretudo, do segundo quartel do século XIX e primeira metade do século

XX – “solteirona” passou a ser um desvio da natureza, uma anomalia social,

um ser desprezível e risível, a figura da diferença. (MAIA, 2011, p. 3)

Embora trabalhando com discursos sobre mulheres no século XXI, a literatura de

autoajuda propaga a imagem da mulher solteira tal qual a citada por Maia, falando das

mulheres em um espaço de tempo de mais de meio século. Após a década de 1960, com

os movimentos feministas e a revolução sexual, as mulheres ao atingirem em parte seus

objetivos de igualdade e conquistarem carreiras profissionais, também deixaram de ter o

casamento como fundamento de suas vidas.

Ao contrário do que ocorreu com nossas mães e tias, o casamento e a

maternidade estão deixando de ser o principal projeto da vida da mulher. Se

antes o sinônimo de felicidade e realização pessoal era encontrar um bom

marido, ter uma casa confortável e filhos bonitos e educados, hoje grande

parte das mulheres deseja e prioriza a formação escolar, a carreira

profissional e vivência de variadas experiências. (MAIA, 2008, p. 4)

Os livros que analisamos aqui funcionam como um discurso de oposição aos

discursos do feminismo e fazem uma caminhada em marcha ré ao definir as

representações femininas, buscam convencer suas leitoras a retomarem posições que

limitam suas ações na sociedade.

Segundo os livros que pesquisamos, quando não se casam, as mulheres estão

desligadas de sua função natural, de ser esposa e mãe. Para combater isso, os autores

determinam o destino natural das mulheres e dos homens reforçando a todo o momento

os caminhos de sua evolução.

72

A mulher evoluiu como parideira e defensora da prole. Como resultado, o

cérebro feminino se programou para nutrir, educar e prover de amor e carinho

a vida das pessoas. O homem evoluiu com uma programação totalmente

diferente – caçar, guerrear, proteger, prover materialmente e resolver

problemas. Pesquisas científicas propiciadas pelas novas técnicas de

ressonância magnética do cérebro confirmam essas programações diferentes.

(PEASE, A., PEASE, B., 2003, p.9)

Uma das estratégias do discurso deste tipo de autoajuda é repetir inúmeras vezes o

lugar que homens e mulheres devem ocupar na sociedade, criando então representações

de gênero pautadas em uma hierarquia em que os homens são dotados da força, do

poder, da coragem. Desde a época das cavernas, habitam o espaço público, seu por

natureza. Às mulheres é resguardada a capacidade surreal, sagrada e abençoada não só

de gerar outra vida, mas de serem definidas em todos os aspectos por essa capacidade,

elas são as responsáveis por cuidar das outras pessoas, abdicarem de si mesmas em prol

dos outros. Todas essas questões são construídas em cima da crítica ao feminismo, visto

como um acontecimento que desestruturou a sociedade, que quebrou as regras naturais

da vida, a aura sagrada das famílias patriarcais.

No início do século XXI, quando as mulheres alcançaram muitos direitos, quando

finalmente puderam assumir outras identidades não só de “guardiãs da cria”, a literatura

de autoajuda aqui analisada busca a volta da sociedade patriarcal; objetiva convencer

seus leitores que lugar de mulher é em casa, agradecida pelo sustento que o homem tão

bravamente lhe proporciona. Um fator importante de ser ressaltado é que os autores não

conseguem enxergar um mundo que não seja polarizado entre masculino e feminino,

quando falam de mudanças nos comportamentos, fazem uma inversão dos papéis.

Talvez um dia homens e mulheres venham a se parecer. Talvez as mulheres

venham a gostar de ver corridas de automóveis e façam compras com

absoluta objetividade. Os assentos de vaso sanitário serão fixados, as

mulheres só falarão durante os comerciais e os homens só lerão a Playboy

pelo seu valor literário. Mas nós duvidamos que isso aconteça nos próximos

milênios. Enquanto isso não acontece vamos seguir aprendendo a entender,

administrar e gostar de nossas diferenças. E seremos recompensados com

amor e carinho. (PEASE, A., PEASE, B., 2003, p.12)

A compreensão e aceitação das diferenças, de acordo com nossas fontes, é que

levará homens e mulheres a se entenderem em seus relacionamentos. Nesse enunciado

mesmo a igualdade entre os sexos sendo vista de forma equivocada, os autores afirmam

73

que ainda demoraria “milênios” para que homens e mulheres fossem iguais. Com isso

eles deixam a impossibilidade de qualquer mudança. Os livros que analisamos aqui

transformam a luta pela igualdade em mera equivalência de comportamentos, anulam

seu significado na busca por direitos civis, por oportunidades de trabalho e educação, e

o direito das mulheres tomarem as decisões em suas vidas, sem que para isso dependam

da aprovação masculina.

2.2 As capacidades cognitivas

Homens e mulheres são diferentes, esse é o pressuposto básico dos livros

analisados aqui, mas existem vários outros títulos que trabalham com a mesma temática

da diferença sexual, estabelecendo esferas diversas para homens e mulheres se situarem

na sociedade. As diferenças sexuais são assunto em várias instâncias discursivas, são

explicadas por variados fatores, sempre marcando posicionamentos hierárquicos.

Segundo Swain:

Em si, a diferença sexual não é positiva nem negativa, mas torna-se política

quando é marca de desigualdade, criada a partir de uma evidência corpórea

“natural”, o que oculta os mecanismos de poder de sua construção. Se a

diferença pode ser filosófica ou biológica em seu ponto de partida, torna-se

forma de poder política ao estabelecer a desigualdade, a inferioridade sexual.

(NAVARRO-SWAIN, 2009, p. 3)

A literatura de autoajuda constrói um discurso baseado em um suposto

conhecimento científico para criar e explicar as diferenças, afirmam que se utilizam de

recentes estudos para dar credibilidade a seus argumentos. Investe-se de discursos de

autoridade, como a biologia e a medicina para convencer seus leitores. Refutam

qualquer tipo de explicação que demonstre outras formas de ver a diferença. Segundo os

autores, na década de 1980 surgiram muitas pesquisas que buscavam explicar essas

diferenças. “Durante a maior parte do século XX, essas diferenças foram explicadas

pelo condicionamento social, ou seja: somos como somos por causa das atitudes de

nossos pais e professores, que, por sua vez, refletem as atitudes da sociedade em que

vivem.” (PEASE, A., PEASE, B., 2000, p.11) Podemos incluir no período citado pelo

74

enunciado, os estudos feministas de gênero, que afirmam a construção social e cultural

do feminino e do masculino ao longo da história, o enunciador demonstra conhecimento

sobre esses estudos, mas se coloca em posição de crítica contrária. Na continuação do

texto os autores dizem que:

.

Meninas de vestem de rosa e ganham bonecas de presente, meninos se

vestem de azul e ganham uniformes de jogadores de futebol. Mocinhas são

tocadas e acariciadas, rapazes levam tapas nas costas e aprendem que

homem não chora. Até recentemente, acreditava-se que quando uma criança

nasce sua mente é uma página em branco, na qual os educadores imprimem

suas escolhas e preferências (PEASE, A. PEASE, B., 2000,p. 11)

Esse enunciado apresenta meninos e meninas de forma estereotipada, utilizam de

uma forma de escrita com um tom de ironia para desqualificar o argumento de que a

educação define o modo de ser das crianças. Ao utilizar a expressão “até recentemente”,

procuram demonstrar que são estudos ultrapassados, que apenas “acreditavam” que as

crianças não nasciam com características femininas ou masculinas, mas adquiriam

depois, de acordo com a educação que recebiam. Colocam em dúvida esses estudos

através de um jogo de palavras que aparentemente estão aleatórias no texto. Assim eles

apresentam os seus argumentos.

Recentes estudos de biologia mostram, porém, um panorama completamente

novo e apontam os hormônios e o cérebro como os principais responsáveis

por nossas atitudes, preferências e comportamento. Isso quer dizer, ainda que

criados em uma ilha deserta, sem uma sociedade organizada ou pais que os

influenciassem, meninos competiriam física e mentalmente entre eles,

formando grupos com uma nítida hierarquia, e meninas trocariam toques e

carinhos, se tornariam amigas e brincariam com bonecas. (PEASE, A.

PEASE, B., 2000, p. 12)

Os discursos da diferença construídos em torno dos fatores biológicos ganham

aspecto de diferenças naturais, uma vez que o corpo é visto como uma evidência

imutável. Segundo esses livros de autoajuda, o que define os homens e as mulheres são

os hormônios e o cérebro, já vemos aí a construção de polos opostos, em que hormônios

funcionam como definidores das atitudes e comportamentos femininos, pois são

inúmeros os discursos que responsabilizam os hormônios femininos por suas

instabilidades de comportamento, como a TPM, por exemplo. Então o hormônio é que

75

guia as mulheres, é o lugar do emocional. O cérebro é o representante da razão, assim,

definidor e guia dos comportamentos masculinos, que não são guiados pelas emoções.

Os homens por agirem racionalmente têm mais controles sobre si mesmos o que

propicia mais força e poder, são mais confiáveis para desenvolver as funções mais

importantes na sociedade.

O texto ainda afirma que, se vivessem em uma sociedade sem organização social,

sem nada que os influenciassem, meninos competiriam “física e mentalmente”, ou seja,

meninos usariam seus cérebros para demonstrar sua força e inteligência. As meninas por

sua vez, demonstrariam suas emoções com trocas de carinho entre amigas e “brincariam

com bonecas”, atividade em que já estariam desenvolvendo sua função primordial de

mãe. Suas atitudes são definidas por seus hormônios, por sua capacidade de reprodução

que guia seus comportamentos, portanto menos confiáveis e instáveis para ocuparem

cargos e posições importantes.

Desde os anos 1960, vários grupos vêm tentando nos convencer a renegar

nossa herança biológica. Afirmam que governos, seitas religiosas e sistemas

educacionais se aliaram ao objetivo masculino de dominação, reprimindo as

mulheres que tentaram se destacar. Historicamente, parece certo. Mas então

como os homens conseguiram dominar por tanto tempo. A biologia explica.

(PEASE, A., PEASE, B., 2000, p. 12)

Neste excerto podemos perceber que a autoajuda que analisamos não visualiza as

diferenças apenas como um fator organizador da sociedade, mas afirma a dominação de

um sexo pelo outro como consequência natural dessas diferenças. Segundo ela, “alguns

grupos” procuraram fazer com que a herança biológica definidora dos papéis masculino

e feminino fosse negada, a década de 1960 não está colocada no texto por mero acaso, a

estratégia dos autores é falar do feminismo sem o nomear. Esse enunciado reconhece a

dominação masculina e utiliza do argumento da história para defender sua permanência,

que seria explicada pela biologia. E continuam dizendo: “Homens e mulheres devem ser

iguais no direito à oportunidade de desenvolver plenamente suas potencialidades, mas,

definitivamente não são idênticos nas capacidades inatas.” (PEASE, A., PEASE, B.,

2000, p.12) A igualdade entre homens e mulheres se justifica pelo direito de

desenvolverem suas “potencialidades”, inferimos disso, que o desenvolvimento de cada

sexo está condicionado ao que a natureza lhe proporciona, podem evoluir somente

76

dentro dos limites estabelecidos para o seu sexo, homens com o potencial para a força e

o poder, e mulheres com o potencial para cuidar e zelar por outrem.

O argumento central em que a autoajuda aqui analisada se sustenta é que na

história que os autores contaram sobre os ancestrais humanos, os indivíduos possuem as

capacidades necessárias para a sobrevivência. Homens eram caçadores e assim

evoluíram e adquiriram as capacidades necessárias para trazer o sustento para a família.

As mulheres eram as guardiãs da cria, se desenvolveram e evoluíram adquirindo as

capacidades básicas de mãe e zeladora da caverna. Essa história é uma analogia aos

papéis determinados pela sociedade patriarcal que define o espaço público para os

homens e o espaço privado para as mulheres. A desconstrução dessa divisão foi uma das

bandeiras levantadas pelo movimento feminista quando da sua primeira onda, em que

este criou o slogan “o pessoal é político” e pretendia desencarcerar o mundo feminino

dos muros das casas, do espaço doméstico. Mas a teoria dos homens das cavernas serve

na literatura de autoajuda para justificar comportamentos atuais.

Como caçador, o homem precisava ser capaz de identificar e perseguir alvos

distantes. Desenvolveu, então, um tipo de visão em que parece usar antolhos,

para que não se desvie o foco. A mulher precisava de um raio de visão que

lhe permitisse perceber algum predador se aproximando. É por isso que o

homem moderno consegue facilmente encontrar o caminho de um bar muito

afastado, mas não é capaz de achar qualquer coisa na geladeira, no armário

ou na gaveta. (PEASE, A., PEASE, B., 2000, p. 18)

Toda a identidade masculina é construída em cima de sua propensão natural em

ser caçador, sua visão se desenvolveu em linha reta, mas no texto acima, chama atenção

a afirmação de que os homens possuem essa visão para “não desviar o foco”. O discurso

constrói assim a imagem dos homens como possuidores de objetividade em suas ações,

ele é o personagem ativo em suas atividades. O raio de visão das mulheres apenas lhes

permitiria perceber algum predador dentro dos limites da casa. Ao afirmar que os

homens, devido à sua visão direta, conseguem enxergar na atualidade um bar distante,

os autores delimitam os espaços de cada sexo, o bar é um espaço masculino. São

constantes as propagandas de cerveja que mostram homens em bares, sendo essa uma

característica essencial da masculinidade; as mulheres aparecem nessas propagandas

como acessórios, estando relacionadas à cerveja, são objetos de consumo tal qual a esta.

No ambiente doméstico a visão masculina é restrita, não conseguem encontrar nada na

77

geladeira, armários e gavetas. O espaço doméstico está delimitado aqui como não sendo

masculino. Os homens não têm as capacidades necessárias para agir nesses espaços, são

servidos por mães ou esposas.

A identidade feminina foi construída ao longo do tempo em torno de suas

capacidades sensitivas, emotivas, e as fontes pesquisadas reforçam essas imagens.

A mulher escuta melhor que o homem e distingue muito bem os sons mais

agudos. O cérebro feminino é programado para ouvir um choro de criança no

meio da noite, enquanto o pai pode não perceber e continuar dormindo. A

mulher é capaz de ouvir um gato miando ao longe, mas o homem, com sua

excelente habilidade de orientação espacial, consegue dizer onde está o

bichano.(PEASE, A. PEASE, B., 2000, p. 23)

A maternidade é eixo definidor da identidade feminina. A capacidade de audição

das mulheres existe para que elas escutem o choro do bebê no meio da noite. No trecho

citado, a autoajuda reforça a divisão desigual no cuidado com os filhos, estes são de

responsabilidade total das mulheres. Além de ter a capacidade de gerar os filhos em

seus ventres, são responsáveis pelo cuidado e a educação por toda a vida. Os pais são

responsáveis apenas pelo sustento. Essa literatura não sinaliza a possibilidade de os

homens ajudarem suas parceiras nas tarefas domésticas ou no cuidado com as crianças a

fim de melhorarem seus relacionamentos, pois essa atitude para eles é uma inversão dos

papéis naturalizados para os sexos. Essa representação também delimita espaços, pois se

as mulheres é que devem cuidar integralmente dos filhos, elas não poderão exercer

nenhuma atividade profissional, enquanto a busca pelo sustento que os homens fazem,

pressupõe que eles tenham um trabalho que lhes gere renda. Os autores justificam até

mesmo características triviais com a ideia de a mulher ser a guardiã da cria:

Como guardiã da cria e colhedora de frutos, a mulher sempre tinha de provar

o que dava aos filhos, vendo se estavam doces e maduros. Eis aí uma

provável causa de as mulheres gostarem tanto de doces e de estar entre elas a

maioria dos provadores de alimentos. (PEASE, A., PEASE, B., 2000, p. 28)

Esse recurso é utilizado no texto para dar mais credibilidade aos argumentos. Os

autores relacionam situações do cotidiano das pessoas, com situações da vida dos

supostos antepassados, buscando uma identificação dos leitores com suas idéias, através

disso então, instauram comportamentos estereotipados. Ao se referir a alimentos doces

78

sendo preferidos pelas mulheres, o texto busca relacioná-las ao que acredita ser o

comportamento ideal para elas. A docilidade nas atitudes, a sensibilidades, a doação de

si pelo outro, o carinho que estão sempre prontas a dar e receber. A sensibilidade é um

atributo essencial da feminilidade, pois através dela as mulheres podem tornar-se boas

mães, boas esposas, dóceis, e por consequência mais conformadas com seu destino

biológico.

Não é que as mulheres sejam supersensíveis. Os homens é que tiveram os

sentidos embotados. Como no mundo feminino a percepção é muito mais

desenvolvida, elas esperam que eles também sejam capazes de ler seus sinais

de linguagem verbal, vocal e corporal e adivinhar seus desejos, tal como

faria outra mulher. Por causa da origem e evolução da espécie humana,

como já vimos, isso não é possível. A mulher parte do princípio de que o

homem vai ser capaz de descobrir o que ela quer ou precisa e, quando isso

acontece, diz que ele é “insensível, nem desconfiou”. Ele reclama: “Eu sou

obrigado a ler os seus pensamentos?”. (PEASE, A., PEASE, B., 2000, p. 29)

Após defender os comportamentos tidos como ideais para as mulheres, os autores

inserem o enunciado acima. Nele existe uma contradição em relação ao pressuposto

básico do livro, qual seja, as diferenças são biológicas, uma vez que afirmam que os

homens “tiveram seus sentimentos embotados”. Infere-se dessa afirmação que os

discursos que constituíram a ideia de masculinidade retiravam desta a possibilidade de

expressar sentimentos. Outro aspecto importante desse trecho é o trabalho do discurso

para que as mulheres se conformem com sua condição e com o comportamento

masculino, percebido com a expressão “isso não é possível”. Em todos os três livros de

autoajuda que analisamos aqui, os comportamentos de cada sexo são demonstrados e a

solução apresentada tanto pelo casal Pease, quanto pela escritora Sherry Argov, que se

baseiam na conformidade das mulheres diante da situação, ou da mudança de

comportamento por parte delas. Consideram que os homens são como são e não podem

mudar, devido à sua masculinidade, força imprescindível para sua existência, enquanto

as mulheres são serem maleáveis, mais compreensivas, e mais dispostas a mudar em

prol do relacionamento. Podemos ver esses aspectos nos trechos que analisaremos

abaixo, o livro cita situações do cotidiano dos casais como a solução de problemas.

Todo homem acha que a única pessoa capacitada para resolver os próprios

problemas e por isso não acha necessário discuti-los com ninguém. Ele só

79

pede ajuda quando sente necessidade de uma opinião especializada e

considera que assim está dando um inteligente passo estratégico. O homem a

quem ele pede opinião, por sua vez, se sente honrado com a consulta.

(PEASE, A., PEASE, B., 2000, p. 33)

Esse trecho constrói a imagem dos homens como seres autônomos, em que diante

de seus problemas, buscam a solução sozinhos. As fontes reforçam a força e inteligência

masculina a todo o momento. Nesse enunciado criam uma imagem dos homens em

torno da sua racionalidade. Ao pedir ajuda a uma opinião especializada, não estão

exatamente assumindo a dúvida, mas traçando uma estratégia para chegar ao melhor

resultado. Na última frase do enunciado é que fica claro o sentido produzido pela

expressão “opinião especializada”, pois homens recorrem a outros homens, apenas seus

pares têm condições de fornecer uma via mais rápida na solução do problema.

Por isso, quando a mulher oferece um conselho que o homem não pediu, ele

sente como se ela declarasse que o considera incompetente, incapaz de

resolver seus problemas. Para o homem, pedir conselho é uma demonstração

de fraqueza. É por isso que ele raramente fala e respeito das coisas que o

preocupam. Ele adora oferecer soluções e conselhos aos outros. O contrário

não é verdadeiro. Conselhos não solicitados, especialmente vindos de uma

mulher, não são bem-vindos. (PEASE, A., PEASE, B., 2000, p. 33)

O enunciado acima marca a diferença, as mulheres são incapazes de fornecer

soluções para os problemas masculinos, ao passo que, um homem pode oferecer uma

opinião a outro homem que a recebe, ficando o primeiro honrado em ser solicitado. Os

homens podem oferecer soluções quando as mulheres se encontram com problemas,

pois é da natureza deles essa capacidade, ao passo que as mulheres estão acostumadas

com a demonstração de dúvida e fraqueza. Nesse caso, as mulheres devem receber os

conselhos masculinos, fazendo com que seus parceiros se sintam úteis. “Para o homem,

pedir conselho é uma demonstração de fraqueza”, a imagem masculina construída na

autoajuda, assim como em vários outros discursos na sociedade, gira em torno do poder

e da força. Os homens não podem demonstrar dúvida ou fraqueza em nenhum

momento, suas palavras são dotadas de credibilidade simplesmente pelo lugar de fala

que ocupam. No fim do texto acima, os autores deixam ainda mais claro esse

posicionamento; os homens não gostam de pedir conselhos e nem que lhes ofereçam

soluções, colocando em dúvida sua capacidade, principalmente se as soluções ou

80

conselhos vierem de uma mulher. Com isso o livro analisado determina a falta de

credibilidade das ideias femininas, destituídas de poder de fala, e de inteligência

suficiente para serem iguais aos homens.

Situações que supostamente, segundo os autores, todos os casais do mundo

passam, são usadas como exemplo para explicar as diferenças e fornecer soluções, como

dissemos antes, as mudanças de atitude partem na maioria das vezes das mulheres. Os

autores citam assim, o hábito masculino de assistir televisão passando de um canal para

outro. Segundo eles, esse hábito é uma herança dos ancestrais que, após um longo dia

de caçada, chegavam a suas cavernas e se sentavam diante da fogueira pensando nos

acontecimentos do dia. Segundo o livro, casais de todas as partes do mundo entram em

conflito por causa da televisão, e a solução oferecida por eles é a seguinte:

Para resolver o problema do controle remoto, a mulher deve dizer ao homem

que isso a perturba e pedir para ele, por favor, não o fazer quando ela estiver

assistindo ao seu programa. E, se não adiantar, ela deve considerar a hipótese

de comprar seu próprio aparelho de TV e ir ver seu programa em outro

cômodo. (PEASE, A., PEASE, B., 2000, p. 40)

A solução do problema pressupõe a submissão das mulheres em relação aos

homens, pois em nenhum momento os autores citam a possibilidade de mudanças no

comportamento masculino. As mulheres devem se adequar ao comportamento deles.

Em seguida o livro passa a relatar a atitude feminina que mais irrita os homens, o choro.

As glândulas lacrimais da mulher são mais ativas que as do homem.

Raramente um homem chora em público, porque, em todo o processo

evolutivo, o homem que demonstra emoção se coloca em situação de risco.

Ao transmitir fraqueza, ele encoraja outros a atacá-lo. Para a mulher, no

entanto, exibir suas emoções é sinal de confiança: a que chora se torna o

bebê, e a amiga desempenha o papel dos pais protetores. (PEASE, A.,

PEASE, B., 2000, p. 54)

Nesse enunciado o choro é uma demonstração de fraqueza, uma característica

feminina. Mais uma vez nota-se uma contradição nas afirmações, pois segundo os

autores, nas mulheres as glândulas lacrimais são mais ativas, e por isso as mulheres

choram mais. Os homens não choram devido ao seu processo evolutivo que o formou

para evitar demonstrar fraqueza, ou seja, não é a sua formação biológica que determina

seu comportamento, mas a necessidade de demonstrar força e evitar que fosse atacado.

81

Na última frase do enunciado, os autores afirmam que as mulheres quando choram

sinalizam confiança em relação a uma pessoa próxima, nesse caso a amiga. E mais uma

vez eles estabelecem a condição materna como atributo da essência feminina, uma

mulher chora nos ombros de outra, pois demonstra suas fraquezas e a “amiga”, poderá

ajudá-la exercitando seu papel de cuidadora. Segundo as fontes que analisamos, o choro

também é uma forma das mulheres conseguirem aquilo que querem, é uma arma de

chantagem emocional, diferente dos homens que são objetivos ao demonstraram suas

vontades. Sendo assim o choro é uma das atitudes femininas que mais causa atrito com

seus parceiros. Como podemos ver, a atitude masculina que irrita as mulheres se baseia

na capacidade masculina de resolver seus problemas sozinhos, sem a ajuda delas, ou

seja, essa capacidade provém da inteligência, autonomia e força; enquanto o choro

feminino é fruto da fraqueza inerente a esse sexo, ligado às emoções. De acordo com as

fontes,

Os homens são de longe mais vítimas do que vilões. Eles preferem pedir

diretamente o que querem, enquanto as mulheres tendem a não dizer

exatamente o que desejam. A muitas falta a auto-estima necessária para se

considerarem merecedoras do objeto de seus desejos. Defensoras do ninho,

elas têm uma necessidade incontornável de serem amadas. Sua função

sempre foi nutrir os relacionamentos – com parceiros, filhos e outros grupos

familiares e sociais – e seus cérebros estão estruturados para fazê-los

funcionar. Recorrem, pois, com freqüência, á chantagem emocional para

conseguir o que querem, em vez de dizê-lo diretamente, para não se

arriscarem a ouvir uma recusa. (PEASE, A., PEASE, B., 2000, p. 85)

Os movimentos feministas e as ideias de luta emanadas deles em prol de maiores

direitos e liberdade feminina, foram em muitos aspectos mal interpretados. Muitos

meios discursivos viam a luta feminina como instauradora de uma “guerra dos sexos”,

cada um buscando dominar o outro. O discurso da autoajuda passa a mesma impressão,

como podemos notar na citação acima, homens e mulheres estão em constante luta. A

dependência feminina está visível no excerto, as mulheres precisam chorar para

conseguirem aquilo que querem, segundo os autores, “a muitas falta autoestima” para se

sentirem merecedoras daquilo que querem. A inferioridade feminina está marcada nesse

texto, uma vez que as mulheres são descritas como tão dependentes dos homens que

precisam fazer chantagem emocional para alcançarem seus objetivos, além de sofrerem

com a autoestima baixa. A autoestima é a avaliação subjetiva que cada pessoa faz de si,

82

positiva ou negativamente. Esse sentimento está muitas vezes associado às mulheres,

pois no desempenho de sua função de mãe, esposa, e de doar a si mesma para o cuidado

de outros, as mulheres supostamente deixam de cuidar dos seus interesses. As

construções de gênero em torno do feminino tornam os desejos individuais das

mulheres desejos egoístas, estando elas condicionadas e condenadas a dispensar seu

carinho a amor natural aos filhos e companheiros, e na ausência destes, no caso das

solteiras, devem se dedicar a alguma atividade igualmente altruísta.

Por esse enunciado os autores continuam dizendo sobre a necessidade

“incontornável” das mulheres de serem amadas, assim marcam a identidade feminina

sempre em dependência do outro para se sentir completa e satisfeita.

No decorrer da história, os homens sempre ocuparam posições mais

poderosas e sempre puderam dominar mais abertamente do que as mulheres.

Sem força suficiente para impor sua vontade, as mulheres tiveram de confiar,

durante séculos em seus estratagemas e em suas astúcias para conseguir o

que queriam. (PEASE, A., PEASE, B., 2000, p. 59)

A autoajuda não sinaliza para as mulheres a possibilidade de viver em função de

si mesmas. Esses livros foram escritos em um momento histórico em que as mulheres

gozam de maior liberdade de decisão sobre suas vidas, mesmo que ainda sujeitas a

várias formas de assujeitamento. Elas possuem mais liberdade fora da clausura do

sistema patriarcal, mas os livros promovem uma volta aos padrões de comportamento

em vias de superação. Traçam para as mulheres um destino em retrocesso, recriando sua

identidade em torno do casamento e da maternidade.

2.3 Trabalho

A carreira profissional é uma das temáticas constantes quando se trata de direitos

e história das mulheres. Após a década de 1960, com a luta dos feminismos, o número

de mulheres que tiveram acesso à educação e em consequência a uma carreira

profissional aumentou consideravelmente. A literatura de autoajuda aborda esse assunto

em seu discurso, fazendo uma divisão do trabalho baseada nas funções evolutivas de

homens e mulheres. Sherry Argov não disserta diretamente sobre essa divisão, mas cita

83

em seu texto a relação das mulheres com sua independência financeira. Em todos os

livros o que fica evidente é a velha separação entre os homens como provedores e as

mulheres como dependentes deles.

Como já dissemos antes, a matriz de discussão de Allan e Barbara Pease é a

dinâmica social dos antepassados, teoria criada por eles para justificarem seus

argumentos. De acordo com essa visão, os homens eram caçadores, saíam de suas casas

todos os dias em busca de comida, enquanto as mulheres ficavam em suas casas

cuidando das crias e da organização. Elas também saíam com outras mulheres para

colher frutos, atividade que para os autores seria secundária, pois a parte importante do

sustento era a caça trazida pelos homens. Visualizamos nesse modelo a divisão do

trabalho do universo patriarcal, em que os homens sendo os provedores trabalham fora

de casa para providenciarem o sustento da família, enquanto as mulheres são as donas

de casa, atributo que contempla suas funções de mãe e esposa.

Esse panorama foi modificado a partir dos anos 1960, o movimento feminista

lutou por mais espaço para as mulheres no mercado de trabalho. Nessa primeira década

do século XXI, as mulheres já são maioria nas universidades, desempenham funções

antes consideradas masculinas, são chefes de família e não dependem mais apenas dos

homens para sobreviverem. Chama-nos a atenção então uma literatura que trabalha pela

volta do modelo patriarcal da divisão do trabalho em um período em que este já havia

em partes sido superado. Tecendo suas considerações acerca das diferenças entre os

sexos, os autores começam mostrando um modelo de mulheres polivalentes:

Todos os estudos que pesquisamos confirmam: o cérebro masculino é

especializado. Compartimentado. Configurado para se concentrar em uma

atividade específica. Por isso, a maioria dos homens diz que só pode fazer

uma coisa de cada vez. O cérebro feminino é configurado para tarefas

múltiplas. A mulher atende um telefonema enquanto prepara a nova receita e

assiste à televisão. Ou dirige, retoca a maquiagem, ouve rádio e fala ao

telefone viva-voz. (PEASE, A., PEASE, B., 2000, p. 37)

Nesse enunciado, os autores citam “estudos” para darem mais credibilidade à sua

fala, para eles os homens só conseguem fazem uma atividade de cada vez. Esse

argumento serve para defender a ideia de que a única tarefa masculina é o trabalho, e

nas horas vagas os homens se dedicam a descansar, por isso quando chegam em casa

não podem se dedicar a nenhuma outra tarefa. As mulheres possuem a capacidade de

84

fazer várias coisas ao mesmo tempo. No enunciado acima, os autores fazem questão de

citar apenas situações consideradas atividades femininas, como cozinhar, se maquiar,

assistir televisão, falar ao telefone. Em meio a esses exemplos citam “dirigir”, fazem

uma mistura com as palavras, mas o sentido produzido pelo texto coloca as atividades

femininas como menos importantes. Outra questão relevante é a sobrecarga de trabalho

feminino. Com esse discurso de que as mulheres por sua natureza possuem trilhas

“múltiplas”, os autores reforçam a desigualdade na divisão do trabalho, sobretudo no

trabalho doméstico, visto que os homens devido a sua constituição biológica só

conseguem fazer uma coisa de cada vez, então vão ao trabalho e quando chegam

precisam descansar. O trabalho doméstico além de ser tratado como menos importante,

faz com que as mulheres estejam sempre em constante atividade.

A autoajuda afirma características consideradas femininas e masculinas que já

povoam o imaginário social, mas citam estudos e pesquisas científicas para dar

credibilidade às afirmações. Segundo os livros analisados aqui, as mulheres têm uma

capacidade maior de falar, desenvolveram essa habilidade devido à sua evolução, já que

passavam horas com seus filhos e com outras mulheres colhendo frutos e conversando.

Os homens sendo caçadores não podiam falar durante a caçada, pois poderiam afugentar

a presa. Assim, as mulheres até os dias atuais falam mais do que os homens e isso se

torna um problema para os relacionamentos, além de definir as atividades que devem

desenvolver. “A finalidade da fala da mulher é a própria fala. Mas o homem entende

aquela ‘falação’ como uma busca de soluções e com seu cérebro analítico, interrompe a

toda hora.” (PEASE, A., PEASE, B., 2000, p. 54) Mais uma vez os autores definam as

mulheres como indivíduos sem objetivos, menos racionais que os homens. A fala em

excesso das mulheres é prejudicial profissionalmente.

No campo profissional, o modo de falar feminino pode ser desastroso, pois

os homens não conseguem seguir raciocínio sinuoso e indireto e acabam

virando as costas ao que talvez fossem boas sugestões e propostas. Uma

conversa cheia de rodeios pode ser excelente para estabelecer

relacionamentos, mas não serve de nada quando se trata do controle de um

carro ou avião, em que as informações têm que ser absolutamente claras.

Os homens usam frases curtas, diretas, que se encaminham para uma

solução, um desfecho. Em assuntos profissionais, esse tipo de fala funciona

muito bem, levando a uma comunicação eficiente e afirmando autoridade.

(PEASE, A., PEASE, B., 2000, p. 59)

85

Nos enunciados acima os autores limitam os campos de atuação das mulheres

devido a sua inaptidão em falar de forma direta como os homens, percebe-se que o

modelo de profissional seria o modelo masculino de ser. No texto, não fica claro a que

área de atuação os autores de referem, mas é possível perceber que estão delimitando as

áreas masculinas como impróprias para a forma de ser das mulheres. Segundo os

autores a conversação feminina é útil para estabelecer relacionamentos, com isso

reduzem as mulheres a emoções e sentimentos. Em citação anterior, os autores sugerem

que as mulheres conseguem fazer muitas coisas ao mesmo tempo, entre elas dirigir,

entretanto no texto acima, dizem que a fala feminina em excesso não é útil para dirigir

ou pilotar um avião. Analisando os sentidos produzidos pelos livros podemos notar que

o tempo todo estão falando de características entre os sexos condicionadas pelo cérebro,

portanto naturais, inerentes aos indivíduos, com isso marcam os lugares que homens e

mulheres devem ocupar, de forma definitiva e imutável.

Em reuniões de trabalho, a mulher que pensa alto é vista como

inconseqüente alienada ou indisciplinada. No mundo dos negócios, para

impressionar a ala masculina, a mulher deve calar seus pensamentos e só

falar quando chega a uma conclusão. (PEASE, A., PEASE, B., 2000, p. 53)

O uso da linguagem indireta e de trilhas múltiplas nos negócios pode ser

problemático. Para poderem tomar decisões, os homens precisam ser

apresentados a ideias e informações claras, lógicas e organizadas. A mulher

precisa usar a linguagem direta, dando horários, cronogramas, respostas

conclusivas e prazos. Nos negócios, deve ser direta com os homens,

abordando um assunto de cada vez, com começo, meio e fim, sem perder-se

em atalhos. (PEASE, A., PEASE, B., 2003, p. 121)

Quando os autores afirmam que a fala das mulheres as prejudica no mundo dos

negócios, ou para guiar veículos, os autores estão deixando claro que essas são

atividades masculinas. A solução para que as mulheres possam obter sucesso na vida

profissional é agir como os homens. Mas quando se trata dos homens, os livros não

oferecem alternativas para os homens conseguirem desempenhar as funções femininas,

uma vez que a masculinidade seria afetada.

A capacidade de orientação espacial, segundo as fontes pesquisadas, seria

responsável pela habilidade de mensurar espaços, distâncias e velocidade, fazer cálculos

e traçar estratégias.

86

As tomografias mostram que essa capacidade está localizada na parte frontal

do hemisfério direito do cérebro de homens e rapazes e é um de seus pontos

mais fortes. Desde os tempos mais remotos, a orientação espacial masculina

se desenvolveu de modo a que caçadores pudessem avaliar a velocidade,

direção e distância da caça, calcular quanto precisariam correr para alcançá-

la com uma pedra ou uma lança. Nas mulheres, essa capacidade é encontrada

em ambos os hemisférios, mas não tem uma localização específica e

mensurável. Por isso, apenas 10% delas têm boa ou excelente orientação

espacial. (PEASE A., PEASE, B., 2000, p. 65)

A orientação espacial é utilizada no livro para definir as áreas adequadas a

homens e mulheres no campo profissional. Assim, os homens é que são detentores desta

habilidade, o que faz com que ocupem os maiores cargos das empresas e estejam em

profissões em que possam utilizar essa capacidade. “Para alguns, essa pesquisa pode

parecer sexista, já que vamos discutir habilidades e capacidades em que os homens são

nitidamente superiores e atividades e ocupações nas quais a própria biologia faz com

que eles se destaquem.” (PEASE, A., PEASE, B., 2000, p. 65) Como estratégia de

escrita, os autores se colocam na defensiva, afirmam a superioridade masculina nas

atividades profissionais, mas lançam mão do argumento da biologia para se

justificarem, os homens dominam porque faz parte da natureza, portanto, não é passível

de questionamento.

As representações de gênero marcam polos opostos para homens e mulheres, ao

definir as capacidades de cada um, segregam ambos os sexos em identidades imutáveis,

por serem fruto da natureza. A literatura de autoajuda que analisamos aqui se reveste de

um discurso de ordem para as relações conjugais, e através disso, instauram papéis de

gênero que limitam a atuação do sujeito na sociedade de acordo com o sexo. Através da

explicação da orientação espacial, definem que os homens devem ocupar as profissões

que exijam raciocínio lógico e força, típica de um caçador, enquanto nas mulheres...

A capacidade de orientação espacial não é um ponto forte em mulheres e

meninas porque caçar e encontrar o caminho de casa não fazia parte das

atribuições femininas. É por isso que elas têm tanta dificuldade em ler mapas

e guias de ruas. As mulheres não desenvolveram suas habilidades espaciais

porque o máximo que vêm caçando através dos tempos é o bicho homem.

(PEASE, A., PEASE, B., 2000, p. 66)

O enunciado produz sentidos relevantes quando analisamos os processos de

subjetivação feminina, afirmam que as mulheres não precisavam achar o caminho de

87

casa, pois não precisavam sair de dentro dela. Essa afirmação da autoajuda se ancora em

uma memória discursiva que traduz a casa, o lar, como o espaço de atuação das

mulheres. Embora esse panorama tenha sido mudado desde a segunda metade do século

XX, essa literatura busca assujeitar as mulheres leitoras a um modelo feminino que já

não se sustenta mais. O que salientamos aqui não é a impossibilidade das mulheres

serem donas de casa no século XXI, mas sim a limitação da vida das mulheres ao

espaço doméstico de forma obrigatória, além de demonstrarmos a desvalorização do

trabalho doméstico, por ser uma atividade feminina.

Os autores se utilizam da ironia para demonstrar uma imagem feminina que gira

em torno do masculino, afirmam que ao longo do tempo as mulheres só caçaram o

“bicho homem”, reduzem as mulheres a uma dependência até mesmo psicológica dos

homens, pois os sentidos produzidos por esses enunciados colocam a identidade das

mulheres incompleta se não houver um homem que preencha os espaços vazios.

Enquanto os homens com sua capacidade de orientação espacial produziram grandes

feitos ao longo da história, as mulheres se ocupavam com o amor e o romance,

buscando um “marido” para que assim pudessem desenvolver suas habilidades naturais.

Se estudarmos a História, vamos ver que praticamente nenhuma mulher se

destacou em áreas que exigem habilidade espacial e raciocínio matemático,

como xadrez, engenharia espacial e composição musical. Pode surgir quem

afirme que tudo isso é resultado da tirania machista, mas olhe em volta: em

nosso mundo que progrediu na oferta de oportunidades são muito raras as

mulheres que superam aos homens em habilidades que dependam das

relações espaciais. Por quê? A principal razão está na estrutura de seu

cérebro, que é um fator fortíssimo na determinação de seus interesses.

(PEASE, A., PEASE, B., 2000, p. 70)

Além de usar a biologia como estratégia de convencimento, nesse excerto os

autores usam a História para dar ênfase e credibilidade à sua fala. Convidam os leitores

a refletirem e tirarem as suas próprias conclusões, incitam o pensamento do leitor, no

entanto esse pensamento já está guiado pelos argumentos do livro. No texto analisado,

os autores já se defendem das críticas que podem receber, mesmo que alguém possa

dizer que a divisão natural do trabalho é fruto de uma tirania machista, eles convocam

os leitores a olharem para a realidade em que vivem. A história das mulheres vem

mostrando desde os seus primeiros estudos o apagamento das mulheres na história,

confinadas em suas casas, recebendo uma educação inferior, não era de se estranhar que

88

uma história que registra os grandes feitos dos homens, não evidenciasse as mulheres.

Os feitos das mulheres não mereciam registros, pois eram menos importantes, e assim,

se o leitor da autoajuda remeter à história chegará à conclusão de que realmente

nenhuma mulher se destacou nas áreas citadas pelos autores.

Como dissemos no início deste trabalho, no século XIX a educação feminina

visava preparar as mulheres para ser mãe e esposa. Ao longo do tempo, essa divisão

permaneceu e as escolas ofereciam atividades adequadas para meninas e meninos. Em

consequência disso, as profissões também foram separadas de acordo com os sexos,

mesmo que as mulheres tivessem saído dos limites da casa, ocupavam no mercado de

trabalho profissões adequadas para seu sexo. As mulheres eram professoras, secretárias,

empregadas domésticas, babás, entre outras profissões em que pudessem desempenhar

suas habilidades femininas, cuidar e servir ao outro. A literatura de autoajuda analisada

neste trabalho, mesmo sendo escrita em um momento em que esses grilhões em grande

parte foram quebrados e as mulheres puderam assumir profissões tidas como

masculinas, defendem que as mulheres devem ocupar cargos em que possam

desempenhar suas capacidades naturais.

As mulheres devem procurar por áreas que têm maior capacidade, optar por

carreiras e ocupações em que podem exercer as aptidões naturais que estão

de acordo com as orientações de sua estrutura social. (...) As pesquisas

mostram que o cérebro feminino se adapta melhor à tarefa de ensinar porque

suas habilidades de comunicação e interação são mais desenvolvidas. As

mulheres se destacam em áreas em que é preciso mais criatividade do que

raciocínio abstrato, como as artes, o ensino, os recursos humanos e a

literatura. Enquanto os homens jogam xadrez, as mulheres dançam e cuidam

da decoração. (PEASE, A., PEASE, B., 2000, p.70)

O discurso da autoajuda busca constituir mulheres de acordo com padrões

ultrapassados e representa um retrocesso na luta pela igualdade de direitos e acesso a

oportunidades. Funciona como um discurso contrário ao discurso feminista, pois

submete às mulheres a representações que as limitam, enquanto o feminismo

proporcionou uma nova forma de se colocar no mundo.

A autora SherryArgov aborda a questão do trabalho em um capítulo intitulado

“Garantindo seu certificado de propriedade”, nessa frase as mulheres já são associadas à

posse, segundo a autora as mulheres devem ser independentes e serem donas de si

89

mesmas. As mulheres, segundo o livro Por que os homens amam as mulheres

poderosas?, devem manter sua independência financeira, a fim de garantir que tenha a

“propriedade” de si mesmas em suas mãos. Apesar do discurso da independência

presente nesse pensamento, o livro assinala que as mulheres são passíveis de serem

posse de alguém, que seja ela mesma ou um homem.

É isso o que, por experiência própria as mães dizem às filhas: se uma mulher

abre mão de sua independência financeira e se torna dependente de um

homem, ela tem muito menos escolhas na vida. Está sempre à mercê de

alguém. É por isso que, para uma mulher manter sua independência, ela deve

ter total propriedade de si mesma. (ARGOV, 2009, p. 146)

Quando você tem recursos financeiros e profissionais, só permanece em um

relacionamento porque quer, e não porque o parceiro é sua única fonte de

sustento. Se decidir ir embora, basta pegar a mala e sair. É essa

independência que faz com que ele a respeite e admire. (ARGOV, 2009, p.

147)

No enunciado acima, o trabalho feminino serve para que as mulheres tenham uma

segurança ao sair do relacionamento, além de fazer com que os homens as admirem

mais. Sherry Argov em seu livro trata qualquer atitude feminina como um meio de

chamar a atenção masculina. Mesmo quando o assunto é independência feminina, as

mulheres devem pensar em causar boa impressão para que aquelas que estejam em um

relacionamento consigam mantê-los e as que ainda não estiverem, consigam conquistar

um parceiro. Um elemento importante desse enunciado se situa no trecho: “Se decidir ir

embora, basta pegar a mala e sair”, inferimos desse trecho que de forma geral, as

mulheres a que a autora se refere e a quem direciona seu discurso possuem menos

condições financeiras que seus parceiros. Argov refere-se em seu texto invariavelmente

a situações em que os homens possuem mais dinheiro que as mulheres.

É importante deixar claro que você coloca sua dignidade acima de tudo,

mesmo que esteja namorando um homem extremamente bem sucedido. Ele

precisa sentir que, se não a tratar bem, você sai da mansão dele e volta para o

seu pequeno apartamento, sem hesitar. (ARGOV, 2009, p. 147)

Apesar de defender um modelo de mulher moderna, poderosa e independente,

esse livro reforça a desigualdade entre os sexos. Não assinala a possibilidade de em uma

relação ser a mulher detentora de maior poder financeiro. No enunciado acima, essa

90

questão fica bem clara quando a autora faz referência à “mansão” do homem e ao

“pequeno apartamento da mulher”. A defasagem salarial entre homens e mulheres é

uma questão que ainda ocorre em diversas profissões, homens e mulheres

desempenham a mesma função e recebem salários diferentes. O sentido produzido pela

autoajuda torna esse fato uma questão natural. Ao mesmo tempo em que induz as

mulheres a serem independentes, deixa claro que qualquer posição que as mulheres

ocuparem, elas não estarão em igualdade com os homens. Ainda falando sobre o

trabalho feminino a autora diz:

Não é uma questão de ele pagar a maioria das contas, mas sim de você

conseguir ou não ser independente, se for necessário. Dessa forma, ele não

possui seu certificado de propriedade, trata-se de um arrendamento com

opção de compra. Ele pode se sentir o “chefão da casa”. Lembre-se, ele deve

se sentir como o Poderoso Chefão no que se refere ao seu habitat e seu

território. Por outro lado, não pode achar que tem a chave da sua

subsistência. (ARGOV, 2009, p.151)

Segundo o livro da autora, as mulheres devem trabalhar para que adquiram uma

independência financeira que poderá ser usada “se for necessário”. Por esse enunciado

vemos que na realidade das mulheres, ser independente é uma exceção e não uma regra.

A independência serve para os homens não possuírem “certificado de propriedade”

sobre as mulheres, é uma espécie de “arrendamento com opção de compra”, ou seja, as

mulheres são propriedade de seus parceiros enquanto a relação vai bem, mas podem

comprar deles o certificado de propriedade quando não estiverem mais satisfeitas. Esse

enunciado afirma o poder masculino, e aconselha as mulheres a garantirem essa

posição, pois é a ordem correta das coisas.

Tudo o que uma mulher precisa para equilibrar a relação é pagar uma conta

de luz com seu próprio dinheiro ou levar para casa, de vez em quando,

algumas compras feitas no supermercado. Qualquer uma dessas atitudes

expressa gratidão dela; o homem fica feliz em pagar todo o resto. Ele não

precisa sentir que tudo é igual, somente recíproco. (ARGOV, 2009, p. 152)

A diferença na valorização da renda feminina e masculina está exposta no texto

acima, para “equilibrar a relação”, as mulheres precisam apenas pagar algumas contas.

Se pensarmos nos dois polos, o masculino e o feminino, o discurso da autoajuda

91

reafirma o poder econômico como masculino, uma vez que são as mulheres quem

precisam de meios para equilibrar a relação. Ao trazer algo para casa, comprado com o

seu próprio dinheiro as mulheres demonstram a gratidão para com o parceiro, gratidão

pelo sustento que eles as oferecem. Assim, a ideia de igualdade e independência da

autora não se sustenta na medida em que ela vai dissertando sobre a questão. Em seu

texto ela procurar oferecer uma ideia de mulher moderna, independente, mas se

contradiz ao determinar a desigualdade como forma de equilibrar o relacionamento. A

renda feminina é vista apenas como complementar, mas não essencial.

A frase final desse enunciado deixa bem clara a questão posta pela autora, o

homem não precisa sentir que sua parceira é igual a ele, mas que ela se sente grata e

satisfeita com a vida que ele lhe proporciona. O que vemos aqui é mais uma vez uma

imagem feminina que gira em torno do masculino, as mulheres em todas as suas

atitudes pretendem apenas manter o relacionamento. Os homens são apresentados como

troféus a serem conquistados, o poder feminino prometido pela autora é o poder de

conquistar um parceiro. Esse sentido da vida feminina dialoga com vários discursos

sobre as mulheres que tornam o casamento como o objetivo maior da vida delas, sem o

qual elas não estão completas e não conquistam sucesso em suas vidas.

92

Capítulo 3

AMOR, CASAMENTO E SEXUALIDADE

A literatura de autoajuda analisada aqui através dos livros, Por que os homens

fazem sexo e as mulheres fazem amor? e Por que os homens mentem e as mulheres

choram?, dos autores Allan e Barbara Pease, e Por que os homens amam as mulheres

poderosas? da autora Sherry Argov, constroem diferenças de gênero a partir da

abordagem de assuntos variados. Neste capítulo trataremos do processo de conquista do

parceiro, do casamento e da sexualidade, esses temas são citados nos livros e em cada

um deles os comportamentos sexuais são diferenciados.

3.1 A conquista do amor

Os livros que estudamos neste trabalho possuem a intenção de facilitar a

convivência entre os casais. Segundo suas teorias, conhecendo melhor as características

de cada sexo, a convivência se torna mais agradável e os conflitos amenizados. Mas

antes do relacionamento em si vem a conquista do parceiro. O livro da escritora Sherry

Argov é o mais relevante quando se trata desse assunto. A autora ensina as mulheres a

se tornarem “mulheres poderosas” para conquistar um parceiro ou para manterem o que

já têm. Nos três livros que analisamos os relacionamentos amorosos são prioridades e

anseios femininos. De acordo com Ana Antunes das Neves:

Frequentemente classificado como feminino, o amor aparece como sendo

um sentimento das mulheres. Assim, as qualidades expressivas do amor e da

intimidade são vulgarmente reconhecidas como preocupações femininas,

manifestadas através de fatores emocionais intensos, tais como a

gratificação, a afirmação, a prestação de cuidados e a paixão. (NEVES,

2007, p. 613)

Sherry Argov, através de seu livro constrói a imagem de uma mulher ideal, uma

mulher poderosa que gosta de si mesma antes de qualquer coisa, que busca seus

objetivos, mas o que nos chama a atenção é que todos os esforços da “mulher poderosa”

não são para sua individualidade, e sim para conquistar um homem, assim toda a

93

finalidade da vida feminina, nesse livro, se torna o relacionamento amoroso. Segundo

Tânia Swain:

(...) o processo de subjetivação das mulheres é flexionado por um dispositivo

amoroso, composto de traços enunciados enquanto femininos valores morais

específicos: o dom de si, a abnegação, o cuidado de outrem, o amor, a

realização amorosa como coroamento de uma existência. O processo de

subjetivação, portanto, não fez em busca de si, mas do outro, em um quadro

histórico, que lhe dá significação. (NAVARRO-SWAIN, 2009, p. 12)

A autora Sherry Argov fala em seu livro sobre um desafio mental, que seria um

método de conquista a que as mulheres devem se submeter, em que elas se fazem de

difíceis para os homens, como salienta a autora: “Os homens em geral não se vêem

diante de uma mulher que não mede sacrifícios para conquistá-los. Elas não oferecem o

desafio mental que os homens procuram.” (ARGOV, 2009, p.13) Está determinado

nessa fala o comportamento ideal para as mulheres conseguirem a atenção do homem

que deseja, devem ser uma mulher capaz de fazer com o que o homem lute por ela. Mas

em seguida Argov faz uma ressalva:

Por outro lado, as mulheres erram ao imaginar que, se tiverem doutorado, se

souberem defender suas ideias em uma discussão sobre política internacional

ou se entenderem de investimentos, serão naturalmente capazes de oferecer

um estímulo mental ao homem. (ARGOV, 2009, p. 13)

Neste enunciado percebemos uma advertência por parte da autora, as

características citadas acima não são relevantes para uma mulher conquistar um

parceiro, constitui um erro que não deve ser cometido. A palavra “naturalmente”

empregada nesse texto serve para classificar estas atividades como não pertencentes às

mulheres, e devido a isso não servem para chamar a atenção do homem desejado. Com

a afirmação de que as mulheres jamais devem demonstrar seus conhecimentos, a autora

de forma sutil marca as questões citadas no enunciado como parte do universo

masculino. A mulher poderosa defendida pela autora precisa afirmar sua feminilidade

constantemente, ela possui objetivos, gosta mais de si mesma, mas tudo isso sem perder

o jeito doce, amável típicos das mulheres. Argov se utiliza de um discurso de poder

feminino, defende uma mulher independente, mas ao mesmo tempo coloca as mulheres

94

dentro de um modelo mais antigo, pois o casamento e a conquista de um parceiro

aparecem como um dos maiores objetivos da vida feminina.

O jogo de gato e rato que as mulheres acham enlouquecedor é, na verdade,

muito excitante para os homens. Essa é uma diferença básica entre os sexos.

A mulher, em geral, caminha para chegar a um destino: um compromisso. Já

o homem acha mais divertido o percurso para chegar ao destino. (ARGOV,

2009, p. 28)

A diferenciação entre os sexos é feita de forma mais direta nesse texto, mas o que

nos chama mais atenção é a metáfora usada para definir o processo de conquista dos

casais, “um jogo de gato e rato”, ou seja, uma caçada em que temos um predador e uma

presa. O poder masculino está mais uma vez evidenciado. Segundo a autora, os homens

gostam de ter que lutar pelo que querem, acham mais emocionante a batalha, pois com

ela demonstram seu poder e suas capacidades, as mulheres devem então oferecer um

desafio para que eles queiram conquistá-las

A mulher poderosa compreende que, quando um homem deseja alguma

coisa, ele vai a luta, e o fato de ter que correr atrás torna o objeto ainda mais

atraente. Quando ele não obtém sucesso imediato, começa a ansiar pelo que

procura. A mulher boazinha joga água fria nesse processo, porque o homem

tende a ficar entediado com algo que não exige dele um grande investimento

pessoal. (ARGOV, 2009, p. 29)

O livro de Argov demonstra um jogo de sentidos ao definir a mulher poderosa. À

primeira vista parece um texto inofensivo construindo para as mulheres uma nova forma

de se colocar no mundo, valorizando sua individualidade e pensando em seu bem estar e

satisfação pessoal. Entretanto com a metodologia empreendida neste trabalho, podemos

buscar os sentidos produzidos pelas palavras, penetrar nas camadas do discurso,

desvendando outras intenções, além daquelas que estão em evidência. No enunciado

acima, a autora compara as mulheres a um mero objeto a ser adquirido pelos homens,

dizer que as mulheres poderosas compreendem esse processo e por isso obtêm mais

sucesso, serve como um argumento que legitima sua fala. Dando seguimento ao texto,

Sherry Argov cita a caçada, mais uma vez aludindo ao processo de conquista dos

homens e das mulheres.

95

Vamos usar como exemplo uma caçada. O homem sai para caçar com os

amigos. Fica acampado a semana inteira, dorme nas piores condições, é

devorado por mosquitos e ainda tem que comer uma gororoba sofrível. No

entanto, ele se submete a tudo isso para conseguir abater um alce. E, quando

consegue, fica mais vaidoso do que um pavão e quer exibir a cabeça do

pobre animal, colocando-o na parede do escritório. (ARGOV, 2009, p. 29)

A metáfora da caça coloca as mulheres em uma situação de completa inércia e

submissão, a mulher poderosa segundo Argov compreende o funcionamento desse

processo e se coloca nessa situação, pois é assim que conseguirá o parceiro ideal. As

mulheres são presas prontas para serem abatidas. A sua conquista pelo homem significa

a efetivação do poder masculino. Essa alegoria chega a ser violenta, a autora coloca as

mulheres em uma posição lastimável de vítimas, nas palavras dela, os homens querem

no fim de tudo, exibir a cabeça do “pobre animal”. Como ela mesma cita a situação para

exemplificar, inferimos que compara as mulheres a esse animal, colocando-as em uma

posição indefesa. Em pleno século XXI, um livro como esse vendeu milhares de cópias,

disseminando um discurso de poder feminino que na realidade serve para encobrir a

velha ideia de subordinação. Os sentidos produzidos por esse livro constroem mulheres

submetidas a um padrão de comportamento patriarcal, promovem a volta de um

comportamento dócil, um modelo de mulher reduzida às vontades masculinas.

A literatura de autoajuda em sua categoria sentimental traz livros direcionados às

mulheres, como já dissemos antes, no campo social, os sentimentos e as emoções são

considerados femininos, os homens possuem a seu favor o poder e a racionalidade. O

livro Por que os homens amam as mulheres poderosas? traz como um de seus

ensinamentos o comportamento ideal para que as mulheres conquistem um parceiro,

assim, devem se tornar difíceis de serem conquistadas, não devem deixar o homem

perceber que estão disponíveis, mas ao mesmo tempo, devem se colocar em uma

posição de presa. Segundo a autora, quando as mulheres correm atrás de um homem,

elas acabam com a sensação de poder dele. De acordo com Argov: “Quando ela (a

mulher) corre atrás de um homem, produz o mesmo efeito que provocaria se deixasse

um alce morto na porta da casa dele.” (ARGOV, 2009, p. 29) E mais uma vez as

mulheres são comparadas a um animal morto, o que representa sua fraqueza e sua

condição de inferioridade diante de um homem poderoso que precisa do poder para se

sentir completo. “Homens são caçadores, e por isso ficam mais interessados em

96

conquistar uma presa quando ela resiste a eles. A maioria dos homens sente atração pela

mulher poderosa porque é emocionante a tentativa de dominá-las.” (ARGOV, 2009, p.

44)

A mulher poderosa se torna o exemplo, pois compreende a necessidade natural

dos homens de exercitarem seu poder, até mesmo para conquistar uma mulher. Os

homens são os agentes da ação, as mulheres são passivas, não devem agir, devem

esperar que eles cheguem até elas. A mulher poderosa é uma mulher de atitude, mas

suas atitudes se resumem a compreender como funciona o universo masculino e se

submeter a ele. Em um relacionamento, mesmo as mulheres sendo poderosas, não

devem tomar a iniciativa, pois correm o risco de fazer com que o parceiro se

desinteresse. Como vimos, Sherry Argov, a exemplo dos escritores Allan e Barbara

Pease, recorrem a teoria de que os homens e mulheres de hoje são evoluções dos

homens das cavernas, sendo o homem o caçador e a mulher a guardiã da cria.

No livro Por que os homens amam as mulheres poderosas?, a autora busca

construir a imagem de uma mulher adequada às mudanças ocorridas na vida das

mulheres desde a década de 1960; desenha o perfil de uma mulher que valoriza a si

mesma, possui independência financeira, mas uma análise mais detalhada desse

discurso mostra um outro lado. A mulher poderosa de Sherry Argov nada mais é do que

uma releitura de um ideal feminino muito presente na história, na literatura e em outros

meio discursivos desde há muito tempo. No enunciado a seguir podemos ver isso de

forma bem clara: “As mulheres bem sucedidas profissionalmente são, com freqüência,

as que se pegam dizendo: ‘Eu não deveria ter que me desculpar por ser forte. ’ Elas não

entendem por que não conseguem ‘achar um bom homem. ’” (ARGOV, 2009, p. 78)

Apesar de defender a independência financeira das mulheres, sinaliza nesse excerto a

incompatibilidade entre uma vida profissional bem sucedida e o relacionamento com

um “bom homem”.

A autora continua, dizendo: “É por que um bom homem deseja uma boa m-u-l-h-

e-r. Ser poderosa não significa perder a feminilidade nem tentar abertamente vestir as

calças dentro de casa. Significa apenas não admitir ser pisada por ninguém.” (ARGOV,

2009, p. 78) A feminilidade carrega em si as marcas da fraqueza, da delicadeza,

qualquer atitude das mulheres que seja diferente disso é um ponto negativo para

conseguir um parceiro. No enunciado acima a autora grafou a palavra “mulher” com

97

todas as letras separadas, esse artifício foi usando para dar ênfase à palavra, significando

no texto a mulher enquanto essência. Nesse sentido, para ser uma mulher de verdade é

preciso seguir determinadas regras de comportamento, e nunca perder a tal

feminilidade.

A expressão “vestir as calças dentro de casa” busca marcar o homem como o

detentor do poder, essa expressão constitui um interdiscurso que localiza o poder nas

mãos dos homens. Essa ideia também aparece nos outros dois livros que analisamos

aqui. No último trecho extraído do livro Por que os homens amam as mulheres

poderosas?, fica claro que as mulheres não devem ser os chefes dos lares e dos

relacionamentos, a mulher poderosa entende que para ser “poderosa” não precisa e não

deve ocupar o lugar superior dos homens na relação. A divisão binária e hierárquica

entre os sexos está demonstrada nesse livro, embora sua autora possua a intenção de

modificar a conduta das mulheres, transformando-as em pessoas mais autônomas, o

discurso preponderante revela que os velhos papéis destinados as mulheres continuam

sendo incentivados, reafirmados, reconstruindo um padrão de comportamento patriarcal.

A igualdade de direitos nos relacionamentos não aparece como opção no discurso

da autoajuda, é citado apenas para ser criticado. A ênfase dos autores é em

relacionamentos em que um exerce domínio sobre o outro, cabendo às mulheres

entenderem que é natural que os dominadores sejam os homens. No livro de Sherry

Argov encontramos referências à luta pela igualdade entre os sexos: “A supermulher

clássica deseja um relacionamento em que o homem e a mulher sejam ‘iguais’. Essa é

uma boa teoria, mas na prática, acaba gerando uma relação desigual.” (ARGOV, 2009,

p. 78) A expressão “supermulher clássica” foi usada nesse texto como forma de crítica,

determinando uma posição indesejável para as mulheres. A palavra “iguais” foi grafada

no texto entre aspas, artifício usado para desqualificar a ideia de igualdade. Ao dizer que

a ideia de igualdade é uma boa teoria, Argov reduz todo um movimento de lutas e

direitos conquistados a uma simples teoria que não possui utilidade na prática. Outro

ponto importante é o fato de que os três livros que analisamos aqui tratam o feminismo

e a ideia de igualdade entre os sexos se referindo a situações básicas do cotidiano dos

casais, estando sempre homens e mulheres atrelados uns aos outros, como se não

existisse a possibilidade de individualidade para ambos. As questões a que o feminismo

realmente se refere, os direitos civis, os direitos sobre o corpo, a luta contra a violência

98

e todos esses fatores são apagados, reduzindo o feminismo a apenas uma pequena

parcela de mulheres que querem “tomar” o poder.

3.2 Casamento

A identidade feminina construída através de discursos sociais relaciona as

mulheres a questões sentimentais; as mulheres são consideradas mais emotivas, mais

sensíveis e mais ligadas aos relacionamentos do que os homens. Como vimos, a teoria

do casal Pease defende que as mulheres evoluíram como guardiãs da cria e devido a isso

seu cérebro foi programado para amar e cuidar do outro.

O casamento aparece na sociedade como um anseio típico feminino, o maior

objetivo da vida das mulheres, através dele é que elas poderão desempenhar seu papel

de cuidadora e o mais importante de todos, o de mãe.

Na literatura de autoajuda que analisamos, o casamento apresenta-se como uma

necessidade feminina que coaduna com características naturais das mulheres. Como

analisamos neste trabalho, desde a década de 1960, os discursos sobre as mulheres

passaram a conviver com as novas formas de ser mulher introduzidas pelo movimento

feminista que questionou os valores e padrões antes impostos para as mulheres. Mas a

visão do casamento como um fim necessário para a vida feminina ainda persiste e a

autoajuda contribui para reforçar essa questão. Atravessadas durante toda a vida por

discursos que as constituem, sobretudo enquanto esposas e mães, muitas mulheres

sonham com o casamento de forma tradicional, ainda que tenham uma carreira

profissional, sejam independentes, ou conscientes de que não precisariam mais de um

homem para dar significado a sua existência como fora em outros tempos.

As mulheres, segundo a autoajuda analisada aqui, são as mais interessadas nos

relacionamentos, acima de tudo no casamento; os homens apesar de em algum momento

de suas vidas se submeterem a ele, não o possui como um grande objetivo. De acordo

com o livro “Porque os homens fazem sexo e as mulheres fazem amor”,

A mulher sempre acha que o relacionamento é mais importante para ela do

que para ele – e é mesmo. Entender essa diferença é se livrar da pressão e

aprender a não se julgarem tão severamente. (PEASE, A., PEASE, B., 2000,

p. 77)

99

O cérebro feminino é programado para encontrar um homem que se

comprometa a dar assistência até que os filhos estejam criados. Isso se

reflete nas qualidades que a mulher busca em um companheiro para um

relacionamento estável. (PEASE, A., PEASE, B., 2000, p.102)

No primeiro enunciado, os autores se utilizam da diferença entre os sexos para

justificar a maior responsabilidade das mulheres com o relacionamento. Para que as

mulheres não se sintam mal em seus relacionamentos, os autores aconselham a entender

as diferenças entre homens e mulheres, no intuito de que a harmonia se estabeleça. Com

isso, esse livro reforça as diferenças e desigualdades, usando-as como um antídoto para

os males do casamento. Desde que nascem, as mulheres são educadas para cuidarem do

outro, a serem sempre amorosas, pois é uma característica necessária para o

desenvolvimento pleno de sua feminilidade. Esse processo é feito através da

constituição de um indivíduo em mulher, os discursos que instauram o modelo perfeito

de comportamento atravessam os indivíduos durante toda a sua vida e os constituem de

acordo com os valores desejáveis para seu sexo biológico. Dessa forma, as meninas

desde sua infância convivem com brinquedos ligados à maternidade, à vida doméstica, e

por consequência ao casamento. No segundo enunciado percebemos esse fator de forma

mais clara, durante toda a sua vida, as mulheres estão sempre em busca do parceiro

ideal, para que enfim elas realizem o seu destino: ser esposa e mãe. Em “Porque os

homens mentem e as mulheres choram”, o casal Pease afirma:

Um relacionamento é apenas uma negociação com regras - se você quer

amor, amizade, sexo, e uma pessoa para cuidar de você tem que dar algo em

troca. O que as mulheres querem em troca é amor, dedicação e fidelidade.

Elas não têm a menor intenção de roubar a liberdade do homem. (PEASE,

A., PEASE, B., 2003, p. 88)

Nesse texto, os autores estão falando para os homens, como se os tranquilizasse

sobre o que é um relacionamento, e já delimitam aquilo que os homens esperam dele:

amor, amizade, sexo e alguém para cuidar deles. Ao passo que as mulheres só precisam

de amor, dedicação e fidelidade. Como podemos perceber, o papel das mulheres está

relacionado à doação de si, pois elas é que cuidam e não precisam ser cuidadas, em

outras palavras, elas servem. Outra diferença nessa afirmação é que os homens

procuram por sexo, e essa necessidade não é citada quando se trata das mulheres. A

100

sexualidade feminina na literatura é vista como secundária, mas falaremos mais

profundamente desse assunto no próximo tópico. Esse excerto faz referência ainda a

liberdade masculina, que poderia ser prejudicada pelo casamento. As mulheres não

estão relacionadas na autoajuda a ideia de liberdade, uma vez que, seu discurso está

inserido em uma formação discursiva em que as mulheres estão submetidas a todo o

momento de suas vidas ao domínio de um homem. Antes do casamento aos pais e após

ele ao marido. Dessa forma, a liberdade não é uma condição relacionada às mulheres,

embora as fontes analisadas aqui tenham sido escritas em um momento histórico

quando muitas mulheres já possuem mais liberdade e já não são mais obrigadas a

contrair o matrimônio para que tenham um papel respeitável na sociedade.

A autoajuda trata o casamento como fundamental para saciar a necessidade das

mulheres de doar o seu amor, serem amadas e desenvolverem suas habilidades naturais.

Enquanto para os homens o casamento aparece como uma prisão criada ao longo da

história e que vai contra sua constituição biológica.

O macho da espécie humana tem as características físicas das espécies

poligâmicas. Não há dúvida: o homem tem que travar uma batalha constante

consigo mesmo para ficar com uma só mulher. (PEASE, A., PEASE, B.,

2000, p. 108)

Qual é a vantagem do casamento para o homem? Em termos de evolução

nenhum. O homem é como o galo, tem necessidade de espalhar ao máximo e

com a maior freqüência suas sementes genéticas. Apesar disso, a maioria dos

homens ainda se casa e, quando se divorcia, torna a casar ou viver com outra

mulher. (PEASE, A., PEASE, B., 2000, p. 124)

Nesse enunciado os autores buscam reforçar seus argumentos de que o casamento

é um empreendimento feminino. Através da afirmação de que os homens são

poligâmicos por natureza, os autores justificam a maior propensão dos homens à traição

em um relacionamento, além disso, esse livro incentiva as mulheres a se conformarem

com a situação. Ideias como essas criam relacionamentos desiguais e pretendem

assegurar as raízes biológicas dos comportamentos. Não pretendemos aqui entrar no

mérito de avaliar moralmente o lado positivo ou negativo da traição, mas sim

demonstrar como a autoajuda trabalha para construir relacionamentos disformes e que

trazem as marcas de valores patriarcais que subjugam as mulheres e sua existência.

101

Durante quase todo o tempo de existência da raça humana, os machos foram

polígamos por razões de sobrevivência. Havia pouca oferta de homens

porque muitos morriam nas caçadas e nas guerras. Era razoável, portanto,

que os sobreviventes adotassem as viúvas em seus haréns, o que também

aumentava a chance de também poderem transmitir seus genes. Do ponto de

vista da sobrevivência da espécie, fazia sentido que um macho tivesse 10 ou

20 fêmeas, mas não fazia sentido que uma fêmea tivesse 10 ou 20 machos, já

que ela só podia parir um filho de cada vez. Somente 3% das espécies

animais, raposas e gansos, por exemplo, são monógamos. (PEASE, A.,

PEASE, B., 2003, p. 87)

Nesse enunciado os autores se utilizam de uma universalização dos

comportamentos para justificarem suas teorias, segundo eles, os homens foram

polígamos em todos tempos de existência da raça humana, desconsideram assim as

mudanças e transformações por que passam todas as sociedade, além de citarem “toda a

raça humana”, afirmando assim que todos os homens são iguais independente das regras

sociais, culturais a que estão submetidos. Na teoria criada pelos autores, as atitudes

masculinas são atos de bravura, sua propensão à poligamia vem da necessidade de

sobrevivência da espécie. Nesse enunciado também, mais uma vez os autores reforçam

a maternidade como a principal função das mulheres. Podemos perceber que elas são

apenas o receptáculo do embrião, a ação da fecundação é do homem, são eles que

precisam disseminar seus genes. A centralidade do masculino na literatura fica bem

evidente nesse excerto, assim como as diferenças e desigualdades entre homens e

mulheres, que são justificadas pela necessidade de preservação da espécie humana. Essa

preservação se dá através da disseminação do gene pelo homem, esses livros não levam

em conta que para um ser humano nascer é necessário que haja um óvulo e um

espermatozóide. No discurso dos autores, as mulheres são apenas receptoras do gene

masculino.

Quando falam de casamento os três livros analisados aqui fazem a divisão entre os

interesses de homens e mulheres, em que homens visam sexo e mulheres visam amor.

“Muitos homens, ao assinar a certidão de casamento, pensam estar dando início a uma

era de sexo a qualquer hora. Só que isso nunca é discutido antes, e as mulheres não

pensam do mesmo modo.” (PEASE, A., PEASE, B., 2000, p. 124) Essa fala reduz as

mulheres a meros objetos sexuais, que pelo casamento se tornam disponíveis

oficialmente para saciar os desejos masculinos. “Embora o casamento tenha se tornado

um ‘tigre desdentado’ nas sociedades ocidentais, ele ainda é o sonho da maioria das

mulheres.” (PEASE, A., PEASE, B., 2000, p.125) Nesse trecho os autores reforçam a

102

ideia de que o casamento é um desejo e uma necessidade feminina. Apesar de fazer uma

crítica sobre o casamento nesse excerto, os autores em seus livros não sinalizam

nenhuma alternativa de vida que não passe por ele, mas deixam claro constantemente

que ele só serve às mulheres.

Para a mulher, o casamento é a demonstração pública de que ela é “especial”

para um certo homem, que pretende ter com ela um relacionamento

monogâmico, além de lhe dar segurança. A sensação de ser “especial” tem

um efeito significativo sobre a ação química do cérebro feminino. Esse fato

foi comprovado por pesquisas que apontaram que a mulher tem de duas a

três vezes mais orgasmos nos relacionamentos monogâmicos e quatro a

cinco vezes mais quando faz sexo na cama do casal. (PEASE, A., PEASE,

B., 2000, p. 125)

Nesse enunciado vemos o trabalho da autoajuda em defender o casamento como

uma necessidade inconteste das mulheres. Afirmam que o casamento demonstra

publicamente o quanto aquela mulher é especial, ou seja, as mulheres não existem por si

mesmas, sua autoestima e valorização dependem dos homens. As mulheres são seres

indefesos, suas vidas giram em torno do masculino e seu poder fálico, assim o

casamento dá segurança para as mulheres. Os sentidos produzidos por esse enunciado

instauram a fraqueza como característica definidora do feminino. Através desse discurso

a autoajuda dissemina uma verdade sobre as mulheres, com seu grande poder de

circulação distribui representações nocivas sobre elas. Muitas mulheres buscam esse

tipo de literatura para tentar resolver problemas afetivos, convencidas durante toda a sua

vida de que precisam ser amadas, precisam se casar, a própria sociedade planta essa

necessidade. A autoajuda prescreve a elas um comportamento fundado em valores

patriarcais que as submete a relacionamentos desiguais.

Para justificar a afirmação de que as mulheres precisam de um parceiro fixo para

lhe dar amor e segurança, o livro usa como argumento de autoridade uma pesquisa que

diz que mulheres casadas têm mais prazer em suas relações sexuais. Essa afirmação

busca legitimar o casamento monogâmico para as mulheres, fazendo uma clara

diferenciação com o comportamento masculino, em que manter relações sexuais com

mais de uma mulher é natural, pois é um comportamento definido pela biologia. Nos

três livros de autoajuda que analisamos aqui, o único interesse dos homens em relação

ao sexo feminino é o prazer sexual.

103

O homem casado ou que tem um relacionamento estável sempre sonha em

segredo com o festival de sexo e divertimento que os solteiros aproveitam.

Imagina as festas, as aventuras, a liberdade e banheiras cheias de lindas

mulheres peladas. Tem medo de estar perdendo oportunidades que não

voltam mais. Ainda que, quando solteiro, nunca houvesse tidos essas

oportunidades. Esquece as noites que passou sozinho jantando comida

enlatada fria, os foras que levou na frente dos amigos e os longos jejuns de

sexo. Mas não consegue evitar a ligação que faz entre compromisso e

oportunidades perdidas. (PEASE, A., PEASE, B., 2000, p. 126)

Através desse enunciado os autores reforçam a liberdade sexual como direito

masculino, um comportamento que faz parte da vida dos homens, embora não sejam

mais homens das cavernas e não precisem mais se preocupar em preservar a espécie

com tanta urgência. As mulheres aparecem mais uma vez como objetos sexuais,

passivas diante das necessidades masculinas. Os papéis sociais diferenciados e

hierárquicos estão presentes nesse enunciado. Os autores dizem que os homens casados

ao sonhar com a vida de solteiro, esquecem das noites que passaram sozinhos “jantando

comida enlatada fria”, o sentido dessa expressão faz referência ao papel de servidora

que a esposa possui. No casamento elas são as responsáveis por cuidar do marido, vesti-

lo, alimentá-lo, limpar o ambiente em que ele vive, servindo-o com seus dons naturais

para os serviços domésticos. Essas afirmações reduzem as mulheres ao serviço prestado

em prol de outros, apagando os traços de individualidade e a possibilidade de uma vida

em função de si mesma. Os autores recorrem ao discurso do amor para justificar a maior

propensão das mulheres para o casamento, e para nele, desempenhar todas as tarefas

domésticas.

O cérebro feminino é programado para nutrir cuidar e criar os filhos. Por

isso, as mulheres vivem recolhendo as coisas que eles deixam pela casa,

preparam seus pratos favoritos, lhes dão dinheiro e os protegem das agruras

da vida. Como resultado, os meninos crescem com pouquíssimas aptidões e

habilidades domésticas e com um baixo grau de entendimento de como se

relacionar com uma mulher. Sentem-se atraídos por mulheres que tal como a

mãe, vão nutri-los e servi-los. No começo de um relacionamento, a maioria

das mulheres assume esse papel, mas quando percebem que ele pode se

tornar permanentes as coisas azedam. É importante a mulher entender que,

ao reproduzir a figura materna, o homem reagirá com gritos, acessos de raiva

e fugas. Além do mais, há um sério risco de ele não achar a própria mãe

sexualmente atraente. (PEASE, A., PEASE, B., 2003, p. 51)

104

Esse enunciado demonstra uma contradição nos argumentos dos autores. Segundo

eles, o cuidado que as mães dispensam aos filhos, os alimentando, cuidando das suas

roupas faz com que os meninos não aprendam a fazer as tarefas domésticas. Essa

afirmação contradiz as afirmações anteriores que diziam que a biologia, ou seja, a

constituição natural do sexo masculino é que não favorecia a obtenção dessas

capacidades. Pelo enunciado acima entendemos que os homens não fazem essas

atividades porque não são ensinados a fazê-las, como são as mulheres desde a infância.

Ainda nesse enunciado os autores deixam claro que o primeiro requisito de escolha de

uma mulher pelos homens é aquela mulher que irá servi-lo assim como sua mãe, o que

reduz as mulheres às tarefas domésticas e ao serviço em prol do outro. Os autores

aconselham as mulheres a não agirem como as mães de seus parceiros, além do

comportamento infantil que eles podem desenvolver, as mulheres podem deixar de ser

sexualmente atraentes. A sexualidade novamente ganha destaque e serve como

argumento de persuasão dos autores. Mas apesar desse conselho, os autores seguem

esse tópico orientando as mulheres a ensinarem seus parceiros a se comportar no

ambiente doméstico, se a tarefa de ensinar e educar é da mãe, as mulheres são ao

mesmo tempo aconselhadas a serem e não serem como mães de seus parceiros.

Algumas mulheres ficam horrorizadas com a ideia de agradecer a um

homem por ele fazer uma coisa tão simples como recolher as próprias

roupas, mas é importante entender que os homens não evoluíram como

protetores de ninhos e, portanto, o cuidado não é um comportamento

“natural” para eles. Se a mãe não o treinou para fazer as coisas, caberá a

você treiná-lo. Mas, se continuar a recolher e guardar as coisas dele, terá de

aceitar que escolheu o papel de substituta da mãe e se conformar com isto.

(PEASE, A., PEASE, B., 2003, p. 52)

Allan e Barbara Pease, ao contrário de Sherry Argov, afirmam que seus livros são

destinados a ambos os sexos, no entanto na maioria das vezes sua fala está direcionada

para as mulheres. Em um dos livros chegam a afirmar que pelo fato de os homens não

aceitarem bem serem criticados e ajudados por outros, é uma grande ofensa oferecer a

ele um livro de autoajuda: “Até um livro de autoajuda como presente de aniversário

pode ser interpretado como ‘Você não é grande coisa’”. (PEASE, A., PEASE, B., 2000,

p. 78) Dessa forma, com vistas a melhorar os relacionamentos entre os casais, o casal

105

Pease, além de afirmar que uma das saídas é aceitar as diferenças sexuais, aconselha

mudanças de comportamento por parte das mulheres. Uma vez que o relacionamento

interessa mais a elas, em decorrência da constituição natural de seu cérebro, elas devem

se adequar ao comportamento masculino. No enunciado acima, os autores aconselham

as leitoras a “treinarem” seus parceiros para as atividades domésticas, e caso não

consigam a única alternativa é se conformar, “em vez de criticar e culpar a mãe dele, o

mais eficaz nesse caso é treiná-lo para agir de forma diferente”. (PEASE, A., PEASE,

B., 2003, p. 101)

O casamento é um item fundamental para a vida das mulheres, segundo a

literatura de autoajuda que estudamos aqui, através dele elas realizam suas capacidades

naturais de amar e cuidar de outra pessoa. Sem o casamento as mulheres não adquirem

reconhecimento social, realização, proteção e segurança. Esse discurso está presente

também na literatura produzida para mulheres no século XIX, como analisamos

anteriormente, e repousa numa memória discursiva que caracteriza o matrimônio como

fundamento e objetivo da vida das mulheres.

3.3 Conselhos para o cotidiano dos casais

A literatura de autoajuda sentimental é um manual de aconselhamento que

prescreve comportamentos ideais para seus leitores alcançarem satisfação em seus

relacionamentos amorosos. Nos livros que usamos como fonte para esta pesquisa, os

autores Allan e Barbara Pease e Sherry Argov, dissertam sobre vários assuntos

relacionados à vida dos casais, oferecem conselhos para melhorar o cotidiano de seus

leitores. Como já dissemos anteriormente, em sua grande maioria as mudanças de

comportamento são destinadas às mulheres, como veremos a seguir:

A mulher nunca deve chamar um bombeiro, construtor, consultor financeiro,

técnico em computação nem qualquer técnico antes de consultar o seu

próprio homem. Em vez disso, ela deve lhe dizer o que considera necessário,

pedir a sua opinião e dar-lhe um prazo. Desta forma, se é ele quem acaba

chamando um bombeiro, vai achar que resolveu o problema sozinho.

(PEASE, A., PEASE, B., 2003, p. 93)

106

Os autores citam profissionais que as mulheres poderiam precisar, mas salienta

que elas não devem chamar nenhum deles sem antes consultar “o seu próprio homem.”

Através dessa afirmação os autores marcam essas profissões como masculinas, as

mulheres não devem buscar ajuda de outro homem antes de consultar o seu,

assegurando o lugar dele de autoridade do lar. A forma certa de resolver o problema é

pedir a opinião do parceiro e esperar para que ele solucione o problema, é

imprescindível que os homens achem que agiram sozinhos. A opinião ou atitude das

mulheres em assuntos masculinos não é bem-vinda nem bem vista.

A adaptação das mulheres aos costumes dos homens é importante para garantir a

harmonia do casal, a autoajuda oferece representações para as mulheres, buscam

instaurar uma verdade sobre o comportamento certo de acordo com o que a natureza já

programou para cada sexo. Dessa forma, os autores criam a representação de um

universo feminino que gira em torno do masculino.

Se o seu parceiro é maníaco por esportes ou por algum hobby, você tem duas

opções. A primeira é envolver-se. Aprenda o que puder sobre o interesse

dele, acompanhe-o a um evento e você ficará surpresa de ver a quantidade de

outras “viúvas do esporte” que também desfrutam os seus aspectos sociais.

(PEASE, A., PEASE, B., 2003, p. 96)

Nesse enunciado os autores afirmam o esporte como um interesse tipicamente

masculino, fazendo novamente as diferenciações de gênero. As mulheres devem se

adaptar ao gosto do parceiro, buscando se interessar pelas mesmas coisas que ele.

Quando os autores dizem que elas ficarão surpresas ao ver nos eventos a quantidade de

“viúvas do esporte” que existem, pretendem uma normalização da situação. Querem

fazer as leitoras entenderem que se existem tantas mulheres na mesma situação é por

que é um fato normal e que elas apenas devem se acostumar. Em seguida oferecem uma

segunda opção para as mulheres.

A segunda opção é usar a obsessão dele por esportes como uma

oportunidade positiva de estar com seus próprios amigos, com sua família,

fazer compras e começar seu próprio hobby. Não lute contra o hobby do seu

homem. Junte-se a ele ou use o tempo disponível para fazer algo positivo

para você mesma. (PEASE, A., PEASE, B., 2003, p. 96)

107

A outra alternativa para as mulheres se adaptarem ao gosto dos parceiros pelo

esporte ou outro hobby é aproveitar para se dedicar a si mesma, mas as opções que o

livro oferece estão ligadas a características que eles afirmam serem femininas:

afetividade, relacionamentos pessoais e consumismo. Aconselham as mulheres a

procurarem o seu próprio hobby, o que dá a entender que até então elas não o possuíam,

que sua ocupação era unicamente o parceiro. As mulheres não devem lutar contra o

hobby do parceiro, e sim se juntar a ele, ou buscar outras coisas para fazer. Percebemos

que para a literatura de autoajuda, os comportamentos masculinos não são passiveis de

mudança, fazem parte da essência dos homens. Esses exemplos triviais do cotidiano

criam representações que muitas leitoras levam para suas vidas, instaurando a

desigualdade entre os casais, pois parte apenas das mulheres o esforço pelo

relacionamento, o abandono de si mesmas para viver em função do parceiro.

Sherry Argov ao aconselhar as mulheres a agirem bem em seus casamentos

pretende assegurar que o poder masculino não seja destituído, os homens somente são

bons para suas parceiras se elas mantiverem e respeitarem o poder deles, pois segundo a

autora: “O poder inebria o homem, assim como o romance inebria a mulher”. (ARGOV,

2009, p. 66) Nesse excerto a autora faz a divisão clássica, comparando o poder com o

romance, já delimitando através disso o lugar de cada um na dinâmica do

relacionamento. Argov defende o ego masculino como o combustível que faz os

homens agirem, e a mulher poderosa de seu livro tem consciência disso e faz o possível

para massagear o ego do seu homem, como salienta a autora:

É o ego que leva os homens à guerra, que os faz construir grandes empresas,

malhar exaustivamente nas academias e até roubar. E é o ego que os faz se

apaixonarem. (...) Um homem precisa sentir-se viril. É por isso que ele não

para na rua para pedir informações sobre como chegar a um lugar. (ARGOV,

2009, p. 66)

No primeiro enunciado a autora relaciona o ego masculino com a conquista de

guerras, negócios, corpo forte através da malhação e até roubar. Todas essas atividades

aparecem no texto como demonstrações de força dos homens, em seguida a autora diz

que é o ego que faz com que os homens se apaixonem, associando assim a paixão por

uma mulher às conquistas citadas antes. O sentido produzido por esse enunciado

108

caracteriza as mulheres como “algo” a ser conquistado, estando em uma situação

vulnerável e passiva diante da vontade de poder dos homens.

Argov afirma categoricamente que os homens “precisam sentir-se viril”, a

virilidade está inscrita em uma memória discursiva que a relaciona com o poder. A

identidade masculina é ancorada o tempo todo à necessidade de controle e de domínio

por parte dos homens. No exemplo citado pela autora, os homens não pedem

informações na rua para não demonstrar falhas ou fraquezas. Os discursos que exaltam a

virilidade e o poder fálico estão muito presentes na sociedade, e ao longo da história

vem sendo reforçado, construindo uma identidade masculina revestida de um poder

arbitrário, uma vez que passa por cima dos direitos das mulheres. É através desse

sentimento de poder que muitos homens aprisionam suas esposas, como posses, como

mais uma conquista que está sob seu domínio. É através desse ego masculino que

muitos homens não aceitam o fim de um relacionamento e tiram a vida de suas

companheiras, como prova de seu poder. Os livros que analisamos contribuem para

propagar esse discurso de força e domínio, ensinando as mulheres a não resistirem,

ensinam a conformidade com as diversas situações do cotidiano. Através de um

discurso de poder feminino, da defesa de uma mulher moderna, cheia de si, Argov

busca naturalizar as desigualdades entre os sexos, o domínio dos homens sobre suas

companheiras é visível em seu texto.

A mulher poderosa, em suma, é aquela que entende como a “natureza” funciona,

mantém e alimenta uma virilidade intocável. Segundo Sherry Argov, “a mulher

poderosa não domina o homem, mas também não se deixa dominar. Todo seu

investimento é no sentido de construir um amor companheiro que faça os dois

crescerem.” (ARGOV, 2009, p. 67) A poderosa não se deixa dominar porque ela é

conformada com as necessidades de domínio dos homens, e isso não a torna dominada,

apenas consciente. Nesse enunciado a autora apela para os sentimentos femininos para

convencer sua leitora de seus argumentos. O livro Por que os homens amam as

mulheres poderosas?, tenta convencer as mulheres de que precisam de amor, não de

poder. No decorrer do livro a autora cita vários exemplos do cotidiano dos casais e

através deles ensinam as mulheres o comportamento ideal para manter o

relacionamento.

109

Uma óbvia infração do código “peniano”: quando você age como um

Tarzan, ele se sente uma Jane. Se seu homem for extremamente suscetível,

não mate nem um inseto quando ele estiver por perto. Não troque um pneu.

De preferência, não troque nem uma lâmpada. E se alguém fizer uma

pergunta a vocês morda a língua e deixe que ele responda. (ARGOV, 2009,

p. 68)

No início do enunciado, através da expressão “código peniano”, a autora já deixa

a entender que existem regras para se relacionar com os homens, e as mulheres

poderosas sabem que devem se submeter a ele, se quiser ter um bom relacionamento.

Em seguida a autora introduz uma metáfora: “quando você age como um Tarzan ele se

sente uma Jane”. Ou seja, quando você age como um homem ele se sente uma mulher,

quando você age com força ele se sente fraco. O sentido produzido por essa metáfora é

o de que os homens são os heróis, a força, e as mulheres são a fraqueza, a fragilidade.

Através desse enunciado a autora ensina as mulheres a não fazer nenhuma atividade que

seja “masculina”. Colocam as mulheres em uma situação de dependência, a espera de

que seus parceiros resolvam os pequenos problemas, salvando assim seu sentimento

viril de poder. A última frase, “se alguém fizer uma pergunta a vocês morda a língua e

deixe que ele responda”, parece saída de um manual de casamento do século XIX, mas

como estamos vendo, em pleno século XXI, Sherry Argov orienta as mulheres a serem

submissas, seres menores que seus parceiros.

Para todo macho, a sensação de ser homem é essencial. Isso não significa

que você deva ser dócil o tempo todo. Enquanto você demonstra que é um

“desafio mental”, lembre-se de que seu parceiro precisa ter o ego

massageado. Existe uma grande diferença entre cuidar do ego masculino e

sentir carente. (ARGOV, 2009, p. 68)

A primeira frase desse enunciado poderia ser reescrita de outra forma, para

entendermos melhor o seu sentido: “para todo macho, a sensação de ter poder é

essencial”. Como vemos, a autora faz a diferenciação entre macho e homem, em que

“macho” representa o biológico, e “homem” representa o poder, o centro, a força o

domínio. As mulheres não devem ser dóceis o tempo todo, essa afirmação da autora

serve apenas para amenizar o lado perverso de seus conselhos machistas. As mulheres

devem se lembrar de ser um desafio mental, devem agir como um território a ser

constantemente conquistando, oferecendo alguma resistência apenas para entusiasmar

110

mais os homens no processo de tomada de poder. A última frase é um alerta para as

mulheres, pois elas devem massagear o ego masculino e se sentirem bem com isso, não

devem se sentir “carentes”.

Os trabalhos domésticos são um ponto de atrito e discórdia entre os casais,

segundo a literatura que estamos analisando. Como vimos antes, o casal Pease defende

que as mulheres possuem uma capacidade natural para desempenhar esses trabalhos,

essa capacidade está inscrita na biologia. As mulheres que quiserem ajuda devem treinar

seus parceiros para as pequenas tarefas. Sherry Argov orienta as mulheres a alimentar o

ego dos companheiros fazendo com que sintam úteis e imprescindíveis, pois assim eles

podem se interessar em ajudar em casa.

Você quer que ele a ajude em casa? Faço-o se sentir necessário (ou seja,

poderoso). Dê a ele algumas tarefas. Não importa se for programar o DVD

ou pendurar um quadro. Quando usa aquela furadeira elétrica barulhenta, ele

se sente um Rambo. Se o quadro ficar totalmente torto – e vai ficar -,

simplesmente espere ele sair da sala para endireitá-lo. (ARGOV, 2009, p.

70)

As metáforas usadas pela autora sempre fazem referência a um modelo masculino

de força e coragem, como o Rambo, citado nesse enunciado. Lembrando que em seu

livro Argov estimula as mulheres a trabalharem e terem sua independência financeira -

embora o dinheiro das mulheres seja apenas um complemento à renda principal que é a

masculina – a autora ao falar do serviço doméstico, questiona as leitoras se elas querem

que seus parceiros “ajudem em casa”, dando a entender então que o trabalho doméstico

é uma responsabilidade delas, que os homens podem “ajudar”, e pelos exemplos dados

por ela no texto, eles ajudam em pequenas coisas, como ajustar um quadro. Como

podemos perceber os aconselhamentos da autora são fundamentados pelo senso comum

no que diz respeito às atividades de homens e mulheres.

O importante para a autora é as mulheres estarem o tempo todo cuidando do ego

masculino: “Os homens têm egos gigantescos que precisam ser massageados. E é

exatamente isso que a mulher poderosa faz. De pequenas maneiras, ela dá a impressão

que ele é o herói do mundo dela”. (ARGOV, 2009, p. 71) Argov, utiliza a “mulher

poderosa” como artifício para propagar um discurso com raízes patriarcais, constrói

uma imagem de mulher que vive em função dos homens, o “desafio mental” de que a

111

autora fala, é uma espécie de ocupação das mulheres, elas devem estar constantemente

atentas para satisfazer seus parceiros.

Através de um discurso supostamente atual, de valorização das mulheres e do

poder feminino tão em voga na primeira década do século XXI, Sherry Argov reforça

estereótipos masculinos e femininos, fazendo com que suas leitoras se identifiquem e

utilizem os ensinamentos da autora em seu cotidiano.

A mulher poderosa divide com justiça e inteligência o espaço pessoal dentro

da casa. Ele fica com 20% do closet, mas tem direito à garagem inteirinha,

assim como à churrasqueira. Como sabe que os homens gostam de demarcar

território, além de negociar as divisões, ela mantém como espaço sagrado o

escritório dele, sua mesa de trabalho e a poltrona onde ele se acomoda

quando chega em casa no fim do dia. (ARGOV, 2009, p. 75)

Neste enunciado a autora elogia a mulher poderosa por saber separar com

“justiça”, e “inteligência” os espaços na casa do casal. O maior espaço destinado às

mulheres é o “closet”, ao fazer essa referência, a autora se insere em um interdiscurso

que relaciona as mulheres ao universo da beleza e da futilidade. Em muitas propagandas

publicitárias, ditos populares, mídia televisiva, vemos esse discurso em funcionamento

reduzindo as mulheres à exterioridade de seu corpo. A autora afirma que os homens têm

direito à garagem inteira, inferimos disso que a autora pretende mais uma vez

demonstrar que as mulheres não têm posses, como no caso que analisamos antes em que

a autora falava da mansão do homem e do pequeno apartamento da mulher. As

representações femininas oferecidas por esse livro são de mulheres superficiais; a

mulher poderosa é uma mulher superficial, mas consciente e conformada com isso. O

início da última frase do enunciado acima nos mostra essa conformidade da mulher

poderosa, “como sabem que os homens gostam de demarcar território”, ou seja, a

mulher poderosa é aquela que reconhece e assegura o exercício do poder masculino.

Sherry Argov afirma que a mulher poderosa faz a divisão justa dos espaços da casa, o

escritório é o lugar sagrado dos homens, enquanto as mulheres buscam assegurar maior

espaço no closet. À primeira vista essa divisão pode parecer despretensiosa, mas se

fizermos uma análise mais apurada, vamos perceber que de uma forma simbólica a

autora estabelece os lugares ocupados por cada um na casa. Além disso, ela cria a

representação dos sexos a partir de estereótipos já existentes na sociedade. As mulheres

112

são ligadas ao mundo da moda, da beleza e da superficialidade, enquanto os homens são

relacionados ao trabalho, ao poder financeiro.

O livro Por que os homens amam as mulheres poderosas? descreve como seria a

mulher poderosa, fruto do seu tempo, pós-revolução feminina, dona de si, independente.

Mas ao analisarmos esse livro através da metodologia da análise do discurso e dos

estudos de gênero, percebemos uma produção de sentido que cria uma mulher em

moldes patriarcais. Argov ensina suas leitoras a se comportarem em seus

relacionamentos para que atinjam o objetivo principal, a felicidade conjugal. Dessa

forma ela orienta:

Além de precisar sentir que “está com a razão”, um homem tem necessidade

de “ser dono da ideia”. Então, lembre-se, a ideia é sempre dele, mesmo que

não seja. Não tente competir com ele, não vale a pena. (...) Quando

estiverem com um grupo de amigos e ele receber o crédito por uma ideia

sua, não crie um deus-nos-acuda. Ele precisa mostrar quem é o chefe. Não o

corrija nem tente “desmascará-lo” na frente dos outros, pois isso vai ferir a

masculinidade dele. É como uma mãe repreendendo o filho na frente dos

amiguinhos. Publicamente, o homem precisa “salvar a própria honra”.

(ARGOV, 2009, p. 75)

Percebemos nesse enunciado a produção de sentidos em torno da masculinidade

semelhante a que Allan e Barbara Pease fazem em seus livros, caracterizam os homens

como uma massa homogênea, que têm necessidade de estar com a razão, ou seja, de ter

o poder em suas mãos. Argov aconselha suas leitoras a manter um comportamento tal

qual os manuais do século XIX aconselhavam, as mulheres não devem parecer ter mais

opiniões que seus parceiros. Argov dialoga com as leitoras fazendo com que estas

pensem que estão no poder, mas seu discurso apenas mantém um padrão de

comportamento antigo, em que as mulheres são acessórios de seus parceiros, devendo

manter-se caladas como uma “boa moça”. Segundo a autora, os homens “precisam

mostrar quem é o chefe”, e as mulheres poderosas são aquelas que garantem que eles se

sintam assim, abdicam de suas ideias, de suas vontades e de seu espaço. Essa ideia se

encontra numa formação discursiva onde a família é dirigida pelo chefe, pelo homem,

aquele que possui o poder sobre a esposa e os filhos, é o tradicional provedor. A

masculinidade aparece nesse enunciado como um poder sagrado, que não deve ser

questionado, constitui a identidade masculina, é a força e o poder que o mantém de pé.

113

A última frase é emblemática para a análise que empreendemos nesse trabalho,

“Publicamente, o homem precisa ‘salvar a própria honra’”, esta afirmação se insere em

um interdiscurso em que a honra é um item importante na constituição da

masculinidade. Segundo Carlos Alberto Dória, analisando a noção de honra nos países

ibéricos, “a honra é a consideração de uma história de vida à luz de uma ótica social que

sacramenta a desigualdade entre as pessoas tomadas individualmente ou nas categorias

que integram (família, gênero, ordem etc.).” (DÓRIA, 1994, p.58, 1994) A honra

aparece na fala de Argov como atributo fundamental da masculinidade, atributo este que

deve ser resguardado não só pelos homens, mas igualmente pelas mulheres que

convivem com eles. Como verificamos no excerto acima, os ensinamentos para as

mulheres seguem as mesmas regras comportamentais de séculos atrás, séculos de

dominação e subordinação.

O matrimônio nas fontes pesquisadas como podemos perceber, aparece como um

empreendimento feminino. São as mulheres que precisam em primeiro lugar se esforçar

para “arranjar um marido”. Allan e Barbara Pease salientam que a biologia dos homens

não está de acordo com as regras de monogamia inerentes ao casamento em várias

sociedades, ao passo que as mulheres já nascem com os dons necessários para cuidar do

outro, ser amada e manter os relacionamentos. Desde a década de 1960 após a revolução

feminina, o casamento passou a ser desconstruído enquanto destino e objetivo único da

vida das mulheres, os discursos de liberdade e independência eclodiram com mais força

em diversos meios discursivos.

No século XXI, no período que analisamos aqui, entre 2000 e 2010, percebe-se

possibilidades variadas para as mulheres na sociedade, maior acesso a educação de nível

superior, mais espaço no mercado de trabalho em áreas antes ocupadas apenas por

homens, a possibilidade de escolher ou não a maternidade. O mais importante é

sublinhar as novas possibilidades que as mulheres têm ao seu alcance, entendemos ser

plenamente legítima a escolha em ser mãe, esposa e dona de casa, mas é fundamental a

noção de escolha, e não de um destino imutável. A literatura de autoajuda que

analisamos traz um discurso que defende a volta de um modelo patriarcal nas relações

entre os sexos. Os escritores Allan e Barbara Pease, nos dois livros que analisamos, se

utilizam de argumentos de autoridade como as ciências biológicas e médicas para

reforçar que os papéis ocupados por homens e mulheres são determinados pela natureza,

114

e que o único caminho para a felicidade conjugal é reconhecer as diferenças. Não

obstante, essas diferenças não ficam ao nível do biológico, se tornam diferentes

posições ocupadas na sociedade, criam uma hierarquia em que os homens são o centro,

enquanto as mulheres vivem em função do outro, e não de si mesmas; elas não

vivenciam sua individualidade, estão biologicamente destinadas a viver em função do

bem estar de outrem.

O livro de autoajuda escrito por Sherry Argov é um manual de aconselhamento

muito semelhante aos manuais de casamento do século XIX e meados do século XX. A

autora busca em suas próprias palavras “transformar uma mulher boazinha em uma

mulher poderosa”. Através de um discurso de poder e independência Argov vai

demonstrando um comportamento tal qual ao que o feminismo buscou romper. As

mulheres poderosas são aquelas que vivem em função de seus relacionamentos

amorosos e até a independência financeira serve apenas para chamar a atenção de um

parceiro ideal.

A autora representa as mulheres como coadjuvantes na vida conjugal, a função

delas é manter o poder “natural” dos seus parceiros. A masculinidade aparece no livro

de Argov como uma questão sagrada e o poder das mulheres, representadas nesse livro,

é apenas a conformidade com o status quo. Nas palavras da autora, a mulher poderosa

“parece abrir mão do poder, mas cresce nesse processo e garante a harmonia do

relacionamento.” (ARGOV, 2009, p. 76) Como podemos perceber, a autora deixa em

dúvida a questão do poder. Pelos conselhos dados por ela, não fica claro se as mulheres

deixam ou não de ter poder, mas quando ela diz que elas ganham com isso, fica claro

que as mulheres abrem mão do poder em prol de um crescimento pessoal e a felicidade

conjugal.

Podemos verificar essa questão pela fala da própria autora: “Quando você sabe

que está no controle da situação, não precisa demonstrar nem alardear isso. Se ele a

tratar com amor, respeito e consideração, você terá todo o poder de que necessita.”

(ARGOV, 2009, p. 76) Verifica-se pelo discurso desse livro a tentativa de desconsiderar

as mulheres como alguém que pode ter o controle do relacionamento. Sherry Argov

busca retratar as mulheres estando satisfeitas em serem subordinadas às vontades do

parceiro. Como a autora salienta várias vezes em seu texto, as mulheres poderosas

115

entendem a necessidade de domínio natural dos homens e buscam garantir que eles

possam exercê-lo.

Ainda no último enunciado a escritora orienta as mulheres a não demonstrarem o

poder, mesmo quando estão no controle, ou seja, os homens devem ter sempre a

impressão de que são os chefes. A autora propõe basicamente uma troca, em que as

mulheres abrem mão de ter o controle, ou mesmo de ter relação igualitária, para terem a

garantia daquilo que a natureza supostamente determina como essencial para sua

sobrevivência, o amor, o respeito e a consideração. O discurso de Argov está

relacionado ao do casal Pease, uma vez que ambos descrevem as necessidades de cada

sexo na dinâmica dos relacionamentos e estas são ditadas pela natureza, dessa forma os

homens precisam estar no comando, precisam ter o papel principal no casamento,

namoro ou na constituição da família.

As mulheres são movidas pelos sentimentos, necessitam de amor e carinho,

precisam ser protegidas e têm o dom natural de servir ao outro; são o segundo elemento,

as coadjuvantes no relacionamento. Nesse teatro matrimonial descrito pela literatura de

autoajuda analisada nesse trabalho, os papéis sociais e representações de gênero são

reforçados de forma hierárquica, reafirmando as desigualdades entre os sexos, trazendo

para o século XXI o retorno da família patriarcal e da divisão binária da sociedade.

Como nos outros livros que analisamos Sherry Argov também faz referência ao

feminismo sem o nomear. Ao orientar as mulheres a não pressionarem seus parceiros,

ou seja, não dar ordens a eles, a lhes massagear o ego, a deixar que ele se sinta nas

palavras da autora, o “homem da casa, o garanhão, a lenda”, Argov cita a revolução

feminina: “Agora que as mulheres estão bem estabelecidas no trabalho, os homens não

se sentem mais tão necessários aos olhos delas. Eles não se sentem os ‘homens da casa’,

como acontecia no passado. Como Erica Jong disse, ‘cuidado com o homem que elogia

a libertação feminina. Ele está prestes a largar o emprego.’” (ARGOV, 2009, p. 121)

Neste trecho a independência financeira das mulheres aparece como fator de mudança

nas relações conjugais, uma vez que diminui a dependência das mulheres em relação

aos homens. Devido a isso, eles não se sentem mais os “homens da casa”. Através dessa

expressão podemos perceber que a palavra “homem” já carrega em si o sentido de

poder. O “homem da casa” é aquele que comanda, que sustenta, é a força, o personagem

116

principal. Quando em uma família é a mulher quem tem mais poder, quem comanda, é

comum ouvirmos que ela é o “homem da casa”.

A autora Sherry Argov fala em seu livro sobre uma mulher independente,

poderosa, que tem o domínio sobre a sua própria vida. O discurso da autora se baseia no

discurso feminista sobre as mulheres, mas através de seus ensinamentos reforça

comportamentos de submissão feminina. O mundo das mulheres poderosas gira em

torno dos homens, todas as atitudes ensinadas pela autora têm uma única intenção:

agradar o sujeito masculino, indispensável para a existência feminina. Até mesmo a

forma como as mulheres devem expressar aquilo que querem no relacionamento deve

ser em uma posição subordinada, como aconselha a autora: “Nunca reivindique como

um direito aquilo que você puder pedir como um favor.” (ARGOV, 2009, p. 121) Em

seu discurso Argov cria uma mulher passiva e conformada, porém se utiliza da figura de

uma mulher poderosa para dar mais credibilidade aos seus ensinamentos. Ressaltando

que estamos falando aqui sobre o discurso que os livros de autoajuda que usamos como

fonte disseminam, analisar o uso que as leitoras fazem desses discursos não é a nossa

intenção, compreendemos que a análise da recepção desses discursos seria outro

trabalho de pesquisa.

3.4 Sexualidade

Quando se trata de sexualidade, os livros de autoajuda seguem a lógica de

determinar as diferenças baseadas na biologia dos corpos, que por sua vez é

condicionada pela necessidade de sobrevivência dos homens primitivos. Segundo os

autores Allan Pease, Barbara Pease e Sherry Argov, a sexualidade é determinada pela

necessidade de procriação e preservação da espécie humana.

O momento de escrita desses livros é o século XXI, mas no que se refere à

sexualidade os autores se valem das mesmas ideias que para eles faziam sentido nos

primórdios da humanidade. “A entusiástica e impulsiva disposição do homem para o

sexo tem uma finalidade clara: assegurar a continuidade da espécie humana.” (PEASE,

A., PEASE, B., 2000, p. 101) Os homens são caracterizados como seres extremamente

sexuais, é através do sexo que eles realizam suas vontades de poder. “Na mulher, o

117

hipotálamo é muito menor que no homem. Além disso, ela tem pouca quantidade de

testosterona. É por isso que as mulheres, em geral, têm menos impulso sexual e são

menos agressivas.” (PEASE, A., PEASE, B., 2000, p. 102) O trabalho dos autores em

dar credibilidade ao discurso é bem visível nesse enunciado, se utilizam de palavras

científicas como: “hipotálamo”, para demonstrar que possuem profundo conhecimento

da anatomia humana. Ainda nesse enunciado, afirmam que a pouca testosterona das

mulheres faz com que elas tenham menos impulso sexual e sejam menos agressivas. Os

autores relacionam dessa forma a agressividade como característica natural dos homens.

Percebemos nesses livros de autoajuda uma necessidade de reafirmar toda a

existência de homens e mulheres com a formação de uma família. Homens e mulheres

se relacionam com a única finalidade de gerar filhos e formar uma família nos moldes

tradicionais, com pai (homem), mãe (mulher) e filhos13

. “O cérebro feminino é

programado para encontrar um homem que se comprometa a dar assistência até que os

filhos estejam criados. Isso se reflete nas qualidades que a mulher busca em um

companheiro para um relacionamento estável.” (PEASE, A., PEASE, B., 2000, p.102)

A construção da imagem das mulheres, enquanto mães e esposas, está evidente nesse

enunciado, pois os livros criam uma representação feminina que somente possui

legitimidade se for desempenhando os papéis que a autoajuda considera naturais para os

sexos. Assim, a sexualidade feminina está relacionada à procriação.

Os discursos sobre a sexualidade, que são disseminados pelo tecido social,

difundem os homens enquanto seres sexuais. As propagandas de televisão, as novelas,

os ditados populares constituem o masculino em torno do desejo sexual. Neste contexto

as mulheres aparecem como seres passivos, objetos do desejo masculino, despossuídas

de desejo sexual. Os ensinamentos dados para as mulheres ao longo de suas vidas

giram em torno da repressão dos desejos, faz parte da constituição social das mulheres

um comportamento recatado, digno de uma “moça de família”. “Misteriosa, a

sexualidade feminina atemoriza. Desconhecida, ignorada, sua representação oscila entre

dois pólos contrários: a avidez e a frigidez. No limite da histeria.” (PERROT, 2012, p.

65)

Através dos estudos de gênero compreendemos que a sexualidade é construída por

discursos que atravessam os sujeitos, construindo representações que contribuem para

13

Tanto Allan e Barbara Pease quanto Sherry Argov ignoram a homossexualidade. Para esses autores o

modelo natural de família é formado por homem e mulher.

118

os constituírem na sociedade. A literatura de autoajuda do casal Pease e de Sherry

Argov, é mais um desses discursos, no entanto sendo escrita em um momento histórico

em que as mulheres já alcançaram ou possuem a possibilidade de alcançar novos

patamares, esses livros trabalham pela negação e repressão da sexualidade feminina.

O que pretendemos ressaltar é que apesar de todas as conquistas femininas, os

estereótipos de homens como “garanhões do sexo” e das mulheres como eternas

apaixonadas são reforçados nos livros de autoajuda que analisamos neste trabalho.

Como afirma Allan e Barbara Pease: “O macho da espécie humana tem as

características físicas das espécies poligâmicas. Não há dúvida: o homem tem que travar

uma batalha constante consigo mesmo para ficar com uma só mulher.” (PEASE, A.,

PEASE, B., 2000, p.108) O sexo é apresentado como uma necessidade fundamental

dos homens, faz parte da constituição da própria masculinidade.

A promiscuidade está instalada no cérebro masculino, é uma herança da

evolução. Através da história, os homens morreram em guerras e mais

guerras. Assim fazia sentido tentar de qualquer jeito aumentar a população.

Sempre voltavam menos guerreiros do que tinham partido. Mas os

sobreviventes tinham á sua disposição cada vez mais viúvas, criando um

harém que servia muito bem à estratégia de preservação da espécie. (PEASE,

A., PEASE, B., 2000, p.108)

As diferenças de gênero construídas em torno da sexualidade nos livros

pesquisados, reforçam padrões de comportamento baseados em valores antigos. Os

autores buscam outros discursos para reforçar suas afirmações. No enunciado acima, os

autores justificam a necessidade dos homens em ter relações sexuais com várias

mulheres citando acontecimentos históricos. Como podemos perceber, os autores não

estão citando nem um fato específico, eles buscam acontecimentos gerais que possam

dar veracidade ao que estão dizendo. A centralidade do masculino na literatura de

autoajuda é muito perceptível nesse enunciado, os homens são heróis que foram para as

guerras para salvar suas nações, aqueles que sobreviveram ainda tiveram a missão

grandiosa de espalhar seus genes em prol da preservação da espécie humana. A figura

das mulheres, nesse enunciado descritas como “viúvas”, é apenas uma personagem

secundária, como ressaltam os autores, elas ficavam “à disposição” dos homens, dando

a entender a inércia desses seres diante das situações. Após citar um evento do passado,

em que os homens precisam ser promíscuos em favor da humanidade, os autores

119

introduzem uma forma das mulheres se adaptarem a esta necessidade deles por sexo

diferenciado na vida moderna.

Por que homem gosta que a mulher se vista como uma prostituta (mas não

em público)? O cérebro masculino precisa de variedade. Como a maioria dos

mamíferos, o homem é programado para acasalar com o máximo possível de

fêmeas. É por isso que, mesmo em um relacionamento monogâmico, o

homem adora novidades, como roupa íntima sexy. Ao contrário de outros

mamíferos, ele engana a si mesmo e finge que tem um harém ao ver sua

mulher vestida com diferentes roupas sensuais. (PEASE, A., PEASE, B.,

2000, p.110)

Já no início desse texto vemos o trabalho do discurso classificando as mulheres de

acordo com o exercício de sua sexualidade, segundo os autores, a prostituta é uma

profissional especializada na venda de sexo, é a sexualidade em forma de pessoa. Se

vestir como prostituta, no contexto desse livro, é se vestir com sensualidade, deixando

sua sexualidade à mostra. Os sentidos produzidos por esse enunciado demonstram que

esse comportamento é aceitável para as mulheres apenas quando estão com seus

parceiros, destinando assim seu corpo exclusivamente para ele, e determinando que ter

apenas um parceiro sexual é a regra para as mulheres. Os homens são “programados

para acasalar com o máximo possível de fêmeas”, e as mulheres precisam se adaptar a

isso. No enunciado os autores recomendam o uso e troca constante de roupas “íntimas

sexy”, como não podia faltar os autores citam um estudo para justificar esta afirmativa:

Um estudo feito nos Estados Unidos apontou que as mulheres que usam uma

variedade de roupas íntimas sensuais têm companheiros muito mais fiéis do

que aquelas que preferem as bem-comportadas. Essa é uma das formas de

adaptar ao relacionamento monogâmico a necessidade masculina de variar.

(PEASE, A., PEASE, B., 2000, p.111)

O argumento chave desse enunciado se encontra nas consequências do uso das

roupas íntimas sensuais: fidelidade. Assim, o livro cria um discurso que determina os

comportamentos adequados para as mulheres conseguirem que seus parceiros fiquem

apenas com elas. Está demonstrado mais uma vez que na literatura de autoajuda, que

estudamos aqui, o mundo feminino gira em torno do masculino, os homens são o centro

e as mulheres precisam se adaptar ao seu modo imutável e geneticamente determinado

de ser.

120

Após o auge do feminismo, as mudanças pelas quais o movimento passou no

decorrer dos anos, as mudanças nas visões sobre as mulheres se modificaram

substancialmente. Embora haja muito ainda a ser mudando, as novas possibilidades de

atuação das mulheres são reais, as identidades femininas não giram em torno apenas do

casamento e da maternidade, a liberdade sexual vivida pelas mulheres no início do novo

milênio é um fator de destaque. No entanto, a literatura de autoajuda busca através de

seu discurso fazer o caminho inverso, além de tentar convencer as mulheres de que seu

mundo é apenas um acessório do mundo masculino, separam as mulheres de acordo

com regras morais.

A teoria da mãe/prostituta afirma que um homem vai ver você ou como

“mãe” ou como “prostituta”. A prostituta, no caso, é qualquer mulher com

quem ele esteja fazendo sexo, com quem deseja fazer sexo ou com quem já

tenha feito sexo. O oposto da prostituta é a mãe. Um homem sente por uma

mulher que seja doce e gentil o mesmo que sente pela própria mãe. Mas,

como ela não é um desafio e está sempre disponível, ele começa a não ter

medo de perdê-la. (ARGOV, 2009, p. 38)

As identidades femininas referidas nesse excerto são construídas através da forma

como exercem sua sexualidade. A prostituta é a mulher que é sexualmente livre, não

tem recatos, é sensual; a mãe é a mulher sem sexualidade, ou pelo menos possui uma

sexualidade reprimida, é sagrada e terna. Sherry Argov define as mulheres em apenas

essas duas categorias, e a prostituta é a mulher ideal pelo que ela escreve nesse trecho.

De acordo com Tânia Swain, as imagens da mãe e da prostituta são “o binômio

constitutivo da representação social das mulheres. Mãe, esposa, sexo domesticado,

moralidade, espaço privado, família, reprodução social. Prostituta, mulher pública,

liberação do vício e da lascívia latentes no feminino.” (NAVARRO-SWAIN, 2007, p.

218)

Como já dissemos antes, o livro de Sherry Argov é rico em contradições. No

último trecho que citamos do livro, ela descarta a possibilidade das mulheres agirem

como “mães” de seus parceiros, mas em outras ocasiões em seu livro afirma que cabe às

mulheres treinarem seus parceiros para pequenas ajudas em casa, como fariam a suas

mães. Segundo esta autora, o “que a mulher boazinha precisa saber é que, mesmo que

ela faça o maior esforço para ser uma dona de casa exemplar, o homem sempre vai

querer uma prostituta na cama.” (ARGOV, 2009, p. 39) A sexualidade feminina aparece

121

aí como uma forma de satisfazer os desejos sexuais masculinos e manter os homens nos

relacionamentos.

3.5 A atração sexual

Quando se fala em sexualidade, um das imagens mais utilizadas por variados

discursos na sociedade é a imagem do corpo feminino. Não importa qual é o produto

que esteja sendo anunciado, o corpo feminino serve para vender muitos desses produtos.

O corpo feminino é a representação maior do sexo, através disso todo um discurso foi

construído em torno de corpos perfeitos, sensuais, como se a função do corpo feminino

fosse apenas sexual. Na literatura de autoajuda esse discurso é reforçado. Nela também

são mostrados estereótipos em torno dos motivos pelos quais homens e mulheres

escolhem seus parceiros, e o que causa a atração sexual em ambos.

Quase todos os estudos sobre a atração chegaram as mesmas conclusões a

que chegaram pintores, poetas e escritores nos últimos seis mil anos: o corpo

e a aparência da mulher exercem maior atração sobre os homens do que sua

inteligência e qualidades, mesmo no politicamente correto século XXI.

(PEASE, A., PEASE, B., 2003, p. 159)

Nesse enunciado os autores se utilizam do tempo e da história para justificar seus

argumentos. Afirmam que o corpo feminino é sexualizado desde muitos anos atrás,

citam estudos para comprovar essa afirmação, mas não citam a referência desses

estudos e nem entram em detalhes sobre sua conclusão. Através desse discurso os

autores constroem uma realidade em que o corpo feminino é fundamental para que os

homens se interessem pelas mulheres; a inteligência e as qualidades delas não são

importantes, assim reduzem as mulheres ao corpo. Quando dizem que o corpo feminino

é o fator principal para atrair os homens, os autores afirmam que é assim até no

“politicamente correto século XXI”, percebemos mais uma vez uma tentativa de ignorar

os avanços que ocorreram nos discursos sobre as mulheres nos últimos tempos. Nos

enunciados a seguir essa ideia fica ainda mais clara

122

O homem moderno quer de uma mulher as mesmas coisas imediatas que os

seus ancestrais, mas, como você verá os critérios masculinos na escolha de

uma parceira para a vida não são os mesmos. Cabe entender que o corpo da

mulher evoluiu como um sistema de sinalização sexual permanente,

desenvolvido para atrair a atenção do homem. O que torna um homem

atraente para uma mulher, porém, é algo muito diferente. (PEASE, A.,

PEASE, B., 2003, p. 159)

O corpo feminino, segundo o enunciado acima, possui como única finalidade de

existência chamar a atenção dos homens. Através desse enunciado podemos perceber

um discurso que torna as mulheres objetos sexuais para simples satisfação dos homens.

Esse discurso está relacionado com vários outros discursos que fazem as mesmas

afirmações. As diferenças de gênero em relação à sexualidade são construídas no

discurso dos Pease e de Argov em conformidade com a memória discursiva sobre a

sexualidade de ambos os sexos. O sexo é uma necessidade física masculina e está

presente em todas as suas atitudes, enquanto para as mulheres é uma questão secundária

nos relacionamentos, elas necessitam mais de carinho e de afeto. Através desse discurso

a constrói-se modelos de comportamentos, justificados pela biologia e pela evolução

dos seres humanos. Podemos perceber também que os livros que analisamos tratam do

senso comum sobre homens e mulheres, mas investem esse senso comum de um

discurso científico para dar mais credibilidade ao que estão dizendo. Os autores também

seguem a regra da maioria para justificar suas afirmações, como veremos abaixo.

Ver pornografia é uma atividade quase que totalmente masculina. 99% dos

sites pornográficos da internet são dirigidos aos homens, e a grande maioria

das imagens de homens nus é destinada a homossexuais. Quando vê a

imagem erótica de uma mulher, um homem nunca pensa se ela sabe

cozinhar, tocar piano ou lutar pela paz mundial. Ele é atraído pelas formas e

curvas e pela sugestão virtual de que ela seja capaz de transmitir os seus

genes. Jamais lhe ocorre se ela tem uma personalidade simpática. (PEASE,

A., PEASE, B., 2003, p.167)

O mercado da pornografia é construído para os homens, uma vez que usa as

imagens de corpos femininos como bandeira de venda. Um dos motivos para isso é a

própria forma como a sexualidade de homens e mulheres é tratada historicamente na

sociedade. O que influencia para que exista um mercado de produtos eróticos para

homens e não para mulheres. Assim é a construção da sexualidade masculina e feminina

123

que determinam esse mercado e não fatores biológicos ou evolutivos. A sexualidade ao

longo da vida dos homens é tratada de forma livre, sendo seu exercício uma

demonstração de força fálica. Enquanto as mulheres são criadas para reprimir sua

sexualidade já que socialmente a liberdade sexual delas não é bem vista. Ainda nesse

enunciado o livro reduz as mulheres ao seu corpo, sendo este o único interesse dos

homens, e o que dá significado às mulheres.

A literatura de autoajuda trata da sexualidade tendo os homens como o centro da

questão, eles necessitam da sexualidade para exercerem sua masculinidade, enquanto as

mulheres aparecem apenas satisfazendo essas necessidades e não buscando seu próprio

prazer, reforçam a ideia de que os homens em um relacionamento buscam sexo e as

mulheres buscam amor, fazendo a divisão clássica entre razão/masculino e

emoção/feminino.

O homem se sente estimulado pelo que vê. A mulher pelo que ouve. O

cérebro masculino, de acordo com sua estrutura sente atração pelas formas

femininas, e é por isso que imagens eróticas exercem tanto impacto sobre

ele. A mulher, com receptores de informações sensoriais mais apurados,

gosta de palavras doces. A sensibilidade feminina ao que escuta é tanta que

muitas mulheres chegam a fechar os olhos quando o homem que elas amam

sussurra bobagens carinhosas ao seu ouvido. (PEASE, A., PEASE, B., 2003,

p. 113)

Vale a pena reforçar que a literatura de autoajuda faz um trabalho de

universalização dos comportamentos. No texto acima o livro afirma que todos os

homens se sentem estimulados pelo que veem, e todas as mulheres se estimulam pelo

que ouvem, assim, os autores consideram que homens e mulheres em qualquer situação,

sociedade e cultura sejam iguais. Esse discurso homogeneizador serve para atingir o

maior número de pessoas, tornando os comportamentos de homens e mulheres iguais. O

amor é o motor da vida feminina, enquanto o sexo é o que move os homens. A

autoajuda reforça esses estereótipos, buscando sempre justificar os comportamentos

pela biologia dos corpos. A sexualidade feminina é acessória, as mulheres servem para

estimular o desejo de seus parceiros, pois o prazer sexual é próprio dos homens, as

mulheres se sentem satisfeitas apenas em serem amadas. A literatura que trabalhamos

aqui, como muitos outros discursos, constrói o corpo feminino enquanto objetos

124

sexuais, faz referência a esse fato de forma muito direta, buscando a naturalização dessa

ideia.

A atração é um alerta: ele é um macho, e seu papel tradicional é aproveitar

toda e qualquer oportunidade para aumentar a tribo. (...) É o mesmo quando

ele olha a página central de uma revista masculina. Não interessa a

personalidade daquela mulher nua, se ela cozinha ou sabe tocar piano. O que

salta aos olhos são as curvas, as formas, os atributos físicos – e só. Não é

muito diferente de admirar um belo presunto no balcão do mercado.

(PEASE, A., PEASE, B., 2003, p. 114)

A palavra macho já carrega em si significados investidos de poder. A sexualidade

é um elemento fundamental na construção da identidade masculina. Assim, os discursos

sociais constroem representações e imagens de homens relacionando-os com a

capacidade de ser ativo e efetivo em uma relação sexual, sobretudo heterossexual. No

enunciado exposto acima, os autores afirmam que o papel tradicional do “macho” é

aproveitar todas as oportunidades para aumentar a tribo, ou seja, os homens têm uma

necessidade sexual que se manifesta a todo o momento em seu dia a dia. Mesmo

vivendo em uma época em que a preservação da espécie já não é mais uma preocupação

intensa, segundo esses autores, a sexualidade masculina funciona da mesma forma que

milênios atrás.

O corpo feminino é o objeto de desejo masculino. Na visão da literatura de

autoajuda, o corpo das mulheres funciona como uma sinalização permanente para

despertar o desejo sexual dos homens. Nesse sentido, as mulheres existem apenas na

materialidade dos seus corpos, seus desejos, seus anseios, suas opiniões, personalidades,

lutas e vontades não aparecem. No último excerto os autores dizem que ao olhar um

corpo feminino nu, não importa quem seja aquela mulher, para os homens apenas o

corpo é importante. A expressão utilizada pelos autores, diz que esse processo não é

diferente de “admirar um belo presunto no balcão”, fazendo referência ao corpo da

mulher apenas como um pedaço de carne à disposição para o consumo dos homens, um

objeto sem dono à mercê de quem dele quiser usufruir. Os autores Allan e Barbara

Pease elaboraram um esquema para definir como funciona a atração sexual para cada

sexo.

125

O que estimula a mulher O que estimula o homem

1. Romance 1. Pornografia

2. Compromisso 2. Nudez Feminina

3. Comunicação 3. Variedade sexual

4. Intimidade 4. Roupas íntimas

5. Toque não sexual 5. Disponibilidade da mulher

Os elementos estimuladores estão distribuídos nesse quadro de acordo com as

diferenças de gênero construídas na sociedade. O desejo sexual das mulheres está

condicionado aos sentimentos e às emoções, em busca de seu destino incontornável, o

casamento. Enquanto o masculino se estimula por elementos materiais, em que o

principal objeto é o corpo feminino. Podemos perceber pelo discurso da autoajuda que

mais uma vez são as mulheres que se adaptam às condições dadas como naturais dos

homens. Em outros pontos do texto os autores deixam claro que os homens não são

propensos às questões amorosas e que o relacionamento e o romance não são

importantes para eles. Mesmo se dirigindo aos casais, os autores não ensinam os

homens a se adaptarem à suposta necessidade de amor e carinho das mulheres. Dessa

forma, embora o desejo sexual delas dependa disso, elas devem se contentar com aquilo

que eles estão dispostos a oferecer, pois também, como afirma os autores, as mulheres

estão mais dispostas a se sacrificar pelo relacionamento. Os desejos sexuais masculinos

por outro lado, moldam o comportamento das mulheres, pois os elementos que os

estimulam são visuais, materiais e corporais, fazendo com que as mulheres tenham que

adaptar seus corpos e seus hábitos para satisfazerem seus parceiros.

As lutas feministas, entre outras coisas, buscavam que as mulheres possuíssem o

direito sobre seus corpos. Não mais dominadas pelos desejos dos homens, corpos

moldados para satisfazê-los, mas donas do seu destino e do seu prazer. A autoajuda

através de seu discurso patriarcal promove a volta a um modelo de corpos/objetos se

utilizando de discursos de autoridade apoiados pela biologia e outros campos do saber.

Fixam estereótipos sobre os sexos fazendo um caminho inverso na busca da igualdade

entre homens e mulheres. Os livros que analisamos trabalham com discursos contrários

às conquistas históricas do feminismo e procuram em seu texto desqualificá-lo, e assim

percebemos uma enorme preocupação dos autores em criticar suas proposições, fazendo

126

uma campanha contra essa forma de pensamento, tentando mostrar aos seus leitores que

este foi apenas um movimento com teorias vazias, sem aplicabilidade na prática. Sobre

a aparência feminina como item principal da atração sexual os autores discorrem

citando o feminismo:

Até o início do movimento feminista, na década de 1960, as mulheres se

vestiam pela razão de sempre: atrair os homens e superar outras mulheres. O

feminismo disse as mulheres que vestir-se para atrair os homens não era

mais relevante – a beleza interna agora contava mais do que a aparência,

uma ideia que atraiu milhões de mulheres. Elas acreditaram que podiam ficar

livres da obrigação opressiva de estarem sempre bonitas para os homens.

(PEASE, A., PEASE, B., 2003, p. 168)

A maioria das mulheres compreende isso (que os homens as escolhe pela

aparência), até porque as pesquisas científicas já provaram reiteradas vezes,

ainda que não seja “politicamente correto” reconhecê-lo. As feministas em

geral abominam a ideia de a mulher ser julgada por sua aparência física e

classificam os homens como superficiais e frívolos. Mas isso não muda o

fato de que a primeira reação deles às mulheres é irresistivelmente visual.

(PEASE, A., PEASE, B., 2003, p.170)

No primeiro enunciado, os autores afirmam que as mulheres se vestem

unicamente para atrair os homens e competir com outras mulheres, marcando assim a

identidade feminina em torno de fatores externos, moldando seu comportamento pelos

valores de outros, além de caracterizar a futilidade como atributo feminino. Quando

dizem que até a década de 1960 as mulheres se vestiam pela razão de “sempre”, ou os

autores usam essa palavra para dar ênfase a um fato que eles querem que pareça natural,

ou próprio das mulheres. O marco dos autores é o feminismo que mudou a forma das

mulheres se enxergarem no mundo, mas constroem sua fala colocando as ideias

feministas como enganadoras.

No segundo enunciado, os autores utilizam a expressão a “maioria das mulheres”

para convencer seu leitor de que a aparência não só é fundamental para que os homens

se sintam atraídos, como é um fato dado normal e de conhecimento geral. As pesquisas

científicas aparecem novamente para reforçar os argumentos dos autores. A autoajuda

se baseia em dados do senso comum, busca discursos de autoridade em vários campos

das ciências até para justificar uma afirmação como esta, a aparência das mulheres deve

ser cultuada para que possa atrair os homens, mas o contrário não é relevante. As

feministas, na fala do casal Pease, formam um grupo que representa a anormalidade, um

127

grupo de contradição, que vai contra as regras da vida, da natureza e da própria história.

No enunciado acima os autores são categóricos, embora as feministas tragam novas

formas de ser mulher e de se significar na sociedade, nada muda, pois o mundo está

natural e historicamente condenado a ser divido entre homens e mulheres. Está

destinado a ser hierarquizado, polarizado, um lugar onde um domina outro, e sendo a

natureza quem determina essa divisão não há o que contestar.

128

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esta pesquisa surgiu do interesse em evidenciar as formas pelas quais os discursos

sociais constroem representações de gênero que determinam como devem ou não agir

mulheres e homens na sociedade. Motivados pelos estudos sobre representações

femininas desenvolvidos na graduação, através dos discursos das músicas de massa,

investigamos nesta dissertação mais uma tecnologia de gênero que procura instaurar

uma sociedade hierarquizada e dividida em pólos opostos, masculino e feminino. A

literatura de autoajuda apareceu por acaso em nossas mãos e mostrou-se bastante

instigante frente às leituras e pesquisas efetuadas anteriormente. Com esses

pressupostos tornou-se uma fonte de pesquisa rica em dados, o que nos permitiu fazer

uma análise que contemplou várias instâncias da vida social. Estudar mulheres, gênero e

feminismo, não se constituiu aqui apenas em um processo para a obtenção de um título

acadêmico, mas também para um processo de conhecimento e crescimento pessoal. Fica

a vontade de que esse texto possa contribuir para que outras pessoas possam também se

compreender como integrantes de um processo histórico, independente de seu sexo,

gênero ou opção sexual.

Não é preciso procurar muito para encontrarmos diversos discursos que estão a

todo o momento definindo maneiras de como ser homem e como ser mulher. Essas

pedagogias sexuais estão presentes desde os primeiros ensinamentos dados às crianças

nas escolas até os preparativos para o casamento visto como ponto alto da vida adulta.

Os feminismos, que emergiram com mais força na década de 1960, procuraram

desconstruir os papéis tradicionalmente fixados de forma hierárquica para os sexos.

Muitas mudanças podem ser verificadas, as mulheres gozam de mais liberdade de

escolha, têm mais espaço no mercado de trabalho, e podem escolher identidades outras

que não passam pelo crivo da maternidade, do matrimônio, e da vida doméstica. Apesar

dessas mudanças ainda não serem vistas amplamente, foram extremamente importantes

e modificaram a configuração das famílias e da sociedade.

Nesse contexto, em pleno século XXI, encontramos manuais de comportamento

que sugerem a volta ao modelo patriarcal de família e de ser mulher na sociedade

contemporânea. A literatura de autoajuda é um produto cultural comercializado em

larga escala, e se enquadra na categoria de literatura de massas, possui um alto índice de

vendagens fazendo com que seus discursos circulem para um grande número de

129

pessoas. Analisamos aqui os livros: Por que os homens mentem e as mulheres choram?

e Por que os homens fazem sexo e as mulheres fazem amor? dos autores Allan e

Barbara Pease. Também o livro Por que os homens amam as mulheres poderosas? da

escritora Sherry Argov. Esses três livros aparecem entre os livros de autoajuda mais

vendidos no Brasil no período de 2000 a 2010.

Para o desenvolvimento da pesquisa utilizamos como metodologia a Análise do

discurso, que nos foi muito útil, pois permitiu abrir as camadas sedimentadas do

discurso da autoajuda. Buscamos, nos sentidos produzidos pelos livros sobre as

mulheres, discursos que se apóiam em outros discursos, e ao longo da história

construíram uma imagem de mulher essência, aquela que se enquadra nos ideais da boa

esposa e da boa mãe.

Os estudos de gênero serviram de base para nossas análises, através deles

percebemos o caráter construído dos papéis sociais destinados a homens e mulheres. A

literatura de autoajuda defende a idéia de que cada sexo possui um lugar definido na

sociedade, e as características dessa definição provêm da evolução biológica dos seres

humanos. Como vimos, Allan e Barbara Pease afirmam que os comportamentos dos

homens e mulheres da atualidade são baseados nas necessidades básicas de seus

ancestrais. Dessa forma, os homens eram os caçadores, saiam de suas casas para trazer o

sustento para a mulher e sua prole. As mulheres eram segundo os autores, as guardiãs da

cria, ficavam nas cavernas cuidando dos filhos e da organização da casa. Através dessa

matriz de comportamento, os autores definem uma série de outros comportamentos para

os indivíduos na atualidade.

A intenção do casal Pease é fornecer saídas para que os casais se entendam em

seus relacionamentos. A década de 1960, a revolução sexual e os movimentos

feministas são o marco em que os autores localizam o desarranjo nos papéis tradicionais

de mulheres e de homens. Segundo os autores, quando as mulheres passaram a gozar de

mais liberdade, e de terem carreiras profissionais, não dependiam mais exclusivamente

dos homens para lhes fornecer o sustento. Nas palavras dos autores, os homens não

eram mais necessários. Dessa forma, defendem que a compreensão das diferenças é a

solução para os casamentos e a reconstrução do ideal de família.

Que o corpo biológico de homens e mulheres é diferente não temos nenhuma

dúvida, no entanto, essas diferenças são nocivas quando servem de bandeira para as

130

desigualdades. A literatura de autoajuda escrita pelo casal Pease, reforça as

desigualdades de gênero, definindo as mulheres enquanto seres inferiores e frágeis

diante do poder absoluto e natural dos homens. Esses livros objetivam implantar

novamente uma sociedade dividida em polos opostos, em que um é o dominador e o

outro o dominado. Seu discurso pretende enclausurar as mulheres no mundo privado,

guardadas pelas paredes do lar. Definidas pelas funções do seu útero, a literatura de

autoajuda prega que as mulheres desenvolvam atividades relacionadas à sua condição

natural de mãe, atividades em que possam cuidar do outro, zelar pelo bem estar, dar

amor e carinho, mesmo em um ambiente profissional.

Sherry Argov escreveu um livro direcionado às ditas “mulheres boazinhas” que,

segundo ela, seriam as mulheres sempre à disposição dos homens e sem amor próprio.

Em lugar disso, ela propõe um novo modelo de mulher: a poderosa. No decorrer do

livro a autora apresenta situações do cotidiano demonstrando as formas certas e erradas

de agir. Sobre as diferenças sexuais, Argov se fundamenta nos mesmos argumentos do

casal Pease, sobre a teoria dos ancestrais. A mulher poderosa que a autora apresenta é

uma mulher moderna, independente, dona da própria vida. No entanto, quando

analisamos o livro percebemos um quadro bem diferente. A mulher descrita por Argov é

uma mulher conformada com sua condição de submissão, e a consciência de sua

situação faz com que ela tenha atitudes submissas proporcionando assim a harmonia do

casal. A mulher poderosa conhece o funcionamento da mente dos homens, e busca

garantir que seu ego e sua masculinidade não sejam afetados. Seu poder está em saber

dar ao homem o seu lugar.

Em todos os livros que analisamos, as mulheres estão relacionadas ao mundo dos

sentimentos, são amorosas e dependem dos relacionamentos com seus parceiros para se

sentirem completas. O casamento aparece como um desejo de todas e é uma espécie de

objetivo de vida. A maternidade por sua vez é o elemento definidor do sentido da vida

feminina, todas as suas outras características provêm do instinto materno. Os homens

são representados como troféus, embora a literatura de autoajuda também crie para eles

modelos de comportamento ideais, também os constitua em identidades que não se

sustentam mais, delegam a eles todo o poder nos relacionamentos. Mesmo sendo escrita

no século XXI, essa literatura define os homens como o chefe, a cabeça da casa, o

provedor, o centro das relações amorosas e de família.

131

Outra questão importante a se assinalar é a universalização dos comportamentos

por parte dos autores analisados. Ou seja, homens e mulheres são iguais, em qualquer

lugar do mundo, e em qualquer tempo histórico. Com isso estabelecem uma pretensa

verdade sobre os comportamentos, fazendo com que seus leitores acreditem em suas

proposições e até mesmo utilizem os aconselhamentos oferecidos por eles em seu dia a

dia.

Buscamos analisar neste trabalho a literatura de autoajuda sentimental enquanto

um discurso de contraposição às conquistas históricas dos feminismos. Como podemos

perceber, essa literatura busca o retorno das relações de gênero no termos do

patriarcalismo. Esses livros caracterizam o feminismo como um acontecimento que

desorganizou a ordem natural da sociedade. Fazem parte de uma gama de discursos que

subjetivam as mulheres, oferecem representações baseadas em antigos papéis

tradicionais. No momento histórico em que as mulheres lutam por mais conquistas, e

para efetivar as já adquiridas, vemos um tipo de tecnologia de gênero buscando o

retrocesso.

O percurso que fizemos neste trabalho demonstrou uma construção histórica dos

discursos sobre as mulheres. Como vimos, desde o século XIX, a literatura trabalhava

para moldar o comportamento feminino, através de romances e manuais de casamento

ensinava as moças a melhor forma de agir, em busca de um relacionamento feliz, uma

vez que o maior objetivo da vida das mulheres era o matrimônio. Com o advento do

feminismo, com a coragem de mulheres que lutaram pelos seus direitos, tais mulheres

ganharam mais visibilidade enquanto sujeito político. As reivindicações das feministas

ecoaram em diversos meios, e aos poucos os discursos sobre as mulheres e as

possibilidades de atuação na sociedade foram se modificando. A literatura de autoajuda

nos mostrou que ainda há muito caminho a seguir em busca de uma sociedade que

realmente trate homens e mulheres de forma igualitária.

As fontes que analisamos fazem parte de uma série de discursos que buscam a

subjetivação das mulheres em seres delicados, dóceis e submissos. Ignoram as

consequências maléficas das desigualdades de gênero instaladas através das diferenças

sexuais. Através de seu discurso prescritivo, guiam as mulheres para uma vida de

coadjuvante na sociedade, garantindo o papel principal para os homens, perpetuando

uma sociedade injusta nas relações entre os sexos.

132

Gostaríamos de demonstrar neste trabalho uma história diferente, uma história

apenas de lutas e conquistas das mulheres. O tema deste trabalho poderia ser a forma

como as mulheres estão bem colocadas na sociedade, já longe das opressões de outrora,

longe das prisões em torno de seu corpo, das representações obrigatórias. Seria

gratificante escrever sobre a liberdade que todas gozam nesse início de século XXI. No

entanto, nos defrontamos com mecanismos de submissão ainda vivos, e se reinventando

a cada dia. Porém nossa intenção não é apenas mostrar como as mulheres sofrem, como

são injustiçadas. Pelo contrário, nossa intenção é mostrar que as mulheres ainda têm

muitos caminhos a percorrer, embora essas tecnologias de gênero se alastrem de forma

assustadora.

Nesta pesquisa reiteramos as palavras de finalização do nosso trabalho

monográfico anterior a essa dissertação. A sociedade necessita de mecanismos que

revertam a situação das mulheres, que criem nelas uma consciência de seus direitos

enquanto ser humano, que não sejam vistas ou julgadas apenas como sexo biológico,

mas agentes de suas próprias histórias, libertas das relações de poder que subjugam sua

própria existência.

133

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