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DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO Centro de Educação e Humanidades
Instituto de Letras
Reitor Ricardo Vieiralves de Castro Vice-Reitora Paulo Roberto Volpato Dias Sub-Reitora de Graduação Lená Medeiros de Menezes Sub-Reitora de Pós-Graduação Monica da Costa Pereira L. Heilborn Sub-Reitora de Extensão e Cultura Regina Lúcia Monteiro Henriques Diretor do C. de Educação e Humanidades Glauber Almeida de Lemos Diretora do Instituto de Letras Maria Alice Gonçalves Antunes Vice-Diretora do Instituto de Letras Tania Mara Gastão Saliés
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CATALOGAÇÃO NA FONTE UERJ/REDE SIRIUS/NPROTEC
I19 Idioma / Centro Filológico Clóvis Monteiro. Ano 1, n.1 (jun. 1981) - - Rio de Janeiro: UERJ,
Instituto de Letras, Centro Filológico Clóvis Monteiro, 1981 - . v. Semestral. Periodicidade irregular 1981-2012. ISSN 1414-0837 (impresso) | ISSN 2317-5400 (eletrônico)
1. Filologia – Periódicos. 2. Língua portuguesa – Periódicos. I. Centro Filológico Clóvis Monteiro.
CDU 801
IDIOMA Nº 27, 2º semestre de 2015 ISSN 1414-0837 (impresso) | ISSN 2317-5400 (eletrônico) CONSELHO CONSULTIVO Antônio Martins de Araújo – UFRJ / ABF Benjamin Abdala Júnior – USP Bertha Rojas López – Universidad Nacional del Centro del Perú Bethânia Mariani – UFF Bruno Bassetto – USP Castelar de Carvalho – UFRJ / ABF Claudio Cezar Henriques – UERJ Cristina Rigoni – UNIRIO Darcilia Marindir Pinto Simões – UERJ Dieter Messner – Universidade de Salzburgo Dora Riestra – Universidad Nacional del Comahue Edwaldo Machado Cafezeiro – UFRJ Evanildo Bechara – ABL / ABF Ieda Maria Alves – USP Iremar Maciel de Brito – UERJ
Luiz Cláudio de Medeiros – UFRRJ Magda Bahia Schlee Fernandes – UERJ Maria Aparecida Lino Pauliukonis – UFRJ Maria Teresa Gonçalves Pereira – UERJ Mariângela Rios de Oliveira – UFF Marina Machado Rodrigues – UERJ Mário Eduardo Viaro – USP Monica Rector – University of Noth Carolina, Chapel Hill Nadiá Paulo Ferreira – UERJ Ofélia Paiva Monteiro – Universidade de Coimbra Regina Silva Michelli – UERJ Sérgio Nazar David – UERJ Vania Lucia Rodrigues – Dutra – UERJ Victor Quelca – Universidad Autônoma René Moreno
CONSELHO EDITORIAL Profª. Drª. Claudia Amorim Prof. Dr. Claudio Cezar Henriques Profª. Drª. Cynthia Elias de Leles Vilaça Profª. Drª. Denise Salim Santos Prof. Dr. Flávio de Aguiar Barbosa Prof. Dr. Marcelo Moraes Caetano Profª. Drª. Tania Maria Nunes de Lima Camara EDITORAÇÃO E REVISÃO Elir Ferrari Mislene das Neves Firmino ENDEREÇO PARA CORRESPONDÊNCIA Rua São Francisco Xavier, 524, 11º andar, Maracanã, Rio de Janeiro, RJ – CEP 20559-900 A MATÉRIA DA COLABORAÇÃO ASSINADA É DA RESPONSABILIDADE DOS AUTORES NIHIL SINE LABORE
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO .............................................................................................................................. 118
Artigos
NORMA-PADRÃO E VARIAÇÃO LINGUÍSTICA NOS “CONSULTÓRIOS” GRAMATICAIS DOS SÉCULOS XX E XXI Claudia Moura da Rocha ...................................................................................................................
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A VARIAÇÃO TERMINOLÓGICA NO CONTEÚDO SOBRE PRODUÇÃO TEXTUAL PARA O ENSINO MÉDIO Camille Roberta Ivantes Braz e Cimélio Senna Vasconcelos da Silva .................................................
141
DIRETRIZES GRAMATICAIS NO PROCESSO DE ENSINO/APRENDIZAGEM DE PORTUGUÊS PARA ESTRANGEIROS Adriana Albuquerque ........................................................................................................................
160
BANCOS DE DADOS SOCIOLINGUÍSTICOS EM PORTUGUÊS Edila Vianna da Silva .........................................................................................................................
168
COMUNIDADES VIRTUAIS, COMUNIDADES LINGUÍSTICAS Carmen Pimentel ..............................................................................................................................
181
“POIS ENTÃO NÃO VÊS QUE É UM SONHO, UMA MENTIRA ATROZ A LIBERDADE DO CORAÇÃO?” sobre o amor em um soneto desprezado por Florbela Espanca Henrique Marques Samyn .................................................................................................................
199
CRÍTICA TEXTUAL / ECDÓTICA: O PROBLEMA DAS EDIÇÕES INFIÉIS breves notas para a história dos cursos de Letras no Brasil Maximiano de Carvalho e Silva .........................................................................................................
209
REFLEXOS DA ABOLIÇÃO DA ESCRAVATURA EM TEXTOS LEXICOGRÁFICOS DO SÉCULO XIX Laura do Carmo .................................................................................................................................
230
Normas para publicação de artigos ....................................................................................................
241
IDIOMA, Rio de Janeiro, nº. 29, p. 118, 2º. Sem. 2015 | 118
APRESENTAÇÃO
Entregamos aos pesquisadores de Letras o número 29 da Revista IDIOMA, com novidades para os estudos
de Língua, Literatura e Filologia Portuguesa.
Em Língua Portuguesa, Claudia Rocha investiga os consultórios gramaticais, comparando autores que
prestaram esse serviço no início do século XX e na virada dos séculos XX-XXI. Seu intento é verificar até que ponto
conhecimentos sobre a variação linguística e a própria norma-padrão influenciam nas posturas linguísticas dos
consultores contemporâneos. Camille Braz e Cimélio Silva dedicam-se à observação de como as diretrizes dos
Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio são aplicadas em livros didáticos e provas de vestibular, no
que diz respeito à teoria dos gêneros e a suas abordagens no ensino de produção de textos. Adriana Albuquerque
também se ocupa do ensino de língua portuguesa, mas a alunos estrangeiros. Tendo em vista a Gramática Funcional
do Discurso e também a Gramática Tradicional, ela trata do ensino de tempos verbais, com vistas a desenvolver o
discernimento do professor quanto à seleção de conteúdos e a sua apresentação em sala de aula. Já Edila Viana nos
apresenta um levantamento preliminar de corpora linguísticos em português. Essa apresentação, que inclui a história
dos projetos em cujo escopo os corpora foram coletados, é do interesse de todos os que busquem em uma visão
ampla das variedades da língua portuguesa. Carmen Pimentel, por sua vez, trata do desenvolvimento de novas
comunidades linguísticas a partir das possibilidades cada vez mais diversificadas de comunicação em redes virtuais.
Tais recursos, com os quais suplantam-se barreiras espaciais e temporais, geram formas próprias de interação e
comportamento linguístico, estudadas pela autora.
Em Literatura Portuguesa, Henrique Samyn propõe uma leitura do soneto Anseios, de Florbela Espanca. O
poema nunca foi publicado em livro e sua análise é desenvolvida considerando excertos da correspondência da
poetisa, que são elucidativos de suas concepções do amor e do sentido fundamental das relações amorosas.
Em Filologia Portuguesa, Maximiano de Carvalho nos oferece informações históricas a respeito dos cursos
de Letras no Brasil e da consolidação da Crítica Textual na formação em Letras. Adicionalmente, apresenta uma
comparação de duas edições de O Cabeleira (Franklin Távora), listando alterações feitas entre elas e demonstrando
a importância de selecionar edições confiáveis para leitura. Laura do Carmo examina a inserção de conteúdos
relacionados à abolição da escravidão em dicionários de língua portuguesa do século XIX, demonstrando em sua
pesquisa metalexicográfica como verbetes relacionados a modificações sociais no Brasil repetidamente revelam
posicionamentos críticos de seus redatores.
Boa leitura a todos!
Prof. Dr. Flávio de Aguiar Barbosa Profª. Drª. Claudia Amorim Organizadores
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NORMA-PADRÃO E VARIAÇÃO LINGUÍSTICA NOS “CONSULTÓRIOS” GRAMATICAIS DOS SÉCULOS XX E XXI
Claudia Moura da ROCHA1
RESUMO Não é prática recente os falantes buscarem respostas para suas dúvidas sobre a língua nos chamados “consultórios” gramaticais (que podem ser colunas de jornais e, atualmente, sites da internet). Os responsáveis por tais colunas ou sites, pela aceitação que recebem, são investidos de autoridade para responder às questões apresentadas, tirando as dúvidas dos leitores sobre a própria língua. Não obstante essas colunas possuam seus méritos, pois colocaram novamente a língua portuguesa em destaque nos meios de comunicação de massa (seus autores prestam consultoria a canais de televisão, apresentam programas televisivos sobre a língua portuguesa, mantêm colunas em sites na internet), algumas ressalvas podem ser feitas a elas. Uma delas é a inobservância da variação linguística e das contribuições de estudos linguísticos. O presente artigo busca comparar alguns autores do início do século XX (Mário Barreto e Heráclito Graça) com outros que se destacaram na transição dos séculos XX e XXI (Sérgio Nogueira Duarte e Pasquale Cipro Neto) por se dedicarem a tirar dúvidas dos falantes sobre a norma-padrão da língua portuguesa. Nosso intento é verificar se houve mudanças significativas no tratamento do conteúdo linguístico por parte deste último grupo de autores (transição dos séculos XX e XXI), em virtude do desenvolvimento de estudos científicos no campo da Linguística (como a Sociolinguística, por exemplo). Nosso referencial teórico são os estudos de Faraco (2002; 2008) sobre a norma-padrão. PALAVRAS-CHAVE: Norma-padrão. Variação linguística. Consultórios gramaticais.
RESUMEN No es práctica reciente los hablantes buscaren respuestas para sus dudas acerca de la lengua en los llamados “consultorios” gramaticales (que pueden ser columnas de periódicos y, actualmente, sitios de la internet) para esclarecer sus dificultades. Los responsables por esas columnas o sitios, por la aceptación recibida, son considerados autoridades para responder a las cuestiones presentadas, esclareciendo las dudas de los lectores acerca de la propia lengua. Aunque esas columnas posean sus méritos, en vista de que colocaron nuevamente la lengua portuguesa en posición destacada en los medios de comunicación de masa (sus autores dan consultoría a canales de televisión, presentan programas televisivos sobre la lengua, mantienen columnas en sitios de la internet), algunas restricciones pueden ser hechas con respecto a ellas. Una de ellas es la inobservancia de la variación lingüística y de las contribuciones de los estudios lingüísticos. El presente artículo intenta comparar algunos de los autores del inicio del siglo XX (Mário Barreto y Heráclito Graça) con otros que se destacaron en la transición de los siglos XX y XXI (Sérgio Nogueira Duarte y Pasquale Cipro Neto) por se dedicaren a esclarecer dudas de los hablantes acerca de la lengua portuguesa estándar. Nuestro intento es verificar se hubo cambios significativos en el tratamiento del contenido lingüístico por parte de esto último grupo de autores (transición de los siglos XX y XXI), en virtud del desarrollo de estudios científicos en el campo de la Lingüística (como la Sociolingüística, por ejemplo). Nuestro referencial teórico son los estudios de Faraco (2002; 2008) acerca de la lengua estándar. PALABRAS CLAVE: Lengua estándar. Variación lingüística. Consultorios gramaticales.
1 Doutora em Língua Portuguesa (UERJ). Professora Adjunta do Depto. de Língua Portuguesa da UERJ. Professora da Pós-graduação
Lato Sensu em Língua Portuguesa da Faculdade de São Bento do Rio de Janeiro. Professora do Ensino Fundamental da rede municipal do Rio de Janeiro.
Norma-padrão e variação linguística nos “consultórios” gramaticais dos séculos XX e XXI
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INTRODUÇÃO
Quando se trata de língua, a grande maioria de seus usuários, apesar de utilizá-la em suas diferentes
variedades, não costuma enxergá-la em sua diversidade. Quando falam de língua, muitas vezes os falantes estão
se referindo a uma dessas variedades: a norma-padrão. Preferimos o termo norma-padrão devido às implicações
que a expressão norma culta gera (poder-se-ia pensar numa oposição com norma inculta, por exemplo;
dificilmente o falante associa a palavra culta à ideia de cultura escrita — cf. FARACO: 2002, p. 39-40).
Faraco afirma que o processo de padronização (que visa à unificação e à estabilização linguística)
gerou essa associação entre o padrão e a língua:
[...] o processo de padronização teve, historicamente, um curioso efeito — o de aproximar, no imaginário das comunidades linguísticas, o padrão e a língua. Desse modo, é o padrão que passa a constituir a referência com a qual os falantes (ou, pelo menos, aqueles grupos sociais que operam mais diretamente com ele) dão sentido à realidade linguística. Atribui-se à língua, por esse viés, um caráter homogêneo, o que redunda em tratar a variação e a mudança linguísticas como desvios, como erros, como não língua. É-lhes, no fundo, incompreensível aquilo que se depreende dos estudos científicos sistemáticos dos últimos duzentos anos: uma língua só existe como um conjunto de variedades (que se entrecruzam continuamente) e a mudança é um processo inexorável (que alcança todas as variedades em múltiplas direções). (FARACO: 2002, p. 44)
O que ocorre é que, quando os falantes apresentam uma dúvida sobre seu próprio idioma, esperam
uma resposta única, geralmente relacionada a esta modalidade padrão. O falante espera por definições do que
é “certo” ou “errado”, jamais o “talvez”. Por exemplo, quando um usuário da língua pergunta se uma construção
sintática como “Ele assiste o jogo” está correta, a resposta esperada é “Não”, pois o verbo assistir, transitivo
indireto, exige um complemento preposicionado. No entanto, em decorrência dos avanços nos estudos
linguísticos, principalmente na área da Sociolinguística, por exemplo, sabemos que tal construção é aceita e
empregada em determinadas variedades linguísticas.
Contudo, o falante anseia por respostas objetivas e diretas sobre seu idioma (o “certo” ou o “errado”),
ignorando, como dissemos, algumas contribuições que os estudos linguísticos têm oferecido. Esse
desconhecimento não é culpa dos falantes, mas ocorre porque muitas pesquisas têm se restringido ao universo
acadêmico.
Também é preciso lembrar que o desconhecimento de tais avanços nos estudos linguísticos leva uma
boa parcela da população a pensar que não sabe falar a própria língua, pois sua maneira de se expressar, muitas
vezes, é diferente da modalidade padrão. Na verdade, como considera a língua um fenômeno homogêneo,
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uno, sem nuances ou variações, acredita que seu desempenho verbal se afasta muito desse modelo abstrato de
língua (modalidade padrão). O falante não considera que a língua pode ser empregada de formas diferentes
(variedades linguísticas), nem que deve se adequar a cada situação nova, empregando a modalidade linguística
mais adequada a ela (não se fala com o pai da mesma forma que se fala com um futuro empregador).
Outro fato que muitas vezes é desconsiderado é a variação que a língua sofre com o decorrer do
tempo. A língua não é, como já vimos anteriormente, uma entidade imutável ou invariável, mas, para boa
parcela da população, essas possibilidades de mudança (no tempo e no espaço) também passam despercebidas
ou são consideradas como índice de decadência ou degeneração linguística (cf. FARACO: 2002, p. 49). Ao
contrário, segundo Cunha (1994, p. 29), “a estagnação [...] é a morte do idioma. A história de uma língua é
justamente a história de suas inovações”.
1. “CONSULTÓRIOS” GRAMATICAIS DOS SÉCULOS XX E XXI
Há muito que os falantes buscam respostas para suas dúvidas sobre a língua nos chamados
“consultórios” gramaticais (que podem ser colunas de jornais e, atualmente, sites da internet) para sanar suas
dificuldades. Os responsáveis por tais colunas ou sites, pela aceitação que recebem, são investidos de
autoridade para responder às questões apresentadas, tirando as dúvidas dos leitores sobre a própria língua.
Também poderíamos chamá-los de “comentadores gramaticais” (cf. FARACO: 2008, p. 49-50).
Segundo Faraco (2002, p. 52), possivelmente o criador dessas colunas foi o gramático português
Cândido de Figueiredo, que, no fim do século XIX e começo do século XX, tratava de questões linguísticas em
jornais tanto de Lisboa como do Rio de Janeiro.
Cândido de Figueiredo era ferrenho defensor do vernaculismo e do purismo linguístico, reforçando a
dicotomia certo X errado:
Em sua coluna, se dedicava ele, no melhor espírito inquisitorial, a caçar “erros” de língua em toda parte e a condenar furiosamente os falantes por sua suposta ignorância linguística e pelo descuido e descaso das questões vernáculas. (FARACO: 2002, p. 52)
E, indo ao encontro das expectativas de seus leitores, suas respostas sempre apontam o “certo” e o
“errado”, não havendo espaço para variações decorrentes do tempo, do espaço ou da situação. Portanto, de
acordo com essa visão, depreende-se que a língua é um fenômeno homogêneo e imutável.
Esses profissionais costumam ser bem aceitos pela população, pois esclarecem, do alto de sua
autoridade, as perguntas sem deixar margem para dúvidas (uma construção é “certa” ou é “errada”, não
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havendo meio termo). Respondem de forma objetiva, não gerando mais dúvidas na mente do falante, que não
tem tempo ou interesse em discussões linguísticas.
Essas colunas possuem seus méritos, pois colocaram novamente a língua portuguesa em destaque nos
meios de comunicação de massa (seus autores prestam consultoria a canais de televisão, apresentam programas
televisivos sobre a língua portuguesa, mantêm colunas em sites na internet), mas algumas ressalvas podem ser
feitas a elas. Uma delas é a inobservância da variação linguística e das contribuições de estudos linguísticos.
Segundo Faraco (2002, p. 53-54),
Sem muita exceção, esses conselheiros gramaticais deixam transparecer um espantoso desconhecimento da história da língua e da realidade linguística nacional; operam sem distinguir devidamente a fala culta do padrão; e, pior, tentam impor um absurdo modelo único, anacrônico e artificial de língua com base no padrão estipulado nos compêndios gramaticais excessivamente conservadores. Sustentam-se no danoso equívoco de que o padrão é uma camisa de força que não conhece variação, nem mudança no tempo. Mantém-se incólume, portanto, seu vício de origem, isto é, o velho substrato inquisitorial e dogmático. Apesar disso, há, neste novo ciclo das colunas gramaticais, algumas diferenças apreciáveis em relação ao passado.
2. CORPUS ANALISADO
O presente artigo busca comparar alguns autores do início do século XX com outros que se destacaram
nas últimas décadas do mesmo século e no início do XXI, por se dedicarem a tirar dúvidas dos falantes sobre a
norma-padrão da língua portuguesa. Nosso intento é verificar se houve mudanças significativas no tratamento
do conteúdo linguístico por parte deste último grupo de autores (transição dos séculos XX e XXI), em virtude do
desenvolvimento de estudos científicos no campo da Linguística (como a Sociolinguística, por exemplo).
Os autores dos dois grupos (tanto do início do século XX, como do período de transição) foram
escolhidos por responderem a dúvidas dos leitores, em colunas de jornais ou em publicações destinadas a
esclarecer dificuldades sobre a língua. Analisaremos os autores Mário Barreto e Heráclito Graça (início do
século XX) e Sérgio Nogueira Duarte e Pasquale Cipro Neto (período de transição entre os séculos XX e XXI).
Buscamos analisar a postura dos autores diante do mesmo fato linguístico. Pretendemos também
verificar a noção de norma-padrão que está subjacente a esse posicionamento.
Comecemos por Mário Barreto que, assim como Heráclito Graça, se insere, segundo a divisão dos
estudos filológicos brasileiros proposta por Sílvio Elia, na primeira geração da segunda fase do período científico,
a de “combate à base normativa de direção vernaculista” (cf. FÁVERO e MOLINA: 2006, p. 48). Ou, ainda
segundo Leodegário A. de Azevedo Filho, os dois autores participam da primeira geração do período filológico
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e linguístico (séc. XX). Fávero e Molina (2006, p. 50) asseveram que “[...] a tônica desse momento é a pesquisa
dos fatos da língua no texto de bons autores, sem qualquer preocupação logiscista [...]”.
Analisaremos a abordagem dada pelos autores a três tópicos da língua: a regência do verbo preferir, a
concordância da palavra meio e da expressão um dos que.
2.1. Preferir
Em seu livro Novíssimos estudos da língua portuguesa (1980a), Mário Barreto esclarece alguns fatos
de língua portuguesa que podem causar dúvidas aos falantes. Um desses tópicos é o emprego do verbo preferir,
que, ao contrário do emprego mais comum (preferir uma coisa do que a outra), pede a construção “prefiro uma
coisa a outra”. O autor começa sua explanação com um exemplo de Rebelo da Silva. No exemplo, Rebelo da
Silva emprega a construção preferir... do que:
O duque de Bragança e o prior do Crato, dir-se-ia, e não sem motivo, que no fundo do coração preferiam beijar a mão ao rei católico do que unidos e unânimes, calando as rivalidades, arrancarem a espada em favor do reino, cuja coroa disputavam. (Tomo II, p. 367) [BARRETO: 1980a, p. 72]
Segue-se a explicação de Mário Barreto, que afirma: “O verbo preferir, como é sabido, constrói-se
com a” (BARRETO: 1980a, p. 72), citando vários exemplos (inclusive do próprio Rebelo da Silva).
Passa a apresentar uma possível explicação para a construção preferir ... do que:
Preferir, construído com que ou do que, só se explica, enquanto a mim, por uma falsa analogia, por influência de outra locução: querer antes. [...] sucede que, por contágio da expressão equivalente querer antes que se constrói com que, também se empregue este vocábulo com o verbo preferir, como fez o douto historiador Rebelo da Silva. (BARRETO: 1980a, p. 73)
Nota-se que há uma tentativa de explicar como a construção sintática se forma (por contaminação
com querer antes), mas, mesmo assim, seguem-se juízos de valor negativos acerca de tal construção: “na
locução viciosa prefiro morrer do que viver”; “A construção pura é: Prefiro morrer a viver [...]”; “Também
Camilo se confundiu empregando o que com o verbo preferir, porque preferir é sinônimo de querer antes”
(BARRETO: 1980a, p. 73).
Outra locução analisada é preferir antes, em que também aponta a influência de querer antes (“Preferir
antes é locução supérflua, pleonasmo escusadíssimo, porque o antes já está implicitamente no preferir: a ideia
de preferência repete-se em antes; pleonasmo, por conseguinte.”) [BARRETO: 1980a, p. 74].
O autor termina sua explanação citando a resposta de Cândido de Figueiredo sobre o assunto:
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[...] à pergunta de se era vernácula a seguinte construção: — “O abutre prefere alimentar-se de carne morta, antes que de presa viva”, respondeu o sr. Cândido de Figueiredo: “Não, senhor. Em português poderia dizer-se: O abutre prefere alimentar-se disto a alimentar-se daquilo. Ou: — O abutre prefere a carne morta à presa viva. Ou: — O abutre antes quer carne morta do que presa viva. (BARRETO: 1980a, p. 74)
Mário Barreto abona suas explicações com exemplos próprios ou de escritores como Rebelo da Silva,
M. Bernardes, Arnaldo Gama, Bocage, Camilo C. Branco, seja para exemplificar o bom uso de preferir, seja
para exemplificar os equívocos.
Faraco esclarece que o recurso aos clássicos era comum entre os gramáticos, mas que só eram
valorizados quando estavam de acordo com o que estes pregavam. Fora isso, também sofriam condenação:
Interessante observar que, naqueles momentos de acirrada polêmica, ficou claro que, para os cultores do códice normativo, a autoridade dos clássicos só valia efetivamente quando seus usos sustentavam as regras inventadas pelos gramáticos. De outro modo, estes não tinham pejo algum em lhes imputar erro — o que mostra bem a complexidade cultural e política da questão do padrão. (FARACO: 2002, p. 53)
Segundo Mattoso Câmara Jr., Mário Barreto, apesar da influência neogramática, emprega abonações
dos clássicos:
Intimamente associado à escola filológica do português europeu, criou um conceito de duas faces, por assim dizer. De um lado, quer uma coerência do presente com as linhas do desenvolvimento histórico da língua, que aquela escola depreendia em termos neogramáticos. De outro lado, numa contradição implícita, vê nos monumentos clássicos um modelo perene. (UCHÔA: 2004, p. 233-234)
Dessa maneira, parece ignorar, ao recorrer aos clássicos eternizados nos
exemplos, a variação por que a língua passa e que ele mesmo reconhecia como legítima.
Passemos a dois autores do final do século XX e início do XXI. Um desses autores,
que respondia pela coluna de dúvidas gramaticais Língua Viva, do Jornal do Brasil, é
Sérgio Nogueira Duarte. Ao abordar a regência do verbo preferir, ele a explica em quatro
linhas, transcritas a seguir:
48. PREFERIR TDI (alguma coisa a outra) – “Prefiro cinema a teatro.” “O carioca prefere ir à praia a trabalhar.” OBSERVAÇÃO: É inaceitável o uso de “do que”: “Prefiro ir à praia do que trabalhar.” (DUARTE: 1998c, p. 24)
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O autor, que não se preocupa em explicar uma possível origem da construção “preferir ... do que”, é
categórico na proibição (“É inaceitável o uso de ‘do que’”), demonstrando, nesse trecho, desconsiderar a
existência das variedades sociolinguísticas.
Emprega dois exemplos próprios para dar sua explicação, não se utilizando de exemplos retirados de
obras de escritores conhecidos. O autor se preocupa em indicar a transitividade verbal — “TDI (alguma coisa a
outra)” —, mas não desenvolve uma discussão sobre o assunto, que é abordado de maneira muito simplista.
Percebe-se que, nesse trecho, para este autor, a língua parece ser um fenômeno rígido e imutável, sem
variedades, que se confunde com a norma-padrão, podendo ser tomada como um sinônimo dela.
Notam-se, assim como percebido em Mário Barreto, juízos de valor pejorativos em relação às outras
construções com o verbo preferir, o que pode ser exemplificado por seu comentário na introdução da obra.
Nesse trecho, reconhece a variedade popular, que, no entanto, é desaprovada:
Observe que não há regras. A regência de uma palavra é um caso particular. Cada palavra pede o seu complemento e “rege” a sua preposição. Ninguém precisa “decorar” que “quem faz referência faz referência ‘a’ alguma coisa” ou “que tem necessidade ‘de’ alguma coisa”. Na verdade, nós aprendemos regência “de ouvido”. O fato de falar, ouvir, ler e escrever em língua portuguesa é o que nos leva a saber qual preposição devemos usar. E aqui está o “perigo”. Nosso ouvido nem sempre está “bem-educado”. Existe uma regência na linguagem popular que deve ser evitada em textos formais, em situações que exijam uma linguagem mais cuidada, mais clássica. O uso do verbo PREFERIR é um “belo” exemplo disso. É frequente ouvirmos: “Prefiro muito mais ir na praia do que trabalhar”. Temos aqui um festival de asneiras. A primeira é a mania de “preferir mais”. Você já viu alguém “preferir menos”? Isso significa que “preferir mais” é uma redundância. E “preferir muito mais” é “uma asneira muito maior”. [...] Finalmente, o terceiro erro: a regência do verbo PREFERIR. Quem prefere sempre prefere alguma coisa “a” outra coisa. É um verbo transitivo direto e indireto. Devemos observar que o objeto indireto deve vir com a preposição “a”. O uso de “do que” é característico da regência popular, e devemos evitar em textos formais que exijam uma regência clássica. Em textos nos quais se exija uma linguagem mais cuidada, devemos usar: “Prefiro ir à praia a trabalhar”. (DUARTE: 1998c, p. 8-9)
Pasquale Cipro Neto, o autor da coluna gramatical Ao pé da letra (publicada pelo jornal O Globo),
também comenta a regência do verbo preferir. Ele classifica o verbo de “problemático”. Vejamos o porquê:
Norma-padrão e variação linguística nos “consultórios” gramaticais dos séculos XX e XXI
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E o verbo “preferir”, já tratado no texto 5, fascículo 2? É outro problemático. No Brasil, há muito tempo a regência “real” é “preferir uma coisa do que outra”, ou “preferir mais (ou “muito mais”) uma coisa do que outra”. (CIPRO NETO: 2002, p. 155)
Cipro Neto continua sua explicação, citando o fato de o dicionário Houaiss mencionar o uso brasileiro
e apresentar alguns exemplos literários clássicos (tanto de autores brasileiros quanto de portugueses) em que se
verifica essa construção. No entanto, segundo ele, na mesma obra é afirmado que tal construção não é aceita
na língua culta. O autor prossegue tratando da abordagem que outra obra de referência para a língua portuguesa
dá ao tema. Segundo ele, o dicionário Aurélio “nem toca no assunto. Registra apenas o que se considera correto
em linguagem formal (“preferir uma coisa a outra”).” (CIPRO NETO: 2002, p. 155)
A seguir, assim como Mário Barreto, explica a etimologia do verbo e a possível influência que gostar
mais ... do que tem sobre a regência “real”, a que realmente é empregada pela maioria dos falantes. Contudo,
segundo o autor, “isso explica, mas não abona” (CIPRO NETO: 2002, p. 155).
Cita ainda Celso P. Luft:
O linguista Celso Luft, considerado progressista, depois de dar a regência padrão (“preferir uma coisa a outra”), dá exemplos de abonações literárias da sintaxe oral “preferi-lo (do) que” e afirma que o linguista Antenor Nascentes, que rastreia essa sintaxe nos clássicos (Bernardes, Garrett, Camilo) e em outras línguas (grego, latim, alemão), conclui “que não há erro nenhum nas expressões ‘preferir antes’ e ‘preferir do que’. (CIPRO NETO: 2002, p. 155)
Entretanto, segundo Cipro Neto, Luft não defende a legitimidade de construção tão comum entre os
brasileiros, cabendo a construção “preferir algo ... a” no emprego da linguagem culta formal (CIPRO NETO:
2002, p. 155).
O referido autor termina sua explicação enfatizando o prestígio da norma-padrão:
Pois é, roda, roda, roda, mas... Em textos formais e, sobretudo, em provas de português que resolvam sua vida, seu futuro profissional, sua carreira, não hesite: use a regência padrão. (CIPRO NETO: 2002, p. 155)
Como se percebe, Pasquale Cipro Neto não utiliza citações literárias, mas recorre a abonações de
gramáticos conhecidos, como Celso Pedro Luft, e de obras de referência, como os dicionários Houaiss e Aurélio,
a fim de dar credibilidade a seu ponto de vista (a defesa da norma-padrão).
Apesar de apresentar uma abordagem mais ampla e de reconhecer a variação linguística (reconhece
a regência “real” e a padrão, modelar), o autor, ao final da explicação, revela sua posição: valorização da
norma-padrão em relação às outras (o falante deve, em situações formais, empregar a regência padrão).
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Ao contrário de Nogueira Duarte, que é sucinto e objetivo, sem apelar para citações de autores
literários ou abonações de gramáticos e dicionaristas, Cipro Neto emprega parte desse aparato (abonações de
gramáticos e dicionários) para conferir legitimidade à sua explicação. Enquanto o primeiro é categórico, o
segundo, apesar de reconhecer a existência da variação linguística (fato que o primeiro não ignora
completamente por reconhecer a “linguagem popular”, apesar de não valorizá-la, parecendo considerar a
língua uma realidade una e homogênea), não a legitima, pois enfatiza o prestígio social da regência padrão,
como se a regência “real” não existisse. Apesar de ser o uso “real”, o autor não o reconhece como passível de
ser prestigiado em algumas situações linguísticas.
Nogueira Duarte assume uma postura, de certa maneira, menos flexível (ou é “certo” ou é “errado”),
dogmática, que não é explicitamente seguida por Cipro Neto. Este, a princípio, conversa com o leitor e recorre
à existência de outros pontos de vista para, no final, assumir um discurso dogmático.
2.2. Meio
Em Novos estudos da língua portuguesa (1980b), Mário Barreto aborda o emprego do vocábulo meio,
ora como advérbio, ora como adjetivo. Explica que há, sem prejuízo de sentido, uma equivalência entre meio
e meia em função adverbial:
São expressões que, sem alteração de sentido, se podem empregar umas pelas outras as seguintes: Ela está cansada, fraca e meio doente, ou meia doente; a pomba voava muito alto, ou voava muito alta; queria vender caro a sua vida, ou vender cara a sua vida, etc. A forma adjetiva (meia por meio, alta por alto, cara por caro), tem exatamente o mesmo valor do advérbio, sem embargo da concordância. (BARRETO: 1980b, p. 263)
O autor reconhece que adjetivos em função adverbial (a de modificar adjetivos e qualificar verbos)
devem permanecer invariáveis; no entanto, justifica que outro tipo de concordância pode ser feito por atração
sintática:
Sabido é que vários adjetivos se prestam ao uso adverbial, modificando adjetivos e qualificando verbos: devem neste caso ficar invariáveis, e sujeitá-los a uma concordância que só lhes compete quando adjetivos, explica-se pelo fenômeno de atração sintática [...]. (BARRETO: 1980b, p. 263)
Cita Camões como exemplo desse emprego:
Verdadeiramente assim é, e assim o exige com os adjetivos adverbiados o rigorismo gramatical; mas graves escritores, — prosistas e poetas como Luís de Camões, o qual disse uns caem meios mortos (Lus., III, oitava 50; item oit. 113), fazem concordar o adjetivo que se adverbializa, ficando assim a palavra adjetivo pela forma, porém advérbio pelo sentido. (BARRETO: 1980b, p. 264)
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Como se percebe, Mário Barreto entende que a forma é de adjetivo (sujeito à sua concordância), mas
a função é de advérbio (“advérbio pelo sentido”).
A seguir, o autor cita, como exemplos de outros adjetivos empregados adverbialmente (havendo a
concordância atrativa ou não), autores como Frei Heitor Pinto, Almeida Garrett, Dom Amador Arráiz, Camilo
Castelo Branco, Rebelo da Silva, Manuel Bernardes, entre outros (BARRETO: 1980b, p. 264-266).
Mário Barreto reconhece essa variação como um fenômeno diacrônico:
MEIO, usado com força de advérbio, encontra-se já variável, já invariável, em muitos exemplos, em todos os tempos da língua: porta meio aberta, e porta meia aberta, olhos meio fechados, e olhos meios fechados. (BARRETO: 1980b, p. 266)
A seguir, transcreve exemplos do castelhano, em que ocorrem os dois tipos de concordância, e de
escritores consagrados da língua portuguesa. Estas citações também abonam os dois empregos: o uso invariável
de meio; meio sendo empregado como palavra variável (“variável, posto que adverbialmente empregado”; cf.
BARRETO: 1980b, p. 267).
É interessante o que Mário Barreto afirma a seguir:
Se não bastam os exemplos que aí ficam, e os leitores querem mais porque nada persuade tanto como exemplos e autoridades, ajuntem aos trechos supracitados os que o sr. Heráclito Graça, filólogo distinto e mui versado nos clássicos, reuniu no seu erudito livro intitulado Fatos da linguagem, no intuito de provar, contra o parecer de Silva Túlio e de Cândido de Figueiredo, dois advogados infatigáveis da vernaculidade, que é lícito usar de meio como adjetivo ou vocábulo adverbial: criança meio nua, uma velha meio cega e surda, os vínculos meio lassos, ou casas meias construídas, a casa está meia feita, estátuas meias carunchosas, etc., mudando a palavra meio de forma, mas não mudando de função: é um advérbio. (BARRETO: 1980b, p. 268)
E ainda:
Tão vernácula é uma maneira de dizer como a outra, e de ambas há exemplos, como vimos, nos autores de boa nota. Além disso, o emprego adjetivo de meio, meia, meios, meias, em frases como as mencionadas, em vez do emprego adverbial de meio, tem a seu favor o voto de filólogos eminentes, como Heráclito Graça, Rui Barbosa e José Leite de Vasconcelos. (BARRETO: 1980b, p. 268)
O autor reconhece a importância de seus pares e a legitimidade decorrente de exemplos, abonações
de autores conhecidos e a opinião de autoridades da língua, por isso cita Heráclito Graça, Rui Barbosa, entre
outros.
E, reiterando o que anteriormente dissera, atribui à atração sintática a justificativa de tal concordância:
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Os adjetivos tomados como advérbios são invariáveis, conservando a terminação masculina. Esta é, sem dúvida, a regra; mas a concordância que em tais casos fazem insignes poetas ou prosistas, tem sua razão de ser no fenômeno sintático que se chama atração. Por atração sintática foi o sr. dr. Leite de Vasconcelos o primeiro em explicar as construções do tipo “gente meia disposta”, casas meias queimadas, termos meios velados”, por alguns indigitadas sem razão como incorretas e vitandas. A atração, em sintaxe, consiste em fazer concordar palavras invariáveis (ou que como tais deviam ser empregadas) com as variáveis, dando-lhes flexão de número e gênero. Assim define a coisa o sr. dr. A. A. Cortesão nos seus preciosos Subsídios para um dicionário completo da ling. portug. Consulte-se também a excelente gramática do mesmo autor (sétima ediç., Coimbra, p. 49, n. 1). (BARRETO: 1980b, p. 269)
Embasado por um cientificismo nascente nos estudos linguísticos, Mário Barreto afirma:
Uma e a mesma palavra — a linguística o prova, e também a simples e elementar observação dos fatos correntes da linguagem — pode ser, segundo os casos, nome, ou adjetivo, ou particípio, preposição, ou conjunção, ou advérbio. Desta variedade de papéis que representa uma idêntica palavra, acabamos de ver um exemplo nos adjetivos que soem converter-se em advérbios. Bem se pudera dizer que não há espécies de palavras. O que há são funções, modos de emprego, e tão somente isso. (BARRETO: 1980b, p. 270)
Além da Linguística, a observação dos “fatos correntes da linguagem” lhe permitia defender tal tipo de
concordância. Em outras palavras, não sustentava suas opiniões apenas em sua autoridade de gramático, mas
também na ciência e no uso efetivo da língua.
Percebemos que a oscilação entre meio, meios, meia, meias era bastante comum naquela época, como
continua a ocorrer atualmente. Também é interessante destacar como algumas dúvidas dos falantes em relação
à própria língua continuam as mesmas, como podemos comprovar a seguir.
Nogueira Duarte, no volume dedicado à concordância nominal, também trata, de forma bastante
resumida, do emprego de meio ou meia:
25. MEIO ou MEIA? Como numeral (= metade), deve concordar: “Tomou MEIO litro de vodca.” “Tomou MEIA garrafa de vodca.” “Tomou uma garrafa e MEIA.” “Leu um capítulo e MEIO.” “São duas e MEIA da tarde.” “É meio-dia e MEIA.”
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OBSERVAÇÃO: Como advérbio (= mais ou menos), é invariável: “A aluna ficou MEIO nervosa.” “A diretoria está MEIO insatisfeita.” “Os clientes andam MEIO aborrecidos.” (DUARTE: 1998a, p. 26)
Notamos que não dá explicações detalhadas, nem recorre a citações de gramáticos ou estudiosos da
língua. É bem verdade que, neste caso, o autor não se pronuncia sobre possíveis erros, portanto, não pode
condená-los (como anteriormente fizera no item referente ao verbo preferir). Emprega novamente exemplos
próprios, sem citar excertos literários ou retirados de jornais e revistas. Sua postura é dogmática, indicando
categoricamente quando o vocábulo deve ser variável ou invariável.
O autor parece ignorar a existência de fatos linguísticos que concorrem entre si (a oscilação entre duas
formas da língua); encara a língua como um fenômeno homogêneo, desconsiderando, portanto, a variação
linguística.
É interessante comparar a sua postura ao analisar os fatos da língua e a escolha do nome de sua coluna
gramatical (Língua Viva). Há uma contradição entre sua forma de analisar e explicar os fatos linguísticos e o
nome escolhido para sua coluna, uma vez que notamos que o autor não considera a língua, pelo tratamento
dispensado a ela, uma entidade viva, que está em constante processo de alteração: em virtude do tempo, do
espaço ou da situação comunicativa.
Pasquale Cipro Neto, em Ao pé da letra (2001), coletânea de textos publicados em sua coluna do
jornal O Globo, aborda o tema de forma mais abrangente do que Nogueira. Vejamos como introduz o assunto:
ELA ESTÁ “MEIO NERVOSA”? OU SERÁ “MEIA NERVOSA”? Você já disse ou já ouviu alguém dizer que uma mulher está “muita cansada”? Ou “muita nervosa”? “Não mexa com ela; ela está muita tensa.” Já disse isso? Já ouviu isso? Certamente, não. Mas “Ela está meia nervosa” você já ouviu. Será que também já não disse? (CIPRO NETO: 2001, p. 59)
Ao contrário de Nogueira Duarte, Cipro Neto se dirige ao leitor e procura com ele interagir, falando
da linguagem do dia a dia:
Na língua do dia a dia, nem sempre os mecanismos impostos pela gramática normativa “pegam”. E esse é o caso da concordância da palavra “meio”: a gramática diz uma coisa, mas o povo faz outra. É bom lembrar que palavra que modifica adjetivo não varia, ou seja, não sofre alteração. Quando se diz “mulher bonita”, “mulher” é substantivo, “bonita” é adjetivo. (CIPRO NETO: 2001, p. 59)
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Quando afirma que “a gramática diz uma coisa, mas o povo faz outra”, apesar de demonstrar
conhecimento das variedades linguísticas, deixa transparecer certo preconceito, um juízo de valor pejorativo,
em relação a essa escolha. O autor, por exemplo, não esclarece o que entende por povo (seria toda a população
ou apenas as camadas mais populares da sociedade?). Além disso, coloca esse mesmo “povo” em oposição à
gramática (na verdade, se refere à norma-padrão), que acaba sendo personificada. Segundo Faraco, essa
personificação da norma-padrão pode ser decorrente da “falta de um conhecimento filológico e linguístico mais
substancial” (FARACO: 2002, p. 54). E afirma que tal prática se presta apenas a mascarar questões mais
pertinentes, evitadas pelos colunistas:
Elevar a norma-padrão a agente é escamotear os processos históricos, políticos e culturais envolvidos no funcionamento social da língua. Por isso, tornar a norma-padrão um ente com existência própria é extremamente favorável aos colunistas: permite a esses autores eludir todo um conjunto de questões da maior relevância para a elucidação dos problemas não triviais que enfrentamos no Brasil com o padrão, desde a compreensão crítica de sua história e as características e sentidos de sua ocorrência social até a crucial questão de quem é responsável por sua descrição e codificação e como se deve proceder para tanto. (FARACO: 2002, p. 54)
Cipro Neto segue com sua explicação:
NOTOU QUE NÃO SE MODIFICA A PALAVRA “MUITO”? Não se modifica justamente porque está vinculada a um adjetivo. Então, se a mulher é “muito nervosa”, só pode ser ou estar “meio nervosa”, “meio cansada”, “meio tensa”, “meio chateada”, “meio preocupada”, “meio esquisita”, “meio confusa”. Na língua do dia a dia, essa concordância não “pegou”. O povo gosta mesmo é de dizer “meia nervosa”, “meia chateada”. E até em escritores clássicos, como Machado e Herculano, há casos semelhantes. Modernamente, de acordo com a gramática normativa, por todas as razões já expostas, não se recomenda o uso de “meia nervosa”. (CIPRO NETO: 2001, p. 59)
Cipro Neto afirma que a “concordância não ‘pegou’” e que “o povo gosta mesmo é de dizer ‘meia
nervosa’”. Dá a entender que a regra gramatical é como uma das leis brasileiras que não são obedecidas, que
não “pegam”. Dessa forma, alça a regra gramatical à condição de lei, como algo que não pode ser questionado,
mas deve ser obedecido. E o povo brasileiro, transgressor, não a segue por que razão? Isso não explica; não
sugere hipóteses, como a de uma possível atração sintática ou a da analogia, apenas afirmando, sem argumentos
plausíveis, que o povo gosta de dizer...
Norma-padrão e variação linguística nos “consultórios” gramaticais dos séculos XX e XXI
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Cita os clássicos, como Machado e Alexandre Herculano, para dizer que tais construções são
encontradas em suas obras, mas isso não o faz legitimar tais construções em determinadas variedades da língua.
Por fim, atribui à gramática normativa a responsabilidade por tal construção não ser recomendada.
Chamamos novamente a atenção para o nome da coluna gramatical (Ao Pé da Letra). A expressão ao
pé da letra significa literalmente, em sentido estrito, à risca, rigorosamente. Podemos perceber que essa
explicação, assim como as outras dadas por Cipro Neto, se atém literalmente, rigorosamente, ao que a gramática
normativa prescreve, ou seja, o falante deve segui-la à risca, como o próprio nome da coluna pode sugerir,
fazendo-nos lembrar do rigor gramatical ou do purismo linguístico.
Analisando sua explicação sobre o emprego de meio ou meia, constatamos que o autor nem sempre
consegue cumprir o que se propõe a fazer na apresentação da coletânea:
Desde 97, tenho um encontro dominical com os leitores de O Globo, em que discuto questões como essa. Tento ir além do limite do “é assim”, “é assado”. Sempre que possível, mostro o porquê dos fatos linguísticos. (CIPRO NETO: 2001, p. 5)
Não queremos desmerecer esses autores que escrevem colunas gramaticais para jornais. Eles
desempenham um papel importante: o de colocar a língua em evidência e de permitir aos leitores que
exponham suas dúvidas; no entanto, não podemos deixar de constatar as contradições e as limitações
encontradas em suas análises dos fatos da língua.
É preciso fazer uma observação sobre a forma como os três autores concebem a concordância de meio
empregado como advérbio. Para Mário Barreto, o fato de funcionar como advérbio não impedia que houvesse
dois tipos de concordância — “MEIO, usado com força de advérbio, encontra-se já variável, já invariável”
(BARRETO: 1980b, p. 266); “meio (variável, posto que adverbialmente empregado)” (BARRETO: 1980b, p. 267).
Percebemos uma mudança de visão em relação aos autores contemporâneos. Estes consideram que meio
funciona como um advérbio, portanto, só pode ser invariável (como todos os advérbios devem ser).
2.3. Um dos que
Tomemos agora a explicação de Heráclito Graça, em seu Fatos da linguagem (2005), para outra dúvida
dos falantes: como fazer a concordância com a expressão “foi um dos que”.
O autor inicia sua explanação apresentando a opinião de Cândido de Figueiredo sobre o assunto. Este
foi autor da coluna “O que se não deve dizer”, publicada no Jornal do Comércio, no início do século XX (cf.
FARACO: 2008, p. 114), ficando conhecido por sua posição vernaculista, em defesa do conservadorismo
linguístico.
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“Fulano foi um dos homens que mais lutou.” Consultado se isto é bom português, respondeu o sr. Cândido de Figueiredo, Lições práticas, I.º v, p.63-64: “Além de mau português, é um disparate gramatical, porque há ali duas orações, a principal; Fulano foi um dos homens; e outra relativa: que mais lutou. Ora, o sujeito desta é o relativo que, e este que refere-se a homens, que está no plural. Logo, só podemos dizer: Fulano foi um dos homens que mais lutaram. E, neste ponto, não há pretexto para a mínima divergência.” (GRAÇA: 2005, p. 283)
A seguir, Heráclito Graça, de forma irônica, salienta que Cândido de Figueiredo se esquecera de suas
próprias lições:
Folgo de confessar que muito me tem esclarecido, em numerosos pontos da linguagem portuguesa, as Lições do sr. Cândido de Figueiredo; mantenho, por isso, gravados na memória certos ditames de s. exa., que hei invocado mais de uma vez nestes artigos, v. g.: antes da gramática existia a linguagem; observando os gramáticos a prática dos bons escritores, dela deduzem regras, exatas quase sempre, mas sempre incompletas. À luz destes salutares princípios que, de quando em quando, não sei por que fatalidade s. exa. olvida, vejo-me forçado a discrepar do seu parecer acerca das frases referidas, não ocultando que alguns gramáticos, por incompleta observação dos fatos, uma das causas mais frequentes de nossos erros, o sufragam, e advertindo que outros o combatem, pela razão de que, ficando no singular o verbo da oração subordinada, não é ofendida a gramática, e perfeitamente se analisam as duas proposições. (GRAÇA: 2005, p. 283-284)
Em outras palavras, Heráclito Graça lembra que Cândido de Figueiredo se esquecera de um fato
primordial: a língua, sendo anterior à existência da gramática, não poderia ser colocada em segundo plano.
Portanto, a gramática existe para espelhar (no sentido de explicitar) os fatos da língua (segundo os padrões da
época, dever-se-ia observar os bons escritores para se fixarem as regras), e não é a língua que deve espelhar o
que a gramática dita. Note-se também que os bons escritores é que devem ser observados, não havendo menção
à linguagem dos outros usuários da língua (a sociedade em geral). Talvez isso ocorresse porque, naquele
período, considerava-se como língua-padrão apenas a da produção literária, desconsiderando a de outras
categorias de texto (não há referência a exemplos retirados de jornais da época, por exemplo). De certa forma,
seguia-se a tradição greco-latina de recorrer a excertos literários para exemplificar o bom uso da língua.
O autor assevera que Cândido de Figueiredo, ao condenar tais estruturas sintáticas, estava ignorando
os fatos da língua, ou seja, o seu efetivo uso. Entretanto, é preciso novamente ressaltar que, para Heráclito
Graça, o uso era o dos bons escritores e não o dos falantes em geral.
De qualquer forma, nota-se uma postura prescritiva e normativista por parte de Heráclito Graça:
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E porque são os últimos quem está com os fatos da linguagem, conforme a prática dos bons escritores, da qual devem os gramáticos deduzir as respectivas regras para que se considerem certas e possam ser seguidas, passo a mostrar, com Fernão Lopes, Azurara, Barros, Jorge Ferreira [...]. (GRAÇA: 2005, p. 284)
Os gramáticos observam os autores e propõem regras para os demais usuários da língua seguirem.
Graça cita uma lista de autores, muitos também lembrados por Mário Barreto, para abonar sua tese (a
concordância da expressão foi um dos que pode ser feita tanto com o verbo no singular como no plural):
[...] regra geral, tanto é certo e conforme à gramática, em frases semelhantes, empregar no plural como no singular o verbo da oração subordinada, e também é manifesto que ficando o verbo no singular, tendo por antecedente o sujeito, o objeto ou predicado da oração principal, se dá mais vivacidade ao superlativo, quando este figura no período. (GRAÇA: 2005, p. 284)
Considera que a concordância com o verbo no plural é bastante comum, sendo desnecessário listar
exemplos. Prefere citar os exemplos do verbo no singular, o que seria, segundo ele, imprescindível:
Do verbo, plural, na oração subordinada, não há necessidade de exemplos, sendo o caso muito comum. Do verbo, no singular, na mesma proposição, que é o que impugna o sr. Cândido de Figueiredo, sim. Ei-los: [...] [GRAÇA: 2005, p. 284]
Arrola mais de trinta exemplos dos autores anteriormente citados por ele para abonar a tese de que o
verbo pode ser empregado no singular. Esses autores pertencem a diferentes séculos, o que demonstra que
Heráclito Graça procurava legitimar suas ideias com o auxílio de escritores conhecidos ou considerados
clássicos. Não há, no entanto, nenhuma referência ao uso de tal construção por parte dos falantes daquela
época, ignorando a realidade sincrônica.
Heráclito Graça considera ainda que as gramáticas de língua portuguesa são muito falhas em relação
à sintaxe do pronome relativo que, por isso precisa recorrer às de outras línguas. Passa a citar alguns gramáticos
franceses (GRAÇA: 2005, p. 287). Cita esses autores porque compartilham da mesma opinião que a sua: a
concordância pode ser feita tanto com o singular quanto com o plural, podendo ocasionar uma mudança de
sentido (GRAÇA: 2005, p. 288).
Finalizando sua explicação, H. Graça volta a se dirigir a Cândido de Figueiredo (na verdade, esse texto
é uma tentativa do primeiro de rebater o pensamento do último):
Vê, pois, o sr. Cândido de Figueiredo que os exemplos que transcrevi, iguais aos que s. exa. increpa como disparates gramaticais, erros de palmatória e desconchavos de grande marca, se acham dentro das regras estabelecidas pelos mais eminentes gramáticos, são perfeitamente analisáveis, e estão na sintaxe portuguesa pela autoridade inconcussa de seus melhores mestres, quais os referidos, numerosos e abalizados
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clássicos, e escritores, de quem os tomei em desagravo da verdade. (GRAÇA: 2005, p. 289)
Para Heráclito Graça, os bons escritores (os “clássicos”) e os gramáticos (“eminentes”) eram os
guardiões da língua, servindo para legitimar os dois usos, ao contrário do que pregava Cândido de Figueiredo.
Vejamos agora o que Nogueira Duarte pensa a respeito:
15. Um dos que “Ele é um dos que VIAJOU ou VIAJARAM?” Embora alguns gramáticos considerem a concordância facultativa, nós devemos usar o verbo no PLURAL, para concordar com a palavra que antecede o pronome relativo QUE: “Ele é um DOS que VIAJARAM.” O raciocínio é o seguinte: “Dentre aqueles que viajaram, ele é um.” Um outro motivo que nos leva a preferir o verbo no PLURAL é a concordância nominal. Todos diriam que “ele é um dos artistas mais BRILHANTES” (= que mais BRILHAM). Ninguém usaria o adjetivo BRILHANTE no singular. Portanto, depois de UM DOS... QUE, faça a concordância com o verbo no PLURAL: “Ela foi uma DAS MULHERES que SOCORRERAM as vítimas da enchente.” [...] [DUARTE: 1998b, p. 24-25]
O autor, como vimos anteriormente, continua a prescrever regras (“nós devemos usar...”; “portanto
[...] faça a concordância com o verbo...”) [DUARTE: 1998b, p. 25]. Nogueira Duarte até reconhece que há
opiniões divergentes (“Embora alguns gramáticos considerem a concordância facultativa...”), mas não esclarece
quem afirma isso, nem considera essas opiniões legítimas. Emprega exemplos próprios, sem recorrer a frases de
escritores consagrados ou a exemplos retirados de jornais e revistas.
A seguir, lista algumas observações, dentre elas:
OBSERVAÇÃO I: É interessante lembrar que, caso haja ideia de “exclusividade”, o verbo ficará no SINGULAR: “Senhora é um dos romances de José de Alencar que CAIU no último vestibular.” (Nesse caso, devemos entender que Senhora é o único romance de José de Alencar que CAIU na prova do vestibular). (DUARTE: 1998b, p. 26)
O autor abre uma exceção ao tratar da possibilidade de se indicar “exclusividade”. Essa alternativa,
que considera a mudança de sentido, já era percebida por Heráclito Graça, que aceitava igualmente as duas
construções. Como Nogueira Duarte coloca a construção no singular nas observações, podemos deduzir que
ele a considera uma exceção e não parte da regra.
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Pasquale Cipro Neto, em “Concordâncias duras de engolir” (CIPRO NETO: 2002, p. 61-64), também
trata de tal concordância. O autor começa sua explicação reiterando a dificuldade (para a maioria dos falantes)
de fazer a concordância com a expressão um dos que:
O caso da concordância com a expressão “um dos que” é um dos que fazem muita gente balançar. Quando se diz “A moça é uma das alunas mais brilhantes”, não se hesita em afirmar que a concordância do adjetivo “brilhantes” é mais do que correta. Afinal, das alunas mais brilhantes da sala, ela é uma. Note que não se diz que ela é a aluna mais brilhante da sala, e sim que é uma das mais brilhantes. Percebeu? Uma das mais brilhantes. Repito: brilhantes, no plural. O que significa “brilhante”? Basta consultar um dicionário para constatar que “brilhante” é “o que brilha”. “Ladrilho brilhante” equivale a “ladrilho que brilha”. E “ladrilhos brilhantes”? “Ladrilhos que brilham”, é claro. Então, se a moça é uma das mais brilhantes, parece mais do que lógico que se diga que “A moça é uma das que mais brilham”. Das que mais brilham, ela é uma. (CIPRO NETO: 2002, p. 61-62)
Como vemos, o autor demonstra preferência por uma das possibilidades de concordância (o emprego
do verbo no plural). E justifica essa opção, citando a lógica da estrutura da frase:
Isso é o que diz a lógica da estrutura da frase. É também o que pregam muitos gramáticos, alegando que, pelos motivos que já expus, o verbo só pode mesmo ir para o plural. (CIPRO NETO: 2002, p. 62)
Faz referência a “muitos gramáticos” (sem citar quais) para legitimar sua tese. Entretanto, segundo
Cipro Neto, há muitos autores que “desrespeitam” essa regra:
No entanto não faltam na literatura bons autores que tenham desrespeitado essa interpretação lógica do fato linguístico, optando pelo verbo no singular, em frases como “Ela é uma das mulheres que mais me encanta”. O que justifica essa concordância é a ideia de que, com o verbo no singular, enfatiza-se o verdadeiro agente do processo. Tradução: com o verbo no singular, a intenção do falante, efetivamente, é enfatizar quem encanta (e muito). Ela, no caso. (CIPRO NETO: 2002, p. 62)
Para Cipro Neto, mesmo “bons autores” não escapam de “desrespeitar” a lógica da língua. Aborda
também, no quadro intitulado Efeitos de sentido, a mudança semântica decorrente da opção pela concordância
no singular (dar ênfase a um termo). Mas continua restringindo tal concordância ao âmbito literário, como se
só nessa área fosse permitida:
O que fazer então? Se você um dia escrever literatura, poderá muito bem valer-se desses recursos estilísticos e optar por processos típicos dessa linguagem, em que nem sempre a lógica gramatical da estrutura da frase prevalece. Se assim não fosse, Guimarães Rosa não existiria. (CIPRO NETO: 2002, p. 62)
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Faz uma concessão para, a seguir, recriminar tal uso, legitimando sua visão por meio de um clássico
da literatura e de um famoso compositor:
Mas nem todos os mestres da literatura trabalham assim. Machado de Assis preferiu a concordância lógica em “A baronesa era uma das pessoas que mais desconfiavam de nós”, exemplo citado por Cegalla em uma de suas gramáticas. Muitas pessoas desconfiavam de nós. A baronesa era apenas uma delas. A poesia emoldurada pela música popular também tem exemplos de opção pela concordância lógica. Vejamos um trechinho da letra de “Folhetim”, canção composta por Chico Buarque e gravada por Gal Costa e Fafá de Belém, entre outras de nossas cantoras. (CIPRO NETO: 2002, p. 62)
Continua dirigindo sua atenção aos textos jornalísticos, científicos ou técnicos, nos quais, segundo o
autor, não faria sentido dizer, por exemplo, “A China é um dos países que produz esse material” (CIPRO NETO:
2002, p. 63). No entanto, reconhece que
na língua do dia a dia, entretanto, a tendência mais do que dominante é pelo verbo no singular. Mesmo na imprensa são comuns construções como “É uma das empresas que mais cresce no mercado”. (CIPRO NETO: 2002, p. 63)
De sua posição normativa, aconselha:
Nesse tipo de texto, o verbo no singular não parece ser a melhor opção. Não se quer dizer que a empresa é a que mais cresce, e sim que, das que mais crescem, a empresa é uma. Altere-se a frase, pois, para “É uma das empresas que mais crescem no mercado”. (CIPRO NETO: 2002, p. 63)
Mais adiante prescreve:
No uso comum, entretanto, prevalecem as construções “Foi um dos que pediu”, “Foi uma das que negou”, “É um dos que pede”, “A empresa é uma das que explora” etc. Em linguagem escrita formal, é melhor ficar com o verbo no plural. (CIPRO NETO: 2002, p. 63)
Ao resumir a questão, no final do capítulo, assume uma posição mais ponderada (“deve-se preferir”,
“parece mais adequado”).
Resumindo: Com a expressão “um dos que” e assemelhadas — “uma das que”, “um daqueles que”, “uma daquelas que” —, deve-se preferir o verbo no plural. Essa é a concordância lógica, embora o emprego do verbo no singular seja comum na linguagem coloquial e esteja presente em textos literários. Em textos técnicos, jurídicos, científicos, jornalísticos, parece mais adequado o plural, como se vê em “Ela é uma das pessoas que mais me ajudaram”, “Esse menino é um dos que mais estudam”, “Não sou daqueles que falam, mas não fazem” etc. (CIPRO NETO: 2002, p. 64)
Norma-padrão e variação linguística nos “consultórios” gramaticais dos séculos XX e XXI
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Assim como Heráclito Graça, Cipro Neto reconhece a dupla possibilidade de concordância, mas, ao
contrário dele, e seguindo os moldes de Nogueira Duarte, relega a concordância com o verbo no singular à
condição de exceção à regra, feita para produzir um efeito de sentido (que deveria se limitar à literatura apenas).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A análise dos textos de Mário Barreto, Heráclito Graça, Sérgio Nogueira Duarte e Pasquale Cipro Neto
nos permite tecer algumas considerações a respeito da abordagem que os “consultórios” gramaticais dos séculos
XX e XXI davam à norma-padrão e à variação linguística.
Podemos concluir que a necessidade de sanar dúvidas a respeito da própria língua é uma demanda
antiga, pois já podemos encontrar alguns autores que se predispunham a responder a tais dúvidas dos falantes
no final do século XIX e início do século XX, como Cândido de Figueiredo, por exemplo.
Tais autores, tanto do início do século quanto do período de transição (séculos XX e XXI), são
investidos, por parte de seus leitores, de autoridade para explicar a língua, para esclarecer o que é “certo” e o
que é “errado”. Alguns recorrem a clássicos da literatura, outros a abonações de gramáticos e dicionários, para
legitimar essa autoridade. Há aqueles que, no entanto, não recorrem a tais citações, empregando exemplos
próprios. Notamos que entre os autores contemporâneos praticamente inexiste o recurso a exemplos literários
clássicos, como outrora acontecia com os autores do início do século XX. Estes, por sua vez, recorriam aos
clássicos seja para contestar, seja para legitimar suas teses.
Como dissemos anteriormente, não podemos deixar de ressaltar alguns benefícios trazidos pela
existência das colunas gramaticais contemporâneas (colocar a língua em evidência, principalmente nos meios
de comunicação, tornando-a acessível a algumas parcelas da população; permitir aos usuários da língua a
oportunidade de esclarecerem suas dúvidas). Contudo, não podemos deixar de notar-lhes as limitações, como
a inobservância da variação linguística e o fato de não adotarem as contribuições trazidas pelos estudos
linguísticos.
Percebemos que os autores do início do século apresentam uma postura mais “flexível”, pois não é
raro reconhecerem a existência da oscilação entre duas construções linguísticas. De certa forma, reconhecem
a variação linguística. Alguns até a legitimam. Entre os autores contemporâneos, há aqueles que reconhecem a
variação, mas não a legitimam, enquanto outros parecem ignorá-la. Isso demonstra que os autores modernos
tendem a ser mais rígidos em relação às mudanças linguísticas, aparentando considerar a língua um fenômeno
homogêneo e imutável. Percebe-se, em alguns autores, um rigor gramatical, um purismo linguístico, que nos
faz lembrar de Cândido de Figueiredo, defensor ferrenho do vernaculismo.
Claudia Moura da Rocha
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Em relação aos autores do início do século (Mário Barreto e Heráclito Graça), pudemos perceber que
valorizavam a observação dos usos da língua, porém, tais usos eram os encontrados nos escritores clássicos,
não se referindo ao uso praticado pelos falantes da época. Comportavam-se como “guardiões” da língua, mas
nem sempre adotavam postura tão dogmática quanto alguns autores contemporâneos.
Por outro lado, os autores dos séculos XX e XXI parecem menos flexíveis às mudanças linguísticas. A
língua, segundo se observa em seus textos, pode ser explicada de duas formas: para uns (entre eles, Nogueira
Duarte), ela se mostra homogênea, una, invariável, imutável (o que contradiz o nome da coluna gramatical
desse autor), chegando a se confundir com o conceito de norma-padrão; Nogueira Duarte adota uma postura
dogmática e normativa (é “certo” ou é “errado”). Para outros (entre os quais, Cipro Neto), apesar de
reconhecerem as variedades linguísticas, apenas a norma-padrão é digna de prestígio e valor. A propósito,
ocorre também a personificação da norma-padrão, que ganha vida e existência própria. Apesar de reconhecer
a variação linguística, Cipro Neto adota também um discurso normativo.
O tratamento dado à língua por esses autores é aceito pelos falantes, pois estes têm dificuldades de
dissociar a noção de língua do conceito de padrão linguístico. Muitos acreditam que não sabem falar a própria
língua, por não dominarem a norma-padrão, quando, na verdade, não dominam uma de suas variedades (de
maior prestígio, é bem verdade). Os próprios usuários da língua tendem a considerá-la um fenômeno
homogêneo e imutável, enxergando nas variações a presença da degeneração linguística.
Portanto, podemos concluir que, passadas algumas décadas, os estudos linguísticos parecem ter
influenciado muito pouco a forma como os autores contemporâneos analisam os fatos linguísticos em suas
colunas. Continuam a legislar sobre o que é “certo” ou “errado”, não produzindo conhecimento sobre a língua,
nem incorporando as contribuições dos estudos linguísticos.
REFERÊNCIAS
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______. Novos estudos da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Presença, 1980b.
CIPRO NETO, Pasquale. Ao pé da letra. Rio de Janeiro: EP&A, 2001.
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DUARTE, Sérgio Nogueira. Língua Viva. Concordância nominal e plural. Rio de Janeiro: Jornal do Brasil, 1998a. (Coleção Língua Viva, 3).
______. Língua Viva. Concordância verbal. Rio de Janeiro: Jornal do Brasil, 1998b. (Coleção Língua Viva, 2).
Norma-padrão e variação linguística nos “consultórios” gramaticais dos séculos XX e XXI
IDIOMA, Rio de Janeiro, nº. 29, p. 119-140, 2º. Sem. 2015 | 140
______. Língua Viva. Regência. Rio de Janeiro: Jornal do Brasil, 1998c. (Coleção Língua Viva, 5).
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______. Norma-padrão brasileira. Desembaraçando alguns nós. In: BAGNO, Marcos (Org.). Linguística da norma. São Paulo: Edições Loyola, 2002. p. 37-61.
FÁVERO, Leonor L.; MOLINA, Márcia A. G. As concepções linguísticas no Século XIX: a gramática no Brasil. Rio de Janeiro: Lucerna, 2006.
GRAÇA, Heráclito. Fatos da linguagem. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras, 2005.
UCHÔA, Carlos Eduardo Falcão (Org.). Dispersos de J. Mattoso Câmara Jr. Rio de Janeiro: Lucerna, 2004.
Data de submissão: mar./2016.
Data de aprovação: abr./2016.
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A VARIAÇÃO TERMINOLÓGICA NO CONTEÚDO SOBRE PRODUÇÃO TEXTUAL PARA O ENSINO MÉDIO
Camille Roberta Ivantes BRAZ1
Cimélio Senna Vasconcelos da SILVA2
RESUMO A proposta do presente artigo é apresentar como os livros didáticos abordam a teoria dos gêneros no ensino da produção escrita, sobretudo a linguagem que utilizam. O objetivo é verificar se a diversidade teórica e terminológica presente nessas obras pode mostrar-se confusa para os estudantes que as usam. Definiu-se que a pesquisa se voltaria para o Ensino Médio por ser, para esses alunos, a produção textual de grande importância devido à passagem da vida escolar para a vida universitária, através de provas nas quais o desempenho na redação é determinante. A metodologia adotada é a análise da nomenclatura sobre o assunto nos Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio, em um corpus formado por três livros didáticos (Produção de texto – interlocução e gêneros de Maria Luiza Abaurre e Maria Bernadete Abaurre, Texto e interação de William Cereja e Thereza Cochar, Viva Português de Elizabeth Campos, Paula Cardoso e Sílvia de Andrade) e nos enunciados de recentes exames de acesso ao ensino superior (ENEM, UFSC e UNICAMP). O estudo traz, também, uma análise do livro Redação em construção de Agostinho Dias Carneiro (2003) a fim de expor outra perspectiva didática sobre o tema. PALAVRAS-CHAVE: Língua Portuguesa. Gêneros. Livro Didático.
RÉSUMÉ Le but de cet article est de présenter comment les livres didactiques travaillent la théorie des genres dans l’enseignement de l’écriture, en particulier la langage qu’ils utilisent. L’objectif est de vérifier si la diversité théorique et terminologique présente dans ce matériaux peut devenir confus pour les étudiants que les utilisent. La recherche se tourne vers le lycée en raison de l’importance de la production textuelle pour ces étudiants en raison de la transition de l’école à la vie universitaire par des examens où la performance à la rédaction est décisif. La méthodologie utilisée est l’analyse de la nomenclature sur le sujet aux Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio, un corpus constitué par trois livres didactiques (Produção de texto – interlocução e gêneros de Maria Luiza Abaurre et Maria Bernadete Abaurre, Texto e interação de William Cereja et Thereza Cochar, Viva Português de Elizabeth Campos, Paula Cardoso et Sílvia de Andrade) et aux questions des exams récents d’accès à l’université (ENEM, UFSC et UNICAMP). L’étude presente, aussi, une analyse du livre Redação em construção de Agostinho Dias Carneiro (2003) pour exposer une autre perspective didactique sur le sujet. MOTS-CLES: Langue Portugaise. Genres. Livres Didactiques.
1 Mestranda em Língua Portuguesa da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), instituição na qual atualmente desenvolve
pesquisa ligada à lexicografia e lexicologia. Possui especialização em Língua Portuguesa pela Universidade Veiga de Almeida (UVA) e graduação em Letras Português/Literatura pela mesma universidade.
2 Doutor em Semiologia e mestre em Ciência da Literatura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Atualmente é professor de Literatura Portuguesa, Teoria Literária, Língua Portuguesa e Comunicação Oral e Escrita na Universidade Veiga de Almeida (UVA), além de ser um dos coordenadores do curso de especialização em Língua Portuguesa da mesma instituição. É também professor das Faculdades Integradas Hélio Alonso (FACHA) e atua no setor empresarial público e privado ministrando cursos de treinamento em comunicação e redação.
A variação terminológica no conteúdo sobre produção textual para o ensino médio
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INTRODUÇÃO
Os Parâmetros Curriculares Nacionais recomendam o ensino da língua através dos gêneros e, em
consequência, essa metodologia passou a ser abordada nos livros didáticos de Língua Portuguesa, nas salas de
aula e nos exames de seleção universitários. O quadro reflete a importância do ensino do português a partir do
uso, pois
[...] nós falamos por gêneros diversos sem suspeitar da sua existência. Até mesmo no bate-papo mais descontraído e livre nós moldamos o nosso discurso por determinadas formas de gêneros, às vezes padronizadas e estereotipadas, às vezes mais flexíveis, plásticas e criativas [...] Esses gêneros do discurso nos são dados quase da mesma forma que nos é dada a língua materna, a qual dominamos livremente até começarmos o estudo teórico da gramática [...]. (BAKHTIN: 2011, p. 282)
Tratar do assunto, porém, mostra-se bastante complexo até mesmo quando se precisa decidir qual
termo empregar, visto que tanto gênero discursivo quanto gênero textual são utilizados. A escolha é determinada
a partir da perspectiva teórica que se adota (o que torna inadequado que os termos sejam tomados como
sinônimos), mas, diante disso, um novo dilema surge: escolher uma teoria tampouco é simples. O cenário
teórico é bastante diversificado e as abordagens “[...] se fundamentam em diferentes tradições e recursos
intelectuais, bem como em diferentes imperativos e condições pedagógicas” (BAWARSHI e REIFF: 2013, p. 17).
A proposta do presente estudo é verificar em livros didáticos como essas obras utilizam alguns dos
principais termos (e os conceitos relativos) sobre gêneros e compará-los com o que é apresentado pelos
Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio e, posteriormente, exigido em exames de seleção
universitários. Definiu-se que a pesquisa se voltaria para o Ensino Médio por ser, para esses estudantes, a
produção textual de grande importância devido à passagem da vida escolar para a vida universitária, através de
provas nas quais o desempenho na redação é determinante. O objetivo é mostrar que, da mesma forma que os
documentos oficiais, os livros didáticos trazem uma diversidade teórica e, sobretudo terminológica, que pode
se mostrar confusa e, às vezes, incoerente. Não é possível prever que prejuízos este quadro pode causar nos
estudantes, não apenas no momento em que realizam exames de seleção para o ingresso na vida universitária,
mas também nas situações comunicativas que fazem parte da vida cotidiana.
Para este estudo constitui-se um corpus para análise formado por três obras didáticas: Produção de
texto – interlocução e gêneros de Maria Luiza Abaurre e Maria Bernadete Abaurre (2007), Texto e interação de
William Cereja e Thereza Cochar (2013) e Viva Português de Elizabeth Campos, Paula Cardoso e Sílvia de
Andrade (2013). Como o objetivo principal deste trabalho é verificar se a diversidade teórica e terminológica
pode mostrar-se confusa para os estudantes, optou-se por não analisar o manual do professor das obras do
Camille Roberta Ivantes Braz e Cimélio Senna Vasconcelos da Silva
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corpus e, assim, manter uma perspectiva próxima (dentro do possível) daquela que o aluno possa ter ao entrar
em contato com o material. Analisa-se também o livro Redação em construção de Agostinho Dias Carneiro
(2003) com o intuito de apresentar esta obra, voltada para o ensino da produção textual, como uma proposta
não apenas diferente das outras, mas por sua abordagem ser teórica e terminologicamente bem organizada. Por
fim, faz-se a análise de enunciados de recentes provas de redação do Exame Nacional do Ensino Médio – ENEM
(manuais do aluno de 2012 e 2013), da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC (2013 e 2014) e da
Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP (2014).
A relevância deste estudo está na importância da verificação se há uma necessidade de se organizar
conceitos e termos. Além de refletir a respeito do tratamento da produção textual por parte dos livros didáticos,
visando o melhor aproveitamento desse tipo de material a fim de objetivar não apenas as boas notas e
aprovações em exames seletivos, mas, principalmente, atender ao que os Parâmetros Curriculares indicam: a
formação de cidadãos aptos a se comunicarem de maneira eficiente em qualquer situação.
1. A DIVERSIDADE TERMINOLÓGICA: PCN E LIVROS DIDÁTICOS
A adoção do ensino da língua a partir dos gêneros pretende que os alunos aprendam de modo a
perceber que o idioma faz parte das suas vivências e, assim, substituir a abordagem que ensina o português de
uma forma artificial e descontextualizada. A partir do exemplo a seguir entende-se claramente como os gêneros
cumprem funções sociais,
[...] a prática social “ir ao trabalho” exige uma série de comportamentos por parte de patrões e empregados (os papéis sociais) como estabelecer ordens e cumpri-las. Exige também que sejam elaborados certos gêneros textuais como relatórios, memorandos, discussão oral, etc. (MORAIS: 2011, p. 46)
O interesse pelos gêneros, contudo, não é algo novo. Na tradição dos estudos literários, por exemplo,
são estudados de acordo com a divisão aristotélica que os segmenta em épico, lírico e dramático. Encontra-se
uma produção teórica diversificada sobre o assunto e, junto com ela, um painel terminológico igualmente
variado. O reflexo dessa diversidade nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) e nos livros didáticos pode
criar dificuldades na aplicação do conteúdo dos mesmos no ambiente escolar e “[...] por deficiências na sua
formação e/ou falta de atualização, o professor se confunde em meio a termos e teorias que não domina – como
o conceito de gênero textual, por exemplo –, ao ler os PCN e os livros didáticos que adota” (SANTOS: 2011, p.
77).
A variação terminológica no conteúdo sobre produção textual para o ensino médio
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Especificamente com relação aos Parâmetros Curriculares voltados para o Ensino Médio, precisa-se
observar que esses documentos não explicitam em qual ou quais correntes teóricas se baseiam para construir
os conceitos que apresentam e os termos que adotam. Consultar suas bibliografias fornece alguma ideia; não é
o caso aqui de reproduzi-las, mas, nota-se que obras do filósofo russo Mikhail Bakhtin aparecem tanto nos
Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (doravante PCNEM) quanto no PCN+ Ensino Médio –
Orientações Educacionais Complementares aos Parâmetros Curriculares Nacionais (doravante PCN+). Na
perspectiva do filósofo russo, “todos os diversos campos da atividade humana estão ligados ao uso da
linguagem” (BAKHTIN: 2011, p. 261) e a linguagem, por sua vez, é definida no PCNEM como
[...] a capacidade humana de articular significados coletivos e compartilhá-los, em sistemas arbitrários de representação, que variam de acordo com as necessidades e experiências da vida em sociedade. A principal razão de qualquer ato de linguagem é a produção de sentido. (PCNEM: 2000, p. 5)
Pode-se entender, portanto, que a comunicação acontece através da interação social, do diálogo,
como na perspectiva bakhtiniana. No PCN+ identifica-se a adoção da mesma ideia ao se conceituar
interlocução,
a comunicação não é um fenômeno de mão única; supõe um esquema reversível e interacional entre os interlocutores. Assim, a significação se funda na interlocução, ou nas trocas sociais que possibilitam aos falantes a produção de enunciados, de acordo com intenções específicas, em determinados contextos. O sentido de um texto e a significação de cada um de seus componentes dependem, portanto, da relação entre sujeitos, construindo-se na produção e na interpretação. Essa parece ser a condição mesma do sentido do discurso, obrigando-nos a considerar não apenas a relação entre os interlocutores, mas também a desses sujeitos com seu meio social. Devido a esses fatores sociais e históricos, que envolvem tanto os sujeitos quanto os signos em jogo nas diferentes linguagens, a significação de um texto só ocorre no ato efetivo da interlocução. (PCN+: s/d, p. 41)
O termo texto é definido como a “[...] concretização dos discursos proferidos nas mais variadas
situações cotidianas” (PCN+, s/d, p. 58) e eles “[...] contribuem para a criação de competências e habilidades
específicas” (PCN+: s/d, p. 58). Uma dessas competências é a de “incluir determinado texto em uma tipologia
com base na percepção dos estatutos sobre os quais foi construído e que o estudante aprendeu a reconhecer
(saber que se trata de um poema, de uma crônica, de um conto)” (PCN+: s/d, p. 58, grifo nosso). Apesar do uso
do termo tipologia, não foi identificado nos documentos oficiais nenhuma definição sobre tipos textuais.
O PCNEM adota o termo gênero discursivo, como em “o estudo dos gêneros discursivos e dos modos
como se articulam proporciona uma visão ampla das possibilidades de usos da linguagem [...]” (PCNEM: 2000,
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p. 8). Entretanto, gênero discursivo não chega, ao longo do documento, a ser propriamente conceituado. Já no
documento posterior, o PCN+, o termo gênero discursivo é substituído por gênero textual que é definido da
seguinte forma: “o texto verbal pode assumir diferentes feições, conforme a abordagem temática, a estrutura
composicional, os traços estilísticos do autor – conjunto que constitui o conceito de gênero textual” (PCN+: s/d,
p. 60). Não há, porém, qualquer explicação para a troca de termos e faz-se necessário observar que não devem
ser considerados sinônimos, pois o uso de gêneros de discurso costuma ser uma expressão adotada
exclusivamente por abordagens bakhtinianas, como explicam Jacqueline P. Barbosa e Roxane Rojo,
o que interessa nessa abordagem são os efeitos de sentido discursivos, os ecos ideológicos, as vozes e as apreciações de valor que o sujeito do discurso faz por meio de enunciados/textos em certos gêneros que lhe viabilizam certas escolhas linguísticas. Por isso, os gêneros são estudados. Não importa tanto as formas linguísticas ou a dos textos em si, para relacioná-las aos contextos, mas o desenvolvimento dos temas e da significação. Por isso, os bakhtinianos referem-se aos gêneros como gêneros de discurso e não como gêneros de texto. (BARBOSA e ROJO: 2015, p. 42, grifos das autoras)
Terminologicamente, os documentos podem variar entre gênero discursivo e textual, mas o que se
espera do professor ao adotar a metodologia dos gêneros fica bem claro,
os trabalhos escolares voltados para a mera análise gramatical, morfológica ou sintática não garantem a compreensão dos mecanismos das linguagens. O que se espera hoje é que o professor desenvolva a análise do discurso, valendo-se dos conhecimentos e das ferramentas que a gramática normativa, a lingüística e a semiótica tornaram disponíveis. (PCN+: s/d, p. 46)
Diante disso, faz-se necessário pensar no educador e sabe-se que as discussões a respeito do assunto
(que antes eram restritas a meios acadêmicos) até podem ter chegado à sala de aula, mas “[...] por problemas
na formação e a dificuldade de os professores se engajarem em atividades de atualização, o livro didático passou
a ser a principal ferramenta teórico-metodológica do professor em seu fazer pedagógico” (MORAIS: 2011, p.
43). O trabalho a partir dos gêneros, portanto, apresenta tanto para os professores quanto para os autores de
material didático, desafios; principalmente o de não encarar a proposta como algo “pronto”, porque caso isso
aconteça, deixa de ser uma metodologia articulada com a interação social e se torna uma abordagem tão
normativa quanto a que antecedeu os Parâmetros Curriculares Nacionais.
Como já mencionado, a pesquisa para este estudo foi feita em três livros didáticos: Produção de texto
– interlocução e gêneros (2007), Texto e interação (2013) e Viva Português (2013). As obras foram escolhidas
pela diversidade terminológica que apresentam e de gêneros com os quais trabalham e por, ao mesmo tempo,
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finalizarem da mesma forma: destacando a importância do gênero exigido nos exames de seleção universitários,
o dissertativo-argumentativo.
No livro Produção de texto – interlocução e gêneros, desde o início, observa-se a opção pelo termo
gênero discursivo (que será mantido ao longo de toda obra). Essa escolha remete à perspectiva de Bakhtin,
porém, a forma como as unidades do livro estão organizadas indica uma possível influência de outra abordagem
teórica. Isto porque cada unidade possui uma espécie de “tema” central e esse, por sua vez, define os gêneros
que são trabalhados nos capítulos que formam cada unidade (unidade 2 – narração e descrição, unidade 3 –
exposição e injunção, e unidade 4 – argumentação; a unidade 1 trata do discurso e a unidade 5 retoma
exposição e argumentação para abordar o dissertativo-argumentativo). Esses “temas” poderiam ser chamados
de tipos textuais caso fosse adotada a perspectiva de Luiz Antônio Marcuschi. O linguista brasileiro afirma que
os tipos textuais são
[...] uma espécie de construção teórica definida pela natureza linguística de sua composição {aspectos lexicais, sintáticos, tempos verbais, relações lógicas}. Em geral, os tipos textuais abrangem cerca de meia dúzia de categorias conhecidas como: narração, argumentação, exposição, descrição, injunção. (MARCUSCHI: s/d., p. 3)
As autoras não adotam o termo tipo textual, preferem tipos de composição. Esses são definidos pelas
estruturas linguísticas usadas para construir um texto dentro de um gênero discursivo, pois “[...] precisamos
decidir se teremos de narrar algum acontecimento, expor ideias, argumentar, descrever alguma situação ou
cena, dar instruções ou ordens” (ABAURRE e ABAURRE: 2007, p. 34). Observa-se, entretanto, que na
apresentação da unidade 2 (que trata de gêneros discursivos estruturados a partir da narração e da descrição)
as autoras usam o termo tipo de texto e não tipo de composição: “a narração é, possivelmente, o mais antigo
de todos os tipos de texto” (ABAURRE e ABAURRE: 2007, p. 43, grifo nosso). Cabe ressaltar, porém, que se trata
da única exceção identificada por esta pesquisa.
Outro livro do corpus, Viva Português, dirige-se às três séries do Ensino Médio, em volume único,
apresentando conteúdo não apenas de produção textual, mas também de literatura e gramática (Produção de
texto – interlocução e gêneros e Texto e interação são exclusivamente de produção textual). A explicação que
as autoras apresentam para gênero é a de que
toda vez que nos comunicamos, nós o fazemos por meio de um gênero de texto, por mais diversas que sejam as situações de comunicação existentes. Cada gênero está ligado a um tipo de situação de comunicação, que engloba um locutor (quem fala ou escreve) e seu interlocutor (quem ouve ou lê), uma intenção, um momento e um lugar. (ANDRADE, CAMPOS e CARDOSO: 2013, p. 23)
Camille Roberta Ivantes Braz e Cimélio Senna Vasconcelos da Silva
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Neste único trecho, portanto, tem-se os termos gênero de texto, situação de comunicação, locutor e
interlocutor com suas respectivas definições. Pode-se levantar a hipótese de que o termo gênero de texto será
o utilizado pelas autoras, mas isso não acontece (ainda que o termo tenha sido identificado mais duas vezes ao
longo do livro). A opção do Viva Português é a de adotar simplesmente os termos gênero e texto, como, por
exemplo, na página 229, na qual lê-se: “o gênero romance surgiu na Europa [...]” e também na página 527:
“[...] a crônica é um gênero híbrido, uma mistura de texto jornalístico e literário”. O termo texto, aliás, é usado
como se fosse sinônimo de gênero, como se lê na página 384: “a reportagem é um texto jornalístico [...]” e
também na proposta de produção do anúncio publicitário,
ao andarmos pelas ruas ou mesmo quando estamos em casa, assistindo à TV [...] deparamos com anúncios publicitários, textos elaborados com o claro objetivo de convencer ou persuadir o interlocutor a consumir um produto [...]. (ANDRADE, CAMPOS e CARDOSO: 2013, p. 341)
Ao longo da análise do Viva Português tampouco foram encontrados termos e/ou conceitos que
estabelecessem a divisão entre tipo e gênero.
Já em Texto e interação, os autores explicam ainda na apresentação da obra que
[...] se desejamos [...] contar um fato vivido na infância, fazemos uso de um relato; se queremos contar uma história de ficção, como uma fábula, construímos um texto narrativo; se pretendemos ensinar alguém a fazer um bolo de chocolate, produzimos um texto instrucional [...] se temos em vista transmitir um conhecimento científico, optamos por um texto expositivo; se queremos expressar nossa opinião sobre determinado assunto, recorremos a um texto argumentativo [...]. (CEREJA e COCHAR: 2013, s/n, grifos nossos)
Seguindo o que é colocado no trecho acima (que parece ser uma espécie de organização por tipologia)
tem-se as unidades que são apresentadas com os seguintes títulos: unidade 1 – relatos do cotidiano; unidade 2
– expondo e comprovando; unidade 3 – instruindo e convencendo; unidade 4 – texto em cena (são os textos
narrativos) e unidade 5 – opinando e debatendo. Porém, nota-se que da unidade 6 em diante a divisão não fica
tão clara. A mencionada unidade 6 – palavra-imagem traz o poema como gênero a ser trabalhado; a unidade
7 – no escurinho do cinema, apresenta o roteiro cinematográfico e as unidades 8 – em dia com o que acontece;
9 – o cotidiano jornalístico vira literatura e 10 – nem só de notícias vive o jornal, apresentam gêneros
jornalísticos. A unidade 11 – quem conta um conto aumenta um ponto retoma os textos narrativos, a unidade
12 – cidadania em cena traz gêneros aplicáveis à vida em comunidade (o abaixo-assinado, a carta aberta, carta
de reclamação e de solicitação e o manifesto) e, finalmente, a unidade 13 – dissertando e argumentando trata
do gênero que costuma ser exigido em exames de seleção: o dissertativo-argumentativo.
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A divisão entre tipos e gêneros (que parece ter servido de base para a organização dos capítulos) é
algo que se observa na análise, não sendo identificada uma explicação mais objetiva. Quanto ao termo tipos
de texto, há apenas uma menção que se encontra no capítulo 37 (dedicado ao dissertativo-argumentativo):
“durante décadas, as aulas de produção de texto nas escolas brasileiras limitaram-se ao trabalho com três tipos
de texto: a narração, a descrição e a dissertação”. (CEREJA e COCHAR: 2013, p. 380, grifo nosso)
Outro termo que é encontrado em um único trecho de Texto e interação é família, usado para englobar
os gêneros expositivos. De acordo com os autores,
nos meios escolares, acadêmicos, científicos e técnicos, são comuns as situações em que uma pessoa ou um grupo de pessoas desenvolvem uma pesquisa e apresentam os resultados a um público. Esse tipo de texto, produzido oral e publicamente, é chamado de seminário e, tal como o texto de apresentação científica, o relatório, o texto didático, a mesa-redonda, isto é, gêneros que se prestam à transmissão de saberes historicamente construídos pela humanidade, pertence à família dos gêneros expositivos. (CEREJA e COCHAR: 2013, p. 61, grifo nosso)
Pode-se afirmar que, na abordagem de Texto e interação, gêneros do discurso é um termo entendido
como sinônimo de gêneros textuais. Ainda que os Parâmetros Curriculares Nacionais voltados para o Ensino
Médio usem os dois termos, é importante observar que o fazem em documentos distintos. Além disso, não é
ideal que os termos sejam usados dessa forma, pois já foi exposto neste estudo que refletem perspectivas teóricas
diferentes. Os autores, todavia, afirmam, na introdução da obra que
[...] quando interagimos com outras pessoas por meio de linguagem [...] produzimos certos tipos de texto que, com poucas variações, se repetem no conteúdo, no tipo de linguagem e na estrutura. Esses tipos de texto constituem os chamados gêneros do discurso ou gêneros textuais e foram historicamente criados pelo ser humano a fim de atender a determinadas necessidades de interação verbal. De acordo com o momento histórico, pode nascer um gênero novo, podem desaparecer gêneros de pouco uso ou, ainda, um gênero pode sofrer mudanças até transformar-se num novo gênero. (CEREJA e COCHAR: 2013, p. 13, grifos dos autores)
Os três livros finalizam da mesma maneira: dedicados ao que é mais exigido nos exames de seleção
universitários, o texto dissertativo-argumentativo. Produção de texto – interlocução e gêneros classifica o texto
dissertativo-argumentativo como um gênero escolar que, na abordagem desse material didático, significa a
mesma coisa que dissertação: “as atividades que focalizam a produção de textos com características
marcadamente expositivas e/ou argumentativas referem-se a tais textos como dissertações ou textos
dissertativos-argumentativos” (ABAURRE e ABAURRE: 2007, p. 277, grifos das autoras). Já Texto e interação
traz três capítulos voltados para o dissertativo-argumentativo e apresenta um texto introdutório que, como nos
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demais capítulos da obra, aparece abaixo do subtítulo trabalhando o gênero (que pode levar o aluno a entender
que o texto dissertativo-argumentativo é um gênero). A seguinte explicação é apresentada,
durante décadas, as aulas de produção de texto nas escolas brasileiras limitaram-se ao trabalho com três tipos de texto: a narração, a descrição e a dissertação. Com a introdução do estudo dos gêneros do discurso, entretanto, as aulas começaram a se aproximar mais das práticas textuais desenvolvidas na sociedade e passaram a ter o objetivo de instrumentalizar os alunos para atuar socialmente seja escrevendo uma carta ou um artigo de opinião [...] Apesar disso, a dissertação ainda vem sendo exigida em alguns vestibulares do país e nas provas do Enem como meio de avaliação da competência linguístico-discursiva do estudante [...]. (CEREJA e COCHAR: 2013, p. 380, grifo dos autores)
Observa-se, portanto, que para Texto e interação o texto dissertativo-argumentativo e a dissertação
também são a mesma coisa. Assim como para Viva Português que intitula seu último capítulo de “Dissertação”,
explicando que
o texto dissertativo é produzido em situações que exigem do sujeito produtor a apresentação do seu ponto de vista sobre determinado assunto. Comum sobretudo no ambiente escolar para desenvolver a competência comunicativa do aluno, a dissertação pode ser produzida em exames vestibulares assim como em processos seletivos de candidatos a estágios e cargos em empresas públicas e privadas. Nessas situações, espera-se que o autor demonstre sua competência para dissertar, ou seja, para discorrer logicamente organizando um texto com começo, meio e fim sobre determinado assunto. (ANDRADE, CAMPOS e CARDOSO: 2013, p. 587)
Apesar das características particulares a cada obra, os três livros oferecem uma abordagem bastante
semelhante para ensinar a produção do texto dissertativo-argumentativo: introdução, desenvolvimento e
conclusão são as partes que o compõem, versa sobre um tema e o aluno precisa defender uma tese. Trata-se de
uma espécie de “fórmula”, regida por regras tão precisas e claras que acaba indo de encontro ao que os
Parâmetros Curriculares propõem.
Diante desse quadro buscou-se analisar um livro de produção textual que tivesse sido editado
posteriormente aos Parâmetros Curriculares, mas diferente dos três acima tratados. Optou-se pelo livro Redação
em construção, de Agostinho Dias Carneiro, a edição analisada é a de 2003.
O livro do Professor Dias Carneiro concentra-se mais nos processos de escrita do que na conceituação
e estruturas de gêneros. A organização também é diferente: Redação em construção divide-se em duas partes,
a primeira dedicada ao texto e a segunda, aos meios linguísticos. Como a segunda parte tem uma abordagem
mais gramatical (a intenção parece ser a de ampliar o repertório de conhecimentos dos alunos visando uma
escrita melhor) esta pesquisa centraliza-se na primeira parte do livro, dedicada ao texto e na qual o autor procura
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conscientizar o estudante da importância da escrita e suas funções, além de desmistificar alguns conceitos do
que o senso comum acredita ser “escrever bem” (como textos que são apenas gramaticalmente corretos).
A análise possibilita que se afirme que formar um aluno com habilidade de realizar a competência da
escrita, adequando suas intenções comunicativas a qualquer gênero é o objetivo de Redação em construção.
Isso torna-se bem claro quando o autor explica que
[...] todo texto parte de uma intenção comunicativa que, para realizar-se de forma adequada, necessita levar em conta a situação geral em que se vai efetivar: quem são os interlocutores, qual a relação social entre eles, em que local se processa, etc.; assim, considerando-se todos esses elementos situacionais, pode-se tratar uma estratégia textual que vá ao encontro de nossos desejos, ou seja, atinja da forma mais adequada possível a finalidade do texto. Em certas situações de comunicação, torna-se absolutamente indispensável usar a forma mais cuidada da linguagem, o que compreende estar em concordância com a gramática, mas, às vezes, pode-se tornar mais eficiente uma forma menos cuidada em que as regras gramaticais não sejam totalmente respeitadas. (CARNEIRO: 2003, p. 20)
Depois das exposições teóricas, seguem-se exercícios com questões discursivas que visam não apenas
fixar o conteúdo trabalhado, mas levam o aluno, de fato, a escrever. Gêneros como a crônica, o romance, o
poema e a história em quadrinhos acabam sendo “apresentados”, ainda que não propriamente conceituados
(são integrados aos exercícios). O livro trabalha estratégias textuais, defendendo a posição de que ao dominar
tais estratégias, o estudante será capaz de “[...] aplicá-las a novos textos de forma quase inconsciente”.
(CARNEIRO: 2003, p. 22)
A obra de Agostinho Dias Carneiro baseia-se na teoria semiolinguística de Patrick Charaudeau,
semio-, de “semiosis”, evocando o fato de que a construção do sentido e sua configuração se fazem através de uma relação forma-sentido (em diferentes sistemas semiológicos), sob a responsabilidade de um sujeito intencional, com um projeto de influência social, num determinado quadro de ação; 3linguística para destacar que a matéria principal da forma em questão – a das línguas naturais. Estas, por sua dupla articulação, pela particularidade combinatória de suas unidades (sintagmático-paradigmática em vários níveis: palavra, frase, texto), impõe um procedimento de semiotização do mundo diferente das outras linguagens.4 (CHARAUDEAU: 2005, p. 13)
3 Nota do autor: Isto é Hjelmeslev+uma perspectiva pragmática+ uma dimensão psico-social, daí porque se deveria dizer “psico-
socio-semio-pragmática”, mas nos limitaremos à denominação simplificada de “semiolinguística”.
4 Nota do autor: Isto quer dizer que embora outras formas semiológicas participem deste processo, elas se encontram, de algum modo, sob a dominância da linguagem verbal.
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No terceiro capítulo do livro apresentam-se os modos de organização do discurso do linguista francês.
Para Patrick Charaudeau os componentes de um ato de linguagem são a língua, o texto, a situação de
comunicação e os modos de organização do discurso. Esses itens são definidos pelo francês da seguinte
maneira,
a Situação de comunicação [...] constitui o enquadre ao mesmo tempo físico e mental no qual se acham os parceiros da troca linguageira, os quais são determinados por uma identidade (PSICOLÓGICA E SOCIAL) e ligados por um contrato de comunicação. Os Modos de organização do discurso que constituem os princípios de organização da matéria linguística, princípios que dependem da finalidade comunicativa do sujeito falante: ENUNCIAR, DESCREVER, CONTAR, ARGUMENTAR. A Língua, que constitui o material verbal estruturado em categorias linguísticas que possuem, ao mesmo tempo e de maneira consubstancial, uma forma e um sentido. O Texto, que representa o resultado material do ato de comunicação e que resulta de escolhas conscientes (ou inconscientes) feitas pelo sujeito falante dentre as categorias de língua e os Modos de organização do discurso, em função das restrições impostas pela Situação. (CHARAUDEAU: 2008, p. 68, grifos do autor)
Agostinho Dias Carneiro organiza um quadro com as diferenças fundamentais entre os modos de
organização do discurso. Reproduz-se a seguir este quadro (CARNEIRO: 2003, p. 29):
Modo Descritivo Narrativo Dissertativo
Agente Observador Narrador Argumentador
Conteúdo seres, objetos, cenas,
processos ações ou
acontecimentos opiniões, argumentos
Tempo momento único sucessão ausência
Objetivo identificar, localizar e
qualificar relatar
discutir, informar ou expor
Classes de palavras substantivos e adjetivos verbos, advérbios e
conjunções temporais conectores
Tempos verbais
presente ou imperfeito do indicativo
presente ou perfeito do indicativo
presente do indicativo
Em seguida, esclarece-se a diferença que há entre modos de organização do discurso e tipos de texto,
pois “enquanto os modos estão ligados à estrutura básica do texto, particularmente na sua relação das coisas
com o tempo, os tipos textuais se prendem à sua função básica, ou seja, à sua declarada finalidade” (CARNEIRO:
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2003, p. 29). Assim, tem-se como um exemplo o texto normativo que possui a função de regulamentar, sendo
os modelos desse texto as leis, as portarias, os regulamentos ou ainda o texto informativo cuja função é informar,
sendo seus modelos as notícias, os comunicados e as bulas de remédio. Pode-se afirmar, diante disso, que
modelo é o termo de Redação em construção equivalente ao que os livros didáticos que compõem o corpus
denominam de gêneros.
O livro prossegue apresentando os modos de organização do discurso de forma a conduzir o aluno a
colocar em prática o que foi exposto teoricamente até ali: a partir dos sinais (como a sequência cronológica e
os tempos verbais) pode-se identificar em um trecho textual apresentado o modo de organização para, em
seguida, explicar-se detalhadamente os itens apresentados resumidamente no quadro reproduzido
anteriormente.
O reconhecimento desses modos é “o primeiro passo para a compreensão dos textos [...] e,
consequentemente, das características peculiares a cada um deles” (CARNEIRO: 2003, p. 28). Sendo assim,
pode-se dispor dos modos de acordo com a necessidade de construção de sentido que o sujeito encontra em
situações escolares e também cotidianas.
2. ENUNCIADOS DE EXAMES DE SELEÇÃO UNIVERSITÁRIOS
O Exame Nacional do Ensino Médio (doravante ENEM), organizado pelo Ministério da Educação, é o
maior de todos os exames para o ingresso nas universidades brasileiras. No ENEM a prova de redação exige a
produção de um texto dissertativo-argumentativo, chamado de tipologia nos guias do participante de 2012 e
2013 que foram analisados para o presente estudo.
O Guia do Participante oferece o que pode ser entendido como um passo-a-passo do que se espera
que o aluno produza e ainda traz uma definição bem objetiva do que é um texto dissertativo-argumentativo.
Na edição de 2013 do guia, na página 15, há a seguinte explicação,
o texto dissertativo-argumentativo é organizado na defesa de um ponto de vista sobre determinado assunto. É fundamentado com argumentos, para influenciar a opinião do leitor ou ouvinte, tentando convencê-lo de que a ideia defendida está correta. É preciso, portanto, expor e explicar ideias. Daí a sua dupla natureza: é argumentativo porque defende uma tese, uma opinião, e é dissertativo porque se utiliza de explicações para justificá-la. (INEP, 2013)
Uma observação importante é a de que no Guia do Participante de 2012 encontra-se uma
diferenciação entre o texto dissertativo e o texto dissertativo-argumentativo. Esta diferenciação não consta mais
no manual de 2013, mas como os termos dissertação e texto dissertativo-argumentativo são tomados como
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sinônimos nos livros que compõem o corpus deste estudo, considerou-se relevante reproduzir o que se encontra
no Guia do Participante de 2012, na página 17,
um texto dissertativo difere de um texto dissertativo-argumentativo por não haver a necessidade de demonstrar a verdade de uma ideia, ou tese, mas apenas de expô-la. Você deve evitar elaborar um texto de caráter apenas dissertativo, ou seja, expor um aspecto relacionado ao tema sem defender uma posição, sem defender uma tese. Isso não atenderá às exigências para avaliação dessa competência. (INEP, 2012)
O ENEM não apresenta em seus exames a proposta de redação através de um enunciado. São
oferecidos textos de apoio sobre o tema e instruções para que o candidato elabore o seu texto. Sendo assim,
termos essenciais como tese, tema e, obviamente, texto dissertativo-argumentativo, são expostos e definidos no
Guia do participante.
O ENEM, contudo, não é o único exame seletivo para o ingresso universitário. Algumas universidades
brasileiras organizam seus próprios vestibulares e ainda que a exigência pela produção de um texto dissertativo-
argumentativo seja considerada a mais usual nas provas de redação, algumas instituições apresentam provas
nas quais outros gêneros são solicitados. O exame seletivo da Universidade Federal de Santa Catarina (doravante
UFSC), por exemplo, apresenta uma proposta de produção textual que se diferencia do ENEM ao pedir aos
candidatos, além de uma dissertação, mais gêneros ou textos de tipologias diversas.
No exame de 2013 da UFSC a partir de trechos de textos, a proposta 1 do exame é a de que o candidato
produza o gênero artigo de opinião, através do seguinte enunciado: “Considerando esses excertos, elabore um
artigo de opinião sobre o uso das redes sociais, para ser publicado no Caderno de Opinião de um jornal de
circulação regional. Assine obrigatoriamente como “Candidato Vestibular/UFSC/2013”. Já a proposta 2 pede
uma resenha da seguinte maneira: “Escreva uma resenha sobre um dos livros indicados abaixo como se fosse
publicá-la em um site/blog voltado para a divulgação de obras literárias. Assine obrigatoriamente como
“Candidato Vestibular/UFSC/2013”. E, finalmente, a proposta 3, pede um texto dissertativo: “A geração de
energia é uma das grandes preocupações na atualidade. Observe o gráfico, analise algumas fontes geradoras e
elabore um texto dissertativo sobre as alternativas para a geração de energia elétrica no Brasil do século XXI.”
O exame de 2014 da mesma UFSC, entretanto, traz uma singularidade. A proposta 1 é uma dissertação
(nota-se que o termo texto dissertativo do ano de 2013 foi substituído por dissertação) e os enunciados das
propostas 2 e 3 apresentam ao candidato uma escolha entre o que parece ser, tendo como base as teorias e
livros didáticos pesquisados para o presente trabalho, um tipo textual (narre) e um gênero (texto relatando, ou
seja, o gênero relato). Os enunciados da prova de 2014 (grifos nossos) são os seguintes: “PROPOSTAS 2 E 3:
Leia os excertos da página seguinte observando os perfis de mulheres traçados nos textos de diferentes épocas.
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Escolha apenas uma das duas propostas abaixo para escrever a Redação. Proposta 2: Narre um novo desfecho
para a história de uma das personagens no contexto das obras literárias citadas nos excertos. Proposta 3:
Escreva um texto relatando de que forma um ou mais perfis femininos representados nos excertos desafiam o
comportamento masculino na atualidade”.
A Universidade Estadual de Campinas (doravante UNICAMP), por sua vez, aplica um exame de
seleção no qual o candidato não possui conhecimento prévio dos gêneros que lhe serão exigidos. O objetivo
dessa abordagem, como se lê na introdução do exame de redação de 2014, é o de “escapar” da costumeira
dissertação que, na opinião da instituição,
[...] tem sido responsável pelo engessamento das práticas de produção de texto no ambiente escolar. Sob a alegação de que é preciso preparar os alunos para os vestibulares, deixa-se de expor o estudante a outros gêneros textuais que atendam de um modo mais produtivo às demandas de linguagem oriundas das múltiplas esferas da sociedade e das mais variadas situações de interlocução. A nova proposta visa, portanto, a desestabilizar esse modelo engessado de trabalho com o texto e, consequentemente, “desautomatizar” a relação com a escrita que os alunos e as escolas preparatórias para o vestibular acabaram por produzir. Ao apresentar propostas obrigatórias de produção de texto, sem que os candidatos saibam de antemão quais serão os gêneros solicitados, a prova de redação da Unicamp oferece a possibilidade de uma relação mais substantiva com a leitura e com a escrita. Isso porque, apesar de haver uma infinidade de gêneros textuais mais ou menos estáveis à disposição de todos na sociedade contemporânea, a maior parte desses gêneros é muito pouco explorada no ambiente escolar. O que esperamos, com esse novo modelo, é incentivar a escola a trabalhar com a diversidade de gêneros e tipos textuais, expondo os alunos às suas diversas formas de realização. (UNICAMP, 2014)
Na prova de 2014 da UNICAMP os gêneros pedidos foram o relatório e a carta aberta. Ambas as
propostas são apresentadas ao estudante através de uma situação de produção. No caso do relatório o
enunciado é o seguinte: “Você e um grupo de colegas ganharam um concurso que vai financiar a realização
de uma oficina cultural na sua escola. Após o desenvolvimento do projeto, você, como membro do grupo, ficou
responsável por escrever um relatório sobre as atividades realizadas na oficina, informando o que foi feito. O
relatório será avaliado por uma comissão composta por professores da escola. A aprovação do relatório
permitirá que você e seu grupo voltem a concorrer ao prêmio no ano seguinte. O relatório deverá contemplar
a apresentação do projeto (público-alvo, objetivos e justificativa), o relato das atividades desenvolvidas e
comentário(s) sobre os impactos das atividades na comunidade”.
Já a carta aberta vem com o seguinte enunciado:
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Em virtude dos problemas de trânsito, uma associação de moradores de uma grande cidade se mobilizou, buscou informações em textos e documentos variados e optou por elaborar uma carta aberta. Você, como membro da associação, ficou responsável por redigir a carta a ser divulgada nas redes sociais. Essa carta tem o objetivo de reivindicar, junto às autoridades municipais, ações consistentes para a melhoria da mobilidade urbana na sua cidade. Para estruturar a sua argumentação, utilize também informações apresentadas nos trechos abaixo, que foram lidos pelos membros da associação. Atenção: assine a carta usando apenas as iniciais do remetente. (UNICAMP, 2014)
As duas propostas são contextualizadas, inserindo os estudantes em situações de produção que podem
acontecer na vida deles ou de pessoas que conhecem. Ficam igualmente bem definidos o público-alvo e o
veículo. O candidato deve conhecer o gênero proposto a fim de saber que linguagem usar e a estrutura do
mesmo e, assim, o exame de seleção da Unicamp apresenta-se como o que demonstra maior consonância com
a proposta dos Parâmetros Curriculares Nacionais.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
No início desta pesquisa, diante da constatação do quadro teórico e terminológico múltiplo a respeito
dos gêneros, levantou-se a hipótese de que, ao tratar do tema em um material didático, escolher uma teoria a
seguir (e, em consequência, seus termos) tornaria a abordagem do assunto mais organizada e objetiva. A
hipótese pareceu ainda mais adequada no momento da análise do livro Redação em Construção. A obra do
Professor Agostinho Dias Carneiro apresenta-se como uma proposta de trabalho muito coerente, com visível
integração da exposição teórica e aplicação prática desta e continua a ser relevante para o ensino da produção
textual mesmo não sendo mais editada.
Ao longo do processo de leituras para embasar este estudo, entretanto, observou-se que não é possível
desconsiderar que existe um amplo cenário no campo teórico. Há perspectivas sociodiscursivas, sociorretórcas,
sociossemióticas; pode-se pesquisar os gêneros nas tradições literárias ou pensar neles a partir de contextos
profissionais ou dos novos recursos midiáticos. E não apenas. A atualidade do tema e seu contínuo interesse por
parte de pesquisadores são justificados ao se compreender que “os gêneros organizam nossa fala e escrita assim
como a gramática organiza as formas linguísticas” (BAKHTIN, 1979 apud MARCUSCHI: 2011, p. 31). Sendo
assim, pensar e trabalhar os gêneros a partir de abordagens diversas é tão relevante que torna questionável se é
possível escolher apenas uma teoria para ensiná-los a estudantes (ainda que esta hipótese continue a apresentar-
se como um excelente método de organização conceitual e linguística).
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O cenário teórico amplo, contudo, precisa ser tratado a partir de critérios bem definidos ou pode
também acabar por se apresentar como uma possibilidade para autores de material didático criarem, em seus
livros, uma espécie de “colcha de retalhos” de várias teorias e, em consequência direta, a adoção de uma
multiplicidade de termos. E isso pode vir a agravar o que já se observa atualmente: um cenário de confusão
terminológica e conceitual que prejudica não apenas os estudantes, mas também os professores. É preciso
sempre lembrar que não é exigido dos educadores nenhum tipo de conhecimento mais profundo sobre qualquer
teoria dos gêneros e a consequência é o professor depositar no material didático uma importância extrema,
esperando que este forneça tudo o que ele precisa para as aulas de produção textual.
Atendo-se apenas a alguns termos-chaves nos livros do corpus desta pesquisa, tem-se uma ideia da
variedade linguística no tratamento do assunto. Quem estuda, por exemplo, por Produção de texto –
interlocução e gêneros aprende que texto dissertativo-argumentativo e dissertação são sinônimos e que se trata
de um gênero escolar. Texto e interação afirma que dissertar é um tipo de texto, além de posicionar o assunto
debaixo do subtítulo trabalhando o gênero que pode levar o aluno a entender que se trata de um gênero. O
ENEM, por sua vez, prefere o termo texto dissertativo-argumentativo (que chama de tipologia) e não dissertação;
a UFSC usou no exame de 2013, texto dissertativo (mas um texto apenas dissertativo não inclui,
necessariamente, uma argumentação, como é necessária ao texto dissertativo-argumentativo). As diferenças
podem parecer irrelevantes para um educador experiente ou um autor de material didático que conheça várias
teorias, mas é importante novamente ressaltar que talvez não o sejam para os jovens – sobretudo aqueles com
dificuldades para redigir textos – ou até mesmo para um professor iniciante.
A variação entre gênero discursivo e gênero textual, obviamente, também é notada. Saber que o termo
gênero discursivo é utilizado por aqueles que tratam do assunto pela perspectiva bakhtiniana não é algo que
seja relevante para estudantes do Ensino Médio. Não por uma impossibilidade de compreensão, mas porque se
trata de uma discussão que pertence ao meio acadêmico. O resultado é o uso das expressões como sinônimas
(como é o caso, no corpus deste trabalho, de Texto e interação) ou um estudante que aprenda apenas uma,
pode confundir-se diante da outra. Tipos de texto tampouco é um termo apresentado com objetividade pelos
livros do corpus. Conclui-se, portanto, que a maneira como se aprende está ligada a escolhas feitas pelo material
didático que se adota e cada autor desses materiais pode fazer suas próprias escolhas tanto teóricas quanto
terminológicas.
Outro questionamento pertinente é a respeito com quais gêneros trabalhar. A partir da análise feita nos
livros que compõe o corpus, observou-se uma variedade bastante significativa também nisso. No PCN+ lê-se,
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o novo ensino médio, nos termos da Lei, de sua regulamentação e encaminhamento, deixa portanto de ser apenas preparatório para o ensino superior ou estritamente profissionalizante, para assumir a responsabilidade de completar a educação básica. Em qualquer de suas modalidades, isso significa preparar para a vida, qualificar para a cidadania e capacitar para o aprendizado permanente, seja no eventual prosseguimento dos estudos, seja no mundo do trabalho. (PCN+: s/d, p. 8)
Sendo assim, para atingir tais objetivos, quais os gêneros mais apropriados? Alguns são comuns a todos
os livros do corpus, como a crônica, mas há gêneros que se destacam. Viva Português, por exemplo, é o único
a trazer o cordel e o mito. Já os gêneros mais relacionados com a vida prática – como o abaixo-assinado e a
carta de reclamação – só aparecem em Texto e interação. Um aluno que tenha aprendido pelo Viva Português,
por exemplo, enfrentaria sérias dificuldades diante da prova da UNICAMP que se apresenta nesta pesquisa,
visto que o relatório e a carta aberta não foram gêneros escolhidos pelo livro para serem tratados nos três anos
do Ensino Médio.
Outro ponto a se destacar são as propostas de atividades a partir dos gêneros que os livros apresentam;
em geral bem detalhadas e lúdicas, elas envolvem, por exemplo, a encenação de textos teatrais e criação de
blogs. Contudo, é necessário ressaltar que o lúdico deve ser a compreensão e produção de textos e não a
atividade didática, pois o objetivo principal de uma aula de produção textual é desenvolver no estudante a
capacidade de leitura de mundo e a tradução disso em discursos próprios e adequados às suas necessidades
comunicativas na vida em sociedade (e que, obviamente, não se limitam aos exames de seleção universitários).
Em suma, têm-se materiais didáticos linguisticamente variados que devem ser usados por professores
para o ensino de uma produção textual que prepare o aluno para a vida. Entretanto, ainda que o objetivo inicial
de todos os livros analisados para esta pesquisa seja a de capacitar o estudante a atingir a autonomia textual, a
condução do trabalho da maneira como o conteúdo é exposto indica fortes tendências para a memorização de
estruturas, público-alvo, linguagem padrão, etc. a partir dos gêneros que são expostos, não apenas o texto
dissertativo-argumentativo.
Por isso, mais uma vez, volta-se à Redação em construção de Agostinho Dias Carneiro. Com uma
abordagem diferente dos livros didáticos que compõe o corpus, a obra do professor centra-se, de fato, naquilo
que os PCNs objetivam: a formação de um aluno com autonomia textual. Alguém que estude através da
proposta como a de Redação em construção sabe que dissertar é um modo de organização discursiva e, no
momento que enfrenta um exame seletivo que pede um texto dissertativo-argumentativo (como o ENEM) ou
uma dissertação (como a UFSC) sabe que o agente desse modo é um argumentador, ou seja, alguém que precisa
defender argumentos, informar, expor. Portanto, vai-se além de memorizar o que é uma tese, o que deve constar
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na introdução ou que conectores são os ideais para se usar em uma conclusão; trata-se de estar realmente
capacitado para organizar suas ideias e redigi-las com autenticidade.
Não se trata aqui de propor uma padronização de quais gêneros os livros didáticos devem trazer ou
de supor-se que uma teoria seja superior a outra, tampouco afirmar que o livro Redação em construção
apresenta um conteúdo melhor do que qualquer um dos que fazem parte do corpus pesquisado. O assunto é,
afinal, continuamente pesquisado porque oferece inúmeras oportunidades de reflexão e construção de uma
metodologia que visa, no ambiente educacional, criar produtores de texto independentes a ponto de, a partir
do conhecimento dos gêneros, expressarem sua individualidade.
O objetivo desta pesquisa foi o de identificar e refletir a respeito da disparidade das escolhas e dos
termos presentes no material didático disponível atualmente. Os prejuízos que o cenário da maneira como se
encontra pode causar aos estudantes são impossíveis de prever, mas já é uma realidade o fraco desempenho
dos jovens nas provas de redação. Isso vem se tornando cada vez mais problemático a ponto de o assunto ser
uma pauta recorrente nas publicações jornalísticas no período do ENEM e demais exames.
REFERÊNCIAS
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BAWARSHI, Anis S.; REIFF, Mary Jo (Org.). Gênero: história, teoria, pesquisa, ensino. Trad.: Benedito Gomes Bezerra. São Paulo: Parábola Editorial, 2013.
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Trad.: Paulo Bezerra. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011.
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CEREJA, William; COCHAR, Thereza. Texto e interação. São Paulo: Atual, 2013.
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Camille Roberta Ivantes Braz e Cimélio Senna Vasconcelos da Silva
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SANTOS, Leonor Werneck dos. Gêneros textuais nos livros didáticos: problemas do ensino e da formação docente. In: SANTOS, Leonor Werneck dos (Org.). Gêneros textuais nos livros didáticos de português: uma análise de manuais do ensino fundamental. E-book. Rio de Janeiro: UFRJ, 2011. p. 74-108. Disponível em: <http://www.lingnet.pro.br>. Acesso em: 05 mai. 2014.
Documentos publicados na internet
Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira – INEP. Guia do Participante do ENEM – 2012. Disponível em: <http://download.inep.gov.br/educacao_basica/enem/downloads/2012/guia_participante_redacao_enem2012.pdf>. Acesso em: 04 mai. 2015.
Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira – INEP. Guia do Participante do ENEM – 2013. Disponível em: <http://ensinomediodigital.fgv.br/staticpages/guia_participante_redacao_enem_2013.pdf>. Acesso em: 04 mai. 2015.
Ministério da Educação do Brasil – MEC. Parâmetros Curriculares Nacionais – Ensino Médio, 2000. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/14_24.pdf>. Acesso em: 04 mai. 2015.
Ministério da Educação do Brasil – MEC. PCN+ – Orientações Educacionais Complementares aos Parâmetros Curriculares Nacionais – Linguagens, Códigos e suas Tecnologias. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/linguagens02.pdf>. Acesso em: 04 mai. 2015.
Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC, Vestibular 2013 (redação). Disponível em: <http://antiga.coperve.ufsc.br/provas_ant/2013-3.pdf>. Acesso em 04 mai. 2015.
Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC, Vestibular 2014 (redação). Disponível em: <http://antiga.coperve.ufsc.br/provas_ant/2014-3.pdf>. Acesso em 04 mai. 2015.
Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP. Redação, 2014 Disponível em: <https://www.comvest.unicamp.br/vest_anteriores/provas_comentadas.html>. Acesso em: 04 mai. 2015.
Data de submissão: dez./2015.
Data de aprovação: fev./2015.
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DIRETRIZES GRAMATICAIS NO PROCESSO DE ENSINO/ APRENDIZAGEM DE PORTUGUÊS PARA ESTRANGEIROS
Adriana ALBUQUERQUE1
RESUMO O objetivo deste artigo é apresentar algumas reflexões acerca de questões gramaticais relevantes para o ensino de Português para Estrangeiros. Nossa discussão terá como base teórica os parâmetros que norteiam a Gramática Funcional do Discurso (HENGEVELD, 2004), considerando, portanto, aspectos que vão além do ensino tradicional da gramática. Contudo, para esta discussão, reconhecemos a necessidade de o professor ter o domínio das regras prescritas por nossos gramáticos, tendo em vista que, somente assim, acreditamos que ele poderá tornar-se competente o suficiente para discernir sobre o que se deve ensinar em uma aula de segunda língua e/ou de língua estrangeira e, sobretudo, escolher o melhor caminho para apresentar conteúdos gramaticais pertinentes ao seu aprendiz. PALAVRAS-CHAVE: Português para estrangeiros. Ensino de gramática. Verbos. ABSTRACT The purpose of this article is to present some reflections on grammatical issues that are relevant to the teaching of Portuguese for Foreigners. The theoretical basis for this discussion will be the parameters that guide the Functional Discourse Grammar (HENGEVELD, 2004); therefore, some aspects that go beyond traditional grammar teaching will be considered here. However, we also recognize that the teacher needs to have mastery of the rules prescribed by traditional grammarians, given that only then he/she can become competent enough to discern what should be taught in a second language and/or foreign language class. Above all, this way he/she can choose the best way to present grammatical content which is relevant to the students. KEYWORDS: Portuguese for Foreigners. Grammar teaching. Verbs.
1 Professora Adjunta da PUC-RIO; co-coordenadora dos cursos de graduação de Português para Estrangeiros e do curso de
Especialização em Formação de Professores de Português para Estrangeiros, nessa mesma instituição.
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INTRODUÇÃO
Na área de pesquisa sobre o Português como Segunda Língua para Estrangeiros (PL2E), na PUC-Rio,
adotamos, entre outras teorias, alguns conceitos da Gramática Funcional do Discurso (GFD), desenvolvida por
Hengeveld (2004), porque, apesar de tal modelo de análise entender a gramática como um sistema formalizado
que incorpora fenômenos inerentes à construção do discurso pelos interlocutores, defende a ideia de que para
se entender o estrutural deve-se considerar a semântica, a intenção do falante e a sua relação com a construção
do discurso, além de sua influência no uso deste, considerando-se que tais relações são expressas por meio de
estratégias comunicativas.
Nesta teoria, trabalhamos com as duas camadas verticais que representam os aspectos interpessoal e
representacional da linguagem. A oração, neste sentido, é vista como a representação de um ato de fala, estando
localizada no tempo e no espaço, podendo ser avaliada no que se refere às suas condições de felicidade.
O nível Interpessoal se refere à estratégia linguística adotada por um falante ao usar uma dada unidade
linguística em seu enunciado. O nível mais alto, Move, corresponde a uma contribuição autônoma do falante
para uma interação contínua, que, na fala, geralmente, corresponde a um turno.
O nível Representacional se refere à função textual dos elementos linguísticos usados pelo falante em
seu enunciado. O nível mais alto é o Episódio, o qual apresenta um conjunto semanticamente coerente de
conteúdos proposicionais.
Sendo assim, o trabalho que apresentamos, aqui, discorre sobre algumas diretrizes relevantes para se
abordarem determinados tempos do modo indicativo, de forma prática, objetiva e funcional, em aulas de
português como segunda língua ou, ainda, na elaboração de materiais didáticos que se destinam a este público.
Nosso objetivo é apresentar, em linhas gerais, o uso do pretérito perfeito e do imperfeito do indicativo,
tendo em vista que os quase 20 anos de experiência na área, como professora de PL2E e como coordenadora
do curso de Formação de Professores de Português para Estrangeiros, têm nos mostrado a expressiva falta de
“intimidade” de muitos professores de português com as sutilezas e peculiaridades que estes tópicos, aqui
tratados, apresentam. Parece-nos, muitas vezes, que estamos trabalhando com o óbvio, pois, ao nos depararmos
com práticas discursivas cotidianas de determinados usos destes tópicos verbais, nas aulas do curso de
Formação, ouvimos, em diversos momentos, frases como “É mesmo! Nós fazemos assim” ou “Nossa! Eu nunca
tinha pensado nisso, mas é assim mesmo que falamos”.
Desta forma, acreditamos que fazer um exercício de mudança de ponto de vista, uma alteração de
enfoque, é fundamental para que se possa iniciar um trabalho de descrição do português como segunda língua;
o que podemos chamar, nas palavras da professora Rosa Marina de Brito Meyer, de "torção do pensamento", e
Adriana Albuquerque
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o que nós chamaríamos de "olhar estrangeiro". Um olhar de estranhamento, de encontro com o novo, e que é
construído a partir do Outro. Olhar que parece não pertencer a nenhum território, que parece não ter uma
identidade definida.
Segundo Revuz (1998, p. 229), no texto A Língua estrangeira entre o desejo de um outro lugar e o
risco do exílio, “aprender uma outra língua é fazer a experiência de seu próprio estranhamento no mesmo
momento em que nos familiarizamos com o estranho da língua e da comunidade que a faz viver.” Dessa forma,
entendemos que há no processo de ensino-aprendizagem de uma segunda língua um duplo estranhamento: de
um lado, o dos professores, o olhar estrangeiro, e, do outro, o dos alunos, o olhar do estrangeiro.
Passamos, então, a seguir, para a apresentação do nosso olhar enviesado, estrangeiro e óbvio para os
dois referidos passados do modo indicativo.
1. OS PASSADOS EM PORTUGUÊS: PRETÉRITOS IMPERFEITO
E PERFEITO DO INDICATIVO
1.1. O pretérito imperfeito
Segundo Cunha e Cintra (2013, p. 465-466), o pretérito imperfeito encerra uma ideia de continuidade,
de duração do processo verbal mais acentuada do que os outros tempos pretérito e que o seu valor fundamental
é o de designar um fato passado, mas não concluído. Afirmam, ainda, que o referido tempo é empregado
quando: a) transportamo-nos a uma época passada e descrevemos o que então era presente, b) indicamos, entre
ações simultâneas, o que estava sendo processado quando outra ação sobreveio, c) denotamos uma ação
habitual ou repetida, d) designamos fatos passados concebidos como contínuos ou permanentes, e) denotamos
um fato com valor de futuro do pretérito, f) queremos ser polidos, atenuando uma afirmação ou um pedido e g)
situamos vagamente, no tempo, contos, lendas, fábulas, etc.
Essas informações sobre o uso do imperfeito são, basicamente, apresentadas por quase todas as
gramáticas de cunho tradicional e, por sua vez, em quase todo material didático destinado ao ensino de
português língua materna ou não. Contudo, é preciso observar que as formas temporais não são utilizadas,
apenas, para fixar cronologias de estados de coisas, relacionando, unicamente, suas referências aos tempos
simultâneo, anterior ou posterior ao ato de fala.
Para Castilho (2012, p. 432), utilizamos os tempos, também, para nos deslocarmos livremente pela
linha do tempo, de acordo com nossas necessidades expressivas, refugiando-nos, segundo o autor, em um
tempo imaginário, que escapa à medição cronológica ou em um domínio vago, genérico, impreciso, atemporal.
O referido autor apresenta os seguintes valores semânticos para o pretérito imperfeito:
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(116) Pretérito imperfeito real, indicando anterioridade não pontual a) Estado de coisas durativo: Quando cheguei, ela olhava pelo buraco da fechadura. b) Estado de coisas iterativo: Lá vejo o atalho que vai dar na várzea. /Lá o barranco por onde eu subia. (117) Pretérito imperfeito metafórico: a) Pelo presente, nos usos de atenuação e polidez: Eu vinha saber se você já pode devolver meu carro. Queria que vocês aceitassem a minha proposta. b) Pelo pretérito perfeito, no chamado “imperfeito de ruptura”: Conheceram-se em maio, em junho se casavam. c) Pelo imperfeito do subjuntivo: Se eu percebia que o carro ia resvalando para o buraco, tinha saltado muito antes. d) Pelo futuro do pretérito, no discurso indireto/no discurso indireto livre: Ela disse que vinha logo. /Era necessário, mesmo, libertá-lo? /Você bem que podia me arranjar um emprego. /Numa viagem ao norte, desistiu de fazer a conferência. Os colegas insistiam. Não, não fazia. (118) Pretérito imperfeito atemporal (“imperfeito de conatu”): a) Sentada na borda a cama, afinal, ela ia embora. (CASTILHO: 2012, p. 433)
No entanto, vejamos o uso do imperfeito no diálogo abaixo:
Nossa, professora Adriana, como a senhora sente prazer em dar aula sobre verbos! Sinto mesmo! E, olha, que eu já gostava de gramática desde a minha adolescência.
De acordo com Castilho (2012, p. 432), “o pretérito imperfeito representa os estados de coisas que
duraram no passado”. Contudo, esta informação, aliada a todos os empregos que Cunha e Cintra (2013) e o
próprio Castilho (2012) apresentam, não dá conta de explicar para o aluno estrangeiro que no diálogo, acima,
o imperfeito está sendo usado para se referir a uma ação que ainda continua no presente. Ou seja, começou no
passado e tem duração até o momento de referência da fala.
Podemos, portanto, analisar, no referido contexto do diálogo, de acordo com o nível representacional
da GFD, a importância da função textual do elemento linguístico já para designar a intenção comunicativa do
falante. A retirada deste elemento daria uma outra referência temporal ao imperfeito, revelando um matiz de
passado durativo, acabado.
Ampliar, portanto, este olhar sobre o uso do imperfeito é fundamental para os aprendizes de PL2E que
estão em um nível intermediário de aprendizagem. É preciso, portanto, que o professor domine as regras
prescritivas, mas também amplie seus horizontes para perceber usos outros que este tempo pode apresentar.
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1.2. O pretérito perfeito
Neste artigo, iremos tratar, apenas, de algumas peculiaridades referentes ao uso do pretérito perfeito
simples, tendo em vista a limitação de páginas para esta publicação. No entanto, é importante ressaltar a
extrema relevância que o pretérito perfeito composto apresenta no processo de ensino e aprendizagem de PL2E,
pois o mesmo apresenta particularidades muito especiais ao ser comparado com tempos verbais similares em
outras línguas, tais como espanhol, francês, italiano, inglês e alemão (cf. MEYER e ALBUQUERQUE, 2011).
Cunha e Cintra (2013, p. 468-470) afirmam que o pretérito perfeito simples é empregado para
descrever o passado tal como aparece a um observador localizado no presente e o que se considera do presente,
indicando, portanto, uma ação que se produziu em certo momento do passado. Os autores ainda acrescentam
que este tempo é denotador de uma ação completamente concluída.
Castilho (2012), ao apresentar as nossas necessidades expressivas realizadas com o uso do pretérito
perfeito, mostra-nos o seguinte:
(113) Pretérito perfeito real, indicando anterioridade a) Pretérito pontual: Andou um pouco e caiu logo em seguida. b) Pretérito durativo: Andou um pouco e caiu logo em seguida. c) Pretérito iterativo: Perdi sempre no jogo do bicho. (114) Pretérito perfeito metafórico a) Pelo imperfeito: Quando eu trabalhei lá, eu o vi diariamente. b) Pelo mais-que-perfeito: Eu o avisei que o padeiro tinha chegado, por que você não saiu logo para comprar o pão? c) Pelo futuro do presente: Bateu em meu filho? Morreu! d) Pelo futuro do presente composto: Pode passar por aqui às seis horas, porque até lá já acabei o trabalho. e) Pelo pretérito perfeito do subjuntivo: Quem o fez que o diga. (115) Pretérito perfeito atemporal a) Pretérito aorístico: Quem morreu, morreu. b) Pretérito nos marcadores discursivos: Faça isso hoje, viu? (CASTILHO: 2012, p. 433)
Sendo assim, vejamos, o exemplo de um possível diálogo a seguir:
– E aí, Bruna, tudo bem? – Tudo tranquilo! Já sabe qual é a boa do fim de semana? – Que nada, cara! Tenho que terminar meu trabalho final do curso de Literatura Brasileira. – Caramba! É mesmo!? Combinamos de tomar um chope no barzinho do Lucas. É aniversário da Eduarda. Vê se dá pra você ir.
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– Tá. Vou ver se consigo adiantar o trabalho. Acho que até sábado, já terminei tudo e encontro vocês lá. – Maravilha! A gente vai te esperar! Boa sorte com o trabalho. – Valeu! Beijo. –Beijo!
Ao analisar o uso do pretérito perfeito (em destaque) neste diálogo, observamos que a informação geral
apresentada por Cunha e Cintra (2013), sobre este tempo, não nos ajuda muito a entender a relevância de seu
emprego sem o valor semântico de passado acabado. Neste diálogo, muito comum em nossas conversas diárias,
vemos um uso do perfeito simples com valor de futuro. Emprego este que pouquíssimos falantes nativos se dão
conta que o fazem. Entretanto, ainda que colocada, infelizmente, em uma posição de menor relevância, esta
informação é encontrada na gramática tradicional que citamos acima. Cunha e Cintra (2013, p. 470), na parte
de observações, afirmam que “na linguagem coloquial não é raro o emprego do PRETÉRITO PERFEITO SIMPLES
pelo FUTURO DO PRESENTE COMPOSTO”. E nos apresentam o seguinte exemplo: Quando virmos, lá em
baixo, o clarão da fogueira, já ele morreu... (= terá morrido). Por sua vez, como apresentado acima, Castilho
(2012) também descreve este valor semântico do pretérito perfeito chamando-o de metafórico. Ou seja, o
referido emprego deste tempo está prescrito e descrito em nossas gramáticas e, surpreendentemente, não é
abordado de forma efetiva nas aulas de PL2E. Isso ocorre porque muitos professores da nossa área de ensino se
baseiam no valor semântico mais básico do pretérito perfeito, em suas aulas e na elaboração de material
didático, tomando-o, simplesmente, como um tempo verbal de passado pontual e acabado.
Um outro importante emprego do pretérito perfeito, realizado com o advérbio sempre, também deve
ser apresentado aos aprendizes de português língua não materna.
Vejamos o exemplo:
– Você gosta de almoçar, aqui, no restaurante da universidade? – Eu sempre almocei aqui. Adoro a comida do Bandejão.
Neste caso, o pretérito perfeito denota uma ação que não foi concluída. Ou seja, refere-se a algo que
começou no passado, continua até o presente, podendo se prolongar para o futuro. Castilho nos apresenta
exemplo similar, mas com o advérbio sempre em posição pós-verbal (Perdi sempre no jogo), indicando,
portanto, um valor de tempo anterior ao momento da fala. Além disso, apesar de categorizar tal emprego como
iterativo, o autor não o apresenta em contexto dialogado, o que pode deixar dúvidas sobre o fato de a ação já
ter terminado, referir-se somente ao passado, ou de a mesma ainda continuar no momento da fala.
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O aluno de PL2E, exposto a esse tipo de emprego, questiona o porquê de não se utilizar, simplesmente
o presente (almoço) ou pretérito perfeito composto (tenho almoçado).
Partindo de um exemplo contextualizado, preferencialmente, em um diálogo, a diferença pode ser
explicada, grosso modo, da seguinte forma:
a) Eu sempre almocei aqui há uma intenção de informar que o locutor almoça há muito tempo e que
pretende continuar almoçando também por bastante tempo;
b) Eu tenho almoçado aqui denota a intenção de revelar que, por alguma razão, o locutor, durante
um período determinado, começou a almoçar no referido restaurante, mas, provavelmente, vai parar
de almoçar; podemos ilustrar a ideia desta construção linguística com uma situação, por exemplo, em
que o enunciador está almoçando, provisoriamente, em tal restaurante porque sua empregada está de
férias.
c) Eu sempre almoço aqui há uma intenção de informar que a ação de almoçar é mais recente; o que
difere bastante do uso realizado com o pretérito perfeito simples.
Em todas as situações, acima, a ação começou no passado e tem valor aspectual durativo,
ultrapassando, inclusive, temporalmente, o momento da fala. Cada escolha do falante envolve, no nível
interpessoal, segundo a GFD, uma estratégia linguística, adotada pelo falante para atingir seus objetivos
discursivos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A escolha de determinados tempos verbais, como de qualquer outra estrutura linguística, durante o
processo discursivo é um processo natural do falante, e o ouvinte, usuário da mesma língua, sabe perfeitamente
o que quer exprimir cada uma delas. Explorar a polifuncionalidade dessas estruturas não é tarefa fácil, mas pode
e deve fazer parte dos trabalhos de pesquisa que acompanham o professor de PL2E em sua formação acadêmica.
Meyer (1998), em artigo intitulado Aspectos semântico-discursivos do português como língua
estrangeira, enfatiza a necessidade de se desenvolver estudos concernentes às estruturas semântico-discursivo-
pragmáticas do português, uma vez que o domínio destas determinará a eficácia do desempenho linguístico
social do falante não nativo. Ler sobre o Brasil, segundo a autora, não é suficiente para que o falante não nativo
comporte-se como um brasileiro. Por outro lado, ficar, apenas, discorrendo sobre aspectos particulares da
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cultura brasileira em geral, como música, religião e culinária, também não será suficiente em termos de
conhecimento mais amplo da língua.
Podemos, ainda, acrescentar que não podemos continuar a nos ater, no processo de ensino de PL2E,
apenas a questões que discutem relações professor/aluno, formação do professor, adequação de recursos da
mídia, relatos de experiência com textos literários, etc., como se tem visto em muitos congressos e seminários
destinados ao assunto. Com isso não queremos dizer que essas questões não tenham a sua devida importância,
mas mostrar que os estudos descritivos na nossa área não se resumem a esses aspectos. A abordagem da
gramática, seguindo parâmetros funcionalistas, é de extrema relevância no ensino de PL2E e deve ser realizada
de forma abrangente, eficiente e segura pelos professores e autores de material didático.
É preciso reconhecer que estamos diante de um universo amplo, diferente, estranho, que deve ser
explorado a partir da percepção da existência das relações que fundamentam todo o processo. Relações de
estranhamento com a nossa própria língua e que nos mostram pistas de um olhar enviesado que se não se define
em um ato concluidor; um olhar que pode sacralizar o óbvio, o banal, e banalizar o sagrado.
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Data de submissão: abr./2016.
Data de aprovação: abr./2016.
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BANCOS DE DADOS SOCIOLINGUÍSTICOS EM PORTUGUÊS
Edila Vianna da SILVA1
RESUMO O objetivo deste artigo é apresentar resultados preliminares do levantamento de corpora linguísticos em Português. Partindo do pressuposto de que bancos de dados linguísticos são fonte privilegiada para a descrição da língua e considerando a necessidade de divulgação dessas fontes de estudos, descrevemos características de importantes bancos constituídos sobre a língua portuguesa. O conhecimento mútuo do trabalho dos vários investigadores – que não ocorre com a devida sistematicidade entre brasileiros e portugueses e até mesmo entre pesquisadores das regiões brasileiras – pode propiciar uma visão ampla das variedades do português e facilitar a realização de estudos contrastivos não só entre dialetos brasileiros, mas também entre brasileiros e portugueses numa linha de investigação que certamente contribuirá para o esclarecimento de muitos fatos linguísticos em variação. PALAVRAS-CHAVE: Bancos de dados linguísticos. Política linguística. Difusão da Língua Portuguesa. ABSTRACT The purpose of this paper is to present some preliminary results of the research of linguistic corpora in Portuguese. Assuming that linguistic databases are privileged source for the description of language and considering the need for disclosure of sources of these studies, we describe characteristics of major banks made about the Portuguese language. Mutual knowledge of the work of several researchers, which does not occur systematically between Brazilian and Portuguese and even among researchers of the Brazilian regions, can provide a broad overview of the varieties of Portuguese and facilitate the realization of contrastive studies not only among Brazilian dialects but also between Brazilian and Portuguese ones in a line of research will certainly contribute to clear many linguistic variation facts. KEYWORDS: linguistic corpora; language police; diffusion of the Portuguese language.
1 Doutora em Letras Vernáculas (UFRJ). Professora Associada da UFF. Membro da Academia Brasileira de Filologia. Membro do GT
de Sociolinguística da ANPOLL. É coautora de Dúvidas em português nunca mais (Lexikon, 3. ed., 2011) e possui várias publicações sobre descrição do português e variação linguística.
Bancos de dados sociolinguísticos em português
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INTRODUÇÃO
A composição e disponibilização de corpora do Português tem sido ponto amplamente discutido em
vários encontros de linguistas, especialmente no âmbito dos congressos dedicados aos estudos de difusão da
lusofonia, uma vez que bancos de dados linguísticos são indubitavelmente fonte privilegiada para a descrição
da língua.
Partindo desse pressuposto e considerando a necessidade de divulgação dessas possíveis fontes de
estudos, desenvolvemos um projeto de levantamento, em nível nacional e internacional, dos bancos
constituídos sobre a língua portuguesa, com o objetivo de fornecer subsídios para estudos das variedades
transcontinentais do Português em suas modalidades oral e escrita.
A elaboração de um registro dos bancos de dados do português assenta-se na observação de que a
comunidade internacional tem um conhecimento precário das investigações sobre a língua portuguesa, que já
compõem um número significativo de trabalhos, mas que não encontram divulgação adequada entre os
estudiosos do Português. Consideramos importante, dessa forma, realizar o registro dos bancos como
contribuição preliminar para o diagnóstico da situação sociolinguística da língua portuguesa, de modo a basear
a constituição dos perfis sociolinguísticos das variedades faladas e identificar suas especificidades e
similaridades.
Consideramos na pesquisa, consequentemente, a existência de um conjunto de variedades linguísticas
na grande comunidade de fala da língua portuguesa. Dessa forma, o trabalho tem suporte nos princípios da
sociolinguística, uma vez que correlaciona os aspectos linguísticos e os sistemas sociais, em especial no
variacionismo de William Labov (2008).
Com base em questões formuladas para a caracterização de cada um dos conjuntos de dados:
parâmetros de constituição, posição teórica, pesquisas orientadas, sua representatividade e adequação etc.,
procuramos traçar um perfil desses corpora para orientar o acesso dos pesquisadores.
1. RETROSPECTIVA
Um retrospecto sobre alguns eventos científicos dedicados à discussão de bases e critérios para a
constituição de bancos mostra que essa preocupação não é recente. Desde os anos 50, as pesquisas linguísticas
já se baseavam em corpora, organizados inicialmente com a finalidade de elaboração de atlas linguísticos.
Somente a partir da década de 70, passaram a ser formados acervos de perfil sociolinguístico, entre os quais os
do projeto NURC, que se dedicou a descrever a fala das cinco capitais brasileiras que, em 1968 – início do
projeto no Brasil – tinham mais de um milhão de habitantes e, pelo menos, cem anos de fundação.
Edila Vianna da Silva
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Sabemos da existência de grande número de acervos, mas o último levantamento de que se tem
notícia, de acordo com Brandão (2008, p. 143-154), foi apresentado em 1994, na Universidade Federal do
Espírito Santo, na 46ª Reunião Anual da SBPC, quando se realizou um encontro sobre “Informatização de
acervos de língua portuguesa”. Na oportunidade, Ataliba T. de Castilho, Giselle Machline de Oliveira e Silva e
Dante Lucchesi enumeraram algumas iniciativas no sentido de viabilizar o compartilhamento e a
informatização das amostras e apresentaram um levantamento, ainda que parcial, dos corpora existentes, feito
com base em ficha preparada por Rodolfo Ilari e enviada aos grupos de pesquisa.
Nessa reunião, ainda segundo Brandão, já foi possível identificar 51 acervos, constatando-se que: (a)
as amostras institucionais (84%) predominavam sobre as particulares (16%) e que a maior parte delas estava
sediada em universidades federais (67%); (b) havia maior número de acervos de língua falada (74,5%) do que
de língua escrita (20%) ou de ambas as modalidades (5.5%), e (c) que havia apenas cinco projetos na área do
Português arcaico e clássico.
Duas conclusões destacaram-se do levantamento apresentado: o fato de grande parte dos acervos já
estarem à época digitados e disponíveis e o interesse dos pesquisadores em disponibilizar corpora, o que
anteriormente não acontecia.
Desde o encontro mencionado, apesar do interesse que o tema passou a despertar, não se produziu
outro levantamento sistemático, com objetivo de subsidiar pesquisas sobre as variedades do português.
2. BANCOS DE DADOS
A descrição dos corpora, abaixo resumida em seus mais relevantes traços, baseou-se em um
levantamento preliminar de a) projetos de pesquisa de diferentes áreas e de diferentes quadros teóricos, que
contassem com amostras de dados e de b) bancos independentes.
2.1. Bancos de dados nacionais
PROJETO NURC
No Rio de Janeiro, iniciou-se, na UFRJ, a organização de corpora para estudos linguísticos, em função
da extensão ao domínio da Língua Portuguesa do Projeto de Estudo Coordenado da Norma Linguística Oral
Culta das Cidades da Iberoamérica e da Península Ibérica (CUNHA, 1985). As orientações metodológicas desse
projeto basearam a criação do Projeto NURC, que reunia amostras de fala das cinco capitais brasileiras que, à
época, tinham mais de um milhão de habitantes e pelo menos cem anos de fundação.
Bancos de dados sociolinguísticos em português
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A partir de 1973, no Rio de Janeiro, uma das cidades escolhidas, começou, então, a formação da
amostra composta de elocuções formais (EF), diálogos entre informante e documentador (DID), diálogos entre
dois informantes (D2). Procurava-se caracterizar a fala de cariocas com nível superior, distribuídos por gênero
e três faixas etárias formando um corpus representativo da fala culta, posteriormente enriquecido com duas
outras amostras, a complementar e a de recontato, ambas da década de 90, num total de 394 informantes
(www.letras.ufrj.br/nurc-rj).
CORPUS CENSO / Programa de Estudos sobre o Uso da Língua (PEUL)
Em 1979, Anthony Naro reuniu um grupo de pesquisadores com a finalidade de estudar fenômenos
variáveis com base na fala carioca não-standard e organizou a Amostra Censo da Variação Linguística no Rio
de Janeiro, mais tarde conhecida por Corpus Censo, que conta com um total de 64 informantes, 48 deles adultos
distribuídos por três faixas etárias (e também estratificados por gênero e três níveis de escolaridade) e 16 crianças
entre 7 e 14 anos (Silva, 1996). A partir de finais da década de 80, com a diversificação de linhas de pesquisa
entre os pesquisadores, o grupo passou a denominar-se de Programa de Estudos sobre o Uso da Língua (PEUL)
e, ao longo do tempo, acrescentou-se à amostra Censo, além do corpus Mobral (a base do Censo), por iniciativa
de Miriam Lemle e Anthony Naro, o Projeto Competências Básicas do Português (Scherre, 1996), e outros
corpora de língua falada, inclusive de recontato, bem como de língua escrita (Paiva e Scherre, 1999),
disponibilizados na web, sob a denominação de Banco de Dados do PEUL.
PROJETO DO ATLAS ETNOLINGUÍSTICO DOS PESCADORES DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO (Projeto
APERJ)
Em finais da década de 80 e ao longo da primeira década de 90, formou-se o corpus do Projeto do
Atlas Etnolinguístico do Estado do Rio de Janeiro (APERJ), sob a supervisão do Professor Celso Cunha e
participação de docentes da Faculdade de Letras da UFRJ. A amostra, com 178 horas de gravação, resultou de
entrevistas referentes à aplicação de Questionário e a elocuções livres realizadas em comunidades pesqueiras
da Região Metropolitana e sobretudo nas Regiões Norte e Noroeste. Em relação às duas últimas áreas, há 78
inquéritos, atualmente em vias de digitalização, realizados em 13 localidades daquela região, com indivíduos
analfabetos ou escolarizados até a quarta série do Ensino Fundamental, distribuídos por três faixas etárias. O
corpus vem sendo alargado para atingir as regiões das Lagunas Litorâneas, Metropolitana e Sul do Estado do
Rio de Janeiro, prevendo-se a inclusão de 36 outras comunidades. Além da recolha sistemática de dados
(constituição do Arquivo Sonoro referente à fala de 49 localidades do Estado), o Projeto desenvolve estudos nas
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linhas sociolinguística variacionista e especificamente dialectológica, visando à descrição e análise de aspectos
fonético-fonológicos, morfossintáticos e léxicos da fala popular do Rio de Janeiro. Tem contado com a
colaboração de bolsistas de Iniciação Científica e contribuído para a formação de alunos de Mestrado e
Dourado. Foram defendidas dissertações e teses com base no corpus e orientações metodológicas do Projeto.
PROJETO DISCURSO E GRAMÁTICA (D&G)
O projeto Discurso e Gramática, de natureza interinstitucional, organizou sua amostra entre os anos
de 1993 e 1994, com dados recolhidos, no que se refere ao Rio de Janeiro, entre 93 informantes distribuídos
por gênero e seis níveis de instrução (alfabetização infantil e de adultos, 4ª. e 8ª. séries do Ensino Fundamental,
2ª série do Ensino Médio e último ano do Ensino Superior). Esses informantes produziram cinco tipos de textos
orais (narrativa de experiência pessoal, narrativa recontada, descrição de local, relato de procedimento e relato
de opinião) e, a partir deles, cinco textos escritos, procedimento metodológico que teve por objetivo garantir a
comparabilidade entre fala e escrita. Integra também a amostra os corpora organizados com base em parâmetros
semelhantes, registrados nas cidades de Niterói-RJ, Juiz de Fora-MG e Natal-RN.
PROJETO PARA UMA HISTÓRIA DO PORTUGUÊS BRASILEIRO – PHPB-Rio
Em 1998, organizou-se o PHPB, projeto de âmbito nacional, que iniciou a constituição de um corpus
diacrônico composto por documentos de administração pública e privada, documentos particulares e textos
literários que se distribuem do século XII ao XX, bem como por textos jornalísticos dos séculos XIX e XX. Alguns
desses materiais já se encontram na web (www.letras.ufrj.br/phpb.rj), a exemplo do que acontece com parte da
amostra (cartas pessoais e peças populares dos séculos XVII e XVIII) do Laboratório de História do Português
Brasileiro (Labor Histórico-RJ), criado em 2004 e concebido com “o principal objetivo de organizar e tornar
disponível o acervo documental do PHPB para estudos sobre mudança lingüística”
(www.letras.ufrj.br/laborhistorico). A estas iniciativas soma-se, ainda, o Projeto O português brasileiro: da
história social à história linguística em cujo site – www.letras.ufrj.br/socio-historia – encontram-se, no momento,
as cartas a Rui Barbosa, “escritas no período de 1866 a 1899, que constam do Arquivo de Rui Barbosa Inventário
Analítico da Série Correspondência Geral Vol. 1 – Correspondentes usuais: pessoas físicas (Fundação Casa de
Rui Barbosa, Rio de Janeiro).”
A página do PHPB na internet reúne, na verdade, uma prévia do chamado Corpus Comum Mínimo
(materiais de mesma natureza editados pelas equipes regionais para controle diatópico), bem como do
denominado Corpus Diferencial (corpora complementares para controle contrastivo com o corpus comum:
Bancos de dados sociolinguísticos em português
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textos de portugueses, literários, gêneros textuais diversos etc. Cada material editado ainda figura conforme sua
normatização original, mas, posteriormente, pretende-se submeter todos os textos às Normas de Edição do
Projeto PHPB, com a constituição do corpus comum mínimo definitivo do Projeto.
PROJETO DO ATLAS LINGUÍSTICO DO BRASIL (PROJETO ALiB)
O ALiB propõe-se descrever a realidade do Português do Brasil, com base no registro da fala das
diversas áreas geográficas do País, representadas nos 250 pontos que constituem a rede escolhida para
investigação. Documenta-se a fala de 1100 informantes, distribuídos em duas faixas etárias (faixa I, de 18 a 30
anos e faixa II, de 50 a 65 anos), dois níveis de escolaridade nas capitais (fundamental e superior) e de um nível
nas demais regiões (fundamental) e com igual número de homens e mulheres.
Em 2003, foi criada a Coordenadoria Regional do ALiB-Rio, que se dedicou especialmente à realização
do trabalho de campo, seguida da transcrição das entrevistas e da organização do corpus, constituído de 60
entrevistas em 14 municípios do Estado (oito na capital e quatro em cada um dos demais pontos), conforme se
indica em www.letras.ufrj.br/posverna/projalibrio.htm. Realizaram-se recolhas em Arraial do Cabo, Barra
Mansa, Campos, Itaperuna, Macaé, Nova Friburgo, Nova Iguaçu, Niterói, Rio de Janeiro, Parati, Petrópolis, São
João da Barra, Três Rios e Valença, que se basearam em amostras de fala de informantes distribuídos por ambos
os sexos, por duas faixas etárias e dois níveis de escolaridade nas capitais (fundamental – até a 4ª série –, e
superior) e um nível de escolaridade nos demais municípios (nível fundamental), de acordo com as normas
estabelecidas.
Segundo informações recentes, estão concluídos em todos os estados os trabalhos de constituição do
corpus do ALiB que, embora ainda não publicado, está acessível, com as fotos das 250 localidades que
compõem a rede de pontos de inquérito, em www.alib.ufba.br. Deve-se salientar que, no momento, concluída
a constituição do corpus, caminha-se na direção da publicação dos primeiros volumes. Assim, estão previstos
três volumes referentes às capitais brasileiras: Volume 1 – Introdução, Volume 2 – Cartas linguísticas
(fonéticas/prosódicas, semântico-lexicais e morfossintáticas) e Volume 3 – análise dos dados cartografados. O
expressivo volume de informação referente às cidades que integram a rede de pontos em cada um dos estados
brasileiros está em processo de análise.
PROJETO VARPORT
O VARPORT (Análise Contrastiva de Variedades do Português) é um Projeto de Cooperação
Internacional Brasil / Portugal, financiado pela CAPES / ICCTI nº 63/00. O seu principal objetivo é consolidar e
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intensificar a integração entre os trabalhos que vêm sendo realizados em Portugal e no Brasil sobre determinados
fenômenos da Língua Portuguesa, de modo a oferecer um quadro geral contrastivo de suas variedades
nacionais, com ênfase no desempenho de falantes representativos das variantes padrão e não padrão. Para
atingir sua meta principal, qual seja, propiciar não só o conhecimento das características comuns que se
mantêm nas diversas variedades do Português, mas também a aferição das diferenças que se vão revelando a
partir das mudanças linguísticas que se processaram e/ou se processam, independentemente, no Brasil, em
Portugal e em África, constituiu-se o Corpus Compartilhado VARPORT, formado entre 2000 e 2004, formado
por um total de 252.300 palavras ao qual se tem acesso por meio do site www.letras.ufrj.br/varport. A
constituição desse corpus corporifica a reunião de dados pertencentes a diferentes amostras segundo critérios
comuns. Disponibilizado, na íntegra, na web, com arquivos de texto e de voz conta com entrevistas
selecionadas dos corpora dos Projetos NURC-RJ (já mencionado neste trabalho), Português Fundamental e
Corpus de Referência do Português Contemporâneo (CRPC) e das elocuções livres do APERJ (também
mencionado) e do Atlas Linguístico-Etnográfico de Portugal e da Galiza (ALEPG).
PROJETO AVAL-RJ
O Projeto Acervo das Variedades Linguísticas Fluminenses – AVAL-RJ, de perfil geo-sociolinguístico,
desenvolve-se na Faculdade de Letras da UFRJ com o objetivo de basear pesquisas em duas vertentes, uma
voltada para a modalidade falada e outra para a escrita. A amostra, constituída em 2008-2009, abrange dados
da fala popular coletados em doze municípios representativos das oito regiões do Estado do Rio de Janeiro, a
saber: São Francisco de Itabapoana, Porciúncula, Santa Maria Madalena, Cabo Frio, Cachoeiras de Macacu,
Itaguaí, Parati, Valença, Três Rios, Quissamã e Resende (ALMEIDA, 2008), assim como em quatro municípios
localizados no entorno da Baía de Guanabara: Nova Iguaçu, Duque de Caxias, Magé e Itaboraí (LIMA, 2006).
Em cada sede de município, entrevistaram-se 18 indivíduos estratificados por gênero, faixa etária (três) e nível
de instrução (três) e recolheram-se 500 redações distribuídas por cinco níveis de ensino e dois tipos de texto. O
Projeto conta, ainda, com dados da fala popular e culta da cidade do Rio de Janeiro. A utilização de dados de
fala popular fundamenta-se, entre outros motivos, no fato de já haver trabalhos realizados com enfoque na
norma culta da cidade do Rio de Janeiro, sendo relevante, portanto, um estudo comparativo que investigue se
a fala carioca: a) se diferencia das demais localidades sob análise e em que medida; b) é norma irradiadora das
demais; e c) se há uma diferenciação entre o rural e o urbano, à medida que se pretende analisar também
municípios da região metropolitana.
Bancos de dados sociolinguísticos em português
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PROJETO DO CORPUS DO PORTUGUÊS CLÁSSICO E MODERNO
Esse corpus ainda em constituição reúne (a) produção manuscrita no Brasil durante o Período Clássico
(séculos XVI, XVII e XVIII); e (b) produção manuscrita e impressa no Brasil durante o Período Moderno (séculos
XIX e XX).
PROJETO CORPUS BRASILEIRO
O projeto Corpus Brasileiro, do grupo GELC, que está sediado no Centro de Pesquisas, Recursos e
Informação de Linguagem (CEPRIL), Programa de Pós-Graduação em Linguística Aplicada (LAEL) da PUCSP,
com apoio da FAPESP, visa a construir e disponibilizar online (http://corpusbrasileiro.pucsp.br/cb/Inicial.html)
o Corpus Brasileiro, que será composto por um bilhão de palavras do português brasileiro contemporâneo, de
vários tipos de linguagem. Segundo os responsáveis por sua construção, o impacto social do Corpus Brasileiro
pode ser significativo, colocando à disposição dos cidadãos do país e do exterior uma vasta quantidade de
informação sobre a língua portuguesa. Entre os usuários do corpus incluem-se linguistas, pesquisadores da
linguagem, professores de língua materna e de português / língua estrangeira, de redação, jornalistas, escritores,
roteiristas, publicitários, alunos de diversos níveis, dicionaristas, gramáticos e uma ampla gama de profissionais
que lidam com a língua em uso.
CORPUS HISTÓRICO DO PORTUGUÊS TYCHO BRAHE
Trata-se de um corpus eletrônico anotado, composto de textos em português escritos por autores
nascidos entre 1380 e 1845. Atualmente, 64 textos (2.769.403 palavras) estão disponíveis para pesquisa livre,
com um sistema de anotação linguística em duas etapas: anotação morfológica (aplicada em 33 textos, num
total de 1.485.943 palavras); e anotação sintática (aplicada em 16 textos, num total de 671.694 palavras). O
Corpus tem sido desenvolvido em associação com os projetos temáticos:
Padrões Rítmicos, Fixação de Parâmetros & Mudança Linguística (1998-2003);
Padrões Rítmicos, Fixação de Parâmetros & Mudança Linguística, Fase 2 (2004-2008);
O português no Tempo e no Espaço: Contato linguístico, Gramáticas em Competição e Mudança Paramétrica (desde 2012) e pode ser acessado em: http://www.tycho.iel.unicamp.br/~tycho/corpus/en/index.html.
Edila Vianna da Silva
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2.2. Bancos de dados internacionais
CORPUS DE REFERÊNCIA DO PORTUGUÊS CONTEMPORÂNEO (CRPC)
Organizado pelo Centro de Linguística da Universidade de Lisboa, o CRPC integra o corpus
compartilhado, base do Projeto VARPORT, caracterizado anteriormente. É um dos mais importantes bancos de
dados internacionais da língua Portuguesa, pois contém amostras das variedades nacionais e regionais do
português (português europeu, português do Brasil, português dos cinco países africanos de língua oficial
portuguesa e o português de Macau). Trata-se de um corpus linguístico, eletrônico, que contém atualmente 86,3
milhões de palavras, constituído por amostragens de diversos tipos de texto de discurso escrito (literários,
jornalísticos, técnicos, científicos, didáticos, econômicos, jurídicos, parlamentares etc.) e de discurso oral
(elocuções informais e formais).
Diacronicamente considerado, o corpus contém textos que vão desde a segunda metade do séc. XIX
até 1998, embora, em sua maior parte, sejam posteriores a 1970. Dá conta dos recursos linguísticos específicos
de cada língua, que, em associação com tecnologias adequadas à extração de dados e de conhecimentos,
constituem pré-requisitos indispensáveis a um grande conjunto de trabalhos de investigação e a vários tipos de
desenvolvimento e aplicações.
O CPRC tem, consequentemente, sido utilizado em numerosos trabalhos acadêmicos (essencialmente
dissertações de doutoramento e de mestrado) realizados em Portugal e no estrangeiro e em projetos de
investigação. Destes, salientam-se: Novo Dicionário da Língua Portuguesa em execução na Academia das
Ciências de Lisboa; Dicionário de Combinatórias do Português (1994-1997, Programa Lusitânia, inventário das
associações lexicais contínuas que ocorrem num subcorpus do CPRC de 12 milhões de palavras); Português
Falado, Variedades Geográficas e Sociais (1995-1997, Programa europeu LÍNGUA/SOCRATES em que o CLUL
é a instituição coordenadora e são parceiros as Universidades de Toulouse-Le Mirail e de Aix-en-Provence),
que conta com 80 amostragens do português falado, nas suas variantes europeia, brasileira, africanas e de
Macau, em CD-ROM, com a gravação sonora de produções autênticas e a correspondente transcrição
ortográfica alinhada, e, ainda, três volumes de estudos lexicais, morfossintáticos, sintáticos, enunciativos e
pragmáticos feitos com base no corpus de português falado (materiais em via de publicação).
CORPUS ELETRÔNICO DO CELGA – Português do Período Clássico (CEC – PPC)
O corpus CELGA, criado no Centro de Estudos de Linguística Geral e Aplicada (CELGA), da
Universidade de Coimbra, foi projetado como um conjunto organizado de materiais − textos, índices de formas
e concordâncias – destinados à realização de consultas e estudos da área da Linguística, e de outras áreas,
Bancos de dados sociolinguísticos em português
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designadamente Literatura, História e Cultura portuguesas. Considerou-se também a possibilidade de que esses
materiais pudessem constituir recursos para realizações lexicográficas de que carece a língua portuguesa
(especialmente, dicionário histórico e Thesaurus).
Os materiais reunidos até ao presente dizem respeito à língua portuguesa dos séculos XVI e XVII,
especialmente a D. Francisco Manuel de Melo (1608-1666), autor de vasta e importante obra, em diversos
gêneros e estilos. Esta incidência justifica-se pela necessidade de se preencherem lacunas reconhecidas de
documentação e estudo do “Português clássico”, e em particular da produção em língua portuguesa do
mencionado autor seiscentista. A construção desse banco de dados tem em perspectiva a associação a outros
corpora de língua portuguesa, constituídos, ou a constituir, dentro e fora do CELGA, de modo a ampliar,
complementar e partilhar dados informativos. Desde 2006, já se verifica uma articulação com o Corpus do
Português, organizado pelos Profs. Mark Davies e Michael J. Ferreira (E.U.A.), acessível na Web. A pesquisa no
Corpus do Português permite obter informações facultadas pelos textos do CEC-PPC.
Os materiais que integram o CEC-PPC foram registados em suporte digital e, atualmente, estão
acessíveis a consulta em CD-ROM, na Sala de Leitura do CELGA, e, na maior parte, via Internet, na página do
Centro – www1.ci.uc.pt/celga/servicos/sec-ppc.htm. É importante salientar que esses materiais são
acompanhados de esclarecimentos sobre as suas características, em especial sobre procedimentos adotados na
elaboração de edições.
CORPUS DO PORTUGUÊS
O Corpus do Português, acessível na Web em http://corpus.byu.edu, foi constituído por Mark Davies,
professor de Linguística na Universidade Brigham Young (USA). Integra um conjunto de dez corpora, com dados
do inglês (a maioria deles) e de outras línguas como o espanhol e o português. Apresentam várias finalidades,
entre as quais se destacam: investigar o comportamento linguístico de falantes nativos, tanto na modalidade
oral como na escrita; observar fatos de variação linguística e mudança; estabelecer a frequência de uso de
palavras , frases e colocações; e projetar autênticos materiais e recursos de ensino de línguas.
Os materiais são utilizados por mais de 100.000 pessoas a cada mês (mais de 200 mil visitas), o que
os torna talvez os corpora mais usados entre os disponíveis atualmente. Eles também servem como base para
um crescente número de publicações realizadas por pesquisadores de todo o mundo.
No caso do português, o corpus conta com 45.000.000 de palavras datadas do período entre os anos
de 1300 e1900.
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PROJETO DO CORPUS DIACRÔNICO DO PORTUGUÊS
O objetivo do projeto, financiado pela Fapesp (02/12005-2) no âmbito do Programa de Apoio a Jovens
Pesquisadores em Centros Emergentes, é possibilitar investigações em Linguística e em áreas afins, por meio da
constituição e a disponibilização de um banco de textos informatizados que reúne material representativo de
diferentes períodos da língua portuguesa – século XIII ao XX. Trata-se, mais especificamente, de uma amostra
de dados exemplares de uma variedade de gêneros e estilos, que pode ser acessada, mediante senha, nos
formatos textos e imagem. O acesso, após cadastramento, é feito pelo site http://www.cdp.ibilce.unesp.br.
3. ATLAS LINGUÍSTICOS
Os Atlas Linguísticos documentam in loco a língua em uso e descrevem essa língua em seus diferentes
níveis, mapeiam os dados em cartas linguísticas que são reunidas em forma de atlas. Segundo Aguilera (1998,
p. 145), o papel dos atlas linguísticos é justamente investigar variações de usos da língua em diferentes espaços
geográficos, dando-se especial atenção aos contextos culturais e situações informais em que se concretizam as
atividades linguísticas, que se evidenciam principalmente nos planos lexical e fonético/fonológico.
Desde o surgimento da primeira obra de cunho geolinguístico no século XX na França (GILLIERÓN,
1902-1910), os atlas linguísticos tradicionais e contemporâneos têm documentado a realidade linguística de
áreas geográficas distintas, dependendo da amplitude e dos objetivos do atlas, e se configurado como fonte
segura para estudos sobre a língua em uso num espaço e época determinados.
A recolha de dados com a formação de bancos valiosos é, obviamente, a base desses trabalhos que a
seguir se mencionam, de acordo com quadro retirado do artigo A geolingüística no Brasil: estágio atual
(AGUILERA, Revista da ABRALIN, 2006). A autora lista os Atlas, organizados entre 1963 e 2005, com data de
conclusão ou os estágios em que se encontravam em 2005.
1. Atlas Prévio dos Falares Baianos – APFB – 1963, volume único: publicado;
2. Esboço de um Atlas Linguístico de Minas Gerais EALMG – 1977, 4 volumes: um publicado, dois no
prelo;
3. Atlas Linguístico da Paraíba – ALPB – 1984, 3 volumes: dois publicados, v. I e II;
4. Atlas Linguístico de Sergipe – ALS – 1987, volume II: publicado;
5. Atlas Linguístico do Paraná – ALPR – 1994, 2º volume em andamento (Tese);
6. Atlas Linguístico e Etnográfico da Região Sul – ALERS I, II e III 2002, IV volume em andamento;
7. Atlas Linguístico de Sergipe – ALSE II – 2002, Concluído (Tese);
8. Atlas Linguístico Sonoro do Pará – ALiSPA – 2004, Concluído (CD-ROM);
Bancos de dados sociolinguísticos em português
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9. Atlas Linguístico do Amazonas – ALAM – 2004, Concluído (Tese);
10. Atlas Linguístico do Mato Grosso do Sul – ALMS – Coleta concluída: em processo de análise dos
dados;
11. Atlas Linguístico do Pará – ALiPA – Coleta concluída: em processo de análise dos dados;
12. Atlas Linguístico do Maranhão – ALIMA – Em andamento;
13. Atlas Linguístico do Rio Grande do Norte – AliRN – Em andamento (Tese);
14. Atlas Linguístico do Paraná – ALPR II, vol. II – Em andamento (Tese);
15. Atlas Linguístico do Espírito Santo – ALES – Em andamento;
16. Atlas Linguístico do Rio de Janeiro – Em andamento;
17. Atlas Linguístico do Estado de São Paulo – ALESP – Sem informações sobre o estágio atual;
18. Atlas Linguístico do Ceará –ALECE – Sem informações sobre o estágio atual;
19. Atlas Linguístico do Estado do Acre – ALAC – Sem informações sobre o estágio atual.
3.1 Projeto do Atlas Linguístico do Brasil (projeto ALiB)
Conforme já se registrou anteriormente (seção 2.1), estão concluídos todos os trabalhos de constituição
do corpus do ALiB que, embora ainda não publicado, está acessível, com as fotos das 250 localidades que
compõem a rede de pontos de inquérito, em www.alib.ufba.br.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O conhecimento mútuo do trabalho dos vários investigadores – que não ocorre com a devida
sistematicidade entre brasileiros e portugueses e até mesmo entre pesquisadores das regiões brasileiras – pode
propiciar uma visão ampla das variedades do português e facilitar a realização de estudos contrastivos não só
entre dialetos brasileiros, mas também entre brasileiros e portugueses numa linha de investigação que
certamente contribuirá para o esclarecimento de muitos fatos linguísticos em variação.
A pesquisa apresentada resumidamente neste artigo pretende ser uma contribuição preliminar para a
divulgação desses trabalhos, que podem basear a constituição dos perfis sociolinguísticos das variedades faladas
do português.
Edila Vianna da Silva
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REFERÊNCIAS
AGUILERA, V. A geolingüística no Brasil: estágio atual. Revista da ABRALIN, v. 5, n. 1 e 2, p. 215-238, dez. 2006.
BRANDÃO, Silvia F. Corpora lingüísticos no Rio de Janeiro. II CONGRESSO INTERNACIONAL DA LÍNGUA PORTUGUESA: identidade, difusão e variabilidade. UFRJ/ Faculdade de Letras, 2007.
CASTILHO, Ataliba T.; SILVA, Giselle M.O.; LUCCHESI, Dante. Informatização de acervos da língua portuguesa. Boletim da ABRALIN, n. 17, 1995, p. 143-154.
CUNHA, Celso. A questão da norma culta brasileira. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1995.
MATEUS, Maria Helena Mira. O horizonte da investigação sobre o português. Atas do I Congresso Internacional da ABRALIN. Salvador: FINEP/UFBA, 1996, p. 25-48.
_______. Objectivos e estratégias de uma política lingüística. Lisboa: Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Mesa-redonda sobre Uma política de língua para o português. [s/d]. Mimeografado.
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NASCIMENTO, Maria Fernanda B. Construção e exploração de um corpus de variedades do português. II CONGRESSO INTERNACIONAL DA LÍNGUA PORTUGUESA: identidade, difusão e variabilidade. UFRJ/ Faculdade de Letras, 2007.
PAIVA, Maria da Conceição de; SCHERRE, Maria M. P. Retrospectiva sociolingüística: contribuições do PEUL. Lingüística, n. 11, 1999, p. 203-230.
RONCARATI, Cláudia; ABRAÇADO, Jussara. Português brasileiro – contato lingüístico, heterogeneidade e história. Rio de Janeiro: 7 Letras/FAPERJ, 2003.
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Data de submissão: abr./2016. Data de aprovação: maio/2016.
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COMUNIDADES VIRTUAIS, COMUNIDADES LINGUÍSTICAS
Carmen PIMENTEL1
RESUMO A era da informação ou a era do conhecimento é caracterizada pela mudança na maneira de comunicação da sociedade e pela valorização crescente da informação, que circula a velocidades e quantidades até então inimagináveis. Nesse contexto, que possibilita a comunicação mais ágil entre os indivíduos, independentemente da localização geográfica e em meio a um quadro de mudanças sociais confusas e incontroláveis, manifesta-se uma tendência nas pessoas de se reunirem em grupos sociais visando compartilhar interesses comuns. Passou-se a viver uma realidade diferente, em que as barreiras espaciais, temporais e geográficas já não são tão significativas, quando as redes globais de intercâmbios conectam e desconectam indivíduos, grupos, regiões e até países sob os efeitos globalizantes provenientes da pós-modernidade. O indivíduo, assim, desprovido de referências tradicionais saiu à procura de pessoas com as quais pudesse compartilhar interesses em comum, uma vez que é da natureza humana relacionar-se socialmente. Nos últimos tempos, tal prática parece intensificar-se com a presença das redes mundiais de computadores, que aproximam os indivíduos e possibilitam o surgimento de novas formas de relações sociais: as comunidades virtuais, espécie de agrupamentos humanos constituídos no ciberespaço ou no ambiente virtual. PALAVRAS-CHAVE: Comunidades virtuais. Comunidades linguísticas. Ciberespaço. ABSTRACT The information age or the age of knowledge is characterized by changes in the way of society communication and the increasing importance of information, which circulates at speeds and quantities unimaginable. In this context, which enables faster communication between individuals, regardless of geographic location and set in a frame of confusing and uncontrollable social change, it manifests a tendency in people to come together in social groups in order to share common interests. People went to live a different reality, in which the spatial, temporal and geographical barriers are not as significant, when global exchange networks connect and disconnect individuals, groups, regions and even countries in the globalizing effects from post-modernity. The individual thus devoid of traditional references went looking for people with whom they could share common interests, since it is human nature to relate socially. In recent times, this practice seems to intensify with the presence of global computer networks, which bring together individuals and allow the emergence of new forms of social relations: the virtual communities, species of human groups set up in cyberspace or virtual environment. KEYWORDS: Virtual communities. Language communities. Cyberspace.
1 Doutora em Língua Portuguesa pela UERJ. Professora Adjunta do Departamento de Língua Portuguesa na UFRRJ. Autora do livro
Blog: da internet à sala de aula, Ed. Appris, 2012. Desenvolve o projeto de pesquisa Fanfiction e leitura dos clássicos, na UFRRJ.
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O conceito de comunidade virtual foi cunhado pela primeira vez por Howard Rheingold em 1993
(RHEINGOLD, 1993). Uma comunidade virtual é formada por pessoas plugadas em computadores e que se
relacionam virtualmente, já que, na maioria das vezes, não se conhecem presencialmente. Milhões de pessoas
em todo o mundo participam de grupos sociais mediados por computadores: em chats, no Facebook, em blogs,
twitters, em variados espaços que permitem o encontro virtual – as redes sociais. A maioria nunca se conhecerá
pessoalmente, mas continuará a manter um relacionamento fiel via computador. Outros participantes, por
vezes, organizam reuniões presenciais em que as pessoas, conhecidas às vezes de longa data somente pelo
computador, finalmente revelam-se seres de carne e osso no encontro face a face.
1. O PÚBLICO E O PRIVADO
A existência de comunidades virtuais leva, antes, a outra discussão a respeito do público e do privado.
A partir do momento em que grupos de pessoas decidem se reunir em um espaço virtual, elas entendem que
seu encontro possui caráter público. O que leva, então, alguém a querer que sua intimidade seja exposta em
um ambiente público, disponibilizando seus comentários íntimos em comunidades virtuais?
Existe um paradoxo na situação da escrita de textos em redes sociais justificado pela dicotomia privado
X público. As redes sociais possibilitam a escrita pessoal sobre si, relatos íntimos de situações diárias,
comentários e discussão a respeito de assuntos variados, deflagrando pontos de vista. A Internet, em
contrapartida, é um espaço público em que qualquer pessoa que possua um computador com acesso à Rede
pode ler seu conteúdo. Assim, o privado inicialmente, já que se trata de escrita pessoal, torna-se público ao ser
lançado na Internet.
O crítico social Richard Sennett (2001) apresenta uma tese sobre os limites entre a privacidade e a
exposição pública. Defende a ideia de que a valorização da intimidade nos tempos atuais se relaciona à
desvalorização da vida pública. Com a crescente violência instaurada nas ruas, a vida pública deixa de ser
prioridade e as pessoas passam mais tempo dentro de casa. O espaço público se esvazia e a privacidade se
destaca.
Os conceitos de público e privado acompanham a história da sociedade desde os tempos da Idade
Média. No século XVII, as cortes francesa e inglesa estimulavam as relações do indivíduo com o público. Era
mais popular quem tivesse maior exposição pública. As pessoas consideradas importantes conquistavam
reconhecimento por seus nomes e por seus feitos, sendo exaltadas em ocasiões sociais.
Como as cortes eram pequenas, entretanto, ao mesmo tempo em que se apontavam os predicados
também se conheciam os defeitos. A intimidade passava a ser vasculhada e exposta, antes mesmo da
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apresentação da pessoa a outras. Comentavam-se e divulgavam-se casos amorosos, problemas financeiros,
pecados e ambições rapidamente.
Com o decorrer dos anos, as cidades cresceram e as relações sociais desempenharam um novo papel.
As pessoas não eram mais conhecidas, os outros viraram estranhos, e as relações do indivíduo com o público,
antes estimulada pela corte, tornaram-se mais cautelosas. Surgia, então, um comportamento social baseado na
reação do outro. Tal comportamento visava representar um papel adequado e aceito pelo grupo social para ser
considerado verossímil. Cada aparição social deveria convencer os outros. O indivíduo precisava representar
um papel como em um ato teatral.
Instaurava-se, assim, uma sociedade de aparências: os gestos, os dizeres, as emoções transmitidas eram
representadas. Os locais públicos viraram espaços para as pessoas verem e serem vistas. O público e o privado
se separaram por um muro tão invisível quanto impenetrável.
Por causa dessa situação, de acordo com Sennett (2001, p. 35), nos séculos XVIII e XIX, o privado
passou a ser considerado mais importante do que o público. A família ocupou o lugar de expressão da
individualidade:
Durante o século XIX, a família vai se revelando cada vez menos o centro de uma região particular, não pública, e cada vez mais como um refúgio idealizado, um mundo exclusivo, com um valor moral mais elevado do que o domínio público.
Nesse sentido, os novos ambientes íntimos e privados que proliferaram naquela época, sobretudo na
classe burguesa, tornaram-se verdadeiros espaços para introspecção, consequentemente, convites para a escrita
de diários íntimos. A própria arquitetura das casas favorecia a intimidade. Espaços para a vida pública (a sala
de estar) e espaços para vida íntima (quartos individuais) eram delineados e almejados pelos indivíduos da
burguesia do século XIX.
Sennett complementa esse pensamento considerando a intimidade como uma maneira de
autoproteção, mas com abertura para a exposição apenas para pessoas autorizadas. As diferentes formas de
recolhimento ou de exibição seriam papéis representados pelo mesmo ator, por meio de eus diversos:
O isolamento em meio à visibilidade pública e a exagerada ênfase nas transações psicológicas se complementam. Na medida em que alguém, por exemplo, sente que deve se proteger da vigilância dos outros no âmbito público, por meio de um isolamento silencioso, compensa isso expondo-se para aqueles com quem quer fazer contato. A relação complementar existe então, pois é das expressões de uma única e geral transformação das relações sociais. Às vezes, penso nessa situação complementar em termos das máscaras criadas para o eu pelas boas maneiras e pelos rituais de polidez. (SENNETT: 2001, p. 29-30)
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Depois de um século de isolamento e afastamento da sociedade, o desejo de interação ressuscitou. O
século XX, com seus aparatos tecnológicos, recupera a ideia de vida pública e a necessidade de ser reconhecido
como figura popular. A televisão, as câmeras de vídeo, o celular e o próprio computador colocam à disposição
das pessoas a facilidade da exposição. Programas de entretenimento na TV, como Big Brother e outros que
mostram o cidadão comum em situações do dia a dia, são exemplos de abertura para a importância da
popularização. É a época dos “cinco minutos de fama”.
Divulgar escritos pessoais na Internet também faz parte desse processo de exposição. As redes de
relacionamento e as comunidades virtuais que se formam em torno de redes sociais confirmam tal tendência.
Ler sobre a vida de outras pessoas e, ao mesmo tempo, consagrar-se como alguém que se exibe para um público,
muitas vezes desconhecido, ganha ares de contemporaneidade, consequentemente de popularidade.
Crescem, assim, os grupos de pessoas que se interessam pela vida íntima de outras, fazendo com que
as comunidades virtuais se espalhem e se avolumem. A sociedade toma o caminho de volta para uma época
em que era importante o reconhecimento pelo nome e pelos feitos.
2. COMUNIDADES VIRTUAIS
Segundo Rheingold (1993), as pessoas que participam de comunidades virtuais criam palavras
específicas para externar seus sentimentos, envolver-se em discussões intelectuais, falar de comércio, trocar
conhecimento, brigar, fofocar, planejar viagens, fazer amigos, apaixonar-se, conversar. Forma-se, assim, uma
comunidade linguística.
Para o autor, compartilhar de uma comunidade virtual com pessoas de culturas diferentes é bastante
atraente e, muitas vezes, viciante. Dessa forma, conceitualiza comunidades virtuais como agregações sociais
que emergem da Internet quando um grupo participa de discussões públicas por tempo suficiente, com
sentimento humano, para formar redes de relacionamento no ciberespaço.
Comunidades virtuais são, portanto, grupos que surgem dentro do espaço virtual – a Internet, por
exemplo – e que mantêm uma rede de informações e afinidades.
As comunidades virtuais criaram novas formas de sociabilidade em que está presente a sensação de
pertencimento. O ambiente virtual torna-se local de interação social. Para Rheingold, é necessário que haja
motivação, interesses compartilhados, sentimento comunitário e perenidade nas relações para que se tenha
uma comunidade virtual com vigor e intensidade. Aponta também, como grande vantagem das comunidades
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virtuais, a possibilidade de se entrar num assunto desejado imediatamente, por meio de tópicos armazenados
na memória de determinada comunidade mediada por computador.
Para manter uma comunidade, regras são criadas e ajustadas frequentemente. No espaço da Internet,
acontece o mesmo: o grupo que se forma em torno de uma rede social, ou em outro recurso virtual qualquer,
cria suas próprias regras de convivência e as atualiza de acordo com a entrada de novos membros ou do tempo
durante o qual que essa comunidade existe. Essas regras também incluem os recursos linguísticos utilizados nas
conversas escritas. Não são necessariamente distribuídas para o grupo, mas se percebe que existem e, ao entrar
em uma comunidade, o novo participante se adapta rapidamente a elas.
Nesse mesmo raciocínio, Castells (2003) argumenta que a Internet é muito mais que uma simples
tecnologia, é o meio de comunicação que constitui a forma organizativa de nossas sociedades:
A Internet é o coração de um novo paradigma sociotécnico, que constitui na realidade a base material de nossas vidas e de nossas formas de relação, de trabalho e de comunicação. O que a Internet faz é processar a virtualidade e transformá-la em nossa realidade, constituindo a sociedade em rede, que é a sociedade em que vivemos. (CASTELLS: 2003, p. 287)
Os relacionamentos constituídos no ciberespaço ganharam dimensão não só social como também de
produção e de pesquisa na ciência, na medicina, na educação, no jornalismo, enfim, gerando uma rede de
comunicação ampla e irrestrita. Hoje em dia, não se concebe mais o ato comunicativo somente interpessoal;
ele passou a existir também na forma virtual com as redes de computadores.
Lemos (2002) enfatiza que o ponto de partida para compreendermos o comportamento social que
marca uma determinada época é a consciência de que existe sempre uma relação simbiótica entre o homem,
a natureza e a sociedade; em cada período da história da humanidade prevalece uma cultura tecnológica
específica. Para Lemos, o ciberespaço pode ser tanto o lugar onde estamos quando entramos num ambiente
simulado, de realidade virtual, como o conjunto de redes de computadores, interligadas ou não, em todo o
planeta. O ciberespaço torna-se, portanto, o ambiente em que as comunidades virtuais se constituem.
Dessa forma, a cultura contemporânea passou a caracterizar-se pelo uso crescente de tecnologias
digitais, criando uma nova relação entre a tecnologia e a vida social e, ao mesmo tempo, proporcionando o
surgimento de novas formas de agregação, com práticas culturais específicas, constituindo a chamada
cibercultura, marcada pelas comunidades virtuais.
Nem sempre podemos considerar esse tipo de ambiente (como as redes sociais, os chats, os blogs, as
listas de discussão, os sites) como comunitário, pois seus membros usufruem do espaço virtual de duas maneiras
diferentes, apesar de delineado em torno de interesses comuns, de traços de identificação, capaz de aproximar,
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de conectar indivíduos que talvez nunca tivessem oportunidade de se encontrar pessoalmente. Segundo
Rheingold (1993), os ambientes virtuais agrupam participantes (a) com determinada permanência temporal e
espírito comunitário ou (b) sem nenhum vínculo afetivo ou temporal.
No caso (a), a comunidade virtual formada participa dos eventos daquele suporte de maneira
permanente, ou seja, com certa regularidade, as mesmas pessoas frequentam o ciberespaço para trocar
informações pertinentes à temática. Forma-se um grupo de interesses comuns e os laços afetivos se estreitam.
O grupo se fortalece e se mantém por um longo período. Os comportamentos são amplificados pelos meios
tecnológicos, fazendo com que indivíduos localizados em diferentes partes do globo possam conectar ideias,
crenças, valores e emoções.
No caso (b), os participantes não mantêm vínculos, nem afetivos nem temporais. Seus interesses
naquela comunidade são pontuais, geralmente buscando alguma informação, deixando algum comentário e
não aparecendo mais. Lemos (2002) denomina esse tipo de comportamento de agregação eletrônica, não
constituindo uma comunidade virtual de fato.
Na formação de uma comunidade virtual, portanto, a aproximação das pessoas no ambiente virtual
acontece por meio da existência de traços identitários comuns e pelo interesse em determinados assuntos: o
participante escolhe em qual grupo quer se inserir, participando de quantas comunidades desejar.
Hall (2001) justifica a criação de comunidades virtuais a partir da “compressão espaço-tempo”, isto é,
os processos globais são tão acelerados que nos parece sentir o mundo menor e as distâncias mais curtas,
quando eventos ocorridos em um lugar específico têm um impacto imediato sobre pessoas e lugares situados a
uma grande distância. Isso só é possível por causa dos meios de comunicação, incluindo-se aí a Internet:
Quanto mais a vida social se torna mediada pelo mercado global de estilos, lugares e imagens, pelas viagens internacionais, pelas imagens da mídia e pelos sistemas de comunicação globalmente interligados, mais as identidades se tornam desvinculadas – desalojadas – de tempos, lugares, histórias e tradições específicos e parecem “flutuar livremente”. Somos confrontados por uma gama de diferentes identidades, dentre as quais parece possível fazer uma escolha. (HALL: 2001, p.75)
Nesse sentido, a formação de comunidades virtuais se relacionaria diretamente à busca de novas
características identitárias na sociedade em rede, refletindo os efeitos da globalização, que implica um
movimento de distanciamento da ideia clássica da “sociedade” como um sistema bem delimitado. Passa, então,
a vigorar uma perspectiva baseada na forma como a vida social se ordena hoje em dia em consequência das
inovações tecnológicas.
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Isso permite que participantes de uma mesma comunidade virtual não pertençam obrigatoriamente a
um mesmo espaço físico, uma mesma região territorial, nem da mesma cultura social. O mais provável é
considerar que o aspecto de convergência seja a língua, se levarmos em conta que a base mais utilizada
atualmente na comunicação dos meios virtuais é a escrita.
3. COMUNIDADES LINGUÍSTICAS
Um indivíduo, ao se inserir em comunidades virtuais, busca traços de identificação e não uma
identidade única. Assim, um mesmo indivíduo participa de diversas comunidades, dependendo do seu grau de
interesse, adotando “variadas identidades”. Em uma, procura a temática; em outra, amizade; em outra ainda,
informação. As características pertinentes a cada uma das comunidades virtuais farão com que o participante
se identifique com elas, adaptando-se a essas diferentes comunidades.
Como já dito, as comunidades criam regras de utilização para que a participação dos indivíduos seja
minimamente uniforme e educada. Por exemplo, em uma comunidade, o mediador (o criador da comunidade)
pode determinar que todos os participantes sejam identificados, não permitindo a entrada de “anônimos”. Isso
equivale a saber sempre quem participa da conversa e entender melhor seu comportamento. Algumas
comunidades também determinam o número limitado de participantes, outras não fazem restrição alguma.
Enfim, regras de convivência costumam ser bem aceitas e respeitadas, caso contrário, o participante é convidado
a se retirar da comunidade ou é desligado definitivamente do grupo pelo mediador.
Em torno das redes sociais, também são constituídas comunidades virtuais. Os participantes criam
pequenos grupos por conta de temáticas específicas, compartilham interesses comuns e desenvolvem
características próprias. Dentre essas características, destacam-se as marcas linguísticas.
Para esta análise, fez-se o recorte por idade. Considerou-se um grupo de adolescentes, de faixa etária
entre 12 e 16 anos aproximadamente, acompanhados em blogs de escrita íntima por um período de um ano.
Adolescentes com acesso à Internet buscam uma forma peculiar de expressar seus sentimentos e de
trocar ideias com seus pares, criando uma variação linguística que se estrutura como marca do grupo,
entretanto, sem perda do padrão da sintaxe da língua, o que não inviabiliza de todo o entendimento entre
comunidades distintas (por exemplo: usuários de blogs variados ou participantes temporários).
É nesse sentido, de comunidade com permanência temporal, vínculo afetivo e interesses
compartilhados, que surge uma linguagem comum como motivação para que o grupo continue a se encontrar
com intensidade e continuidade: uma espécie de pacto, a criação do dialeto como uma marca do grupo.
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Se entendermos a linguagem utilizada pelos jovens nos blogs como um dialeto, significa que ela tem
características próprias, mas sem prejuízo ou interferência na compreensão e na intercomunicação entre
pessoas que falam a língua padrão. Podemos, então, considerar tal dialeto como um fenômeno social, de um
determinado grupo de pessoas, de certa faixa etária e condição social; e, também, como um fenômeno
geográfico, no sentido espacial da palavra, só que o espaço nesse caso é virtual.
O núcleo básico de uma língua é arbitrário, estático e imutável por ser um depositório de normas
prescritivas, entretanto permite a produtividade linguística tornando-se criativa, flexível e espontânea, no nível
lexical. Bakhtin (1988) considera ainda que, por esse caráter produtivo, a linguagem se adapta às necessidades
das comunidades linguísticas, já que
a linguagem do advogado, do médico, do comerciante, do político, do mestre-escola, etc. (...) diferenciam-se evidentemente não só pelo vocabulário: elas implicam determinadas formas de orientação intencional (...), são carregadas de conteúdos determinados, concretizam-se, especificam-se, impregnam-se de apreciações concretas, unem-se a determinados objetos, a âmbitos expressivos de gêneros e expressões. (...) Deste modo, em cada momento da sua existência histórica, a linguagem é grandemente pluridiscursiva. (BAKHTIN: 1988, p. 96-98)
O mesmo se aplica às comunidades linguísticas originadas em comunidades virtuais. Além do dialeto
desenvolvido pelos participantes, outros recursos possibilitados pelo suporte virtual compõem a linguagem
pluridiscursiva da Internet.
Tais comunidades linguísticas relacionam-se, portanto, com o conceito de língua que engloba
situações de interação. Labov (1982), ao cunhar a expressão “comunidades linguísticas”, referia-se a um grupo
de falantes com um conjunto de atitudes sociais para com a língua comum. A comunidade não se forma a partir
de um acordo quanto ao uso dos elementos da língua, mas pela participação do grupo num conjunto de normas
estabelecidas pelo uso.
Para Antunes (2007, p. 95), a língua exerce “condição mediadora das atuações sociais que as pessoas
realizam quando falam, escutam, leem ou escrevem”. Dessa forma, o termo comunidade linguística se aplica
ao contexto de comunidades virtuais, visto que os participantes interagem por meio da língua escrita.
Ainda na mesma linha, Bechara afirma que
o desenvolvimento cultural dos homens reflete a complexa constituição da identidade de um povo, não só integrado por aqueles que melhor falam a sua língua, mas ainda pelas demais parcelas da sociedade; (...) o idioma (...) se constrói e se constitui na diversidade regional social do falar. (BECHARA: 2007, p. 68)
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A comunidade virtual de um blog representa um grupo regional social com características próprias do
falar/escrever, constituindo uma identidade pertinente a partir do dialeto que desenvolve para suas conversas
virtuais. A língua faz papel de mediadora das relações interpessoais na comunidade virtual.
Antunes dialoga com Bechara quando diz que existe um pacto entre os falantes de uma língua, fazendo
circular os valores culturais daquele grupo social e, a partir daí, usam e recriam recursos linguísticos que
representem a comunidade:
O que existe de concreto, de observável são os falantes, que, sempre, numa situação social particular, usam (e criam!) os recursos linguísticos para interagirem uns com os outros e fazerem circular a gama de valores culturais que marcam cada lugar, cada situação e cada tempo. (ANTUNES: 2007, p. 95)
Seguindo o raciocínio dos autores, pode-se considerar uma comunidade linguística como um grupo
que cria seu próprio dialeto e o regula dentro de sua comunidade virtual. A língua se vincula às situações de
uso dos falantes daquele grupo, que atribuem sentido a suas criações linguísticas, de acordo com seus papéis
sociais e ideológicos. Ainda de acordo com Antunes (2007, p. 96), são “vozes, portanto, que, partindo das
pessoas em interação, significam expressão de suas visões de mundo e, ao mesmo tempo, criação dessas
mesmas visões”.
As vozes a que Antunes se refere refletem uma identidade que experimenta o sentimento de
pertencimento a um grupo que a aceita e acolhe, formando assim uma comunidade linguística. Para ela,
é nesse âmbito que podemos surpreender as raízes do processo de construção e expressão de nossa identidade ou, melhor dizendo, de nossa pluralidade de identidades. É nesse âmbito que podemos ainda experimentar o sentimento de partilhamento, de pertença, de ser gente de algum lugar, de ser pessoa que faz parte de um determinado grupo. Quer dizer, temos território; não somos sem pátria. Recobramos uma identidade. (grifos da autora) [ANTUNES: 2007, p. 96]
Nesse sentido, o grupo que frequenta o mesmo blog cria uma identidade comum, dando forma a uma
comunidade. Os participantes, ao deixarem suas impressões sobre o texto publicado, deixam também sua
identificação. Muitas vezes, essa identificação aparece sob a forma de “anônimo”, no entanto, a maioria prefere
dizer seu nome; outras vezes, pelas características dos comentários, que delineiam a personalidade do autor, é
possível perceber de quem se trata. Apesar de os membros terem características diversas, cada um dos
participantes carrega sua própria identidade que se concretiza no confronto com a identidade dos outros.
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O conceito de comunidade virtual se amplia, englobando o de comunidade linguística, constituindo
um grupo de pessoas que compartilham de interesses comuns, socialmente envolvidas no mesmo espaço
geográfico (virtual) e utilizando um dialeto pertinente ao meio e à forma comunicativa em que se inserem.
A existência de uma comunidade virtual em blogs se constitui pelos comentários dos leitores.
Frequentemente os blogs são encontrados pelos leitores com auxílio de ferramentas de navegação (Google, por
exemplo). Parte-se de uma palavra-chave da temática de interesse para chegar a blogs que tratam do assunto.
O leitor aprecia a leitura e passa a fazer parte da comunidade do blog por meio de comentários. Em outras
situações, o blog é divulgado pelo autor para os amigos que o indicam para outros, formando uma rede de
comunicação – uma comunidade virtual. Essa dinâmica também se verifica nas redes sociais (Facebook, salas
de bate-papo, fóruns, entre outros).
Na pequena amostra ilustrativa a seguir, percebe-se que, dentre as pessoas que postaram comentários
nos três meses consecutivos observados (abril a junho de 2009), algumas aparecem repetidas vezes, formando
uma comunidade de leitores fiel; outras deixam comentários e não retornam mais, confirmando as descrições
de Rheingold abordadas anteriormente sobre comunidades virtuais.
O blog em questão narra as aventuras de uma adolescente (sem identificação detalhada) que vive no
Japão (blog “Vivendo na terra de Barbies” http://terradebarbies.blogspot.com/, acessado em junho de 2009) há
alguns anos e troca informações com alguns amigos do Brasil e outros leitores que se interessaram pelos temas
tratados em seu blog e passaram a acompanhar seus escritos.
No post de 26 de abril de 2009, a autora do blog fala da dificuldade para emagrecer, devido à
variedade de guloseimas que encontrou no Japão. Os comentários são de apoio à dieta. Uma leitora (Aloana)
escreve novamente no dia seguinte para responder a um outro assunto, provavelmente discutido em outro
ambiente.
Paula disse... volta firme e forte sacudida que o 1k baixa logo na semana o selinho voce copia a imagem, escreve qual a motivação do selinho e lista 7 pessoas para quem voce indica o selinho....é uma brincadeirinha legal... bjao 26 de Abril de 2009 21:18
Aloana disse...
Ola Vana, td bem? Eu tb estou morando no Japao, em Okinawa. Comecei a fazer uma RA a 2 meses e meio, ainda falta 1 quilo que ta dificil de eliminar, mas continuou correndo atras dele,rsrsrs. Quando cheguei aqui ja estava um pouco acima do peso, aqui ainda engordei quase 4 quilos. (...) 27 de Abril de 2009 21:00
Carmen Pimentel
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Gabi Gadelha disse...
uau.. 700 gramas é bastante....as vezes tb nao compreendo o funcionamento do meu organismo, mas aos pouquinhos a gente consegue convence-lo que é melhor viver mais magra! Bjs e mto sucesso. 27 de Abril de 2009 22:45
Aloana disse...
Ola Vana, Entao, eu nao conheco seu irmao nao, faz pouco tempo que estou aqui em Okinawa. Conheco poucos brasileiros ainda por aqui. :) Bjos 28 de Abril de 2009 23:05
O post de 30 de maio traz uma discussão a respeito de donuts (roscas de pão e açúcar) e suas variadas
versões de recheio. A autora diz que comeu muitos naquele dia.
Aloana disse... Huuum, que delicia, eu tb adoro donuts! Hoje tb me dei um docinho de presente, fiz uma torta de banana que ficou demais. rsrsrsrs Que beleza, vc emagreceu mais 700g, PARABENS!!! Uma otima semana pra vc Beijos 31 de Maio de 2009 14:41
Nath. disse...
Oiii Vana!! Ai que água na boca me deu ao ver esses bichinhos! Nunca comi, mas parecem ser apetitosos! Vê que coisa boa.. comer guloseimas e no final ainda dizer que emagreceu 700g! (...) 31 de Maio de 2009 20:46
Ygor Ricardo" disse...
Olá Vana ! (...) Mas que donuts feios hein ? Sou mais aquele dos Simpsons, hahaha. E Parabens pelo peso perdido ! Beijão. 31 de Maio de 2009 23:46
Siba disse...
Comunidades virtuais, comunidades linguísticas
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Um donuts e dieta não combinam, mas td bem. Hum 700 g a menos tá mara! Uhull! Beijão 1 de Junho de 2009 00:01
Gabi Gadelha disse...
Vanaaa que arraso! daqui a pouco vc pega na casa dos 58...quer dizer, acho que comi tanto de sexta pra cá que eu devo estar com 60! kkkkk (...) Bjsss 1 de Junho de 2009 04:23
Jamille Queiroz disse...
Oiiiiiiiii! 1 de Junho de 2009 05:04
Paula disse...
hummm.....vanitcha lindona... fiquei com vontade do donuts....aqui na minha cidade so tem generico...rssss (...) 1 de Junho de 2009 07:26
Siba disse...
Oi,Vana!Olha só o simulador de caminhada é conhecido tbm como free training procura no google deves achar é ótimo justamente pela praticidade dá pra fazer em casa e até de pijama,hiuahiua. Uma ótima semana! Beijosss 2 de Junho de 2009 01:30
Mik@ disse...
Ahhh bonita! Muito obrigada pelo incentivo! Em plena segundona vc coloca uma imagem dessas!? Mato vc! ahahaha! Brincadeirinha... (...) Bjss! 2 de Junho de 2009 03:03
Márcia disse...
Menina,isso eh uma bomba calorica!! Faz muito tempo que nao como donuts!! Mas de vez em quando nao mata neh?! Bjs! 2 de Junho de 2009 17:40
Carmen Pimentel
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O post de 30 de junho de 2009 relata um passeio de final de semana a um parque aquático local. A
autora viu baleias e colocou várias fotos suas ao lado delas. Os comentários mostram envolvimento com a
temática e o desejo de alguns de também passarem pela mesma experiência.
Mari Barros disse... Ah que legal seu passeio de fds, deve ser bem devertido esse lugar. Já fico im agino a sensaçãoid e tocar esse bicho deve ser muito engraçado lisinho, rs! Ah eu queria toca-lo. haha! ;* 30 de Junho de 2009 07:33
Rafael Silveira disse...
Ótimo post Vana, realmente as baleias são formidaveis! Gostei muito e achei interessante elas serem brancas... Talvez seja porque eu nunca tenha visto uma baleia de perto.. AsokPOSKaopskapo Abração! 30 de Junho de 2009 08:27
Siba disse...
Oi,Vana!Hum doro esses seus passeio e ainda por cima tu divide eles com a gente através das fotinhos, nossa ele lugar deve ser lindo. Uma ótima semana! Cuide-se! Beijão 30 de Junho de 2009 08:44
Nath. disse...
Aiiiii que lindo!! Eu quero um desse pra mim!! KkkKk.. Adoro bicho! Aqui em casa tenho (pausa dramática)... 4 cachorros e 2 jabotis. Amo-os!! Adorei! Saudades de vc, cadê tu??? Xêro! 30 de Junho de 2009 08:53
Dea アンドレア disse...
Nossa que lindo,vc tirou bem de pertinho hein? Fofinhos demais! 30 de Junho de 2009 09:15
S. Mupsi disse...
Que linduuu eu adoro animais =D ^^ Bjo pra vc Vana . ^^ 30 de Junho de 2009 09:56
Comunidades virtuais, comunidades linguísticas
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Jenny disse...
parece golfinho mesmo, e é a coisinha mais linda do mundo *.* bjss 30 de Junho de 2009 11:01
Vagner lopes disse...
Oi Vana!! Bichin biitin esse aeee. Lembra mesmo um golfinho.kkkkkkkkkk. Meu findi foi bem tranquilo. Voltou a fzr sol aqui no Rio... Se bem q eu prefiro dias nublados mesmo.rsrsrs. E como estão as coias ae in Japan? Um grande beijo pra vc. Se cuide. 30 de Junho de 2009 11:01
Aninha Leme disse...
ai Vana!!! que lindaaaaaaaaaaaaaa! não podia apertar e amassar, não? só passar a mão? hunf kkk muito fofa! e vc tem razão, mais parece um golfinho! beijos 30 de Junho de 2009 11:20
**Má** disse...
Menina, qdo vi as fotos eu jurava que eram golfinhos de bico curto!!! Mas deve ser muito legal ver tudo de perto... pena que aqui no Brasil num tem esses parques... Pelo menos que eu saiba!!! eh eh eh.. Bjinhos e uma ótima semana aí do ooooooooutro lado!!! 30 de Junho de 2009 12:18
Aloana disse...
Que lindas as Beluga Whales!!! Esse fim de semana eu fui no aquario daqui de Okinawa, vou postar as fotos la no meu blog. Eu adoro o verao, agora da pra comecar a passear outra vez, rsrsrs. Beijos 30 de Junho de 2009 14:29
...Յiα disseٷ
Vana, que liiindoooo!! Meu Deus!! Estou muito, muito encantada!! Parece inacreditável que esse animal realmente exista, de tão belo. Parece computação gráfica! Que privilégio você teve de tocar esse bichinho várias vezes, hein?! =} 1 de Julho de 2009 00:15
Fofolety disse...
Muito linda mesmo amiga, uma fofura...Bjos
Carmen Pimentel
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1 de Julho de 2009 02:57 Ricardo Chicuta. disse...
E viu só o olho dela?Bem pequenininho.É Japonesa essa Beluga! 1 de Julho de 2009 09:47
Ygor Ricardo" disse...
Parece mais um boto que uma baleia! Lembro de quando coloquei a mão num Tubarão, foi demais tambem! Beijos Vana. 1 de Julho de 2009 10:56
Paula disse...
quye bunitinha as belugas....mas ca pra nos, ela é a gemea do golfinho mesmo ne?rssss como ce vai num passeio desses e nao carrega a maquina pra fotografar td pra gente?me diz??!?!?!?!rsssss bjoka 1 de Julho de 2009 23:57
Observa-se na amostra que a quantidade de comentários é crescente, ou seja, a cada mês aumenta o
número de participantes leitores do blog em questão, o que revela a característica de formação de comunidade
em que uns chamam os outros porque consideram o conteúdo do blog interessante. Também se nota que os
leitores estão alocados fisicamente tanto no Brasil como no Japão (caso de Aloana, no quadro referente ao post
de abril).
Paula, Gabi, Aloana, Ygor e Siba são exemplos de leitores que perseguem os posts de Vana para
acompanhar as novidades referentes a sua vida no Japão. Esses leitores formam a comunidade virtual do blog
de Vana e, ao mesmo tempo, constituem uma comunidade linguística, já que utilizam recursos em comum,
como abreviações e gírias, perfeitamente inteligíveis para o grupo, além da discussão sobre a temática. Eles
fazem parte do tipo de comunidade a que Rheingold se refere como permanente, pois revelam participação
constante. Já os outros leitores não.
Na constituição de uma comunidade linguística, despontam as seguintes características que se
aproximam dos gêneros orais, observáveis nos posts selecionados:
a) períodos curtos e simples com excesso de pontuação;
b) preferência pela construção verbal na voz ativa;
c) frases nominais;
d) pouco uso de subordinação;
e) vocabulário coloquial e genérico;
Comunidades virtuais, comunidades linguísticas
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f) repetição de mesma estrutura sintática;
g) frases truncadas ou incompletas;
h) marcadores conversacionais;
Para que as mensagens fiquem o mais próximo possível da comunicação face a face, componentes
não verbais e paralinguísticos são utilizados como auxiliares à estruturação de turnos e à demonstração de
ocorrência de alterações entonacionais e prosódicas da fala. Tais componentes são marcados semioticamente
com recursos ortográficos, de pontuação e de grafia:
– abreviações e reduções de palavras: as abreviações geralmente se dão pela manutenção das
consoantes – vc, tb, mto, cmg;
– pontuação expressiva excessiva;
– caixa alta e repetição de letras;
– onomatopeias / transcrição de vocalização.
Dessa forma, podem-se agrupar os elementos característicos da escrita digital em dois grupos,
conforme o quadro:
Grupos Recursos Exemplos
Representação da emoção Emoticons
Pontuação expressiva
Caixa alta
Vocalização
\o/ ;-) :*
OBA!!!!
Ahahah
Hehehe
Rapidez na comunicação Abreviações
“Siglas”
Simplificações
Supressões
vc tb cmg
FDS
D+
faze dexo
As abreviações, o uso de sinais e as trocas fonéticas são características típicas da escrita digital e
remetem à economia de tempo na digitação. As reduções, as transcrições de vocalização e a repetição de letras
são recursos representativos da oralidade. A escrita em caixa alta e a pontuação expressiva repetida várias vezes
simbolizam admiração, voz alta ou grito. Nenhum desses recursos, entretanto, prejudica o entendimento do
texto como um todo.
Chartier diz que
o texto eletrônico reintroduz na escrita alguma coisa das línguas formais que buscavam uma linguagem simbólica capaz de representar adequadamente os procedimentos do
Carmen Pimentel
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pensamento. (...) Essa língua universal deveria ser escrita mediante signos convencionais, símbolos, quadros e tabelas, todos esses “métodos técnicos” que permitem captar as relações entre os objetos e as operações cognitivas. (CHARTIER: 2002, p. 16)
Tais recursos aproximam a escrita de textos em blogs do gênero oral, da fala, da conversação. Nos
exemplos anteriores de posts, transparece a impressão de texto confuso. No entanto, os jovens estão bastante
acostumados com essa forma fragmentada e recortada de escrita e não demonstram nenhum estranhamento na
leitura de tais textos.
De maneira geral, a escrita digital não apresenta dificuldade de entendimento, mas causa
estranhamento nas primeiras vezes em que se lê textos assim. Para o que se destina – a comunicação entre
jovens – cumpre sua função. Pode-se considerar, assim, a escrita em ambientes virtuais como um gênero híbrido
em que o gênero oral se funde com o gênero escrito, haja vista a quantidade de características relativas ao texto
falado encontradas nessa modalidade escrita.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Existe hoje um imediatismo da linguagem decorrente da rapidez que o meio virtual imprime à
comunicação. A escrita é econômica e representa uma conversa, facilitando a leitura que também precisa ser
rápida e imediata. Milhões de pessoas utilizam a Internet para falarem sobre si, para trocarem informações, para
se relacionarem, num processo instantâneo e efêmero, preocupadas com o presente que se quer partilhar.
O produtor de um texto de ambientes virtuais escreve de maneira a atingir um público que busca
leitura rápida e cotidiana, objetiva e clara. Da mesma forma, o leitor torna-se um coautor, pois lê e comenta,
contribuindo para o desenrolar de sua construção. É a era dos produtores e dos consumidores de informação
com possibilidade de interatividade entre interlocutores de maneira ligeira e dinâmica.
A comunidade virtual, portanto, se concretiza no agrupamento de pessoas que acompanham
determinado recurso da internet (blogs, redes sociais, chats, etc.), mantendo relações sociais, espaciais,
linguísticas e de interpretação da temática. A comunidade virtual, portanto, se constitui tanto da comunidade
linguística, já que os participantes comungam da mesma língua ou do mesmo dialeto, como também de
interesses, motivações, finalidades comuns.
Muitos pais e professores, entretanto, mostram-se preocupados com a escrita eletrônica. Acreditam
que seus filhos e alunos estão desaprendendo o Português com o uso cada vez mais intenso da Internet e seus
meios de comunicação. Algumas pesquisas realizadas comparando a produção escrita em ambientes virtuais
Comunidades virtuais, comunidades linguísticas
IDIOMA, Rio de Janeiro, nº. 29, p. 181-198, 2º. Sem. 2015 | 198
por jovens com sua produção em sala de aula vêm demonstrando que a maioria dos adolescentes não trocou a
escrita formal pela escrita da Internet. Sabem que cada variante linguística tem seu espaço para se manifestar.
Um ou outro talvez deixe “escapar” um vc ou um tb de vez em quando em uma redação escolar, mas
geralmente se policiam e procuram não misturar as situações. É papel da escola ensinar a modalidade padrão
da língua e alertar os jovens sobre a variação dialetal da língua, orientando-os quanto ao uso correto de cada
uma.
O dialeto da Internet mostrou dominar vários espaços da sociedade, constituindo as comunidades
linguísticas, fazendo com que pensemos sobre a utilização da língua como forma de comunicação e de
socialização, principalmente quando disseminada por um meio tão amplo de divulgação.
REFERÊNCIAS
ANTUNES, Irandé. A língua e a identidade cultural de um povo. In: VALENTE, André (Org.). Língua Portuguesa e identidade: marcas culturais. Rio de Janeiro: Caetés, 2007.
BAKHTIN, Mikhail. Questões de Literatura e Estética. São Paulo: HUCITEC, 1988.
BECHARA, Evanildo. A língua como fator de identidade. In: VALENTE, André (Org.). Língua Portuguesa e identidade: marcas culturais. Rio de Janeiro: Caetés, 2007. p. 68-72.
CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. In: MORAES, Denis. Por uma Outra Comunicação. Mídia, mundialização cultural e poder. Rio de Janeiro: Record, 2003.
HALL, Stuart. A Identidade Cultural na Pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2001.
LABOV, William. Building on Empirical Foundations. Philadelphia: University of Pennsylvania, 1982.
LEMOS, André. Cibercultura, tecnologia e vida social na cultura contemporânea. Porto Alegre: Sulina, 2002.
RHEINGOLD, Howard. The virtual community. Homesteading on the electronic frontier. Cambridge, Massachusetts: The MIT Press, 1993. Disponível em: <http://rheingold.com/books/>. Acesso em: 24 jan. 2016.
SENNETT, Richard. O declínio do homem público: as tiranias da intimidade. Trad.: Lygia Araújo Watanabe. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
Data de submissão: mar./2016.
Data de aprovação: mar./2016.
IDIOMA, Rio de Janeiro, nº. 29, p. 199-208, 2º. Sem. 2015 | 199
“POIS ENTÃO NÃO VÊS QUE É UM SONHO, UMA MENTIRA ATROZ A LIBERDADE DO CORAÇÃO?”: sobre o amor em um soneto desprezado por Florbela Espanca
Henrique Marques SAMYN1
RESUMO O artigo propõe uma leitura analítica de Anseios, soneto de Florbela Espanca jamais publicado em livro, em articulação com excertos de sua correspondência, almejando oferecer uma leitura da concepção de Florbela sobre o amor e a liberdade entre os anos de 1913 e 1916. PALAVRAS-CHAVE: Florbela Espanca. Amor. Crítica feminista. ABSTRACT The article proposes a close reading of Anseios, a sonnet by Florbela Espanca never published in books, along with excerpts of her correspondence, aiming to provide an analysis of Florbela’s views on love and freedom between 1913 and 1916. KEYWORDS: Florbela Espanca. Love. Feminist literary criticism.
1 Doutor em Literatura Comparada (UERJ), com Pós-Doutorado em Literatura Portuguesa. Professor Adjunto de Literatura Portuguesa
da UERJ.
Henrique Marques Samyn
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1. “ PENA É NÃO HAVER UM MANICÓMIO PARA CORAÇÕES”
Em 28 de julho de 19162, Florbela Espanca envia para “Julinha” – Júlia Alves, sua maior confidente –
uma carta em que lida, de maneira especialmente instigante, com o tema que aqui me interessa: o sentido
fundamental das relações amorosas. Começarei este artigo resgatando alguns trechos dessa missiva.
“Eis-me no coração de Portugal” – começa Florbela, escrevendo desde Pavia, no Alentejo, onde fora
passar férias na casa de seu cunhado Manuel Moutinho. No fim do mês anterior, a poetisa voltara a viver no
Largo de Camões, em Évora, após o período em que residira no Redondo; ainda hoje uma pequena vila, Pavia
é descrita na carta como uma “modesta e pequenina aldeia, adormecida e quieta, onde o vento tem vozes
humanas ao bater às nossas janelas que olham para o poente, sobre um monte cheio de pios de aves e
murmúrios de folhagem amarelecida e triste”. Tudo ali apraz à sempre aguçada sensibilidade florbeliana, que
encontra na paisagem uma fonte de inspiração: “a ribeira corre lá abaixo beijando os pés às casinhas brancas,
humildes e pobres, espreguiçando-se ao sol... e àquele sussurro da água, têm maior amplidão os nossos sonhos
e mais altas aspirações as nossas almas”. O elemento humano não deixa de ocupar um lugar de destaque na
composição desse cenário: “as mulheres daqui são quase todas belas, com corpos perfeitíssimos”, ressalta
Florbela; “a fonte fica em baixo, de forma que é todos os dias uma romaria de risos, de canções, de nomes
chamados em voz alta para o conversado ouvir, à tarde, à hora nostálgica em que o mundo se encosta para
sonhar, e em que os risos da ribeira se transformam em soluços”. Enfatizando o desejo de estar pessoalmente
com a amiga, intuito jamais realizado, evoca uma imagem literária: “Como eu gostaria de sentir contigo esta
paisagem tão suavemente bela como um idílio de Bernardim Ribeiro”.
Logo a seguir, a carta traz o parágrafo central para a reflexão que aqui pretendo empreender. “Porque
é impossível o teu conselho acerca dos meus «Anseios»? Porque é impossível!...”3, escreve Florbela, encetando
a seguir uma instigante reflexão sobre o amor. “Pois então não vês que é um sonho, uma mentira atroz a
liberdade do coração? Não o sentes tu bater, enraivecido e louco, pelo cativeiro? E podes tu, por acaso, soltá -
lo? Que irrisão!” Um coração posto em liberdade, sustenta a poetisa, imediatamente lamentaria haver deixado
a prisão: “E se o soltasses, se lhe abrisses de par em par as portas do teu peito, que faria ele em liberdade, pobre
leãozito cego?!... Como ele lastimaria o fofo e quente ninho do seu tristíssimo cativeiro!” Florbela não se limita
2 Todas as passagens citadas da carta foram extraídas da edição de Rui Guedes: cf. Espanca, 1986, p. 157-160 (Carta 54).
3 Anseios é o título de um soneto datado por Florbela de 26 de junho de 1916, e dedicado “à minha Júlia”. Abordarei este poema mais à frente. Vale destacar que Florbela recusara o conselho de Júlia em carta de 19 de julho (1986, p. 145): “A propósito dos meus «Anseios», que impossível conselho o teu!... Deixar voar o coração!... Que sublime e doida utopia!”; logo a seguir, escreve: “Tenho muito que te dizer. Logo que possa escrever-te muito, escrever-te-ei uma carta enorme”. Florbela retoma esse ponto na missiva de 28 de julho – que constitui, portanto, a “carta enorme” anunciada.
“Pois então não vês que é um sonho, uma mentira atroz a liberdade do coração?”
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a adotar como um pressuposto que o lugar natural do coração é o cárcere; volta a essa ideia, desenvolvendo-a
e reafirmando-a, deplorando o que ocorreria a um possível coração liberto: “Que desgraçado coração seria
esse! É bem melhor tê-lo como eu digo: «Na paz da tua cela a soluçar...»”4.
Há ainda dois pontos da carta que importa resgatar. Primeiro: o fato de Florbela ter certeza de que, se
Júlia cogitou a possibilidade de um coração viver em liberdade, é porque não ama, ou engana-se ao amar –
“Bem se vê que não amas; bem se vê que não tens amor a ninguém ou, se o tens, que amor infeliz deve ser esse
teu que precisa ser gritado nas folhas dum papel a um coração de amiga!” –, justificando-se: “Porque tudo, ou
quase tudo que a mim me dizes, é um reflexo do amor que arde, que é sonho, ilusão...”. Segundo: Florbela
alude a O livro d’Ele, projeto de livro que não se concretizaria5, descrevendo-o com as seguintes palavras:
“Todo este livro será um grito de amor onde a minha alma inteira palpita, e será esse o seu único merecimento”
– o que explicita em que medida o temário amoroso ocupava a centralidade de sua produção literária.
Que experiências amorosas até então Florbela conhecera, que pudessem justificar sua visão sobre o
amor? Rui Guedes (1986, p. 33) afirma que seus primeiros namoros ocorreram em março de 1911 – portanto,
quando tinha dezessete anos incompletos; o então eleito teria sido Manuel Maria Matroco, que a acompanhava
nas visitas à Biblioteca Pública de Évora. Não obstante, a poetisa logo se envolveria – a princípio, às escondidas
– com Alberto Moutinho, que viria a ser seu primeiro marido; antes de casar-se com este, no entanto, viveu
ainda um affair com um certo “José”6 que conheceu em Figueira da Foz, onde foi passar férias no fim de 1912.
Conquanto breve, possivelmente prolongando-se desde o fim de setembro deste ano até fevereiro de
1913, há indícios de que essa relação tenha marcado profundamente a jovem escritora. “Pena é não haver um
manicómio para corações, que para cabeças há muitos”, teria escrito em um postal endereçado a “José” (1986,
p. 89), o que encerra o tom de uma experiência amorosa avassaladora a ponto de arruinar qualquer
possibilidade de lucidez. Acerca desse fragmento, um exercício interessante é considerar a raiz etimológica de
‘manicômio’, espaço propício para o tratamento da μανία; por conseguinte, se convencionalmente lá
recolhem-se aqueles cuja razão cedeu perante algo que lhe é estranho por natureza, o singular espaço cogitado
por Florbela parece destinado a acolher aqueles cujos corações foram incapazes de suportar um excesso de
4 Trata-se do verso final de Anseios; cf. a nota anterior.
5 Anseios seria retirado, por Florbela, do projeto de O livro d’Ele, não sendo aproveitado em nenhum outro projeto; cf. Dal Farra, 1994, p. 141.
6 Identificado por Rui Guedes como João Martins da Silva Marques, que posteriormente foi assistente da Faculdade de Letras e diretor da Torre do Tombo. Cf. a nota em Cartas (1986, p. 262).
Henrique Marques Samyn
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afeto que neles mesmos tem lugar – em outras palavras: aquelas pessoas para quem entregar-se ao amor implica
comprometer sua própria integridade.
Por outro lado, considerando-se que, historicamente, o ideário em torno do amor frequentemente o
opôs à razão – algo facilmente rastreável até a Antiguidade7 –, o lamento de Florbela revela uma lucidez
assombrosa: se o amor envolve, se não sempre um comprometimento irreversível, ao menos uma decisiva
interferência numa ordem racional necessária para que a vida cotidiana possa sustentar-se, como pode não
haver lugares destinados a tratar (κομεῖν) os que padecem dos males do coração? Penso que o “manicômio
para corações” cogitado por Florbela nada teria a ver com a medicalização que hoje conhecemos, mas com o
que ela mesma busca fazer em suas cartas e em sua obra literária: uma compreensão dos limites e das nuances
da experiência amorosa, a fim de que ela possa ser vivida numa plenitude suportável pelos estreitos limites da
concretude cotidiana.
2. “MEU DOIDO CORAÇÃO AONDE VAIS...”
A Florbela que, com pouco mais de vinte anos, escreve a Júlia a carta da qual transcrevi trechos na
abertura deste ensaio não está, afinal, tão distante daquela que lamentara a inexistência de um “manicômio
para corações” – mesmo porque, entre o postal e a carta, transcorreram pouco mais de três anos. E perdura o
problema que a aflige: como lidar com os dilemas do coração, a quem tanto apetece permanecer no cativeiro,
quando este mesmo cativeiro implica o cerceamento de um irrefreável desejo de liberdade? Não obstante,
estando claro que o comentário de Florbela trata especificamente da reação da amiga a um soneto que lhe fora
apresentado, pode ser interessante conhecer o poema antes de prosseguir essa reflexão.
Começo transcrevendo o texto (ESPANCA: 1994, p. 210):
ANSEIOS à minha Júlia Meu doido coração aonde vais, No teu imenso anseio de liberdade? Toma cautela com a realidade; Meu pobre coração olha que cais! Deixa-te estar quietinho! Não amais A doce quietação da soledade?
7 Cf., p. ex., as considerações socráticas em torno de eros no Fedro.
“Pois então não vês que é um sonho, uma mentira atroz a liberdade do coração?”
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Tuas lindas quimeras irreais, Não valem o prazer duma saudade! Tu chamas ao meu seio, negra prisão!... Ai, vê lá bem, ó doido coração, Não te deslumbre o brilho do luar! Não ’stendas tuas asas para o longe... Deixa-te estar quietinho, triste monge, Na paz da tua cela, a soluçar!...
Acompanhemos a singular trajetória deste soneto que seria, ao fim, desprezado por Florbela, não
integrando nenhuma de suas obras – o que é notável não apenas pela dedicatória a uma das mais estimadas
amigas da autora, mas também pelo fato de haver sido levado a público pelo menos uma vez.
Anseios traz a data de 26 de junho de 1916 – inscrevendo-se, portanto, em um período bastante
profícuo para o conjunto da produção florbeliana –, e diversos indícios apontam o quanto foi, a princípio,
valorizado pela autora: menos de um mês depois, em 13 de julho, foi dado à estampa em A Voz Pública; nos
manuscritos de Florbela, uma anotação explicita uma qualidade literária reconhecida pela poetisa8. Tudo isso
torna ainda mais instigante que o soneto tenha sido recusado por Florbela, não integrando nenhum dos projetos
poéticos elaborados entre 1915 e 1917, antes da publicação de O Livro de Mágoas.
Compreender os motivos subjacentes a essa exclusão não parece uma tarefa simples. Sabemos que
um dos primeiros critérios empregados pela autora foi a retirada de poemas compostos em formas populares,
principalmente as composições em quadras, preservando os poemas que apresentassem uma forma culta, em
especial os sonetos – o que, como destaca Cláudia Pazos Alonso (1997, p. 29-30), está relacionado tanto à
popularidade que essa forma em particular detinha na época quanto à necessidade imposta às mulheres de
demonstrarem domínio dos recursos literários, algo que surgia como estratégia de combate aos estigmas
associados à produção literária de autoria feminina. Florbela precisou enfrentar essa questão, dada a sua
percepção da literatura não apenas como entretenimento ou forma de alcançar certa distinção social, mas como
um projeto que poderíamos qualificar como profissional ou existencial – algo que se manifesta na tenacidade
com que se entregou à preparação dos textos, na insistente procura por pessoas que pudessem abrir-lhe portas
no âmbito editorial e no desejo de receber críticas abalizadas sobre sua produção literária. Desse modo, pode-
se compreender que, para Florbela, a qualidade formal dos textos pesasse como um critério de grande
importância.
8 A anotação “Bom x x” consta à esquerda e abaixo do seu título; cf. nota em Espanca, 1994, p. 299.
Henrique Marques Samyn
IDIOMA, Rio de Janeiro, nº. 29, p. 199-208, 2º. Sem. 2015 | 204
Maria Lúcia Dal Farra (1994, p. 140) supõe que uma dúzia de sonetos possa ter sido desprezada a
partir de critérios associados à forma – mais especificamente, à incipiência métrica: cinco compostos em
alexandrinos (Visões da febre, Nunca mais!, A Anto!, Poder da graça e Vulcões) e sete compostos em
decassílabos (além de Anseios, também O espectro, Balada, Noite trágica, Errante, Cegueira bendita e Noivado
estranho); vários desses textos haviam sido publicados em jornais. Não obstante, a mesma estudiosa observa
que alguns poemas com problemas métricos foram aproveitados, ao passo que certos sonetos perfeitamente
acabados foram excluídos; desse modo, outros critérios foram observados pela poetisa – como uma suposta
qualidade estética ou sua adequação aos projetos literários. No que tange especificamente a Anseios, Dal Farra
(1994, p. 299) considera que possam haver pesado algumas insuficiências formais: a mudança do “tu” para o
“vós” no verso inicial do segundo quarteto, imposta pela rima; o uso da aférese no verso inicial da última estrofe;
e o recurso a sinéreses em todas as estrofes9. Após essas considerações iniciais, passemos à leitura do soneto.
Já o verso inicial explicita o destinatário do discurso lírico: o próprio coração do sujeito poético; trata-
se, por conseguinte, de um poema construído à maneira de um solilóquio10. Tudo se inicia com um
questionamento: aonde vai o “doido coração”, movido pelo “imenso anseio de liberdade”? Cabe notar que a
qualidade aplicada ao coração – que surge repetida no verso medial da terceira estância – assume um
significado particular quando associada ao trecho do postal anteriormente transcrito11. Para além disso, a
vinculação que de pronto se estabelece entre a loucura e a ânsia por libertação tem o propósito retórico de
suscitar um estranhamento, na medida em que um conceito comumente qualificado de forma positiva tem aqui
o seu sentido invertido; em outras palavras: ao menos para esse coração, desejar a liberdade implica incorrer
num desvario – o que é acentuado pela adjetivação aplicada ao anseio.
A segunda parte da estância encerra uma admoestação que fundamenta o receio expresso no
questionamento de abertura: se ao coração cabe impor-se um refreio, isso se deve ao obstáculo constituído pela
realidade, o que pode ensejar uma queda. Aqui, mais uma vez, importa observar a adjetivação: o ‘doido’ cede
lugar ao ‘pobre’, o que modifica o tom do discurso: a severidade inicial cede lugar à condescendência, à
maneira de um aconselhamento marcado pela empatia. Perceba-se ainda que, nesta primeira estrofe, a estrutura
– em abba – situa, nas posições de rima, os termos que demarcam a oposição entre o que se deseja (a ‘liberdade’)
9 A saber: no segundo verso da primeira estrofe (“anseio”); no segundo verso da segunda estrofe (“quietinho”); no primeiro verso do
primeiro terceto (“seios”); e o no primeiro verso da segunda estrofe e no segundo verso da última estrofe (“quietinho”).
10 Formulação tópica comum na obra florbeliana, como destacou Aura Simões (1997).
11 Explorarei essa associação na parte final deste artigo.
“Pois então não vês que é um sonho, uma mentira atroz a liberdade do coração?”
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e aquilo que surge como um empecilho que obsta esse mesmo desejo (a ‘realidade’); por outro lado, o ato de
partir em busca do que é almejado (‘vais’) opõe-se à possível queda, consequência dessa mesma busca (‘cais‘).
A segunda estância abre-se com um imperativo (“Deixa-te estar quietinho!”), a que se segue uma
indagação: “Não amais / a doce quietação da soledade?”. A subjetividade poética passa, portanto, a incitar o
coração a resignar-se: o que pode preservá-lo do risco anteriormente exposto é a renúncia ao próprio anseio; e
a pergunta a seguir exposta é como uma tentativa de aplacar o conflito daí decorrente – procedimento cuja
ineficácia transparece tanto pela assimetria perceptível entre os sintagmas (o “imenso anseio” em contraste com
a “doce quietação”) quanto pelo vocábulo escolhido pela poetisa: conquanto preencha as condições
necessárias para a rima, o termo ‘soledade’ remete mais fortemente à noção de quem, estando só, sofre pelas
saudades e pelo desejo12. Na segunda parte da estância, o discurso reitera a justificativa apresentada para a
recusa, alertando o coração acerca da consequência decorrente da perseguição de “lindas quimeras irreais” –
sintagma que não apenas enfatiza a natureza ideal do anseio por liberdade, como também estabelece um tácito
contraponto entre a beleza do desejo e a fealdade do real: a saudade, o que faculta a percepção de um vínculo
necessário entre as imposições da realidade e a inevitabilidade da perda, ainda matizada por um “prazer” que,
gestado na abnegação, encerra um sentido evidentemente melancólico.
O primeiro terceto volta a dirigir-se, de modo explícito, ao “doido coração”, desta feita repreendido
pela maneira negativa como qualifica o seio em que se abriga; neste conjunto imagético, atente-se para o
contraste entre a “negra prisão” – cuja opacidade traduz o estado de isolamento e opressão derivados da
“soledade” mencionada na estrofe anterior – e o “brilho do luar” – que metaforiza as esperanças projetadas na
liberdade perdida, uma vez efetivado o gesto de renúncia. Finalmente, a estância final assinala uma significativa
mudança de tom: as predominantes exclamações cedem cada vez mais lugar às reticências – antes presentes
apenas no verso inicial do primeiro terceto –, acentuando um registro que paulatinamente se inclina para o
pesar e para a resignação. O radical tolhimento manifesta-se no ato de recolher as asas, renunciando ao “longe”,
o que concretiza a imagem de confinamento espacial manifesta na figura da “cela”; a repetição, no segundo
verso, do segmento inicial daquele que abre a segunda estância atua imperativamente como uma nova
admoestação; finalmente, a metáfora empregada para o coração – “triste monge” – matiza a condição imposta
do ascetismo: condicionada pela renúncia, a paz da cela-seio não será, afinal, capaz de aplacar o sofrimento,
restando a vã busca de algum alívio através do pranto.
12 Opto por citar especificamente um dicionário oitocentista que registra de forma exemplar a referida acepção: “O estado de quem
está só, e a saudade que o acompanha da pessoa de quem está só, e desejosa” (SILVA, 1831, p. 743-744).
Henrique Marques Samyn
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3. “QUE DESGRAÇADO CORAÇÃO SERIA ESSE!”
Se não dispomos da missiva em que Júlia Alves comenta o soneto que lhe fora enviado – com
dedicatória – pela amiga poetisa, nada nos impede de especular acerca do teor de sua resposta, a partir do que
Florbela afirma na carta da qual foram extraídas as passagens transcritas na parte inicial deste ensaio. A bem da
verdade, se conjugamos o conteúdo das cartas de 19 e 28 de julho, torna-se bastante evidente o teor da
argumentação de “Julinha” – bem como o motivo subjacente à visceral reação de sua interlocutora.
Na primeira das missivas, Florbela sintetiza o comentário da amiga na ideia de “deixar voar o coração”,
que recebe como um absurdo – “que sublime e doida utopia!”; podemos supor que Júlia tenha se espantado
com o modo como a sugestão foi recebida, não ocultando o pasmo e questionando o motivo de tal atitude, o
que enseja a peremptória resposta: o conselho é impossível, afirma Florbela, “porque é impossível!”. A
intransigência perceptível nessas palavras, para além de externar a notória franqueza da poetisa, denuncia o
que sua interlocutora logo viria a perceber: inadvertidamente, Júlia propusera a violação de um dos pressupostos
fundamentais da visão de mundo florbeliana – a certeza de haver, entre a subjetividade e o mundo exterior,
uma clivagem intransponível.
Ao qualificar a ideia de liberdade do coração como “mentira atroz”; ao afirmar que ele bate pelo
cativeiro, “enraivecido e louco”; ao referir-se à possibilidade de soltá-lo como uma “irrisão”, Florbela na
verdade enfatiza em que medida a sua condição cativa corresponde à necessidade de resguardá-lo das
imposições da realidade. A inevitável situação de vulnerabilidade, desorientação e desamparo, metaforizada
pela imagem do “leãozito cego” que lastima “o fofo e quente ninho”, justifica o confinamento não como uma
atitude injusta ou arbitrária, mas sim como algo imprescindível para que a integridade do coração possa ser
efetivamente preservada – ainda que se trate de um “tristíssimo cativeiro”, ou seja: de um estado cuja aceitação
se impõe não por propiciar qualquer espécie de alegria ou conforto, mas sim por constituir a única opção viável,
conquanto isso implique acatar a infelicidade dele decorrente.
A semelhança entre o conteúdo do soneto de Florbela e a argumentação sustentada na carta a Júlia
não é, evidentemente, acidental, antes indiciando a coerência de seu pensamento; neste sentido, é significativo
que, no âmbito dialógico materializado na troca de missivas, Júlia tenha lido o poema como peça que, embora
literária, fielmente expressava a mundivisão da interlocutora – suposição legitimada pela argumentação de
Florbela na carta enviada em resposta. Não é preciso ressaltar o exagero inerente à ideia de que, a partir de
ocorrências desse tipo, estabeleça-se acriticamente um procedimento de leitura da poesia florbeliana
fundamentado em uma clave confessional marcada pela transparência e pela invariabilidade; não obstante,
“Pois então não vês que é um sonho, uma mentira atroz a liberdade do coração?”
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uma análise atenta dessas continuidades impõe-se como sine qua non para uma leitura adequada de sua
produção literária.
Se a metáfora do “leãozito cego”, portanto, ajusta-se à imagem do coração presente já no primeiro
quarteto de Anseios, justificando a exortação acerca dos perigos da realidade; se a alusão à “doce quietação da
soledade” remete à lástima, mencionada na missiva, decorrente da decisão de abandonar o cárcere; se a
menção, na carta, ao “tristíssimo cativeiro” espelha a “negra prisão” constante do soneto, o que nisso se percebe
é que a missiva e o poema constituem diferentes instâncias textuais manejadas por Florbela com um propósito
afim, podendo-se ainda observar em que medida a riqueza imagética e retórica da carta aproxima-se daquela
presente no discurso lírico.
Finalmente, e à guisa de conclusão, parece-me interessante destacar a articulação possível entre o
sintagma que, presente no primeiro quarteto e no primeiro terceto do soneto, ocupa uma importante função
estrutural – ‘doido coração’ – e a passagem anteriormente transcrita, extraída de um postal, na qual Florbela
lamenta a inexistência de um “manicômio para corações”. O que isso revela, senão a aguda percepção do amor
como experiência que, quando plenamente vivida – algo que a poetisa desde cedo almejou, estando aí o motivo
da conclusão segundo a qual, se Júlia supunha possível a liberdade do coração, é porque nunca efetivamente
amara –, revela-se incompatível com as limitações cotidianas? Com efeito, se irmanam-se o amor e a loucura,
isso ocorre na medida em que anseiam por um além incompreensível por qualquer um que se dê por satisfeito
com as mesquinhas fronteiras da realidade.
REFERÊNCIAS
ALONSO, C. P. Imagens do eu na poesia de Florbela Espanca. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1997.
DAL FARRA, M. L. A pré-história da poética de Florbela Espanca (1915-1917). In: ESPANCA, F. Trocando olhares. Estudo introdutório, estabelecimento do texto e notas de Maria Lúcia Dal Farra. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1994.
ESPANCA, F. Cartas: 1906-1922. Recolha, leitura e notas por Rui Guedes; atualização e regularização do texto por Luis Fagundes Duarte. Lisboa: Dom Quixote, 1986. [Obras Completas de Florbela Espanca, v. V]
______. Poemas de Florbela Espanca. Estudo introdutório, organização e notas de Maria Lúcia Dal Farra. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
______. Trocando olhares. Estudo introdutório, estabelecimento do texto e notas de Maria Lúcia Dal Farra. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1994.
GUEDES, R. Acerca de Florbela Espanca. Lisboa: Dom Quixote, 1986.
Henrique Marques Samyn
IDIOMA, Rio de Janeiro, nº. 29, p. 199-208, 2º. Sem. 2015 | 208
SILVA, A. de M. Diccionario da lingua portugueza. 4ª ed. reformada, emendada, e muito accrescentada pelo mesmo autor; posta em ordem, correcta, e enriquecida de grande numero de artigos novos e dos synonymos por Theotonio José de Oliveira Velho. T. II. Lisboa: Impressão Régia, 1831.
SIMÕES, A. Perda de identidade e divisão interior na lírica de Florbela Espanca. In: A planície e o abismo: actas do Congresso sobre Florbela Espanca realizado na Universidade de Évora, de 7 a 9 de dezembro de 1994. Évora: Vega, 1997, p. 69-73.
Data de submissão: mar./2016.
Data de aprovação: mar./2016.
209
CRÍTICA TEXTUAL / ECDÓTICA:
O PROBLEMA DAS EDIÇÕES INFIÉIS.
Breves notas para a história do Cursos de Letras no Brasil
Maximiano de Carvalho e SILVA1
RESUMO: Este estudo se inicia com uma breve história dos cursos superiores de Letras
no Brasil, com destaque para a Universidade do Distrito Federal (UDF) e para a atuação
do professor Sousa da Silveira na cátedra de Língua Portuguesa dessa instituição e da
Universidade do Brasil ‒ posteriormente, Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
O relato da influência de Sousa da Silveira ganha ainda mais força no que diz respeito a
sua atuação como formador de estudiosos de Crítica Textual, enfatizando conceitos como
a importância da seleção de textos autênticos e fidedignos para as edições e de um
profundo conhecimento da língua e de seus recursos de expressividade, tanto sincrônica
como diacronicamente. O autor fala de sua formação na área e de sua própria contribuição
na instituição e difusão da Crítica Textual como disciplina curricular no ensino superior
(especialmente na Universidade Federal Fluminense ‒ UFF). Por fim, apresenta-se uma
tabela com notas comparativas de duas edições do romance O Cabeleira, de Franklin
Távora (1876 e 1963), elaborada com base em cotejo realizado por alunos de curso de
Crítica Textual, sob orientação do autor.
PALAVRAS-CHAVE: Crítica Textual. Literatura Brasileira. História dos cursos de
Letras no Brasil.
ABSTRACT: This study begins with a brief history of the Letters courses in Brazil,
highlighting the Universidade do Distrito Federal (UDF) and the work of Professor Sousa
da Silveira in the chair of Portuguese Studies of this university and of Universidade do
Brasil (UB) ‒ later Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). The account of the
influence of Sousa da Silveira gains even more strength concerning his role as a trainer
of researchers dedicated to Textual Criticism, with emphasis to concepts such as the
importance of selection of authentic and reliable texts for edition and of a deep knowledge
of the language and its expressive resources, both synchronic as diachronically. The
author speaks of his training in the area and also reports his own contribution to the
establishment and spread of Textual Criticism as a curricular discipline in higher
education (especially at the Universidade Federal Fluminense ‒ UFF). Finally, a table is
presented with comparative notes of two editions of the novel The Cabeleira, by Franklin
Távora (1876 and 1963), which is based on a comparison performed by the Textual
Criticism course students, under the guidance of the author..
KEYWORDS: Textual Criticism. Brazilian Literature; History of Letters courses in
Brazil.
1 Professor Emérito da Universidade Federal Fluminense; Membro da Academia Brasileira de Filologia;
autor de Sousa da Silveira / O Homem e a Obra / Sua Contribuição à Crítica Textual no Brasil (1984) e de
edições críticas e comentadas de obras-primas das literaturas brasileira e portuguesa.
210
No Brasil, por um lamentável atraso, os estudos superiores de Letras só puderam
ter um maior avanço com o funcionamento de Universidades segundo as exigências
estabelecidas por lei federal, logo depois de, como uma das novidades trazidas pela
chamada Revolução de 1930, ter sido criado pelo governo provisório que assumiu o poder
o Ministério da Educação e Saúde. Foram três essas Universidades pioneiras na renovação
do ensino superior em nosso país: a Universidade de São Paulo (USP), fundada em 1934
por iniciativa do governo do Estado de São Paulo; a Universidade do Distrito Federal
(UDF), fundada em 1935 por iniciativa da Prefeitura da cidade do Rio de Janeiro, então
capital da República, mas que teria vida efêmera até o ano de 1938; e a Universidade do
Brasil (UB), fundada em 1937, por iniciativa do governo federal, e hoje denominada
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que tinha como unidade básica a
Faculdade Nacional de Filosofia (FNFi). Foi nelas, como estava previsto nos textos
legais, que as atividades de ensino, pesquisa e extensão puderam realizar-se com a
amplitude que as caracteriza nos dias atuais, tendo em vista a formação de profissionais
das mais diferentes áreas do conhecimento.
O curso superior de Letras nelas se incluiu com o propósito de favorecer a visão
do estudo científico de língua e de literatura, e de corrigir as distorções que se observavam
de modo geral no ensino público e particular. Para encarregar-se de organizar e executar
projetos em consonância com as novas exigências, e assumir a direção das disciplinas e
dos novos programas de cunho renovador, foram convocados os professores que,
superando as limitações do autodidatismo, se tornaram conhecidos pelo teor das lições
em sala de aula ou registradas em livros de sua autoria e em artigos que publicavam em
jornais e revistas especializadas.
Os currículos dos cursos de Letras organizados de modo diferente e ao sabor das
circunstâncias faziam prever apenas a existência das disciplinas consideradas
indispensáveis, e distinguiam três modalidades de habilitação: Letras Clássicas
(entendidas como Língua e Literatura Grega e Língua e Literatura Latina), Letras
Neolatinas e Letras Anglo-Germânicas. Em todos os currículos as disciplinas de Língua
Latina, Literatura Brasileira e Literatura Portuguesa figuravam como obrigatórias, pois a
principal finalidade das três modalidades de curso era atender à demanda de professores
de Português e Literaturas de Língua Portuguesa no ensino secundário.
211
Na organização desses currículos, apenas na UDF, não sei dizer por que
inspiração, se acrescentaram ao número de disciplinas para o ensino das línguas e das
respectivas literaturas duas disciplinas básicas, as de Linguística Geral e Teoria da
Literatura.
Ao ser criada a UDF, por decisão do Prefeito Pedro Ernesto, que confiou a sua
organização ao Secretário da Educação Anísio Teixeira, o nome do filólogo Sousa da
Silveira foi logo lembrado para assumir a direção da cátedra de Língua Portuguesa. Vinha
ele de uma experiência nova do estudo e ensino da língua como expressão da cultura, não
preocupado tão somente com a história da língua e com o estudo da língua padrão, mas
igualmente com a diversidade dos usos linguísticos e a observação fiel dos fatos
linguísticos no uso oral e nos textos escritos de todas as épocas.
Do final da segunda década do século XX ao início da década de 1930 Sousa da
Silveira se projetara entre os nossos filólogos e professores com a publicação de três
compêndios destinados a ensejar uma visão geral da origem, formação, desenvolvimento
e estado atual da língua portuguesa ‒ Trechos Seletos (1919), Lições de Português (1921-
1923) e Algumas Fábulas de Fedro (1927) ‒, além do opúsculo A Língua Nacional e o
Seu Estudo (1921), em que traça as diretrizes do estudo e ensino da língua segundo o seu
entendimento, de numerosos artigos em revistas especializadas e das suas primorosas
edições comentadas de textos clássicos (“Auto da Alma” e “Auto da Mofina Mendes” de
Gil Vicente, o poema “Sôbolos rios” de Camões, a tragédia Castro de Antônio Ferreira e
a écloga Crisfal de Cristóvão Falcão). Atraíra a atenção da nova geração de filólogos que
sonhavam com essa renovação, alguns dos quais dele se aproximaram nos anos da UDF
para frequentar como alunos regulares ou ouvintes as suas aulas de Linguística
Portuguesa e de comentário de textos e, de 1939 em diante, nos anos iniciais da Faculdade
Nacional de Filosofia. Era uma plêiade de professores de ensino secundário e de
pesquisadores da qual faziam parte Sílvio Elia, Serafim da Silva Neto, Matoso Câmara
Júnior, Celso Cunha, Antônio Houaiss, Othon Moacyr Garcia, Antônio de Pádua, Rocha
Lima, Jesus Belo Galvão, Gládstone Chaves de Melo e outros mais.
Quando, no ano de 1944, ingressei como aluno no Curso de Letras Neolatinas da
FNFi, Sousa da Silveira estava no auge do seu prestígio de professor, ministrava as aulas
com muita segurança e conhecimento dos fatos da língua, dotado de excelente memória,
mas sem o brilho dos anos anteriores, porque fora vítima no ano anterior de um derrame
212
cerebral que lhe tirara a liberdade de movimentos e o vigor físico de antes. Por uma
estranha falha na organização curricular, para os alunos de Neolatinas as aulas de Língua
Portuguesa só eram dadas a partir do segundo ano, o que muito nos decepcionou, ávidos
como estávamos de ouvi-lo tratar dos pontos do programa por ele organizado.
A sua primeira aula foi singular: dissertou longamente sobre a atitude que
devíamos manter de absoluto respeito aos fatos da língua em suas variedades e de busca
de textos autênticos e fidedignos em que pudéssemos basear-nos para ter perfeito
conhecimento da variedade de usos da língua portuguesa. Nessa mesma aula de dois
tempos fez-nos ver que, de acordo com o programa traçado, teríamos aulas alternadas de
Linguística Portuguesa diacrônica e sincrônica e do que denominava comentário de
textos, ou seja, notas explicativas sobre a origem e fidedignidade dos textos apresentados,
exame minucioso dos recursos de expressão de que se valera cada autor, exegese das
passagens obscuras ou duvidosas. Propunha-se a fazer o que só mais tarde
identificaríamos como o objeto formal da ciência da linguagem a que hoje damos o nome
de Crítica Textual e, na culminância das suas atividades, Ecdótica, a arte de estabelecer
criticamente os textos, interpretá-los e comentá-los.
Depois de explicar-nos que nas suas aulas procuraria fazer-nos conhecer com rigor
as normas do uso padrão da língua no Brasil do século XX, a que se sujeitam os que
escrevem ou falam em circunstâncias especiais da vida social, falou-nos da diversidade
dos usos linguísticos e da legitimidade de cada um deles em seu contexto próprio, não
deixando de acentuar que os escritores têm ampla liberdade de expressão e podem valer-
se na composição da sua obra propriamente literária dos registros diferenciados de outros
usos e da criatividade para propor inovações que no seu entender favoreçam a
expressividade do que querem dizer.
No segundo tempo de aula, surpreendeu-nos ainda mais o ilustre filólogo com a
apresentação de cópias de um texto do poeta Ribeiro Couto, “Romance de Cabiúna”, para
exemplificar o aproveitamento artístico na língua literária de dois usos linguísticos
distintos, o uso padrão, segundo os preceitos fixados na chamada gramática normativa
com base nos textos dos bons autores, e o uso coloquial de falantes menos afeitos ou
desatentos a essas normas.
213
ROMANCE DE CABIÚNA
Ribeiro Couto
Cabiúna era menino
E dizia: – “Eu vou na Europa”.
A mãe dele respondia:
“– Fica quieto, Cabiúna.
Cabiúna, não me amola”.
A mãe dele não gostava.
Ralhava sempre, ralhava...
De dia ela costurava
Em frente ao mar, na janela.
E, costurando, cantava.
“– Minha mãe, eu cresço logo,
Fico grande e vou na Europa.
Deixa eu ir, minha mãezinha?”
“– Que menino sem cabeça!
Sai daqui, não me aborreça.”
“– Deixa eu ir, minha mãezinha...”
Mas toda noite ela entrava
No quarto em que ele dormia
E, junto dele, chorava.
Cabiúna ficou grande,
Ficou grande e foi-se embora.
Trabalhando de taifeiro
Num navio brasileiro.
Aconteceu que uma noite,
Junto de um cais estrangeiro,
Virou criança: chorava.
Alguém, passando, assobiava
Uma canção parecida
Com as que a mãe dele cantava.
(Couto, 1943, p. 52-53.)
Não se esqueceu de, antes de tudo, dizer que era um texto reproduzido com
fidelidade do último livro de poemas de Ribeiro Couto, Cancioneiro do Ausente, com
revisão do próprio autor; forneceu-nos a indicação bibliográfica respectiva e alertou-nos
para o fato de que os textos são divulgados muitas vezes com grosseiras deturpações e
erros tipográficos, e é preciso então que os seus usuários procurem deles as lições
fidedignas e as edições que os transcrevam de boas fontes. Foram estas as primeiras
214
noções que eu tive dos fundamentos da ciência da linguagem que tem por finalidade zelar
pela existência e conservação dos textos como expressão mais alta da cultura e pela
reprodução dos mesmos com absoluto respeito ao labor autoral. Tudo foi feito, no entanto,
sem que Sousa da Silveira uma única vez mencionasse os nomes com que essa ciência e
arte passou a ser conhecida no Brasil a partir da década de 1950: Crítica Textual /
Ecdótica.
A aula inaugural de Sousa da Silveira assinala o despertar do meu interesse pelo
estudo mais aprofundado e cuidadoso dos textos e teve imediata influência nas minhas
atividades de magistério, que por curiosa coincidência se haviam iniciado na parte da
manhã daquele mesmo inesquecível dia 15 de março de 1945, em turmas do curso ginasial
do modesto mas conceituado educandário Instituto Menino Jesus, de que eu fora aluno
nos anos anteriores. Com efeito, desde logo percebi que não devia concentrar as minhas
atenções unicamente no estudo da teoria gramatical, como geralmente se fazia, mas
também ensinar aos meus alunos, através de exercícios de leitura e interpretação de textos
e da prática de redação, os preceitos para se expressarem com clareza e propriedade e de
acordo com as normas da língua padrão. Para isso, contei também com o precioso auxílio
do programa de Português do Curso Ginasial e das instruções metodológicas para a sua
execução elaborados por Sousa da Silveira, em 1942, como parte da reforma do ensino
secundário posta em vigor pelo Ministério da Educação e Saúde, sob a clarividente
direção do Ministro Gustavo Capanema (BRASIL, 11-15/07/42).
Dediquei-me desde logo à busca das boas edições como recomendava o grande
Mestre. Entre as que consegui adquirir sem demora, estavam as suas edições críticas e
comentadas de autores brasileiros da fase romântica – Suspiros Poéticos e Saudades, de
Gonçalves de Magalhães (1939), e Obras de Casimiro de Abreu (1.a edição, 1940), e as
das antologias dos poetas brasileiros da fase romântica e da fase parnasiana de Manuel
Bandeira, as quais me fizeram ver que havia pela frente todo um longo trabalho a ser feito
para divulgar nossos autores em edições de texto autêntico e comentado como apoio aos
estudos de língua e literatura nos cursos de Letras.
Outras investigações me ensinaram que essa mesma preocupação de restituir aos
textos a sua versão original, tão deturpada nas edições então existentes, deu início, no
século XIX, mas de forma limitada e precária, às atividades de Crítica Textual no Brasil,
por parte de historiadores, entre os quais sobressaía a figura de Francisco Adolfo
215
Varnhagen. Em Portugal, do final do século XIX às primeiras décadas do século XX, com
idênticas preocupações, três notáveis filólogos - Epifânio Dias, Leite de Vasconcelos e
Carolina Michaëlis – se entregaram ao labor de preparar as bases do empreendimento de
publicar edições críticas de obras-primas da literatura portuguesa. O que fizeram teve
grande influência na formação dos filólogos brasileiros da primeira metade do século XX.
As suas observações metodológicas sobre as pesquisas para a identificação dos textos de
base e os seus comentários filológicos podem-se ler nas numerosas obras que
conseguiram publicar, verdadeiro monumento que propiciou grande avanço às ciências
da linguagem. Tiveram particular repercussão no Brasil a edição de Os Lusíadas de
Epifânio Dias (1910, com reedição em 1916), as Lições de Filologia Portuguesa
(1911/1926) e as edições de textos arcaicos de Leite de Vasconcelos (1903-5), as Lições
de Filologia Portuguesa (1911-3), os estudos preliminares e as edições críticas de
Carolina Michaëlis sobre textos medievais e textos quinhentistas (Cancioneiro da Ajuda
[1904], autos de Gil Vicente [1922], poesias de Sá de Miranda [1885])2.
A divulgação no Brasil da história e dos fundamentos teóricos da Crítica Textual
e da arte de estabelecer criticamente os textos só se deu de fato a partir da década de 1950,
graças principalmente à operosidade de dois grandes filólogos, Celso Cunha e Antônio
Houaiss, ambos ex-alunos na UDF e discípulos declarados de Sousa da Silveira. Celso
Cunha foi o sucessor de Sousa da Silveira em 1953 como catedrático de Língua
Portuguesa da Faculdade Nacional de Filosofia e, três anos mais tarde, passou a contar
com o apoio político do governo federal, no âmbito do Ministério da Educação e Cultura
(MEC) e de uma das suas repartições, o Instituto Nacional do Livro (INL), para realizar
os seus planos culturais de grande alcance. Ele e Antônio Houaiss, associados a dois
outros importantes colaboradores, o filólogo Antônio José Chediak e o filólogo e
bibliógrafo Galante de Sousa, deram divulgação, através de aulas e palestras, da imprensa
e das páginas da prestigiosa Revista do Livro, órgão do INL, a preciosos dados para tornar
2 Convém ressaltar que, como sinal dos tempos que estamos vivendo, há nos cursos de graduação e de pós-
graduação em Letras em nosso país, de modo geral, uma lamentável depreciação dos estudos históricos e
um propositado desconhecimento ou descaso em relação a esses citados autores brasileiros e portugueses
do passado e às obras que nos legaram. Todavia, pelo que tenho observado, os neolinguistas e professores
de literatura que os ignoram e consideram superados terão com o tempo de explicar aos seus alunos e
orientandos a razão de estarem reaparecendo nos registros da Internet tantos autores e obras importantes
relegadas ao esquecimento, mas de fundamental importância para os pesquisadores atuais que não de
deixam seduzir pela supervalorização das novidades.
216
mais conhecidas e valorizadas as atividades de Crítica Textual, mas também os nomes
dos pioneiros dos estudos da ciência filológica em outros países, além de Portugal
(Alemanha, Itália, França, Espanha e Inglaterra, notadamente). Foi a partir daí que os
outros estudiosos de Crítica Textual e de língua portuguesa e literaturas brasileira e
portuguesa, excetuados alguns poucos bem informados que já haviam tido acesso às obras
mais antigas e mais recentes, se familiarizaram no Brasil com estudos teóricos de Crítica
Textual e a aplicação dos mesmos aos textos clássicos e modernos editados em outros
países, como os de autoria do alemão Karl Lachmann, dos franceses Joseph Bédier, Louis
Havet, Henry Quentin, Alphonse Dain e L. Laurand, dos espanhóis Menéndez Pidal e
Menéndez y Pelayo, dos italianos G. Pasquali, Alberto Chiari, e outros mais. Lembre-se,
por exemplo, que um desses filólogos, Alberto Chiari, com a sua experiência de editor de
textos de escritores italianos, num pequeno mas substancioso artigo intitulado “La
edizione critica”, ensinou aos filólogos brasileiros de modo geral a técnica da preparação
de uma edição crítica e a terminologia para designar as várias etapas do labor filológico3.
Ao filólogo Celso Cunha não pode deixar de ser creditada a participação em duas
iniciativas relevantes, em que teve o apoio dos três mencionados colaboradores dos seus
projetos, a partir das quais ainda mais contribuiu para dar o merecido relevo às atividades
de Crítica Textual como um dos meios mais eficazes de proteção do nosso patrimônio
literário. A primeira delas foi a criação, em 1956, sob o patrocínio do Instituto Nacional
do Livro, de um “Curso de Preparação de Textos”, em que se matricularam dedicados
pesquisadores para cumprir, sob a orientação de professores de diferentes disciplinas, as
tarefas de elaboração de edições críticas de obras de autores brasileiros do século XIX. A
segunda, a criação, no ano de 1958, por ato do Ministro da Educação e Cultura Clóvis
Salgado, da Comissão Machado de Assis, encarregada no ano do cinquentenário da morte
do grande escritor de elaborar as edições críticas das suas poesias e da obra de ficção
machadiana. No decorrer das atividades regulares do Curso e da Comissão, infelizmente
por poucos anos, interrompidas como foram nos governos seguintes, ficaram os exemplos
de como seria importante que o estudo e o ensino da Crítica Textual fossem
institucionalizados na formação superior dos professionais de Letras, de História e de
3 O artigo de Chiari, com o título de “La edizione critica” (1951), está dividido em três partes: “I –
Legittimità e caratteri della edizione critica; II – Breve storia della edizione critica; III – Come si fa una
edizione critica”. Foi a partir daí que se firmou o extraordinário prestígio dos filólogos italianos no
Brasil.
217
outras ciências humanas, como meio de assegurar ao patrimônio literário o mesmo
amparo previsto nos textos legais que regulam a atuação do Serviço do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional (SPHAN). É de lamentar, porém, que Celso Cunha não se
tenha lembrado de criar na Faculdade de Letras da UFRJ a disciplina autônoma de Crítica
Textual, para que alunos e professores interessados pudessem consagrar mais tempo aos
estudos teóricos e às atividades nela previstas.
Cabe-me aqui dizer sem rodeios, inclusive por não ser cultor da falsa modéstia,
que quando tudo o que relatei acontecia auspiciosamente, eu, como discípulo de Sousa da
Silveira, organizava os meus programas de ensino de Língua Portuguesa, tanto no ensino
secundário de Língua Portuguesa (até 1970) como no ensino superior de Filologia /
Crítica Textual (até 2009) com a previsão da existência de duas disciplinas distintas:
Linguística Portuguesa (sincrônica e diacrônica) e Filologia (Crítica Textual / Ecdótica).
Notei desde logo que os alunos se encantavam com as aulas de interpretação e comentário
de textos, que propiciava o contato com os textos e os fazia perceber na leitura atenta das
páginas antológicas de autores brasileiros e portugueses ‒ não apenas os modernos e
contemporâneos, mas até mesmo os clássicos e os do período medieval da literatura
portuguesa ‒ a riqueza de dados fonológicos, morfológicos, sintáticos, semânticos antes
não observados com a devida atenção.
Sentia eu, no entanto, que sendo ciências com objetos formais diferentes ‒ a
primeira destinada ao estudo da história da língua portuguesa e do sistema linguístico em
sua variedade de usos, a segunda destinada ao estudo dos textos como expressão da
cultura popular ou erudita ‒ não podiam estar amarradas uma à outra na organização
curricular, pois precisavam ter autonomia própria para desenvolverem mais amplamente
os seus programas específicos. Por isso, em 1978, no Instituto de Letras da UFF, depois
de vencer a barreira do absurdo preconceito de vários professores, para os quais
Linguística e Filologia eram quase a mesma coisa e Crítica Textual devia ser o mesmo
que Crítica Literária, consegui ver aprovada pelo Departamento a que eu pertencia a ideia
da criação da disciplina autônoma de Filologia / Crítica Textual, como básica e
indispensável à boa formação dos que se dedicam aos estudos históricos, linguísticos e
literários. Passei à condição de Professor Titular da nova disciplina, o que me permitiu
anos depois, em 1984, obter nesse setor o título de Livre-Docente, com a apresentação da
tese a que dei o título de Sousa da Silveira: o Homem e a Obra; Sua Contribuição à
218
Crítica Textual no Brasil, publicada em seguida como coedição da Editora Presença e do
INL (1984).
Para completar este longo relato, feito com o propósito de fornecer dados
importantes para a valorização da Crítica Textual e o reconhecimento da posição que deve
ter no ensino superior de Letras e outras ciências humanas, quero ainda referir-me ao
resultado de iniciativas minhas na UFF nesse sentido a partir da década de 1960. Tudo se
tornou possível quando se criou em 1961 na cidade de Niterói a Universidade Federal do
Estado do Rio de Janeiro (hoje Universidade Federal Fluminense ‒ UFF), com a
incorporação de diversos Institutos, Escolas e Faculdades autônomos, entre os quais a
Faculdade Fluminense de Filosofia, onde eu trabalhava desde 1957 como professor da
disciplina de Língua Portuguesa. Passei a exercer na UFERJ/UFF, a partir de 1963, além
das atividades docentes, as administrativas que me foram confiadas, como as de
Secretário, Chefe de Departamento, Coordenador dos cursos de graduação e de pós-
graduação, Diretor do Instituto de Letras o que me facilitou a obtenção de meios para
levar avante alguns planos que absorviam a minha atenção.
Foi em 1963, creio que pela primeira vez no ensino universitário brasileiro, já
numa posição funcional mais estável e contando com maiores recursos, que instituí nas
minhas turmas a pesquisa como atividade obrigatória dos alunos, propondo-lhes cinco
tipos de trabalho a serem realizados em sala de aula, ou em bibliotecas públicas do Rio
de Janeiro. A maioria dos alunos optou por pesquisas no âmbito da Crítica Textual,
interessando-se pelo estudo comparativo das melhores edições de obras literárias com as
edições dos mesmos textos lançadas no comércio por editores de nome em nosso país.
Tinha eu o propósito de documentar o absurdo tratamento a que eram submetidas as obras
dos nossos melhores autores por parte de editores e preparadores de texto que se achavam
no direito de alterar o que encontravam nos originais, movidos de preconceitos
gramaticais e literários da pior espécie, ou por parte de tipógrafos e revisores tipográficos
de precários conhecimentos linguísticos, os quais tomavam como erros tudo quanto
ultrapassava os limites dos seus deficientíssimos conhecimentos da língua em sua
múltipla variedade e riqueza.
Como a essa altura eu já era autor de trabalhos recebidos com muitos encômios
pela crítica especializada ‒ entre eles a reedição em 1957 com o texto rigorosamente
estabelecido da obra clássica Dificuldades da Língua Portuguesa, de Manuel Said Ali,
219
com prefácio de Serafim da Silva Neto ‒ recebi da editora Melhoramentos, de São Paulo,
por indicação de Augusto Meyer, Diretor do INL, a incumbência de cuidar com idêntico
rigor dos textos da sua coleção “Panorama da Literatura Brasileira”, que vinham sendo
publicados com grosseiras alterações que os descaracterizavam por completo. De uma
primeira encomenda resultou, em 1966, a publicação do romance Dom Casmurro, de
Machado de Assis, numa edição crítica cujo minucioso registro filológico a tornou, no
juízo do filólogo Celso Cunha, um modelo para empreendimentos semelhantes4. Tratei
logo de convocar os meus melhores alunos da UFF para colaboradores na feitura de outras
edições, e foi com a sua ajuda que, de 1970 a 1978, pude ver publicadas em edições de
excelente aspecto gráfico as edições críticas ou de texto crítico de romances de referência
obrigatória nos estudos sobre o Romantismo no Brasil ‒ Ubirajara, O Sertanejo, Til, O
Tronco do Ipê e Senhora, de José de Alencar, A Moreninha, de Joaquim Manuel de
Macedo, Memórias de um Sargento de Milícias, de Manuel Antônio de Almeida, A
Escrava Isaura, de Bernardo Guimarães. Todavia, nos anos seguintes novas
circunstâncias me fizeram interromper a realização desse plano que tivera tão firme apoio
da editora Melhoramentos.
Um dos trabalhos que mais interesse despertou entre os alunos foi o relativo ao
romance O Cabeleira, do autor cearense Franklin Távora, nascido em 1842 e falecido em
1888, figura do movimento realista em nossa literatura. É um romance de que só existe
uma edição em vida do autor, publicada no Rio de Janeiro em 1876. Um grupo de alunas,
em que sobressaíram Maria Alice Pires Cardoso de Aguiar e Dulce Mendes, fez sob a
minha orientação o minucioso cotejo desse texto de 1876 com o da edição de 1963 da
editora Melhoramentos de São Paulo, e logo em seguida eu mesmo conferi tudo o que
havia sido anotado no volume da Melhoramentos que ainda conservo em meu poder. Com
base nessas anotações, ditei para a minha preciosa colaboradora Lília Cerqueira Leite os
4 Atendendo a honroso convite do Dr. Mauro Romero, então Diretor da Editora da Universidade Federal
Fluminense, desejoso de que uma obra de Machado de Assis figurasse na lista das edições da EdUFF, tomei
a meu cargo preparar uma reapresentação da minha edição crítica de Dom Casmurro (SILVA, 2014). Ao
rever o que já estava na edição de 1966 e no relançamento da mesma em 1975, quis demonstrar a minha
concepção atual de edição crítica, segundo a qual não é suficiente publicar o texto crítico acompanhado do
registro filológico, pois o leitor nela deve dispor de elementos para situar o autor e a obra em seu contexto
histórico-cultural próprio. Para isso, acrescentei ao volume um apêndice de cerca de 200 páginas, com
numerosos dados biobibliográficos, um estudo sobre a fortuna crítica do romance e um glossário de nomes
próprios e nomes comuns, com a consulta aos quais os leitores no Brasil, em Portugal e em outros países
onde há algum interesse pela literatura brasileira se habilitam a uma leitura renovada do romance, bem
diversa da leitura tradicional.
220
dados do quadro abaixo, em que as discrepâncias entre os dois textos estão classificadas,
em duas colunas, permitindo ao leitor ter agora ideia nítida, pelo que consta da coluna B,
do descaso com que casas editoras, até mesmo as de maior prestígio, costumam tratar os
textos, num absoluto desrespeito ao direito autoral sagrado de tê-los reproduzidos com
absoluta fidelidade ao que escreveram.
Não posso, ainda, deixar de mencionar três outras iniciativas com que procurei
contribuir para o reconhecimento da relevância das atividades de Crítica Textual, ainda
não reconhecidas na medida exata entre um número expressivo de professores e
pesquisadores da área de Letras, como facilmente se pode comprovar pelas afirmações
que fazem em sala de aula ou pelas atitudes que tomam para impedir que a ciência
filológica se alce ao lugar merecido no ensino universitário.
A primeira delas, no ano de 1973, decorreu do fato de estar eu então no exercício
dos cargos de Diretor do Instituto de Letras da UFF e de Diretor do Centro de Pesquisas
da Fundação Casa de Rui Barbosa (FCRB), onde como pesquisador eu dava às atividades
de Crítica Textual uma constante atenção. Tendo participado em Lisboa, em novembro
do ano anterior, da chamada Reunião Internacional de Camonistas, com comunicações
que deixaram patente o interesse de tratar do ingente problema da fidelidade dos textos
nas edições da obra lírica e épica do Poeta, propus que a segunda Reunião se realizasse
no Brasil sob o patrocínio das duas instituições que eu ali representava. Coube-me então
a organização do que denominei Programa Especial UFF-FCRB, e nele previ a realização
de dois congressos internacionais interligados, o Congresso Internacional de Filologia
Portuguesa (com um temário referente aos estudos teóricos de Crítica Textual e sua
aplicação aos textos em língua portuguesa) e a II Reunião Internacional de Camonistas
(em cujo temário predominavam as indicações de estudos sobre os textos camonianos,
especialmente os da obra lírica). Não há dúvida de que, tendo podido reunir em Niterói e
no Rio de Janeiro os ilustres filólogos brasileiros (no mais amplo sentido da palavra)
Sílvio Elia, Gládstone Chaves de Melo, Celso Cunha, Cleonice Berardinelli, Leodegário
A. de Azevedo Filho, Rosalvo do Valle, Evanildo Bechara, Walmírio Macedo, Hélio
Simões, José Aderaldo Castelo, Segismundo Spina, Isaac Nicolau Salum, e os
estrangeiros Hernâni Cidade, Jacinto do Prado Coelho, Américo da Costa Ramalho,
Herculano de Carvalho, Paul Teyssier, Roger Bismut, Luciana Stegagno Picchio, Mark
Curran e vários outros, como convidados para participar de sessões com amplos debates
221
e de encontros na UFF, no Real Gabinete Português de Leitura e na FCRB, num
movimento de valorização das atividades de Crítica Textual, pude tornar evidente a
importância do relacionamento e do intercâmbio dos que, estando a serviço do
desenvolvimento cultural, se encarregam de cuidar da preservação dos textos e da ingente
tarefa de promover a sua divulgação em edições fiéis às lições originais.
A segunda iniciativa e a de maior significação, já mencionada, foi a de propor em
1978 ao Departamento de Linguística e Filologia da UFF, sob a direção do Professor
Walmírio Macedo, a inclusão nos currículos dos cursos de graduação em Letras, como
obrigatória, a disciplina que recebeu inicialmente a denominação de Filologia (Crítica
Textual), e hoje lá funciona com a denominação de Crítica Textual / Ecdótica. Essa
inclusão, aprovada graças aos bons ofícios do Chefe do departamento e ao apoio dos
demais professores presentes na reunião, permitiu que se instituísse inclusive uma
modalidade nova de currículo, destinada à formação de revisores críticos e preparadores
de edições críticas5. Todavia, após a minha aposentadoria na UFF em 1989, esse currículo
foi desativado, quero crer que em decorrência da incompreensão do seu significado.
A terceira iniciativa foi a de realizar no ano de 1983 o programa que organizei
para a comemoração do centenário de nascimento de Sousa da Silveira, em sessões de
estudos e debates, com a participação de seus principais discípulos e de outros ilustres
filólogos, durante as quais ficaram em especial realce a sua atuação como pioneiro das
atividades da Crítica Textual no Brasil e as suas primorosas edições críticas de obras-
primas da literatura portuguesa e da literatura brasileira.
5 Em 1981, numa turma de 10 alunos que haviam optado pelo referido currículo, e no cumprimento do que
estabelecia a ementa “Filologia 5 – Prática de Crítica Textual”, assumi em sala de aula a direção do trabalho
de preparar uma edição crítica do romance Amor de Perdição, de Camilo Castelo Branco, por encomenda
da presidência do Real Gabinete Português de Leitura, que me forneceu o microfilme do manuscrito
autógrafo camiliano conservado em seus arquivos, a ser reproduzido em fac-símile nessa edição, em
confronto com o texto crítico da quinta edição do romance e o registro das variantes das outras edições que
foram objeto de cotejo. Cada um dos alunos teve diante dos olhos na mesa em que trabalhávamos a cópia
autenticada do exemplar de uma das seis edições em vida do autor ou de três edições póstumas de particular
importância, e uma aluna se encarregou de ler num leitor-copiador de microfilmes o manuscrito original.
A leitura conjunta ensejou a reunião prévia de dados com os quais em minha casa, já no decorrer do ano
seguinte, eu pude verificar a excelência do que fora realizado e preparar os originais da obra, logo em
seguida encaminhados para os trabalhos de composição e impressão às oficinas gráficas da editora Lello &
Irmão, na cidade do Porto (1983), incluindo o fac-símile do manuscrito em confronto com o texto de base
da quinta edição, a última de que tomou conhecimento o autor, e o registro das variantes em notas de pé de
página.
222
NOTAS SOBRE DUAS EDIÇÕES DO ROMANCE O CABELEIRA,
DE FRANKLIN TÁVORA:
A EDIÇÃO PRÍNCIPE DE 1876 E A EDIÇÃO MODERNA DE 1963
As diferenças entre o texto da edição de 1876, que obrigatoriamente tem de ser
tomado como texto de base para qualquer reedição que dele se queira fazer, por ser o
único em vida do autor e por ele mesmo revisto, e o texto da edição Melhoramentos de
1963, têm as seguintes explicações:
1) O preparador da edição de 1963 não levou em conta a errata do final do volume
de 1876, em que Franklin Távora aponta não apenas falhas e erros tipográficos a serem
corrigidos, mas também alterações da sua própria redação, como por exemplo ao pedir
que se substitua “Infelizmente para o Cabeleira” por “Por infelicidade do Cabeleira” (cap.
IV, § 7);
2) O mesmo preparador da edição de 1963, imbuído de preconceitos gramaticais
e literários, desconhecedor de formas lexicais e construções gramaticais legítimas, e
desconhecedor do princípio da Ecdótica moderna segundo o qual o texto de um autor tem
de ser preservado com todas as suas características de forma e de conteúdo, mesmo
quando ele não obedece às normas do uso linguístico e literário da sua época, fez abusivas
modificações de formas lexicais e de construções sintáticas que na sua ótica eram
inaceitáveis;
3) Por outro lado, ele próprio ou algum revisor tipográfico que se encarregou da
tarefa de confrontar o texto original levado à tipografia com as provas da composição
tipográfica para essa nova edição, deixou escapar uma série de falhas e erros tipográficos
que ainda mais invalidam essa edição como fonte de qualquer tipo de estudo ou pesquisa
filológica, linguística ou literária, o que se comprova com o quadro comparativo abaixo.
223
FRANKLIN TAVORA, O Cabeleira
CORREÇÕES DO TEXTO FEITAS NA ERRATA DA EDIÇÃO DE 1876 (ÚNICA EDIÇÃO DO ROMANCE, REVISTA
PELO AUTOR), DE QUE, NO ENTANTO, NÃO TOMOU CONHECIMENTO O PREPARADOR
DE EDIÇÃO MELHORAMENTOS DE 1963.
Capítulo
e parágrafo
Correções propostas por Franklin Távora
nas páginas 316-317
O que se lê na edição de 1963
de O Cabeleira
I, 61 a população obrigada a aproximar-se
dos assassinos
a populaça obrigada a aproximar-se dos
assassinos
IV, 3 É porque .... está sujeita É que .... está sujeita
IV, 7 Por infelicidade do Cabeleira Infelizmente para o Cabeleira
IV, 75 deves ter-lhe .... respeito Deves ter .... respeito
V, 1 recolhera-a em sua casa .... e começara recolheu-a em sua casa .... e começou
VI, 30 se sucedeu a desgraça se suceder a desgraça
VI, 33 este grave assunto este grande assunto
VI, 34 tal era o terror tanto era o terror
IX, 14 que não voltasse que voltasse
X, 84 Jura juramento
X, 60
indicaram que a força tinha dado com
os bandidos. Qualquer aviso para que
fugissem seria inútil
indicaram que a força tinha dado com os
bandidos, e que qualquer aviso para que
fugissem seria inútil
XI, 63 dos que ficam distantes em sua maior
proximidade desta vila duas léguas
dos que ficam distantes desta vila duas
léguas
XI, 82 Antes que anoitecesse Tanto que anoiteceu
XI, 88 Pouco adiante ouviu pisadas Pouco adiante ouviu vozes
XII, 25 para ficar inteiramente na moda para estar inteiramente na moda
XIII, 11
tinha o Cabeleira adquirido uma
virtude – a sobriedade, obra de longas
privações
tinha o Cabeleira adquirido uma virtude
– sóbria 0bra de longas privações
XIII, 74 um salvo das águas, outro escapo ao
tiro iminente
um salvo das águas, outro salvo do tiro
iminente
XIV, 26 um negociante de gados marchante de gados
XIV, 63 a oração .... vence até as almas a oração .... vence todas as armas
XVI, 3 Uma manhã em que a fome e a fadiga o
tinham prostrado
Uma tarde em que a fome e a fadiga o
tinham prostrado
XVI, 46 O sol despertou o bandido O sol acordou o bandido
XVIII,
27
viram-se desfilar viu-se desfilar
TEXTO DA EDIÇÃO DE 1876 (A) EM CONFRONTO COM O TEXTO MODIFICADO POR INTERFERÊNCIA INDEVIDA DO
PREPARADOR DA EDIÇÃO DE 1963 (EM): ALTERAÇÃO DE FORMAS LEXICAIS VARIANTES E CONSTRUÇÕES SINTÁTICAS
TIDAS COMO DESLIZES GRAMATICAIS OU IMPERFEIÇÕES ESTILÍSTICAS DO AUTOR.
Cap. / §
Na edição de 1876 (A)
Na edição de 1963 (EM)
Int., 3 o céu de opalo o céu de opala
I, 40 Por agora vamos ao que importa. Para agora vamos ao que importa.
II, 11 achava-se a pouca distância achando-se a pouca distância
IV, 9 ou de proporcionar-lho ela ou de proporcioná-lo ela
IV, 41 eu vir esconder o coelhinho eu ir esconder o coelhinho
224
V, 18 levar para a casa levar para casa
VI, 1 até aquele momento até àquele momento
XIII, 9 entraram ele e Luísa Entrara ele e Luísa
VIII, 55 os malfeitores bater na porta? os malfeitores baterem na porta?
XVI, 71 o momento dos negros descarregarem o momento de os negros descarregarem
I, 8 dentro nas matas dentro das matas
I, 38 dentro na canoa dentro da canoa
I, 43 saltou novamente dentro nela saltou novamente dentro dela
II,13 pretensão, que ao princípio nutrira pretensão, que a princípio nutrira
IX, 5 Ao princípio A princípio
IX, 53 aonde vás? aonde vais?
XIII, 17 o sol em pino O sol a pino
X,29 d’agora por diante de agora por diante
XII, 13 praça d’armas praça de armas
XV. 79 redes d’aço redes de aço
Int, 8 listrões d’água prateada listões d’água prateada
Int, 22 região amazônia região amazônica
Int, 24 minha palheta minha paleta
Int, 27 rios .... até suas nascenças Rios .... até suas nascentes
Int, 29 sobrolho da madrasta sobreolho da madrasta
I, 49 sorprendidos Surpreendidos
II, 59 o abdômen O abdome
II, 61 os escondrijos da taverna os esconderijos da taverna
V, 2 comboieiros e boiadeiros comboeiros e boiadeiros
V, 51 a cronha do bacamarte A coronha do bacamarte
VI, 6 mondés na capoeira mundéus na capoeira
XI, 40 receiar Recear
XVII, 3 alvorotou-se a multidão alvoroçou-se a multidão
XVII, 9 cobardia Covardia
F, 20 um cataclisma um cataclismo
F, 37 das palavras seu e sinha antepostas aos
nomes próprios
das palavras seu e sinhá antepostas
aos nomes próprios
F, 37 contrações sô e sá contrações só e só
F, 38 jerumu Jerimum
Int, 10 dous anos Dois anos
Int, 12 cousas literárias coisas literárias
II, 78 uma mouta de muçambês Uma moita de muçambés
V, 2 se acoutavam negros fugidos Se acoitavam negros fugidos
Int, 10 Dous anos Dois anos
Int, 12 cousas literárias coisas literárias
II, 78 uma mouta de muçambês Uma moita de muçambés
V, 2 se acoutavam negros fugidos Se acoitavam negros fugidos
Int, 10 dous anos Dois anos
225
Int, 12 cousas literárias coisas literárias
II, 78 uma mouta de muçambês Uma moita de muçambés
V, 2 se acoutavam negros fugidos Se acoitavam negros fugidos
Int, 10 dous anos Dois anos
F, 42 antes do Sol sair antes de o Sol cair
F, 44 umas filhóis, a que chamam beijus uns filhós, a que chamam beijus
TEXTO DA EDIÇÃO DE 1876 (A) EM CONFRONTO COM O TEXTO MODIFICADO DA EDIÇÃO DE 1963 (EM), MAIS
PROVAVELMENTE POR ERRO DE REVISÃO TIPOGRÁFICA: OMISSÃO DE PALAVRAS DO TEXTO A, SUBSTITUIÇÃO DE
UMA PALAVRA OU DE UMA EXPRESSÃO POR OUTRA (FREQUENTEMENTE COM ALTERAÇÃO DO SENTIDO DA FRASE),
SUBSTITUIÇÃO DE UMA PALAVRA POR OUTRA QUE NÃO FAZ SENTIDO, ALTERAÇÃO DA PONTUAÇÃO ORIGINAL.
Cap. / §]
Na edição de 1876 (A)
Na edição de 1963 (EM)
Int, 14 se Deus me ajudar se Deus ajudar
Int, 21
quando tudo não tenha ali uma vida
que não teve princípio e que não há de
ter fim, só o que resta ao corpo é
nascer
quando tudo não tenha ali uma vida
que não resta ao corpo é nascer
Int, 24 continentes, que em todas as direções
iam ficando ou aparecendo
continentes, em que todas as direções
iam ficando ou aparecendo
Int, 31 floresta escusa floresta escura
Int, 31 mercados agrícolas, industriais,
comerciais, artísticos
mercados agrícolas, industriais,
artísticos
Int., 39 há vida, graça, e colorido nativo há vida, graça e colorido nativo
I, 1 Autorizam-nos a formar este juízo Autorizavam-nos a formar este juízo
I, 16 menos feio menos feito
I, 17 corro sem demora a armar o laço corro sem demora armar o laço
I, 29
pequenos armazéns de taipa de sebe
em que se vendiam miudezas e
ferragens. Estes armazéns, que logo
depois de prontos acharam alugadores
pequenos armazéns de taipa de sebe
em que se vendiam miudezas e
ferragens, que logo depois de prontos
acharam alugadores
I, 35 arrastando uma vara pela mão, saltou
à frente dos malfeitores
arrastando uma vara pela mão, soltou
à frente dos malfeitores
I, 63 ainda que lhe custasse a própria vida ainda que custasse a própria vida
II, 50 digna de riso se não despertasse
compaixão
digna do riso e não despertasse
compaixão
II, 56 só tinha para ele atenções só tinha ele atenções
II, 58 as diferentes fases as diferentes faces
III, 48 Nunca se encontraram Nunca se encontram
III, 57 o cadáver de Gabriel .... tingia-as com
o seu sangue
O cadáver de Gabriel tingia-se
IV, 6
a mulher não é somente uma
providência, é sobretudo uma
divindade
A mulher não é somente uma
providência, – sobretudo uma
divindade
IV, 6 um caos uma caos
IV, 96 foram de todo esquecidos foram de todos esquecidos
226
V, 14 na missa que o coadjutor celebrava na missão que o coadjutor celebrava
V, 2 dentro em pouco passou a ser estimada dentro em pouco era estimada
V, 36 vencida do terror vencida de terror
V, 37 lobrigou Luisinha um vulto nobrigou Luisinha um vulto
V, 8 na malta dos salteadores na mata dos salteadores
VI, 1 Não se pode descrever o abalo Não se pode escrever o abalo
VI, 20 Era de índole pacífico Era de índole pacífica
VI, 32 Sem pregar olhos Sem pregar olho
VI, 45 Pouco adiante Pouco diante
VI, 66 corpo todo crivado de facadas corpo crivado de facadas
VI,65 golpe que vibrara golpe que vibrava
IX, 4 Acometimento Acontecimento
IX, 86 – Zé Gomes! gritou este. Já te
esqueceste de que sou teu pai?
– Zé Gomes, olha bem o que dizes!
redargüiu Joaquim, teu pai?
IX, 88 – Zé Gomes, olha bem o que dizes!
redargüiu Joaquim
– Zé Gomes, olha bem o que dizes!
redargüiu de novo Joaquim.
X, 1 Que valeu a Luísa ter-se libertado das
mãos de Joaquim .... ?
Que valeu a Luísa ter-se libertado das
mãos de Joaquim .... !
X, 103 para um fim de grande importância Para um fim de importância
X, 25 fazer isso, nunca. fazer isso, nunca, nunca.
X, 38 em demanda da mata em damanda da mata
X, 73 ocultava-os aos olhos da justiça ocultava-os, aos olhos da justiça
X, 73 com tal firmeza, que nunca deixou de
ser fatal
com tal firmeza que nunca deixou de
ser fatal
XI, 11 Poderá comer das minhas sardinhas Poderá comer mais sardinhas
XI, 46 Nós não nos podemos demorar mais Nós não podemos demorar mais
XI, 5 desconfianças e medos desconfiança e medos
XI, 57 Avie-se, que é tempo avie-se que é tempo
XI, 58 situação que se lhe afigurou
irrevogável
situação que lhe afigurou irrevogável
XI, 61 passado de medo, que o caso não era
para menos
passado de medo, que o acaso não era
para menos
XI, 63 o fruto da economia e do trabalho O fruto da economia e o trabalho
XI, 63 ele me diz ele disse
XI, 63 males privados e públicos males privados e publicados
XI, 65 Chegando a seu distrito Chegado ao seu distrito
XI, 70 tirara a vida tirava a vida
XI, 72 Ceiando Ceando
XI, 94 confiando nos recursos conquanto nos recursos
XI, 98 quero olhar eu quero olhar
XII, 1 Por um cordão sanitário por cordão sanitário
XII, 12 de prisões, e de outros muitos
elementos
de prisões e de outros muitos elementos
227
XII, 30 Teófilo Gautier, escritor de consciência
e bom gosto, pensa
Teófilo Gautier, pensa
XII, 31 Que tão cedo foi arrebatado Que cedo foi arrebatado
XII, 38 se sente o prisioneiro mais desejoso de
estar nessa suavíssima prisão
se sente o prisioneiro mais perigoso de
estar nessa suavíssima prisão
XIII, 10 mais penosa se tornava para os
fugitivos
tanto mais penosa tornava para os
fugitivos
XIII, 12 até para alguns confortos até alguns confortos
XIII, 34 A faca nua na outra A faca na outra
XIII, 50 trazia no cós da ceroula trazia nos cós da ceroula
XIII, 61 Sou incapaz de negar-lha Sou incapaz de negar-lhe
XIII, 64 alma benévola e amorosa da pobre
Luías
alma benévola da pobre Luísa
XIII, 67 recebido nestas palavras um aviso
celeste
recebido nestas palavras aviso celeste
XIV, 1 as sombras começaram a cobrir a
vasta solidão
as sombras começaram a vasta solidão
XIV, 82 Soluços, como de animal bravio Soluços, como animal bravio
XIV, 88
ia quando a entrar aí com os tristes
restos do seu tesouro, um homem
apareceu na extremidade da clareira
Quando ia a entrar aí com o triste resto
do tesouro, um homem apareceu na
extremidade da lareira
XIV, 9 uma chã, no fim da chã um bosque Uma chã, no fim de chã um bosque
XV 24
era o lavrador que desmanchava mais
mandioca no fabrico da farinha, que
era de tão boa qualidade que competia
no mercado do Recife
era o lavrador que desmanchava mais
mandioca que competia no mercado do
Recife
XV, 19 Hei de mostrar-lhe que o que digo,
digo
Hei de mostrar-lhe o que digo.
XV, 35 as duas rodas as duas ordas
XV, 54 chegam a oferecer versos chegaram a oferecer versos
XV, 7 andar para dentro e para fora andar dentro e para fora
XV, 7 esperanças que não se realizaram esperanças que não se realizam
XV, 79 encoberto aos olhos da vítima encoberto os olhos da vítima
XVI, 2 O ananazeiro bravo O ananazeiro bravio
XVI, 8 Vou tomar-lha para mim Vou tomar-lhe para mim
XVII, 15 começou logo a apregoar começou a apregoar
XVII, 19 o medo irresistível da morte que o
impelira
O medo irresistível da morte o impelira
XVII, 27 teus belos olhos Teus olhos
XVII, 54 – Escapula, Leonor, escapula! – Escapula, Leonor, escapula?
XVIII, 12 purifica-se, como elas purifica-se como elas
XVIII, 29 Nassau, tipo do mais fidalgo
liberalismo
Nassau, tipo de mais fidalgo
liberalismo
XVIII, 34 como herança, para transmitir como herança para transmitir
XVIII, 36 buscava embalde abrir caminho buscava abrir caminho
XVIII, 37 Seus lábios trêmulos deixaram passar Seus lábios deixaram passar
228
XVIII, 40 O coração tinha-lhe instantaneamente
estalado de dor
O coração tinha-se instantaneamente
estalado de dor
XVIII, 8 Henrique Luís, o benemérito, o modelo
dos governadores portugueses
Henrique Luís, o modelo dos
governadores portugueses
F, 8 mudar-lhes uma só palavra mudar-lhe uma só palavra
F, 9 Não quis usar dessa faculdade Não quis usar desta faculdade
F, 35 A quem tanto perturbaram A quem perturbaram
F, 46 uma fogueira de grandes proporções Uma figueira de grandes proporções
F, 63 aquela parte dele que ainda não
conhecia
aquela parte que ainda não conhecia
F, 64 Pelo longo da costa segue [Maurício] Pelo longo da costa seguem
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Data de submissão: abr./2016.
Data de aprovação: abr./2016.
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REFLEXOS DA ABOLIÇÃO DA ESCRAVATURA EM TEXTOS LEXICOGRÁFICOS DO SÉCULO XIX
Laura do CARMO1
RESUMO A abolição da escravatura no Brasil é rapidamente integrada como fato nos verbetes da oitava edição do dicionário de Antônio de Morais Silva, publicada no ano seguinte à sua efetivação. Além da atualização das informações, os editores desse dicionário posicionam-se criticamente frente à “antiga” situação escravocrata do Brasil. Este artigo expõe e discute brevemente a inserção desse conteúdo no referido dicionário, considerando sobretudo aspectos metalexicográficos, como a inserção de dados enciclopédicos. Essas reflexões são parte do estudo acerca dos brasileirismos nos dicionários de língua portuguesa no século XIX. PALAVRAS-CHAVE: Dicionários. Brasil. Abolição da escravatura. Informações enciclopédicas. ABSTRACT The abolition of slavery in Brazil was quickly integrated as entries in Antônio de Morais Silva’s dictionary in its eighth edition, published at the following year of the event. The publisher updated dictionary’s piece of information as for this area and took a critical position against the "old" slave trade in Brazil. This paper presents and briefly discusses the inclusion of such content in that dictionary, taking into account above all encyclopaedic data inserted as metalexicographic information. These reflections are part of the study about the Brazilianisms in Portuguese-speaking dictionaries in the nineteenth century. KEYWORDS: Dictionary. Brazil. Abolition of Slavery. Encyclopaedic Information.
1 Doutora em Língua Portuguesa pela UERJ. Pesquisadora do Setor Ruiano da Fundação Casa de Rui Barbosa.
Reflexos da abolição da escravatura em textos lexicográficos do século XIX
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Até meados do século XX, os dicionários de língua portuguesa, gerais e monolíngues, eram elaborados
em Portugal, tendo como orientação a variedade linguística e o universo europeus. Algumas das editoras
responsáveis pela publicação desses títulos tinham sede ou filial no Brasil, mas não há notícias de revisões e
atualizações lexicográficas feitas aqui. Nas páginas de abertura lê-se que houve a inclusão de vários termos do
português do Brasil e que se espera que a obra venha a ser bem-aceita pelo público de ambos os continentes.
Para efetivar essa explicitação de vontade, os autores, editores e revisores valem-se das breves coletâneas de
brasileirismos publicadas no Brasil a partir de 1852. Assim, quando se compara publicações de até 1870 com
aquelas datadas a partir do último quartel do século XIX, nota-se o aumento expressivo das informações sobre
o Brasil (CARMO, 2015).
Os comentários a seguir levam em consideração essa premissa e baseiam-se em verbetes da oitava
edição (publicada em 1889/1890-1891),2 do Dicionário da língua portuguesa, de Antônio de Morais Silva,
tendo como termo de comparação a sétima edição (de 1877-1878) desse mesmo título. Entre todos os
dicionários gerais publicados no século XIX, o de Morais (nome pelo qual é comumente reconhecido e pelo
qual será denominado neste texto) é o que traz contribuições relativamente ao léxico brasileiro, seja pela
inclusão de novos termos e acepções, seja pela atualização de seus significados. Nessa oitava edição, cresce o
número de verbetes e de acepções de uso exclusivamente brasileiros e cresce o número de anotações acerca
de aspectos da sociedade brasileira.
O verbete chibata, por exemplo, é ilustrativo para uma das modificações comumente encontradas na
oitava edição: o acréscimo de informações enciclopédicas, que extrapolam a função precípua de um dicionário
de língua. O trecho assinalado por negrito3 não ajuda a esclarecer o significado de chibata e chicote, mas sim
tece comentários acerca da prática de “castigos corporaes”.
CHIBÁTA, s. f. [...] § Vara delgada e comprida, com que se dão castigos corporaes, no Brazil já completamente abolidos, e em Portugal conservados ainda por excepção na marinha. § [...] (MORAIS, 1890) CHICOTE, s. m. Açoute de couro para castigar bèstas, etc. § Com chicote eram também castigados, ou antes flagellados os antigos escravos. § [...] (MORAIS, 1890)
2 O primeiro volume da oitava edição foi editado em duas datas distintas, 1889 (“nova edição revista e melhorada”), e em 1890, que
informa ser aquela a “oitava edição revista e melhorada” (destaques meus).
3 Foram mantidas as grafias e os destaques gráficos dos originais dos verbetes, a exceção dos negritos, que foram acrescentados neste texto. No correr do meu texto, o verbete é referido com a grafia atual.
Laura do Carmo
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Esse tipo de informação acrescida à oitava edição do Morais parece vir na esteira do destaque dado
aos termos relacionados à política, administração, social, economia. Os verbetes banco, estado, lei, artilharia,
entre outros, na oitava edição do dicionário de Morais, ilustram bem essa questão, melhor apresentada em
Valente e Carmo (no prelo). A seleção das locuções e a descrição de cada uma delas no verbete crise são
prototípicas da relevância com que se apresentam essas informações nesse dicionário. O nível de detalhamento
extralinguístico da informação é sobrelevante na locução crise bancária, especialmente se comparada às
locuções crise magnética, crises da natureza e crise nervosa (este último melhor descrito em ataque nervoso,
ou ataque de nervos).
CRISE, s. f. [...] § Crise nervosa; em linguagem comum, ataque de nervos. § Crise magnetica; o estado em que ficam as pessoas magnetisadas. § [...] § Crise agricola; falta de producção por carencia de braços, ou de capitaes; por não correrem propicias as estações, ou por ser a agricultura victima de algum flagello, ou emfim por qualquer outro motivo de ordem natural ou social. § Crise commercial, crise industrial; perturbação nas operações de commercio, ou nos productos da industria, por difficuldades que se não podem facilmente remover ou vencer. § Crise bancaria; abalo nas operações de banco e de praça, o que ás vezes é tão grave, que só pode conjurar-se com a intervenção do governo, que decreta medidas dictatoriaes de caracter provisorio, que são em muitos casos salvadoras. § Crise financeira; embaraço consideravel nas finanças de um Estado. § Crise politica; crise ministerial; momento em que um gabinete não pode sustentar-se no poder, por desintelligencias entre os ministros, por não ter o apoio das camaras, ou por falta de confiança do chefe do Estado. § Crises da natureza; as grandes convulsões, cataclysmos, de que é theatro o orbe terraqueo. (MORAIS, 1890)
Os nomes para localidades, como algumas construções de destaque da capital brasileira (cf. carioca,
catete, bilioteca), entre outros nomes próprios, são encontrados no dicionário, atendendo ao que parece ser o
objetivo de expandir o conteúdo dos verbetes.
CARIÓCA, s. m. ou f. (t. do Brazil) Nome com que são designados os naturaes do Rio de Janeiro. § Nome de um pequeno rio, que corre na serra do Corcovado, e de que primeiro se abasteceu a cidade do Rio de Janeiro. § Aqueducto da Carioca; importante obra de arte, construida no seculo passado, e pela qual são trazidas á cidade as aguas do Carioca, que correm n’um chafariz do mesmo nome, que por sua vez deu ainda essa designação á praça em que se acha. § [...]. (MORAIS, 1890) CATÈTE, s. m. (t. do Brazil) Especie de milho. § Catete; um dos mais opulentos bairros da capital federal dos Estados Unidos do Brazil, e caminho obrigado dos bairros igualmente opulentos de Larangeiras, Botafogo e Jardim Botanico. (MORAIS, 1890)
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BIBLIOTHECA, s. f. [...] § Bibliotheca publica; estabelecimento do Estado, em que de ordinario se accumulam grandes riquezas bibliographicas, e onde os estudiosos vão fazer as suas consultas; v.g. a Bibliotheca Publica de Lisboa; a Bibliotheca Publica do Rio de Janeiro. § Muitos estabelecimentos públicos e particulares tem bibliothecas, sendo algumas formadas principalmente por obras sobre a respectiva especialidade litteraria ou scientifica. v.g. Bibliotheca da Marinha. § Sob a designação de Gabinete Portuguez de Leitura ha no Brazil importantes bibliothecas, fundadas e sustentadas pelos portugueses ahi residentes; são bastante importantes, além de outras, as de Pernambuco, Bahia, e Rio de Janeiro; esta ultima tem edifício próprio, de fórma monumental em estylo manuelino. (MORAIS, 1890)
O recurso de expansão da lista de palavras e de acepções é prática comum na dicionarística de língua
portuguesa (mas não só nela), a variar de acordo com os padrões lexicográficos de cada época e com o público-
alvo de cada obra. Assim, na oitava edição de Morais, um dos meios de enriquecer o dicionário foi registrar
informações de caráter político-administrativo, jurídico, incluindo nomes de instituições públicas, leis,
resoluções etc. dando a conhecer as novas ordens portuguesas e brasileiras, distribuídas em diferentes entradas
da nominata. A locução leis estaduais refere-se à autonomia legal conferida aos estados brasileiros em seguida
à proclamação da República, em novembro de 1889, uma vez que o regime implantado foi o federalismo. Sua
inclusão entre os itens lexicais pode dever-se também à contraposição com a Lei fundamental, que é a Carta
Constitucional da nação.
LÈI, (ou LÈY, antiq.) s. f. […] § Lei fundamental do Estado; a constituição por que se rege a nação. § Leis estadoaes; as que na actual organisação politica do Brazil são decretadas para cada Estado pelos respectivos congressos. (MORAIS, 1891)
Em côngrua, dá-se notícia de um decreto recentíssimo – de 1889, mesmo ano da impressão do
primeiro volume do dicionário – que também nada acrescenta ao significado linguístico da palavra.4
CÒNGRUA, s. f. Remuneração, que por meio de contribuição, se dá a curas […] § No Brazil, decretada pela Republica a separação da Egreja e do Estado, ficaram extinctas todas as congruas. (MORAIS, 1890)5
Este preâmbulo pretendeu assinalar a contemporaneidade das informações aduzidas à nominata do
referido dicionário. É nesse cenário de atenção aos acontecimentos políticos do Brasil que se atualizam e
4 O sinal de § é adotado, nesse dicionário, para designar novo significado da palavra. Ocorre, porém, de esse sinal ser utilizado para
introduzir uma observação, como se vê em côngrua, e também em liberto, ambos citados neste texto.
5 A informação sobre o Brasil foi apagada em Morais, 9ª. ed., sem data.
Laura do Carmo
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registram termos relacionados à abolição da escravatura e se adicionam comentários inspirados nesse mesmo
fato.
A oitava edição do dicionário de Morais é elaborada e revista no calor do 13 de Maio de 1888, no
Brasil. Os verbetes que se referem à escravidão são corrigidos de modo a atualizar a informação. Um tipo de
correção simples é a alteração do tempo verbal que sinaliza o fato de tal ordem de coisas serem “costumes
velhos”, como bem apreende a ironia machadiana em Missa do galo: “A família era pequena, o escrivão, a
mulher, a sogra e duas escravas. Costumes velhos.” (ASSIS, 2008, p. 69. Grifo meu). Trata-se de conto publicado
em 1894, cujos acontecimentos rememorados pelo narrador transcorrem “pelos anos de 1861 ou 1862”.
Comparem-se, a seguir, os mesmos verbetes na sétima e oitava edições do dicionário de Morais.
Morais, 1877-1878 Morais, 1890-1891
MOCAMBO, s. m. Quilombo, ou habitação feita nos matos pelos escravos pretos fugidos no Brasil. [...]
MOCAMBO (t. Brazil) Habitação que faziam nos mattos os escravos fugidos no Brazil; quilombo. [...]
MOCAMÁOS, s. m. pl. Negros fugidos no Brazil, que vivem pelos mattos, aliás calhambolas, fugiões. [...]
MOCAMAU (de Mocambo) Negros fugidos no Brazil, que viviam pelos mattos em quilombos, aliás calhambolas, fugiões. [...].
CAPITÃO, s. m. [...] Capitães de campo, ou do matto; (no Brasil) os que apanham, e prendem os negros fugidos, ou que estavam em quilombos. V. Fugitivario.
CAPITÃO, s. m. [...] Capitães de campo, ou do matto; (no Brazil) os que apanhavam, e prendiam os negros fugidos, ou que estavam em quilombos. V. Fugitivario.
Não são raros os exemplos em que se atualiza a informação, para indicar que o referente relacionado
à escravidão é fato do passado, e em que se inserem comentários acerca da lei recentemente colocada em vigor
no Brasil. Os verbetes bacalhau (‘açoite’), senhor, cria, conservo, escravo cortado, pombeiro, ilustram essa
afirmação (ver MORAIS, 1890-1891).
A atualização nem sempre se restringe ao uso do pretérito. Em senzala, elimina-se o qualificativo
escravos, que acompanhava o substantivo pretos, que morariam na referida casa. Da oitava para a nona edição,6
há ainda outra adaptação: extinta a relação de trabalho escravo, a função do abrigo também se tornaria obsoleta.
A senzala não é habitação para o grupo étnico de cor negra, mas para os negros com quem se estabelecia
relação de posse. Nesse caso, “antigos” explicita a obsolescência da instituição escravocrata e, por sua vez, do
tipo de habitação.
6 A nona edição, sem data, é referida em estudos metalexicográficos como do final do século XIX e início do XX. Ela foi publicada
pela Empresa Litterária Fluminense, de Santos, Vieira e Comandita. Só localizei publicações com esse dado de imprenta a partir da primeira década do século XX. As publicações anteriores da Empresa Literária Fluminense informam serem outros os proprietários.
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Morais, 1877-1878 Morais, 1890-1891 Morais, início séc. XX
SENZÁLA, s. f. no Brazil, a casa de morada dos pretos escravos.
CENZÁLA, s. f. (t. do Brazil) Choupana, pequena casa onde moram pretos.
CENZÁLA, s. f. (t. do Brazil) V. Senzala. Senzala, ou Cen--, s. f. (t. do Brazil) A casa de morada dos antigos escravos; ou casa semelhante telhada, ou palhoça. Garção, Poes.
Em aquilombar, o texto da definição mantém-se, mas o editor inclui nota para marcar o caráter
histórico e ultrapassado do seu conteúdo. O termo anterior, referido no texto da nota no verbete, é aquilombado,
cuja definição, como se vê, registra o adjetivo como pertencendo ao passado.
AQUILOMBÁDO, adj. (t. do Brazil) Que vivia em Quilombo; que estava refugiado em quilombo. (MORAIS, 1890) AQUILOMBÁR, v. trans. (t. do Brazil) Reunir em quilombo escravos fugidos. (MORAIS, 1890) AQUILOMBÁR-SE, v. ref. (t. do Brazil) Refugiar-se, occultar-se o escravo em quilombo. § NB. Não havendo já escravos no Brazil esta palavra e as duas anteriores só podem hoje ter uma applicação retrospectiva, romantica ou historica. (MORAIS, 1890)
Em negro, a definição da sétima edição não traz qualquer comentário sobre a condição de escravo do
indivíduo de cor preta. O exemplo de uso “comprei um negro” não deixa margem a objeções sobre o estado
de subjugação dos indivíduos de cor. Na oitava edição, esse exemplo é retirado, e a definição, acrescida de
dados que estendem o sentido do substantivo negro para além da cor do indivíduo. Negro e escravo eram
usados como sinônimos.
Morais, 1877-1878 Morais, 1890-1891
NÈGRO, A, s. m. […] § Homem preto: v. g. comprei um negro. § […]
NÈGRO, A, s. m. […] § Homem de raça negra; preto. § Negro; antigamente o escravo, ainda que mestiço. § […]
Os comentários extralinguísticos acerca das circunstâncias históricas sobre a escravidão são variados
e normalmente não contribuem para o entendimento do sentido essencial da palavra, mas sim para aspectos
em torno da realidade nomeada pelo citado vocábulo.
Laura do Carmo
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Por vezes, o texto definitório é permeado por comentários opinativos, deixando à mostra, claramente,
o ponto de vista do redator sobre a coisa descrita (o que, como é consabido, há de ser evitado em textos
lexicográficos). Em Partido da abolição, unidade léxica que não caberia em um dicionário de língua, mas em
um dicionário enciclopédico ou de história, os adjetivos “patriotico e humanitario” traduzem a interpretação
de um enunciador favorável à emancipação dos negros escravizados. O mesmo dá-se na definição do
substantivo negreiro, em que a classificação do indivíduo como “infame” é juízo acrescentado pelo compilador
responsável pelo texto desse verbete na oitava edição. Aqui o dicionarista desvia-se do padrão de texto
lexicográfico quando se posiciona explicitamente, referindo “quem escreve estas linhas”. As informações acerca
da escravidão de brancos, adicionadas por “quem escreve”, são obscuras.7
ABOLIÇÃO, s. f. Acção, ou effeito de abolir […]§ Partido da abolição; o partido patriotico e humanitario, que no Brazil sustentou a liberdade dos escravos até á sua libertação. § Lei da abolição; a lei de 13 de maio de 1888, que declarou livres sem condição alguma todos os escravos existentes a essa data no Brazil. (MORAIS, 1890) NEGRÈIRO, s. m. Individuo infame, que negoceia em escravatura, em compra e venda de escravos, negros, mulatos ou brancos. Quem escreve estas linhas, viu no Brazil, ainda nos ultimos dias da escravidão, escravos que iam ser vendidos tão brancos e louros como europeus do norte. § Usava-se adj.: v. g. navio negreiro: o que se empregava no trafico da escravatura. (MORAIS, 1891)
A atenção dada ao tema reflete-se no acréscimo de dados que se relacionam ao assunto, como em
ventre livre, em que a definição é pouco clara e pode induzir à má interpretação do significado. A primeira
acepção dá a entender que ventre livre seria o qualificativo da escrava, como se se dissesse “escrava ventre
livre”, quando na realidade, ventre livre significa o “direito de liberdade concedido ao nascituro de uma
escrava” (HOUAISS, 2002). O didatismo do exemplo de uso (“a lei promulgada...”) não é fato isolado na obra,
como se pode perceber nesse caso e em outros aqui arrolados.
LIVRE, adj. […] § Ventre livre; disse-se da escrava, cujos filhos pela lei nasciam livres: a lei promulgada no Brazil em 28 de setembro de 1870, que declarou livres os filhos de escrava chamou-se: a lei do ventre livre. § […] § Ser livre; não ser escravo no paiz onde os há. § Estar fóra da acção da justiça […] § Estar livre; não ter compromissos, não estar obrigado, sujeito a alguem ou alguma cousa. § it. Ter-se libertado, ter deixado de ser escravo. § […] (MORAIS, 1891)
7 Embora tenha havido escravidão de mestiços cuja cor não era necessariamente negra, o comércio de escravos estava praticamente
extinto quando da Abolição.
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Embora ventre livre seja frequentemente associado à lei brasileira de 1871, é locução que tem
existência própria e refere-se a aspectos do direito em outras partes do mundo, como se depreende da expressão
o filho segue/seguia o ventre, com tempos verbais distintos, restringindo a expressão à nova circunstância
brasileira, embora fosse ela de uso antigo na língua, como se depreende do trecho escolhido para aboná-la: “os
filhos dos não cidadãos seguiam o ventre” é frase tirada de Diálogos, de Amador Arrais, obra cuja segunda
edição é de 1603.
A edição de 1877-1878 de Morais não registra a locução ventre livre ou qualquer tipo de informação
sobre esta lei, promulgada em 1871. Tal ausência condiz com a proposta editorial perceptível na nominata da
sétima edição, em que dados como esse são bastante raros. Tampouco as locuções ser livre e estar livre estão
ali arroladas.
Morais, 1877-1878 Morais, 1890-1891
VENTRE, s. m. [...] § O filho segue o ventre; i. é, fica da condição civil da mãe; e é livre, ou escravo, segundo ella é livre, ou captiva. Arr. 4. 9. “os filhos dos não cidadãos seguião o ---” tinham a condição, estado civil das mães. § [...] Obs.: o verbete não tem a locução remissiva “ventre livre”.
VENTRE, s. m. [...] § O filho seguia o ventre; i. é, ficava da condição, ou estado civil da mãe; livre, ou escravo, segundo ella era livre, ou captiva: “os filhos dos não cidadãos seguião o ventre” Arr. 4. 9. § [...] Ventre livre: V. Livre.8
Em 1877, os verbetes emancipação, emancipar e emancipar-se registram acepção de caráter jurídico
relacionada ao pátrio poder e outra, dita figurada, que significa tornar-se livre, de maneira genérica. Em 1890,
são acrescentadas várias acepções, além das já existentes, entre elas, a de sentido específico para a alforria de
escravos. Note-se ainda a natureza das duas expressões dicionarizadas: emancipação do espírito e emancipação
da mulher. Nesta última, sinaliza-se também para avanços sociais debatidos ou pretendidos pela sociedade do
final do XIX.
Morais, 1877-1878 Morais, 1890-1891
EMANCIPAÇÃO, s. f. (do Lat. emancipatio) t. jurid. O acto de emancipar, pelo qual o filho sái de sob o patrio poder.
EMANCIPAÇÃO, s. f. (do Lat. emancipatio) (t. jurid.) O acto de emancipar, pelo qual o filho sái de sob o patrio poder. § Libertação, alforria: a emancipação dos escravos. § Emancipação do espírito; fig. estado
8 Além do sentido atual, relacionado ao fato de o indivíduo ser casado, solteiro, viúvo etc. estado civil significava “a existencia legal
do individuo na sociedade, a sua situação nas varias relações da vida social” (MORAIS, 1890).
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do espírito, que se libertou de preconceitos. § A emancipação da mulher; novo principio pelo qual se pretende dar á mulher direitos politicos e sociaes eguaes aos do homem.
EMANCIPÁR, v. a. [...] Fazer o filho senhor de si, isento, e livre do patrio poder, da tutoria, curadoria. § Emancipar-se, v. r. Livrar-se do patrio poder. § Obrar como quem não tem pae, tutor, curador; e fig. como isento de superior. Vieir. 11.90. “o dictame do minimo era emancipar-se; e governar-se por si mesmo” § fig. Tomar sobeja liberdade, isentar-se dos respeitos devidos, exigidos.
EMANCIPÁR, v. trans. [idem 7ª. ed.] § Libertar: v. g. o escravo. EMANCIPÁR-SE, v. ref. [idem 7ª. ed.] § Libertar-se o escravo a si mesmo comprando a alforria. [...] § [...]
Os exemplos a seguir ilustram outros casos em que houve inserção de comentários ou acepções
relacionados ao tema abolição.
LIBÉRTO, A, adj. ou s. […] Que era escravo, e se acha livre, forro. […] § Os escravos que foram livres no Brazil pela lei de 13 de maio de 1889 não são libertos, são cidadãos como quaesquer outros no pleno gozo de todos os direitos civis e politicos. (MORAIS, 1891) MOLÉQUE, s. m. […] (t. do Brazil) Preto pequeno, e escravo. Dizia-se tambem do mulato, e era injuria applicar este termo aos livres. Terminada a escravidão continuou o termo a ser do mesmo modo applicado para designar os rapazes de côr, e mesmo brancos, sem educação, garotos. § […] (MORAIS, 1891)
Morais, 1877-1878 Morais, 1890-1891
LIBERDÁDE, s. f. [...] § Alforria, que consegue o captivo, ou se lhe dá. Dar as --; aos escravos que vão do Brasil, etc. a lei manda que ao entrar em Portugal fiquem forros. § […]
LIBERDÁDE, s. f. […] § Alforria, que conseguia o captivo, ou se lhe dava. § Carta de liberdade; o documento pelo qual se declarava o escravo livre. § […]
Há casos ainda em que a informação é excluída, por seus usos se terem tornado superados diante da
nova ordem, como em dar as liberdades (ver supra) e como em carregador, em que a acepção específica para
“preto ou escravo”, constante na sétima edição, foi eliminada a partir da oitava. Tal opção dá a entender que,
segundo o lexicógrafo, extinta a função, o uso da palavra se extinguiria. Tal como expressa verbalmente em
alugada.
CARREGADOR, s. m. [...] § Preto, ou escravo, que carrega cadeirinha no Brasil, e quaesquer carretos de ganho, v. g. lenha, farinha, fructas das praças para as casas, etc. (MORAIS, 1877)
Reflexos da abolição da escravatura em textos lexicográficos do século XIX
IDIOMA, Rio de Janeiro, nº. 29, p. 230-240, 2º. Sem. 2015 | 239
ALUGÁDA, s. f. (no Brazil) Criada. § Uma alugada; antes da lei da abolição, dizia-se principalmente da escrava que não era propria, que era de outrem, tomada por soldada; era alugada, não era comprada. A expressão tem essa significação implicita; todavia, está ainda em uso, para significar qualquer criada, mas tende a desapparecer, como a escravidão que a adoptou, visto faltar-lhe aquelle sentido fundamental. (MORAIS, 1890)
Os exemplos de uso são também espaços em que os responsáveis pela edição deixam entrever a
relevância dada ao tema escravidão-abolição.
ABOLIR, v. trans. Riscar […] § Supprimir, extinguir, anniquilar, annular: -- institutos, corporações, usos, leis costumes, impostos, tributos; Portugal abolio a pena de morte; o Brazil em 1888 abolio a escravidão. § […] (MORAIS, 1890) CONCÚRSO, s. m. [...] § O acto de concorrencia para algum resultado: Dei tambem o meu concurso para a conquista da liberdade dos escravos. (MORAIS, 1890) MAS, [...] § (como subst. m.) Difficuldade, obstaculo: “à immediata e incondicional libertação dos escravos no Brazil, sempre os negreiros, disfarçados em falsos abolicionistas, oppunham um mas, que importava o adiamento, senão a condemnação da patriotica e humanitaria idéa.” § [...] (MORAIS, 1891)
O comentário aposto à segunda acepção de hilota, um sentido extensivo do primeiro, e ausente na
sétima edição, ilustra a relevância do tema, mesmo quando não se referisse à escravidão no Brasil.
ILÓTAS, s. m. pl. (t. de h. antig.) Assim chamavam em Lacedemonia aos escravos; [...] § Diz-se de um povo reduzido á escravidão, ou do proletariado lançado na miseria por leis obnoxias, só inspiradas nos preconceitos sociaes, que ainda hoje predominam nas classes dirigentes. (MORAIS, 1891)
Em diferentes oportunidades, o redator interfere na informação, de modo a demonstrar a aversão pela
instituição escravocrata, a louvar a atitude daqueles que lutaram em prol da abolição e a revelar a expectativa
de que as marcas do “infame” negócio pudessem ser extintas inclusive no vocabulário. Como se “costumes
velhos” simplesmente saíssem da memória.
Estes breves comentários esboçam a importância dada ao tema pelos editores da oitava edição do
dicionário de Antônio de Morais Silva, obra que, se não pode ser apreciada pela incorporação da variedade
linguística brasileira e de abonações com literatura brasileira, bem pode ser consultada como obra que
considerou a relevância das informações acerca de modificações sociais e administrativas no Brasil daquele
tempo. Percebe-se também que a revisão e a melhoria do dicionário consistiram na releitura de, pelo menos,
grande parte dos textos dos verbetes, o que se deduz pela regularidade com que as informações relativas a
temas contemporâneos foram alterados.
Laura do Carmo
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REFERÊNCIAS
ASSIS, Machado de. Missa do galo. In: ______. Páginas recolhidas. Relíquias de casa velha. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
CARMO, Laura do. O léxico do Brasil em dicionários de língua portuguesa do século XIX. Rio de Janeiro, 2015. Tese (Doutorado em Língua Portuguesa) – Rio de Janeiro, Instituto de Letras, Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Disponível em: <http://www.bdtd.uerj.br/tde_busca/processaPesquisa.php?pesqExecutada=1&id=6043>. Acesso em: dez. 2015.
HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002. 1 CD-ROM.
SILVA, Antonio de Moraes. Diccionario da lingua portugueza. 7. ed. Lisboa: Typ. de Joaquim Germano de Souza Neves, 1877-1878. 2 v.
______. Diccionario da lingua portugueza. 8. ed. Lisboa: Empreza Litteraria Fluminense, 1890-1891. 2 v.
______. Diccionario da lingua portugueza. 9. ed. Lisboa: Empreza Litteraria Fluminense, [189?-190?]. 2 v.
VALENTE, André Crim; CARMO, Laura do. Dados enciclopédicos e a construção da imagem brasileira em dicionários do século XIX. Revista Trama, Unioeste, n. 24, no prelo.
Data de submissão: nov./2016.
Data de aprovação: nov./2016.
IDIOMA, Rio de Janeiro, nº. 29, p. 241-243, 2º. Sem. 2015 | 241
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subtítulo, todas as letras serão minúsculas.
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• Junto ao SOBRENOME do autor, em modo sobrescrito (ou índice superior), incluir nota de rodapé,
iniciando em 1. Nessa nota de rodapé, informar a maior titulação acadêmica, os vínculos institucionais de interesse e demais detalhes que julgue necessário sobre o autor, como, por exemplo, vínculos de orientação/supervisão, vínculos com projetos de pesquisa, participação em GTs etc.
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parágrafo sem recuos ou avanços da primeira linha. A palavra RESUMO toda em maiúscula, seguida de dois-pontos <:> e do texto do RESUMO com, no mínimo, 150 e, no máximo, 250 palavras. Deve-se enviar o RESUMO em língua portuguesa.
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RESUMO).
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• Logo após esse parágrafo sem texto (na linha logo abaixo à linha vazia), iniciam-se as PALAVRAS-CHAVE,
em parágrafo sem recuos ou avanços, nem entrada da primeira linha, com a expressão PALAVRAS-CHAVE toda em maiúscula, seguida de dois-pontos <:>; e de, no mínimo, 3 (três) e, no máximo, 6 (seis).
• Após as PALAVRAS-CHAVE, tecla-se, deixando-se uma marca de parágrafo sem texto.
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ESTRANGEIRA (inglês, francês, espanhol ou italiano), em parágrafo sem recuos ou avanços da primeira linha. A palavra RESUMO, na língua estrangeira escolhida, toda em maiúscula, seguida de dois-pontos <:> e do texto do RESUMO com, no mínimo, 150 e, no máximo, 250 palavras.
• Após o RESUMO EM LÍNGUA ESTRANGEIRA, tecla-se, deixando-se uma marca de parágrafo sem texto
(linha vazia logo abaixo do RESUMO).
• Logo após esse parágrafo sem texto (na linha logo abaixo à linha vazia), iniciam-se as PALAVRAS-CHAVE,
em parágrafo sem recuos ou avanços, nem entrada da primeira linha, com a expressão PALAVRAS-CHAVE, na língua estrangeira escolhida, toda em maiúscula, seguida de dois-pontos <:>; e de, no mínimo, 3 (três) e, no máximo, 6 (seis).
• Após as PALAVRAS-CHAVE, tecla-se, deixando-se uma marca de parágrafo sem texto.
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SOBRENOME, Nome. Título. Cidade: Editora, ano.
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Veja exemplo extraído da ABNT NBR 6023 2002:
GOMES, L. G. F. F. Novela e sociedade no Brasil. Niterói: EdUFF, 1998.
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