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Marcelo Campos Hazan Ph. D. em Musicología Histórica Brasil * Introdução A raça e o seu principal corolário, o racismo, são construtos estruturados e estruturantes do desnível social entre grupos de diferentes troncos ancestrais, trajetórias históricas e origens geográficas. Construções raciais são, basicamente, o produto da significação de um ou mais caracteres fisiológicos socialmente selecionados (cor da pele, formato dos olhos, textura do cabelo), caracteres cuja diversidade é palpável porém trivial, em termos genéticos e taxonômicos, diante da vastidão e da complexidade da variação biológica humana. Concepções de identidade e diferença racial são, em outras palavras, historicamente datadas e culturalmente específicas. O estudo comparativo dessas concepções através do tempo e do espaço -sincrônica e diacronicamente, na cultura e entre culturas- constitui uma forma direta e eficaz de equivocar a certeza da raça como essência, de iluminar sua variabilidade e sua 23 E S T U D I O S RESUMO. Este trabalho examina a recepção póstuma do compositor mulato José Maurício Nunes Garcia (1767-1830) nas interseções discursivas entre raça e nação. A ênfase recai sobre a trajetória histórica percorrida pelo conceito de miscigenação: inicialmente culpada pelo atraso da civilização no país, durante o reinado de Pedro II (1841-1889), a mestiçagem foi reinventada como um emblema de brasilidade, durante o governo Vargas (1930-1945). Essa trajetória confundiu-se com outro deslocamento, de uma política nacionalista restritiva e elitista para outra inclusiva e populista. Refletindo e condicionando essas dinâmicas, construções ideológicas de conformismo cosmopolita e individualidade nacional foram articuladas através da música de José Maurício. RESUMEN. Este trabajo examina la recepción póstuma del compositor mestizo José Maurício Nunes Garcia (1767-1830) en las intersecciones discursivas entre raza y nación. El énfasis está puesto sobre la trayectoria histórica recorrida por el concepto de mestizaje: inicialmente culpada por el atraso de la civilización en el país, durante el reinado de Pedro II (1841-1889), el mestizaje fue reinventado como un emblema de brasilidad, durante el gobierno Vargas (1930-1945). Esta trayectoria se confunde con otro dislocamiento, de una política nacionalista restrictiva y elitista a otra inclusiva y populista. Reflejando y condicionando esas dinámicas, construcciones ideológicas de conformismo cosmopolita e individualidad nacional fueron articuladas a través de la música de José Mauricio. Palabras clave: José Maurício Nunes Garcia (1767-1830); raça; recepção. * Este trabajo obtuvo Mención Honrosa en el VI Premio de Musicología Samuel Claro Valdés 2008. Revisión de texto: Ana María Soto-Aguilar.

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  • Marcelo Campos HazanPh. D. em Musicologa Histrica

    Brasil

    *

    Introduo

    A raa e o seu principal corolrio, o racismo, so construtos estruturados e estruturantes do desnvelsocial entre grupos de diferentes troncos ancestrais, trajetrias histricas e origens geogrficas.Construes raciais so, basicamente, o produto da significao de um ou mais caracteres fisiolgicossocialmente selecionados (cor da pele, formato dos olhos, textura do cabelo), caracteres cuja diversidade palpvel porm trivial, em termos genticos e taxonmicos, diante da vastido e da complexidadeda variao biolgica humana. Concepes de identidade e diferena racial so, em outras palavras,historicamente datadas e culturalmente especficas. O estudo comparativo dessas concepes atravsdo tempo e do espao -sincrnica e diacronicamente, na cultura e entre culturas- constitui uma formadireta e eficaz de equivocar a certeza da raa como essncia, de iluminar sua variabilidade e sua

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    mutabilidade, de descortinar seu carter contingente e contextual. Nesse descortinar se concentra opotencial da musicologia, e especificamente de uma musicologia crtico-culturalmente informada,como instrumento concreto de mudana e transformao social. Esses pressupostos so fundamentaise permeiam tudo o que segue.

    Segundo Robert Miles (1993: 56-65), raas e naes demarcam comunidades imaginadas, para citaro conhecido conceito de Benedict Anderson (2008 [1983]). Isso ocorre em dois sentidos: primeiroporque os membros de uma comunidade imaginada no se conhecem mutuamente em sua totalidade,e segundo porque a pertena a essa comunidade est fundada em um gesto de significao focalizandocaractersticas fsicas, no caso do racismo, ou culturais, no do nacionalismo. Na prtica, quando a raa enunciada como determinante do intelecto, do comportamento e, portanto, da cultura, as duasideologias podem se confundir. Por outro lado, o nacionalismo contm em seu bojo, como traodistintivo, um anseio soberania e autodeterminao coletiva. O pressuposto aqui o de que umadada populao, apegada a uma cultura comum (lngua, religio, histria), tem o direito de formularsuas prprias leis, de estabelecer suas prprias instituies e de controlar seu prprio destino dentrode um territrio especfico. Um ponto importante, expresso nessa formulao, que o estado, umaentidade efetivamente poltico-administrativa, e a nao, uma entidade subjetivamente sociocultural,no so necessariamente correlatos. Na realidade, historicamente, a conjuno entre estado e naosempre constituiu a exceo, no a regra (Hobsbawm 1991 [1990]). Nesse sentido, e como pretendoilustrar, a msica pode constituir um espao estratgico para a negociao do status sociopoltico edos termos -inclusive raciais- em que uma populao se reconhece (ou reconhecida) como umaunidade identitria.

    Jos Maurcio Nunes Garcia (1767-1830), o foco deste trabalho, possui uma biografia riqussima, jabordada por sucessivas geraes de historiadores, tanto da msica como do ofcio. Para os presentesfins, apenas dois aspectos dessa biografia fascinante precisam ser levados em considerao. O primeiro o seu mtier: Jos Maurcio foi um importante educador, organista e regente, mas tambm umprolfico autor sacro-musical, mestre-compositor da Capela Real e Imperial dos Bragana no Rio deJaneiro. O segundo aspecto a ser mantido na mente a sua ancestralidade: Jos Maurcio era netomulato de avs que eram escravas africanas, tanto por parte paterna quanto materna (os respectivosavs no foram identificados) (Mattos 1997: 17-22). As implicaes dessa genealogia para o presentetrabalho so inmeras.

    Em termos sumrios, este artigo examina a recepo pstuma de Jos Maurcio do ponto de vista dasintersees discursivas entre raa e nao com nfase sobre duas conjunturas polticas: o SegundoReinado de Dom Pedro II (1841-1889), em seu crepsculo, e o primeiro governo de Getlio Vargas(1930-1945), em sua alvorada. As pginas que seguem focalizam a espantosa trajetria percorrida peloconceito de miscigenao no Brasil. Em poucas dcadas, a mistura entre raas, inicialmente culpadapelo suposto atraso nacional perante a Europa branca e civilizada, durante o perodo monrquico,passou a ser interpretada como uma soluo gentica para os problemas do pas, e depois reinventadacomo emblema de uma identidade nacional positiva, durante o regime getulista. Essa trajetriaentrelaou-se com outro deslocamento, de uma poltica nacionalista de carter restritivo e elitista paraoutra inclusiva e populista sensivelmente moldada lgica do capital. Como ser demonstrado, comnfase sobre as idias de seis pensadores-chave, essas dinmicas ao mesmo tempo refletiram einfluenciaram, dramaticamente, a recepo crtica de Jos Maurcio e sua msica.

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    de uma fonte de diferena no plano interno, delimitando musicalmente os estratos sociais, o gostooperstico tambm constitua uma fonte de identidade a nvel externo, superando as fronteiras queseparavam a classe dirigente da civilizao europia que lhe servia como modelo absoluto (Magaldi2004: 35-64).

    A partir do ltimo quartel do sculo XIX, entretanto, o status da pera italiana como forma musicaldominante foi ameaado decisivamente. Com efeito, foi nessa poca que a Primeira Escola Vienenseintegrou-se definitivamente vida musical do Rio de Janeiro, aps um primeiro momento de efervescnciadurante a era joanina (Magaldi 2005). Ao lado da pera italiana, o cnone austro-germnico tinhacondies de concretizar o ideal identitrio europeizante das elites brasileiras. Entretanto, enquantoas peras de Rossini e seus sucessores eram consumidas como um tipo sofisticado de entretenimento,os clssicos alemes invocavam respeitabilidade, suscitavam reverncia e disponibilizavam novosrecursos simblicos (Magaldi 2004: 65-96). Citando publicaes da poca, o cnone representava oprogresso intelectual e musical no Brasil (1870), a msica da melhor escola (1883) e a verdadeiraarte musical (1891) (apud Magaldi 2004:68, 74, 84). Como veremos, luz da recepo de JosMaurcio, esse capital foi lucrativamente investido com vista afirmao da superioridade racial ecultural das elites durante a passagem do sistema escravocrata para o assalariado e do regime monrquicopara o republicano.

    Mestiagem e inferioridadeManuel de Arajo Porto-Alegre (1806-1879)

    Idias sobre a msica, de Manuel de Arajo Porto-Alegre, nos abre uma janela inicial para oentendimento das conexes entre raa e nao e a msica de Jos Maurcio. A publicao desse artigopioneiro data de 1836, quando o autor residia em Paris. A familiaridade que exibe em relao aopensamento determinista europeu, portanto, baseia-se em uma experincia em primeira mo e noconstitui propriamente um termmetro, mas sim uma antecipao do debate pseudocientfico cujoaflorar no Brasil, reiterando, pertence sobretudo dcada de 1870.

    Particularmente pertinente a forma como Porto-Alegre, em seu trabalho, discorre sobre o tema docarter nacional e a influncia do meio ambiente (Porto-Alegre 1836: 176-177). Segundo Porto-Alegre, clima e solo controlavam o tipo fisionmico, temperamento, lngua e fala de cada nao.Essas caractersticas fsicas, psicolgicas e culturais, por sua vez, influenciavam a produo artsticadas populaes nacionais. Assim compreendidas como produtos da natureza, raa e nao ocupavamum espao ambguo dentro do pensamento do autor. A argumentao de Porto-Alegre giravaessencialmente em torno de um eixo geogrfico norte-sul, epitomizado por Alemanha e Itlia. Oalemo tardo, pensador, e de uma sensibilidade que se desenvolve no por erupes, como o habitantedos climas quentes, mas, gradativamente, produz uma matemtica musical, uma harmonia ditada peloclculo [...], afirmou (Porto-Alegre 1836: 177). Em contraste, o italiano impetuoso, entusistico esentimental, e, por conseguinte, propenso melodia. Em outro momento, partindo de um ponto devista evolucionista, Porto-Alegre ps-se a ajuizar a primitiva msica de outras sociedades. Segundoele, no estado selvagem, e de barbaria, a msica no mais do que uma assuada contnua; o cantose apresenta em forma de uivos e a orquestra [isto , os instrumentos] como um tumulto de armas;mas logo que um pequeno grau de civilizao se introduz, ela muda de carter, e isso se observa nosselvagens do Brasil (Porto-Alegre 1836: 176). A observao deixa entrever o anseio das elites em

    RESUMO. Este trabalho examina a recepo pstuma do compositor mulato Jos Maurcio NunesGarcia (1767-1830) nas intersees discursivas entre raa e nao. A nfase recai sobre a trajetriahistrica percorrida pelo conceito de miscigenao: inicialmente culpada pelo atraso da civilizaono pas, durante o reinado de Pedro II (1841-1889), a mestiagem foi reinventada como um emblemade brasilidade, durante o governo Vargas (1930-1945). Essa trajetria confundiu-se com outrodeslocamento, de uma poltica nacionalista restritiva e elitista para outra inclusiva e populista. Refletindoe condicionando essas dinmicas, construes ideolgicas de conformismo cosmopolita e individualidadenacional foram articuladas atravs da msica de Jos Maurcio.

    RESUMEN. Este trabajo examina la recepcin pstuma del compositor mestizo Jos Maurcio NunesGarcia (1767-1830) en las intersecciones discursivas entre raza y nacin. El nfasis est puesto sobrela trayectoria histrica recorrida por el concepto de mestizaje: inicialmente culpada por el atraso dela civilizacin en el pas, durante el reinado de Pedro II (1841-1889), el mestizaje fue reinventadocomo un emblema de brasilidad, durante el gobierno Vargas (1930-1945). Esta trayectoria se confundecon otro dislocamiento, de una poltica nacionalista restrictiva y elitista a otra inclusiva y populista.Reflejando y condicionando esas dinmicas, construcciones ideolgicas de conformismo cosmopolitae individualidad nacional fueron articuladas a travs de la msica de Jos Mauricio.

    Palabras clave: Jos Maurcio Nunes Garcia (1767-1830); raa; recepo.

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    avanar na civilizao do pas, recm-independente, que esboava os primeiros passos em busca deum prestgio junto aos centros europeus. Para Porto-Alegre, a conquista desse prestgio passava peladivulgao internacional de Jos Maurcio. No por acaso, Idias concludo com a seguinte profeciaou desiderato: por ti correndo o mundo e girando na sociedade, tuas obras te aviventam de dia emdia, at que a Europa te oua, e o mundo te aplauda (Porto-Alegre 1836: 183).

    No seria essa a nica oportunidade em que a msica daria asas imaginao racial de Porto-Alegre.Publicado em 1856, Apontamentos sobre a vida e obras do Padre Jos Maurcio Nunes Garciaredimensiona um detalhe importante do artigo anterior. Em Idias, Porto-Alegre havia feito umareferncia individualidade do compositor -ao carter peculiar de sua msica perante as escolasalem e italiana-, porm no sem exaltar Jos Maurcio en passant como o fluminense Mozart (Porto-Alegre 1836: 182). Em Apontamentos essa semente germina, desabrochando em um comentrio noqual o compositor brasileiro explicitamente articulado msica, racionalidade e ao clima alemo(Porto-Alegre 1856: 365):

    [...] [O] seu entusiasmo para com Mozart, Haydn e Beethoven era justssimo, porquenesta trade estava toda a glria da arte germnica, e aquela escola severa que plantounos speros climas do norte uma arte cientfica, bela e proprietria de infinitos primores.

    A condio mestia de Jos Maurcio no deixou de ser objeto da ateno de Porto-Alegre. Pelocontrrio, Apontamentos descreve essa condio com um esmero que d uma medida do grau emque o fator racial informava a viso de mundo, pr-determinava os destinos e condicionava a ao ea reao quotidiana dos atores sociais oitocentistas. Segundo Porto-Alegre (1856: 368-369), asdimenses e salincia sseas do seu todo, mostravam que [Jos Maurcio] havia sido de uma forteconstituio. Tinha nos lbios, na forma do nariz e na salincia dos pmulos os caracteres da raamista. Mas a fantasia racial de Porto-Alegre vai mais alm. A descrio prossegue com o comentriotranscrito a seguir, que pode muito bem constituir o trao mais bizarro de toda a historiografia mauriciana(Porto-Alegre 1856: 369):

    O Dr. Danessy, frenologista e discpulo fantico de [Franz-Joseph] Gall, possui umacpia da mscara [morturia de Jos Maurcio] [...] no seu gabinete em Paris, mas nassuas indagaes enganou-se redondamente, o que bem prova a respeito do crebro esuas protuberncias externas, que as mais das vezes o miolo que decide [a raa] e noa casca. Estes enganos do mesmo doutor se repetiram em outras vezes na legaobrasileira, depois de haver apalpado grande nmero de cabeas brasileiras.

    A referida mscara preserva em gesso as feies de Jos Maurcio e foi extrada pelo prprio Porto-Alegre por ocasio do falecimento do compositor (figura 1). Antes de carem em desuso no decorrerdo sculo XX, mscaras fnebres eram primariamente objetos de memria ou venerao, mas tambmpossuam uma utilidade pragmtica no pitoresco domnio da frenologia. o caso da mscara de JosMaurcio, base para o argumento craniolgico de Porto-Alegre que apontava a pertena do compositor raa mista. Observe-se, todavia, que esse enquadramento no foi acompanhado de maiorescomentrios por parte de Porto-Alegre, quem se absteve de avaliar suas implicaes morais, emocionaise intelectuais. Ou seja, Apontamentos deixa irrespondida a indagao: de que forma a ancestralidade

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    Entre as raas europias, entretanto, o favoritismo de Taunay para com os alemes era notrio, aponto de lhe valer acusaes, por parte de seus adversrios polticos, de estar pretendendo germanizare bismarquizar o Brasil (Annaes do Senado 1888: v. 5, p. 91; apud Hall 1976: 151). Taunay justificavasua preferncia com base no temperamento diferenciado desse grupo. Se o imigrante italiano era maisbulioso, mais dado exaltao e aos influxos dominantes nos povos de procedncia e da raa latina,o carter do alemo, mais ponderado e sereno, era propcio estabilidade da Monarquia. Por isso,entre outros motivos, era de imensa vantagem sua incluso no seio da nossa nacionalidade (Annaesdo Senado 1888: v. 5, p. 56). V-se que, na opinio Taunay, a imigrao seletiva transcendia os dilemasda agricultura e alentava um ideal identitrio situado no plano da formao da nao.

    Msica e raa guardavam uma relao metafrica na imaginao germanfila do Visconde de Taunay.O espectro racial assentado na primazia alem, que extravasava por todos os poros de sua quimeraimigrantista, extrapolava para o domnio da msica e informava suas concepes de identidade ediferena musical. Segundo Taunay, durante o sculo XIX o mundo civilizado havia servido de palcopara uma batalha entre duas tradies musicais hegemnicas, com um eventual vencedor. Em suasprprias palavras, existia a [escola] italiana toda ela meldica e flcida [...] que dominava senhoraabsoluta de quase todos os pases cultos; [e] a alem, firmada na harmonia e na severidade cientfica,disputando-lhe a supremacia e preeminncia, que afinal conseguiu, por ter do seu lado a verdade e alegtima elevao intelectual e esttica (Taunay 1930 [s.d.]: 89). A articulao desses sistemas dediferena, a flacidez emotiva da melodia italiana e a sobriedade intelectual da harmonia alem, atravessacom fora os seus trabalhos sobre msica. Os reflexos no Brasil do universalismo cultural germnico-o projeto da construo de um cnone musical que acompanhou a unificao poltica das terras alemsao final do sculo XIX- no poderiam ser mais bvios.

    A vitoriosa escola alem, cultuada por Taunay, tinha em Jos Maurcio o seu ilustre representantebrasileiro. Em seus artigos, Taunay exprime obsessivamente essa convico, retratando Jos Maurcio

    como discpulo dos clssicos germnicos. No por coincidncia, a consolidao do cnone no Riode Janeiro coincidiu com uma mobilizao em prol do levantamento, estudo, publicao, execuo epreservao da produo do compositor brasileiro. O ambiente germanfilo em que foi promovidaessa campanha j foi descrito por diversos musiclogos (Goldberg 2006; Magaldi 2005; Pereira 1995;Vermes 2000), porm no do ngulo formado pelo entrecruzar ideolgico entre msica e raa. Essalacuna essencial e nos obriga a retroceder ao dilema com o qual nos deparamos ao largar Manuelde Arajo Porto-Alegre. primeira vista, a exaltao de Jos Maurcio como clssico alemo parececontradizer o preceito da inferioridade mestia. Em outras palavras, parece apontar o compositorbrasileiro como prova de que aos indivduos de pele escura estava franqueada a arte de Haydn e Mozart.No preciso muito esforo, todavia, para desfazer essa impresso. Citando novamente Taunay(1930[s.d.]: 57; nfase minha):

    Incontestvel e muitas vezes comprovada a vocao peculiar aos homens de corpreta e principalmente mestios para as artes liberais. H, entretanto, exagerao e nopequena no que geralmente se assevera e importante ressalva a fazer-se - aprendemcom efeito depressa, suscitam grande esperana aos professores, parecem dever percorrerbrilhante e rpida carreira, mas, chegados a certo ponto, param, estacam e retrogradamde modo sensvel, de maneira que existncias que prometiam cintilantes fulgores seatufam, as mais das vezes, na obscuridade e no esquecimento.

    Raros, rarssimos preenchem, como Jos Maurcio, os destinos que se afiguravamseguros aos admiradores das primeiras manifestaes artsticas.

    V-se que Jos Maurcio no a refutao da disparidade entre as raas, mas to somente a exceoque confirma a regra. Seria intil alegar que a vocao peculiar atribuda ao grande nmero de afro-descendentes que se dedicava s artes no era uma realidade natural, mas sim o reflexo de uma sobre-representao ocupacional, da existncia de um nicho de sobrevivncia dentro de uma sociedade (entocomo hoje) notoriamente imobilista. Seria igualmente vo levantar a suspeita de que a no-concretizaodas promessas artsticas negras e mestias de que se lamentava Taunay no decorria de fatoreshereditrios, mas sim de diferenas de oportunidade e de formas de tratamento reservadas s ralsracialmente definidas. Tal argumentao seria fora de propsito porque, como explica o prprioVisconde, a evidncia etnolgica demonstrava irrefutavelmente o desempenho superior dos brancosnos processos de aprendizagem e formao (Taunay 1930[s.d.]: 57):

    J foi, alis, confirmada pelos estudos de etnologia comparada a observao queacabamos de fazer. Com rarssimas excees, a educao simultnea e em tudo idnticade duas crianas inteligentes, vivas, bem dispostas fsica e moralmente, uma, porm,branca, outra preta ou mestia demonstra, a princpio, maior rapidez de progresso porparte desta, depois certa parada nos tempos da puberdade, e passada esta muito maioradiantamento da outra, que afinal se distancia longe e definitivamente.

    Nessa exposio de Taunay, a raa causalmente atrelada ao comportamento, aptido, desempenhoescolar e propenso dos indivduos a seguir determinadas ocupaes. Essa lgica determinista,contudo, desdiz-se perante o exemplo especfico de Jos Maurcio que, conseqentemente, precisa serracionalizado e absolvido como exceo. A glosa desimpede Jos Maurcio com vista legitimao

    africana de Jos Maurcio compatibiliza-se com suas qualidades pessoais e capacidades artsticas? Nofoi essa a nica ocasio em que Porto-Alegre fez questo de documentar a ascendncia africana deum personagem da histria das artes no Brasil (Squeff 2004: 141-146). Contudo, uma articulaoexplcita entre a raa e o legado artstico de afro-descendentes como Jos Maurcio est ausente deseus estudos histricos sobre msica, pintura e literatura. Diferente, todavia, o caso de outro historiadormauriciano.

    Alfredo dEscragnolle Taunay (1843-1899)

    Alfredo dEscragnolle Taunay, Visconde de Taunay, foi um intelectual profundamente enredado nosdilemas ideolgicos do final do sculo XIX. De certa forma, Taunay personifica ao mesmo tempo opassado e o futuro da nao, na medida em que defendia o fim gradual da escravido enquanto apoiava,ferrenhamente, a continuidade da Monarquia. Nos diversos domnios do saber e da poltica em queatuou, incluindo a crtica musical, o Visconde de Taunay embalou um projeto que visava, em poucaspalavras, transformar o Brasil numa grande nao pela colaborao das grandes foras da Europa eda civilizao (Annaes do Senado 1888: v. 5, p. 56). Para compreender esse projeto europeizante, esuas mltiplas implicaes musicais e raciais, convm investig-lo inicialmente luz do papel deTaunay como vice-presidente de uma importante instituio de elite, a Sociedade Central de Imigrao.

    Fundada em 1883, a Sociedade Central de Imigrao exerceu um impacto ressonante porm efmerosobre a poltica nacional, encerrando suas atividades em 1891. Seus integrantes possuam um interessecomum na eliminao da grande propriedade e do cativeiro por meio do estmulo imigrao europia.Segundo eles, o caminho para a divers ificao e a modernizao da agricultura bras ileira era um re-povoamento seletivo, cabendo, para esse fim, atrair ao Brasil a melhor parcela da humanidade branca.O elemento racial nesse projeto era nevrlgico e a retrica atravs da qual foi expresso veemente. Naperspectiva imigratria de Taunay no havia lugar para chineses, cuja raa toda fraca, imbele, oupara imigrantes vagabundos e mendigos chamados turcos ou rabes (Annaes do Senado 1888: v. 5,p. 51; 1887: v. 1, p. 143; apud Hall 1976: 160). O que era necessrio, isto sim, era atrair representantesdo melhor que nos possam dar as raas europias, incluindo italianos, belgas, portugueses e alemes(Annaes do Senado 1888: v. 5, p. 56). A charge reproduzida na figura 2 o retrato preciso das ansiedadessubjacentes s idias de Taunay.

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    convidado por Rio Branco para representar o pas no III Congresso da Sociedade Internacional deMsica a ser realizado em Viena, homenageando o centenrio do falecimento de Joseph Haydn. Em28 de maio, Oliveira Lima marcou sua presena com um trabalho intitulado La musique au Brsil.Au point de vue historique (Lima 1909). Esse trabalho exemplar da imaginao racial de sua pocaem diversos sentidos.

    La musique pode ser dividida em duas partes. A primeira examina um espao histrico fora dombito erudito, um espao reservado interao entre msica, raa, clima e identidade nacional. Essainterao descrita nos seguintes termos (Lima 1909):

    Como toda e qualquer msica, possui a brasileira suas razes, que so as melodiaspopulares, e conta tambm, como a maior parte das msicas, seu desenvolvimentoharmnico especial e at original. Eram aquelas melodias populares o naturalacompanhamento das cantigas portuguesas transplantadas alm-mar no sculo XVI.Sobre elas se tinham vindo enxertar as balbuciantes cantilenas indgenas e os sperose montonos motivos da terra africana, acabando por emprestar-lhes uma feio musicalprpria que, ajudada por um clima tpido e regular e sob a ao afetiva da mistura fsicae moral das raas em presena, tomou um carter de langor e voluptuosidade [...].

    O encanto das melodias brasileiras, resultantes dessa fuso, opera vigorosamente sobrequantos as ouvem. [...]

    As modinhas e os lundus, estes mais africanos e lascivos, aquelas mais locais esentimentais, cujo texto denuncia o amor ardente e cuja cadncia desafia a dana fogosa[...], contam-se annimas, seno espontneas, e outras de autor conhecido, sem por issoterem um atrativo menos picante.

    La musique atribua ao pas uma feio musical prpria, resultante da influncia do meio fsicoe do contato tnico e racial entre africanos, amerndios e portugueses. Encenava, no mbito da msica,a noo identitria de que o Brasil era uma nao especial em funo de seu clima e da miscigenaode sua populao. Por um lado, o retrato musical traado por Oliveira Lima revestia-se de certapositividade. ilustre platia vienense era apresentado um carto de visitas pitoresco e acolhedor,onde as melodias brasileiras eram descritas como o feliz produto da incorporao das raas inferiores europia. La musique, contudo, trazia uma contradio. luz das doutrinas raciais e geogrficasque circulavam na poca, as canes do Brasil exprimiam uma sensualidade que era sintomtica deuma degradao. Como disse Gobineau (1983 [1853]; apud Schwarcz 1995), os brasileiros s tmem particular uma excessiva depravao. So todos mulatos, a ral do gnero humano, com costumescondizentes. Modinhas e lundus demonstravam o langor e a voluptuosidade que advinham daao do clima tropical e da mistura entre as raas. Tinham condies, portanto, de significar musicalmentea identidade miscigenada da nao, porm essa era uma identidade a ser lamentada e remediada, nocelebrada e afirmada. A implementao de um novo modelo de mestiagem, o branqueamento daaparncia e dos costumes do povo brasileiro atravs da imigrao europia, afigurava-se como soluopara esse dilema.

    Em um segundo momento, La musique abandona esse quadro extico e passa a abordar a msicaque respondia a um gosto esclarecido, pois que provm do estudo (Lima 1909). Nessa abordagem,

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    Jos Maurcio destacado e exaltado por sua afinidade com os clssicos (porm sem referncia suacondio racial). Apoiando-se nos trabalhos do Visconde de Taunay, Oliveira Lima (1909) afirma quea msica sacra de Jos Maurcio procedente dos grandes mestres alemes e que o compositorconstitui o representante por excelncia entre ns [os brasileiros] da msica clssica. No apenaso passado histrico, mas tambm o presente musical brasileiro retratado com fortes coloraesgermanfilas. Segundo Oliveira Lima (1909), a influncia de Wagner projetou-se de modo significativono Brasil, ainda que temperada pelas fortes tradies italianas e pelo fundamento nacional. Nossoscompositores modernos voltam-se [...], como todos os outros, para Bayreuth, considerando-a a MecaMusical, afirmou.

    La musique foi ilustrada com a execuo piano-vocal de peas de Jos Maurcio e de outroscompositores considerados representativos da tradio erudita euro-brasileira. O centenrio de Haydnem Viena talvez seja o pice da recepo de Jos Maurcio do ponto de vista do seu pertencimentosimblico escola alem. importante reiterar as circunstncias polticas e ideolgicas em que ocorreua palestra de Oliveira Lima. O branqueamento atravs da imigrao era o objetivo precpuo da campanhapropagandstica qual pertencia La musique au Brsil. da pena de Oliveira Lima (1899:52-53;apud Skidmore 1989 [1974]:88-89) a predio de que a imigrao . Temos aqui uma formulao sucinta do ideal branqueador,o sonho racial das elites brasileiras, que era metaforicamente traduzido em som pela msica dosclssicos alemes.

    Mestiagem e brasilidade

    Mrio de Andrade (1893-1945)Gilberto Freyre (1900-1987)Cleofe Person de Mattos (1913-2002)

    Recapitulando, sinteticamente. Na opinio do Visconde de Taunay, negros e mestios possuam umacapacidade inferior de aprendizado. Na de Manuel de Oliveira Lima, deficincias raciais podiam sererradicadas, em longo prazo, atravs da afluncia do sangue anglo-saxo. Essas perspectivas determinaramcomo Jos Maurcio foi representado nos trabalhos de Taunay (como exceo inferioridade no-branca) e como foi apropriado na palestra de Oliveira Lima (em prol do branqueamento). O que segue uma apreciao de como a vocao germnica de Jos Maurcio foi reconsiderada dentro do prximocaptulo do pensamento scio-histrico-antropolgico no pas. Esse captulo, marcado pela valorizaodos processos de miscigenao (sem branqueamento) e a superao radical do complexo de inferioridadeidentitrio dos brasileiros, ser desenredado a partir de duas vertentes intelectuais, luso-tropicalismoe nacional-modernismo, inseparavelmente ligadas, respectivamente, aos nomes de Gilberto Freyre eMrio de Andrade.

    Para Gilberto Freyre, o estmulo mestiagem havia sido o maior mrito da colonizao portuguesa(Vianna 2005 [1995]: 87-88). Isso porque a miscigenao havia demonstrado ser propcia interaoe ao equilbrio, o que era crucial em um universo fsica, poltica e socioeconomicamente complexo ediversificado como o tropical. Nesse universo, retratado seminalmente em Casa-grande & senzala,a convivncia entre raas, sexos, classes e etnias se manifestava musicalmente atravs da modinha.

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    Era nessa cano que, nas palavras de Freyre, se sente [...] o visgo de promiscuidade nas relaesde sinhs-moos das casas-grandes com mulatinhas das senzalas. Segundo ele, as modinhas estavamimpregnadas do erotismo das casas-grandes e das senzalas; do erotismo dos iois nos seus derreiospelas mulatinhas de cangote cheiroso ou pelas priminhas brancas (Freyre 2004 [1933]: 424). Emboraesse e outros temas teorizados por Gilberto Freyre j viessem se desenhando no horizonte intelectualbrasileiro antes de Casa-grande & senzala, foi essa monografia o grande divisor de guas no que tange afirmao de uma nova noo de mestiagem. Se ao final do sculo XIX Oliveira Lima (1899:52-53; apud Skidmore 1989 [1974]: 88-89) falava em desmantelar a extrema mestiagem estabelecidapelo portugus, criticando o relativo atraso mental e o enervamento da raa colonizadora, trsdcadas depois Gilberto Freyre enaltecia a miscigenao -muito especialmente o cruzamento entre acordialidade do homem portugus e a sensualidade da mulher africana- como evidncia da superioridadedo luso-tropicalismo perante outros padres de civilizao. Impressiona a longevidade dessa ideologia,cujos reflexos se fazem sentir, hoje, atravs do mito da democracia racial (Guimares 2002: 137-168). A percepo freyreana de uma docilidade inerente colonizao portuguesa desaguou na noo,ainda corrente, de que a sociedade brasileira essencialmente impermevel ao racismo. Para muitosbrasileiros, o preconceito incapaz de penetrar no mago de uma coletividade cuja harmonia traduzidapela metfora da miscigenao. Essa uma ramificao importante e retornarei a ela ao final destetrabalho.

    As formulaes de Gilberto Freyre encontraram um ambiente favorvel durante a dcada de 1930. Opoder poltico e econmico, que, durante a Primeira Repblica (1889-1930), pertencia s oligarquiascafeeiras dos estados de Minas Gerais e So Paulo, sofreu uma transformao expressiva quandoGetlio Vargas, do Rio Grande do Sul, assumiu o governo em 1930, apoiado pelas faces burguesasno vinculadas ao caf, as classes mdias e o setor militar tenentista (Fausto 1975: 246; apud: Vianna2004 [1995]:60). Em resposta s agitaes reivindicatrias que pontuaram as dcadas de 1910 esobretudo de 1920, promovidas pelas camadas proletrias cada vez mais mobilizadas em torno deassociaes sindicais e partidrias, o governo Vargas embarcou em um projeto centralizador, paternalistae corporativista expressamente dirigido para a subordinao dos interesses individuais, classistas eregionais ao interesse coletivo e unidade nacional - dois notrios clichs getulistas. O picedesse autoritarismo ocorreu durante o regime de exceo denominado Estado Novo (1937-1945),marcado pela supresso dos direitos polticos e individuais e a censura aos meios de comunicao.

    Vimos como, relembrando Taunay, a seletividade racial determinava os elementos que devem formara grande nacionalidade brasileira, na passagem da Monarquia para a Repblica. Tal perspectiva foidrasticamente re-configurada durante a Era Vargas (Guimares 2002: 137-168; Turino 2003:186-192).A superao do poder oligrquico (e do controle do capital estrangeiro) exigia a expanso da indstriadomstica e a ampliao da base popular de sustentao do regime. Capitalismo e populismo, assim,imbricavam-se. O processo de industrializao pressupunha um aumento da oferta de mo-de-obra,assim como uma expanso do mercado consumidor interno. Ao invs da imposio de mecanismosideolgicos de excluso, a formao de cidados trabalhadores e consumidores demandava, alm deuma elevao do bem-estar material, uma representao simblica sensvel experincia dos segmentosafro-brasileiros da populao. A inveno da mestiagem como emblema de uma nacionalidade positivarespondia a essa dinmica medida que engendrava um sentimento generalizado de pertena e incluso.A percepo de um equilbrio permitia com que todos pudessem se identificar como brasileiros, paraalm de distines de raa e de classe, dissimulando a continuidade de uma poltica imigratriabranqueadora por parte das autoridades getulistas.

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    Durante o governo Vargas codificado um novo sistema simblico para a nao (Schwarcz 2001: 29-30). Feijoada, capoeira, samba e candombl so significados como traos culturais mestios. Enaltecendoa tolerncia da sociedade brasileira, o Dia da Raa acrescido ao calendrio cvico. Nesse mesmoperodo o Brasil ganha a sua padroeira, Nossa Senhora da Conceio Aparecida, uma santa mestia.A msica sacra de Jos Maurcio pode no ser um elemento bvio dentro desse imaginrio, porm aele efetivamente pertence. A demonstrao dessa pertena, contudo, dado o espao surpreendentementepequeno que coube msica no pensamento freyreano, requer um aceno obra musicolgica de Mriode Andrade e seus sucessores nacionalistas. A histria da msica brasileira tinha o seu grande mestre,um mestre mulato, como era o Brasil. Aos musiclogos cabia casar a arte de Jos Maurcio com a corde sua pele, isto , demonstrar que sua msica era genuinamente mulata e brasileira, no branca egermnica.

    O modernismo brasileira emergiu, na dcada de 1910, como um movimento de atualizao, visandoabsorver as inovaes das vanguardas europias, para depois transformar-se, na dcada seguinte, emuma reao ao estrangeirismo dos modelos culturais europeus. Para Mrio de Andrade (1982: 15,4; apud: Quintero-Rivera 2000: 36-37), dar uma alma ao Brasil significava, em termos musicais,realizar um acorde nacional que pudesse participar legitimamente da harmonia da civilizao,como ele mesmo exprimiu. A concretizao desse desiderato repousava essencialmente sobre ocompositor profissional. A esse agente competia desempenhar uma mediao pautada na assimilaoe aplicao dos recursos expressivos do folclore campesino. Segundo Mrio de Andrade, o folclorerural no apenas revestia-se de uma riqueza tcnica e temtica modelar, mas tambm de uma qualidadeautctone que o credenciava como pedra de toque de toda a criao musical erudita. Nacionaliza[r]a nossa produo pela regra eterna de transpor eruditamente a obra annima do povo (Andrade 1963[1934]:354) -assim deveria ser musicalmente plasmada a quintessncia da nao.

    Apesar da primazia que coube ao folclore rural na definio de um estilo musical imagem da nao,em contraposio msica comercial que invadia o quotidiano da intelectualidade citadina, existiamsupostas brechas de autenticidade em certos gneros urbanos, como o choro e a modinha, que Mriode Andrade encorajava explorar (Wisnik 1982:131-135). Essa ressalva importante, porquanto foijustamente atravs da modinha que foi construda a conexo entre Jos Maurcio e a brasilidade.Citando novamente Mrio de Andrade (1964 [1930]: 8):

    [...] [] lamentvel a gente perceber o grau de desnacionalizao em que caram oscompositores eruditos em geral, do Segundo Imprio [sic, Reinado] em diante, esquecidosque Jos Maurcio no perdia vaga nos adgios e solos das suas missas pra lhes imprimiracento modinheiro.

    O comentrio no apenas destaca o exemplo de nacionalidade dado por Jos Maurcio, mas expe adependncia cultural brasileira em termos de uma inrcia por parte daqueles compositores quedesdenhavam esse exemplo. Sob a inspirao de Mrio de Andrade, outros estudiosos brasileirospuseram-se a enraizar suas aspiraes no passado mauriciano. o caso de Luiz Heitor Corra deAzevedo (1930: 76), que se debruou sobre a produo de Jos Maurcio em busca dos traos deparentescos que caracterizam a inconfundvel personalidade artstica do autor. Esses traos deparentescos, isto , os traos de brasilidade ligando Jos Maurcio aos compositores contemporneosde Corra de Azevedo, consistiam de vestgios da modinha. No h [...] um compromisso entre a arte

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    brejeira do mulato fluminense e a serena elevao da msica sacra?, indagou retoricamente (Azevedo1930: 76). Nem todos os estudiosos, contudo, aliaram-se corrente andradeana. No dizer de RossiniTavares de Lima (1941: 85): Querem alguns espritos, pouco observadores, encontrar na msica dopadre [Jos Maurcio], os primeiros germes do nativismo; mas, infelizmente, somos obrigados adiscordar. A sua msica alem e principalmente mozartiana e haydneniana. Esse comentrio evidenciacom excepcional nitidez a participao de Jos Maurcio na negociao de uma relao nem sempreamistosa entre duas estticas centrais cultura musical erudita no Brasil.

    bem verdade que, em um artigo publicado um ano antes de seu falecimento, Mrio de Andrade(1944; in Coli 1998: 142-146) reconsiderou a posio em que havia situado Jos Maurcio dentro doquadro do nacionalismo musical brasileiro. Nesse artigo, Mrio de Andrade esclarece que osbrasileirismos que pontuavam a msica desse compositor eram meramente fortuitos, acidentais -como sem querer (Coli 1998: 359-360). A produo mauriciana estava social, esttica e ideologicamentecomprometida com os interesses da colonizao portuguesa, entendida no como um sistema simbitico, maneira de Gilberto Freyre, mas como uma estrutura de dominao. Pressupondo (erroneamente)um compositor perfeitamente entrosado sociedade da poca, florescendo sob as benesses dos monarcasbragantinos, Mrio de Andrade viu em Jos Maurcio a negao da arte como misso social, um dospilares do pensamento desse musiclogo. Assim, ao procurar nesse compositor uma mulataria ainsurgir-se contra o poder colonial, Mrio de Andrade nada encontrou alm de conformismo e submisso(1944; in Coli 1998: 144-145):

    Para ns, ele foi sobretudo um colonial [colonizado]. Nisto, embora mulato da maiormulataria, escuro e pixaim, ele nada representa, ou pouco, o valor negro forro dasnossas idiossincrasias raciais. Busco em vo por onde se o possa dizer uma formaqualquer de luta, um prurido mesmo longe de revolucionaridade [sic] ativa, ou ummarginal. [...] Jos Maurcio foi um mulato sem os problemas da mulataria. Nemexternos, nem internos. E a msica dele tambm.

    Essa crtica derradeira, contudo, no impediu com que os estudiosos continuassem a buscar na produomauriciana os elementos para a construo de uma patrilinhagem nacional-modernista. o caso deBruno Kiefer (1977: 58), segundo quem uma audio mais refinada [da obra de Jos Maurcio] [...]poder descobrir, aqui e acol, sombras do clima modinheiro, quase um prenncio da aurora dosentimento nativo na msica brasileira erudita. No quadro dessa legitimao, a obra de Cleofe Personde Mattos constitui um exemplo notvel. Mattos autora dos dois principais trabalhos musicolgicossobre o compositor, o catlogo temtico de 1970 e a biografia de 1997. Ambas as contribuies aludem presena da modinha nas composies religiosas de Jos Maurcio. o caso da melodia transcritano exemplo 1, que, segundo Mattos (1997: 48), constitui uma transposio espiritualizada dessaforma vocal. Do ponto de vista da musicologia tradicional, o comentrio de Mattos suscitariaimediatamente a indagao: teria Jos Maurcio realmente se deixado levar pelo sabor popular damodinha ao compor esse solo religioso? Um quadro de referncia crtico-cultural, contudo, nos posicionadiante de um tipo diferente de pergunta: o que essa alegao tem a nos dizer, em termos ideolgicos,sobre a participao de Jos Maurcio e da modinha na construo de uma brasilidade musicalmentedelineada? luz dessa indagao, o legado musicolgico de Cleofe Person de Mattos se nos afiguraparticularmente instigante.

    No referido catlogo, Mattos (1970: 323) havia caracterizado a vocao modinheira inventada ou* Este trabajo obtuvo Mencin Honrosa en el VI Premio de Musicologa Samuel Claro Valds 2008. Revisin de texto: Ana MaraSoto-Aguilar.

    Raa e escravido

    Os portugueses desembarcaram no Brasil em 1500 e quase de imediato puseram-se a escravizar apopulao amerndia. Com a gradual aniquilao dessa populao atravs de doenas, confrontos emaus-tratos, os colonizadores voltaram-se frica para o suprimento de mo-de-obra. A primeirametade do sculo XIX no apenas testemunhou a transferncia da corte portuguesa de Dom Joo VI(1808), a declarao da Independncia e as coroaes de Dom Pedro I (1822) e de Dom Pedro II(1841), mas tambm o pice do trfico de africanos; estima-se que um milho e meio de escravostenham sido deslocados nesse perodo. O Brasil foi o ltimo pas do hemisfrio ocidental a extinguira escravatura, em 1888. A abolio, decretada sem que fossem indenizados os grandes proprietriosrurais, incompatibilizou-os irreversivelmente com o governo imperial. Essa incompatibilidade foi umdos fatores responsveis pela queda do regime monrquico e a proclamao da Repblica, em 1889.

    Foi sobretudo a partir da dcada de 1870, com a iminncia do trmino da escravido, que o tema daraa foi incorporado pauta das instituies brasileiras de pesquisa e ensino (Schwarcz 2001: 42-43).Ao afirmarem a realidade das raas, as faculdades, museus e institutos do pas contriburam para aperpetuao da hierarquia racial de poder para alm da abolio: concedia-se a liberdade aos ex-escravos com uma mo enquanto, sob a justificativa da cincia, obstava-se o seu avano com a outra.Com efeito, a nova ordem no implicou na integrao social do contingente recm-liberto. Carentesde formao profissional e escolar, de terras e capital, os ex-escravos que no enfrentaram o desempregoabraaram ocupaes de baixa remunerao ou ocuparam brechas no setor informal da economia.

    A racializao da transio do trabalho compulsrio para o livre centrou-se, em grande medida, sobreo grau e o carter da miscigenao do povo brasileiro. Trata-se de uma populao totalmente mulata,viciada no sangue e no esprito e totalmente feia (Raeders 1988 [1976]:96; apud Schwarcz 1993:13,2001:25), afirmou Arthur de Gobineau. Outros estrangeiros externaram sua ojeriza para com essapopulao, alimentando uma imagem identitria notoriamente negativa, dentro e fora do pas. Se,como tambm alegava Gobineau, indivduos inferiores significavam naes inferiores, a miscigenaoextremada de sua populao prenunciava ao Brasil um futuro no pouco sombrio. O problema da raa,e particularmente da mestiagem, foi objeto de um debate que mobilizou os mais diversos setores daintelligentsia local, no surpreendendo, portanto, que a condio mulata de um compositor da estaturade Jos Maurcio tenha sido objeto de consideraes. E diante do deslocamento das matrizes em querepousava esse debate, durante a chamada Era Vargas, tambm no de admirar que as formas depensar Jos Maurcio e sua msica tenham sofrido, concomitantemente, uma expressiva reorientao.

    Msica e sociedade

    O sistema escravocrata imprimiu sociedade oitocentista uma estrutura essencialmente tripartida. Emtermos ultra-esquemticos, a classe senhorial e a escrava ocupavam os extremos do espectro social,emoldurando uma camada intermediria predominantemente composta por filhos de escravos nascidoslivres e por libertos. A pertena classe proprietria pressupunha, alm do elemento racial, o partilharde um conjunto de valores, estilos e comportamentos moldados concepo europia de progresso ecivilizao. dentro desse quadro que, durante a maior parte do sculo XIX, as peras francesas eitalianas, mas sobretudo essas ltimas, foram consumidas obsessivamente pelas elites que, assim, sediferenciavam culturalmente das rals livre e escrava que formavam a maioria da populao. Alm

    da grande msica alem, a msica que tornava audvel o anseio das elites por uma nao branca, livredas raas inferiores que obstavam seu florescer.

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    enfatizada do compositor da seguinte maneira: sabe-se que Jos Maurcio ensinava msica com umaviola de arame. E que cantava, acompanhando-se nesse instrumento, xcaras e modinhas. Na biografia,contudo, o assunto no foi apenas revisitado, mas reafirmado com um sentido mais explcito (Mattos1997: 53):

    A modinha, feita de elementos comuns msica europia - o texto, a melodia chegadaa padres conhecidos, nascida e desenvolvida sob o signo de um cruzamento de raas- tinha qualidades para ocupar, culturalmente, o espao que lhe cabia nessa miscigenao.E crescer com ela. So cantos seresteiros que traem na obra de Jos Maurcio o cantadorde modinhas e xcaras, e revelam o msico que traz um vulco dentro de si e se rendea este gnero meio popular, meio erudito, fazendo-o aflorar em vrias composiesreligiosas. Os ecos deste gnero na msica de Jos Maurcio podem ser vistos com [sic,como] as primeiras manifestaes do nosso nacionalismo musical.

    A citao exalta a modinha como produto da mistura das raas e costumes, das culturas local eestrangeira, das tradies popular e erudita, destacando Jos Maurcio no apenas por seus dotesmodinheiros em si, mas por sua habilidade em canaliz-los para o objetivo maior da composio sacro-musical. No falta a Cleofe Person de Mattos, portanto, subsdios para poder proclamar Jos Maurciocomo o fundador da escola de composio nacional-modernista - pilar da linhagem mestra formadapor Lorenzo Fernandes, Camargo Guarnieri, Francisco Mignone e -muito especialmente- Heitor Villa-Lobos. A importncia dessa paternidade no pode ser subestimada. Na intuio modinheira do padre-compositor, celebrada por Mrio de Andrade, Luiz Heitor Corra de Azevedo, Bruno Kiefer e CleofePerson de Mattos, o modernismo musical nacionalista descobriu as suas razes e a memria de JosMaurcio encontrou uma de suas mais fortes razes de ser. Jos Maurcio corporifica, assim, a idiade brasilidade inerente ao projeto andradeano, um projeto que continua a condicionar os termos emque a msica criada, executada e estudada no pas com mnimos sinais de desgaste.

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    Consideraes finais

    O presente trabalho ilustrativo de como o fazer e o pensar musical constituem mananciais simblicosconducentes configurao e re-configurao de identidades raciais e nacionais. Durante o final daMonarquia e o incio da Repblica, o cnone alemo personificou uma conformidade cultural cosmopolitaconsistente com a excluso das rals negra e mestia do ideal de nao. Durante a Era Vargas, contudo,o encurralamento das camadas racialmente subalternizadas necessitou ser reconsiderado luz daconjuno entre interesses populistas e capitalistas (Turino 2003: 186-192). A modinha, valorada comomsica mestia e matria-prima para a composio erudita, encarnou uma individualidade culturalnacional consistente com o relaxamento dos limites raciais da nao, com vista cooptao da populaoafro-descendente. A transformao da mestiagem de causa dos males do pas em fonte de orgulhonacional, passando por soluo branqueadora, demarcou o percurso pelo qual se enveredou a recepodo compositor mulato Jos Maurcio Nunes Garcia. Suas encarnaes sociais evidenciam como abusca, na Europa, de modelos para a criao musical deu lugar procura, no Brasil, de maneiras dese expressar a brasilidade atravs da msica. Jos Maurcio no apenas foi arregimentado em prol dagrande arte austro-germnica, da qual era considerado herdeiro, mas tambm em favor da tradionacional-modernista, da qual era considerado pai. Esses processos ideolgicos de conformidadecosmopolita e individualidade nacional traduziram-se na construo de duas genealogias mauricianas,a primeira partindo de Haydn e a segunda culminando em Villa-Lobos. O clssico brasileirotransformou-se, assim, no brasileiro clssico.

    Desde Idias sobre a msica, construes raciais de poder informam o discurso histrico-musicalbrasileiro, e especificamente a literatura mauriciana, de um modo e em um grau para os quais osprprios musiclogos ainda no atentaram. Ao confinarem seu objeto de estudo a um passado remoto,cuja reconstruo encararam como um processo tcito e apoltico, os bigrafos e historiadores docompositor deram o seu dever por cumprido e eximiram-se de toda e qualquer autocrtica. Emdescompasso com as demais cincias humanas, onde a problematizao crtico-terica do legado racialbrasileiro uma prtica consolidada, a musicologia exibe o etos de uma sociedade onde o racismo uma espcie de tabu. Uma sociedade onde, nas clssicas palavras de Florestan Fernandes (1972: 42),vigora o preconceito de ter preconceito. Desnecessrio dizer, esse silncio inaceitvel (Bohlman1993; Radano, Bohlman 2000: 38-40) frente injustia que permanece, hoje, estampada em ndicesdesproporcionais de desemprego, analfabetismo e mortalidade infantil.

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    E S T U D I O S / Raa, Nao e ...

    Mestiagem e branqueamento

    Manuel de Oliveira Lima (1867-1928)Como j apontaram vrios estudiosos, os brasileiros no apenas absorveram, mas re-elaboraram a seumodo os modelos raciais originrios da Europa. A doutrina do branqueamento -um cruzamento suigeneris entre o evolucionismo social, que escalonava raas e sociedades em estgios obrigatrios dedesenvolvimento, e o darwinismo social, que imaginava a miscigenao racial como ndice e agentedegenerativo- emergiu no bojo desse processo re-interpretativo (Schwarcz 2001: 43). Os advogadosdo branqueamento no rejeitavam a inferioridade africana, mas, ao invs de condenarem sua mistura,acreditavam que a superioridade gentica do europeu diluiria o sangue negro, de gerao para gerao,at sua completa extino. Aqui tambm, a imigrao europia em larga escala era preconizada comogrande soluo. Todavia, nesse caso, imigrantes europeus no apenas substituiriam a fora de trabalhonegra, como imaginava Taunay, mas tambm interagiriam com a populao afro-descendente, alvejando-a paulatinamente em termos somticos, mentais e culturais. A tela reproduzida na figura 3, de nopouca notoriedade, traduz essa ideologia (Schwarcz 1993: 11-12).

    A viso de um Brasil cada vez mais puro, atravs da mestiagem, foi acolhida entusiasticamente pelojovem governo republicano. Fundamental foi o papel desempenhado por Jos Maria da Silva ParanhosJnior, Baro de Rio Branco, que serviu como ministro das Relaes Exteriores de 1902 a 1912. Como objetivo de estimular a imigrao, e de atrair o capital estrangeiro, Rio Branco promoveu umaagressiva campanha dirigida para a veiculao de uma imagem progressista do Brasil na Europa e nosEstados Unidos (Skidmore 1989 [1974]: 151). Essa campanha, que incluiu o apontamento de intelectuaisde renome para postos diplomticos, era tida como essencial caso o Brasil pretendesse vencer a corridaimigratria, em franca competio com a vizinha Argentina. Entre esses intelectuais estava Manuelde Oliveira Lima, renomado homem de l etras e entusistico advogado da miscigenao construtiva,designado plenipotencirio do Brasil na Blgica em 1909. Nesse mesmo ano, Oliveira Lima foi

    Figura 1. Mscara morturia de Jos Maurcio Nunes Garcia. InstitutoHistrico e Geogrfico Brasileiro, Rio de Janeiro. Reproduo: Mattos1997:xx, apndice.

    Figura 2. Trazendo a legenda: Pobre lavoura! J no bastava o preto,vais ter o amarelo! Com o auxlio de duas raas to inteligentes, ela hde progredir de um modo espantoso. Reproduo (com retoques):Pessanha 2005:20 (fonte original omitida por Pessanha).

    Figura 3. Trazendo a inscrio Le ngre passant au blanc, latroisime gnration, par leffet du croisement des races. ModestoBrocos y Gomes. Redeno de C (1895). leo sobre tela. Museude Belas-Artes, Rio de Janeiro. Reproduo: (Acesso: 08 fev. 2007).

    Exemplo 1. Verso do Responsrio III das Matinas de Natal, para coro a quatro vozes e orquestra. Cabido Metropolitanod o R i o de J an e i ro . A ut gr a fo p ar c i al , R i o d e J a n e i r o , 1 7 99 o u 18 0 1. F ac - s mi l e: Acesso: 08 fev. 2007.

    E S T U D I O S / R a a , N a o e . . . E S T U D I O S / R a a , N a o e . . . E S T U D I O S / R a a , N a o e . . . E S T U D I O S / R a a , N a o e . . . E S T U D I O S / R a a , N a o e . . .

    E S T U D I O S / R a a , N a o e . . . E S T U D I O S / R a a , N a o e . . . 40

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    E S T U D I O S - R E S O N A N C I A S - 2 4 E S T U D I O S - R E S O N A N C I A S - 2 4 E S T U D I O S - R E S O N A N C I A S - 2 4 E S T U D I O S - R E S O N A N C I A S - 2 4 E S T U D I O S - R E S O N A N C I A S - 2 4E S T U D I O S - R E S O N A N C I A S - 2 4

    E S T U D I O S - R E S O N A N C I A S - 2 4E S T U D I O S - R E S O N A N C I A S - 2 4

  • Marcelo Campos HazanPh. D. em Musicologa Histrica

    Brasil

    *

    Introduo

    A raa e o seu principal corolrio, o racismo, so construtos estruturados e estruturantes do desnvelsocial entre grupos de diferentes troncos ancestrais, trajetrias histricas e origens geogrficas.Construes raciais so, basicamente, o produto da significao de um ou mais caracteres fisiolgicossocialmente selecionados (cor da pele, formato dos olhos, textura do cabelo), caracteres cuja diversidade palpvel porm trivial, em termos genticos e taxonmicos, diante da vastido e da complexidadeda variao biolgica humana. Concepes de identidade e diferena racial so, em outras palavras,historicamente datadas e culturalmente especficas. O estudo comparativo dessas concepes atravsdo tempo e do espao -sincrnica e diacronicamente, na cultura e entre culturas- constitui uma formadireta e eficaz de equivocar a certeza da raa como essncia, de iluminar sua variabilidade e sua

    23E S T U D I O S 24 E S T U D I O S - R E S O N A N C I A S - 2 4 25 26

    mutabilidade, de descortinar seu carter contingente e contextual. Nesse descortinar se concentra opotencial da musicologia, e especificamente de uma musicologia crtico-culturalmente informada,como instrumento concreto de mudana e transformao social. Esses pressupostos so fundamentaise permeiam tudo o que segue.

    Segundo Robert Miles (1993: 56-65), raas e naes demarcam comunidades imaginadas, para citaro conhecido conceito de Benedict Anderson (2008 [1983]). Isso ocorre em dois sentidos: primeiroporque os membros de uma comunidade imaginada no se conhecem mutuamente em sua totalidade,e segundo porque a pertena a essa comunidade est fundada em um gesto de significao focalizandocaractersticas fsicas, no caso do racismo, ou culturais, no do nacionalismo. Na prtica, quando a raa enunciada como determinante do intelecto, do comportamento e, portanto, da cultura, as duasideologias podem se confundir. Por outro lado, o nacionalismo contm em seu bojo, como traodistintivo, um anseio soberania e autodeterminao coletiva. O pressuposto aqui o de que umadada populao, apegada a uma cultura comum (lngua, religio, histria), tem o direito de formularsuas prprias leis, de estabelecer suas prprias instituies e de controlar seu prprio destino dentrode um territrio especfico. Um ponto importante, expresso nessa formulao, que o estado, umaentidade efetivamente poltico-administrativa, e a nao, uma entidade subjetivamente sociocultural,no so necessariamente correlatos. Na realidade, historicamente, a conjuno entre estado e naosempre constituiu a exceo, no a regra (Hobsbawm 1991 [1990]). Nesse sentido, e como pretendoilustrar, a msica pode constituir um espao estratgico para a negociao do status sociopoltico edos termos -inclusive raciais- em que uma populao se reconhece (ou reconhecida) como umaunidade identitria.

    Jos Maurcio Nunes Garcia (1767-1830), o foco deste trabalho, possui uma biografia riqussima, jabordada por sucessivas geraes de historiadores, tanto da msica como do ofcio. Para os presentesfins, apenas dois aspectos dessa biografia fascinante precisam ser levados em considerao. O primeiro o seu mtier: Jos Maurcio foi um importante educador, organista e regente, mas tambm umprolfico autor sacro-musical, mestre-compositor da Capela Real e Imperial dos Bragana no Rio deJaneiro. O segundo aspecto a ser mantido na mente a sua ancestralidade: Jos Maurcio era netomulato de avs que eram escravas africanas, tanto por parte paterna quanto materna (os respectivosavs no foram identificados) (Mattos 1997: 17-22). As implicaes dessa genealogia para o presentetrabalho so inmeras.

    Em termos sumrios, este artigo examina a recepo pstuma de Jos Maurcio do ponto de vista dasintersees discursivas entre raa e nao com nfase sobre duas conjunturas polticas: o SegundoReinado de Dom Pedro II (1841-1889), em seu crepsculo, e o primeiro governo de Getlio Vargas(1930-1945), em sua alvorada. As pginas que seguem focalizam a espantosa trajetria percorrida peloconceito de miscigenao no Brasil. Em poucas dcadas, a mistura entre raas, inicialmente culpadapelo suposto atraso nacional perante a Europa branca e civilizada, durante o perodo monrquico,passou a ser interpretada como uma soluo gentica para os problemas do pas, e depois reinventadacomo emblema de uma identidade nacional positiva, durante o regime getulista. Essa trajetriaentrelaou-se com outro deslocamento, de uma poltica nacionalista de carter restritivo e elitista paraoutra inclusiva e populista sensivelmente moldada lgica do capital. Como ser demonstrado, comnfase sobre as idias de seis pensadores-chave, essas dinmicas ao mesmo tempo refletiram einfluenciaram, dramaticamente, a recepo crtica de Jos Maurcio e sua msica.

    27

    de uma fonte de diferena no plano interno, delimitando musicalmente os estratos sociais, o gostooperstico tambm constitua uma fonte de identidade a nvel externo, superando as fronteiras queseparavam a classe dirigente da civilizao europia que lhe servia como modelo absoluto (Magaldi2004: 35-64).

    A partir do ltimo quartel do sculo XIX, entretanto, o status da pera italiana como forma musicaldominante foi ameaado decisivamente. Com efeito, foi nessa poca que a Primeira Escola Vienenseintegrou-se definitivamente vida musical do Rio de Janeiro, aps um primeiro momento de efervescnciadurante a era joanina (Magaldi 2005). Ao lado da pera italiana, o cnone austro-germnico tinhacondies de concretizar o ideal identitrio europeizante das elites brasileiras. Entretanto, enquantoas peras de Rossini e seus sucessores eram consumidas como um tipo sofisticado de entretenimento,os clssicos alemes invocavam respeitabilidade, suscitavam reverncia e disponibilizavam novosrecursos simblicos (Magaldi 2004: 65-96). Citando publicaes da poca, o cnone representava oprogresso intelectual e musical no Brasil (1870), a msica da melhor escola (1883) e a verdadeiraarte musical (1891) (apud Magaldi 2004:68, 74, 84). Como veremos, luz da recepo de JosMaurcio, esse capital foi lucrativamente investido com vista afirmao da superioridade racial ecultural das elites durante a passagem do sistema escravocrata para o assalariado e do regime monrquicopara o republicano.

    Mestiagem e inferioridadeManuel de Arajo Porto-Alegre (1806-1879)

    Idias sobre a msica, de Manuel de Arajo Porto-Alegre, nos abre uma janela inicial para oentendimento das conexes entre raa e nao e a msica de Jos Maurcio. A publicao desse artigopioneiro data de 1836, quando o autor residia em Paris. A familiaridade que exibe em relao aopensamento determinista europeu, portanto, baseia-se em uma experincia em primeira mo e noconstitui propriamente um termmetro, mas sim uma antecipao do debate pseudocientfico cujoaflorar no Brasil, reiterando, pertence sobretudo dcada de 1870.

    Particularmente pertinente a forma como Porto-Alegre, em seu trabalho, discorre sobre o tema docarter nacional e a influncia do meio ambiente (Porto-Alegre 1836: 176-177). Segundo Porto-Alegre, clima e solo controlavam o tipo fisionmico, temperamento, lngua e fala de cada nao.Essas caractersticas fsicas, psicolgicas e culturais, por sua vez, influenciavam a produo artsticadas populaes nacionais. Assim compreendidas como produtos da natureza, raa e nao ocupavamum espao ambguo dentro do pensamento do autor. A argumentao de Porto-Alegre giravaessencialmente em torno de um eixo geogrfico norte-sul, epitomizado por Alemanha e Itlia. Oalemo tardo, pensador, e de uma sensibilidade que se desenvolve no por erupes, como o habitantedos climas quentes, mas, gradativamente, produz uma matemtica musical, uma harmonia ditada peloclculo [...], afirmou (Porto-Alegre 1836: 177). Em contraste, o italiano impetuoso, entusistico esentimental, e, por conseguinte, propenso melodia. Em outro momento, partindo de um ponto devista evolucionista, Porto-Alegre ps-se a ajuizar a primitiva msica de outras sociedades. Segundoele, no estado selvagem, e de barbaria, a msica no mais do que uma assuada contnua; o cantose apresenta em forma de uivos e a orquestra [isto , os instrumentos] como um tumulto de armas;mas logo que um pequeno grau de civilizao se introduz, ela muda de carter, e isso se observa nosselvagens do Brasil (Porto-Alegre 1836: 176). A observao deixa entrever o anseio das elites em

    RESUMO. Este trabalho examina a recepo pstuma do compositor mulato Jos Maurcio NunesGarcia (1767-1830) nas intersees discursivas entre raa e nao. A nfase recai sobre a trajetriahistrica percorrida pelo conceito de miscigenao: inicialmente culpada pelo atraso da civilizaono pas, durante o reinado de Pedro II (1841-1889), a mestiagem foi reinventada como um emblemade brasilidade, durante o governo Vargas (1930-1945). Essa trajetria confundiu-se com outrodeslocamento, de uma poltica nacionalista restritiva e elitista para outra inclusiva e populista. Refletindoe condicionando essas dinmicas, construes ideolgicas de conformismo cosmopolita e individualidadenacional foram articuladas atravs da msica de Jos Maurcio.

    RESUMEN. Este trabajo examina la recepcin pstuma del compositor mestizo Jos Maurcio NunesGarcia (1767-1830) en las intersecciones discursivas entre raza y nacin. El nfasis est puesto sobrela trayectoria histrica recorrida por el concepto de mestizaje: inicialmente culpada por el atraso dela civilizacin en el pas, durante el reinado de Pedro II (1841-1889), el mestizaje fue reinventadocomo un emblema de brasilidad, durante el gobierno Vargas (1930-1945). Esta trayectoria se confundecon otro dislocamiento, de una poltica nacionalista restrictiva y elitista a otra inclusiva y populista.Reflejando y condicionando esas dinmicas, construcciones ideolgicas de conformismo cosmopolitae individualidad nacional fueron ar ticuladas a travs de la msica de Jos Mauricio.

    Palabras clave: Jos Maurcio Nunes Garcia (1767-1830); raa; recepo.

    28

    avanar na civilizao do pas, recm-independente, que esboava os primeiros passos em busca deum prestgio junto aos centros europeus. Para Porto-Alegre, a conquista desse prestgio passava peladivulgao internacional de Jos Maurcio. No por acaso, Idias concludo com a seguinte profeciaou desiderato: por ti correndo o mundo e girando na sociedade, tuas obras te aviventam de dia emdia, at que a Europa te oua, e o mundo te aplauda (Porto-Alegre 1836: 183).

    No seria essa a nica oportunidade em que a msica daria asas imaginao racial de Porto-Alegre.Publicado em 1856, Apontamentos sobre a vida e obras do Padre Jos Maurcio Nunes Garciaredimensiona um detalhe importante do artigo anterior. Em Idias, Porto-Alegre havia feito umareferncia individualidade do compositor -ao carter peculiar de sua msica perante as escolasalem e italiana-, porm no sem exaltar Jos Maurcio en passant como o fluminense Mozart (Porto-Alegre 1836: 182). Em Apontamentos essa semente germina, desabrochando em um comentrio noqual o compositor brasileiro explicitamente articulado msica, racionalidade e ao clima alemo(Porto-Alegre 1856: 365):

    [...] [O] seu entusiasmo para com Mozart, Haydn e Beethoven era justssimo, porquenesta trade estava toda a glria da arte germnica, e aquela escola severa que plantounos speros climas do norte uma arte cientfica, bela e proprietria de infinitos primores.

    A condio mestia de Jos Maurcio no deixou de ser objeto da ateno de Porto-Alegre. Pelocontrrio, Apontamentos descreve essa condio com um esmero que d uma medida do grau emque o fator racial informava a viso de mundo, pr-determinava os destinos e condicionava a ao ea reao quotidiana dos atores sociais oitocentistas. Segundo Porto-Alegre (1856: 368-369), asdimenses e salincia sseas do seu todo, mostravam que [Jos Maurcio] havia sido de uma forteconstituio. Tinha nos lbios, na forma do nariz e na salincia dos pmulos os caracteres da raamista. Mas a fantasia racial de Porto-Alegre vai mais alm. A descrio prossegue com o comentriotranscrito a seguir, que pode muito bem constituir o trao mais bizarro de toda a historiografia mauriciana(Porto-Alegre 1856: 369):

    O Dr. Danessy, frenologista e discpulo fantico de [Franz-Joseph] Gall, possui umacpia da mscara [morturia de Jos Maurcio] [...] no seu gabinete em Paris, mas nassuas indagaes enganou-se redondamente, o que bem prova a respeito do crebro esuas protuberncias externas, que as mais das vezes o miolo que decide [a raa] e noa casca. Estes enganos do mesmo doutor se repetiram em outras vezes na legaobrasileira, depois de haver apalpado grande nmero de cabeas brasileiras.

    A referida mscara preserva em gesso as feies de Jos Maurcio e foi extrada pelo prprio Porto-Alegre por ocasio do falecimento do compositor (figura 1). Antes de carem em desuso no decorrerdo sculo XX, mscaras fnebres eram primariamente objetos de memria ou venerao, mas tambmpossuam uma utilidade pragmtica no pitoresco domnio da frenologia. o caso da mscara de JosMaurcio, base para o argumento craniolgico de Porto-Alegre que apontava a pertena do compositor raa mista. Observe-se, todavia, que esse enquadramento no foi acompanhado de maiorescomentrios por parte de Porto-Alegre, quem se absteve de avaliar suas implicaes morais, emocionaise intelectuais. Ou seja, Apontamentos deixa irrespondida a indagao: de que forma a ancestralidade

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    Entre as raas europias, entretanto, o favoritismo de Taunay para com os alemes era notrio, aponto de lhe valer acusaes, por parte de seus adversrios polticos, de estar pretendendo germanizare bismarquizar o Brasil (Annaes do Senado 1888: v. 5, p. 91; apud Hall 1976: 151). Taunay justificavasua preferncia com base no temperamento diferenciado desse grupo. Se o imigrante italiano era maisbulioso, mais dado exaltao e aos influxos dominantes nos povos de procedncia e da raa latina,o carter do alemo, mais ponderado e sereno, era propcio estabilidade da Monarquia. Por isso,entre outros motivos, era de imensa vantagem sua incluso no seio da nossa nacionalidade (Annaesdo Senado 1888: v. 5, p. 56). V-se que, na opinio Taunay, a imigrao seletiva transcendia os dilemasda agricultura e alentava um ideal identitrio situado no plano da formao da nao.

    Msica e raa guardavam uma relao metafrica na imaginao germanfila do Visconde de Taunay.O espectro racial assentado na primazia alem, que extravasava por todos os poros de sua quimeraimigrantista, extrapolava para o domnio da msica e informava suas concepes de identidade ediferena musical. Segundo Taunay, durante o sculo XIX o mundo civilizado havia servido de palcopara uma batalha entre duas tradies musicais hegemnicas, com um eventual vencedor. Em suasprprias palavras, existia a [escola] italiana toda ela meldica e flcida [...] que dominava senhoraabsoluta de quase todos os pases cultos; [e] a alem, firmada na harmonia e na severidade cientfica,disputando-lhe a supremacia e preeminncia, que afinal conseguiu, por ter do seu lado a verdade e alegtima elevao intelectual e esttica (Taunay 1930 [s.d.]: 89). A articulao desses sistemas dediferena, a flacidez emotiva da melodia italiana e a sobriedade intelectual da harmonia alem, atravessacom fora os seus trabalhos sobre msica. Os reflexos no Brasil do universalismo cultural germnico-o projeto da construo de um cnone musical que acompanhou a unificao poltica das terras alemsao final do sculo XIX- no poderiam ser mais bvios.

    A vitoriosa escola alem, cultuada por Taunay, tinha em Jos Maurcio o seu ilustre representantebrasileiro. Em seus artigos, Taunay exprime obsessivamente essa convico, retratando Jos Maurcio

    como discpulo dos clssicos germnicos. No por coincidncia, a consolidao do cnone no Riode Janeiro coincidiu com uma mobilizao em prol do levantamento, estudo, publicao, execuo epreservao da produo do compositor brasileiro. O ambiente germanfilo em que foi promovidaessa campanha j foi descrito por diversos musiclogos (Goldberg 2006; Magaldi 2005; Pereira 1995;Vermes 2000), porm no do ngulo formado pelo entrecruzar ideolgico entre msica e raa. Essalacuna essencial e nos obriga a retroceder ao dilema com o qual nos deparamos ao largar Manuelde Arajo Porto-Alegre. primeira vista, a exaltao de Jos Maurcio como clssico alemo parececontradizer o preceito da inferioridade mestia. Em outras palavras, parece apontar o compositorbrasileiro como prova de que aos indivduos de pele escura estava franqueada a arte de Haydn e Mozart.No preciso muito esforo, todavia, para desfazer essa impresso. Citando novamente Taunay(1930[s.d.]: 57; nfase minha):

    Incontestvel e muitas vezes comprovada a vocao peculiar aos homens de corpreta e principalmente mestios para as artes liberais. H, entretanto, exagerao e nopequena no que geralmente se assevera e importante ressalva a fazer-se - aprendemcom efeito depressa, suscitam grande esperana aos professores, parecem dever percorrerbrilhante e rpida carreira, mas, chegados a certo ponto, param, estacam e retrogradamde modo sensvel, de maneira que existncias que prometiam cintilantes fulgores seatufam, as mais das vezes, na obscuridade e no esquecimento.

    Raros, rarssimos preenchem, como Jos Maurcio, os destinos que se afiguravamseguros aos admiradores das primeiras manifestaes artsticas.

    V-se que Jos Maurcio no a refutao da disparidade entre as raas, mas to somente a exceoque confirma a regra. Seria intil alegar que a vocao peculiar atribuda ao grande nmero de afro-descendentes que se dedicava s artes no era uma realidade natural, mas sim o reflexo de uma sobre-representao ocupacional, da existncia de um nicho de sobrevivncia dentro de uma sociedade (entocomo hoje) notoriamente imobilista. Seria igualmente vo levantar a suspeita de que a no-concretizaodas promessas artsticas negras e mestias de que se lamentava Taunay no decorria de fatoreshereditrios, mas sim de diferenas de oportunidade e de formas de tratamento reservadas s ralsracialmente definidas. Tal argumentao seria fora de propsito porque, como explica o prprioVisconde, a evidncia etnolgica demonstrava irrefutavelmente o desempenho superior dos brancosnos processos de aprendizagem e formao (Taunay 1930[s.d.]: 57):

    J foi, alis, confirmada pelos estudos de etnologia comparada a observao queacabamos de fazer. Com rarssimas excees, a educao simultnea e em tudo idnticade duas crianas inteligentes, vivas, bem dispostas fsica e moralmente, uma, porm,branca, outra preta ou mestia demonstra, a princpio, maior rapidez de progresso porparte desta, depois certa parada nos tempos da puberdade, e passada esta muito maioradiantamento da outra, que afinal se distancia longe e definitivamente.

    Nessa exposio de Taunay, a raa causalmente atrelada ao comportamento, aptido, desempenhoescolar e propenso dos indivduos a seguir determinadas ocupaes. Essa lgica determinista,contudo, desdiz-se perante o exemplo especfico de Jos Maurcio que, conseqentemente, precisa serracionalizado e absolvido como exceo. A glosa desimpede Jos Maurcio com vista legitimao

    africana de Jos Maurcio compatibiliza-se com suas qualidades pessoais e capacidades artsticas? Nofoi essa a nica ocasio em que Porto-Alegre fez questo de documentar a ascendncia africana deum personagem da histria das artes no Brasil (Squeff 2004: 141-146). Contudo, uma articulaoexplcita entre a raa e o legado artstico de afro-descendentes como Jos Maurcio est ausente deseus estudos histricos sobre msica, pintura e literatura. Diferente, todavia, o caso de outro historiadormauriciano.

    Alfredo dEscragnolle Taunay (1843-1899)

    Alfredo dEscragnolle Taunay, Visconde de Taunay, foi um intelectual profundamente enredado nosdilemas ideolgicos do final do sculo XIX. De certa forma, Taunay personifica ao mesmo tempo opassado e o futuro da nao, na medida em que defendia o fim gradual da escravido enquanto apoiava,ferrenhamente, a continuidade da Monarquia. Nos diversos domnios do saber e da poltica em queatuou, incluindo a crtica musical, o Visconde de Taunay embalou um projeto que visava, em poucaspalavras, transformar o Brasil numa grande nao pela colaborao das grandes foras da Europa eda civilizao (Annaes do Senado 1888: v. 5, p. 56). Para compreender esse projeto europeizante, esuas mltiplas implicaes musicais e raciais, convm investig-lo inicialmente luz do papel deTaunay como vice-presidente de uma importante instituio de elite, a Sociedade Central de Imigrao.

    Fundada em 1883, a Sociedade Central de Imigrao exerceu um impacto ressonante porm efmerosobre a poltica nacional, encerrando suas atividades em 1891. Seus integrantes possuam um interessecomum na eliminao da grande propriedade e do cativeiro por meio do estmulo imigrao europia.Segundo eles, o caminho para a divers ificao e a modernizao da agricultura bras ileira era um re-povoamento seletivo, cabendo, para esse fim, atrair ao Brasil a melhor parcela da humanidade branca.O elemento racial nesse projeto era nevrlgico e a retrica atravs da qual foi expresso veemente. Naperspectiva imigratria de Taunay no havia lugar para chineses, cuja raa toda fraca, imbele, oupara imigrantes vagabundos e mendigos chamados turcos ou rabes (Annaes do Senado 1888: v. 5,p. 51; 1887: v. 1, p. 143; apud Hall 1976: 160). O que era necessrio, isto sim, era atrair representantesdo melhor que nos possam dar as raas europias, incluindo italianos, belgas, portugueses e alemes(Annaes do Senado 1888: v. 5, p. 56). A charge reproduzida na figura 2 o retrato preciso das ansiedadessubjacentes s idias de Taunay.

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    convidado por Rio Branco para representar o pas no III Congresso da Sociedade Internacional deMsica a ser realizado em Viena, homenageando o centenrio do falecimento de Joseph Haydn. Em28 de maio, Oliveira Lima marcou sua presena com um trabalho intitulado La musique au Brsil.Au point de vue historique (Lima 1909). Esse trabalho exemplar da imaginao racial de sua pocaem diversos sentidos.

    La musique pode ser dividida em duas partes. A primeira examina um espao histrico fora dombito erudito, um espao reservado interao entre msica, raa, clima e identidade nacional. Essainterao descrita nos seguintes termos (Lima 1909):

    Como toda e qualquer msica, possui a brasileira suas razes, que so as melodiaspopulares, e conta tambm, como a maior parte das msicas, seu desenvolvimentoharmnico especial e at original. Eram aquelas melodias populares o naturalacompanhamento das cantigas portuguesas transplantadas alm-mar no sculo XVI.Sobre elas se tinham vindo enxertar as balbuciantes cantilenas indgenas e os sperose montonos motivos da terra africana, acabando por emprestar-lhes uma feio musicalprpria que, ajudada por um clima tpido e regular e sob a ao afetiva da mistura fsicae moral das raas em presena, tomou um carter de langor e voluptuosidade [...].

    O encanto das melodias brasileiras, resultantes dessa fuso, opera vigorosamente sobrequantos as ouvem. [...]

    As modinhas e os lundus, estes mais africanos e lascivos, aquelas mais locais esentimentais, cujo texto denuncia o amor ardente e cuja cadncia desafia a dana fogosa[...], contam-se annimas, seno espontneas, e outras de autor conhecido, sem por issoterem um atrativo menos picante.

    La musique atribua ao pas uma feio musical prpria, resultante da influncia do meio fsicoe do contato tnico e racial entre africanos, amerndios e portugueses. Encenava, no mbito da msica,a noo identitria de que o Brasil era uma nao especial em funo de seu clima e da miscigenaode sua populao. Por um lado, o retrato musical traado por Oliveira Lima revestia-se de certapositividade. ilustre platia vienense era apresentado um carto de visitas pitoresco e acolhedor,onde as melodias brasileiras eram descritas como o feliz produto da incorporao das raas inferiores europia. La musique, contudo, trazia uma contradio. luz das doutrinas raciais e geogrficasque circulavam na poca, as canes do Brasil exprimiam uma sensualidade que era sintomtica deuma degradao. Como disse Gobineau (1983 [1853]; apud Schwarcz 1995), os brasileiros s tmem particular uma excessiva depravao. So todos mulatos, a ral do gnero humano, com costumescondizentes. Modinhas e lundus demonstravam o langor e a voluptuosidade que advinham daao do clima tropical e da mistura entre as raas. Tinham condies, portanto, de significar musicalmentea identidade miscigenada da nao, porm essa era uma identidade a ser lamentada e remediada, nocelebrada e afirmada. A implementao de um novo modelo de mestiagem, o branqueamento daaparncia e dos costumes do povo brasileiro atravs da imigrao europia, afigurava-se como soluopara esse dilema.

    Em um segundo momento, La musique abandona esse quadro extico e passa a abordar a msicaque respondia a um gosto esclarecido, pois que provm do estudo (Lima 1909). Nessa abordagem,

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    Jos Maurcio destacado e exaltado por sua afinidade com os clssicos (porm sem referncia suacondio racial). Apoiando-se nos trabalhos do Visconde de Taunay, Oliveira Lima (1909) afirma quea msica sacra de Jos Maurcio procedente dos grandes mestres alemes e que o compositorconstitui o representante por excelncia entre ns [os brasileiros] da msica clssica. No apenaso passado histrico, mas tambm o presente musical brasileiro retratado com fortes coloraesgermanfilas. Segundo Oliveira Lima (1909), a influncia de Wagner projetou-se de modo significativono Brasil, ainda que temperada pelas fortes tradies italianas e pelo fundamento nacional. Nossoscompositores modernos voltam-se [...], como todos os outros, para Bayreuth, considerando-a a MecaMusical, afirmou.

    La musique foi ilustrada com a execuo piano-vocal de peas de Jos Maurcio e de outroscompositores considerados representativos da tradio erudita euro-brasileira. O centenrio de Haydnem Viena talvez seja o pice da recepo de Jos Maurcio do ponto de vista do seu pertencimentosimblico escola alem. importante reiterar as circunstncias polticas e ideolgicas em que ocorreua palestra de Oliveira Lima. O branqueamento atravs da imigrao era o objetivo precpuo da campanhapropagandstica qual pertencia La musique au Brsil. da pena de Oliveira Lima (1899:52-53;apud Skidmore 1989 [1974]:88-89) a predio de que a imigrao . Temos aqui uma formulao sucinta do ideal branqueador,o sonho racial das elites brasileiras, que era metaforicamente traduzido em som pela msica dosclssicos alemes.

    Mestiagem e brasilidade

    Mrio de Andrade (1893-1945)Gilberto Freyre (1900-1987)Cleofe Person de Mattos (1913-2002)

    Recapitulando, sinteticamente. Na opinio do Visconde de Taunay, negros e mestios possuam umacapacidade inferior de aprendizado. Na de Manuel de Oliveira Lima, deficincias raciais podiam sererradicadas, em longo prazo, atravs da afluncia do sangue anglo-saxo. Essas perspectivas determinaramcomo Jos Maurcio foi representado nos trabalhos de Taunay (como exceo inferioridade no-branca) e como foi apropriado na palestra de Oliveira Lima (em prol do branqueamento). O que segue uma apreciao de como a vocao germnica de Jos Maurcio foi reconsiderada dentro do prximocaptulo do pensamento scio-histrico-antropolgico no pas. Esse captulo, marcado pela valorizaodos processos de miscigenao (sem branqueamento) e a superao radical do complexo de inferioridadeidentitrio dos brasileiros, ser desenredado a partir de duas vertentes intelectuais, luso-tropicalismoe nacional-modernismo, inseparavelmente ligadas, respectivamente, aos nomes de Gilberto Freyre eMrio de Andrade.

    Para Gilberto Freyre, o estmulo mestiagem havia sido o maior mrito da colonizao portuguesa(Vianna 2005 [1995]: 87-88). Isso porque a miscigenao havia demonstrado ser propcia interaoe ao equilbrio, o que era crucial em um universo fsica, poltica e socioeconomicamente complexo ediversificado como o tropical. Nesse universo, retratado seminalmente em Casa-grande & senzala,a convivncia entre raas, sexos, classes e etnias se manifestava musicalmente atravs da modinha.

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    Era nessa cano que, nas palavras de Freyre, se sente [...] o visgo de promiscuidade nas relaesde sinhs-moos das casas-grandes com mulatinhas das senzalas. Segundo ele, as modinhas estavamimpregnadas do erotismo das casas-grandes e das senzalas; do erotismo dos iois nos seus derreiospelas mulatinhas de cangote cheiroso ou pelas priminhas brancas (Freyre 2004 [1933]: 424). Emboraesse e outros temas teorizados por Gilberto Freyre j viessem se desenhando no horizonte intelectualbrasileiro antes de Casa-grande & senzala, foi essa monografia o grande divisor de guas no que tange afirmao de uma nova noo de mestiagem. Se ao final do sculo XIX Oliveira Lima (1899:52-53; apud Skidmore 1989 [1974]: 88-89) falava em desmantelar a extrema mestiagem estabelecidapelo portugus, criticando o relativo atraso mental e o enervamento da raa colonizadora, trsdcadas depois Gilberto Freyre enaltecia a miscigenao -muito especialmente o cruzamento entre acordialidade do homem portugus e a sensualidade da mulher africana- como evidncia da superioridadedo luso-tropicalismo perante outros padres de civilizao. Impressiona a longevidade dessa ideologia,cujos reflexos se fazem sentir, hoje, atravs do mito da democracia racial (Guimares 2002: 137-168). A percepo freyreana de uma docilidade inerente colonizao portuguesa desaguou na noo,ainda corrente, de que a sociedade brasileira essencialmente impermevel ao racismo. Para muitosbrasileiros, o preconceito incapaz de penetrar no mago de uma coletividade cuja harmonia traduzidapela metfora da miscigenao. Essa uma ramificao importante e retornarei a ela ao final destetrabalho.

    As formulaes de Gilberto Freyre encontraram um ambiente favorvel durante a dcada de 1930. Opoder poltico e econmico, que, durante a Primeira Repblica (1889-1930), pertencia s oligarquiascafeeiras dos estados de Minas Gerais e So Paulo, sofreu uma transformao expressiva quandoGetlio Vargas, do Rio Grande do Sul, assumiu o governo em 1930, apoiado pelas faces burguesasno vinculadas ao caf, as classes mdias e o setor militar tenentista (Fausto 1975: 246; apud: Vianna2004 [1995]:60). Em resposta s agitaes reivindicatrias que pontuaram as dcadas de 1910 esobretudo de 1920, promovidas pelas camadas proletrias cada vez mais mobilizadas em torno deassociaes sindicais e partidrias, o governo Vargas embarcou em um projeto centralizador, paternalistae corporativista expressamente dirigido para a subordinao dos interesses individuais, classistas eregionais ao interesse coletivo e unidade nacional - dois notrios clichs getulistas. O picedesse autoritarismo ocorreu durante o regime de exceo denominado Estado Novo (1937-1945),marcado pela supresso dos direitos polticos e individuais e a censura aos meios de comunicao.

    Vimos como, relembrando Taunay, a seletividade racial determinava os elementos que devem formara grande nacionalidade brasileira, na passagem da Monarquia para a Repblica. Tal perspectiva foidrasticamente re-configurada durante a Era Vargas (Guimares 2002: 137-168; Turino 2003:186-192).A superao do poder oligrquico (e do controle do capital estrangeiro) exigia a expanso da indstriadomstica e a ampliao da base popular de sustentao do regime. Capitalismo e populismo, assim,imbricavam-se. O processo de industrializao pressupunha um aumento da oferta de mo-de-obra,assim como uma expanso do mercado consumidor interno. Ao invs da imposio de mecanismosideolgicos de excluso, a formao de cidados trabalhadores e consumidores demandava, alm deuma elevao do bem-estar material, uma representao simblica sensvel experincia dos segmentosafro-brasileiros da populao. A inveno da mestiagem como emblema de uma nacionalidade positivarespondia a essa dinmica medida que engendrava um sentimento generalizado de pertena e incluso.A percepo de um equilbrio permitia com que todos pudessem se identificar como brasileiros, paraalm de distines de raa e de classe, dissimulando a continuidade de uma poltica imigratriabranqueadora por parte das autoridades getulistas.

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    Durante o governo Vargas codificado um novo sistema simblico para a nao (Schwarcz 2001: 29-30). Feijoada, capoeira, samba e candombl so significados como traos culturais mestios. Enaltecendoa tolerncia da sociedade brasileira, o Dia da Raa acrescido ao calendrio cvico. Nesse mesmoperodo o Brasil ganha a sua padroeira, Nossa Senhora da Conceio Aparecida, uma santa mestia.A msica sacra de Jos Maurcio pode no ser um elemento bvio dentro desse imaginrio, porm aele efetivamente pertence. A demonstrao dessa pertena, contudo, dado o espao surpreendentementepequeno que c