dissertação sobre hans jonas

111
 FRANCÍLIO VAZ DO VALE BIOCENTRISMO NA ÉTICA DA RESPONSABILIDADE DE HANS JONAS TERESINA – PI 2013

Upload: filosofiaufpi

Post on 07-Oct-2015

16 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

Dissertação sobre a filosofia de Hans Jonas

TRANSCRIPT

  • FRANCLIO VAZ DO VALE

    BIOCENTRISMO NA TICA

    DA RESPONSABILIDADE DE HANS JONAS

    TERESINA PI2013

  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAU

    PR-REITORIA DE PESQUISA E PS-GRADUAO

    CENTRO DE CINCIAS HUMANAS E LETRAS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM TICA E EPISTEMOLOGIA

    FRANCLIO VAZ DO VALE

    BIOCENTRISMO NA TICA

    DA RESPONSABILIDADE DE HANS JONAS

    TERESINA PI2013

    Dissertao apresentada ao programa de Ps-Graduao em tica e Epistemologia da Universidade Federal do Piau UFPI, como requisito parcial para a obteno do ttulo de Mestre em Filosofia.Linha de pesquisa: tica e Filosofia Poltica.

    Orientador: Prof. Dr. Helder Buenos Aires de Carvalho.

  • Este trabalho dedicado a todos aqueles que um

    dia tiveram a vontade e a coragem de modificar o

    rumo de suas prprias vidas.

  • AGRADECIMENTOS

    Aos dez anos bem vividos na Universidade Federal do Piau UFPI, no Centro de

    Cincias Humanas e Letras CCHL e na Biblioteca Central Jornalista Carlos Castelo

    Branco BCCB;

    Ao meu orientador, professor Dr. Helder Buenos Aires de Carvalho por ter apostado

    em mim desde a graduao. Nesse percurso da ps-graduao quero agradecer-lhe pela

    sua inestimvel pacincia, pelos conselhos sempre tcitos, pela disponibilidade, pelas

    conversas, pela orientao austera e honesta. Diante disso, sei que fui bem encaminhado

    e conduzido, pois o querer no se ensina. Obrigado mestre!

    Ao professor Dr. Luizir de Oliveira pelo apoio proporcionado durante esta caminhada.

    Pelos livros, pelas conversas, pela orientao, pela amizade. Sempre grato.

    Aos meus pais: Francisco do Vale e Marclia do Vale pela educao proporcionada e ao

    amor sempre exigente. s minhas irms: Marciana do Vale e Marciene do Vale

    testemunhas de minhas inmeras horas de ausncia quando dedicado a este trabalho.

    Aos amigos sempre fraternos que de maneira direta ou indireta me proporcionaram

    qualquer forma de ajuda e apoio nesta jornada, alm das palavras de estmulo e

    sugesto. A eles me dirijo com muita gratido as ncoras de nossas vidas.

    Muito obrigado!

  • Como qualquer um, eu s vezes gostaria de poder voltar atrs e mudar alguns erros que cometi quando era mais novo. Mas nenhum de ns pode

    viajar para o passado a fim de desfazer erros, no importando o quanto suas

    consequncias os evidenciem com o tempo. Ainda assim, todos ns, em virtude da

    imaginao moral que possumos, podemos muitas vezes espiar o futuro concebido a

    partir das escolhas que fazemos juntos hoje, mesmo antes de esse futuro ter nascido

    para aqueles que vivero com as consequncias do que fazemos ou fracassamos em

    fazer no presente.

    Daqui a no muitos anos, uma nova gerao vai olhar para trs em

    nossa direo, nesse momento de deciso, e fazer uma de duas perguntas: ou eles vo

    perguntar algo como: o que vocs estavam pensando? (...) Vocs estavam

    desatentos? Vocs no se importavam?. Ou, em vez disso, eles perguntaro: como

    vocs encontraram a coragem moral para se erguer e resolver uma crise que tantos

    diziam que era impossvel solucionar?.

    Temos que escolher qual dessas questes queremos responder, e temos

    que dar nossa resposta agora no em palavras, mas em aes.

    Al Gore.

  • RESUMO

    Hans Jonas na obra O princpio responsabilidade: ensaio de uma tica para a civilizao tecnolgica (2006 [1979]) apresenta o diagnstico de uma civilizao debilitada e perecvel, constantemente ameaada pelos poderes do homem tecnolgico. De posse desta anlise, constri uma proposta no sentido de novas fundaes para o edifcio tico a partir de uma responsabilidade. Jonas constata o carter antropocntrico de uma tica que no abrangia as consequncias dos impactos oriundas da ao humana sobre o homem e a vida na biosfera. Em seu iderio filosfico sobre a civilizao tecnolgica, estende as atitudes dos homens para alm do agir prximo, reconhecendo um direito prprio da natureza. A recolocao conceitual da natureza, dotada de finalidade prpria, expressa que o poder tecnolgico promove os desafios morais da contemporaneidade, visto que h a possibilidade certa (causas) e incerta (consequncias) de os efeitos acumulativos desta mesma tecnologia pr em perigo a continuidade futura da vida sobre o planeta. O imperativo da responsabilidade resulta do poder do homem contemporneo sobre si e sobre o planeta. Caracteriza-se por ser uma responsabilidade perante a natureza e perante o prprio homem. A concepo de responsabilidade em Jonas est em conformidade com uma nova exigncia axiolgica de fundamentao ontolgica presente na obra O princpio vida: fundamentos para uma biologia filosfica (2004[1966]). uma responsabilidade que se firma com a preservao da vida em um futuro distante e com a continuidade da vida tal como conhecemos. O que justifica um biocentrismo no princpio responsabilidade o fato de que a continuidade da existncia gera uma obrigao com a vida, porque dizer sim a ela ser. Esta obrigao se firma na ontologia fundamentada no princpio vida e expresso no princpio responsabilidade. O grande objetivo de uma nova abordagem biocntrica, como o imperativo de Jonas, de manter a existncia da humanidade futura, em um futuro que existam candidatos a um universo moral em um mundo fsico o autntico objetivo da responsabilidade.

    PALAVRAS-CHAVES: princpio responsabilidade, princpio vida, biocentrismo, ontologia.

  • ABSTRACT

    Hans Jonas in the book The imperative of responsibility: in search of an athics for thetechnological age (2006 [1979]) presents the diagnosis of a civilization weakened and perish, constantly threatened by the powers of technological man. Possession of this analysis, a proposal to build new foundations for the building from an ethical responsibility. Jonas finds the character of an anthropocentric ethic that did not cover the consequences of the impacts arising from human action on man and life in the biosphere. In his philosophical ideas about technological civilization, the attitudes of men extends beyond the next act, recognizing a right in the nature. Replacement conceptual nature, endowed with proper finality, which expresses the power promotes technological challenges of contemporary moral, since there is a certain possibility (causes) and uncertain (consequences) of the cumulative effects of this same technology endanger the future continuity of life on the planet. The imperative of responsibility involves the power of modern man about himself and the planet. It is characterized by being a liability to the nature and to the man himself. The conception of responsibility Jonas is in compliance with a new requirement axiological ontological reasoning in this work The phenomenon of life: toward a philosophical biology (2004 [1966]). It is a responsibility that is firm to the preservation of life in the distant future and the continuity of life as we know it. What justifies biocentrism in principle responsibility is the fact that the continued existence creates a bond with life, because she is saying yes to be. This requirement is firm in the ontology based on the principle expressed in early life and responsibility. The ultimate goal of a new biocentric approach, as the imperative of Jonas, is to maintain the existence of mankind in the future, a future in which there are candidates for a moral universe in a physical world - the real goal of the responsibility.

    KEYWORDS: imperative of responsibility, phenomenon of life, biocentrism, ontology.

  • SUMRIO

    INTRODUO........................................................................................................ 10CAPTULO I: O PRINCPIO VIDA: BIOLOGIA E ESPECULAES

    FILOSFICAS........................................................................................................ 251.1 Uma filosofia da vida........................................................................................... 251.2 Metabolismo, liberdade e vida............................................................................. 291.3 A precariedade: ser e no-ser ....................................................................... 311.4 A vida enquanto problema................................................................................... 341.5 Contribuies da teoria da evoluo: o modo de ser da humanidade.................. 37CAPTULO II: O PRINCPIO RESPONSABILIDADE: UMA NOVA

    EXIGNCIA AXIOLGICA CONTEMPORNEA.......................................... 412.1 Implicaes da tcnica......................................................................................... 412.2 Contornos ticos.................................................................................................. 462.3 Natureza e natureza do agir humano................................................................ 502.4 Responsabilidade como princpio em Hans Jonas............................................... 562.5 Dever para com o futuro: uma fundamentao necessria............................. 652.6 Nenhum caminho do para o deve.................................................................. 72CAPTULO III: A CONVERGNCIA DOS PRINCPIOS: A

    RESPONSABILIDADE ALBERGA UM BIOCENTRISMO............................. 753.1 Ontologia da vida................................................................................................. 753.2 Biologia e telos.................................................................................................... 803.3 Responsabilidade ontolgica............................................................................... 853.4 Convergncia biocentrada................................................................................... 89CONSIDERAES FINAIS.................................................................................. 97REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS.................................................................. 104

  • INTRODUO

    Os paradigmas cartesiano e baconiano, que externalizavam homem e

    natureza do universo da biosfera, so o aporte inicial do iderio intervencionista que se

    manifestou primordialmente com o advento da cincia moderna e que passou por

    mudanas inauditas, de maneira a inaugurar, no bojo da humanidade, caractersticas

    inditas em um homem novo guiado por paradigmas incomuns at ento, provedor de

    atitudes admirveis e manipuladoras do espao natural. Pode-se afirmar, sem grandes

    demonstraes, que o ser humano enquanto espcie homo sapiens pensa a respeito de si

    e da natureza, alm de poder interferir espantosamente atravs da derivao homo faber

    engendrada a partir da Modernidade.

    As marcas da interveno humana so evidentes nos impactos e na

    degradao acarretados natureza, isto , na forma dualista com que o homem se

    relaciona com o espao natural: se situando na condio de dominador e no direito de

    explorar e espoliar a natureza, ao mesmo tempo em que, paradoxalmente, despoja a sua

    prpria essncia enquanto ser humano. As inmeras e nocivas aes do homem diante

    da natureza so tambm questes de carter tico: mais do que uma discusso

    meramente tecnolgica que h mais de trinta anos mobiliza as naes, tal

    intervencionismo se revela agora com limites de contornos valorativos; uma tal

    abordagem desvela outra problemtica: a de um vazio tico, uma ausncia de

    valores que contribui excessivamente com essa postura humana diante do planeta e de

    si mesma.

    Destarte, o interesse tico do homem pela natureza adquire o sentido de

    salvaguardar o presente preservando os interesses das geraes futuras. Diante desse

    quadro, de um debate tico que contempla uma posteridade incerta ante a ameaa do

    poder tecnolgico de transformao do homem e da necessidade de estabelecer ou

    restaurar valores para o homem contemporneo, a fim de superar o entenebrecer tico e

    ambiental, este trabalho se prope a apontar uma perspectiva de valor que possa

    sobrelevar esta ausncia de valores que, como se constata coloca em discusso,

    tambm, a problemtica ambiental coetnea.

    10

  • Esta constatao no representa uma atitude obscurantista em face do saber cientfico-tcnico, mas uma crtica ao tipo de saber cientfico-tcnico e forma como ele foi apropriado dentro de um projeto de dominium mundi. Este implica a destruio da aliana de convivncia harmnica entre os seres humanos e a natureza, em favor de interesses apenas utilitaristas e parcamente solidrios. No se teve em conta a subjetividade, a autonomia e a alteridade dos seres e da prpria natureza (BOFF, 2000, p. 17-18).

    Nesse sentido, a tcnica e a cincia apaziguam a relao dicotmica

    entre homem e natureza frente irreconciliao com esta (SUSIN, 2003, p.259) , mas

    o homo faber opta pela nsia de dominar a natureza, utilizando o poder deste domnio

    at mesmo em um potencial domnio sobre ele prprio, alm da explorao que se

    converte em agresso para o espao natural. Esta abordagem sobre a tcnica guiar para

    uma anlise das implicaes do arcabouo de valores ticos e das perspectivas de

    valores da natureza que culminar no perodo coetneo. O que se tem que a idia de

    periculosidade da tcnica alinha-se em um novo contexto, atravs das inmeras

    transformaes qualitativas das aes do homem, pois a tcnica oferece um aumento

    dos poderes do homo faber, tornando-o sujeito, mas tambm objeto da tcnica.

    Esta postura tem por consequncia um abismo de valores ocasionado

    pelo paradigma antropocntrico com implicaes diretas no mbito tico. A relao do

    homem com o ambiente natural ostenta um nvel de complexidade promovido por

    modelos antropocentrados. Tavolaro (2001) corrobora esta assertiva expondo que

    (...) o paradigma cartesiano instaura um corte radical entre o homem (...) e o resto da criao (entendida como matria inerte desprovida de toda dimenso espiritual), propiciando assim o exerccio ilimitado da dominao humana sobre a natureza que o avano das foras produtivas requeriam. Embora o predomnio do homem sobre a natureza deva ser a marca civilizatria indelvel de nossa poca, por volta do sculo XVIII, esse objetivo deixara de ser incontestado. A essa altura comearam a surgir dvidas sobre o lugar do homem na natureza e o carter de seu relacionamento com as outras espcies. O estudo cuidadoso da histria natural em muito contribuiu para diminuir o antropocentrismo herdado, medida que introduzia um senso de afinidade com a criao e debilitava as crenas no homem como ser nico (p.28).

    Tal dicotomia, provocada pelo jbilo da tcnica, deixa patente a

    vulnerabilidade daquilo sobre o qual ela opera: a prpria natureza. E aqui se abre a

    discusso sobre os efeitos da tchne aplicados no s natureza, mas ao ser humano e

    sua essncia, quando ele se v como objeto da tcnica (PELIZZOLI, 2002, p.103).

    Decerto, esta discusso mostra indcios da modificao da tica contempornea e

    descerra um corte para as problemticas ambientais, consoante um debate tico

    11

  • eminente acerca das aes humanas sobre a biosfera e as diversas transformaes

    empreendidas pelo poder tecnolgico. A problemtica ambiental que se inscreve no

    interior de uma crise tica se reflete como esta ausncia de valores desde a

    civilizao moderna desembocando na civilizao tecnolgica contempornea; e como

    edifcio terico que sublevou o pensamento do homem ao centro dos valores, em

    detrimento de uma abordagem mais ampla e menos limitada.

    Trata-se de propor uma nova perspectiva valorativa diante desta contenda

    tica e ambiental, diante da nova ordem mundial [que] apresenta-se como progresso

    tecnolgico (TOZONI-REIS, 2004, p.51). Pois, o homo technologicus possui um

    relacionamento mais intenso com os recursos naturais, ao mesmo tempo em que se

    encontra mais liberado dos limites impostos pela natureza. diante dessas aes

    imprecisas e de consequncias incertas do homem possuidor do poderio tcnico-

    cientfico que nesse contexto, emerge a necessidade de se elegerem novos valores e

    paradigmas capazes de romper com a dualidade sociedade/natureza. (CUNHA, 2007,

    p.13).

    Os paradigmas axiolgicos anteriores contemporaneidade no

    contemplaram a dinmica das cleres transformaes sociais, culturais, econmicas e

    polticas que afetam tanto o equilbrio socioambiental, sendo, assim, insuficientes para o

    enfrentamento da problemtica ambiental. Simon & DeFries (1992 apud ROHDE, 1996,

    p.27) afirmam que embora

    cada um dos principais componentes do sistema terrestre tenha seus prprios mistrios, o efeito da atividade humana sobre o sistema pode ser a maior varivel de todas. Pela primeira vez, as cincias sociais esto assumindo peso substancial no estudo do sistema terrestre enquanto pesquisadores e polticos lutam para discernir como a humanidade, este trao relativamente recente e terrivelmente poderoso da terra, afeta as foras seculares que tambm ditam o futuro do nosso planeta.

    Assim, urge a necessidade de um paradigma axiolgico que possa

    reformular, revisar e reconceituar determinadas posturas do homo technologicus perante

    as aes predatrias e indiscriminadas com consequncias imprevistas para o seio da

    essncia humana e do ambiente natural. Tal paradigma deve estar em consonncia com

    um princpio filosfico de sobrevivncia das espcies, pois indubitavelmente elas

    correm o risco de serem destrudas, porquanto o homo faber tem poder para isso. Assim,

    a salvaguarda da vida presente e vindoura e da dignidade humana depende no to

    12

  • somente da onipotncia cientfica e tecnolgica, mas, sobretudo, de bases conceituais,

    produzidas por pressupostos filosficos. Tomar posse da vida, conservar o meio

    ambiente permitindo que se preserve a vida futura, este um paradigma que atende aos

    anseios de uma civilizao em perigo, visto que o homo technologicus

    (...) em seu af de controlar a natureza atravs da cincia e da tecnologia, ficou preso por uma racionalidade e por processos que dominam sua vida (...). So processos que desencadeiam catstrofes naturais criadas pela tecnoburocracia, mas que ela no controla; tcnicas (...) cujos princpios de operao nos so alheios; contaminao (...) cujos efeitos sobre a nossa vida desconhecemos. (LEFF, 2001, p.92).

    A obra de Hans Jonas (1903-1993) permite que se faa tal reflexo sobre

    o estgio atual da humanidade e que se repense determinados conceitos que de maneira

    patente so neste momento hodierno posturas exitosas do progresso da cincia, mas

    que, por outro lado, podem conduzir a humanidade a uma escatologia sem precedentes.

    Jonas, filsofo alemo, viveu a efervescncia de quase todo o sculo XX,

    presenciando grandes transformaes e problemas que se afiguraram durante tal

    perodo. Vivenciou a crise europia nas dcadas de 20 e 30, o advento do Nazismo, o

    triunfo e pirotecnia de uma sociedade tecnolgica; viu, de fato, a condio apocalptica

    do mundo em guerra ao ter sido soldado do exrcito britnico durante a Segunda Guerra

    Mundial, a queda de um mundo envolto em um conflito sem precedentes e o

    esquecimento da vida, ou melhor, de uma boa vida. Presenciou o poderio tecnolgico a

    favor deste mesmo conflito rido, as experincias nos campos de concentrao e tudo

    mais que o mundo contemporneo estava proporcionando atravs das mos do homem

    da tcnica, vido por testar os poderes do seu novo basto mgico.

    O edifcio terico de Jonas uma anlise do estado real dos

    acontecimentos. A sua observao e reflexo esto debruadas sobre a forma como o

    desenvolvimento tecnolgico, oriundo da tcnica, foi decisivo para alargar destruies

    em grandezas at ento no cogitadas. A tecnologia transformando o homo sapiens em

    homo faber e este segundo operando sobre ele mesmo, o abandono do ser, o olvido de

    um sentido para a vida e de condies salutares para o meio ambiente. O assombro da

    morte e de uma natureza em desastre fez amadurecer, nesse pensador contemporneo, a

    preocupao com uma nova e reformulada prescrio moral, um princpio que,

    seguramente, pudesse superar o entenebrecer de uma civilizao tecnolgica.

    13

  • Diante desse quadro, Jonas, na sua obra O princpio responsabilidade:

    ensaio de uma tica para a civilizao tecnolgica (2006 [1979]), apresenta o

    diagnstico de uma civilizao debilitada e perecvel, constantemente ameaada pelos

    poderes do homem tecnolgico. A anlise empreendida por Jonas comea com uma

    constatao logo nas pginas iniciais da sua obra:

    Toda tica at hoje (...) compartilhou tacitamente os seguintes pressupostos inter-relacionados: a) a condio humana, conferida pela natureza do homem e pela natureza das coisas, encontra-se fixada de uma vez por todas em seus traos fundamentais; b) com base nesses fundamentos, pode-se determinar sem dificuldade e de forma clara aquilo que bom para o homem; c) o alcance da ao humana e, portanto, da responsabilidade humana definida de forma rigorosa. (JONAS, 2006, p.29)

    A partir dessa assertiva, o argumento jonasiano que se segue de que

    tais pressupostos perderam a validade e que se faz necessrio uma reflexo sobre o que

    isso significa para a situao moral contempornea. Diante de constataes histricas

    acerca do poderio tecnolgico transformador humano, Jonas cr que tais transformaes

    imprimem tambm uma mudana na natureza do agir humano. Logo, a tica est em

    consonncia com o agir humano e a consequncia disso que a natureza modificada da

    ao humana exige uma modificao de princpios ticos. As novas atitudes do homo

    technologicus revelaram uma nova forma de tratar o significado tico e Jonas coloca tal

    afirmativa em riste, sob a crtica de que as perspectivas e os cnones da tica

    tradicional no previram a alvorada de uma releitura e reviso nas bases ticas sob o

    signo da aurora tecnolgica.

    Nesse sentido, o pensamento jonasiano enftico ao constatar que a

    atuao sobre os objetos no humanos no formava um domnio eticamente

    significativo, ou ainda que a significao tica dizia respeito ao relacionamento direto

    do homem com o homem, sendo contundente ao afirmar que toda tica tradicional

    antropocntrica e adiante, ao proferir que todos os mandamentos e mximas da tica

    tradicional, (...) demonstram confinamento ao circulo imediato da ao (JONAS, 2006,

    p.35-36). de posse desta anlise que constri uma proposta no sentido de novas

    fundaes para o empreendimento tico a partir do princpio responsabilidade.

    Esta reformulao da tica um dever que se apresenta no bojo das

    urgncias de uma contemporaneidade sem um referencial, ante a desordem estabelecida

    pelos avanos da tcnica. Jonas aponta para o carter antropocntrico de uma tica que

    no abrangia as consequncias dos impactos oriundos da ao humana sobre o homem e

    14

  • a vida na biosfera. De maneira que uma avaliao em relao aos impactos ambientais

    no se realiza atravs de balizadores axiolgicos que leva em considerao apenas as

    relaes prximas dos homens. Em seu programa filosfico sobre a civilizao

    tecnolgica, Jonas estende as atitudes dos homens para alm do agir prximo, dando a

    reconhecer um direito prprio da natureza1, no sentido de que nada menos que a

    biosfera da Terra soma-se ao conjunto daquilo pelo qual o homem tem de ser

    responsvel. E exatamente nesse sentido que aborda uma problemtica que se revela

    tanto na seara tica quanto ambiental.

    A recolocao conceitual da natureza como dotada de finalidade prpria,

    evidencia que o poderio tecnolgico promove os desafios morais da

    contemporaneidade, visto que h a possibilidade certa (causas) e incerta

    (consequncias) de os efeitos acumulativos desta mesma tecnologia pr em perigo a

    continuidade futura da vida sobre o planeta. Diante disso, uma nova racionalidade para

    entender o mundo em sua complexidade (LEFF, 2001, p.41) se faz urgente. Jonas

    contempla esta urgncia afirmando que

    um imperativo adequado ao novo tipo de agir humano e voltado para o novo tipo de sujeito atuante deveria ser mais ou menos assim: aja de modo a que os efeitos da tua ao sejam compatveis com a permanncia de uma autntica vida humana sobre a Terra; ou (...) aja de modo a que os efeitos da tua ao no sejam destrutivos para a possibilidade futura de uma tal vida; ou (...) inclua na tua escolha presente a futura integridade do homem como um dos objetos do teu querer. (JONAS, 2006, p.47-48)

    O imperativo da responsabilidade resulta exatamente do poder do

    homem contemporneo sobre os ecossistemas do planeta. Caracteriza-se por ser uma

    responsabilidade perante a natureza devidamente reconhecida e com repercusso

    moral e perante o prprio homem. a partir dessa discusso sobre o imperativo da

    responsabilidade em Hans Jonas que emerge o problema desta pesquisa: o princpio

    responsabilidade um princpio consoante ao paradigma antropocntrico? Pois, de

    acordo com Jonas, deve-se garantir a existncia da humanidade e mais do que isso, se

    garanta o modo de ser dessa humanidade. Dessa forma, se est diante de uma

    contradio no que diz respeito s crticas jonasianas s ticas tradicionais

    antropocntricas? Ou se est diante de um pretenso paradigma biocntrico? Haja vista

    que na teoria de Jonas deve-se considerar a urgncia de uma tica que garanta a

    existncia humana e de todas as formas de vida a natureza est includa como objeto 1 Cf. ZANCANARO, 2002. p. 137-158.

    15

  • de responsabilidade existentes na biosfera: uma defesa do ser e um incisivo no ao

    no-ser.

    Em vista disso, Jonas deixa clara a insuficincia dos imperativos ticos

    tradicionais diante da postura do homo technologicus, pois a tica tradicional j no tem

    categorias consensualmente convincentes para seguir com um debate acerca das aes

    humanas sobre o oikos. Decerto, Jonas visa evidenciar o carter eminentemente

    antropocntrico da tica tradicional. Ao se lanar os olhos sobre o seu iderio filosfico,

    percebe-se que, na sua crtica, a tica fixou-se ao longo da tradio centrada no homem.

    Contudo, responder ao problema proposto o ponto de partida fundamental para a

    avaliao de sua proposta e a que paradigma filosfico Jonas ajusta o seu princpio na

    esteira da civilizao tecnolgica.

    Jonas evidencia que esse comportamento contra a natureza e a vida

    oriundos do homo technologicus e dos paradigmas ticos antropocntricos conduziu o

    homem a privilegiar um nico modelo de desenvolvimento, ignorando a complexidade

    cultural, econmica, espiritual e social, que constitui a verdadeira essncia da espcie.

    Tal concepo conduziu o homem a considerar a natureza e o universo como dotados de

    infinitude disposio das necessidades crescentes da humanidade, denegrindo, ao

    mesmo tempo, a construo de valores para a relao j maculada homem-natureza. As

    aes do homem da tecnologia esto impregnadas de um vazio tico que (...) deste

    enfraquecimento do sentido, quando os valores e os atos se revelam como no fundados,

    pe-se, pois, o problema dos princpios e dos fundamentos do novo agir. (RUSS, 1999,

    p.11). Reafirmando esta noo, a Declarao de Vancouver de 1989 aponta que:

    O empobrecimento da prpria concepo de ser humano causado por essa omisso das outras dimenses est absolutamente coerente com a concepo "cientfica" do universo como uma mquina, na qual o ser humano no mais que uma pequena engrenagem. A concepo que o homem tem de si mesmo um determinante principal dos seus valores. Ele fixa a concepo do "eu" a partir da avaliao ao seu interesse pessoal. Assim o empobrecimento ideolgico associado com a viso do homem como uma pequena engrenagem em uma mquina, conduz ao estreitamento de seus valores (p.02).

    Assim, a proposta tica de Jonas para um princpio responsabilidade

    fundamentada nas relaes dos seres humanos entre si e com o espao natural. Esse

    novo imperativo uma boa alternativa para o enfrentamento do vcuo tico (JONAS,

    2006, p.65) e tambm se configura como um princpio prognstico das consequncias

    16

  • do poderio tecnolgico. Nesse sentido, diante da ameaa precisa das incertezas do

    poderio tcnico-cientfico que nesse contexto, emerge a necessidade de se elegerem

    novos valores e paradigmas capazes de romper com a dicotomia sociedade-natureza.

    (CUNHA, 2007, p.13). Pois, na verdade, de um outro conceito de natureza e,

    consequentemente, do homem que a cincia, a sociedade e a cultura contempornea

    carecem.

    De imediato, se percebe a centralidade do iderio filosfico jonasiano em

    considerar a emergncia de uma tica que garanta a existncia humana na biosfera. Mas,

    fundamentado em qual paradigma? Sobre que bases conceituais e morais o princpio

    responsabilidade se assenta? Observa-se que est em vigncia na cultura do sculo XXI

    uma necessidade de se repensar a conduta humana de um ponto de vista tico, pois o

    que se evidencia que essas intervenes fazem apelo a uma redefinio tica. Se o

    soco vital da identidade pessoal atingido pelas novas tcnicas, ento uma nova

    reflexo se impe (RUSS, 1999, p.17).

    nesse movimento que se abre espao para se discutir uma efetiva

    proposta de um paradigma tico nas linhas de Jonas, considerando-se que o trnsito do

    homem de sujeito para objeto da prpria cincia contribui para tal paradigma

    (antropocntrico) contemporneo e, alm disso, contribui excessivamente para a

    efetivao de um dito niilismo de valores.

    Por outro lado, importante que se afirme que essa discusso de novos

    valores ticos culminar em uma discusso com vistas a uma base de atribuio de valor

    para a natureza e para vida. A concesso axiolgica para a natureza e por conseguinte

    para a vida em sua totalidade tem dimenso filosfica, pois exatamente pela anlise

    filosfica ante a biologia que se chegar compreenso de valores ambientais e de

    como h uma estreita conexo entre razo e prtica. Tais consideraes sobre bases

    axiolgicas para o novo agir do homem tecnolgico ante a biosfera, que obscurece o

    futuro da existncia humana e do espao natural com incertezas, riscos e perigos oferece

    uma tentativa de organizar uma posteridade longnqua que lhe aparece com contornos

    ameaadores.

    Jonas defende a necessidade de termos responsabilidade com as geraes

    futuras, de modo que no prevaleam os direitos e deveres de uma tica antropocntrica,

    mas que se efetive uma tica baseada, certamente, em novos valores. O telos para que

    as geraes atuais tenham o comprometimento de tornar efetiva a continuidade da vida

    17

  • e a sobrevivncia das geraes futuras. Se faz necessrio rever o poder da cincia e

    Jonas se prope a compreender a estrutura do pensamento moderno e oferecer uma

    alternativa ao modelo cientificista o modelo aqui proposto o biocentrismo.

    A subordinao do pensamento cientfico aos paradigmas

    antropocntricos faz com que o ethos do mundo contemporneo seja incapaz de mitigar

    as problemticas tica e ambiental em curso, pois este paradigma est relacionado aos

    resultados imediatos das atitudes humanas e no reconhece dimenses temporais que

    ultrapassam o tempo das relaes humanas (BRSEKE, 2005, p.10). Uma

    reformulao radical nos aspectos ticos da contemporaneidade que atinja as aes e os

    efeitos obscuros desse homo technologicus se faz necessria tambm para que dissipe a

    dicotomia homem-natureza que ainda impera sobre a tecnosfera, como reflexo denso de

    uma tica antropocntrica. Assim, Jonas sublinha que as mudanas so profundas e,

    por isso, a era da cincia significou uma nova configurao ou, ento, um novo desenho

    para a tica, rompendo com o antropocentrismo (JONAS, 1998, p.35).

    Contudo, o imperativo da responsabilidade carece de uma mincia para

    que as crticas propostas por Jonas s ticas tradicionais e, consequentemente, o seu

    novo princpio nova era, tenham fundamentao slida e no passveis de dvidas

    quanto a que paradigma obedece. De acordo com essa discusso, Battestin & Ghiggi

    (2010) atestam que Jonas no nega as premissas da tica tradicional, mas busca uma

    ponderao sobre o significado dessas mudanas para a nossa condio moral, que

    grande parte do pensamento tico de Jonas nasce de uma crtica de toda histria da

    filosofia moral da ao humana. A crtica jonasiana no sentido de formular um

    imperativo, no qual o fim ltimo que exista uma humanidade (JONAS, 2006, p.93).

    O princpio articulado por Jonas tem como possibilidade a perpetuao

    da humanidade para a posteridade, que, doravante, pode estar comprometida com os

    avanos da tcnica. vista disso, est a constatao da vulnerabilidade da natureza e

    incluso desta na filosofia moral e que por uma adequao a um paradigma se possa

    colocar a contradio fundamental (ou as contradies fundamentais) que se

    estabelecem entre a natureza e as sociedades e que envolvem a sustentao destas na

    biosfera2. Arendt (1997), diante deste quadro de agravamento assevera:

    No h motivo para duvidar da nossa atual capacidade de destruir toda a vida orgnica da Terra. A questo se apenas desejamos usar nossa direo, nosso novo conhecimento cientfico e tcnico e esta questo no pode ser

    2 Cf. ROHDE, 1996.

    18

  • resolvida por meios cientficos; uma questo poltica de primeira grandeza e, portanto, no deve ser decidida por cientistas profissionais, nem por polticos profissionais. (p.11)

    Destarte, pode-se sustentar que o princpio responsabilidade inaugura um

    novo paradigma para a civilizao tecnolgica. Jonas, no prefcio de O princpio vida:

    fundamentos para uma biologia filosfica (2004[1966]) deixa claro que seu propsito

    o de derrubar por um lado as barreiras antropocntricas da filosofia idealista e

    existencialista, e por outro as barreiras materialistas das cincias naturais (p. 07). As

    posturas, os paradigmas e as ticas anteriores no contemplaram as transformaes

    constantes da sociedade tcnica, ora tais parmetros [so] incuos e, muitas vezes,

    trazem as disposies profundas dos riscos da razo instrumental e egolgica

    hegemnica (PELIZZOLI, 2002, p.95). A transversalidade do vcuo tico com o

    repensar as aes humanas diante do espao natural, mostram como o homo

    technologicus carece urgentemente de uma bssola que possa gui-lo na tecnosfera e

    na biosfera.

    Qui pode-se afirmar que a civilizao tecnolgica est diante de um

    novo edifcio axiolgico, de um novo paradigma, de um novo imperativo, que tende a

    tornar o homo sapiens/faber/technologicus responsvel pelas consequncias naturais e a

    sujeitar a vida humana a uma competncia tica, pois os imperativos da tica atual

    no podem ser formulados, sem que a vida esteja implicada neles. Os atos e os efeitos

    de nossas aes no devem destruir a possibilidade da vida no futuro (ZANCANARO,

    2002, p.04).

    A reformulao tica proposta por Jonas no sentido de que o giro

    aplicado da filosofia tenta superar os dficits das ticas anteriores, preocupada em

    garantir a essncia humana diante dos demais seres e da natureza. Ela se limitava

    promoo do bem humano (JONAS, 1997, p. 35). A referncia no mais somente o

    homem, mas a vida do cosmos, em outras palavras, a totalidade daquilo que vive. Com

    isso, em lugar de uma tica antropocntrica reivindicada uma tica biocntrica.

    Diante disso, o objetivo desta pesquisa mostrar que o princpio

    responsabilidade de Jonas um princpio concebido para a humanidade, porm no

    justificado em bases conceituais antropocntricas. Assim, em um primeiro momento

    deste trabalho empreendeu-se um estudo sobre a teoria da responsabilidade e de que

    maneira esta encontra justificativa no arcabouo terico de O princpio vida:

    19

  • fundamentos para uma biologia filosfica (2004[1966]), de forma que atravs das bases

    ontolgicas explicitadas nesta obra se evidencie a hiptese de que o princpio

    responsabilidade se inscreve em um biocentrismo a partir de uma biologia filosfica.

    Portanto, compreender o conceito de vida em Jonas, bem como os conceitos basilares de

    metabolismo e liberdade, alm de se entender a precariedade do ser e no-ser na

    existncia que, por sua vez, inaugura o problema da vida e as contribuies da teoria da

    evoluo para este contexto filosfico, so pontos essenciais para o entendimento da

    formulao da mxima da responsabilidade.

    Em um segundo momento, delineou-se uma anlise das linhas centrais de

    O princpio responsabilidade: ensaio de uma tica para a civilizao tecnolgica (2006

    [1979]) apresentando-se as novas categorias ticas formuladas por Jonas, de maneira

    que se encontrem os elementos tericos necessrios para que, a fortiori, possa

    evidenciar como esse princpio se comunica com o biocentrismo. A crtica s ticas

    anteriores possibilita uma abordagem indita e entender as categorias elementares desse

    empreendimento filosfico se apresenta determinante, de modo que se considere sobre o

    qu a responsabilidade opera e se prope; que fins e valores esto na esteira da

    civilizao tecnolgica e como Jonas enfrenta os dogmas: nenhuma verdade

    metafsica e nenhum caminho do para o deve. Assim, se demarca os pontos

    essenciais no que se refere aos deveres propostos no iderio filosfico do imperativo da

    responsabilidade.

    Um entendimento daquilo que Jonas denomina de dever para com o

    futuro, certamente que evidencia um corte terico que converge com as categorias

    iniciais e que ser tratado como ncleo central, pois a partir daqui se pode justificar o

    dever para a existncia da humanidade, ao seu modo de ser e condio de existncia

    dessa humanidade. Manifesta-se, portanto, uma discusso acerca dos conceitos de ser e

    dever ser, ontologia e tica. Dessa forma, destaca-se que o imperativo de que exista uma

    humanidade o primeiro imperativo, mas que se considere como esta afirmao se

    enriquece com a crtica jonasiana s ticas tradicionais antropocentradas.

    Em um ltimo momento desta pesquisa, evidenciou-se a convergncia

    dos princpios apontando-se que uma biologia filosfica est includa no bojo terico da

    responsabilidade, permitindo uma abordagem e fundamentao ontolgica da

    salvaguarda da humanidade. Assim, ontologia e vida so conceitos centrais, ancorados

    pelas categorias advindas do entendimento da biologia atravs das especulaes

    20

  • filosficas e, a partir disso, discutir o biocentrismo em Jonas est estreitamente

    relacionado com as implicaes de uma biologia filosfica.

    Uma abordagem de cunho biocntrico no interior do princpio

    responsabilidade se mostra eficaz para pensar uma nova abordagem acerca do agir da

    civilizao tecnolgica: o diagnstico que move a proposta jonasiana. Com as inmeras

    intervenes no espao natural, afetando sobremaneira todo o sistema da biosfera, o

    homem torna-se uma espcie ameaada, antes de tudo, por ele prprio. Um paradigma e

    princpio que possa conduzir o pensamento da humanidade a outro patamar se tornam

    imprescindveis para a prpria sobrevivncia do homem enquanto espcie.

    Uma proposta de definio do que seria um valor tico , em Jonas,

    direcionada a uma definio biocentrada, isto , centrada na vida. Podem-se considerar

    ticos todos os valores que tendam a respeitar a vida, sob todas suas formas, a preserv-

    las; e no-ticos os valores que tendam a destruir a vida, a no respeit-la. Uma

    perspectiva biocentrada conduz o pensamento a se desenraizar to somente das

    preocupaes do momento presente ou de curto prazo. Em Jonas se percebe que uma

    tica baseada em um valor antropocntrico se mostra ineficaz para englobar este novo

    aspecto, pois faz com que os indivduos reconheam os quintais do seu oikos, como

    to somente extenso do seu limitado e incompleto ser biolgico. (TOZONI-REIS,

    2004, p.42).

    Um paradigma biocntrico incita que a atual gerao se inquiete com as

    condies futuras do planeta, pois reconhece a interferncia espetacular dos feitos

    tecnolgicos sobre a vida de todos os seres. Tomar posse da vida, conservar o meio

    ambiente permitindo que se preserve a vida futura, este um paradigma que atende aos

    anseios de uma civilizao em perigo, pois a mxima da responsabilidade no outra

    coisa seno um ensaio de uma tica para a civilizao tecnolgica.

    Com Jonas, talvez o valor da vida possa hoje ser aceito pela primeira vez

    na histria com um carter eficazmente universal, pois pela primeira vez o ser humano

    acedeu a uma tomada de conscincia global da espcie humana, podendo desta forma

    sentir-se responsvel diante dela e propor-se objetivos concretos e prticos que afetam

    toda a humanidade. Graas s conquistas da tcnica este reconhecimento hoje muito

    mais real. Sganzerla (2012) sustenta que h duas linhas de pensamento que buscam

    compreender a relao homem e natureza: o antropocentrismo e o biocentrismo. A

    primeira defende que se tem que salvaguardar o planeta porque se estaria colocando em

    21

  • risco a vida humana presente nele. Tal enfoque est centrado prioritariamente no ser

    humano. A segunda linha parte do princpio de que a dignidade da natureza algo

    inato sua existncia, independente do homem (SGANZERLA, 2012, p.323). Tem-se,

    portanto, um enfoque biocntrico, no qual a vida da biosfera em seu conjunto mais

    importante do que os indivduos e as espcies isoladamente.

    Nesse sentido, Sganzerla (2012) aponta que, diante dessas perspectivas,

    geralmente se afirma que a reflexo de Jonas defensora da segunda concepo, visto

    seu interesse em salvaguardar a vida na totalidade homem e natureza. Um iderio tico,

    sob esta proposta de salvaguardar a vida, seguramente estende novas perspectivas para o

    progresso e desenvolvimento da civilizao e do prprio agir humano. uma proposta

    de um novo princpio, que considera os potenciais da natureza de outra forma. Pode-se

    dizer que a sublevao de novos padres para as novas atitudes humanas sempre com

    o estigma do risco a ser oculto representa uma postura da humanidade vinculada ao

    presente e ao futuro, ambos incertos. Sobre este risco, Mota (2001) defende que o

    biocentrismo

    relaciona-se com a justia bitica que atribui importncia a todos os seres vivos, no considerado o aspecto puramente utilitarista do antropocentrismo estreito como gerador de bem-estar humano, ou seja, o biocentrismo est centrado no raciocnio moral; considera a questo do risco do recurso natural como elemento importante de avaliao (p. 181-187)

    A concepo biocntrica dirigida vontade de poder viver, de ter a

    nsia pelo existir, constituindo-se de uma bssola para recriar e reavaliar sentidos

    existenciais, de maneira que o sentido da vida possa voltar a ter sentido. Dentro desta

    corrente, trata-se de recuperar a autenticidade do humano, o que inclui a relao eco-

    sistmica com a natureza. (PELIZZOLI, 1999, p.25). Esta tendncia conduz a uma

    tica do ser, de um retorno ao ser onde se aninham os sentidos da existncia, para

    pensar a sustentabilidade como um devir conduzido pelo carter do ser. O biocentrismo

    uma alternativa diante dos avanos desenfreados do homo technologicus, do risco de

    extino de determinadas espcies e de determinados recursos, pois se configura como

    (...) uma expanso na conscincia histrica e uma explicitao dos princpios morais e dos valores fundamentais. Considera-se o valor da vida (...) a tica cada vez mais biocntrica, em sintonia tambm com a nova viso da natureza, no mais reduzida a res estensa, mas entendida como um processo dinmico e criativo, do qual o homem sujeito e objeto ao mesmo tempo. (BELLINO, 1997, p.16).

    22

  • Muito embora se afirme que o biocentrismo corre o risco de ser

    concebido como um lugar fundamental de observao, absoluto e quase divino,

    desvinculado dos limites e das contingncias das vicissitudes humanas, mas, pelo

    contrrio, esta tendncia capaz de olhar para o todo da teia da vida e da grande

    biosfera, pois vai muito alm de gesto de recursos e de ecossistemas, envolve o aspecto

    moral dos indivduos envolvidos. Uma concepo biocentrada reconhece a dimenso

    tanto da Natureza quanto da natureza humana, pois valoriza o propriamente orgnico

    nos mais diferentes nveis de organizao. Desse modo, colabora com uma nova

    concepo de homem e cincia, que seguramente se comunica e se locupleta de maneira

    responsvel com a sapincia, a habilidade do fazer, mas cuidando e reavaliando o

    espao do oikos. Giacoia Junior (1999) descreve de modo satisfatrio esta compreenso:

    (...) o mandamento de no legar a nossos desconhecidos uma herana desertificada expressa essa ampliao do campo tico de viso sempre, ainda, no sentido de um dever humano perante homens como intensificao de uma solidariedade inter-humana no sobreviver (...). Pois vida extra-humana empobrecida e natureza empobrecida significam tambm uma vida humana empobrecida. (p.412)

    Vida humana empobrecida. exatamente disso que Jonas ao propor o

    princpio responsabilidade est se afastando. Tal paradigma biocntrico amparado por

    uma percepo de mundo holstica que consistentemente impe limites s dicotomias

    oriundas da analtica cartesiana e baconiana. Um resgate ao contexto reintroduz as

    noes de cuidado, responsabilidade e compromisso, alm de proporcionar uma

    expanso no pensamento contemporneo, provocando assim, uma profunda mudana na

    base de valores, pois a responsabilidade jonasiana visa a uma ao que deve ser

    realizada e, nesse sentido o bem que deve ser considerado a vida enquanto tal

    (VIANA, 2010, p.113).

    Assim, observa-se que o domnio pela razo e pela nsia humana de

    subjugar a natureza, de modo indubitvel, foi se separando da vida.

    Inquestionavelmente o poder na sociedade contempornea est articulado com o

    desenvolvimento da tecnologia e, por consequncia, aos impactos e desastres

    ambientais. Habermas (1989) captou isso de maneira exemplar ao denominar esta

    marcha de colonizao sistmica do mundo da vida destacando que: uma vez

    colonizado, o mundo da vida palco para o aparecimento de patologias laterais, tais

    como perda de sentido, perturbaes de identidade coletiva, anomia, perda de

    23

  • motivao, crise de orientao, alienao e psicopatologias (HABERMAS, 1989,

    p.139).

    Jonas (2004) constata que:

    (...) o prprio ser, em vez de um estado, passou a ser uma possibilidade imposta, que continuamente precisa ser reconquistada ao seu contrario sempre presente, o no-ser, que inevitavelmente terminar por devor-lo. (...) o ser sob todos os aspectos um fato polar, e a vida manifesta sem cessar esta polaridade nas antteses bsicas que determinam sua existncia: a anttese do ser e no-ser (...). (JONAS, 2004, p.15)

    Portanto, a tendncia biocntrica reconhece a ampla gama de interesses

    do mundo humano, mas tambm do mundo no-humano, valorizando os organismos

    vivos por sua prpria finalidade, nos seus diferentes nveis de agregao (...)

    (TAVOLARO, 2001, p.149). Parece ser isso que Jonas tambm est propondo, de modo

    que fique evidente que o princpio responsabilidade implica necessariamente o dever-ser

    de algo e o dever-fazer de algum. Mas antes disso, que se compreendam as bases nas

    quais est fixado o princpio responsabilidade.

    24

  • CAPTULO I

    O PRINCPIO VIDA:

    BIOLOGIA E ESPECULAES FILOSFICAS

    1.1 Uma filosofia da vida

    Jonas, ao refletir sobre a categoria vida3, busca uma nova perspectiva

    para se compreender a existncia como um todo, tanto humana quanto extra-humana.

    Tal reflexo desvela que diante de uma crise seja ela ecolgica ou tica a teoria que

    surge deste movimento reconhece o valor intrnseco do ser natural, sobretudo do ser

    orgnico, o que incompatvel com as posies formalistas modernas e pressupe uma

    metafsica da natureza (OLIVEIRA, 2010, p.32). Isto , diante desse cenrio de crises

    ecolgica e tica, encarar tal situao apenas se torna factvel a partir do momento que

    se distingue o valor prprio do orgnico, em uma perspectiva no instrumental

    A vida enquanto paradigma permite que se ateste o valor e o fim em si

    mesmo em cada organismo vivo inserido no conjunto da natureza e, disso, requerer uma

    dignidade e reconhecimento pelo fato de existir. Isso define que a totalidade natureza

    e o respeito incondicional vida acarreta uma valorao que resulta em uma

    justificao que tem como prioridade a tica e, na perspectiva de Jonas, seu elemento

    central, a vida. Uma releitura diante dos seres orgnicos e da natureza mostra os

    contornos do fundamento do princpio vida e das implicaes que dele partem.

    3 Seguramente que afirmar categoricamente qualquer concepo acerca do termo vida seria, no mnimo, acarretar problemas de ordem terica, conceitual e estrutural nas ideias aqui expostas. Pois, nem mesmo as cincias naturais e as cincias mdicas tm uma moldura pronta e acabada sobre este conceito, pelo fato mesmo de ele ter se tornado um problema. E tal nota, se justifica exatamente por isso. Invocando uma definio filosfica de Mondin (1980), vida a capacidade pela qual um ser capaz de mover-se a si mesmo. Do ponto de vista da biologia molecular, a vida consiste exclusivamente numa singular e mais complexa estruturao das molculas do que a estruturao que se encontra na substncia inorgnica. Fenomelogicamente, a vida se manifesta como um movimento que, ao contrrio do movimento mecnico, imanente (isto , vantajoso para o sujeito que o produz) e espontneo ( produzido diretamente pelo prprio sujeito graas sua constituio intrnseca). As principais caractersticas da vida so: poder de crescer, de responder ao ambiente e de reproduo (p.59). Com esta definio se tem em mos um mnimo contorno conceitual para poder apresentar e discutir os conceitos da filosofia jonasiana consoante tal demarcao.

    25

  • Pois, para Jonas, quando a vida est em jogo, os fundamentos para o agir

    moral devem ser imperativos e incontestes. A preservao da vida se estende no to

    somente aos seres humanos os pertencentes da espcie homo sapiens mas se estende

    biosfera como um todo. E o homo sapiens est inserido e pertence a este conjunto que

    engendra o prprio fenmeno da vida. Decerto que aquilo que ocupa o lugar de

    excelncia no iderio jonasiano no apenas o homem, mas a vida do cosmos, isto , a

    totalidade daquilo que vive. Com isso, em lugar da tica antropocntrica,

    reivindicada uma tica bio ou cosmocntrica (SANTOS, 2011, p.27). E a partir

    desta compreenso que o termo biocentrismo4 apresenta seu contorno diante do

    debate hodierno acerca dos impactos provocados pela ao humana atravs dos

    inmeros poderes e possibilidades da tecnologia.

    Que o fenmeno da vida pronuncie um sim a ela mesma a intuio

    que Jonas pe em curso na obra O princpio vida: fundamentos para uma biologia

    filosfica (2004[1966]). Entretanto, como bem assevera Ricouer (1996), ao traar o

    percurso da filosofia jonasiana: estaramos gravemente enganados caso vssemos nessa

    filosofia da vida a sequncia das filosofias romnticas da natureza. No se trata nem um

    pouco de filosofia da vida, mas de filosofia da biologia (p.232). Jonas lana mo da

    cincia biolgica para compreender e apresentar o fenmeno maior da organizao.

    Assim, Jonas ao se referir a uma abordagem biolgica a respeito da vida,

    deixa claro o seu ponto de vista de que h nesta empreitada uma anlise que tambm,

    e no pode deixar de ser, ontolgica. Haja vista que um filsofo que pretende articular

    uma tica deve (...) admitir a possibilidade de uma metafsica racional, se por racional

    no se entende necessariamente o que determinado de acordo com os critrios da

    cincia positiva (OLIVEIRA, 2010, p.32).

    Dito isso, nas linhas iniciais de O princpio vida (2004), Jonas assevera

    sobre a sua interpretao ontolgica dos fenmenos biolgicos e aponta algumas crticas

    no que diz respeito tradio filosfica. Nesse percurso, assinala que o existencialismo

    4 Se faz necessrio dizer que as discusses contemporneas acerca deste conceito, especificamente direcionado proposio tica de Jonas, ainda so incipientes. A inteno aqui evidenciar que o imperativo tico apresentando por Jonas no se configura em bases antropocntricas e que, pela sua defesa em favor da biosfera esta recolocada em termos axiolgicos e com repercusso moral o conceito de vida emerge no centro deste debate. Portanto, a escolha pelo termo biocntrico e seus derivados se apia no pressuposto de uma salvaguarda da vida devidamente apresentada por Jonas em seu iderio filosfico e no de seus interlocutores.

    26

  • contemporneo, baseado na existncia orgnica enquanto tal, oferece a compreenso

    do mundo orgnico privada das vises que a autopercepo humana lhe oferece

    (JONAS, 2004, p.07), apontando assim, uma perspectiva ofuscada pela viso

    privilegiada de humanidade. Pode-se dizer a partir disso que a inteno redirecionar a

    especulao da existncia orgnica enquanto tal para uma viso do mundo orgnico.

    Pois Jonas quer dizer que a biologia cientfica firmada na base

    positivista obrigada a destituir a dimenso da interioridade, que no seu entendimento

    tambm parte integrante da vida. Aqui se tem o corte necessrio para se dizer que

    desde a contribuio de Descartes, animado e inanimado so mantidos

    artificialmente separados. Diante disso, a concluso que se segue a de que ao

    buscarem consolidar-se isoladamente, cada um deles sofre prejuzo tanto a

    compreenso do ser humano quanto a da vida extra-humana (JONAS, 2004, p.07).

    Nesse sentido, a vida pensada sobre a problemtica dualista e a separao radical entre

    o orgnico e o espiritual. Contudo, esta ainda no a tese inicial de uma filosofia da

    vida. Ao buscar compreender a unidade da vida busca-se tambm superar os dualismos

    e, a partir disso, direcionar para um holismo naturalista (...) sem diminuir ou

    relativizar a singularidade humana, mas, ao interpretar a prpria natureza

    (ALENCASTRO, 2007, p.114) se tenha condies para uma interpretao do fenmeno

    maior da auto-organizao. O entendimento se direciona para o fato de que o ser

    humano se consolida em uma vida orgnica da qual se circunscreve.

    De acordo com isso, as consideraes de Jonas buscam superar, por um

    lado, os obstculos antropocntricos erguidos pelas filosofias: idealista e existencialista,

    e, por outro, as barreiras materialistas das cincias naturais. A partir disso, Jonas

    sublinha que:

    as grandes contradies que o ser humano encontra em si mesmo liberdade e necessidade, autonomia e dependncia, o eu e o mundo, relaes e isolamento, atividade criadora e condio mortal j esto germinalmente prefiguradas nas mais primitivas manifestaes da vida (...) mantendo (...) um precrio equilbrio entre o ser e o no-ser, sempre j trazendo dentro de si um horizonte de transcendncia (JONAS, 2004, p.07).

    Dessa forma, Jonas parte da hiptese introdutria de que o princpio

    vida se realiza a partir do fato de que o orgnico prefigura o espiritual. Ideia esta que

    vai de encontro s concepes modernas de inrcia da matria, ento, morta e passvel

    de ser analisada e dissecada, de modo que ao homem dada a habilidade de res

    27

  • cogitans. E exatamente por isso que Jonas considera a vida como um experimento

    encoberto por apostas e riscos cada vez maiores que com o destino do ser humano para

    a liberdade pode levar tanto catstrofe quanto ao xito (JONAS, 2004, p.08).

    Alm disso, importante notar que Jonas tenta esboar uma superao

    ontolgica do dualismo patente e, mais alm, uma superao tica desse mesmo

    dualismo. Tal dualismo se constitui em uma ruptura que se traduz na dimenso

    humana, como um sentimento de isolamento do homem em sua condio de ser

    solitrio, num mundo natural hostil e mau (FONSECA, 2009, p.168).

    De acordo com Jonas, uma filosofia da vida tem como objeto a filosofia

    do orgnico e a filosofia do esprito. Esta em suas palavras uma primeira

    afirmao da filosofia da vida. Isso significa dizer que apontar os limites externos

    implica afirmar que mesmo em sua formao mais primitiva o orgnico j prefigura o

    espiritual e que, mesmo em suas dimenses mais elevadas, o esprito permanece parte

    do orgnico.

    Sobre as nuances do conceito especulativo do que seja a vida, Jonas

    afirma que:

    o filsofo que contemple o grandioso panorama da vida (...) e que se compreenda a si prprio como uma parte do mesmo, no se dar por satisfeito com a resposta (...) de que este imenso e incessante projeto (...) nada mais do que um processo cego (JONAS, 2004, p.11).

    Ou seja, que o dinamismo presente nos processos de permutao dos

    elementos na natureza se caracterize por ser to somente um resultado aleatrio na

    constituio do que seja um fenmeno fsico quanto daquilo que seja um fenmeno

    subjetivo. Pelo contrrio, o pensamento jonasiano at aqui, reconhece a possibilidade

    de que o que ela chegou a realizar est depositado em sua natureza primitiva (JONAS,

    2004, p.11). , na verdade, uma postura que se direciona criticamente anlise do

    modelo convencional da cincia, at ento estabelecido. Essa reconceituao diante da

    cincia e de seus modelos instaurados permite, de acordo com Jonas, o testemunho da

    vida.

    Ao lanar mo dessa postura, constata que independente de sua origem e

    de seu desenvolvimento, a vida se apresenta como uma sequncia que parte do mais

    primitivo ao mais evoludo.

    28

  • 1.2 Metabolismo, liberdade e vida

    Um conceito importante para se delinear o princpio vida na filosofia

    jonasiana o de liberdade. Conforme expe Jonas, o conceito de liberdade est

    relacionado com a percepo e com a ao. Nesses termos, espera-se que este conceito

    seja encontrado no terreno do esprito e da vontade (...) e se em algum lugar ele for

    encontrado, o h de ser na dimenso do agir e no na dimenso do receber (JONAS,

    2004, p.13). Com isso, o que se quer dizer que se desde o princpio o esprito afigura-

    se no orgnico, ento, logo a liberdade tambm estar l. Alm disso, Jonas afirma que

    o metabolismo, a camada bsica de toda a existncia orgnica, permite que a liberdade

    seja reconhecida (JONAS, 2004, p.13), isto , que o metabolismo a primeira forma

    de liberdade, que nos movimentos primitivos da substncia orgnica h o trao de um

    princpio de liberdade. assim que a cincia biolgica oferece especulao filosfica

    os primeiros fenmenos observveis, que permitem a Jonas nomear eminentemente a

    vida como princpio.

    O metabolismo caracteriza-se por ser uma antecipao daquilo que no

    homem ser chamado de liberdade, como independncia em relao s inclinaes e d

    pela primeira vez sentido noo de indivduo enquanto entidade ontolgica

    (RICOEUR, 1996, p.232). Isso quer dizer que distinguir vida orgnica e inorgnica

    deter-se ao conceito de metabolismo, pois este representa o primrio aceno de liberdade

    e, assim, a vida adquire uma independncia. Contudo, o metabolismo que garante vida

    a liberdade, concede-a a exigncia de manter-se viva. Nesse sentido, importa dizer que a

    marca do metabolismo seria sua capacidade e necessidade, fazendo com que o ser

    dependesse inteiramente do no-ser, ou seja, o ser se instala na existncia a partir de

    uma relao compulsria com o no-ser, de onde ele mesmo adveio com ser

    (OLIVEIRA, 2011, p.44-45) e, desse modo, estabelecendo-se uma relao com o

    vivente e o inorgnico.

    Jonas disserta sobre isso em Pensar sobre Dios e otros ensayos (1998)

    quando afirma que o metabolismo o resultado dessa relao entre ser e fazer. De

    acordo com o autor, isso significa existir por meio da troca de matria com o ambiente,

    incorpor-lo de modo transitrio, us-lo e excret-lo mais uma vez (JONAS, 1998,

    29

  • p.23)5. Alm disso, alega que a sada do ser vivente do reino geral do no-vivente se

    deu, todavia, como um gesto perigoso, o que veio por sua vez a estabelecer o paradoxo

    ser e no-ser.

    A relao que se estabelece entre o ser vivente e o inorgnico de uma

    dependncia precria (JONAS, 1998, p.18) por parte do vivente. E nesse sentido, o

    organismo vivo dotado de liberdade passou a encerrar seu ser de modo condicional

    e revogvel. Jonas quer dizer que a liberdade tem que designar um modo de ser

    capaz de ser percebido objetivamente, isto , uma maneira de existir atribuda ao

    orgnico em si (JONAS, 2004, p.13) e que, desse modo, possa ser compartilhada por

    todos os elementos da classe de organismos.

    Conforme o exposto, a inteno estender tal conceito a todos os

    organismos. Em outras palavras, um conceito ontologicamente descritivo que possa

    estar relacionado a fatos corporais. Assim, Jonas quer demonstrar que o esprito , de

    fato, uma extenso do prprio corpo e que h, neste pensamento, uma emergncia do

    orgnico relacionando-se de maneira diferenciada com as leis fsicas que por sua

    vez, abre espao para a liberdade.

    O conceito de liberdade quando entendido neste sentido fundamental

    pode efetivamente nos servir nas linhas de Jonas para a interpretao do que se

    denomina vida. Haja vista que o segredo dos incios continua fechado para ns. Dessa

    forma, Jonas argumenta que:

    A hiptese que me parece mais convincente admitir que j a prpria passagem de substncia inanimada para substncia viva, a primeira auto-organizao da matria em direo vida, foi motivada por uma tendncia a estes mesmos modos de liberdade que se manifestam no mais profundo do ser, e a que esta passagem abriu as portas (JONAS, 2004, p.14).

    E continua no sentido de que, uma vez nos encontrando no prprio

    mbito da vida, no dependemos mais de hipteses no importando qual tenha sido

    sua causa: aqui o conceito da liberdade j possui de antemo seu lugar reservado, ele

    5 Muito mais do que uma especulao filosfica, o termo ambiente propriamente retirado da cincia biolgica. Ao se falar acerca de uma filosofia da biologia, Jonas o fez com austeridade. No se trata de mero louvor obra jonasiana, mas de uma constatao. O termo na biologia designa exatamente o que se entende por meio ambiente, qual seja: como sendo o conjunto de condicionantes, leis, influncias e interaes de ordem fsica, qumica e biolgica que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas. Os efeitos de ordem antrpica esto includos neste conceito. As aes da humanidade e a prpria humanidade esto includos neste conceito. Cf. ODUM. 2004.

    30

  • indispensvel para a descrio ontolgica de seu dinamismo mais elementar. E como

    instrumento de descrio e de interpretao, este conceito de liberdade h de estar

    presente nesta discusso. A tarefa de Jonas ter em mos um conceito que envolva toda

    essa dimenso e suas formas.

    Portanto, a liberdade um processo fundamental para se entender a

    prpria vida e todo o amplo e complexo conjunto que permeia e perfaz a existncia,

    pois Jonas concede a liberdade s formas mais primitivas de vida, ao reconhecer no

    metabolismo a primeira manifestao da liberdade.

    1.3 A precariedade: ser e no-ser

    Consoante s consideraes anteriores, se faz mister dizer que o

    privilgio da liberdade carrega o fardo da necessidade, e isso significa existncia em

    risco. Pois, na concepo de Jonas a condio bsica para o privilgio consiste no fato

    paradoxal de a substncia viva se haver desprendido da integrao geral das coisas no

    todo da natureza, ou seja, de haver-se oposto ao mundo. a partir deste movimento que

    surge a tenso entre o ser e no-ser. Assim, o organismo assume uma precria

    independncia em relao a esta mesma matria e que, contudo, no deixa de ser

    indispensvel para a sua existncia. Logo, observa-se que o organismo possuidor de

    seu ser apenas de modo condicional, pois h esta tenso entre o ser e o no-ser.

    Desta maneira, o metabolismo apresenta um duplo aspecto: riqueza e

    misria. Pois conforme assinala Jonas:

    o no-ser entrou no mundo como uma alternativa contida no prprio ser; e s assim o ser alcana um sentido mais claro: afetado (...) pela ameaa de sua prpria negao, o ser tem que afirmar-se, e um ser afirmado existncia como desejo (JONAS, 2004, p.14).

    Um ser afirmado existncia como desejo: eis os desdobramentos da

    liberdade no organismo e a sua relao com o mundo natural. O no-ser se caracteriza

    como uma faceta do prprio ser em realizao. O prprio ser, em vez de um estado,

    passou a ser uma possibilidade imposta, que continuamente precisa ser reconquistada ao

    seu contrrio sempre presente, o no-ser, que inevitavelmente terminar por devor-lo

    (JONAS, 2004, p.15).

    31

  • Suspenso, assim, na possibilidade, o ser sob todos os aspectos um fato

    polar, e a vida manifesta sem cessar esta polaridade nas antteses bsicas que

    determinam sua existncia; evidenciando-se a anttese do ser e no-ser, de eu e mundo,

    de forma e matria, de liberdade e necessidade. Jonas distingue que todas estas so

    formas de relao e que viver essencialmente estar relacionado com algo, e vai alm,

    afirmando que isso implica em transcendncia. Com isso, Jonas traa o escopo de que

    a partir do instante que se tem xito em mostrar a presena de tal transcendncia e das

    inmeras e patentes polaridades na base da vida, se torna, portanto, verdadeira a

    afirmao de que o esprito se encontra prefigurado na existncia orgnica como tal

    (JONAS, 2004, p.15).

    A vida declaradamente uma manifestao de polaridades: corpo e alma,

    liberdade e necessidade, ser e no-ser. E, de acordo com Jonas tais dualidades so os

    modos e maneiras de relao, visto que a existncia impe estar relacionada com algo.

    De todas as polaridades, destaca Jonas, a do ser e no-ser a mais fundamental. ela a

    identidade arrancada em um esforo supremo e persiste por adiar o final, que no

    obstante j est predeterminado. E completa afirmando que a resistncia que o

    organismo lhe oferece tem que terminar na submisso, em que o ser-ele-mesmo

    desaparece e jamais retorna como este ser nico.

    Com isso, Jonas assinala que o fato de a vida ser mortal constitui sua

    contradio bsica, mas este fato parte inseparvel de sua essncia, sem que seja

    possvel sequer imaginar-se que seja possvel suprimi-lo. A vida , pois, mortal, no

    apesar de ser vida, mas precisamente porque vida segundo sua mais primitiva

    constituio, pois a relao de forma e matria em que ela se baseia desta espcie

    revogvel e inafianvel (JONAS, 2004, p.15). Tal realidade do orgnico paradoxal e

    em constante contradio com a natureza mecnica. Jonas tambm deixa claro isso

    quando corrobora que o orgnico traz consigo uma precariedade e instabilidade

    (JONAS, 1998, p.27).

    A vida, nesse contexto, est entregue a si mesma e dependendo

    inteiramente de seu prprio rendimento, mas para tornar-se realidade dependendo de

    condies que no esto em seu poder e que lhe podem ser negadas. Dependente, por

    isso, do favor ou desfavor da realidade externa. Exposta ao mundo, contra o qual e

    tambm pelo qual ela precisa afirmar-se. Ou ainda, que ao se observar o fenmeno da

    32

  • vida, esta compreendida a partir de um si-mesmo que (...) remete identidade

    interior de cada vivente e ao seu isolamento em relao aos demais (JONAS, 1998,

    p.27).

    Isso significa que a vida est continuamente em risco de ambos os lados:

    pelo poder e pela fragilidade do mundo, e equilibrando-se no fio que separa um do

    outro. Sujeita a ser perturbada em seu processo, que no pode falhar (JONAS, 2004,

    p.15). Com base nisso, pode-se sustentar que Jonas

    parte da constatao de que sabemos valorizar dialeticamente a vida como algo sagrado, na medida em que conhecemos o que sua aniquilao (...). A perda de algo ou a mera representao de sua perda provoca instantaneamente uma valorizao do mesmo objeto em questo (SANTOS, 2011, p.35).

    Justificando isso, Jonas arremata:

    [a vida] sempre podendo ser atingida mortalmente em seu centro, em sua temporalidade podendo se encerrar a cada momento; assim que na matria a forma da vida leva sua existncia: peculiar, paradoxal, lbil, insegura, ameaada, finita, profundamente irmanada com a morte (JONAS, 2004, p.16).

    Logo, o argumento que se segue de que o preo do medo que teve que

    ser pago desde a origem da vida, e que aumenta na mesma escala do seu

    desenvolvimento para formas mais elevadas, no permite que deixe de ser levantada a

    pergunta pelo sentido de ato to ousado. Nesta pergunta do ser humano, se configura o

    carter originalmente questionvel da vida. E sobre esse percurso que uma filosofia da

    vida ter que ocupar-se com o organismo como forma objetiva da vida, mas tambm

    com sua interpretao na auto-reflexo do ser humano: esta pertence ao nmero dos

    achados da vida, a que cada avano da reflexo acrescenta um novo dado.

    Dessa forma, o alcance filosfico dessa reflexo sobre a biologia, e mais

    especificamente sobre o fenmeno da vida em Jonas, permite de acordo com Ricoeur6

    que sejam extradas trs lies importantes: a) a vida recolocada no lugar de honra,

    pois com a concepo de metabolismo, a dimenso de interioridade se revela

    pertencente vida; b) a precariedade da vida no para de crescer ao mesmo tempo em

    que aumenta a polarizao do si e do mundo: considere-se que o fenmeno do

    metabolismo j implica a ameaa de destruio, porm apenas com a humanidade que

    6 Cf. RICOEUR, 1996, p.234.

    33

  • o medo, o sofrimento e a solido so sentidos em toda a sua virulncia; e c) o fenmeno

    da auto-organizao permite que se pronuncie um testemunho que a vida d a ela

    mesma, de modo que a vida no se prova, mas se arrisca e se atesta.

    Isso conflui para o fato de que os dados oferecidos pela cincia da vida

    permitem Jonas inferir que no ser que se reconhece um valor e a necessidade de

    conservao. A vida enquanto tal voltada para fins, e com a conscincia esses fins

    estabelecem significao e valores. Dito de outra maneira, em relao a um fim, o ser

    manifesta-se a favor dele mesmo e, ao mesmo tempo, pronuncia um no ao no-ser.

    Rolston, sublinha esta compreenso no sentido

    de uma perspectiva igualmente vlida e objetiva a morfologia e o metabolismo que o organismo projeta um estado valorizado. Vital uma palavra mais ampla, hoje, do que biolgico. Poderamos mesmo argumentar que o conjunto gentico um conjunto normativo; ele distingue o que do que deve ser no, claro, em qualquer sentido moral consciente , mas no sentido de que o organismo um sistema axiolgico (ROLSTON, 2002, p.562).

    Assim, o vital, a vida, por ser justamente perecvel valorada. Uma

    vida espontaneamente defendida pelo que ela em si mesma. A totalidade da vida

    como significativamente valorada se revela no fato de que os organismos foram dotados

    de distintos mecanismos biticos de sobrevivncia; e isso se justifica no instante em que

    a vida dobra-se para a liberdade. O metabolismo apresenta primitivamente o trao da

    liberdade nos organismos vivos que, por sua vez, dota-os de caractersticas que os

    conduzem ao estgio de declarar continuamente um sim ao ser e um no ao no-ser.

    1.4 A vida enquanto problema

    Ao lanar os olhos sobre a Antiguidade, Jonas assinala o fato de que

    diante do panvitalismo o ser humano estava firmemente convencido de que a vida est

    presente em tudo quanto existe. Nesta viso de mundo, o mistrio com que o ser

    humano se defronta a morte. A morte que contradiz tudo quanto se compreende no

    mundo, pois tudo o que possui uma explicao natural est inserido na universalidade

    da vida. Na medida em que a vida considerada como o estado primrio das coisas, a

    morte destaca-se como enigma que perturba (JONAS, 2004, p.18).

    34

  • Por outro lado, no pensamento moderno, o natural, aquilo que se pode

    compreender, a morte; o que constitui um problema a vida. Partindo das cincias

    naturais, passou a predominar para o conhecimento da realidade como um todo uma

    ontologia cujo substrato a matria desprovida de todo e qualquer trao de vida, a

    matria pura (JONAS, 2004, p.19). O universo na concepo terica moderna

    constitudo por massas inanimadas e por foras sem finalidade, cujos processos

    decorrem em obedincia a leis de conservao e de acordo com sua distribuio

    quantitativa no espao.

    Jonas afirma que este substrato puro da realidade s pde ser alcanado

    depois que todos os traos fsicos foram retirados, alm tambm de todos os traos de

    vida. Foi negado rigorosamente toda e qualquer projeo da vida que experimentamos

    em ns mesmos. Consoante a isso, pode-se destacar o fato de que, sob esta perspectiva,

    no h mais um telos a ser seguido. Jonas afirma:

    o que permaneceu foi o que sobrou depois que tudo ficou reduzido s propriedades da matria extensa, sujeitas mediao (...). Estas que satisfazem ainda s exigncias do que agora denominado conhecimento exato; tais exigncias representam o que na natureza capaz de ser conhecido (JONAS, 2004, p.20).

    A matria, pura e simples, configura-se como aquilo que faz parte de

    uma ordem natural, quilo que est circunscrito em um universo regido to somente por

    leis de conservao e que a elas se submetem. o estado natural ou at mesmo original

    das coisas no universo. Isso significa dizer que o inerte passou a ser o conhecvel por

    excelncia, a explicao de tudo, e assim a ser reconhecido tambm como a razo de ser

    de todas as coisas (JONAS, 2004, p.20).

    Conforme a concepo jonasiana, a formulao de um dualismo de

    matriz cartesiana no qual se separa a res extensa, redutvel s leis da mecnica,

    absolutamente objetiva e inerte; da res cogintans, a substncia espiritual e pensante, sem

    nada em comum com a anterior redunda no mais absoluto fracasso ao postular um

    homem fragmentado. Pois a separao entre a res cogitans e a res extensa promoveu

    uma forma de compreenso do mundo fsico tendo como base a ideia do mundo como

    algo inerte exterior ao ser humano. O encontro das duas substncias no organismo passa

    a ser um enigma sem soluo. A constatao disso gera uma implicao, qual seja: no

    35

  • que se refere verdade ontolgica, a no-vida a regra do universo; logo, a vida uma

    exceo e uma incgnita.

    Dessa forma, a viso mecanicista do mundo impe uma nova forma de

    pergunta: com surgiu a vida neste mundo sem vida? O lugar do ser no mundo est

    reduzido ao organismo que no outra coisa, seno uma forma problemtica e

    particular da dita substncia extensa. Neles esto contidas a res cogitans e a res extensa,

    sendo a res extensa, de fato, o mundo. A unio das duas no organismo configura-se

    como um verdadeiro enigma. Assim, tem-se a consequncia de que a partir de ento, o

    que exige uma explicao no conjunto inorgnico a existncia da vida. A partir disso,

    o que chama a ateno o fato de que tal explicao e descrio acerca da vida tem que

    ser dada tomando-se os termos da matria inerte, com isso a vida tem que prestar contas

    de si prpria. A morte, nesse sentido, explica-se por si mesma, pois o estado natural

    das coisas.

    nesse sentido que o ser precisa, para se firmar na existncia, impor-se

    como ser a partir justamente do no-ser, por um esforo externo, j que o no-ser conta

    com a generalidade quando se vislumbra o reino inorgnico em geral a regra a

    morte (OLIVEIRA, 2011, p.45). O resultado dessa argumentao conduz finitude do

    ser ou da perecibilidade do ser orgnico. A mudana na concepo e perspectiva do que

    seja a vida e a morte refletem o estado atual dos posicionamentos filosficos e do estado

    atual de degradao junto ao espao natural, to justificado que conduz Jonas a fazer

    tais reflexes. A partir disso, segue-se que a hiptese mais abrangente a do pan-

    mecanicismo, pois como bem descreve Jonas:

    o caso da vida, em sua raridade, realizado nas condies nicas e excepcionais do nosso planeta, o fato isolado e improvvel que parece subtrair-se lei bsica, sendo por isso negado em sua autonomia, isto , tendo que ser integrado na lei geral (JONAS, 2004, p.20).

    De fato, considerar a vida como um problema significa admitir a sua

    alienao no mundo mecnico. Portanto, diante desse quadro, explicar a vida sob uma

    ontologia universal da morte, quer dizer o mesmo que neg-la, pois ela se torna to

    somente uma variante das possibilidades daquilo que no tem vida.

    Portanto, o ser universal do mundo j se encontra estabelecido: a matria

    pura no espao. Em consequncia, uma vez que o organismo representa a vida no

    36

  • mundo, a pergunta que diz respeito vida passa a ser agora: de que maneira o

    organismo est relacionado com o ser j definido assim? Como esta forma de funo

    particular do mesmo pode ser reduzida lei geral em suma, como pode a vida ser

    reduzida no-vida? Nisso, Jonas conclui que: reduzir a vida ao que no tem vida no

    outra seno dissolver o particular no geral. Nosso pensamento encontra-se hoje sob o

    predomnio ontolgico da morte. O problema da vida um problema central da

    ontologia, e o problema que continua deixando intranqilas as modernas posies.

    Jonas sublinha que a dominao por parte da concepo dualista e sua

    importncia para o nosso contexto consiste em que ele trabalhou para retirar da esfera

    fsica os contedos espirituais (JONAS, 2004, p.22) e, por conseguinte, deixou um

    mundo privado de todos esses atributos. Enquanto que outrora a alma era dotada de todo

    o significado e dignidade metafsica, a partir desta concepo se disseca o organismo, o

    mundo passa a ser depurado de tais exigncias.

    Com isso, Jonas, a partir da crise do corpo orgnico, direciona a ateno

    para a crise latente de toda ontologia, pois sustenta que a ele que a pergunta ainda

    sem resposta da ontologia lembra o que o ser (JONAS, 2004, p.28). O problema

    ontolgico da vida assim apresentado pelo fato de a vida ter sido retirada do conjunto

    da natureza para sua condio peculiar. Nesse contexto, pode-se dizer que a concepo

    cartesiana, dualista, alm das ticas estritamente antropocntricas, promove uma

    dificuldade de compreenso do conceito de vida, ao mesmo tempo em que o prprio

    mundo se torna incompreensvel. Para Jonas, vida quer dizer vida material, logo se trata

    do corpo vivo, do ser orgnico.

    1.5 Contribuies da teoria da evoluo: o modo de ser da humanidade

    Ainda no percurso para delinear o princpio vida, se faz necessrio

    apresentar o pensamento jonasiano acerca de umas das teorias mais revolucionrias no

    interior das cincias biolgicas que manifesta seus ecos para as demais cincias que

    fazem uso de bases cientficas e biolgicas para explicar qualquer fenmeno natural que

    envolva o orgnico: a teoria da evoluo das espcies.

    37

  • O primeiro ponto que a evoluo passa a ser compreendida como uma

    dinmica geral da vida. Jonas afirma que a evoluo pressupe a existncia da espcie,

    pois justamente no interior de uma genealogia que o plano predeterminado ir

    evoluir (JONAS, 2004, p.53). O que se quer mostrar que a evoluo se refere

    origem no no sentido de algo mais poderoso e completo, mas de algo mais simples que

    se desdobra em diferentes e mais complexos contornos (OLIVEIRA, 2009, p.257).

    No entendimento de Jonas o conceito de evoluo, da maneira como

    apresentado, opunha-se ao da mecnica, continuando a implicar uma ou outra forma de

    ontologia clssica (JONAS, 2004, p.53) A implicao disto que a partir do instante

    em que a vida , progressivamente ela vai determinando suas prprias condies para

    o grande conjunto das variaes e variveis que a natureza apresenta. Diante disso,

    basta que se recorra ao conceito de metabolismo e tem-se justificado o que Jonas

    defende: o sistema [vivo] mesmo, em sua totalidade e continuamente, o resultado de

    sua atividade metablica e, ademais, que nenhuma parte desse resultado deixa de ser

    objeto do metabolismo, ao tempo que seu executor (JONAS 1998, p.23). Em outras

    palavras, o metabolismo do ser vivente se constri em seu prprio fazer. O ponto

    interessante disso que o metabolismo que caracteriza por excelncia o vivente no se

    reduz uma mera funo daquilo que vivo, mas como sua prpria composio, de

    modo que garanta a existncia.

    Doravante, o segundo ponto, e mais curioso, que a teoria da evoluo

    elimina as concepes de essncia e natureza imutvel, bem como elimina a concepo

    de finalidade (telos). Ou seja, a vida se resume na melhor das hipteses a uma

    grande e espetacular aventura. A finalidade, tornada suprflua at mesmo para a

    histria da vida, retirava-se inteiramente para a esfera da subjetividade (JONAS, 2004,

    p.55). At aqui, tem-se a impresso de que h uma fissura no iderio filosfico de

    Jonas, mas levemos em conta que se est tentando fundamentar o princpio

    responsabilidade em outro princpio maior: o princpio vida. Neste ponto, Jonas no

    abandonaria a ontologia, sendo que faz questo de assinalar os pontos fortes do

    evolucionismo.

    Prosseguindo, Jonas percebe que

    na histria da vida as condies tomam o lugar da essncia como princpio criador. As condies, sob a forma de ambiente, passam a ser um correlato necessrio ao conceito de organismo (...). O organismo considerado como

    38

  • determinado primariamente pelas condies de sua existncia, e a vida entendida mais como uma situao que envolve organismo e ambiente do que como a realizao de uma natureza autnoma. (JONAS, 2004, p.56)

    A partir daqui, ao se falar de vida e biocentrismo a concepo basilar

    exatamente essa: organismo e ambiente juntos formam um sistema que, de acordo com

    Jonas, determina o conceito bsico de vida. Vale ressaltar que as condies tomam o

    lugar da essncia e o ambiente no mais visto como algo externo, mas como algo que

    constitui o organismo vivo. Jonas deixa claro que o fato de a espcie no ser fixa,

    associado ao princpio do ambiente, despoja o sujeito da vida (...) da posse de

    determinaes originrias e imanentes (JONAS, 2004, p.57). Em outras palavras, Jonas

    v nessa concepo que o evolucionismo prope uma oportunidade de redefinio da

    concepo de vida. Tem-se: organismo e ambiente que constituem um sistema. E

    sistema vital, alm disso, do equilbrio relacional entre esses dois plos que se

    constituem o fenmeno da vida e as formas de ser e de viver (OLIVEIRA, 2009,

    p.257).

    A maior contribuio do evolucionismo foi a destruio do humano do

    lugar especial ocupado por ele no reino da vida e que lhe dava possibilidade de avanar

    sobre todos os demais mbitos do extra-humano (OLIVEIRA, 2011, p.54). E a maior

    implicao disso que a razo se apresenta como to somente um meio de

    sobrevivncia da espcie. A consequncia no iderio do princpio vida que o reino

    da alma era reintegrado, a partir do ser humano, a todo o reino da vida (JONAS, 2004,

    p.68). E que a esfera do espiritual passaria a ser um componente da vida como um todo:

    um complemento lgico genealogia cientfica da vida (JONAS, 2004, p.68). Disso

    pode-se inferir que a definio metafsica do ser humano sustenta que o ser humano

    existe na natureza integrado com todas as outras realidades vivas ou inanimadas: como

    todos, somos um produto da physis (PEGORARO, 2010, p.167). Neste caso, a

    humanidade se constitui, cientificamente falando, de um sistema vital em curso, do qual

    esta mesma humanidade pode se alterar sob a perspectiva do homo faber.

    Tomando como referncia o problema do dualismo moderno que

    promoveu a separao radical entre orgnico e espiritual, Jonas parte da hiptese inicial

    de que o princpio efetiva-se no fato de que a estrutura do organismo j prefigura o

    espiritual esta a tese inicial de uma filosofia da vida. O dualismo, sublinha Jonas, foi

    39

  • instaurado atravs do monismo materialista e idealista. Na teoria da evoluo, retoma-se

    o materialismo, mas tambm se expressa a possibilidade de superao deste.

    A teoria da evoluo tem como consequncia o alargamento das