dissertacao pedro trindadeseg

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PEDRO MORAES TRINDADE DO LADO DE CÁ DA KALUNGA: OS AFRICANOS ANGOLAS EM SALVADOR - 1800-1864 Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em História Social da Universidade Federal da Bahia, como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre. Orientador: Prof. Dr. Carlos Eugênio Líbano Soares. Salvador Bahia 2008

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Dissertacao Pedro Trindadeseg

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  • PEDRO MORAES TRINDADE

    DO LADO DE C DA KALUNGA:

    OS AFRICANOS ANGOLAS EM SALVADOR - 1800-1864

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-

    Graduao em Histria Social da Universidade

    Federal da Bahia, como requisito parcial para

    obteno do grau de Mestre.

    Orientador: Prof. Dr. Carlos Eugnio Lbano

    Soares.

    Salvador Bahia

    2008

  • DO LAD0 DE CA DA KALUNGA: A PRESENCA DOS AFRICANOS ANGOLAS NA BAHIA - 1800-1864

    DissertaG30 de Mestrado submetida ao Programa de P6s-Gradua~5o em Hist6ria Social da Universidade Federal da Bahia - UFBA, como parte dos requisitos necessirios A obtenqso do grau de Mestre em Hist6ria Social.

    Aprovada por:

    BANCA EXAMIIVADORA 0 Prof. Dr. Carl ugenio Libano Soares (Orientador) Prof. Dr. Renato da Silveira

    P- Prof" Dra. Lucilene Reginald0

    Salvador, 15 de setembro de 2008.

  • Para Cludia,

    minha mulher, historiadora e co-orientadora competentssima.

    Para os meus filhos e filhas,

    quando tiverem dvidas quanto ao caminho a trilhar, sigam-me.

  • AGRADECIMENTOS

    Esta Dissertao de Mestrado no teria sido possvel sem o envolvimento direto ou

    indireto de muitas pessoas e instituies, s quais me cabe exprimir agradecimentos. Algumas

    dessas pessoas tiveram uma participao singular pela preocupao que externavam em ver,

    logo, passar estes dois anos da minha gravidez. Sim, foi um parto. E a est a criana forte e robusta graas, em primeiro lugar, aos meus pais, Alice Moraes Trindade e Crispim Trindade

    in memoriam por terem, na linguagem deles, me mostrado um mundo onde sem luta no se

    vence batalha.

    Ao professor Carlos Eugnio Lbano Soares que, estrategicamente, disponibilizou-me

    uma vara com anzol e tive que sair procura do peixe. Mas no me deixou sozinho quando

    me viu lida com tubares cuja captura carecia de estratgias mais apuradas. Emprestou-me livros de sua biblioteca particular, e me atendeu a qualquer momento que o procurei.

    Eugnio tem uma forma diferenciada de administrar conflitos, e sempre consegue chegar a

    um denominador comum. Foi mais que um orientador. Foi um amigo.

    O professor, e amigo, Joo Reis muito contribuiu cedendo-me fontes documentais e

    indicando bibliografias, alm de estar sempre disposto a tirar as dvidas que me surgiram,

    para as quais eu sabia que ele tinha respostas. Estudar a morte, a partir da sua obra, uma

    festa.

    Agradeo aos funcionrios dos arquivos e bibliotecas por onde passei. Foi de suma

    importncia a ajuda da Professora Ventia Durando Braga Rios e de Renata Soraya Bahia de

    Oliveira, do Laboratrio Eugnio Veiga, da UCSAL, por terem me disponibilizado fontes

    documentais que sem elas este trabalho no teria acontecido a contento. Carlos Francisco da

    Silva Jnior deu um grande auxlio trazendo-nos alguns angolas apresentados no primeiro

    captulo. Com o seu faro aguado de pesquisador, muito nos ajudou na fase inicial da pesquisa

    Agradecimentos tambm a Marina da Silva Santos da Biblioteca da FFCH/UFBA e a todos os

    outros funcionrios.

    O apoio da CAPES alicerou-me dando-me condies para atender s minhas

    necessidades acadmicas, cujos gastos eu no suportaria sem to significante ajuda. Sou

    muito grato.

    Aos professores, colegas e funcionrios do Mestrado. s professoras Maria Hilda

    Baqueiro Paraso, Lgia Bellini, Lina Maria Brando de Aras pelo tratamento respeitoso que

    sempre me dispensaram. Meus agradecimentos. Ao professor Gino Negro, muito obrigado

    pela lio. Aos funcionrios Soaria Ariane Ferreira e Jos Carlos Cavalcante Caldas Jnior,

    que sempre me presentearam com as suas formas carinhosas de atender, muito obrigado.

    Agradeo aos membros da linha de pesquisa Escravido e Inveno da Liberdade, do

    Programa de Ps-Graduao em Histria da UFBA que muito contriburam com as

    observaes que fizeram, referente ao segundo captulo desta dissertao. Foi, realmente,

    enriquecedor. Da mesma forma os professores Walter Fraga Filho e Nicolau Pars quando no

    momento da minha qualificao. Com o segundo, ainda tive o prazer de desfrutar dos seus

    conhecimentos durante o estgio docente.

  • Aos professores Lucilene Reginaldo e Renato da Silveira eu no poderia ter deixado

    de incomod-los, sabendo que os dois so profundos conhecedores do meu tema. Foram

    sempre solcitos.

    J que comparei essa dissertao ao nascimento de uma criana, Cludia foi a obstetra.

    Acompanhou a gestao at o momento do corte do cordo umbilical. A tradio da palmada

    para o primeiro choro, neste caso, quem levou foi o parturiente, vrias vezes, antes do nascimento do beb, paradoxalmente, para evitar um possvel aborto. Cludia esteve o tempo

    todo contribuindo com a experincia adquirida no seu curso de Mestrado e acredito que, pela

    primeira vez, um mestrando teve uma co-orientadora, vinte e quatro por dia ao seu lado,

    literalmente, inclusive, dormindo na mesma cama.

    Aos meus filhos, s agora tenho tempo para explicar o por que, s vezes, no pude dar

    uma resposta completa para as suas perguntas. Para os adultos se torna mais fcil o

    entendimento, mas para os mais novos cabe uma explicao. o caso de Olujimi, Naila e

    Dalila: estou de volta e s ordens.

    Aos meus alunos do Grupo de Capoeira Angola Pelourinho que entenderam a minha

    ausncia nas aulas, no permitindo que isso resultasse em alterao na nossa proposta de

    trabalho, o que me d fora para retornar s atividades com mais vigor. Aos contramestres do

    GCAP, especialmente a Jorge, muito obrigado. Por falar em GCAP, no poderia esquecer os

    meus alunos de So Luiz de Paraitinga, em So Paulo, na pessoa de David, o qual esteve

    sempre a postos quando precisei de alguma fonte bibliogrfica, s disponvel em uma das

    Universidades paulistas. Helen Catalina, foi a minha salvao quando eu descobria que tinha

    chegado o meu limite quanto ao conhecimento da lngua inglesa. Nunca colocou obstculo.

    A Hugo Nascimento da Silva, Tambalaj, in memorian, eterna saudade.

    Vrios amigos me ajudaram de alguma forma, mas quatro deles tiveram participao

    especial durante a minha luta para concretizao desse trabalho Luiz Leal, meu irmo, tem um

    lugar especial em meu corao; Mr. Robert Cooper, my afro-american dad; o Mestre Jair

    Moura e o Jos Augusto Leal. Esses amigos estiveram, o tempo todo, na platia, sempre

    preparados para preencher espaos que significassem ameaa ao meu sucesso. Que Ogum e

    seus auxiliares lhes protejam de todo mal.

    Para finalizar, agradeo ao Alapini Deoscoredes Maximiano dos Santos, Mestre Didi,

    pelo carinho, confiana e por compreender a minha necessidade de estar, durante esse

    perodo, fisicamente distante do Il Asip, mas sempre presente espiritualmente. Que Bab

    Abikunan d muitos anos de vida e sade a todos dessa casa.

  • RESUMO

    Esta dissertao tem o objetivo de estudar a presena e a movimentao dos africanos do

    grupo banto, de nao angola, no sculo XIX, na cidade de salvador no perodo de 1800 a

    1864. Discutimos os rituais de sepultamento de africanos angolas atravs dos registros de

    bitos, alem de fazermos um estudo demogrfico referente a essa nao nas freguesias da S,

    Conceio da Praia e Santo Antnio Alm do Carmo. Buscamos tambm, atravs dos

    anncios de jornal, fazer um levantamento das fugas. Alm de interpretar as estratgias de

    resistncia e as imagens identitrias desses africanos na viso senhorial. Finalmente destaco a

    trajetria dos africanos livres, de nao angola traficados aps o ano de 1831, o que era

    proibido por lei.

    Palavras-chave: frica-Central, Nao Angola, Resistncia, Escravido - Bahia Histria Sculo XIX.

  • ABSTRACT

    The aim of this thesis is to study the presence and movement of Africans from the Bantu

    group, of the Angola nation, from the 19th

    century, in the city of Salvador, during the period

    from 1800 to 1864. I discuss the burial rituals of Angolan Africans through death records as

    well as doing a demographic study referring to this nation in the parishes of S, Conceio da

    Praia and Santo Antnio Alm do Carmo. Also, using newspaper announcements we did a

    survey of escapes. Moreover, I interpet the resistance strategies and the images with which

    the masters identified these Africans.. Finally, I highlight the trajectory of Africans liberated

    from the Angola nation that were trafficked after the year 1831, which was prohibited by law.

    Keywords: Central-frica, Angola Nation, Resistence, slavery, Bahia History, 19th Century.

  • SUMRIO

    Introduo ..................................................................................................................... 10

    Captulo 1.

    Alm da morte: padres de enterro de africanos Angolas na cidade de

    Salvador, 1800-1850 ..................................................................................................... 20

    Captulo 2.

    No caminho da liberdade: os Angolas na imprensa e nas fontes policiais da

    Cidade da Salvador da primeira metade do sculo XIX ........................................... 47

    Captulo 3.

    Os derradeiros malungos: africanos livres da nao Angola na Bahia

    1851-1864 ....................................................................................................................... 72

    EPLOGO ..................................................................................................................... 97

    FONTES E REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ................................................... 99

  • TABELAS E ILUSTRAO

    Tabelas.

    1. Africanos por nao em termos de bitos das Freguesias da Conceio da Praia, Santo

    Antnio Alm do Carmo e S, 1800-1850 ..................................................................... 22

    2. Freguesias de enterro de africanos de nao Angola em Salvador, 1800-1850 ......... 24

    3. Causa da morte dos africanos de nao Angola das Freguesias da S, Santo

    Antnio Alm do Carmo e Conceio da Praia, 1800-1850 .......................................... 25

    4. Vestes do enterro de africanos Angolas na cidade de Salvador, 1800-1850 .............. 34

    5. Local de sepultamento dos Angolas registrados nos livros de bitos da

    Freguesia de Santo Antnio Alm do Carmo, 1800-1850.............................................. 35

    6. Local de sepultamento dos Angolas registrados nos livros de bitos da Freguesia

    da S, 1800-1850 ............................................................................................................ 36

    7. Local de sepultamento de Angolas registrados nos livros de bitos da Freguesia da

    Conceio da Praia, 1800-1850 ...................................................................................... 37

    8. Sepultamento nas irmandades das Freguesias da S, Conceio da Praia e

    Santo Antnio Alm do Carmo, 1800-1850 ................................................................... 38

    9. Naes dos africanos livres 1851-1864 .................................................................. 73 10. Data de apreenso dos africanos livres .................................................................... 74

    11. Nao e comportamento dos africanos livres .......................................................... 77

    12. Faixa etria dos africanos livres ............................................................................... 86 13. Local de trabalho dos africanos livres Angolas ................................................................... 87

    Ilustrao.

    1. Barbeiros ambulantes. Jean Baptiste Debret .............................................................. 56

    2. Negro trabalhando com palha. Joo Goston, Bahia, c. 1870, acervo IMS

    (Instituto Moreira Sales). Publicado Ermakoff, G. O negro na fotografia brasileira

    do sculo XIX. 2004 ....................................................................................................... 82

  • 10

    INTRODUO

    Lembro-me quando, no incio da dcada de 1980, fiz parte de uma delegao baiana

    que foi enviada pela Prefeitura Municipal de Salvador a Angola com o objetivo de discutir,

    junto administrao da cidade de Luanda, uma parceria que teria incio com a inaugurao

    de um espao cultural em cada cidade: a Casa de Angola em Salvador, e a Casa de Salvador

    em Angola. Fui selecionado para compor a delegao enquanto mestre de capoeira Angola,

    uma manifestao reconhecidamente de matriz afro-centro-ocidental.1

    A diferena de quatro horas de fuso horrio e a ansiedade de ver concretizado o

    projeto que me levou quele pas, tirava as minhas horas de sono, do que eu aproveitava para

    ficar, j naquele momento, ao meu modo, dialogando com a outra margem do Atlntico

    negro, conversando com um soldado da fora revolucionria, FAPLA, de planto na entrada

    do hotel onde estvamos hospedados, em Luanda, bem em frente a um dos portos onde eram

    embarcados os africanos ocidentais em direo s Amricas.2 Logo estabelecemos laos

    identitrios quando lhe disse que, alm de brasileiro, ensinava Capoeira Angola uma das

    vrias manifestaes ainda vivas no Brasil, conforme o baiano Manuel Querino, com fortes

    representaes simblicas das culturas centro africanas.3 E o soldado comeou o seu relato

    repleto de herosmo e altas doses de ufanismo quanto aos feitos dos seus compatriotas na luta

    por independncia contra o jugo portugus que teve incio nos primrdios do sculo XV.

    Fiquei confuso quando tentei associar toda exposio do soldado ao que a

    historiografia da escravido no Brasil, anterior dcada de 1980, insistia em identificar os

    africanos escravizados, chegados daquelas cercanias, com uma certa tendncia a acomodao

    diante do cativeiro. Duas dcadas aps, em 2004, o professor Carlos Eugnio Lbano Soares

    migra do Rio de Janeiro para Salvador, para compor o quadro docente do departamento de

    Ps Graduao em Histria da Universidade Federal da Bahia, UFBA, aps presentear a

    capoeira e seus adeptos, praticantes e/ou pesquisadores, com a excelente obra A Negregada

    1 Sobre o carter Centro-africano da capoeira, ver Obi Desh J. T, Combat and the Crossing of the Kalunga, in

    Linda M. Heywood (org) Central Africans and Cultural Transformations in the American Diaspora. (Cambridge

    University Press, 2002); Robert Farris Thompson, Black martial arts of the Caribbean, Review: Latin American Literature and Arts,( n 37, jan-jun, 1987), pp. 44-47; Carlos Eugnio Lbano Soares, A Capoeira

    Escrava e outras tradies rebeldes no Rio de Janeiro, 1808-1850, Campinas, Unicamp, 2003; Edson Carneiro,

    Religies Negras. Negros Bantos. Civilizao Brasileira, 3 Edio, 1991. pp. 211-220, entre outros. 2 A FAPLA (Foras Armadas Populares de Angola) foi um grupo guerrilheiro criado em 1 de agosto de 1974,

    quando da realizao da 3 reunio plenria do MPLA. Extinta aps a guerra de libertao, e substituda pela

    FAA (Foras Armadas Angolanas). 3Manuel Querino, A raa africana e os seus costumes na Bahia, Salvador, Theatro XVIII/P555, 2006, p.27.

  • 11

    Instituio, que trata da presena dos capoeiras na Corte Imperial do Rio de Janeiro no

    perodo entre 1850 e 1890 e, em seguida, A Capoeira Escrava que discorre, mais uma vez,

    sobre a ao dos capoeiras no Rio de Janeiro da primeira metade do sculo XIX.4

    A leitura dessas obras estimulou em mim a curiosidade em querer saber o porqu das

    contradies entre a viso do soldado das FAPLA e as idias que eu tinha do africano Angola

    na dispora. A obra A capoeira escrava, por exemplo, foi a que mais aguou a minha

    curiosidade em querer desvendar esse mistrio, devido forma apimentada como o professor

    apresenta os africanos, a maioria provindos da frica Centro-Ocidental, na relao com uma

    sociedade, conforme o autor, em constante preocupao para que a Corte no viesse a ser

    palco de acontecimentos semelhantes aos que viveu a provncia da Bahia em 1835, o que se

    acentuou com a chegada ao Rio dos chamados minas- nags chegados daquela regio. 5

    Tambm o longo tempo de prtica, ensino e pesquisa da capoeira, interpretando-a

    sempre como uma manifestao holstica e atrelada aos elementos da cosmogonia banto, a

    convivncia em ambientes onde alguma manifestao de matriz centro-africana como o

    candombl de Angola, e o samba levou-me a decidir por pesquisar a participao dos

    africanos de nao Angola na formao da sociedade afro-baiana, atravs do Curso de Ps

    Graduao em Histria Social da UFBA, para o qu tive o estmulo do professor Carlos

    Eugnio. No por acaso, o escolhi para mostrar-me os caminhos que me levassem ao meu

    objetivo.

    A historiografia da escravido na Bahia tem enfatizado a presena dos africanos

    ocidentais, como nos informam vrios trabalhos sobre o tema. Entre eles, a obra de Joo Reis

    a que esmia toda a saga dos africanos muulmanos, conhecidos na Bahia como mals,

    cuja revolta aconteceu no meado do sculo XIX (1835).6 Nas ltimas dcadas, alguns

    historiadores tm se debruado sobre a presena dos africanos, oriundos da frica sub-

    equatorial, com nfase para a nao Angola.7 Dentre as vrias naes africanas identificadas

    4 Carlos Eugnio Lbano Soares, A negregada instituio: os capoeiras na corte imperial 1850-1890, Rio de

    Janeiro, Access, 1999; Soares, A capoeira escrava. 5 Para saber mais, ver Joo Jos Reis Rebelio Escrava no Brasil. A histria do levante dos mals em 1835

    So Paulo: Companhia das Letras, 2003. 6Joo Jos Reis, Rebelio escrava no Brasil: a histria do levante dos mals em 1835, Edio Revista e

    Ampliada. So Paulo: Companhia das Letras, 2003. Para outros trabalhos sobre a populao africana ocidental

    na Bahia ver, Luis Nicolau Pars, A Formao do candombl: histria e ritual da nao jeje na Bahia,

    Campinas, SP, Editora Unicamp, 2006; Pierre Verger, Fluxo e refluxo do trfico de escravos entre o Golfo do

    Benin e a Bahia de Todos os Santos, So Paulo: Corrupio, 1987; Nina Rodrigues, Os africanos no Brasil,

    Braslia: Editora UNB, 2004, entre outros. 7 Ver, por exemplo, Lucilene Reginaldo, O Rosrio dos Angolas: irmandades negras, experincias escravas e

    identidades africanas na Bahia setecentista, (Tese de doutorado em Histria Social, Universidade Estadual de Campinas, 2005); para o Rio de Janeiro, ver Soares, A capoeira escrava; Luis Felipe de Alencastro, O Trato dos

    Viventes, formao do Brasil no Atlntico Sul, So Paulo, Companhia das Letras, 2000, entre outras.

  • 12

    nas Amricas, especificamente no Brasil, o grupo conhecido como Angola merece destaque

    pela vastido da sua distribuio geogrfica no continente americano, e sua alta presena

    numrica, alm das caractersticas que os tornam singulares, apesar dos vrios marcadores

    identitrios tnicos oriundos da frica que os faziam diferentes entre si. Vrios estudiosos das

    culturas africanas observaram que os africanos centro-ocidentais, independente da

    diversidade, esto profundamente ligados cultural, lingstica e historicamente. Eles h mais

    de dois mil anos, compartilham uma origem comum.8

    Cabe aqui um parntese para a explicao do termo nao da forma como era usado

    pelos traficantes de escravos. A nao dos africanos escravizados estava muitas vezes

    relacionada ao porto onde os africanos fossem embarcados. Outras vezes estes nomes eram

    ligados a etnnimos de grupos tnicos africanos restritos ou de regies internas, como

    Cassange, a grande feira de venda de escravos do norte de Angola.9 Ao receberem o batismo

    na frica ou na Amrica, pouco aps chegarem aqui recebiam etnnimos genricos que

    muitas vezes no os identificava com nenhuma rea do interior de procedncia geogrfica ou

    regional mais especfica. Na dispora os traficantes no tinham nenhuma preocupao quanto

    s diferenas que caracterizavam cada etnia componente das diversas naes. Especificamente

    quanto ao termo Angola, era aplicado indistintamente a todos aqueles embarcados no porto

    de Luanda. Mas como chegamos a esta concluso? Quais autores nos levaram para este

    caminho?

    Nina Rodrigues, mdico fundador da antropologia criminal brasileira, foi o primeiro a

    se preocupar com a problemtica dos africanos de nao Angola na Bahia, sem entrar no

    mrito quanto sua viso preconceituosa, o que seria puro anacronismo. 10

    Quando o fizemos

    foi unicamente para enfatizar o porque da minha inquietao em querer reconhecer o lugar

    dos Angolas na formao da nossa sociedade. Nina, por exemplo, fez eco s palavras de

    Silvio Romero quando este afirma que os africanos oriundos da frica Central So gentes

    ainda no perodo do fetichismo, brutais, submissos, robustos, os mais prprios para os rduos

    8 Joseph C. Miller, Way of Death: Merchant Capitalism and the Angolan Slave Trade 1730-1830, Madison,

    University of Wisconsin Press, 1988; Carlos Vogt e Peter Fry, A frica no Brasil: Cafund, Campinas, So

    Paulo, Editora da Unicamp, 1996; Mary C. Karasch, Central Africans in Central Brazil, 1780-1835 in Heywood, (org.) Central Africans And Cultural Transformations In The American Diaspora, pp. 117-151, entre

    outros. 9 o caso dos Nags, nome derivado dos Anagono, um dos grupos falantes de lnguas yoruba traficados

    inicialmente na primeira metade do sculo XVIII pelos daomeanos para a Bahia. Ver Nicolau Pars, A nagoizao do candombl baiano in Ligia Belini, Everton Sales Souza e Gabriela Sampaio, Formas de crer: ensaios de histria religiosa do mundo afro-brasileiro, sculos XIV-XXI, Salvador, Edufba/Corrupio, 2006, pp.

    299-329. 10

    Rodrigues, Os africanos no Brasil.

  • 13

    trabalhos da nossa lavoura rudimentar.11 Apesar de Nina s ter encontrado, nos seus estudos

    sobre os africanos na Salvador da virada do sculo XX uns trs congos e alguns Angolas,

    no deixou de ver os negros da frica Central como parte importante da composio tnica do

    povo brasileiro.

    Seguindo os passos de Nina Rodrigues, mas preocupado em chamar a ateno para a

    presena dos Angolas na formao da sociedade baiana, Manuel Querino, na virada do sculo

    XIX para o XX, comenta a vida cultural e o legado dos africanos na Bahia, dando nfase aos

    Angolas. Um dos seus legados era a capoeira Angola, forma de luta e folguedo sempre

    presente nas festas de largo do incio do sculo XX.12

    So estes os primeiros estudiosos a

    localizar a presena dos Angolas na Bahia, confirmados por Jos Ramos Tinhoro quando

    este nos informa das vrias manifestaes de matriz banto como os batuques e calundus, alm

    de instrumentos musicais, como o berimbau, que at hoje encontramos em manifestaes

    reconhecidamente de origem centro-ocidental.13

    No meado do sculo XX, Edison Carneiro retoma o fio da meada com a publicao de

    Negros Bantos, em cuja obra contesta o pouco caso de Nina Rodrigues quanto quantidade

    de Angolas na Bahia. Apesar de Carneiro seguir Nina Rodrigues questionando a inteligncia e

    cultura Angolas ele mencionou que os negros bantos no so assim para desprezar quanto ao

    problema do negro na Bahia. Provam-no as festas populares do boi, identificadas por Artur

    Ramos, como de influncia banta [...].14

    Outro autor da poca que se ocupou dos Angolas foi Luis Vianna Filho, que destacou

    a superioridade numrica deste grupo tnico nas importaes negreiras durante o sculo XVII,

    denominada por ele de Ciclo de Angola.15 Este autor, mesmo deixando transparecer

    apimentadas idias preconceituosas com relao aos Angolas, no deixou de observar toda

    influncia das culturas bantos na formao da sociedade baiana apontando, como exemplo,

    manifestaes de razes afro centrais como a congada, a capoeira, o culto a So Benedito e

    Nossa Senhora do Rosrio. 16

    Gilberto Freyre, em Recife, quando se preocupou com os Angolas, o fez mostrando a

    importncia de se estudar os anncios de fugas de escravos como fonte preciosa da histria do

    11

    Silvio Romero apud, Ibid, p.34. 12

    Manuel Querino, Costumes africanos no Brasil, Recife, Ed. Massangano, 1988, p. 43. 13

    Jos Ramos Tinhoro, Os sons dos negros no Brasil, So Paulo: Art Editora, 1988 (1928), p.26. 14

    Carneiro, Religies Negras. Negros bantos, p 29. 15

    Luis Vianna Filho, O negro na Bahia, So Paulo, Livraria Jos Olmpio Editora, 1946, p.48. 16

    Ibid., pp.56-57.

  • 14

    regime escravista e de suas vtimas africanas e afro descendentes, o que acredito vlido,

    tambm, para a histria da Bahia.17

    Nas ltimas dcadas, antroplogos e historiadores tm se voltado para a necessidade

    de estudar a cultura Angola nas disporas, no podendo a Bahia ficar de fora desse interesse.

    Todos estes estudiosos, norte-americanos em sua maioria, so concordes em afirmar o peso

    considervel dos africanos de lnguas banto, na formao da moderna cultura afro-

    americana.18

    Para o Brasil, cabe-nos destacar Mary Karasch e Robert Slenes. A primeira escreveu

    um trabalho clssico sobre escravido no Rio de Janeiro que mostra o largo predomnio dos

    africanos centro-ocidentais na escravatura carioca.19

    Mas o artigo de Robert Slenes que nos

    mostra como os bantos construram uma identidade prpria em uma determinada regio do

    sudeste brasileiro: o Vale do Paraba.20

    Este processo pode tambm ter ocorrido na Bahia,

    carecendo, unicamente, de investigao mais aprofundada. O artigo de Slenes um bom

    argumento da forma possvel da organizao de uma identidade Angola na Bahia oitocentista.

    Peter Fry e Carlos Vogt, num trabalho singular nos reporta ao que caracteriza a estreita

    identidade entre os centro ocidentais a similaridade lingstica apresentando-nos uma

    comunidade no sudeste brasileiro (Cafund em Sorocaba-SP) onde, at hoje, tm sido

    preservados elementos lingsticos remanescentes da experincia do trfico negreiro.21

    Os estudos sobre escravido, de Joo Reis sero tambm importantes para analisar as

    relaes das vrias naes africanas, incluindo-se a os Angolas, durante o processo de

    organizao de vrias revoltas. Reis, inclusive, critica os [...] historiadores e antroplogos

    adeptos de evolucionismos de diversas espcies dando o exemplo de Palmares como prova

    da aleivosia daqueles que acreditam ser os africanos da frica Central submissos e cordiais. 22

    Os estudos de Maria Ins Oliveira nos ensinam como as identidades de Nao entre

    africanos foram inventadas dentro da escravido na Amrica, no trazidas intactas da frica.

    A autora enfatiza a movimentao dos africanos dentro da comunidade dos parentes de

    naes e tambm em situaes de oposio com outros grupos e com a sociedade dominante.

    17

    Gilberto Freyre, Os escravos nos anncios de jornais, Recife Ed. Massangano, 1988. 18

    Uma excelente coletnea destes estudiosos de lngua inglesa est em Heywood (org.) Central Africans And Cultural Transformations In The American Diaspora. Um trabalho importante sobre a cultura afro-americana

    Sidney Mintz e Richard Price, O nascimento da cultura afro-americana, Rio de Janeiro, Pallas, 2001. 19

    Mary Karasch, A vida dos escravos no Rio de Janeiro, 1808 1850, So Paulo, Companhia das Letras, 2000. 20

    Robert Slenes Malungu NGoma Vem: frica encoberta e descoberta no Brasil, Luanda, Cadernos do Museu de Escravatura, 1995. 21

    Vogt e Fry, A frica. 22

    Reis. Rebelio escrava, p. 330

  • 15

    Conforme a autora, os africanos procuravam viver entre os seus a integrarem-se na

    sociedade baiana [...].23 Alm de Maria Ins, outros estudiosos das relaes inter -tnicas na

    Bahia abordam a questo a partir de diferentes contextos. Essas variadas abordagens so

    cuidadosamente analisadas por ns e aplicadas no auxlio das interpretaes da

    movimentao dos Angolas na cidade de Salvador em busca da liberdade. Nicolau Pars, por

    exemplo, apontou as posies de assimilao e resistncia entre os africanos. Pars citou

    tendncias de abrasileiramento dos Jejes no sculo XVIII e XIX:

    [...] Dentro desse grupo tnico [jejes] existia a tendncia ao abrasileiramento, isto , indivduos que se ajustavam e tratavam de adotar aos novos costumes dominados pelos

    valores de uma elite branca e a tendncia contrria de africanizao, mantida por aqueles indivduos que visavam manter e reproduzir, na medida do possvel, as prticas

    e costumes da sua terra de origem.24

    Como exemplo desse abrasileiramento o autor citou pessoas que adotaram o

    catolicismo como religio. Segundo ele, essas assimilaes podiam variar de acordo com o

    contexto poltico e as possibilidades de mobilidade e ascenso social.25 Porm importante

    compreender que essa suposta assimilao est em constante relao com uma posio de

    resistncia diante da sociedade branca. Em cada caso o contexto poltico precisa ser analisado

    com cuidado, pois foi este elemento que nos deu instrumentos para entendermos a dinmica

    social da populao africana em questo. No que concerne religiosidade de origem centro

    ocidental pudemos observar as vrias estratgias usadas por estes africanos com o objetivo de

    preservarem as suas relaes sociais neste lado do atlntico.

    Em artigo recente Joseph Miller, ao estudar o incio do trfico escravo na frica

    Centro Ocidental, no sculo XV, trata de maneira particularmente feliz da construo da

    identidade de nao Congo em contraposio s identidades tnicas locais. Suas palavras

    podem ser perfeitamente utilizadas para entender aquilo que chamamos a formao da nao

    Angola:

    Os centro-africanos teriam descoberto novas identidades sociais alm dessas locais, j

    mltiplas, que se formaram ao longo de seu caminho de sofrimento em direo costa.

    Acorrentados a outros de origem culturais lingsticas no familiares, eles devem ter

    obtido um senso de familiaridade uns com os outros e criado alianas neste processo, que os europeus denominavam simplesmente de congo. Eles teriam ampliado essas caractersticas como base para a colaborao, por pura sobrevivncia, enquanto

    permaneciam aprisionados perto da costa, juntamente com muitos outros, aguardando a

    23

    Maria Ins Corts de Oliveira. Viver e Morrer no meio dos seus. Revista USP, n28 (USP, dez/janfev, 1995-1996), PP174-193; Quem eram os negros da Guin?, Afro-Asia , 19-20(1997), p.193 24

    Pars, A Formao do Candombl, p.93-94 25

    Ibid., p.95

  • 16

    transferncia para os navios. Invenes europias e africanas totalmente separadas,

    baseadas em aspectos diferentes do mesmo fundamento cultural, convergiram deste modo

    para estimular comunidades tnicas como resultado das confrontaes desumanizadoras da escravido. As experincias subseqentes de confinamento durante a

    Passagem do Meio (travessia do Atlntico) e as circunstncias especficas que

    encontraram nas Amricas criaram incentivos para mudana [...] O significado de ser

    congo na dispora mudou, concomitantemente, por intermdio das vidas individuais, de grupo em grupo, medida que aportavam e nas circunstncias variadas que

    encontraram nas Amricas [...]. 26

    Dentre os processos de formao das identidades tnicas africanas, sem dvida que as

    irmandades religiosas representaram uma complexa teia de negociao e conflito. Os registros

    de bitos da nossa pesquisa revelaram que determinadas irmandades negras como a do

    Rosrio dos Pretos de Joo Pereira e a de So Benedito, instalada na Igreja de So Francisco

    foram os locais procurados com freqncia para sepultamento dos Angolas, alm da

    conhecida irmandade do Rosrio das Portas do Carmo. Nesta etapa, a excelente obra de

    Lucilene Reginaldo foi de fundamental importncia por nos remeter a organizaes ligadas

    realidade econmica e scio-poltica do escravismo no perodo colonial fundamentais para os

    africanos da nao Angola, isto em moldes bastante parecidos com as organizaes da

    atualidade; tendo como foco, a possvel aglutinao das diversas etnias africanas com o

    objetivo de se organizarem e, posteriormente, planejarem aes em favor de direitos que s

    seriam conseguidos atravs de uma organizao social paralela s da classe socialmente

    dominante. Nos registros de bitos, detectamos diferentes rituais de sepultamento entre os

    Angolas, o que demonstra que eles forjaram diferentes identidades sociais. Para a

    interpretao desta questo, ser fundamental a mais importante obra que trata dos ritos

    fnebres em Salvador no sculo XIX, de autoria de Joo Reis, cujo trabalho nos chama a

    ateno para o significado das vestes fnebres, fosse para proteger o defunto na viagem de

    encontro aos seus ancestrais ou para indicar, como j afirmamos, a sua posio social. Como

    disse nosso autor, a documentao dos sepultos na Bahia oitocentista aponta um variado

    guarda roupa fnebre, que inclua as diversas mortalhas de santo, fardas, batinas sacerdotais e

    at roupas comuns.27

    As abordagens tericas tiveram como suporte a leitura de obras de autores que

    teorizam as interaes socioculturais. Para a Histria Social, recorri ajuda de E. P.

    Thompson quando quis discutir os problemas de ordem cultural que a sociedade dominante

    26

    Joseph Miller. A frica Central durante a era do comrcio de escravizados, de 1490 1850 in Heywood Dispora negra no Brasil, p .53. 27

    Joo Jos Reis, A morte uma festa: ritos fnebres e revolta popular no sculo XIX, So Paulo: Companhia

    das Letras, 2004, pp.104-115

  • 17

    no nosso caso a sociedade escravagista criava ao impedir que os pobres pudessem dar

    continuidade a suas prticas culturais, que, em funo do longo tempo, j configuravam uma

    espcie de lei costumeira. Acredita o autor que a lgica da sociedade passa a valer quando

    alguma lei criada e esta assimilada pelos costumes sociais, no alterando-os, com pequeno

    impacto para a comunidade.28

    Vali-me da Antropologia para o entendimento de conceitos s melhor dissecados por

    essa vertente cientfica. Foi de suma importncia, por exemplo, o trabalho de Roque Laraia

    para o entendimento das vrias formas de determinismos dos quais foram vtimas os africanos

    nas Amricas, principalmente os Angolas. No contexto da sociedade escravista da Bahia, do

    sculo XIX, quando da preferncia dos senhores por africanos de outras naes para

    determinadas tarefas, principalmente no ambiente urbano, em detrimento daqueles

    denominados Angola, apresentando como justificativa para tal escolha a falta de capacidade

    daqueles indivduos de origem centro-africanas.29

    Conforme, ainda, o mesmo autor, no

    possvel admitir a idia do determinismo geogrfico, ou seja, a admisso da ao mecnica

    das foras naturais sobre uma humanidade puramente receptiva.30 Afirma profeticamente

    Artur Ramos que No podemos erguer categorias de superioridades e inferioridades de um

    povo em relao a outro. O que se considera uma aquisio cultural de grande vantagem para

    uns, pode representar grandes inconvenientes para outros [...].31

    Esta dissertao tem o objetivo de estudar a presena e a movimentao dos africanos

    de nao Angola na cidade de Salvador no perodo de 1800 a 1864. A obra est dividida em

    trs captulos. O primeiro, intitulado Alm da morte: padres de enterro de africanos

    Angolas na cidade de Salvador, 1800-1850, traz um estudo da demografia da populao

    africana em trs freguesias centrais da cidade de Salvador - S, Conceio da Praia e Santo

    Antnio Alm do Carmo - a partir dos Livros de Registros de bitos da Cria Metropolitana

    do Salvador. Neste estudo fazemos uma anlise quantitativa e qualitativa dos africanos

    Angolas a partir da riqueza dessa documentao eclesistica. Encontramos nesta fonte ricas

    variveis como nome, nao, condio jurdica, estado conjugal, idade, nome do proprietrio

    quando escravo, local do sepultamento, as vestes com que foi sepultado o defunto, alm do

    sqito que o acompanhou at a sua ltima morada. Estas informaes nos conduziram a

    28 E.P Thompson, Senhores e caadores, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987, pp. 352-353. 29

    Roque de Barros Laraia, Cultura: um conceito antropolgico, Jorge Zahar Editor, 19 Edio, 2006, p.24. 30

    Ibid. 31

    Artur Ramos, Guerra e relaes de raa, Departamento Editorial da Unio Nacional dos Estudantes, Rio de

    Janeiro, 1943, p.23.

  • 18

    importantes aspectos culturais e identitrios dessa populao ainda timidamente estudada pela

    historiografia baiana.

    No segundo captulo No caminho da liberdade: os angolas na imprensa e nas fontes

    policiais da cidade de Salvador da primeira metade do sculo XIX, priorizamos estudar outra

    dimenso dos Angolas em Salvador, atravs dos anncios de escravos publicados em jornais

    da Bahia de onde foi possvel interpretar as estratgias de resistncia e as imagens identitrias

    que estes africanos carregavam na viso senhorial. Tambm procuramos rastrear os Angolas

    na documentao policial e das cadeias, bem como na correspondncia da presidncia da

    provncia, o que resultou em fragmentos de histrias desses Angolas frente represso

    policial e senhorial.

    No ltimo captulo Os derradeiros malungos: africanos livres da nao Angola na

    Bahia 1851-1864, fazemos uma abordagem sobre os africanos livres apreendidos na Bahia

    no perodo de 1851 a 1864, destacando aqueles de nao Angola. Acompanhamos a trajetria

    de alguns africanos livres de nao Angola nas diversas instituies pblicas de Salvador,

    onde eram forados a trabalhar para o governo da provncia. Quando, tambm, so discutidas

    variveis como faixa etria, comportamento, etnia, local de trabalho, datas de apreenso e

    concesso. Por fim fao uma anlise das fugas e peties desses africanos livres s

    autoridades, cujos documentos objetivavam reivindicarem respeito s leis que lhes concediam

    direitos.

    Assim, estes captulos buscam abrir caminho em um tema ainda pouco trabalhado pela

    historiografia baiana: o mistrio dos Angolas na cidade de Salvador durante o sculo XIX.

  • 19

  • 20

    Captulo 1 - Alm da morte: padres de enterro de africanos Angolas na

    cidade de Salvador, 1800-1850.

    Pelos smbolos delimitam-se as fronteiras de uma

    comunidade. Ante os smbolos, os homens se dividem:

    aparecem cheios de sentido para uns, enquanto que para

    outros permanecem indecifrveis. Assim o capital simblico,

    que define cada sociedade, revela-se nos comportamentos

    marcados tpicos, distinguindo-os dos estranhos.32

    Para diferentes sociedades existem vrios mitos explicando a origem da morte. E no

    seria diferente para os africanos, em funo das suas diversidades culturais. Para cada uma

    das etnias africanas da era do trfico atlntico, uma narrativa diferente contada para

    justificar o fim do ciclo vital. Inclusive, na maioria das vezes, os extremos, vida e morte, so

    adotados como duas vidas. A morte pode ser vista como uma falha das foras positivas e a

    desintegrao do muntu, no caso dos africanos centrais, nas suas partes constituintes. Para os

    africanos em geral morrer significa reencontrar-se com os seus ancestrais, uma passagem para

    um novo palco da vida. Para os falantes de lnguas bantos, algumas especificidades so

    observadas na relao destes com a morte.

    Tomando os bacongos como exemplo, Margaret Creel observa que, para estas

    sociedades, dotadas de um dos mais elaborados conceitos de vida e morte, morrer no o

    fim da vida, nem o cemitrio, o ltimo lugar de descanso.33 A kalunga - o mar o reino

    da morte. a intercesso entre o princpio e o fim. Portanto, segundo Slenes, atravessar a

    kalunga poderia significar o viver ou renascer da morte, a depender do sentido vetorial da

    viagem.34 Da no nos deixar dvidas qual o sentimento que os africanos, em especial os

    centro-africanos, tinham ao terem que, forosamente, atravessar o atlntico em direo s

    Amricas.

    Sendo os Angolas uma das maiores naes da frica Centro Ocidental nas Amricas,

    no deixariam estes de transportar para a dispora costumes tnicos que caracterizavam as

    suas diferenas diante das outras culturas da frica, principalmente no que concerne vida

    alm-tmulo. Joo Reis destaca que entre os angolanos, os espritos ancestrais chegavam

    32

    Raul Ruiz de Ass Altuna, A cultura tradicional banto. Luanda: Secretariado Arquidiocesano de Pastoral,

    1985, p.88 33

    Margaret Washington Creel, Gullah Attitudes toward Life and Death, in Joseph E. Holloway (org), Africanism in American Culture, (Bloomington Indianapolis, Indiana University, 1990), p.82. 34

    Slenes, Malungo Ngoma vem!, p.10.

  • 21

    mesmo a influir mais no dia a - dia do que as prprias divindades. 35 Apesar desta

    evidncia apresentada por Reis, no nos deparamos com uma produo bibliogrfica

    brasileira que nos orientasse para a existncia, tambm, de uma cosmogonia banto36

    . at

    possvel observarmos, em alguns trabalhos que se propem a tratar do tema, de forma

    genrica, a preocupao, sempre, em colocar em evidncia uma hegemonia da frica

    Ocidental, at mesmo no trato com os mistrios da morte, afirmando serem os nags, dentre

    os diversos grupos tnicos africanos, dos mais cnscios de sua identidade cultural [...].37

    Creel faz afirmao semelhante referindo-se aos bakongos, quando diz que o povo bakongo

    tinha o mais elaborado e complexo sistema de crenas ps-mortem, e estas crenas eram o

    centro de suas tradies religiosas.38 No dando crdito a esse silncio, fomos em busca de

    documentos que nos orientassem para a maneira como os Angolas se organizavam em

    Salvador, para o momento em que teriam de ir ao encontro dos seus ancestrais.

    Como estratgia, analisamos os livros de registros de bitos das freguesias da

    Conceio da Praia, Santo Antnio Alm do Carmo e da S, no perodo de 1800 a 1850,

    levando-se em considerao que o processo de deteriorizao nos impediu que tivssemos

    acesso a alguns livros da freguesia da Conceio da Praia.39

    Esses registros de bitos nos

    contemplam a data do bito, o que o ocasionou, nome, nao, condio jurdica, estado

    conjugal, idade, nome do proprietrio quando escravo, local do sepultamento, as vestes

    com que foi sepultado o defunto, alm do sqito que o acompanhou at sua ltima morada.

    So informaes que nos permitem uma garimpagem dos elementos que sugerem a presena

    de mais um dos aspectos da cultura Angola na sociedade baiana. Enquanto valor informativo,

    nenhuma destas variveis se sobrepe s outras j que atravs do cruzamento destas

    informaes que acreditamos chegar ao nosso objetivo. Essa documentao possibilita-nos

    tambm fazer uma interpretao dos elementos que marcam as singularidades nas relaes

    identitrias. Principalmente no que concerne nao em estudo. Somos cnscios de que

    alguns destes documentos omitem informaes que seriam de extrema importncia para a

    comparao com as outras variveis.

    35

    Reis, A morte uma festa, p.90. 36

    Ver artigo de John Thornton, Religio e vida cerimonial no Congo e reas Umbundo de 1500 a 1700 in Linda M. Heywood, Dispora negra no Brasil, (So Paulo, Contexto, 2008), pp. 81-100. 37

    Maria Ins Crtes de Oliveira, O Liberto: o seu mundo e os outros, Salvador, 1790-1890 So Paulo, Corrupio,

    1988, p.89. 38

    Creel, Gullah Attitudes toward Life and Death, p. 82 39

    A pesquisa nos Livros de Registros de bitos do Arquivo da Cria Metropolitana de Salvador foi realizada no

    Laboratrio Reitor Eugnio Veiga/UCSAL e na Igreja dos Mrmons no Bairro de Amaralina.

  • 22

    Tabela 1

    Africanos por nao em termos de bitos das Freguesias da Conceio da Praia, Santo Antnio

    Alm do Carmo e S 1800-1850.

    Regio Nao Freqncia %

    frica Central

    Angola 336 15,31

    Cabinda 32 1,46

    Benguela 21 0,96

    Congo 15 0,68

    So Tom 3 0,14

    Cassange 1 0,05

    Agoni 1 0,05

    409 18,64

    frica Ocidental

    Jeje 772 35,19

    Nago 215 9,80

    Mina 98 4,47

    Hauss 87 3,97

    Tapa 19 0,87

    Bornu 11 0,50

    Benin 4 0,18

    Calabar 4 0,18

    Mandobi 4 0,18

    Catacori 4 0,18

    Barla 3 0,14

    Codovi 2 0,09

    Fulani 1 0,05

    Mudovi 1 0,05

    Ardra 1 0,05

    Costa da Guin 1 0,05

    Grum 1 0,05

    1228 55,97

    frica Oriental

    Moambique 16 0,73

    16 0,73

    No identificadas

    Bad 4 0,18

    Panda* 3 0,14

    7 0,32

    Africano 534 24,34

    534 24,34

    Total 2194 100,00

    Fonte: ACMS, Livros de bitos das freguesias da Conceio da Praia, Santo Antonio Alm do Carmo e

    S no perodo de 1800-1850

    Do total de 2.194 bitos de africanos levantados naquelas freguesias encontramos 336

    equivalente a 15,31% de nao Angola, distribudos nas trs freguesias que, numericamente,

  • 23

    s foram superados pelos jejes que se apresentaram num total de 772.40

    Contudo nossos

    Angolas superam a presena dos africanos de nao nag que constituem 215 do total de

    bitos levantados. Para uma avaliao da representatividade numrica da populao africana

    de Salvador tomo Joo Reis como referncia quem encontrou em 1835 uma populao de

    65.500 habitantes e, dentre estes, 21.940 eram africanos distribudos entre 17.325 escravos e

    4.615 libertos. Ressaltamos que entre os 336 Angolas que levantamos, 278 (82,7%) eram

    escravos, 39 libertos (11,6%) e 19 bitos no contemplaram a condio legal. Nmeros que

    acompanham o padro da hegemonia escrava da populao da cidade de 1835.

    A Tabela 1 tambm nos mostra 514 bitos cujos defuntos foram identificados

    genericamente como africanos, conforme observamos na Tabela 1. Isto pode estar ligado ao

    medo do importador de africanos com a perseguio ao trfico. Dentre esses casos, conforme

    Oliveira, possvel que encontremos alguns africanos centro ocidentais, cuja autora apresenta

    como justificativa o fato de os bantos no pertencerem ao grupo de revoltosos, da a sua

    menor incidncia nos registros.41 J para Andrade, tal generalizao soa como estratgia do

    trfico para [...] esconder das autoridades a real origem dos escravos que vendia.42 Neste

    contexto, prefiro alinhar-me com Pars para quem o significado dos nomes de nao, antes de

    1850, em estreita ligao com o trfico, vai perdendo espao para uma sociedade cada vez

    mais crioula e racialmente miscigenada.43

    Dos 336 Angolas encontrados em nossas pesquisas, no universo de 2.194 bitos

    pesquisados, 152 ou 11,8% deles estavam na freguesia da S, e 391 (30,4%) jejes. Para a

    freguesia de Santo Antnio Alm do Carmo encontramos 158 (23,13%) Angolas, mais uma

    vez superados pelos jejes, para os quais encontramos o total de 306 (44,80%). Na Conceio

    da Praia, apesar de no chegar a um montante, nem aproximado, aos das freguesias anteriores,

    os jejes e Angolas continuam superando as outras etnias: os jejes com 75 (33,33%)

    representantes, e os Angolas com 26 (11,56%). A partir dos nmeros podemos concluir que os

    Angolas, na S, ficaram em terceiro lugar; na de Santo Antonio, ficaram em segundo lugar, o

    mesmo se dando na freguesia da Conceio da Praia, cuja baixa incidncia populacional

    justificvel j que apesar de ser nos olhos dos viajantes a parte mais densamente povoada da

    40

    Pars, A Formao do Candombl, p. 69. 41

    Maria Ins Crtes de Oliveira, Retrouver une identit: jeux sociaux des africains de Bahia vers 1790-1890 (Tese de Doutorado em histria, Universit SorbonneIV. Paris, 1992) p.104. 42

    Maria Jos de Souza Andrade, A mo-de-obra escrava em Salvador, 1811-1860, Editora Corrupio, Salvador,

    1988 (1975) p.106. 43

    Pars, A Formao do Candombl p.75.

  • 24

    cidade, na realidade so relativamente poucos os habitantes ali residentes e os que ali residem,

    literalmente amontoam-se uns sobre os outros em inverossmeis condies de inconforto.44

    Tabela 2

    Freguesias de enterro de africanos de nao Angola em Salvador, 1800-1850

    Freguesia Freqncia %

    Santo Antonio Alm do Carmo 158 47,0%

    S 152 45,2%

    Conceio da Praia 26 7,7%

    Total 336 100,0%

    Fonte: ACMS, Livros de Registro de bitos das Freguesias de Sto. Antnio Alm do Carmo, S e Conceio da

    Praia, 1800-1850.

    Motivo da morte

    A morte de um escravo significava para o seu proprietrio um prejuzo tal, que

    justificativas como obra do destino ou a vontade de Deus no serviam como consolo.

    Mas, mesmo diante desse prejuzo, muitos senhores negligenciavam quanto ao mnimo

    necessrio, nesse contexto representado pela sade, para que os africanos escravizados

    tivessem reduzidos os seus sofrimentos, resultantes da escravido. Os africanos eram

    acometidos de vrias doenas, resultantes das condies vividas por estes que, fatalmente, os

    levariam a bito. Dentre os possveis causadores de doenas, podemos citar a alimentao de

    baixa qualidade. Karasch, apoiada na perspectiva mdica do sculo XX, aponta para os vrios

    problemas que estimulavam as doenas nos africanos, no concordando com as simples

    interpretaes mdicas apresentadas por aqueles que redigiam os bitos. Inclusive aponta que

    a maioria dos escravos, se no todos, sofria de um ou mais problemas gastrintestinais em

    algum momento de suas vidas.45

    A competente pesquisadora desconhecia que, no sculo anterior, a medicina aloptica

    j comeava a apresentar a alimentao inadequada como fato gerador dos problemas

    intestinais sofridos pelos escravos. No incio do sculo XIX, o reverendo Robert Walsh viu,

    como causa do permanente estado doentio do estmago do escravo, no a comida, mas o

    comportamento destes de comerem terra e cal. Mas o referido reverendo teve tempo para

    44

    Katia M. de Queirs Mattoso, Bahia: a cidade de Salvador e seu mercado no sculo XIX. So Paulo,

    Secretaria Municipal de Educao e Cultura, 1978. p.175. 45

    Karasch, A vida dos escravos no Rio de Janeiro 1808-1850, p. 207.

  • 25

    observar que esta no era nada alm de mais uma estratgia escrava para fugir da escravido.

    Mesmo que para isso tivesse que pagar com a vida. Em 1852, O doutor Joo Bittencourt,

    encarregado da enfermaria que cuidava dos africanos livres, recm-desembarcados na

    provncia da Bahia, j via a necessidade de uma mudana na alimentao dos africanos devido

    a predisposio destes s doenas do tubo digestivo pela m alimentao e aguada, que

    costumo fornecer-lhes a bordo durante a viagem.46 Pelo menos no que concerne gua, o

    problema da m qualidade desta no estava restrito ao espao martimo. Vale frisar que,

    cinqenta e seis anos aps as observaes de Joo Bittencourt, a qualidade da gua consumida

    em Salvador ainda era motivo de discusses acaloradas, sendo o carregador da gua,

    associado falta de higiene do local onde a gua era adquirida, como os responsveis pelos

    problemas.47

    Tabela 3

    Causa da morte dos africanos de nao Angola das Freguesias da S, Santo Antnio Alm do

    Carmo e Conceio da Praia 1800-1850.

    Motivo da morte Mulheres Homens Total %

    Infecto-parasticas 22 10 32 9,5%

    Sistema digestivo 4 4 8 2,4%

    Sistema respiratrio 5 5 10 3,0%

    Pele 0 4 4 1,2%

    Sistema nervoso 4 4 8 2,4%

    Mal definida 83 67 150 44,6%

    Violenta ou acidental 0 6 6 1,8%

    Parto e gravidez 2 0 2 0,6%

    No informa 61 55 116 34,5%

    Total 181 155 336 100,0

    Fonte: ACMS, Livros de Registro de bitos das Freguesias de Sto. Antnio Alm do Carmo, S e Conceio da

    Praia, 1800-1850.

    Dentre os tipos de doenas elencadas nos bitos algumas nos despertam a ateno pela

    forma negligente com que so classificadas, levando-nos a traduzir tal comportamento da

    medicina, da poca, como incompetente para a apresentao de diagnsticos mais objetivos.

    Como exemplo, as doenas de causa mal definida apareceram em 150 (44,6%) bitos o que

    significa quase metade do total de 336 bitos levantados, seguida pela omisso da informao

    46

    Dr. Joo Ferreira Bittencourt para o Presidente da Provncia, (16/02/1856), Arquivo Pblico do Estado da

    Bahia ( doravante APEBa), Casa de Priso, mao 3083. 47

    Otvio da Silva Torres, A cidade de Salvador perante a hygiene, These apresentada Faculdade de Medicina

    da Bahia.Tipografia Moderna, 1908, pp. 9 -10.

  • 26

    da causa mortis, no subscritas em 116 (34,5%) deles. Tais valores, relacionados a estas

    variveis, sugerem tambm a pouca preocupao para com os problemas de sade que

    afligiam os escravos. Problemas esses, muitas vezes originados pelo mau trato, m

    alimentao, falta de tratamento mdico, o que transformava os seus corpos em porta de

    entrada para os mais variados tipos de doenas.

    Dentre as 32 doenas infecto-parasticas, a tuberculose lidera com 22 casos, indicados

    nas suas mais variadas denominaes, como tsica, tica, entre outras. Em seguida temos trs

    bitos causados por bexigas ou varola, um por clera, quatro por erisipela, um por sarampo e

    um no qual o Proco registrou como infestada de chagas, talvez fosse mais um caso de

    bexigas. Confesso ao leitor a intencionalidade ao deixar para o final deste pargrafo o

    comentrio a respeito dessa ltima enfermidade devido a uma especificidade da mesma com

    elementos da religiosidade africana. inconteste a adoo, pelos africanos, de santos do

    panteo catlico que os protegessem de doenas e de maus pressgios, mas dois destes santos

    tinham, para os africanos, um significado especial: So Roque e So Lzaro os quais, quando

    invocados no mbito das religies afro-brasileiras eram, e so at hoje, identificados como

    Omolu ou Obaluai.48

    Estas doenas infecto-parasticas estavam diretamente relacionadas ao

    modo de vida africano. Nas suas labutas dirias, vivendo em uma cidade onde um mnimo de

    higiene dependia da participao direta dos escravos, ficando esses estes em contato estreito

    com os agentes causadores de doenas infecciosas. Seja transportando pipas de madeira

    carregadas de excrementos para serem lanados nos rios, ou em tempos de epidemias,

    carregando os mortos que eram abandonados nas sarjetas com a certeza que quando

    encontrados teriam alguma forma de sepultamento.49

    Associado a esse ambiente to propcio s doenas, acrescente-se a chegada de pessoas

    trazidas nos navios que chegavam de vrios lugares do mundo e descarregavam no s

    mercadorias provindas de alm-mar, mas tambm doenas variadas. Quando agrupadas a

    partir das caractersticas, observamos que as doenas infecto-parasticas como tuberculose,

    disenteria e varola ocupam o terceiro lugar na nossa pesquisa referente aos Angolas de

    48

    Para maiores informaes sobre como os africanos relacionavam, no Rio de Janeiro do sculo XIX, os santos

    s doenas, ver Karasch , A vida dos escravos no Rio de Janeiro, pp.358360. Obaluai ou Omulu quando incorporado em um iniciado, veste-se completamente da cabea aos ps com mariwo (palha da costa), para que o

    seu rosto, coberto de pstulas, no seja visto. As vestes de mariwo encobrem, segundo Elbein, a existncia de alguma coisa que deve ficar oculta, de alguma coisa proibida que inspira grande respeito e medo, alguma coisa

    secreta que s pode ser compartilhada pelos que foram especialmente iniciados. O respeito dispensado a esses deuses, pelos adeptos do candombl, diz muito do lugar que eles sempre ocuparam na mentalidade do africano.

    Juana Elbein dos Santos, Os Nag e a Morte, Petrpolis, Editora Vozes, 1976, p. 98. 49

    Ventia Durando Braga Rios, Entre a vida e a morte: mdicos, medicina e medicalizao na cidade de Salvador -18601880 ( Dissertao de Mestrado, UFBA, 2001), p.24.

  • 27

    Salvador Karasch encontrou esta mesma posio para o Rio de Janeiro - revelando-nos as

    conseqncias de quando no observada a relao entre sade e exposio fsica aos

    costumes e hbitos que contrastam com as exigncias da cincia higinica.50

    Quanto tuberculose, de nada adiantava escamotear a sua incidncia denominando-a

    com diferentes terminologias. Fosse tsica, tica, jato de sangue, molstia de jatos, pletsica ou

    qualquer denominao que a ela fosse atribuda, a realidade que, junto s demais doenas do

    sistema respiratrio esta, segundo Maria Renilda Barreto, [...] figurava no rol das doenas

    longitudinais (endmicas e crnicas) quando no se apresentavam nas formas epidmicas

    [...].51 Ainda com relao a esta molstia, no que se refere aos nossos Angolas, coincidindo

    com as pesquisas de Karasch para o Rio de Janeiro, observamos que um nmero significativo

    de mulheres foi atingido por este tipo de doena nas freguesias em questo. (vide Tabela 3).

    No que concerne s doenas agrupadas como do sistema digestivo, elas aparecem em

    nmero de oito casos representados por dois de constipao, dois de fatos, ou doena

    intestinal, um de dor no estmago, um de dor no ventre e um de inflamao nos bofes,

    apresentando-nos um percentual de (2,4%) para a incidncia desta doena no total de bitos

    referente aos Angolas. As causas dessas doenas estavam diretamente relacionadas baixa

    qualidade do que era ingerido como alimento que, desprovido de protenas e vitaminas, alm

    da inexistncia de um sistema de conservao adequado o que tornava o ambiente gstrico um

    espao propcio ao desenvolvimento de vermes, resultando assim em doenas do trato

    intestinal. Chama a nossa ateno, mais uma vez, a forma irresponsvel como eram

    diagnosticadas, naquele momento, as causa mortis. Nos possvel observar que os

    diagnsticos so determinados sem nenhuma anlise etiolgica prvia. Inclusive, como bem

    observou Trindade, algumas doenas pertencentes a um grupo classificatrio poderiam estar

    em outro grupo, em funo das suas caractersticas e dos fatos que geraram o seu

    surgimento.52

    Os bitos, justificados como sendo causados por doenas mal definidas, foram os

    que mais nos orientaram para uma interpretao crtica quanto forma como, era

    caracterizada a causa morti. Compondo este grupo de doenas, encontramos 150 casos o que

    representa (45,8%) dos 336 bitos analisados. Essa caracterizao pode ser justificada pela

    50

    Rios, Entre a vida e a morte, p. 24. 51

    Maria Renilda Nery Barreto, A Medicina luso-brasileira: instituies, mdicos, e populaes enfermas em Salvador e Lisboa, 1808-1851 (Tese de Doutorado em Histria das Cincias da Sade, Casa de Oswaldo Cruz/ Fiocruz, 2005) p. 216. 52

    Claudia Moraes Trindade, A Casa de Priso com Trabalho da Bahia, 1833-1865, (Dissertao de Mestrado em Histria, UFBA, 2007), p.138.

  • 28

    indefinio, no documento, quanto ao rgo acometido pela doena. Como exemplo, um dos

    diagnsticos encontrado neste grupo das doenas mal definidas est a molstia interna com

    105 casos e as mortes repentinas com 14. Sem citar outras doenas que, devido baixa

    incidncia, no apresentam relevncia no universo dos bitos analisados. A maioria com,

    somente, um caso.

    As doenas do sistema nervoso aparecem em oito casos: um de apoplexia, dois de

    convulses, trs de estupor, um de paralisia e um de gota coral.53

    No Rio de Janeiro, Karasch

    se reporta ao Doutor Sigaud para afirmar que essas molstias tinham um carter especial e

    evolues mais marcantes em negros do que em brancos.54 Para Salvador, associada

    estratificao social da poca e da indefinio quanto a um local para se instalar o asilo, no

    havia ainda um projeto da medicina para o tratamento destas doenas. Conforme Renilda, O

    tratamento da alienao era um terreno movedio e desconhecido, concentrando-se

    basicamente no isolamento e na vigilncia, associado s sangrias espordicas.55 A

    precariedade dos espaos destinados ao recolhimento dessa miserenda classe de pacientes

    foi, tambm, um motivador das discusses sobre as doenas do sistema nervoso durante a

    segunda metade do sculo XIX, resultando finalmente de tais discusses na inaugurao do

    Asilo de S. Joo de Deus em 24 de junho de 1874.56

    Como j dissemos anteriormente, os africanos tinham os seus santos catlicos os quais

    eram invocados na hora de infortnios ou para ajudar na cura de doenas. Creditavam os

    africanos, a Nossa Senhora da Cabea, por exemplo, que esta poderia curar ou amenizar o

    sofrimento dos despossuidos da razo pelo fato de sua imagem ser representada segurando

    uma cabea humana. Ou atribuir a Santa Luzia a graa da recuperao da viso perdida.

    Mas algumas mulheres Angolas no foram agraciadas com a proteo da Virgem

    Maria, enquanto Nossa Senhora do Parto. Nas nossas pesquisas encontramos duas dessas

    mulheres. Uma, cuja causa morte foi diagnosticada como bucho na barriga, e outra que

    morreu de fluxo de sangue sobre o parto.Talvez esse ltimo diagnstico seja somente um

    pleonasmo para falar de hemorragia.

    53

    Estupor significa estado mrbido em que, embora se ache desperta a conscincia, o doente no reage a excitao alguma, mantendo-se imvel na mesma posio. Popularmente, qualquer paralisia repentina, Aurlio Buarque de Holanda Ferreira, Novo dicionrio, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1975, p. 590. 54

    Karasch, A vida dos escravos no Rio de Janeiro, p.244 55

    Barreto, A Medicina luso-brasileira, p.222. 56

    Sobre o Asilo So Joo de Deus e a loucura na cidade de Salvador ver Ventia Durando Braga Rios, O Asylo de So Joo de Deos: as faces da loucura (Tese de Doutorado em Histria, Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo, 2006).

  • 29

    Num universo de 336 Angolas 10 foram a bito vtimas de doenas respiratrias,

    sendo oito de cansao, um de pleuris e um de tosse no peito. Acredito que outras doenas

    inclusas no grupo das infecto-parasticas bem que se confundem com as constantes no grupo

    das respiratrias como, por exemplo, a tuberculose. Para o Rio de Janeiro, Karasch apresenta

    a tuberculose (tsica) como molstia infecto-parastica apresentando o estresse como uma das

    causas da doena, alm de ter observado um percentual de vtimas femininas maior que de

    masculinas.57

    Para Renilda, alm de concordar com Karasch quanto relao doena e gnero, para

    Salvador, nos apresenta a tsica ou tuberculose pulmonar denominao utilizada a partir do

    final do sculo XIX como do sistema respiratrio. Esta doena, conforme a autora, estava

    relacionada aos baixos padres socioeconmicos de existncia, da a sua incidncia maior ter

    se dado, em Salvador, em momentos de recesso. Ainda a pesquisadora observou que, durante

    o sculo XIX, a Bahia foi vitimada por secas que resultaram na carestia de vveres e a

    escassez de alimentos, principalmente a farinha, o gnero mais consumido na dieta dos

    baianos, e continua afirmando que esta tendncia reflete-se no Hospital So Cristvo, onde

    este item era o mais adquirido para alimentar enfermos, escravos e funcionrios.

    Etiologicamente, a tsica dominou as discusses em grande parte do sculo XIX. Os mdicos

    baianos, alm de comungarem com a idia de ser a tuberculose hereditria, atribuiram-lhe

    outras causas que duraram ao longo dos tempos. Dentre vrias outras, o abuso da masturbao

    e o tabagismo.

    As mortes acidentais ou causadas por qualquer tipo de violncia apareceram em

    nmero de seis, mas observamos que alguns acidentes precisariam de mais clareza quanto

    doena que realmente causou o bito. Um dos exemplos o caso de um escravo que morreu

    porque espetou no p espinha de cazoup.58 Provavelmente, uma enfermidade resultante do

    acidente deve ter vitimado o infeliz, mas o documento no nos fornece tal informao. Assim

    como o escravo que morreu devido a uma perna que teve quebrada porque caiu de uma

    sacada, ou os dois que faleceram de quebradura.59 Diferente do que morreu de molstia

    procedida de uma bala que lhe meteram em uma coxa.60

    57

    Karasch, A vida dos escravos no Rio de Janeiro, p.211. 58

    No conseguimos o significado do termo. 59

    Arquivo da Cria Metropolitana do Salvador (doravante ACMS), Livro de bitos da Freguesia da S, 1797-

    1816, fls 61v e 70r. 60

    Ibid., fl. 84r.

  • 30

    Outro caso que nos chama a ateno o do escravo que atravessou a calunga, depois

    de ser enforcado por suas prprias mos. 61 Acreditamos que ele tenha cometido suicdio.

    Sabemos que muitos foram os escravos e escravas que, se no conseguiam a liberdade em

    vida, buscavam-na na morte. As formas de suicdio variavam do comer terra ao afogamento.

    Segundo Slenes, africanos falantes de kikongo buscavam a morte no afogamento acreditando

    estes terem a Calunga, o mar, como uma linha divisria entre a vida e a morte.62

    Morrer

    afogado era estar se reunido aos ancestrais. Tambm para os bakongos, conforme Creel, os

    ancestrais so criaturas brancas e so conhecidas como bakulu e vivem numa terra onde tudo

    branco. Esta morada dos mortos se encontra nos leitos dos rios e nos lagos. A transparncia

    espiritual branca do bakulu lhes facilita o retorno ao mundo dos vivos sem serem

    detectados.63

    Quanto ao enforcamento, alm de ser uma forma de punio para o escravo que

    cometesse crimes de morte nesse caso a punio era aplicada pela autoridade judiciria era

    tambm um meio utilizado pelos escravos para cometerem suicdio para se livrarem das

    punies insuportveis da escravido. O medo dessas torturas levava os escravos ao suicdio

    [...], e o enforcamento era uma das formas utilizadas pelos escravos, perdendo esses suicidas

    o direito de ser sepultado em lugares sagrados. 64

    Conforme Joo Reis, a proximidade fsica entre cadver e imagens divinas, aqui

    embaixo, representava um modelo da contigidade espiritual que se desejava obter, l em

    cima, entre as almas e as divindades. A igreja era uma das portas de entrada do paraso.65 O

    que no deixava tambm de ser uma oportunidade de manuteno do contato, pelo menos nas

    missas dominicais, entre os que se foram e os que ficaram.No desfrutou desses privilgios

    Joo Angola, escravo de Jeronima Maria da Gloria, que resolveu, em 1821, no sabemos

    porque cargas- dgua, enforcar-se com as prprias mos.66 Tendo seu gesto interpretado

    como suicdio, teve o seu corpo embrulhado em uma esteira e foi sepultado no cemitrio do

    Campo da Plvora para onde, alm dos suicidas, eram enviados os escravos e indigentes.

    Um detalhe que nos impele para uma ateno mais apurada para o caso de Joo, que

    ele no foi o nico sepultado envolto em uma esteira. No universo de 336 Angolas

    encontramos treze africanos cujo sepultamento foi caracterizado pelo uso da esteira como

    vestes, e isso nos leva a acreditar que tal prtica tem relao com a cultura banto. Desses 13

    61

    ACMS, Livro de bitos da Freguesia de Sto. Antonio Alm do Carmo, 1819-1827, fl.56. 62

    Slenes, Malungu, Ngoma Vem!, p.10. 63

    Creel, Gullah Attitudes toward Life and Death. p. 90 64

    Karasch, A vida dos escravos no Rio de Janeiro, p. 174. 65

    Reis, A morte uma festa, p.171. 66

    ACMS, Livro de bitos da Freguesia de Sto. Antonio Alm do Carmo, 1819-1827 fl. 56

  • 31

    bitos, quatro eram crianas sendo: trs de 12 anos e uma de 10. Pode ser que os seus restos

    mortais tenham sido utilizados como ingredientes de bolsas de mandinga e outras prticas

    mgicas.67 Os outros so adultos com idades que variam de 30 a 60 anos, sem falar de dois

    adultos cujas idades no foram reveladas no documento. Atravs de informaes, provindas

    de autores que se debruaram em pesquisas sobre as culturas bantas, tivemos as nossas

    dvidas quase sanadas quanto a ser a esteira um sinal diacrtico da cultura Angola.

    Ao descrever um ritual fnebre banto, o padre Altuna informa que o defunto coberto

    com um pano, manto ou pele de boi e fica sentado numa esteira.68 Em 1829, o Juiz

    Presidente da Cmara da Corte, Luiz Paulo de Arajo Bastos, ao responsabilizar e cobrar da

    Cmara a remoo dos enterros para fora das igrejas, alm de externar a sua preocupao com

    a sade pblica, descreveu o cemitrio dos pretos novos chamando a ateno para corpos

    cheio todo em roda de esteiras, que de ordinrias sempre recebem alguma cousa de

    corrupo dos corpos nelas envolvidos.69

    Ao deixar a vida terrena, o poder continuaria sendo simbolizado pelas pompas

    dispensadas ao defunto que, em vida, tenha tido a oportunidade de uma vida menos miservel.

    Sebastio Xavier Botelho descreve o funeral de um rei, ou prncipe, em Moambique onde a

    esteira um dos componentes do ritual. E o cadver nu he estendido em uma Sanja, espcie

    de Esteira de Varinhas groas ligadas humas s outras, e cuberto com um pano.70 Ao

    compararmos duas descries de diferentes autores, em pocas e lugares diferentes,

    conclumos que a africanidade banto, dos rituais fnebres dos Angolas uma realidade.

    Segundo o padre Altuna, Os escravos no tinham honras fnebres visto que a sua

    nula influncia social no os tornava temidos nem havia interesse algum em os prestigiar

    como antepassados.71 Clvis Moura tambm nos chama a ateno para o fato de que nos

    primeiros anos da escravido no Brasil, o escravo morto era jogado na praia ou enrolado

    numa esteira e atirado em algum recanto deserto para ser devorado pelos urubus ou por outros

    animais.72 Detectamos nos dois relatos um fio de irresponsabilidade quanto observncia do

    princpio da transferncia cultural por parte dos africanos centrais, nesse caso especfico. Mas

    67

    Reis, A morte uma festa, p. 123. 68

    Altuna, A cultura tradicional banto, p.449. 69

    Jlio Csar Medeiros da Silva Pereira, flor da terra: o cemitrio dos pretos novos no Rio de Janeiro. Ed.

    Garamond Universitria: IPHAN, 2007, p. 92. 70

    Joo Julio da Silva, Memrias de Sofala. Etnografia e Histria das identidades e da violncia entre os

    diferentes poderes no centro de Moambique, sculos XVII e XIX. Comisso nacional para as comemoraes dos

    descobrimentos portugueses, frica, 1998, citado por Pereira, flor da terra: o cemitrio dos pretos novos no

    Rio de Janeiro, p. 167. 71

    Altuna, A cultura tradicional banto, p.447. 72

    Clvis Moura, Dicionrio da Escravido Negra no Brasil, So Paulo, Edusp, 2004, p.147, (Grifo nosso)

  • 32

    no nos deixaremos ser enganados pela viso reducionista desses dois autores quanto

    utilizao da esteira nos rituais de enterramento quando o defunto era um escravo.

    Contrariando as afirmaes do padre Altuna, Pereira defende a utilizao da esteira

    no a relacionando condio legal do africano, mas tradio africana banto ao lidar com os

    seus mortos. Citando Joo Julio da Silva, que testemunhou alguns ritos funerrios em

    Moambique, Pereira toma como referncia um desses eventos: Logo que tiver falecido

    qualquer pessoa, homem ou mulher. lavo o cadver com gua morna: e depois de vestido

    dobram as pernas e o fazem deitar do lado direito com a mo direita debaixo da cabea, na

    forma que costuma dormir. Se o falecido no pertencer a outrem o amortalho com hum pano

    branco, e depois envolve em huma esteira [...].73Vejo mais como reflexo da presena de

    elementos das culturas bantos nas disporas do que uma simples coincidncia com o que foi

    testemunhado por Julio, em Moambique, o caso de Joo Angola, forro, morto em 1819, que

    foi sepultado na Matriz de Santo Antonio, envolto em mortalha branca e esteira,

    acompanhado de proco e sacristo. Muitos costumes morturios da frica foram mantidos

    pelos escravos no Brasil, apesar das mudanas que neles se foram operando ao longo da

    escravido, [...], orienta Reis.74

    Quanto a Clvis Moura, as nossas pesquisas demonstram que aqui na dispora,

    tambm, a utilizao da esteira no estava ligada situao social do africano. Encontramos,

    sim, 12 escravos que foram envoltos em esteira e todos foram acompanhados por proco e

    sacristo, nenhum deles teve o tratamento ignbil relatado por Moura. Nem mesmo aquele

    que decidiu por adiantar-se no tempo quanto ao reencontro com os seus ancestrais. No vale

    s para os nags a afirmao de Ziegler de que o morto que no recebe os cuidados

    necessrios, corre o risco de perder sua identidade no caminho que deve lev-lo ao Orum e

    transformar-se em Egum errante pelo mundo.75 Os bantos tm, tambm, um significado

    lingstico distinto para os elementos simblicos da sua cosmogonia. Nesse caso especfico,

    para o kimbundo, Orum seria substitudo por Dilu e Egun por Nzumbi.

    Conforme Oliveira, a pompa era uma das caractersticas dos enterros na primeira

    metade do sculo XIX estando presente em todas as camadas sociais, da no concordarmos

    com a idia de que os escravos no estavam inclusos no processo de continuidade de um dos

    princpios que regem a identidade africana.76

    O luxo era uma forma de representar o poder e a

    73

    Silva, Memrias de Sofala, citado por Pereira, flor da terra: o cemitrio dos pretos novos no Rio de Janeiro,

    p.171. 74

    Joo Reis, A morte uma festa, p.160. 75

    Jean Ziegler, Os vivos e a morte, Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1977, p.32. 76

    Oliveira, O liberto: o seu mundo e os outros, p. 90.

  • 33

    riqueza. No caso do escravo, essa representao simblica ficava sob a responsabilidade do

    seu senhor ou da irmandade a que o escravo estivesse filiado. Interessava ao seu proprietrio

    ostentar poder scio-econmico atravs da suntuosidade que desse ao evento fnebre.

    As esteiras no simbolizaram um elemento de limitao na participao dos Angolas

    no cadinho cultural de tradies africanas na dispora, mas transferiram mais uma forma

    diferente de se vestirem para ir de encontro aos ancestrais. Assim como os escravos de outras

    naes, os Angolas transitaram por outras simbologias que lhes conferissem nivelamento

    social j que o conflito era evidente, materializado pelo luxo excessivo dos enterros, das

    igrejas e das irmandades religiosas, segundo Oliveira.77

    Tambm para os africanos centrais, a

    simbologia das cores j estava associada s suas cosmogonias. Para Altuna, as cores tm um

    profundo significado nos ritos sagrados dos bantos, e destaca a cor branca como a cor dos

    antepassados, alm de ter o poder de afastar os perigos fatais e simboliza a inocncia, a

    bondade, a alegria, a pureza e a vitria.78 Newell Booth, ao falar do significado das cores

    para os africanos centrais, cita a cor branca como o mago dos segredos, e acrescenta que em

    vrias reas do Kongo, a cor branca simbolizada pela argila do rio (mpemba), geralmente

    utilizada para conotar o alm.79

    E d como exemplo que, para evitar falar na morte,

    metaforizam dizendo que fulano est indo, ou foi, para mpemba. Na realidade no a gua

    que est sendo caracterizada, mas a clareza, a sinceridade, a verdade, e a visibilidade do

    mistrio.80

    Reis, tambm, apesar de no especificar os africanos centrais, muito nos auxilia ao

    nos orientar para o significado das cores para o africano, afirmando inclusive que vrias

    naes africanas da Bahia faziam do branco a cor morturia, e cita os edos do Benim, para os

    quais o branco simbolizava pureza ritual e paz.81

    Oliveira no conseguiu detectar no africano

    o significado da cor branca para as vestes do morto. Sugeriu hipteses como: o uso da roupa

    branca pela falta de condies do africano para adquirir um dos hbitos de tradio catlica,

    ou a roupa branca tinha um significado nitidamente africano.

    No universo de 336 Angolas, cujos bitos analisamos, 145 escravos e 26 forros foram

    sepultados envoltos em mortalha branca, alm de 12 cujos bitos no revelaram a condio

    legal. Outros tipos de vestes foram utilizados, mas sem a constncia observada para a

    77

    Ibid., p. 90. 78

    Altuna, A cultura tradicional banto, p.93. 79

    Termo banto que denomina um p branco usado como giz nas cerimnias para, na Umbanda, riscar os

    pontos dos Exus e Pretos velhos. A preparao deste p carece de rituais que s pode ter a participao de iniciados. 80

    John M. Janzen, The Tradition of Renewal in Kongo Religion, in Newell S. Booth (org) African Religions: a Symposium, (New York London Lagos, NOK Publishers, 1977), p. 90. 81

    Reis, A morte uma festa, p.118.

  • 34

    mortalha branca. Encontramos 102 bitos de Angolas que no tiveram declarado o tipo de

    veste que os acompanhou sepultura. Destes, 89 escravos, 10 forros, e trs no tiveram

    declarada a sua condio legal.

    Tabela 4

    Vestes do enterro de africanos Angolas na cidade de Salvador 1800-1850

    Veste Escravo Forro No

    informa Total

    Mortalha branca 145 26 12 183

    Hbito franciscano 15 5 4 24

    Esteira 12 1 0 13

    Mortalha preta 5 1 0 6

    Cobertor 2 0 0 2

    Hbito branco da Irmandade do

    Rosrio

    1 0 0 1

    Hbito dos Irmos dos Perdes 1 0 0 1

    Coberta de Chita 1 0 0 1

    Baeta vermelha 1 0 0 1

    Amortalhado sem mortalha

    branca

    1 0 0 1

    Mortalha parda 1 0 0 1

    No informa 89 10 3 102

    Total 278 39 23 336

    Fonte: ACMS, Livros de Registro de bitos das Freguesias de Sto. Antnio Alm do Carmo, S e Conceio da

    Praia, 1800-1850.

    Nossas descobertas levam-me a acreditar que os meus escravos Angolas eram mais

    bem apossados que os africanos libertos de Oliveira j que, pelo menos, 15 daqueles foram

    sepultados com o hbito franciscano, contrariando uma das hipteses da pesquisadora para a

    preferncia dos africanos pelas vestes brancas. Somente cinco forros tiveram o privilgio de

    seguir vestidos de salvadores de almas do purgatrio, e quatro no tiveram as suas condies

    legais informadas. Reis d nfase simbologia existente na relao entre os ritos fnebres e a

    imagem de So Francisco chamando, inclusive, a nossa ateno para a herana ibrica desse

    costume.82

    Outros Angolas preferiram ser diferentes na hora de ir para mpemba. Seis

    seguiram de mortalha preta, um de baeta vermelha, um de hbito branco da Irmandade do

    Rosrio, um coberto de chita, dois que seguiram envoltos em um cobertor sem maiores

    especificaes, um de mortalha parda e um que, estranhamente, foi amortalhado sem

    82

    Ibid., p.117.

  • 35

    mortalha branca. A pompa no se limitava s vestes. O local do enterramento era tambm

    referncia de poder, associado quantidade e tipo de pblico que acompanhava o defunto.

    Uma escrava Angola um desses exemplos de que, no s libertos ou forros de

    determinadas naes tinham o privilgio de mostrar poder scio-econmico, seja patrocinado

    pela irmandade ou pelo seu senhor, a quem interessava mostrar que no era somente mais um

    no meio daqueles, cuja opulncia era simbolizada pela quantidade de escravos que possusse.

    Clara, de 40 anos, escrava de Thereza de Jesus, foi sepultada na Igreja da Irmandade

    de N. Senhora do Rosrio da Baixa dos Sapateiros vestida de hbito franciscano, e foi

    acompanhada por proco, sacristo e seis padres.

    Tabela 5

    Local de sepultamento dos Angolas registrados nos livros de bitos da Freguesia de Santo

    Antnio Alm do Carmo 1800-1850

    Local Freqncia %

    Matriz de Santo Antnio 123 77,8%

    Cemitrios 7 4,4%

    Convento do Carmo 5 3,2%

    Igreja dos Perdes 5 3,2%

    Capela da N. Sra. da Lapa 4 2,5%

    Demolida Matriz 3 1,9%

    Igreja do Convento de So Francisco 2 1,3%

    Capela da Quinta dos Lzaros 2 1,3%

    Capela S. Joo Itapagipe de Cima 1 0,6%

    Capela do Convento do Boqueiro 1 0,6%

    Capela do Seminrio 1 0,6%

    No informa 4 2,5%

    Total 158 100,0%

    Fonte: ACMS, Livros de Registro de bitos das Freguesias de Sto. Antnio Alm do Carmo, S e Conceio da

    Praia, 1800-1850.

    Conforme nos mostra a Tabela 5, de um total de 158 bitos atestados para a Freguesia

    de Santo Antnio Alm do Carmo, 123 Angolas foram sepultados na Igreja da Matriz

    representando a maioria de sepultados. Do total geral, sete foram enterrados nos vrios

    cemitrios, alguns administrados pela Santa Casa da Misericrdia, como era o caso do

    Cemitrio do Campo da Plvora.83

    Outros defuntos foram distribudos pelas vrias igrejas que

    faziam parte desta Freguesia ou, sepultados nas igrejas que sediavam as suas Irmandades em

    83

    Ibid., p.196.

  • 36

    outras freguesias. Como foi o caso de Antonio Angola, falecido em 1808, escravo de Incia

    Domingos de Barros que, apesar de ter ido a bito na Freguesia de Santo Antnio Alm do

    Carmo, foi sepultado na Igreja do Convento de So Francisco. Podemos inferir, a partir desta

    informao, que Antonio fosse um dos irmos da Irmandade de So Benedito, sediada

    naquela Igreja. Maria Joaquina, Angola forra de 40 anos, falecida em 1824, tambm foi

    sepultada em lugar diferente da sua Freguesia. Como Antonio, foi sepultada na Igreja do

    convento de So Francisco, na freguesia da S, acompanhada por dois padres, alm de seguir

    vestida com o hbito do santo. Pode ser que a veste tenha sido comprada com antecedncia,

    nas mos dos frades franciscanos que, segundo Joo Reis, s no ano de 1822 eles venderam

    150 dessas roupas, e 73 entre julho e setembro de 1823.84

    Tabela 6

    Local de sepultamento dos Angolas registrados nos livros de bitos da Freguesia da S

    Local Freqncia %

    Igreja da S 74 48,7%

    Igreja das Portas do Carmo 27 17,8%

    Igreja do Convento de So Francisco 17 11,2%

    Igreja do Colgio 6 3,9%

    Igreja N. Sra. da Ajuda 6 3,9%

    Igreja N. Sra. do Rosrio da Rua de Joo Pereira 5 3,3%

    Igreja de Santana 5 3,3%

    Capela de So Miguel 1 0,7%

    Igreja N. Sra. de Guadalupe 1 0,7%

    Matriz de Santo Antnio 1 0,7%

    Cemitrios 1 0,7%

    No informa 8 5,3%

    Total 152 100,0%

    Fonte: ACMS, Livros de Registro de bitos das Freguesias de Sto. Antnio Alm do Carmo, S e Conceio da

    Praia, 1800-1850.

    Na freguesia da S foram sepultados 152 Angolas, sendo que a maioria foi sepultada

    na Igreja da Matriz com 74 sepultamentos, seguida pelas Igrejas das Portas do Carmo e Igreja

    do Convento de So Francisco que receberam 27 e 17 defuntos, respectivamente. O restante

    foi diludo em outras igrejas da freguesia ou foram carregados para lugares mais distantes,

    outras freguesias, a fim de cumprirem suas obrigaes religiosas assumidas em vida. Como

    exemplo, temos o caso de Gracia da Costa Covelo, Angola forro, que faleceu de molstia

    84

    Ibid, p.118.

  • 37

    interna aos 40 anos na Freguesia da S, mas foi sepultado na Irmandade do Rosrio da Matriz

    de Santo Antonio, vestido com o hbito franciscano. Nem todos tiveram o privilgio de ser

    sepultado mais prximo da salvao. Antonio Angola, escravo de Dona Ursula Maria das

    Virgens, vivia e morreu aos 30 anos em 1809 na Freguesia da S, e foi sepultado no Cemitrio

    da Cidade Campo da Plvora , vestido com mortalha branca.

    Um dos Angolas, que foi a bito na S, foi enterrado na Igreja de N.Sra. do Rosrio da

    Rua de Joo Pereira, local que acolhia a Irmandade do mesmo nome. Essa igreja estava

    localizada na Freguesia de So Pedro Velho. A respeito dessa Irmandade, Reis conta que em

    1784 os cargos da mesa diretora daquela confraria eram divididos entre jejes e benguelas, em

    resposta dos jejes aos Angolas pela opo de parceria que estes fizeram com os crioulos, na

    administrao da Irmandade do Rosrio do Pelourinho.85

    Isso nos revela a existncia de

    alianas e hostilidades entre as diversos naes africanas.

    Tabela 7

    Local de sepultamento de Angolas registrados nos livros de bitos da Freguesia da Conceio da

    Praia, 1800-1850

    Local Freqncia

    Igreja da Conceio da Praia 23

    Igreja do Convento de So Francisco 1

    No informa 2

    Total 26

    Fonte: ACMS, Livros de Registro de bitos das Freguesias de Sto. Antnio Alm do Carmo, S e Conceio da

    Praia, 1800-1850.

    Da matriz da Freguesia da Conceio da Praia, devemos tomar conhecimento de

    algumas curiosidades que a torna especial frente s outras. Esta foi uma das primeiras, se no

    a primeira, a ser construda na Cidade de Salvador. Conforme Nascimento, a igreja que hoje

    conhecemos no aquela construda quando aqui chegou Tom de Souza, a qual foi para dar

    lugar atual, construda a partir de mdulos de pedra trazidos da metrpole, anteriormente

    numerados, para ter facilitado a ordem da montagem86

    .

    Na Freguesia da Conceio da Praia aconteceram 26 sepultamentos, sendo que 23

    aconteceram na matriz, um na igreja do Convento de So Francisco, enquanto dois no

    tiveram informado o local onde foram sepultados. Importa informar que a maioria dos

    Angolas enterrados na igreja da Conceio da Praia era escrava, e s dois forros. Quanto ao