dissertação - maria lucia paniago - o manual didático de ciências na organização do trabalho...

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MARIA LUCIA PANIAGO LORDELO NEVES O MANUAL DIDÁTICO DE CIÊNCIAS NA ORGANIZAÇÃO DO TRABALHO DIDÁTICO NA ESCOLA CONTEMPORÂNEA UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO Campo Grande (MS) 2011

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O presente estudo tem por objetivo investigar a utilização do manual didático na relação do trabalho pedagógico do professor e suas implicações para a conservação/superação do trabalho didático em uma sociedade dominada pelo modo de produção capitalista. O levantamento dos dados empíricos foi realizado em três fases, no ano de 2009, enfocando: 1) a análise dos manuais didáticos de ciências de 5º e 6º anos, 2) observação, em sala de aula, dos anos escolares selecionados, 3) entrevistas com cinco professores dos respectivos anos buscando apreender o que pensam sobre o seu trabalho didático e o que realizam no seu cotidiano educativo. Foram selecionadas duas escolas, uma urbana e uma da zona rural, da Rede Municipal de Ensino (REME) de Campo Grande/MS. Realizamos, inicialmente, uma revisão bibliográfica da literatura produzida sobre o objeto de investigação, com o objetivo de levantar as questões apontadas pelos estudos sobre o manual didático. A base teórica é apresentada na perspectiva materialista histórica, em uma abordagem com base nos estudos de Marx, explicitando aspectos teórico-metodológicos relevantes para a compreensão do objeto em pauta. As investigações revelaram que a superação do manual didático ou mesmo a elaboração de um livro didático como sistematização dos conhecimentos científicos transformados em conteúdos de ensino, que desvele verdadeiramente aos alunos o que a humanidade produziu só será possível quando a contradição capital e trabalho desaparecer com o advento de uma sociedade voltada à emancipação da humanidade.

TRANSCRIPT

  • MARIA LUCIA PANIAGO LORDELO NEVES

    O MANUAL DIDTICO DE CINCIAS NA

    ORGANIZAO DO TRABALHO DIDTICO NA

    ESCOLA CONTEMPORNEA

    UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL

    CENTRO DE CINCIAS HUMANAS E SOCIAIS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM EDUCAO

    Campo Grande (MS)

    2011

  • Ficha catalografica

    Neves, Maria Lucia Paniago Lordelo.

    O manual didtico de cincias na organizao do trabalho didtico na

    escola contempornea/ Maria Lucia Paniago Lordelo Neves - Campo

    Grande, MS, 2011.

    157f; 30 cm.

    Orientadora: Silvia Helena Andrade de Brito..

    Dissertao (mestrado)- Universidade Federal do Mato Grosso do

    Sul, PPGEdu.

    Centro de Cincias Humanas e Sociais.

    1. Trabalho didtico; 2. Manual didtico. I. Brito, Silvia Helena

    Andrade. II. Ttulo.

  • MARIA LUCIA PANIAGO LORDELO NEVES

    O MANUAL DIDTICO DE CINCIAS NA

    ORGANIZAO DO TRABALHO DIDTICO NA

    ESCOLA CONTEMPORNEA

    Dissertao apresentada como exigncia

    final para a obteno do grau de Mestre em

    Educao Comisso Julgadora da

    Universidade Federal de Mato Grosso do

    Sul, sob a orientao da Professora Doutora

    Silvia Helena Andrade de Brito.

    UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL

    CENTRO DE CINCIAS HUMANAS E SOCIAIS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM EDUCAO

    Campo Grande (MS)

    2011

  • COMISSO JULGADORA:

    ___________________________________________

    Prof. Dr. Silvia Helena Andrade de Brito

    ____________________________________________

    Prof. Dr. Ldia Maria Luz Paixo Ribeiro de Oliveira

    ___________________________________________

    Prof. Dr. Ester Senna

  • Dedico aos milhes de trabalhadores e trabalhadoras que, subtrados de sua

    dignidade, cotidianamente, possibilitam que continuemos vivos.

  • AGRADECIMENTOS

    Silvia, a quem muito respeito como professora, orientadora e colega (nessa ordem

    temporal), pela seriedade com que me mostrou os caminhos para a pesquisa e pela

    confiana em mim depositada, o que me permitiu a conquista da autonomia

    necessria ao trabalho acadmico.

    Aos colegas que comigo compartilharam tantas dvidas e conflitos e com quem tive

    o grande prazer de conviver nessa jornada.

    Ao Andr e Jorge, grandes companheiros de luta e amigos que tive o privilgio de

    conhecer no mestrado, portos seguros nos momentos de conflito e angstia.

    Jacqueline pela ateno em nos auxiliar nos meandros da burocracia universitria.

    Dimair, pela colaborao muito bem vinda na reta final do trabalho, sempre

    disponvel e atenciosa nas horas de ansiedade.

    Hellen, querida amiga, pela pacincia em me ouvir nos momentos solitrios de

    produo intelectual.

    minha famlia: irmos, sobrinhos e cunhado, pelo apoio, confiana e estmulo e em

    especial a minha irm Maria Cristina pelas sesses de terapia acadmica.

    Ao Marcos que, passados 36 anos, continua sendo o companheiro amado de todas as

    lutas e todas as horas, sempre presente, sempre acreditando que eu daria conta, me

    proporcionando as condies para todas as caminhadas e em especial esta que

    encerro agora.

    E mais que tudo aos meus filhos Felipe e Juliana, que do significado minha vida.

  • RESUMO

    O presente estudo tem por objetivo investigar a utilizao do manual didtico na

    relao do trabalho pedaggico do professor e suas implicaes para a

    conservao/superao do trabalho didtico em uma sociedade dominada pelo modo

    de produo capitalista. O levantamento dos dados empricos foi realizado em trs

    fases, no ano de 2009, enfocando: 1) a anlise dos manuais didticos de cincias de

    5 e 6 anos, 2) observao, em sala de aula, dos anos escolares selecionados, 3)

    entrevistas com cinco professores dos respectivos anos buscando apreender o que

    pensam sobre o seu trabalho didtico e o que realizam no seu cotidiano educativo.

    Foram selecionadas duas escolas, uma urbana e uma da zona rural, da Rede

    Municipal de Ensino (REME) de Campo Grande/MS. Realizamos, inicialmente, uma

    reviso bibliogrfica da literatura produzida sobre o objeto de investigao, com o

    objetivo de levantar as questes apontadas pelos estudos sobre o manual didtico. A

    base terica apresentada na perspectiva materialista histrica, em uma abordagem

    com base nos estudos de Marx, explicitando aspectos terico-metodolgicos

    relevantes para a compreenso do objeto em pauta. As investigaes revelaram que a

    superao do manual didtico ou mesmo a elaborao de um livro didtico como

    sistematizao dos conhecimentos cientficos transformados em contedos de ensino,

    que desvele verdadeiramente aos alunos o que a humanidade produziu s ser

    possvel quando a contradio capital e trabalho desaparecer com o advento de uma

    sociedade voltada emancipao da humanidade.

    Palavras-chave: Trabalho didtico; Organizao do trabalho didtico; Manual

    didtico.

  • ABSTRACT

    This study aims to investigate the use of the teaching manual related to the teacher's

    pedagogical work and its implications for conservation / overcoming of the didactic

    work in a society dominated by the capitalist mode of production. The survey of

    empirical data was carried out in three phases, in 2009, focusing on: 1) the analysis

    of the sciences teaching manuals of fifth and sixth years, 2) observation, in the classroom, of the school years selected, 3) interviews with five teachers of the

    respective years to grasp what they think about their didactic work and what they

    carry out in their daily education. We selected two schools, one urban and one of the

    rural area, of the Municipal Chain Education (REME) from Campo Grande/MS. We

    performed, initially, a review of the literature produced about the object of

    investigation, aiming to survey the questions raised by the studies about the teaching

    manual. The theoretical basis is presented in the historical materialist perspective, in

    an approach from the studies of Marx, describing theoretical and methodological

    aspects relevant to understanding the object in question. The investigations revealed

    that the overcoming of the teaching manual or even the preparation of a textbook as

    systematization of scientific knowledges transformed into learning content, that truly

    unveils to the students what humanity has produced, is only possible when the

    contradiction capital and labor disappears with the advent of a society dedicated to

    the emancipation of humanity.

    Key words: Didactic work; Organization of didactic work; Teaching manual.

  • SUMRIO

    Introduo ......................................................................................................... 09

    Captulo I - O manual didtico no interior do trabalho didtico ................ 23

    1.1 As origens da organizao do trabalho didtico na escola pblica moderna 23

    1.2 A utilizao do manual didtico na escola pblica da sociedade capitalista

    contempornea ...................................................................................................

    44

    1.3 Estado e as polticas pblicas voltadas para o manual didtico ................... 48

    1.3.1 Reflexes sobre o Estado na sociedade capitalista e as polticas pblicas 48

    1.3.2 Sobre o manual didtico e as polticas do Estado para o setor ................ 54

    1.3.3 Das polticas pblicas do Estado brasileiro para o manual didtico s

    aes desenvolvidas pela SEMED de Campo Grande .......................................

    63

    Captulo II O ensino de cincias na escola fundamental e a utilizao do manual didtico ................................................................................................

    70

    2.1 A natureza apresentada pelo manual didtico: a discusso acerca da

    natureza no ensino de cincias ...........................................................................

    71

    2.1.1 Cincias: meio ambiente .......................................................................... 72

    2.1.2 Projeto Pitangu ....................................................................................... 76

    2.1.3 Projeto Ararib ......................................................................................... 77

    2.1.4 Reflexes a respeito dos objetivos e da abordagem dos manuais

    didticos .............................................................................................................

    80

    2.1.5 Sobre a organizao do trabalho didtico ................................................ 91

    2.2 O uso do manual didtico no ensino de cincias .......................................... 92

    2.2.1 A relao professor/aluno mediada pelo manual didtico ....................... 92

    2.2.2 O que os professores pensam sobre sua prtica docente .......................... 101

    Captulo III - O manual didtico de cincias na relao educativa: uma

    abordagem ambiental .......................................................................................

    118

    3.1 O manual didtico como mediador da relao educativa ............................ 119

    3.2 Os limites do manual didtico de cincias na abordagem das questes

    ambientais ...........................................................................................................

    130

    Consideraes finais ......................................................................................... 140

    Referncias ........................................................................................................ 146

    Apndice ............................................................................................................ 156

  • INTRODUO

    Os estudos aqui apresentados trazem a temtica do manual didtico como

    instrumento de mediao na relao professor/aluno, tomando como foco de

    discusso o ensino de cincias na abordagem das questes ambientais, uma vez que

    na contemporaneidade tais questes so determinantes no processo de produo da

    existncia humana.

    Nosso ponto de partida para a pesquisa sobre o tema foi o fato de que a

    discusso sobre o manual didtico no se esgota, visto que ele ainda permanece

    como o mais importante instrumento de trabalho do professor no cenrio da

    educao escolar brasileira e, portanto, o material de maior peso para o trabalho

    didtico, cuja produo se inscreve na lgica do capital, sob o patrocnio do Fundo

    Nacional de Desenvolvimento da Educao (FNDE)/Ministrio da Educao (MEC),

    como mercadoria fetichizada, constitutiva do processo de reproduo ampliada do

    capitalismo monoplico.

    Partindo desse pressuposto, buscamos compreender a educao na

    sociedade em que vivemos, por meio da discusso acerca dos fundamentos do

    trabalho didtico, para encontrar elementos que nos permitam identificar o papel

    histrico do manual didtico no processo educativo. Para tanto, tomamos como foco

    de discusso o manual didtico da disciplina de cincias, adotados nos 5 e 6 anos de

    escolas da Rede Municipal de Ensino (REME) de Campo Grande/MS.

    As afirmaes acima ficam evidentes na literatura pertinente ao tema, o que

    pode ser constatado no catlogo analtico intitulado O que sabemos sobre o livro

    didtico, de 1989, na tese de doutorado de Hilrio Fracalanza, com o tema O que

    sabemos sobre o livro didtico para o ensino de cincias no Brasil, defendida em

    1992 e, mais recentemente, nos anais do Simpsio Internacional Livro Didtico:

    Educao e Histria, realizado em 2007, na Faculdade de Educao da Universidade

    de So Paulo, com 154 trabalhos. Cabe assinalar, tambm, as pesquisas em

    andamento desenvolvidas pelo grupo do HISTEDBR, regional de Mato Grosso do

    Sul, ligadas ao Programa de Pesquisa Instrumentos do trabalho didtico e relao

    educativa na escola moderna (SOUZA, 2010, p.121).

    Antes, contudo, de darmos prosseguimento s discusses a respeito do tema

    sobre o qual intentamos refletir, vale esclarecer a razo de nossa opo pelo termo

  • 10

    manual didtico. Livro didtico a denominao mais usual para esse instrumento

    de trabalho do professor que neste estudo se apresenta ao debate sobre sua presena

    no interior do trabalho didtico.

    Porm, optamos pela categoria manual didtico por melhor exprimir uma

    verso resumida e simplificada dos contedos contidos nesse recurso material que,

    na concepo comeniana, tinha a funo de facilitar o ensino, de modo que qualquer

    pessoa pudesse utiliz-lo para ensinar tudo a todos. Essa pessoa o professor, no

    precisaria de uma formao aprofundada dos conhecimentos necessrios ao exerccio

    da funo. Bastariam, a ele, os conhecimentos essenciais utilizao dos manuais

    didticos, tanto do professor quanto do aluno (ALVES, 2005). Vale ressaltar que a

    centralidade e a exclusividade que ocupa na relao educativa que confere a tal

    instrumento o carter de manual e que o difere do livro didtico. Dessa perspectiva,

    qualquer que seja o livro utilizado pelo professor pode assumir caractersticas de

    manual, desde que seja utilizado como fonte nica de conhecimento mesmo porque

    devemos considerar que seu carter, em princpio, este e que seu contedo seja

    simplificado ao ponto de sonegar elementos da realidade humana que impeam a

    autoconstruo do indivduo rumo emancipao humana.1

    Elaborada sob distintas bases tericas, a extensa produo sobre o tema

    apresenta discusses que envolvem a funo do manual didtico na transmisso dos

    conhecimentos, sua constituio histrica, o seu polmico papel de estruturador da

    atividade de ensino, a reforma do manual didtico, e tambm a discusso ideolgica

    sobre os conhecimentos veiculados por esse instrumento2. Alm das obras dedicadas

    exclusivamente ao manual didtico, no podemos deixar de ressaltar a existncia de

    trabalhos que levantam discusses acerca de variados temas sobre educao e que

    no necessariamente tratam desse recurso material, embora mencionem, explcita ou

    implicitamente, alguns de seus aspectos, relacionando-os ao tema ali apontado. Isso

    ___________ 1 Observe-se que os autores apresentados neste trabalho utilizam indistintamente a expresso livro

    didtico ou manual didtico nos textos e/ou obras em que abordam a temtica em questo, portanto,

    quando nos referirmos s suas produes nos remeteremos ao termo utilizado por cada autor. 2 Os autores aqui citados so aqueles sobre os quais no faremos maiores comentrios no interior do

    texto. Fernandes (2004) trata do manual didtico com enfoque na sua funo de transmisso dos

    conhecimentos. Alade Oliveira (1968) e Choppin (2004), em relao ao manual didtico, analisam

    como este se constituiu historicamente. Zilberman (1987) e Souza (2007) investigam o manual

    didtico como estruturador da atividade de ensino. Sobre melhoria de qualidade cf. Fracalanza (1992,

    2003). A respeito da ideologia veiculada pelo manual didtico, cf. Campos (1987).

  • 11

    pode ser observado, por exemplo, em obras como de Smolka (2000), Saviani (1986),

    Coletivo de Autores3 (1994) e Torres (2000).

    Historicamente, o manual didtico foi concebido por Jan Amos Comenius4

    com o propsito de ensinar tudo a todos de modo certo, fcil, slido, com economia

    de tempo e para facilitar a execuo do mtodo. Assim, insere-se na pedagogia

    comeniana como um instrumento para o professor, na organizao do trabalho

    didtico, j que nele estariam contidos todos os contedos necessrios s aulas, dessa

    forma, dispensando o professor do conhecimento erudito (COMENIUS, 2006).

    Tal forma de organizar o trabalho didtico veio se materializar a partir do

    sculo XIX, em razo do desenvolvimento das foras produtivas, propcias

    instaurao da escola moderna. Segundo Alves (2005, p.141), aps a sua instituio

    essa proposta petrificou-se e, ainda hoje, permanece resistindo s tentativas que se

    colocam como objetivo a sua superao.

    Assim, considerando a petrificao da proposta comeniana de utilizao do

    manual didtico, buscamos na historiografia da rea as contribuies necessrias ao

    estudo do objeto em causa.

    No Brasil do sculo XX, destacam-se dois autores Ansio Teixeira (1900-

    1971) e Paulo Freire (1921-1997) que, mesmo no tendo dedicado seus estudos

    especificamente aos manuais didticos, tambm contriburam e permanecem

    contribuindo, dada a atualidade de suas produes tericas para o desvelamento da

    utilizao desse instrumento na prtica pedaggica do professor. Ao formularem suas

    propostas para a educao brasileira, embora sob pressupostos diferentes, esses

    educadores, pela prpria natureza do manual didtico, discutiram a sua utilizao

    inserida no mbito dessas propostas (NEVES; BRITO, 2009).

    Ansio Teixeira, em vrios de seus escritos, demonstra a importncia dos

    livros didticos e manuais de ensino como recurso do professor. Ao assumir a

    direo do, ento, Instituto Nacional de Estudos Pedaggicos (INEP), que promoveu,

    poca, a produo de materiais didticos para todo o pas, declara com rigor que

    [...] no podemos fazer escolas sem professores, seja l qual for o nvel

    das mesmas, e, muito menos, ante a falta de professores, improvisar, sem

    recorrer a elementos de um outro meio, escolas para o preparo de tais

    ___________ 3 Assim se intitulam os autores: Carmem Lucia Soares, Celi Nelza Zllke Taffarel, Elizabete Varjal,

    Lino Castellani Filho, Micheli Ortega Escobar e Valter Bracht. 4 Bispo e educador Jan Amos Comenius (1592 -1670), nasceu em Nivnice, Moravia, hoje Repblica

    Tcheca.

  • 12

    professores. Depois, no podemos fazer escolas sem livros. [...] / [...] / Se

    conseguirmos [...] os estudos objetivos que aqui sugerimos, e sobre eles

    fundarmos diagnsticos vlidos e aceitos, no ser difcil a elaborao dos

    mtodos de tratamento e a indicao dos prognsticos. Os mtodos de

    tratamento surgiro nos guias e manuais de ensino para os professores e

    diretores de escolas, os quais constituiro livros experimentais de

    sugestes e recomendaes, para a conduo do trabalho escolar. Em

    complemento deveremos chegar at o livro didtico, compreendendo o

    livro de texto e o livro de fontes, buscando integrar nestes elementos de

    trabalho o esprito e as concluses dos inquritos procedidos.

    (TEIXEIRA, 1952, s/p).

    Essa declarao mostra como tem sido forjada na educao brasileira a

    dependncia da mediao do recurso didtico na relao do trabalho didtico e

    evidencia-se, tambm, o entendimento desse educador sobre o que considera como

    livro didtico: um tratado onde se inscrevem os mtodos e o corpo sistematizado dos

    conhecimentos para a conduo do trabalho escolar.

    Um formato de manual didtico que se diferencia de todos os outros por seu

    carter participativo de elaborao, mas no menos instrucional do que os

    tradicionais, foi proposto por Paulo Freire, educador que tratou da alfabetizao de

    adultos no Brasil e em outros pases. Ele aboliu, em suas formulaes e prticas em

    educao, as tradicionais cartilhas por acreditar que estas [...] pretendem fazer uma

    montagem de sinalizao grfica como uma doao e que reduzem o analfabeto mais

    condio de objeto de alfabetizao do que de sujeito da mesma [...] (FREIRE,

    1981, p.72). Partindo do pressuposto da produo participativa dos recursos materiais

    e da concepo de alfabetizando como sujeito de sua prpria alfabetizao, Freire

    (1981) apresenta a sua proposta de manual didtico nos Cadernos de Cultura

    Popular que consistiam de textos problematizadores [...] escritos em linguagem

    simples, jamais simplista, que trata uma temtica ampla e variada, ligada, toda ela, ao

    momento atual do pas [...] (FREIRE, 1984, p.45). Integrava esse material didtico o

    Caderno de Exerccios, estampando fotos de situaes cotidianas acompanhadas de

    frases alusivas situao ali apresentada, para os devidos debates. V-se, assim, que,

    embora com uma roupagem diferenciada, esse recurso material permaneceu

    exprimindo uma verso resumida e simplificada dos contedos, porm, esboava

    certa autonomia do professor, quando optou pela produo coletiva dos Cadernos5.

    ___________ 5 Esses Cadernos eram elaborados, selecionados e confeccionados pela equipe de educadores dos

    Crculos de Cultura vinculados ao Movimento de Cultura Popular (MCP) de Recife (NEVES;

    BRITO, 2009).

  • 13

    A produo que trata mais detidamente do manual didtico se concretiza e

    se intensifica a partir dos anos de 1970, focalizando uma multiplicidade de

    abordagens na literatura. Autores como Joo Oliveira, Guimares e Bomeny (1984);

    Pinsky (1985); Freitag, Motta e Costa (1993) e Bitencourt (2004) identificaram, nas

    investigaes sobre os manuais, a participao do Estado6 como nica instncia de

    deciso na formulao e definio da poltica dos manuais didticos, ressaltando o

    carter burocrtico e assistencialista dessa poltica. Apontaram tambm a

    interferncia do Estado como principal consumidor da produo dos referidos

    manuais, promovendo o mercado editorial no pas, sem, contudo, mostrar como e por

    que assume o papel de comprador monoplico desse material para distribuio

    gratuita s escolas pblicas, contribuindo, sobremaneira, com a explorao da fora

    de trabalho e consequente lucro para as editoras privilegiadas nesse processo.

    Na mesma linha de investigao, Hfling (2000) apresenta as aes do

    Estado em termos de poltica do manual didtico, enfatizando os vrios programas

    por meio dos quais materializam-se as propostas de regulamentao desse

    instrumento de trabalho no contexto das polticas em educao. Na relao

    Estado/manual didtico, os programas que dimensionaram as polticas

    governamentais, como o Programa do Livro Didtico para o Ensino Fundamental

    (PLIDEF/1972), o Programa do Livro Didtico (PLID/1972), o Programa Nacional

    do Livro Didtico (PNLD/1985) e Programa Nacional do Livro e da Leitura

    (PNLL/2006) tiveram como objetivo atender aos alunos do Ensino Fundamental,

    promovendo a circulao escolar do manual didtico. Esses programas foram

    implementados pelas sucessivas instituies governamentais, por meio do Instituto

    Nacional do Livro (INL/1937), da Fundao Nacional de Material Escolar

    (FENAME/1967) e Fundao de Assistncia ao Estudante (FAE/1983), que, como

    mecanismos de controle, estiveram frente da produo desse material. A autora se

    prope a analisar politicamente [...] as diferentes instncias que fazem as escolhas

    em relao a um programa ou mesmo a uma poltica [...] (HFLING, 2000, p.160),

    porm, no radicaliza a anlise ao ponto de trazer tona as intenes do Estado no

    que diz respeito natureza de sua existncia, qual seja, assegurar as condies de

    acumulao e valorizao da reproduo ampliada do capital.

    Os conhecimentos transmitidos por meio do manual didtico colocam-se,

    tambm, no quadro de discusses na forma de como os textos (trecho escrito,

    ___________ 6 O papel do Estado na sociedade capitalista ser apresentado no primeiro captulo deste estudo.

  • 14

    exerccios e anexos) so apresentados aos alunos, induzindo-os s respostas corretas,

    sem a devida compreenso dos contedos (MOLINA, 1988). A autora, ao mesmo

    tempo em que assinala a precarizao dos textos, considerando [...] deplorvel [...] a

    utilizao de segmentos de obras maiores, [...], j que muitas vezes, o segmento

    perde grande parte de sua atrao, fora do contexto maior da obra., afirma tambm

    que [...] possvel elaborar [e reformular] textos didticos mais adequados [...]

    compreenso do aluno, mas que, entretanto, isso exigiria [...] um nvel de

    informao e atualizao pedaggica nem sempre disponveis ao professor comum

    [...] (MOLINA, 1988, p.39 e 91). Essa postura frente ao problema faz parecer que o

    proposto no vai alm da to buscada reforma qualitativa do manual didtico, no

    levando em conta o debate sobre a natureza do conhecimento e a vulgarizao deste

    que, paulatinamente, vai ocupando o lugar de formas mais elevadas do conhecimento

    socialmente acumulado.

    Embora Molina (1988, p.47) evidencie as afirmaes de Eco e Bonazzi

    (1980, p.18), no alcana o entendimento desses ltimos quanto s suas aspiraes de

    que [...] as crianas seriam educadas para reconhecer e julgar as mentiras que

    tentam incutir-lhes. A questo colocada por Eco e Bonazzi (1980) de que no se

    faam mais livros textos e muito menos livros melhores. A questo para eles dar

    oportunidade a professores e alunos de acesso a bibliotecas ricas e aquisio de

    noes verdadeiramente teis, a partir da explorao direta do mundo.

    Em contraponto a esses posicionamentos, acrescente-se as formulaes de

    Saviani (2003, p.14) sobre o tipo de conhecimento a ser transmitido na escola. Para

    ele, no se considera qualquer tipo de saber, mas aquele que [...] diz respeito ao

    conhecimento elaborado e no ao conhecimento espontneo; ao saber sistematizado e

    no ao saber fragmentado; cultura erudita e no cultura popular.

    Faria (1987, p.9) elege a categoria trabalho7 como categoria de anlise para

    o estudo do manual didtico, considerando-o [...] um dos veculos utilizados pela

    escola para a transmisso da ideologia burguesa [...]. Como tal, julga que os textos

    apresentados no manual didtico mostram o trabalho no como um ato consciente de

    transformao da natureza para manuteno da existncia humana, mas como um

    processo mecnico de equilbrio da natureza.

    ___________ 7 Por agora basta sabermos que antes de tudo, o trabalho um processo entre o homem e a Natureza,

    um processo em que o homem, por sua prpria ao, media, regula e controla seu metabolismo com a

    Natureza (MARX, 1985a, p.149). Essa categoria ser melhor explicitada no primeiro captulo.

  • 15

    A autora demonstra como a viso burguesa de trabalho no manual didtico

    idealista, casustica, linear e genrica, tornando superficiais as explicaes dadas

    por esse instrumento de trabalho, o que impossibilita uma viso de totalidade. Para

    ela, como o manual didtico traz a viso burguesa de sociedade, no permite o

    desvelamento dos antagonismos de classe prprio dessa formao social.

    Assim, a autora entende que o manual didtico como portador da ideologia

    dominante, como instrumento da burguesia para manuteno do poder estabelecido,

    [...] contribui para a reproduo da classe operria [...], mas que ainda assim

    oferece [...] algumas informaes [...] que sendo elaboradas versus a vivncia da

    classe operria poder tornar-lhe mais um instrumento para a sua luta para a

    transformao social [...] (FARIA, 1987, p.77-79, grifo da autora). Para tal

    necessrio um professor que conhea o contedo desse manual, e assim possa

    apontar aos alunos as contradies entre o discurso do manual didtico e as

    experincias vividas por eles (FARIA, 1987).

    Para romper com a ideologia do livro didtico, Faria (1987, p.80) prope

    um novo professor e um novo livro didtico que [...] realmente ensinem e eduquem

    o aluno [...] para a transformao da sociedade.

    Saviani (1986, p.102), ao tratar do livro didtico, aponta esse recurso como

    necessrio ao desenvolvimento do processo de ensino-aprendizagem, esclarecendo

    que a assimilao dos conhecimentos pelo aluno deve estar ao seu alcance e que o

    veculo de comunicao tem de estar [...] impregnado de mensagem, do mesmo

    modo que esta no tem sentido se no se corporificar no meio [...]. Para o autor, so

    os conhecimentos que devem predominar sobre o meio ou instrumento e considera

    que tais conhecimentos so necessrios ao educador, visto que ele quem

    determinar quais instrumentos so capazes de viabilizar a assimilao daqueles

    conhecimentos pelos alunos.

    Nesse sentido, Saviani levanta a questo da predominncia de smbolos

    visuais (livros) e verbais nas escolas, o que levaria necessidade de ampliao dos

    recursos materiais utilizveis no processo educativo, dada a situao histrica que

    oferece variadas alternativas para esse fim. Entretanto, pergunta:

    Isto significaria que o livro didtico, enquanto recurso educativo, est em

    vias de ser ultrapassado e fadado a desaparecer? Ao contrrio; significa

    que sua faixa de referncia se amplia (j que como instrumento mais

    abstrato ele propicia maior campo de abrangncia) para se articular e, em

    certos casos, abarcar outros recursos pedaggicos. Em outros termos,

    caber ao livro didtico servir como elemento estimulador a professores e

  • 16

    alunos no sentido de aguar-lhes a capacidade criadora levando-os

    descoberta e uso de novos recursos, atravs de sugestes mltiplas e ricas.

    (SAVIANI, 1986, p.103, grifo nosso)

    Por um lado, afirma Saviani (1986) que o conhecimento, daquela forma

    convenientemente arranjado no livro didtico para a compreenso do aluno, acabou

    por se transformar em um conjunto de enunciados estticos e conclusivos. Por outro

    lado, pondera que existe uma diferena entre conhecimento com fins cientficos e

    conhecimentos com fins de ensino. Segundo ele, por exemplo, o gegrafo tem por

    objetivo esclarecer o fenmeno geogrfico e o professor de geografia a promoo do

    homem, na medida em que os contedos de Geografia so apenas um meio para se

    atingir esse fim.

    Caberia, portanto, ao professor selecionar e organizar esses contedos para

    subsidiar os alunos quanto aos elementos da realidade a serem conhecidos, os quais o

    levaro ao desenvolvimento real e concreto, de modo a compreender a lgica dessa

    realidade, superando-a a partir de suas prprias contradies.

    Para Saviani (1986, p.104, grifo nosso), o livro didtico o instrumento em

    que se veicula o conhecimento cientfico transformado em conhecimento educativo.

    No apenas adequado a esse fim, [...] mas insubstituvel, uma vez que os demais

    recursos no se prestam para a transmisso de um corpo de conhecimentos

    sistematizados como o aquele [...]. Em outras palavras, entende o autor que o livro

    didtico tem uma funo educativa prpria, qual seja, a de transmitir o conhecimento

    cientfico sistematizado para fins educacionais e no a cincia em si mesma.

    H que se concluir dessa discusso proposta por Saviani que,

    dialeticamente, o livro didtico, ao mesmo tempo em que pode ser um instrumento

    simplificador do conhecimento acumulado historicamente pode, tambm, ser um

    instrumento, um meio de promoo do homem, tendo em vista os limites impostos

    pelo sistema capitalista emancipao humana8.

    Diferentemente de Saviani, que considera a imprescindibilidade do livro

    didtico como um instrumento disseminador do conhecimento sistematizado com

    finalidade educacional, Alves (2005) defende que o manual didtico comeniano

    objeto a ser eliminado/suprimido como mediador da relao educativa.

    ___________ 8 Emancipao humana no sentido de atendimento das necessidades genuinamente humanas e no a

    deformao das necessidades existentes hoje, prprias da sociedade capitalista.

  • 17

    Pesquisando a educao, tambm na perspectiva do trabalho, porm, com o

    foco na produo material da escola, Alves (2001) busca, nas concepes

    comenianas, uma discusso sobre os caminhos da organizao do trabalho didtico

    (categoria rubricada por esse autor) no interior das instituies educacionais,

    vinculado organizao tcnica do trabalho. O autor apresenta essa categoria

    esclarecendo que:

    No plano mais genrico e abstrato, qualquer forma histrica de

    organizao do trabalho didtico envolve, sistematicamente trs

    aspectos: a) ela , sempre, uma relao educativa que coloca, frente a

    frente, uma forma histrica de educador, de um lado, e uma forma

    histrica de educando(s), de outro; b) realiza-se com a mediao de

    recursos didticos, envolvendo os procedimentos tcnico-pedaggicos do

    educador, as tecnologias educacionais pertinentes e os contedos

    programados para servir ao processo de transmisso do conhecimento, c)

    e implica um espao fsico com caractersticas peculiares, onde ocorre

    (ALVES, 2005, p.10-11, grifo do autor).

    Assim, como parte constitutiva da organizao do trabalho didtico,

    presente no contexto da mediao entre professor e aluno, o manual didtico passou

    a ser analisado por Alves (2001) como um instrumento de trabalho resultante da

    diviso do trabalho didtico no processo manufatureiro da escola comeniana. Vale

    ressaltar que para ele, o manual didtico se mantm historicamente, apesar das

    modificaes metodolgicas e de contedo que se processaram ao longo do tempo.

    Dessa forma, Alves (2001, p.246) considera que as condies materiais j

    esto presentes em certas experincias contemporneas para a superao do manual

    didtico, fazendo a seguinte comparao:

    Caso algum se propusesse a construir um arado de melhor qualidade

    para a agricultura seria motivo de riso, pois, hoje, a mquina o

    parmetro do qual se parte. Antes da descoberta das armas de fogo,

    possivelmente, seriam bem-vindas iniciativas que aumentassem o alcance

    das flechas pela potencializao de fora do arco [...]. Hoje, iniciativas

    semelhantes seriam consideradas esdrxulas, pois esses instrumentos

    foram superados pelo tempo. [...] Em relao a ele [manual didtico]

    torna-se canhestro qualquer esforo de melhoria. Esse arado do trabalho

    didtico precisa, pura e simplesmente, ser suprimido. (ALVES, 2001,

    p.270-271, grifo do autor)

    Embora o debate em relao ao uso do manual didtico, definido por Alves

    (2001) como anacrnico para o nosso tempo, tenha avanado em direo sua

    supresso da relao educativa, ele ainda permanece presente na escola, mesmo na

    forma mais desenvolvida da educao, como a EaD (LANCILOTTI, 2010).

  • 18

    Assim, as questes que essa pesquisa coloca so: a) como, apesar de ser

    considerado anacrnico para a escola contempornea e do seu carter de

    simplificao e objetivao do conhecimento, o manual didtico permanece soberano

    nas salas de aula?; b) de que forma essa presena se materializa no trabalho do

    professor, particularmente considerando a REME/Campo Grande, nos 5 e 6 anos do

    Ensino Fundamental?; c) que limites impem os contedos veiculados pelo manual

    didtico para a compreenso da contradio entre transformao da natureza para

    acumulao do capital e a transformao da natureza para obteno dos meios de

    subsistncia do homem como conjunto da sociedade?

    Nesses termos, o presente estudo tem por objetivo investigar a utilizao do

    manual didtico na relao do trabalho pedaggico do professor e suas implicaes

    para a conservao/superao do trabalho didtico em uma sociedade dominada pelo

    modo de produo capitalista. Especificamente investigaremos trs aspectos do tema

    central: 1) analisar em que medida o manual didtico permanece como principal

    instrumento de trabalho do professor; 2) determinar no ensino de cincias quais os

    limites impostos pelo manual didtico para a compreenso da relao

    homem/natureza como fruto do trabalho; 3) investigar como o professor utiliza, no

    ensino de cincias, o manual didtico.

    Para esta pesquisa realizamos, inicialmente, uma reviso bibliogrfica da

    literatura produzida sobre o objeto de investigao, com o objetivo de levantar as

    questes apontadas pelos estudos sobre o manual didtico. Desta reviso, foram

    descartadas as obras que fazem referncia superficial ou no trazem contribuies

    significativas para a discusso da temtica em pauta. Posteriormente, os textos foram

    divididos conforme a relevncia para a anlise constante dos captulos deste trabalho.

    O levantamento dos dados empricos foi realizado em trs fases, no ano de

    2009. Inicialmente, analisamos os manuais didticos de cincias de 5 e 6 anos, com

    a finalidade de apontar de que maneira o manual didtico comeniano permanece

    estabelecendo a simplificao e objetivao do conhecimento historicamente

    acumulado, cujas evidncias so apontadas pelos estudos j realizados. Para essa

    anlise quatro aspectos foram observados: 1) a estrutura do manual didtico; 2) o

    tratamento dado s questes ambientais; 3) as orientaes aos professores sobre o

    modo de utilizao desse instrumento de trabalho; 4) o nvel de autonomia do

    professor para buscar em outras fontes clssicas e/ou cientficas os conhecimentos e

    formas para o desenvolvimento do trabalho didtico.

  • 19

    Na segunda fase, optamos pela observao, em sala de aula, das sries

    selecionadas para verificar como ocorre a utilizao do manual didtico nas questes

    relativas ao ambiente, na organizao do trabalho didtico. Consideramos as

    observaes uma imposio metodolgica, uma vez que apenas a anlise literria no

    condio para a apreenso do objeto. Nesse sentido, tornou-se necessrio

    evidenciar como se d a mediao real do manual didtico na relao educativa, a

    partir do contato direto com professores e alunos. Na realizao das observaes

    buscamos constatar: 1) de que forma o professor utilizou, ou no, o manual didtico,

    se ultrapassou os limites desse manual e que outros recursos foram utilizados; 2) que

    tratamento foi dado pelo professor ao conhecimento sobre as questes ambientais e

    3) como os professores organizam o trabalho em sala de aula.

    A terceira fase teve como objetivo cotejar as observaes em sala de aula

    com o que pensa o professor sobre o seu trabalho didtico e o que realiza no seu

    cotidiano educativo. Para tal, foram realizadas entrevistas semiestrutradas (roteiro de

    entrevista no Anexo) com os professores das turmas selecionadas, para apontar as

    possveis contradies presentes nas suas prticas pedaggicas. O roteiro das

    entrevistas foi organizado de forma a captar do pensamento dos professores os

    seguintes aspectos: concepo, uso, vantagens e limites do manual didtico,

    utilizao de material complementar, organizao do trabalho didtico, abordagem

    das questes ambientais.

    As entrevistas foram realizadas, com agendamento prvio, na localidade das

    escolas selecionadas. Nessa fase da pesquisa, utilizamos um gravador para registro

    dos depoimentos orais, que foram transcritos ulteriormente. Posterior coleta das

    informaes, os dados foram confrontados com a bibliografia que d sustentao

    terica ao trabalho.

    Para o levantamento dos dados foram selecionadas duas escolas, uma

    urbana e uma da zona rural, da Rede Municipal de Ensino (REME) de Campo

    Grande/MS. Na escola da rea urbana entrevistamos trs professores, sendo um do 5

    ano e dois do 6 ano e, na escola da zona rural, um professor de cada srie.

    Quanto escolha do universo da pesquisa, optamos por duas escolas da

    REME9, em virtude da facilidade de acesso s informaes necessrias

    investigao, j que no momento dessa opo, estvamos atuando como profissional

    ___________ 9 A opo poderia ser por qualquer escola, privada ou pblica, o que no interferiria nos rumos da

    pesquisa.

  • 20

    da educao, no rgo central dessa rede. Dois aspectos na escolha desse universo

    so importantes destacar, por oferecerem a possibilidade de comparao na anlise:

    1) a preferncia por uma escola urbana e uma de zona rural permitiu a observao

    das condicionantes geogrficas e histricas na realizao da prtica docente; 2) a

    opo pelos 5 e 6 anos das escolas destacadas proporciona a oportunidade de

    verificar as diferenas entre a utilizao do manual didtico por um professor com

    formao pedaggica e um professor especialista.

    Das escolas selecionadas, uma situa-se na regio central do permetro

    urbano de Campo Grande e outra na BR-163 km 444 Fazenda Cachoeirinha (40

    km), com duas extenses. A primeira escola atende alunos da Educao Infantil ao

    Ensino Fundamental, com a particularidade de estar situada em uma regio central da

    cidade. Esses alunos, em sua maioria, so filhos de trabalhadores domsticos, de

    rgos pblicos, do comrcio e moram na periferia, sendo necessrio o seu

    deslocamento at a escola.

    A segunda escola participante da pesquisa recebe filhos de trabalhadores

    rurais que vivem em propriedades do entorno da escola e suas extenses. Alm de

    atender os alunos com o ensino regular, essa escola oferece, tambm, classes

    multisseriadas e a modalidade Educao de Jovens e Adultos (EJA) para os que no

    tiveram acesso educao escolar ou continuidade dela nas etapas da Educao

    Bsica.

    As categorias trabalho didtico, organizao do trabalho didtico e

    manual didtico, dentre outras, ganham centralidade neste estudo em decorrncia da

    temtica escolhida para a investigao. Em se tratando de categorias derivadas da

    categoria trabalho na perspectiva de anlise materialista histrica, faremos,

    primeiramente, uma abordagem a partir dos estudos de Marx, explicitando aspectos

    terico-metodolgicos relevantes para a compreenso do objeto em pauta. A

    compreenso da sociedade capitalista se faz necessria para estabelecer as relaes

    entre o processo de produo da vida material e a educao como uma atividade

    humana.

    Nesse sentido, compreender a sociedade de classes implica conhecer com

    base em que condies se produz a vida material, o que nos leva necessariamente

    discusso das relaes de trabalho que se estabelecem na presente sociabilidade.

    Contemporaneamente isso se expressa na forma como tais relaes se realizam

  • 21

    provocando a intensificao do processo de transformao da natureza para obteno

    de lucros astronmicos.

    A sociedade tem se deparado com o que atualmente est sendo denominado

    de crise ambiental (2010) como o mais recente ciclo de crises do sistema

    capitalista10

    . Se observarmos sua constante presena na mdia, esse tema tem

    levantado as mais diferentes e dissonantes discusses quanto real condio de

    destruio impingida ao planeta pelo modelo de produo que esta sociedade

    construiu.

    A opo pela discusso a respeito da questo ambiental retratada no manual

    didtico est relacionada atual fase histrica do capitalismo, em que as condies

    ambientais, resultado [...] da acumulao no quadro da dominao mundial do

    capital financeiro [...] (CHESNAIS e SERFATI, 2003, p.40), tem se agravado, dado

    o acelerado ritmo de degradao das condies fsicas da reproduo social e,

    portanto, a degradao da vida. Essas condies, em verdade, foram gestadas desde

    as origens do capitalismo e determinadas pela forma como o homem produziu os

    seus meios de vida, por meio do processo de transformao da natureza. Este debate

    reveste-se de importncia no mbito da educao escolar em razo da necessidade de

    apreenso da totalidade11

    , visto que entender a existncia do homem no planeta

    depende do conhecimento e compreenso de como o capital determina a reproduo

    metablica universal e social (MSZAROS, 2005).

    No desenvolvimento da pesquisa, tomamos como fundamento terico a

    anlise das bases materiais do modo de produo capitalista, na perspectiva do

    materialismo histrico. Procuramos entender, com base nos estudos de Marx, como,

    por quais vias, por quais mediaes, os homens fazem a totalidade de sua histria.

    Para o pensador alemo

    Os pressupostos de que partimos no so arbitrrios, nem dogmas. So

    pressupostos reais de que no se pode fazer abstrao a no ser na

    imaginao. So os indivduos reais, sua ao e suas condies materiais

    de vida, tanto aquelas por eles j encontradas, como as produzidas por sua

    prpria ao. Estes pressupostos so, pois, verificveis por via puramente

    emprica. (MARX e ENGELS, 1991, p.26-27)

    ___________ 10

    2008 crise do preo dos alimentos, 2009 crise dos mercados. 11

    Categoria de anlise que apreende a realidade nas suas contradies, de forma a compreend-la a

    partir de suas relaes sociais mais ntimas, revelando dialeticamente suas conexes internas. Nas

    palavras de Cury: A totalidade no um todo j feito, determinado e determinante das partes, no uma harmonia simples, pois no existe uma totalidade acabada, mas um processo de totalizao a

    partir das relaes de produo e de suas contradies. (CURY, 2000, p.35)

  • 22

    na categoria trabalho que Marx encontra o fundamento para demonstrar

    essa totalidade histrica. Dessa forma, nossa anlise estar pautada em tal categoria

    para procedermos a analisar do uso do manual didtico na relao do trabalho

    docente.

    Este estudo se organiza em trs captulos, sendo que no primeiro captulo,

    O manual didtico no interior do trabalho didtico, apresentamos uma discusso

    sobre como esse manual se insere na organizao do trabalho didtico e como como

    se d a sua utilizao escolar no mbito da sociedade capitalista contempornea.

    Nesse captulo, examinaremos mais detidamente a categoria trabalho, donde se

    originam as categorias centrais deste estudo. Enfocaremos, tambm, o papel do

    Estado burgus na manuteno da sociabilidade capitalista, como reforo expanso

    de escola pblica e, consequentemente, da utilizao do manual didtico comeniano.

    Procuramos, ainda, desenvolver a trajetria histrica do trabalho didtico a partir dos

    estudos de Alves, por considerarmos relevante a sua investigao sobre o tema na

    sociedade capitalista, chegando ao trabalho didtico nos dias atuais.

    No segundo captulo, O ensino de cincias na escola fundamental e a

    utilizao do manual didtico, abordamos o ensino de cincias na escola

    fundamental e a utilizao do manual didtico, considerando como a natureza

    apresentada pelo manual e como o professor utiliza ou no esse recurso didtico,

    partindo das observaes e entrevistas realizadas na REME de Campo Grande.

    No terceiro captulo, O manual didtico de Cincias na relao educativa:

    uma abordagem ambiental, analisamos como se constitui o manual didtico sob a

    lgica sociometablica do capital, apontando seus limites para a compreenso da

    relao homem/natureza como fruto do trabalho na relao educativa, apontando

    para a superao do manual didtico.

    Finalmente, nas consideraes finais, resgatamos, a partir das anlises

    desenvolvidas ao longo dos captulos, os questionamentos que promoveram esta

    investigao e suas respectivas discusses.

  • CAPTULO I

    O MANUAL DIDTICO NO INTERIOR DO TRABALHO DIDTICO

    O objetivo deste captulo verificarmos como o manual didtico se

    apresenta no interior do trabalho didtico, reconstruindo o percurso histrico da

    organizao do trabalho didtico proposto por Comenius at a atualidade, tratando

    mais detalhadamente de sua origem com Comenius e as propostas de superao de

    sua utilizao na organizao do trabalho didtico. Examinaremos, tambm, o

    manual didtico nas polticas pblicas, com base no Plano Nacional do Livro

    Didtico, como instrumento do Estado para a regulamentao de aes em educao

    e suas relaes ntimas com o capital, seja no mbito da indstria editorial ou da

    conformao ideolgica da sociedade capitalista contempornea.

    Como pressuposto para a formulao deste captulo, assumimos por

    princpio que toda ao educativa tem um carter filosfico. Isto requer uma

    concepo de mundo, de homem e de histria; uma concepo a respeito de como se

    d o conhecimento e como se realiza a teoria e a prtica. Aprende-se a todo

    momento, mas o que se aprende depende de onde e de como se faz esse

    aprendizado. (MSZROS, 2005, p.16, grifo nosso).

    Ao postularmos a ao educativa como uma produo humana, estamos

    afirmando que ela o resultado exclusivo da ao dos homens como construtores de

    sua prpria histria e que so, portanto, no seu conjunto, responsveis por aquela

    ao. Como so os homens que fazem a histria, so eles os articuladores das

    transformaes que levariam superao coletiva do modo de produo capitalista,

    ao qual est subordinado o atual estgio da educao. Donde se pode inferir que o

    que, onde e como fazemos a educao construo do conjunto da sociedade.

    dessa perspectiva que abordaremos as questes aqui propostas.

    1.1 As origens da organizao do trabalho didtico na escola pblica moderna

    Tendo como perspectiva o exposto acima, pretendemos demonstrar como

    foi determinada a escola a partir das proposies de Comenius e quais as

  • 24

    possibilidades de transformao da organizao do trabalho didtico12

    engendrado

    por ele. Duas obras de Alves (2001; 2005), que comportam extensa investigao

    sobre o tema, servem de base terica para precisarmos as formas histricas

    assumidas pelo manual didtico, no perodo que vai de seu surgimento com

    Comenius at a proposta de superao pelo prprio Alves (2001; 2005), no presente

    momento da sociedade capitalista.

    Para procedermos discusso anunciada, inicialmente, tornou-se necessria

    a determinao da origem e da concepo do objeto em estudo para estabelecer a

    relao entre a organizao do trabalho didtico e o instrumento de trabalho do

    professor. Tambm buscaremos desvelar o porqu se discute, ainda hoje, a utilizao

    do manual didtico como material de primeira necessidade na prtica pedaggica,

    no obstante o avano tecnolgico alcanado pela sociedade. Posteriormente,

    apresentaremos as alternativas propostas para a superao do trabalho didtico

    fundada por Comenius que, na sua essncia, permanece no espao da escola.

    No que concerne s questes do trabalho didtico, onde se insere nosso

    objeto de estudo, antes examinaremos a categoria trabalho como elemento fundante

    do ser social, por ser ela o fundamento do trabalho didtico. a partir do pensamento

    marxiano que abordaremos essa categoria, em razo de ser Marx o autor que

    definitivamente trouxe clareza ao entendimento da relao homem e natureza pelo

    trabalho, embora nem sempre considerado.

    A discusso sobre o trabalho o eixo central nas descobertas e formulaes

    a que Marx se dedicou, para captar e traduzir o processo de o homem tornar-se

    homem. Foi estudando o modo como os indivduos produziram e continuam

    produzindo a sua vida material que o pensador chegou compreenso sobre a

    capacidade histrica da humanidade de, necessariamente, assegurar a sua

    subsistncia pelo processo metablico intencional na relao com a natureza.

    A existncia humana est visceralmente ligada a esse pressuposto na medida

    em que, para manterem-se vivos, os homens devem transformar a natureza

    cotidianamente, e esse um fato ineliminvel do mundo dos homens. Nas palavras

    de Marx (1985a, p.149): Pressupomos o trabalho numa forma em que pertence

    exclusivamente ao homem. essa relao com a natureza que o diferencia dos

    ___________ 12

    Categoria rubricada por Alves (2005, p.8) a fim de [...] assegurar clareza terica temtica tratada [...], impondo-se [...] a necessidade de objetivar o contedo conferido [...] a essa expresso, que ganha sentido como ferramenta no entendimento da realidade social.

  • 25

    animais. Na produo da vida material os homens necessitam do intercmbio

    orgnico com a natureza para produzirem os meios pelos quais sero satisfeitas as

    suas necessidades fundamentais (comer, beber, vestir-se etc). Esse processo se d

    pelo trabalho.

    Marx aponta (1985a, p.149):

    Antes de tudo, o trabalho um processo entre o homem e a Natureza, um

    processo em que o homem, por sua prpria ao, media, regula e controla

    seu metabolismo com a Natureza. Ele mesmo se defronta com a matria

    natural como uma fora natural.

    A partir do trabalho, o homem apropria-se dos recursos naturais

    modificando a natureza e, ao faz-lo, lana as bases para a construo material da

    sociedade e constri-se como indivduo. Na formulao de Marx (1985a, p.149):

    Ele pe em movimento as foras naturais pertencentes a sua

    corporalidade, braos e pernas, cabea e mo, a fim de apropriar-se da

    matria natural numa forma til para sua prpria vida. Ao atuar, por meio

    desse movimento, sobre a Natureza externa a ele e ao modific-la, ele

    modifica, ao mesmo tempo, sua prpria natureza. Ele desenvolve as

    potncias nela adormecidas e sujeita o jogo de suas foras a seu prprio

    domnio.

    Diferentemente dos animais que executam operaes instintivas para

    reproduzir as suas existncias, os homens projetam na conscincia as suas aes e

    respectivos resultados, antes de realiz-las. Ao objetivarem o que projetaram na

    conscincia, transformam a realidade criando uma nova situao, pois, nesse

    movimento, aprende-se algo com a ao anterior, o que modifica tanto a realidade

    quanto o indivduo. Em uma prxima ao, a habilidade e a experincia adquiridas

    sero empregadas a uma nova situao.

    Marx continua (1985a, p.149-150):

    No fim do processo de trabalho obtm-se um resultado que j no incio

    deste existiu na imaginao do trabalhador e, portanto, idealmente. Ele

    no apenas efetua uma transformao da forma da matria natural;

    realiza, ao mesmo tempo, na matria natural seu objetivo, que ele sabe

    que determina, como lei, a espcie e o modo de sua atividade e ao qual

    tem de subordinar sua vontade. E essa subordinao no um ato isolado.

    Alm do esforo dos rgos que trabalham, exigida a vontade orientada

    a um fim, que se manifesta como ateno durante todo o tempo de

    trabalho, e isso tanto mais quanto menos esse trabalho, pelo prprio

    contedo e pela espcie e modo de sua execuo, atrai o trabalhador,

    portanto, quanto menos ele o aproveita como jogo de suas prprias foras

    fsicas e espirituais. / Os elementos simples do processo de trabalho so a

  • 26

    atividade orientada a um fim ou o trabalho mesmo, seu objeto e seus

    meios.

    O conhecimento adquirido nesse processo no individual, visto que, ao

    construir um objeto, o indivduo utilizou-se de conhecimentos anteriores acumulados

    social e historicamente pelo conjunto dos homens. Quaisquer objetivaes de ideias

    previamente pensadas, ou seja, projetadas na conscincia, possuem uma dimenso

    social e coletiva, portanto, histrica. Esse conhecimento assume uma forma

    generalizada, uma vez que pode ser utilizado, no apenas no aperfeioamento de um

    objeto inicial, mas tambm em circunstncias diversas.

    Dessa forma, podemos dizer que todo ato de trabalho adquire uma dimenso

    social. So trs os motivos dessa afirmativa: 1) ele o resultado histrico de

    desenvolvimentos anteriores; 2) um novo objeto modifica situaes histricas

    concretas de toda a sociedade, abrindo novas possibilidades e gerando novas

    necessidades para um futuro desenvolvimento; 3) os conhecimentos acumulados so

    aplicveis em diferentes circunstncias e convertidos em bem cultural compartilhado

    por todos os homens (LESSA e TONET, 2008).

    Podemos, ento, retomar a afirmao anterior de que, o pressuposto da

    existncia humana o trabalho como fundamento do ser social, porque ao

    transformar a natureza na base material os indivduos transformam tambm a si

    mesmos. Portanto, se fazem diferentes da natureza como seres autnomos que se

    relacionam entre si, o que permite sempre a construo de novas circunstncias

    histricas e novas relaes sociais.

    De acordo com Marx e Engels (1991, p.39, grifo do autor),

    [...] o primeiro pressuposto de toda a existncia humana e, portanto, de

    toda a histria, que os homens devem estar em condies de viver para

    poder fazer histria. Mas, para viver, preciso antes de tudo comer, beber, ter habitao, vestir-se e algumas coisas mais. O primeiro ato

    histrico , portanto, a produo dos meios que permitam a satisfao

    dessas necessidades, a produo da prpria vida material, e de fato este

    um ato histrico, uma condio fundamental de toda a histria, que ainda

    hoje, como h milhares de anos, deve ser cumprido todos os dias e todas

    as horas, simplesmente para manterem os homens vivos.

    O processo de trabalho que implica o ato histrico perene se caracteriza,

    segundo Marx, pela ao do homem conduzida com a finalidade de produzir valor de

    uso a partir da submisso da natureza para atender s necessidades humanas, o que

    feito com a mediao de instrumentos para esse fim. Esse processo que envolve o

  • 27

    desenvolvimento das foras produtivas13

    e, consequentemente, a superao histrica

    de determinado modo de produo da vida material14

    , alcana alto grau de

    simplificao na sociedade capitalista, obtendo como resultado um produto que nessa

    sociedade se configura como mercadoria, assim explicitada pelo autor: A

    mercadoria , antes de tudo, um objeto externo, uma coisa, a qual pelas suas

    propriedades satisfaz necessidades humanas de qualquer espcie. (MARX, 1985a,

    p.45).

    Porm, sob essa coisa externa se esconde uma relao entre homens, no

    mundo em que as coisas aparecem se relacionando entre si, mundo em que a criao

    domina o criador. A partir do momento em que a matria se transforma em

    mercadoria pelas mos do trabalhador para atender s necessidades humanas de

    consumo imediato ou como meio de produo, ela se caracteriza como valor de uso.

    Entretanto, quando o objeto produzido vai ao mercado para ser trocado por outro,

    desaparece o seu valor de uso para transformar-se em uma relao de troca de

    produtos de quantidades diferentes ou iguais entre si, o que o torna valor de troca.

    Em outras palavras, o valor de troca uma relao de quantidades de objetos que,

    abstrados de suas propriedades materiais, trocam-se entre si como valores de uso de

    espcies diferentes.

    Dessa forma, a mercadoria se distingue pelas qualidades diferentes enquanto

    valor de uso e quantidades diversas como valor de troca, tendo ao mesmo tempo

    valor de uso e valor de troca. O elemento comum que determina o seu valor o

    tempo de trabalho materializado na produo dessa mercadoria, o que inclui o valor

    dos meios de produo (matria-prima, instrumentos de trabalho, edificaes etc). A

    riqueza social que domina o modo de produo capitalista constituda pelo

    ___________ 13

    Foras produtivas so todos os instrumentos e meios de trabalho utilizados na produo da vida

    material. 14

    Com base nos estudos de Marx identificamos como modo de produo de uma sociedade a maneira

    pela qual ela se organiza socialmente para garantir a sua subsistncia a partir do trabalho. Na

    sociedade primitiva a base dessa organizao era a coleta de alimentos com pequena produtividade, o

    que no possibilitava a explorao do homem pelo homem. Na sociedade escravista e asitica,

    primeiras na explorao do homem pelo homem com o surgimento do excedente de produo, ainda

    que caracterizada pelo lento desenvolvimento das foras produtivas que deu origem s classes sociais,

    ocorre a apropriao privada das riquezas sociais e seus consequentes instrumentos de manuteno

    dessa apropriao: Estado e Direito. O feudalismo, que sucede a formao social anterior, com base na

    organizao em feudos, apoiou-se no trabalho dos servos que entregavam parte de sua produo aos

    senhores feudais. Como era interessante aos servos o aumento da produo, desenvolveram-se as

    tcnicas e ferramentas o que aumentou e melhorou a alimentao, havendo, consequentemente,

    crescimento da populao, que leva ao ressurgimento do comrcio e a um novo modo de produo em

    um patamar totalmente diverso dos anteriores o modo de produo capitalista que persiste ainda hoje. Esse sistema est ancorado na explorao do trabalho alheio pela compra e venda da fora de

    trabalho, reduzindo-a a mera mercadoria para enriquecimento privado dos indivduos.

  • 28

    conjunto das mercadorias individuais produzidas pelos trabalhadores. A sociedade

    regida pelo capital o mundo das mercadorias, onde tudo se compra e tudo se vende,

    inclusive a fora de trabalho.

    Na produo de mercadorias esto envolvidos o trabalhador, cuja nica

    propriedade a sua fora de trabalho15

    , e o capitalista proprietrio dos meios de

    produo e do capital. A relao que se estabelece entre os dois proprietrios de

    explorao: a utilidade da fora de trabalho, comprada pelo capitalista ao

    trabalhador, apenas de produo; como mercadoria que o trabalhador deve

    produzir mais do que o equivalente ao seu custo, portanto, o capitalista que comprou

    a fora de trabalho tem, ao final do processo, um valor maior do que aquele que

    pagou ao trabalhador. A esse valor maior Marx denomina mais-valia, que est

    relacionada jornada de trabalho. Diz o autor:

    [...] a jornada de trabalho est desde o princpio dividida em duas partes:

    trabalho necessrio e mais-trabalho. Para prolongar o mais-trabalho

    reduz-se o trabalho necessrio por meio de mtodos pelos quais o

    equivalente do salrio produzido em menos tempo. A produo da mais-

    valia absoluta gira apenas em torno da durao da jornada de trabalho; a

    produo da mais-valia relativa revoluciona de alto a baixo os processos

    tcnicos do trabalho e os agrupamentos sociais. (MARX, 1985b, p.106)

    Nesse sentido, podemos dizer que a importncia do trabalho produtivo para

    o capital o de agregar valor ao capital empregado, extrado do trabalho no pago.

    Portanto, para uma sociedade sob a regncia do capital, s trabalho produtivo

    aquele que gera mais-valia. Para Marx, o que determina o carter de ser trabalho

    produtivo ou improdutivo so as relaes sociais a envolvidas.

    Assim o pensador explica o trabalho produtivo e improdutivo no sistema de

    produo capitalista:

    Trabalho produtivo, portanto, o que no sistema de produo capitalista produz mais-valia para o empregador ou que transforma as condies materiais de trabalho em capital e o dono delas em capitalista,

    por conseguinte trabalho que produz o prprio produto como capital.

    (MARX, 1980, p.391, grifos do autor)

    ___________ 15

    Assim Marx define essa categoria: Por fora de trabalho ou capacidade de trabalho entendemos o conjunto das faculdades fsicas e espirituais que existem na corporalidade, na personalidade viva de

    um homem e que ele pe em movimento toda vez que produz valores de uso de qualquer espcie. (MARX, 1985a, p. 139)

  • 29

    De outra forma o trabalho improdutivo no produz mais-valia diretamente;

    nesse processo no h incorporao de trabalho excedente pelo capital, o que sucede

    na compra, por exemplo, de servios para consumo direto apenas a circulao do

    dinheiro como valor de uso e no como capital.

    Aponta Marx (1980, p.399, grifos do autor):

    Se compro o servio de um professor, no para desenvolver minhas

    faculdades, mas para adquirir aptides que me possibilitem ganhar

    dinheiro ou se outros compram para mim esse professor e se de fato aprendo alguma coisa (e isso, em si, em nada depende do pagamento do

    servio), esses custos de educao, como os do meu sustento, pertencem

    aos custos de produo da minha fora de trabalho. Mas, a utilidade

    particular desse servio em nada altera a relao econmica; no se trata

    a de relao em que transformo dinheiro em capital ou por meio da qual

    o supridor do servio, o professor me converta em seu capitalista.

    Das categorias desenvolvidas por Marx para a compreenso dos

    antagonismos entre capital e trabalho16

    , prprios das relaes capitalistas de

    produo, destacamos a produo material e imaterial para explicar o trabalho

    didtico no mbito da educao, sendo esta, um dos complexos da totalidade social.

    Se considerarmos as relaes que se estabelecem na sociedade capitalista,

    veremos que, como acessria do trabalho produtivo, a produo material, aquela que

    produz riqueza material, se submete ao modo de produo capitalista uma vez que

    todos os trabalhadores produtores de mercadoria se defrontam com os meios de

    produo como capital. Da mesma forma, a produo imaterial encontra-se sob o

    domnio do capital que, para Marx, pode ser de duas espcies: uma em que o produto

    se separa do produtor, adquirindo autonomia em relao a produtor e consumidor;

    outra em que o ato de produzir e o produto so inseparveis.

    Nas palavras do autor, a produo imaterial:

    1. Resulta em mercadorias, valores de uso, que possuem uma forma

    autnoma, distinta dos produtores e consumidores, quer dizer, podem

    existir e circular no intervalo entre produo e consumo como

    mercadorias vendveis, tais como livros, quadros, em suma, todos os

    produtos artsticos que se distinguem do desempenho do artista

    executante. [...] / 2. A produo inseparvel do ato de produzir, como

    sucede com todos os artistas executantes, oradores, atores, professores,

    ___________ 16

    Os antagonismos presentes na relao capital e trabalho devem-se explorao do trabalho alheio

    para acumulao de riquezas privadas, situao que somente pode ocorrer se os indivduos viverem

    em sociedade. Essa relao marcada por interesses inconciliveis, j que as necessidades que

    impulsionam a produo no so mais as necessidades humanas, mas as necessidades de reproduo

    do capital.

  • 30

    mdicos, padres etc. tambm a o modo de produo capitalista s se

    verifica em extenso reduzida e, em virtude da natureza dessa atividade,

    s pode estender-se a algumas esferas. Nos estabelecimentos de ensino,

    por exemplo, os professores, para o empresrio do estabelecimento,

    podem ser meros assalariados; h um grande nmero de tais fbricas de

    ensino na Inglaterra. Embora eles no sejam trabalhadores produtivos em

    relao aos alunos, assumem essa qualidade perante o empresrio. Este

    permuta seu capital pela fora de trabalho deles e se enriquece por meio

    desse processo. O mesmo se aplica s empresas de teatro,

    estabelecimentos de diverso etc. O ator se relaciona com o pblico na

    qualidade de artista, mas perante o empresrio trabalhador produtivo.

    Todas essas manifestaes da produo capitalista nesse domnio, se

    comparadas com o conjunto dessa produo, so to insignificantes que

    podem ficar de todo despercebidas. (MARX, 1980, p.403-404, grifos

    nossos).

    Tomando o pressuposto de que para o capital s produtivo o que produz

    diretamente mais-valia, o trabalho do professor em relao ao aluno passa a ser

    trabalho imaterial. Por outro lado, o dono da escola compra a fora de trabalho do

    professor que se materializa na aula como mercadoria vendida aos pais por um valor

    maior do que o que nela investiu (salrio e custos da escola). A aula uma

    mercadoria que no produz quantum, que no produz riqueza material social. Ao ser

    produzida e consumida no valoriza o capital (LESSA, 2007), diferente do trabalho

    que produz riqueza material social, ou seja, aquele que produz e valoriza o capital

    (MARX, 1985b, p.188, nota 70). Nesse caso h apenas a valorizao do capital,

    portanto, trabalho imaterial.

    Nesse sentido, o trabalho do professor produtivo ao produzir mais-valia e

    improdutivo por no produzir capital, isto , no produz meios de produo ou de

    subsistncia como produto final, os quais servem de meios de acumulao do capital.

    Portanto, o seu trabalho no aumenta o capital social global na reproduo do capital.

    A aula consumida ao tempo em que produzida, dela nada mais restando. Dela no

    permanece nenhum novo contedo material que resultaria em um novo quantum que

    poderia ser acumulado em mercadoria, meios de trabalho e meios de subsistncia.

    O professor ao produzir mais-valia no produz capital, mas gera mais-valia,

    a partir de riquezas produzidas anteriormente, que se apresenta como a mensalidade

    paga pelos pais e que vai para o capitalista dono da escola. Vale ressaltar que desse

    pressuposto existem dois tipos de professores: os que vendem a sua fora de trabalho

    ao Estado (escolas pblicas), portanto, no produzem mais-valia (trabalho

    improdutivo) e os de escola privada (trabalho improdutivo/produtivo) que produzem

    mais-valia sem, contudo, produzir contedo material da riqueza social.

  • 31

    Retomando a afirmao inicial de que as aes humanas so histricas e que

    o que, onde e como fazemos a educao construo do conjunto da sociedade, de

    importncia decisiva determinarmos o processo pelo qual o trabalho didtico foi

    construdo a partir desse pressuposto. Assim, tomaremos a transio do feudalismo

    para o capitalismo nas anlises aqui erigidas, por ser esse o momento em que surge,

    se configura e assume carter prprio no mbito da educao.

    O ato de se educar surge no momento em que o homem se distingue da

    natureza, transformando-a para atender s suas necessidades. Para continuarem

    vivos, os homens devem reproduzir indefinidamente essa transformao, e isso,

    como j vimos, se faz pelo trabalho. Portanto, no princpio [...] viver era o ato de se

    formar homem, de se educar [...] (SAVIANI, 2003, p.94), o que exigia a

    transmisso sucessiva, de uma gerao a outra, dos conhecimentos construdos

    anteriormente. Isso era feito coletivamente at o aparecimento da propriedade

    privada.

    Com a propriedade privada ocorre a submisso do homem pelo homem e a

    liberao do trabalho para os proprietrios de terra, o que permite a ociosidade de

    alguns poucos que no precisavam trabalhar para continuarem vivos. na ocupao

    do tempo livre que tem origem a escola, a qual, at o surgimento do modo de

    produo capitalista, exercia, na educao da classe dominante, funo secundria e

    [...] dependente da no-escolar, que era o trabalho [...] (SAVIANI, 2003, p.95).

    A superao do modo de produo feudal, por meio do grande

    desenvolvimento das foras produtivas, gestado no feudalismo, traz a criao de

    novas necessidades que impem a ampliao do conhecimento racional, metdico e

    cientfico. A consolidao da burguesia no poder exigia a apreenso desses

    conhecimentos como condio de sua dominao.

    Em consequncia, diz Saviani (2003, p.96):

    [...] a partir da poca moderna, o conhecimento sistemtico a expresso letrada, a expresso escrita generaliza-se, dadas as condies da vida na cidade. Eis por que na sociedade burguesa que se vai colocar a

    exigncia de universalizao da escola bsica. H um conjunto de

    conhecimentos bsicos que envolvem o domnio dos cdigos escritos, que

    se tornam importantes para todos. / Com o advento desse tipo de

    sociedade, vamos constatar que a forma escolar da educao se generaliza

    e se torna dominante. Assim, se at o final da Idade Mdia a forma

    escolar era parcial, secundria, no generalizada, quer dizer, era

    determinada pela forma no-escolar, a partir da poca moderna ela se

    generaliza e passa a ser a forma dominante, luz da qual so aferidas as

    demais.

  • 32

    Na passagem do modo de produo feudal para o modo de produo

    capitalista, duas formas de produo da vida material se sucederam inicialmente, a

    cooperao e a manufatura.

    Antes, porm, de identificarmos essas duas formas de produo, vale

    lembrar o que diz Marx (1985a, p.257) sobre a origem do sistema capitalista:

    [...] a produo capitalista comea [...] de fato onde um mesmo capital

    individual ocupa simultaneamente um nmero maior de trabalhadores,

    onde o processo de trabalho, portanto, amplia sua extenso e fornece

    produtos numa escala quantitativa maior que antes.

    Assim, a cooperao o ponto de partida da produo sob a ordem do

    capital. Ela a forma de trabalho fundada na diviso do trabalho em que, um

    determinado nmero de trabalhadores ocupa o mesmo local (edificaes) ao mesmo

    tempo, para produzirem mercadorias de igual natureza ou de natureza diferente,

    porm, conectas. Tal processo se d de maneira planejada e sob a regncia do

    capitalista, produzindo, assim, maior quantidade de valor de uso em menos tempo. A

    cooperao capitalista somente pode se realizar na existncia do trabalhador livre

    para vender a sua fora de trabalho ao capital.

    Na manufatura, a cooperao atinge sua forma mais evoluda,

    permanecendo como trao distintivo do modo de produo capitalista. Essa forma de

    produzir mercadoria avana para a diviso, em parcelas, das operaes de produo,

    onde cada trabalhador executa apenas uma das operaes do processo, o que permite

    a simplificao do trabalho pela cristalizao da funo exclusiva de um trabalhador.

    Tal diviso do trabalho cria a necessidade de novos instrumentos e ferramentas

    especializados que atendam aos tambm especializados trabalhadores parcelares,

    tornando a produo de mercadorias um processo coletivo dos trabalhadores. O que

    caracteriza a forma manufatureira de trabalho o fato de que, a partir da diviso do

    trabalho, a autonomia anterior da produo de uma mercadoria por inteiro d lugar

    ao domnio do processo pelo capitalista, na medida em que este o detentor da

    matria-prima, dos meios de produo e do capital e, portanto, planeja

    intencionalmente todas as operaes.

    Com o advento das invenes mecnicas, que reunira vrios instrumentos

    em um s mecanismo, a mquina revoluciona a indstria como meio de trabalho,

    tirando das mos dos trabalhadores funes que antes eram suas. A esse respeito,

    Marx (1985b, p.17) afirma que:

  • 33

    Como maquinaria, o meio de trabalho adquire um modo de existncia

    material que pressupe a substituio da fora humana por foras naturais

    e da rotina emprica pela aplicao consciente das cincias da Natureza.

    Na manufatura, a articulao do processo social de trabalho puramente

    subjetiva, combinao de trabalhadores parciais; no sistema de mquinas,

    a grande indstria tem um organismo de produo inteiramente objetivo,

    que o operrio j encontra pronto, como condio de produo material.

    Na cooperao simples e mesmo na especificada pela diviso do trabalho,

    a supresso do trabalhador individual pelo socializado aparece ainda

    como sendo mais ou menos casual. A maquinaria, com algumas excees

    [...], s funciona com base no trabalho imediatamente socializado ou

    coletivo. O carter cooperativo do processo de trabalho torna-se agora,

    portanto, uma necessidade tcnica ditada pela natureza do prprio meio

    de trabalho.

    O sistema de maquinaria, por no necessitar de fora muscular como fora

    motriz, traz consigo: um aumento de explorao da fora de trabalho pelo capital,

    utilizando o trabalho de mulheres e crianas; subtrai o tempo de vida do trabalhador

    com jornadas de trabalho excessivas e exaustivas; o progresso (com o auxlio da

    cincia) que aumenta a produtividade em maior velocidade, servindo de meio

    sistemtico de liberao de mais-trabalho, alm de intensificar a explorao da fora

    de trabalho.

    Com a grande indstria o capital alcana a sua forma mais desenvolvida de

    explorao do trabalho, o que permite maior acumulao de riquezas materiais. Para

    tanto, faz-se necessria a sua expanso para outras formas de trabalho que ainda no

    controlam na totalidade. Uma dessas formas a educao escolar que tem no

    trabalho didtico a sua realizao.

    Tambm o trabalho didtico, como ato de realizao da educao escolar,

    tal qual outras dimenses da totalidade social, transformou-se pela sua subsuno17

    ao capital, na transio do modo artesanal para o modo manufatureiro de ensinar.

    O processo histrico pelo qual passou o trabalho didtico no perodo da

    baixa Idade Mdia foi marcado por uma organizao em que um nico mestre

    (preceptor) atendia, individualmente, um nmero restrito de alunos (quando no

    apenas um ou dois) e no qual se concentrava todo o saber a ser transmitido aos

    alunos. Essa forma do trabalho didtico, segundo Manacorda (2007), era privilgio

    dos jovens da classe dominante. Diz o autor:

    ___________ 17

    Subsuno, para Marx (1985b, p.88), o movimento de objetivao do trabalho pela submisso

    deste ao capital. Sobre esse fundamento, cada ramo especfico da produo encontra empiricamente a configurao tcnica que lhe adequada, aperfeioa-a lentamente e cristaliza-a rapidamente, assim

    que atingido certo grau de maturidade. O que aqui e acol provoca modificaes , alm de novos

    materiais de trabalho fornecidos pelo comrcio, a mudana paulatina do instrumento de trabalho.

  • 34

    Apenas as classes possuidoras, [...], conheceram uma instituio

    especfica para o cuidado e a educao das jovens geraes; as classes

    produtivas no a conheceram, isto , nunca existiu para elas um local que

    fosse exclusivo das crianas e dos jovens. Desde o tempo em que os

    escribas do antigo Egito, como na recomendao de Ptahotep (Brunner,

    1957), orgulhoso de sua sorte de pessoas que, por meio da escola, se

    destinaram a uma situao social sem chefe, a contrapunha sorte de

    quantos eram educados para trabalhar duramente sob a superviso de

    outros, a escola tem se apresentado, na sociedade histrica, com essa

    funo. (MANACORDA, 2007, p.119)

    Como j afirmado anteriormente, at o advento do capitalismo a educao

    dava-se pelo trabalho. Nas Corporaes, caractersticas do final da Idade Mdia, o

    conhecimento era transmitido aos aprendizes18

    pelos mestres das oficinas que

    guardavam em segredo os procedimentos de seu ofcio. De acordo com Rugiu (1998,

    p.38),

    As circunstncias nas quais se trabalhava e se aprendia favoreciam o

    segredo, principalmente o prevalecer quase absoluto da tradio oral ou

    intuitivo-gestual (escuta as minhas palavras, nas Artes liberais ou mesmo olhe como eu fao, nas Artes mecnicas) unida ausncia de textos de documentao escrita sobre a atividade produtiva e de subsdios

    didticos ad hoc [...].

    A partir da forma artesanal do trabalho didtico, que tambm existia tanto

    nas escolas pblicas como nas primeiras escolas burguesas, surgem as Universidades

    da mesma maneira envoltas em mistrios tpicos das corporaes. A

    institucionalizao das universidades, que fixou um contingente de mestres e

    discpulos em um nico espao fsico, difundiu o modus italicus de ensinar. Essa

    forma de organizar o trabalho didtico implicava em que apenas um mestre atendesse

    a certo nmero de discpulos, no importando o seu nvel de conhecimento tampouco

    a sua idade, no havendo diferenciao nos termos da aula nem para alunos novos

    nem para os mais antigos. Os estudantes estavam diretamente ligados aos seus

    preceptores, o que impossibilitava a sua participao em outras aulas de outros

    mestres.

    Os instrumentos de mediao da relao educativa individual, nesse

    perodo, foram buscados em extratos manuscritos de obras clssicas, inicialmente da

    cultura greco-romana, a seguir com textos das Sagradas Escrituras, catecismo e dos

    autores renomados da patrstica e, posteriormente, retomando os clssicos greco-

    ___________ 18

    Jovens da classe trabalhadora que permaneciam nas oficinas sob os servios e a orientao de um

    mestre para aprender os segredos das Artes mecnicas.

  • 35

    latinos, juntamente com as obras catlicas da escolstica. Com o advento da

    inveno de Gutenberg foram lanadas as bases materiais para o surgimento do

    instrumento de trabalho do professor que permanece at nossos dias o manual

    didtico, questo sobre a qual trataremos mais adiante.

    A reunio de preceptores com seus respectivos grupos de discpulos em um

    s espao criou as condies para maior objetivao do trabalho didtico, que

    ocorreria por meio do modus parisiensis de ensinar, tal qual a cooperao o fizera ao

    agrupar os artesos sob o mesmo teto, propiciando a passagem manufatura.

    O modus parisiensis revela um novo passo em direo diviso do trabalho

    no interior da escola, como observa Alves (2005, p.51-52):

    Diversamente do modus italicus, o modus parisiensis de ensinar

    implicava uma forma de distribuio dos alunos por nveis de

    adiantamento, o que resultou na formao de classes. A maior

    homogeneidade das turmas constitudas permitiu que se estabelecesse

    uma tmida diviso do trabalho, no interior do trabalho didtico, e que

    diferentes professores assumissem a responsabilidade por classes e

    matrias distintas (JULIA, 2001, p.14). Tambm insinuou a progresso

    dos nveis de escolarizao, que, com o tempo, foi se fixando e

    aperfeioando, at configurar um plano de estudos sistemticos com

    articulao horizontal e vertical. Com isso, mudava, ainda, a concepo

    de espao em relao ao local devotado ao ensino e, como decorrncia,

    impunha-se o desenvolvimento das condies materiais que lhe

    correspondiam. O local de ensino, que era um apndice no monastrio e

    na catedral a escola cuja funo era a de reunir o mestre e seus discpulos -, elevou-se ao primeiro plano, quando deu origem ao colgio e

    ganhou visibilidade.

    No sculo XIV, os movimentos da Reforma (Alemanha, Inglaterra, Hungria,

    ustria) e da Contra-Reforma (Frana, Itlia, Espanha) trouxeram para o cenrio da

    educao importantes mudanas relacionadas ao trabalho didtico, com Lutero19

    e a

    Companhia de Jesus, respectivamente. Nesse momento, a emergncia da burguesia

    exigia que a educao se disseminasse para atender s necessidades de sua

    consolidao. Lutero, indiretamente influenciado pelas idias humanistas, foi um dos

    principais reformadores da Igreja. Assim como outros reformadores, ele entendia a

    educao como a redentora dos males da sociedade e foi acompanhado por

    Comenius, seu seguidor, que se props a ensinar tudo a todos, como ser observado

    mais frente.

    ___________ 19

    Martinho Lutero, que viveu no sculo XVI, foi um importante reformador dos dogmas da Igreja e

    propositor de reformas tambm no ensino.

  • 36

    A Companhia de Jesus, ordem religiosa fundada, em 1546, sob princpios

    militares, pelo espanhol Incio de Loyola, e pautada nos preceitos catlicos, teve

    entre outros objetivos (pregao, caridade, converso) o de [...] ensinar ao prximo

    todas as disciplinas convenientes ao nosso Instituto, de modo a lev-lo ao

    conhecimento e amor do Criador e Redentor nosso [...] (s/d, s/p). no Ratio

    Studiorum, instrumento de organizao e plano de estudos da Companhia de Jesus,

    que se delimitaram as regras do mtodo pedaggico dos jesutas, influenciado pelo

    modus parisiensis de ensinar.

    Com base nos esclarecimentos expostos acima, que embasam as discusses

    realizadas, trataremos, a seguir, do processo histrico que levou constituio e

    permanncia da organizao do trabalho didtico elaborado por Comenius que

    afirma:

    Que a proa e a popa da nossa didtica sejam: buscar e encontrar um

    mtodo para que os docentes ensinem menos e os discentes aprendam

    mais; que nas escolas haja menos conversa, menos enfado e trabalhos

    inteis, mais tempo livre, mais alegria e mais proveito; que na repblica

    crist haja menos travas, menos confuso, menos dissenses, mais luz,

    mais ordem, mais paz e tranqilidade (COMENIUS, 2006, p.12).

    O imenso desenvolvimento das foras produtivas, propiciado pelos avanos

    tecnolgicos, fez com que os homens ultrapassassem o estgio de conscincia

    anterior, em que se viam sujeitos ao arbtrio da natureza, passando para um momento

    em que se perceberam como conhecedores das leis que regem o universo, isto ,

    como os artfices da histria humana. A partir de ento, a natureza passou a exercer

    papel secundrio, ou quase papel nenhum, na determinao da histria do homem.

    Entretanto, ainda restava uma limitao: a ideia de que a essncia humana era

    imutvel porque as aes humanas seriam uma determinao da vontade de Deus.

    O mundo um cosmos, isto , uma ordem fixa de lugares e funes que

    cada ser (minerais, vegetais, animais e humanos) ocupa necessariamente e

    nos quais realiza sua natureza prpria. Os seres do cosmos esto

    organizados em graus e o grau inferior deve obedincia ao superior,

    submetendo-se a ele. [...] No existe a idia de indivduo, mas de ordem

    ou corporao a que cada um pertence por vontade divina [...] (CHAU,

    2000, p.390).

    Com o desenvolvimento tecnolgico das foras produtivas, na sua fase

    manufatureira (Idade Moderna), surgem novas necessidades que conduzem os

    homens a uma nova etapa de seu processo histrico. Essa etapa foi marcada pelo

  • 37

    surgimento da burguesia20

    , classe que s existiria se continuamente transformasse os

    instrumentos de produo, ocasionando, portanto, mudanas nas relaes de

    produo e, consequentemente, em todo o conjunto das relaes sociais. Nas

    palavras de Marx (1985b, p.88), [...] o que vlido para a diviso manufatureira do

    trabalho no interior da oficina vale para a diviso do trabalho no interior da

    sociedade [...].

    nesse momento histrico que o bispo e educador Jan Amos Comenius

    (1592 1670)21 elaborou a sua proposta didtica como a arte universal de ensinar

    tudo a todos. Para tanto, era necessria a expanso da escola, embora houvesse

    limites concretos para tal expanso, na demanda de alunos e no nmero reduzido de

    mestres. Portanto, como apontou Comenius (2006), os custos de uma instruo nos

    moldes antigos eram impraticveis, tornando-se, assim, imprescindvel o

    barateamento da educao. A soluo encontrada por Comenius foi a proposio de

    uma nova forma de ensinar que possibilitasse a todos o acesso escola.

    Num perodo em que a sociedade avanava do modo de produo feudal

    para o modo de produo capitalista22

    , o modelo manufatureiro de organizao do

    trabalho, apropriando-se das tcnicas do artesanato, parcela as operaes

    componentes desse modo de produo, tornando os trabalhadores especialistas em

    operaes especficas, prvia e intencionalmente planejadas (ALVES, 2001). Dessa

    forma, por fora do avano das foras produtivas, a educao, como uma das

    dimenses da sociedade, tambm se transformava pelas mos de vrios outros

    pensadores como Ratke, Alsted, Andreae23

    .

    Com o propsito de ensinar tudo a todos de modo certo, fcil e slido,

    Comenius (2006) concebeu, tambm para a educao escolar, uma forma de ensinar

    propugnada em sua obra