dissertação fabio reis mota

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CENTRO DE ESTUDOS GERAIS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA E CIÊNCIA POLÍTICA NEM MUITO MAR, NEM MUITA TERRA. NEM TANTO NEGRO, NEM TANTO BRANCO: UMA DISCUSSÃO SOBRE O PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE DA COMUNIDADE REMANESCENTE DE QUILOMBOS NA ILHA DA MARAMBAIA/RJ. Niterói 2003 1

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Ilha da Marambaia. Pescadores e quilombolas

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  • CENTRO DE ESTUDOS GERAIS PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ANTROPOLOGIA E CINCIA POLTICA

    NEM MUITO MAR, NEM MUITA TERRA. NEM TANTO NEGRO, NEM TANTO BRANCO:

    UMA DISCUSSO SOBRE O PROCESSO DE CONSTRUO DA IDENTIDADE DA

    COMUNIDADE REMANESCENTE DE QUILOMBOS NA ILHA DA MARAMBAIA/RJ.

    Niteri 2003

    1

  • 2

  • FABIO REIS MOTA

    NEM MUITO MAR, NEM MUITA TERRA. NEM TANTO NEGRO, NEM TANTO BRANCO: UMA DISCUSSO SOBRE O PROCESSO DE CONSTRUO DA IDENTIDADE DA COMUNIDADE

    REMANESCENTE DE QUILOMBOS NA ILHA DA MARAMBAIA/RJ.

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps Graduao em

    Antropologia e Cincia Poltica da Universidade Federal Fluminense, como

    requisito parcial para obteno do Grau de Mestre.

    Orientador: Professor Roberto Kant de Lima

    Niteri 2003

    3

  • Aos meus pais por compreenderem minhas incompreenses

    4

  • Agradecimentos: Tinha uma pedra em meu caminho, em meu caminho tinha uma pedra. So essas

    pedras, enquanto metforas, que Carlos Drummond descreveu para relatar os

    obstculos da vida. E so elas enquanto imagens, metforas ou realidades que

    cruzando nossas estradas, nossos caminhos nos ensinam a melhor percorrer os

    percalos que a vida nos impe. E para atravessar a estrada da vida (e vida pode

    ser aqui uma fora de expresso!) necessitamos de parcerias que nos ajudam a

    superar os obstculos, a romper com as barreiras, a quebrar com os nossos

    limites e fraquezas. E sem essas pessoas (e outras milhares que infelizmente no

    poderei citar aqui por falta apenas de espao !) no teria superado todas essas

    pedras desse caminho que busquei trilhar com carinho, dedicao e

    responsabilidade. Foram alguns anos que se passaram, mas garanto que foram

    anos bem aproveitados, bem vividos. Pude aprender muito (espero ter ensinado

    algo?!) com pessoas que acompanharam meu trabalho, minha trajetria. Nos

    inmeros momentos de angstia, inquietao intelectual foi possvel repartir com

    muitos.

    Entre as pedras e as guas da Marambaia foi possvel contar com inmeros

    amigos e amigas que aos poucos foram tomando o respeito e carinho por mim,

    assim como eu por eles. Agradeo ao Adriano e a Sonia pela hospitalidade e

    amizade sempre constante (e por aquele peixe com farinha e feijo, pois sem

    ele...); muito obrigado ao vascano seu Joel pela sua sapincia, ensinou-me muito

    sempre quando possvel; valeu Pedro pelas conversas; valeu demais Joo Paulo

    e Palu por abrirem as portas de sua casa e de sua vida para um estranho que aos

    poucos se tornou um habitante permanente dessa grande casa; dona

    Sebastiana e a dona Darclia por ter me ensinado o valor da vida; ao Lino pela

    luta; Ao Toca pela persistncia; ao seu Adilino pela hospitalidade; ao lson pelo

    respeito a minha pessoa; ao Adhemir pela pacincia em conversar com um

    distante amigo; ao Salvador pelas oportunidades de conhecer mais de perto a

    histria de um povo; ao seu Tio pela receptividade no momento em que o medo

    atormentava a todos; dona Maria pelos almoos saborosos, recheados de

    5

  • carinho; dona Antnia pelas conversas onde me ensinava com metforas; ao

    Carlinhos e ao seu Filipe, um muito obrigado. Obrigado todos marambaienses que

    colaboraram com esse trabalho!

    Entre as pedras e os livros foi possvel contar com a colaborao de muitos.

    Sobretudo, contei com duas pessoas fundamentais para tal empreitada: Roberto

    Kant de Lima, meu orientador (e meu amigo), e Ronaldo Lobo, meu amigo (e um

    grande irmo) e pesquisador do NUFEP. Ao meu orientador, devo as conversas e

    orientaes sempre frutferas. Ao Ronaldo, agradeo por ter sido um grande

    mestre na arte de fazer uma antropologia possvel, e claro, por ter sido um grande

    amigo nas horas difceis e boas da vida. Agradeo imensamente a colaborao

    dos professores do PPGACP e da Graduao da UFF. Em especial, agradeo

    professora Mrcia Motta pelas orientaes ao trabalho de pesquisa arquivstico e

    bibliogrfico; ao professor Mello pelas orientaes sempre constante; professora

    Eliane Cantarino pela pacincia em sempre escutar e poder me ensinar; agradeo

    imensamente ao professor Alfredo Wagner pelas aulas sempre elucidativas e pela

    receptividade e respeito ao meu trabalho. Obrigado a todos pela pacincia e

    queiram me desculpar se porventura no tenha sido um aluno a altura de tamanha

    dedicao em ensinar.

    Entre a pedra e seus caminhos, contei sem dvida alguma com a colaborao

    incalculvel de meus pais, Edina e Antonio, que me transmitiram os

    conhecimentos necessrios para transpor os obstculos. Agradeo: Letcia sem

    a qual no saberia melhor amar, muito obrigado por tudo; Silvana por sua

    dedicao e colaborao nos caminhos pedregosos (mas cada vez mais

    instigante); ao Ricardo pela colaborao em um de meus momentos mais difceis

    deste caminho; aos meus tios Feliciano, Chiquinho e Mundico por me ensinarem

    que na vida nada insupervel; ao meu primo Edivan e minha prima Cris por me

    ensinarem que viver uma arte; ao meu irmo por ter se tornado um grande

    amigo; Soninha pelas conversas sempre enriquecedoras, preenchidas de

    carinho; ao Lnin amigo recente, mas j de muitas histrias; ao Andr pela

    amizade; Robertinha pela sua meiga amizade; Joana e Bruno amigos da nova

    gerao; Flavinha, Sabrina, Lucio por compartilharem de momentos de risos e

    6

  • choros; aos eternos amigos, eternizados pelas conversas sem fim, Fabiano, Uir,

    Gustavo, Ypuan e Paulo.

    Aos companheiros Mauricio Barros e Jandyr Froes, e a companheira Fernanda

    Vieira por acreditarem em um caminho possvel.

    Ins e Graa do PPGACP.

    Ao Maranho e a Joana por me abrigarem em meu retiro intelectual.

    A Capes por conceder auxlio a minha pesquisa por um ano.

    Foram-se as pedras (pois logo viro outras novas!), mas permanece as

    lembranas de um tempo que passou. E nessas lembranas perduram os

    momentos que no viro mais, mas que ficam retidos na memria em um sem fim.

    Valeu a todos!

    7

  • Queremos de deixar de ser ignorante, para deixarmos de ser ignorado!

    Parte do discurso da Posse, ocorrida em 2003, da Diretoria da Associao da Comunidade Remanescente de Quilombo da

    Ilha da Marambaia.

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  • INTRODUO Esta dissertao se insere em um conjunto de pesquisas e reflexes

    levadas a cabo por pesquisadores do Ncleo Fluminense de Estudos e Pesquisa

    (NUFEP). As mesmas esto concentradas em estudos que visam analisar

    comparativamente as formas de produo de verdade no espao pblico,

    principalmente o brasileiro, bem como os modelos de administrao de conflitos

    existentes em nossa sociedade.

    Nesse sentido, pretendo analisar nesta dissertao as formas institucionais

    de produo de verdade, assim como os mecanismos de administrao de

    conflitos em uma situao particular: o conflito existente entre moradores de uma

    Ilha, a Ilha da Marambaia, pescadores e descendentes de escravos, com o Estado

    Brasileiro, representado pela Marinha de Guerra, administradora da referida Ilha.

    9

  • Mapa 1 da Marambaia.

    10

  • 11

  • Construo do Objeto

    Foi o ano de 1998, um momento de intensas mudanas em relao

    trajetria histrica dos moradores da Ilha da Marambaia. Processos judiciais de

    reintegrao de posse, impetrados pela Unio Federal contra as famlias

    tradicionais do local, fizeram ressurgir de modo contumaz antigas lembranas. Foi

    um ano de encontros com novos interlocutores, dentre eles o etngrafo. Tomei

    conhecimento da situao vivenciada pela populao da Marambaia no ano de 98.

    Morava em Santa Cruz, bairro situado na Zona Oeste, e freqentava a praia de

    Itacuru, distrito de Mangaratiba, quando criana. Mesmo assim foi apenas neste

    perodo que passei a conhecer as histrias presentes na Ilha da Marambaia.

    Neste momento, encontrava-me como bolsista de extenso de um

    professor substituto (professor Jos M. Arruti), do departamento de Antropologia

    da Universidade Federal Fluminense, cuja pesquisa versava sobre a temtica de

    comunidades negras rurais. Ainda como aluno do 3. perodo do curso de Cincias

    Sociais da UFF, interessava-me por questes relacionadas temtica das

    relaes raciais no Brasil. Havia iniciado a pesquisa em meados de 97. Efetuara

    diversos levantamentos de dados sobre conflitos de terras no sentido de mapear

    possveis reas de tenso que envolvessem terras de pretos1. No final de 98 a

    bolsa j estava para expirar, pois seu prazo era apenas de um ano. O mesmo

    aconteceria com o contrato do coordenador da bolsa com a UFF, pois seu trmino

    estava previsto para o final de 98. Este, como tivera que fazer uma viagem a

    trabalho, requisitou que eu escolhesse uma determinada rea para a

    sistematizao do levantamento. Optei em coletar os dados sobre o sul

    fluminense. Sendo essa regio prxima de minha residncia poca, poderia

    acomodar as minhas inquietaes intelectuais e, ainda, limitar minhas despesas

    de locomoo e de alimentao.

    O coordenador da pesquisa disps alguns locais possveis para o

    levantamento. Um deles era a Comisso Pastoral da Terra de Itagua (CPT),

    1 - No sentido atribudo pela literatura sociolgica. Para maiores detalhes ver Almeida 1989,

    Gusmo, 1995.

    12

  • municpio vizinho Santa Cruz, onde se encontrava um vasto arquivo a respeito

    do conflito de terra nas regies de Seropdica, Mangaratiba, Angra dos Reis,

    Parati e Itagua, que eram de domnio da atuao desta Pastoral.

    Apresentei-me na Pastoral como pesquisador da UFF, expliquei a pesquisa

    aos responsveis pelos arquivos. Foram solcitos e receptivos. Primeiramente, fui

    recebido pela madre responsvel pela organizao dos dados da CPT de Itagua,

    que me apresentou ao padre coordenador da Pastoral, aps ter dado incio ao

    desenvolvimento do trabalho.

    Freqentava o lugar trs vezes na semana. Acomodaram-me em uma sala,

    para que fosse possvel manusear os dados. Aps alguns dias, convidaram-me a

    tomar caf com eles na copa da sede da pastoral. Sinalizavam com isso a minha

    aceitao no local. Tomvamos caf e conversvamos acerca de assuntos os

    mais variados. Acabava o ritual da tarde e retomava minhas atividades na sala de

    pesquisa. Os dados que levantava diziam respeito, em sua maioria, s questes

    relativas a conflitos de terra nas reas que estavam na alada da CPT de Itagua.

    Todavia, no encontrara nenhuma referncia sobre a Ilha da Marambaia.

    Em uma tarde, uma agente pastoral da CPT, veio sala onde trabalhava.

    Soubera que me encontrava ali por conta de um levantamento sobre conflitos em

    reas de comunidades negras rurais. Perguntou-me se por acaso conhecia a

    situao de uma comunidade de pescadores, descendentes de escravos, que

    estavam sofrendo ameaas de expulso por parte da Marinha. Nada sabia sobre o

    assunto. Explicou-me, portanto, a situao corrente. Aps horas de conversa,

    perguntou a respeito de meu interesse em participar de uma reunio que

    aconteceria na Parquia de Itacuru, com os moradores da Ilha, no sentido de

    esclarecerem a situao do conflito populao, visando orient-la.

    Fui reunio. Ela ocorreu na Parquia da igreja catlica, em Itacuru, em

    um final de semana no final do ano de 98. Os moradores da Ilha da Marambaia

    chegaram por volta de meio dia. Serviram a eles um almoo na copa da igreja

    antes do incio da reunio. Logo aps o almoo, iniciaram-se os trabalhos. Foi

    dada a palavra ao coordenador da CPT regional, o pe. Galdino, que exps a

    13

  • situao jurdica dos moradores da Marambaia. Encontravam-se no local diversos

    membros de outras CPTs do Brasil e do Rio de Janeiro e, para a surpresa de

    alguns, estavam presentes os membros da Igreja Batista, cuja entidade era

    representativa na Ilha, pois existia l uma Igreja instalada desde os anos 70. Mas,

    no momento, as atenes estavam voltadas para as enunciaes do pe. Galdino,

    reivindicando a rea para os moradores, por estes serem descendentes de

    escravos, filhos do lugar, como diziam. Traavam estratgias para uma ao

    mais eficaz, com o objetivo de garantir o direito dos moradores da Marambaia de

    permanecerem no local onde nasceram.

    Em um instante da reunio, pediram minha opinio sobre o assunto e fiz

    uma exposio acerca do artigo 68 do Ato das Disposies Constitucionais

    Transitrias da Constituio Brasileira. Disse-lhes, que segundo minha opinio,

    esse era um dos artifcios jurdicos viveis para a resoluo do impasse dos

    moradores.

    A Comisso Pastoral da Terra de Itagua elaborou um dossi, enviado a

    diversas entidades governamentais e no governamentais, cujo ttulo era Povos

    da Terra - Povos do Mar - Ilha da Marambaia: Do Trfico de Escravos, Ontem, aos

    Despejos de Famlias Pescadoras, Hoje. Evidenciava-se, no mesmo, a

    multiplicidade da organizao local, referendada na terra, nutrida no mar e

    lembrada em sua histria, composta por um enredo de interpretaes de diversas

    histrias, pois as narrativas se posicionaram no sentido de (re)elaborar a sua

    prpria identidade, a sua memria e seus valores diante do mundo. Com isso, a

    insero da CPT produz uma reorientao da identidade do grupo. Sobretudo,

    aps o envio do Dossi Fundao Cultural Palmares (FCP), quando abre um

    novo precedente na histria da organizao do grupo.

    Continuei a realizar minha pesquisa na CPT, a qual estava em seu final.

    Com o trmino da pesquisa e da bolsa de extenso, convidaram-me para trabalhar

    na CPT, acompanhando os conflitos de terra, mas na poca tinha outros planos

    profissionais em mente e no pude aceitar o convite. No entanto, permaneci com o

    contato com os meus novos amigos e colegas, colaborando, na medida do

    14

  • possvel, com as atividades dos membros da CPT no contato com a Fundao

    Cultural Palmares.

    Sem vnculo com a pesquisa e com meu ex-orientador (nesse momento ele

    no se encontrava mais vinculado a UFF), dei continuidade as minhas idas a

    campo em Mangaratiba. Freqentava o local aos sbados, pois era o dia possvel

    para encontrar os pescadores. Uma parte dos pescadores da Marambaia vendia

    seu pescado em Mangaratiba. Sbado era um dia adequado a minhas condies,

    porque nos dias teis tinha aula na UFF.

    Aos poucos fui conseguindo assegurar uma certa confiana por parte de

    alguns pescadores. O primeiro deles a conversar mais continuadamente comigo,

    no incio, era um pescador antigo da Ilha que vendia seu pescado em

    Mangaratiba, porm com muita dificuldade e reticncia. Grande parte dos que tive

    contato na poca desconfiavam que porventura eu poderia ser um agente da

    Marinha coletando informaes para pun-los. Aproximei-me deste morador da

    Marambaia em parte pela intermediao dos membros da pastoral de Itagua, que

    vez ou outra, encontravam-se em Mangaratiba. Os pescadores me viam sempre

    conversando amistosamente com eles.

    Esta desconfiana decorria, em primeiro lugar, das circunstncias em que

    viviam, sobretudo naquele momento em que sofriam retaliaes por parte do

    comando da Marinha na Ilha, em especial a spera relao com o comandante do

    Centro de Adestramento da Marinha (CADIM) na poca. Este comandante, como

    fui saber anos depois, era considerado um dos piores que passou pela Ilha.

    Diziam os pescadores, que nem os prprios Fuzileiros simpatizavam com ele.

    Suas atitudes promoviam uma grande insegurana nos ilhus. Um outro fator

    importante, descobri na literatura sobre a pesca, em especial no livro do professor

    Roberto Kant de Lima (Kant de Lima e Pereira, 1997). Este observou em seu

    trabalho de campo, em Itaipu, que os pescadores tradicionalmente possuem uma

    representao negativa sobre o Estado, pois suas intervenes na poltica

    pesqueira estiveram, desde o perodo colonial, marcadas por seu carter punitivo.

    Coletar informaes sobre a pesca como preo, captura e etc, era um mecanismo

    15

  • utilizado pelo Estado para taxar e controlar a atividade, atribuindo sempre deveres

    e nunca direitos a estas populaes. Nesse sentido, o Estado no visto por eles

    como um provedor de polticas pblicas, mas como algo perigoso a sua

    reproduo e desenvolvimento. Tomar conscincia dessas dificuldades do campo

    possibilitou com que minha insero se tornasse mais vivel.

    Mantive meus contatos com o referido padre, coordenador da CPT de

    Itagua, e com os moradores da Ilha, sobretudo com os pescadores que

    comercializavam o pescado em Mangaratiba. Como estavam ainda muito

    desconfiados, uma estratgia para que fosse possvel ser aceito no campo, foi

    colaborar com o transporte dos seus peixes at as peixarias e o atracamento de

    suas canoas. Uma relao de confiana foi aos poucos se estabelecendo.

    Todavia, aps dois meses, ingressei em uma bolsa de pesquisa, vinculada

    temtica da produo da excluso e seus discursos referentes aos alcolatras,

    sob a orientao da professora Delma Pessanha Neves, da UFF. As minhas idas

    Mangaratiba passaram a ser espordicas por conta do outro trabalho de campo

    que deveria executar, o qual nada tinha a ver com a Marambaia. De qualquer

    forma, continuei a freqentar esporadicamente Mangaratiba, para conservar a

    relao estabelecida com alguns pescadores, principalmente o pescador que

    vendia seus peixes em Mangaratiba. A minha relao com a Marambaia era

    apenas de um cidado curioso que almejava contribuir, possivelmente, para a

    situao do problema enfrentado pelos mesmos.

    Aps oito meses na bolsa de pesquisa, no final de 1999, fui trabalhar em

    uma ONG especializada em questes raciais, desvinculando-me da bolsa para

    no acumular diferentes funes e remuneraes. Permaneci pouco mais de um

    ms na Ong.

    Retornei as minhas atividades acadmicas as aulas e s idas a

    Mangaratiba, ainda sociologicamente desinteressadas. Permanecia com interesse

    estritamente militante em minhas incurses no local.

    Passados mais ou menos dois meses, um colega e amigo indicou-me o

    NUFEP no sentido de expor minhas incurses Mangaratiba, tendo o ncleo uma

    16

  • linha de pesquisa referente pesca no estado do Rio de Janeiro. Marcou-se uma

    entrevista com o professor Kant de Lima, coordenador do NUFEP, para que

    pudesse expor meus interesses acadmicos. Na mesma reunio estava presente

    outro pesquisador do Ncleo, Ronaldo Lobo. Expus meus interesses

    acadmicos, que se voltavam para a Marambaia. O objeto de estudo enquadrava-

    se na perspectiva do Ncleo. Portanto, passei a freqentar as reunies semanais

    do NUFEP.

    Nas reunies encontravam-se alunos de graduao em diferentes

    estgios -, de ps-graduao (mestrado e doutorado) com o orientador, o

    professor Kant de Lima. Nelas eram discutidos os problemas enfrentados por cada

    aluno no desenvolvimento de suas pesquisas. Essa dinmica enriquecia o olhar

    dos trabalhos individuais a partir das compreenses e dificuldades das pesquisas

    de cada colega. Alguns meses depois, tornei-me bolsista de Iniciao Cientfica do

    PIBIC/UFF sob a orientao do professor Kant.

    No NUFEP existiam, sob a coordenao do professor Kant de Lima, duas

    linhas de pesquisa: uma ligada ao meio ambiente e outra segurana pblica.

    Dois campos aparentemente opostos, mas trabalhados pelo grupo de maneira

    integrada e, muitas vezes, complementar.

    Na linha de pesquisa da segurana pblica so englobados diversos

    estudos sobre as formas institucionais de administrao de conflitos e de

    produo de verdades no espao pblico. Estuda-se tradicionalmente o sistema

    de justia, sobretudo o criminal, os agentes de controle social, principalmente a

    polcia e demais sistemas de controle e produtores de verdade em nossa

    sociedade.

    Enquadrei-me na linha de pesquisa de meio ambiente. Esta remonta a uma

    tradio de estudos sobre as populaes tradicionais de pescadores, ou, como

    denominamos, dos pescadores da beira de praia. O professor Castro Faria foi o

    precursor desta tradio com seus estudos nos anos 50 sobre o processo de

    17

  • modernizao, com a implementao da lcalis uma indstria produtora de

    barrilha - em Arraial do Cabo, rea tradicional de pesca e de pescadores2.

    Nos anos 70 os professores Kant e Mello deram continuidade a este

    interesse com pesquisas que buscavam estudar os saberes e prticas destes

    grupos, ou como denominam, os seus saberes naturalsticos. Como fruto deste

    investimento o professor Kant defendeu sua tese de mestrado sobre os

    pescadores de beira de praia de Itaipu, distrito de Niteri, onde analisava o ritual

    da pesca da tainha e suas implicaes na identidade local. O professor Mello,

    mais tarde, defendeu como tese de doutoramento sua pesquisa sobre os

    pescadores de Zacaria, na Lagoa de Maric.

    Inseri-me, ainda que no instantaneamente, nesta linha de pesquisa por

    conta da atividade pesqueira em Marambaia. Foram muitos encontros e

    reencontros com o meu campo e com as minhas prprias problemticas, mas

    ainda, com um olhar parcial a respeito das questes envolventes na Ilha da

    Marambaia. O olhar do aprendiz ainda estava excessivamente tomado pelas pr-

    noes, parcialmente estabelecidas, que direcionavam minhas incurses a campo.

    Uma dificuldade inerente ao prprio campo. Como salienta Lenoir:

    a primeira dificuldade encontrada pelo

    socilogo deve-se ao fato de estar diante

    das representaes pr-estabelecidas de

    seu objeto de estudo que induzem a

    maneira de apreend-lo e, por isso

    mesmo, defini-lo e conceb-lo (Lenoir,

    1978:61).

    2 - Ainda hoje, Arraial do Cabo uma regio que tem na pesca artesanal umas das principais

    atividades econmicas e sociais, mesmo com todas as mobilizaes de cunho modernizante que o

    local enfrentou nas ltimas dcadas. Atualmente, na regio h uma Reserva Extrativista Marinha

    que proporcionou uma ascenso da pesca artesanal o que uma fato particular se

    considerarmos o quadro da pesca artesanal na regio Sudeste brasileira e, paradoxalmente,

    vemos a indstria lcalis demitir seus funcionrios. Para melhor compreenso destas discusses

    ver Lobo (2000); Prado (2002), Goulart (2000)e Britto (1999).

    18

  • importante tratar os problemas abordados pelo cientista social de uma

    forma no estereotipada, entendendo, por outro lado, as formas particulares de

    vida social que existem neste contexto.

    Uma etapa do trabalho importante para a uma apreenso no tanto

    estereotipada, iniciou-se com uma nova parceria, em mbito interdisciplinar, com

    bilogos marinhos e oceangrafos da Biologia Marinha da UFF. O primeiro fruto

    desta parceria foi o projeto Mecanismos Reguladores da Produo Pesqueira:

    subsdios para a gesto de uma Reserva Extrativista Marinha (Itapesq), aprovado

    pelo edital do PADCT III. Os recursos para a execuo do projeto foram liberados

    pela Fundao Carlos Chagas de Apoio Pesquisa no Estado do Rio de Janeiro

    FAPERJ somente no ano de 2000, quando foi dado incio sua execuo.

    Integro-me ao grupo de pesquisadores do Itapesq em final de 2000. Neste,

    concentro minhas atividades de campo em Piratininga e Arraial do Cabo. Foi um

    perodo de muitas mudanas com a aprovao do Itapesq. Diversos alunos da

    graduao puderam se integrar atividade do projeto e, por outro lado, os alunos

    do mestrado estavam em fase final de confeco de suas dissertaes,

    contribuindo com reflexes a respeito dos pescadores artesanais. O objetivo de

    meu trabalho de campo nestas duas reas desdobrava-se em torno das

    representaes dos pescadores acerca da atividade pesqueira, o saber

    naturalstico empregado na mesma e as formas de administrao dos conflitos no

    espao pblico, neste caso, mais precisamente, da praia.

    O debate mais presente poca direcionava-se Reserva Extrativista

    Marinha de Arraial do Cabo (RESEX-MAR), em especial as suas implicaes no

    gerenciamento dos conflitos e da gesto e participao dos atores envolvidos na

    administrao da RESEX3. Estes trabalhos compunham um conjunto de reflexes

    3 - Em 2000, Delgado Goulart defende tese de mestrado onde analisa os conflitos na disputa pelo

    uso do espao pblico da praia entre os pescadores da beira de praia e surfistas na Praia Grande.

    Simone Moutinho empreende anlise sobre os injunes de mudanas sociais em Arraial do Cabo.

    Ronaldo Lobo, neste mesmo ano, defende tese de mestrado onde analisa os processos de

    consolidao da Reserva Extrativista Marinha em Arraial do Cabo, explicitando em seu trabalho

    como este tipo de poltica pblica conferiu a este grupo social (os pescadores artesanais) um tipo

    de cidadania especial em relao utilizao do espao pblico, neste caso a praia e o mar.

    19

  • de uma situao social rica, onde o grupo articulava questes referentes ao meio

    ambiente e administrao de conflitos neste espao pblico. Estes debates

    enriqueceram sobremaneira minha compreenso acerca do trabalho de campo na

    Marambaia, onde me deparei com situaes prximas s de Arraial do Cabo.

    Concomitantemente s atividades de pesquisa no ITAPESQ realizava meus

    trabalhos de campo na Ilha da Marambaia. O aprendizado com os colegas de

    trabalho possibilitou um amadurecimento necessrio para o trabalho de campo.

    Depurei meu olhar sobre os acontecimentos na Marambaia. Imbudo de um olhar

    parcial a respeito dos fenmenos sociais, sobretudo em relao aos conflitos

    apresentados entre a Marinha e os pescadores, muitas vezes perdia de vista

    apreender os significados simblicos rotinizados da vida cotidiana dos pescadores

    da Marambaia. Isso dificultava tomar como objeto de anlise, pelo menos nesse

    primeiro momento, os aspectos do conflito entre os ilhus e a Marinha. Do mesmo

    modo, o campo mostrava-se muito reticente em dispor estas informaes, tendo

    em vista o medo e a desconfiana dos moradores em conversarem a respeito da

    situao na Ilha com pessoas de fora.

    Nesse sentido, tomei como objeto de pesquisa os mecanismos de

    reproduo e elaborao das identidades dos pescadores, principalmente a partir

    da pesca, para ento, a partir dessa importante atividade, analisar a

    representao do espao pblico e de seus conflitos (Mota, 2000), resultando

    disso monografia de final de curso da graduao na UFF, sob a orientao do

    professor Kant.

    Repensar a estratgia de insero no campo possibilitou com que as

    pessoas aos poucos fossem tomando conhecimento de meu trabalho e de meus

    interesses, rompendo com as desconfianas. Tomei como ponto de partida, as

    perguntas relacionadas pesca. Cautelosamente fui me enfronhando em

    assuntos que diziam respeito s tcnicas de pesca, locais onde pescavam, dias,

    etc. Passaram a explicar e conversar comigo sobre a pesca. Nisso, tambm

    deram incio a narrativas que se relacionavam ao passado da Ilha, da histria do

    20

  • grupo. Falavam da pesca de hoje em contraste com o passado quando a pesca

    era boa.

    O antigamente era apontado como um elemento agregador do presente.

    As transformaes ocorridas com o trabalho de campo propiciam novas vises

    sobre a histria do grupo, interpretaes, reinvenes das suas narrativas.

    Com as outras experincias de campo (em Arraial, Itaipu e Piratininga), a

    minha disponibilidade em escutar torna-se maior, proporcional capacidade dos

    moradores em narrar. Fato que corroborado com as minhas colaboraes na

    puxada da embarcao, no carregamento dos peixes e, sobretudo, por minha

    postura no campo de sempre me colocar disposio para interagir com o grupo

    no conflito com a Marinha. Estabeleceu-se uma relao de reciprocidade entre o

    etngrafo e os pescadores.

    Ampliou-se a rede de relaes com outros pescadores. Dentre elas,

    destaco a interlocuo que iniciei com um pescador que morava em Mangaratiba,

    mas que havia nascido e sido criado na Ilha. Era uma pessoa que se dispunha a

    colaborar no que fosse possvel para melhoria de vida dos nativos, levando

    reprteres na Ilha, dando assistncia com sua traineira para transportar idosos, ou

    pessoas debilitadas para o continente. Foi um interlocutor importante para o

    trabalho, tendo mesmo, iniciado-me no campo, levando-me Marambaia.

    Instalei-me na casa de seu pai - que era um dos pescadores mais antigos

    da Marambaia tendo chegado a pescar na escola de pesca Darci Vargas que foi

    instalada na Ilha nos anos 30 e extinta nos anos 70 - onde permaneci durante uma

    semana ininterrupta. Essa ida a campo foi fundamental para a pesquisa.

    O trabalho de campo A possibilidade de ir Ilha da Marambaia, observando no local a vida dos

    pescadores e seus familiares, foi de suma importncia para reorientar a minha

    pesquisa.

    Compreender a realidade social, seus meandros, seus contornos mais

    singelos expressos na vida cotidiana, constitui elemento essencial a um bom

    21

  • trabalho antropolgico. Se isso estava at ento para mim na teoria, foi possvel

    perceber a relevncia de observar a realidade, articular o discurso prtica.

    Nessa ida Marambaia redesenhei minhas perspectivas. Conhecer a

    realidade do grupo com o qual estava aos poucos buscando estabelecer uma

    relao de pesquisa, e no apenas militante, rompeu com a parcialidade de

    minhas observaes, percebendo as mltiplas formas de organizao, de seus

    conflitos.

    O trabalho de campo na Ilha possibilitou, portanto, distinguir as diferentes

    atribuies identitrias referentes categoria pescador. O pescador de linha, o

    pescador de canoa, o pescador de bote, enfim uma infinidade de atribuies que

    se diferenciavam e classificavam hierarquicamente cada grupo. Uma tarefa ainda

    mais rdua foi problematizar a categoria escravos, pois como fui percebendo, ela

    estava atrelada a um conjunto diversificado de elementos identitrios

    hierarquicamente estabelecido.

    Foi no campo que pude romper com as classificaes externas, que muitas

    vezes se tornam arbitrrias, representando pontos de vista parciais e

    interessados. Fui percebendo, no decorrer de minhas idas Marambaia, que

    atribuies identitrias tomadas por alguns grupos eram operacionalizadas de

    modo distinto por outros grupos.

    Como meus interlocutores inicialmente se restringiam aos membros da CPT

    e aos pescadores vinculados a eles, os resultados de minha pesquisa estavam

    condicionados por uma viso muito parcial de como o grupo se pensava. Um dado

    que foi necessrio ser circunscrito construo de meu objeto foi o conflito vivido

    pelos pescadores. Era preciso levar em considerao essa condio, pois as

    falas, as narrativas estavam dimensionando este aspecto. Isso se tornou claro

    com o tempo. E torna-se um dado importante para contextualizar o leitor de onde

    estou falando e com quem estou falando, pois o que estava em jogo era a luta por

    territrio, por um lugar.

    A etnografia no se realizava em uma Ilha distante, habitada por povos que

    se comunicavam em lngua distinta ao do pesquisador, seus hbitos no diferiam

    em grande escala daquelas do etngrafo. O exerccio, aqui, no consistia em

    22

  • descobrir os significados de rituais exticos, de prticas religiosas incomuns aos

    olhos distantes do etngrafo. Ao contrrio, o exerccio nesse caso constitua

    observar prticas e rituais que se aproximavam do etngrafo, portanto era preciso

    realizar um distanciamento, tornar extico o familiar (DaMatta, 1997).

    Nessa circunstancia o outro que se aproxima do etngrafo, o daqui. Suas histrias e a do pesquisador por vezes se confundem, ou se entrecruzam, se

    inserem em um sistema holista de representaes. Esse exerccio de exotizar o

    familiar, marcava-se, por outro lado, por uma postura onde a perspectiva do

    cientista social/cidado (Peirano, 1991) apresentava-se de modo contumaz. Como

    salienta Peirano:

    Permanece o reconhecimento da pesquisa

    de campo como o modo privilegiado do

    conhecimento antropolgico, a situao por

    excelncia do encontro com o outro. No

    entanto, a prpria pesquisa de campo

    tambm passou a ser vista, e aceita, como

    um fenmeno histrico, e o nativo perdeu

    o carter passivo. Reconhece-se hoje que,

    longe de uma frmula, a pesquisa de

    campo est inserida em contexto biogrfico

    (do prprio pesquisador) (Peirano, 1991,

    pg. 85).

    Esse exerccio de uma certa biografizao de meu trabalho de campo, ou

    seja, explicitar o local de onde estava falando, tornou-me mais seduzido em

    encontrar mais perguntas a respostas, em intervir menos e observar mais.

    Reconhecia que minha postura excessivamente militante (se que esse consiste

    no termo mais adequado para qualificar tal situao) muitas vezes empreendia

    uma violncia simblica ao desconsiderar a complexidade da formao do grupo

    e, ao mesmo tempo, tentar supostamente resolver os problemas enfrentados

    pelos moradores da Marambaia. Foi um exerccio rduo, mas necessrio. Todavia,

    isso no me impulsionou para fora das aes em conjunto com os pescadores.

    23

  • Apenas redimensionei o meu papel, tornando-me um interlocutor e no um

    interventor.

    E isso no se relacionava a um sonho positivista de uma perfeita inocncia

    epistemolgica oculta na verdade (Bourdieu, 1997). Ao contrrio, buscava articular

    os meus posicionamentos pessoais (ou polticos), vamos dizer assim, sobre o

    conflito com minha postura terica e metodolgica, posicionando-me em situaes

    diversas no campo. Era a forma que encontrei para romper com essa dualidade

    posta pelo campo. Como nos lembra Bourdieu:

    Ainda que a relao de pesquisa se

    distingua da maioria das trocas da

    existncia comum, j que tem por fim o

    mero conhecimento, ela continua, apesar

    de tudo, uma relao social, que exerce

    efeitos (variveis segundo os diferentes

    parmetros que a podem afetar) sobre os

    resultados obtidos (Bourdieu, 1997, pg.

    694).

    Foi segundo esses parmetros que busquei orientar minha pesquisa nessa

    outra fase do trabalho. Foi um exerccio que se tornou vivel em uma situao

    como a do trabalho de campo, onde o pesquisador realiza um rito de passagem,

    onde redescobre novas formas de organizao social, produzindo um controle de

    seus prprios preconceitos e, portanto, apreende novos valores. Todavia, a

    apreenso no se deu por uma capacidade sobrenatural de pensar, sentir e

    perceber como um nativo, pois, como Geertz (1997) nos ensina, o problema do

    trabalho de campo no moral, mas epistemolgico. Entender o ponto de vista do

    outro consiste em dar significados representao do outro, orientados por

    interpretaes do pesquisador. Como diz Geertz (1997):

    o truque no conseguir uma

    correspondncia ntima com seus

    informantes, fato de preferir como ns,

    em geral considerar que as almas deles

    24

  • (informantes) so como as suas (os

    antroplogos) no vai sequer dar idia do

    esforo feito. O truque descobrir o que

    eles pensam, o que esto fazendo.

    (Geertz, 1997 ).

    As descobertas, nesse caso, foram substitudas pelas perguntas. Tornei a

    explicitar os problemas que o campo me colocava. Necessitava, para tanto,

    desvincular o problema social do problema sociolgico. Foi necessrio relativizar

    os sentidos atribudos s narrativas emprestadas ao etngrafo para que fosse

    possvel compreend-las dentro de um campo onde disputam os significados e

    ordenamento do mundo. Lenoir (1998) nos lembra que:

    essas lutas em volta da classificao podem

    chegar transformao da viso e das

    divises do mundo social, sobretudo quando

    s categorias cujas definies esto em jogo,

    so associados determinados direitos (...) A

    realidade social resultado de todas essas

    lutas. Nesse aspecto, o estudo da

    emergncia de um problema social um dos

    melhores reveladores desse trabalho de

    construo da realidade e, tratando-se de um

    problema social, o objeto de estudo de um

    socilogo consiste em analisar o processo

    pelo qual se constri e se institucionaliza o

    que constitudo como tal (Lenoir, 1978).

    O olhar do etngrafo esteve voltado para compreender os diferentes

    significados atribudos pelos moradores a respeito do conflito, com intuito de

    montar um esquema interpretativo que desse conta minimamente do universo

    estudado.

    Conseqentemente, ampliei as relaes no campo para possuir uma

    dimenso mais ampla da realidade do lugar que estudava. Aos poucos fui

    25

  • adentrando o universo do outro extremo da Ilha, pois at ento minha rede de

    relaes se restringia aos pescadores e seus familiares da parte leste da Ilha.

    Interagir com os moradores da outra extremidade da Ilha demandou de mim

    um novo exerccio para me inserir. A dificuldade para aceitarem minha entrada era

    grande, tendo em vista que o grupo fato que ficou mais ntido no decorrer do

    trabalho de campo era segmentado. As duas partes da Ilha, constituam-se em

    dois lugares distintos e antagnicos. Conflito que remonta ao perodo ps-

    escravista, quando os grupos se dividiram por praias aps o declnio da fazenda

    existente no lugar. Havia dois grupos, divididos em sub grupos, que possuam

    verses diferentes sobre a histria. A comunidade da Marambaia era uma

    inveno postulada pelas representaes externas, e reafirmada pelo grupo para

    o continente como estratgia de produzir uma unidade inventada.

    Deste modo, esta interlocuo seria possvel apenas sem a mediao dos

    moradores com os quais interagia. Passei a caminhar sozinho para o outro lado.

    Um certo dia, no momento em que conversava com um morador antigo da Ilha,

    nascido e criado na Praia do Caju, fui abordado por um antigo morador da Ilha

    que vive atualmente em Caxias, municpio do Rio que estava de frias na casa

    de seu irmo. Ele ficou curioso com a minha presena na Ilha. Expliquei-lhe sobre

    minha pesquisa, e que estava a caminho da Praia da Armao para conhecer as

    runas da antiga senzala da fazenda do Breves. Convidou-me para o almoo em

    sua casa. Sua mulher havia preparado um saboroso peixe. Encontrava-me

    caminhando h cerca de duas horas de modo que aceitei o convite.

    Tornou-se um grande amigo, e um importante colaborador de minha

    pesquisa. Convidou-me para pernoitar em sua casa em outras vezes que fosse

    Ilha. Aceitei o convite e meses depois me encontrava em sua casa. Conheci

    outros moradores da proximidade. Tive neles importantes interlocutores para o

    desenvolvimento do trabalho. Diversas vezes fui acomodado em suas casas,

    sempre muito bem recebido.

    Compreendi com essa mudana na pesquisa que as classificaes, as

    representaes coletivas, so fruto das interpretaes e reinterpretaes do

    prprio mundo. Sendo assim, buscava compreender aquilo que as pessoas

    26

  • faziam, e o que elas pensavam que elas faziam, ou seja, explicar explicaes.

    Interpretar os fluxos de discursos, pois a produo de um discurso ao mesmo

    tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuda por certo nmero de

    procedimentos que tm por funo conjugar seus poderes e perigos, dominar seu

    acontecimento aleatrio, esquivar sua materialidade (Foucault, 1996), por fim

    produzindo realidade.

    Presume-se, de certa forma, que h uma espcie de desnivelamento entre

    os discursos: os discursos que se dizem no correr do dia a dia e os discursos que

    esto na origem de certo nmero de atos novos de fala que os retomam, os

    transformam.

    Isto no significa que inexista um ordenamento do discurso. No entanto,

    no podemos considerar que esteja no mundo assim como algo exterior a ns que

    nos coage, imprimindo uma forma particular de ser que no diz respeito a nossa

    prpria identidade. A narrativa, ao contrrio, constitui-se como um modo peculiar

    de reflexo sobre eventos notveis. O ato de contar um momento privilegiado

    para o interlocutor produzir uma imagem de si e dos outros.

    Entender estes discursos consiste, como nos chama ateno Geertz, em:

    olhar as dimenses simblicas da ao social arte, religio, ideologia, cincia,

    lei , moralidade, senso comum no afastar-se dos dilemas existenciais da vida

    em favor de algum domnio emprico de formas no-emocionalizadas; mergulhar

    no meio delas. A vocao essencial da antropologia no responder s nossas

    questes mais profundas, mas colocar nossa disposio as respostas que

    outros deram e assim inclu-las no registro de consultas sobre o que o homem

    falou (Geertz, 1989; 41).

    Seguindo essas premissas que constru o meu trabalho. Participei de

    festas religiosas, de festas de aniversrio, joguei futebol, pesquei com os

    pescadores. Foi nesse contexto que o trabalho tomou sua dimenso, modelando-

    se aos poucos.

    27

  • A problemtica e a construo do texto. Meu objetivo focalizar minha anlise nas diferentes produes discursivas

    a respeito da identidade dos moradores da Marambaia, explorando a polmica da

    definio do grupo como quilombo. Para tanto, levarei em considerao as

    diferentes verses apresentadas pelos atores envolvidos no conflito. So nesses

    discursos que buscarei me debruar para compreender como estas situaes

    sociais produzem e reproduzem valores expressos em nossa sociedade.

    Tomo como partida para analisar tais circunstncias a perspectiva do drama

    social (Turner, 1968), aonde possvel considerar que h uma criao aguda da

    conscincia, no s de um direito, de uma justa pretenso, violada (ou em vias de

    s-lo), mas tambm do direito, quer dizer, do mecanismo de composio do

    conflito, com suas estratgias possveis, dentro de um quadro de normas (Mello,

    1995). Como salienta Mello (1995):

    Uma vez adotada, a perspectiva do drama

    social trazia consigo a referncia bsica ao

    conflito. Esta referncia consagrou-se, em

    oposio ortodoxia estrutural funcionalista do

    modelo homeosttico, na antropologia

    britnica, sobretudo a partir de Leach e

    Gluckman. Em torno deste ltimo, a assim

    chamada escola de Manchestrer dedicou-se

    compreenso da vida social em processo,

    palavra com a qual no pretendia , apenas,

    designar o seu movimento, enquanto devir,

    mas apoiando-se no sentido judicial da

    metfora, aludir ao seu primum mobile, o

    conflito e suas formas de composio. A vida

    social desse modo, no seu carter

    essencialmente dinmico, surgia,

    concomitantemente, como produto e produtora

    do tempo. As situaes, dramas e processos

    28

  • rituais, so momento crticos da apreenso

    etnogrfica, graas sua capacidade de

    ressaltar e, desse modo, evidenciar a forma e

    o perfil processual caractersticos das

    totalidades sociais . (Mello, 1995, pg. 43).

    Onde h busca, h conflito, porque homens so valores, e onde h valores,

    h disputas em torno dos valores. E quando mesmo que um valor adquire toda

    sua carga? Quando encenado, isto , quando surge no seio do rito, da cerimnia,

    do processo judicial, ou de outra representao dramtica qualquer. (Mello, pg.

    45).

    A emergncia do debate em torno da definio da Marambaia como

    quilombo se coloca enquanto um campo privilegiado para a problematizao desta

    categoria. Portanto, com isso, no busco definir a Marambaia ou enquadr-la

    dentro da categoria quilombo. Todavia, minha problemtica centra-se na

    discusso sobre os distintos processos que influem na produo de uma nova

    identidade em nossa sociedade. Afinal, a categoria quilombo, aps a

    promulgao do art. 68 em nossa Constituio, permitiu, atravs de vrias

    aproximaes, desenhar uma cartografia indita na atualidade, reinventando

    novas figuras do social (ODwyer, 2002). Portanto, trabalho a noo de quilombos

    como tipos organizacionais, ou seja, como estas identidades se reatualizam no

    tempo e espao (Barth 2000, ODwyer, 2002). O quilombo no um tipo de

    identidade que est ancorada em sinais exteriores que os definem, assim como

    no possvel faz-lo quando falamos de pescadores, sobretudo ao defini-los

    como tradicionais.

    Em relao aos quilombos importante frisar que os primeiros estudos

    levaram a uma referncia histrica do perodo colonial. De Perdigo Malheiro, de

    1866, at Clvis Moura, de 1996, trabalha-se com um conceito comum de

    quilombo. Um conceito, como salientou Alfredo Wagner, que permaneceu

    frigorificado (Almeida, 2002, 1998), em torno de noes como: a fuga, uma

    quantidade mnima de escravos fugidos, o isolamento geogrfico, o rancho

    29

  • (moradias habituais) e auto suficincia (Almeida, 2002). Com isso, esses cinco

    elementos funcionaram como definitivos e como definidores de quilombo. Jazem

    encastoados no imaginrio dos operadores do direito e dos comentadores com

    pretenso cientfica. Da a importncia de relativiz-los, realizando uma leitura

    crtica da representao jurdica que sempre se mostrou inclinada a interpretar o

    quilombo como algo que estava fora, isolado, para alm da civilizao e da

    cultura, confinado numa suposta auto-suficincia e negando a disciplina do

    trabalho (Almeida, 2002).

    Do mesmo modo, como salienta Mello em seus estudos sobre os

    pescadores de Maric (Mello, 1995), esta idia do isolamento, este alm-mar, os

    fora da civilizao, eram atributos definidores da identidade do grupo social

    pescadores artesanais, os quais sempre estiveram, segundo as representaes

    exteriores, sob a tirania do meio que conviviam, por no possurem artifcios

    tecnolgicos para domin-lo. Foram criados, inclusive, tipos definidores destes

    pescadores, classificados na figura do muxuango e mocorongo. Tipos sociais

    criados por Alberto Ribeiro Lamego em trabalhos de grande referncia para

    estudos das lagunas e restingas da costa fluminense (Mello, 1995).

    Ora, se considerarmos que as identidades permitem atualizar numa prtica

    social valores grupais, transformando indivduos em pessoas organizados num

    conjunto relativamente coerente, percebemos que as identidades quilombo e

    pescador suscitam um outro tipo de problema em nossa sociedade: o de que

    estas identidades sociais so tomadas negativamente por um conjunto de

    representaes sociais em nossa sociedade.

    Se as identidades so selecionadas, podemos chamar a ateno para o

    fato de que elas esto correlacionadas a domnios, que possuem relaes

    estruturadas entre si, que cada domnio pode ter mais ou menos recursos para

    institucionalizar seus pontos de vista da totalidade social, estendendo ou no tais

    pontos de vista a todo o sistema social. O jogo das selees de identidades

    sociais est, assim, relacionado ao jogo do poder de cada sociedade. Sendo que

    em nossa sociedade est distribudo de forma juridicamente desigual, em

    30

  • princpio, tendo implicao direta nas aes coletivas e no domnio da identidade

    dos grupos.

    Estas identidades parecem atuar como identidades onipresentes, como

    uma identidade que est sempre ao lado da situao de conjuno e que pode ser

    acionada para qualificar negativamente, determinar alguns ganhos ou neutralizar

    conflitos (Matta, 1976). Caracterstico de uma sociedade onde o conflito aparece,

    em primeiro lugar, como uma desarrumao da ordem, como um princpio de

    desordem, que pe em risco a totalidade da estrutura social, a sua resoluo no

    a soluo das desigualdades que incomodam, mas a sua manuteno pela

    pacificao. A frmula para a administrao dos conflitos a sua supresso, ou

    pela conciliao, ou pela punio das partes envolvidas (Kant de Lima 2000).

    Buscarei articular os insumos tericos s minhas observaes e indagaes

    sobre o conflito entre Estado e os pescadores da Marambaia.

    Nesse sentido, no primeiro capitulo, exporei as formas de organizao do

    grupo atravs da pesca para que o leitor tenha uma dimenso de como o grupo se

    encontra organizado em sua esfera econmica e social. Ressalto a influncia da

    religio na economia local e na suas formas de representao, bem como articulo

    os insumos do passado para contrastar esta atividade ao presente.

    Nos captulos subseqentes, tentarei articular as formas de representao

    existentes em relao composio do grupo da Marambaia.

    No segundo captulo articulo as vises dos pescadores e suas famlias com

    as vises de cronistas, historiadores locais sobre a formao social da Marambaia.

    Tento com isso, articular as fronteiras estabelecidas pelos de fora e pelos de

    dentro para dar uma dimenso ao leitor de como o grupo se pensa e como

    pensado pelos outros.

    Divido este capitulo em trs partes temporais, levando em considerao as

    formas nativas de representao de sua histria. Devo lembrar que a noo de

    histria no imprime nenhum valor de veracidade, ao contrrio, estas histrias

    pretendem ser aqui verses que se articulam, redimensionam-se no tempo e

    espao (Sahlins, 1990). Na parte final do captulo apresento os contornos do

    31

  • conflito judicializado que propicia a polmica em relao definio do grupo

    como quilombo.

    No terceiro captulo, explicito os contornos do debate em relao

    produo da identidade do grupo. Exponho as diferentes perspectivas e discursos

    apresentados pelos atores envolvidos na polmica. O quilombo est colocado

    como epicentro do debate, mas encontram-se ao seu redor outros elementos que

    possibilitam compreender as lgicas dos agentes em relao ao conflito.

    Finalmente, na concluso, pretendo expor os desdobramentos do debate e

    do conflito em relao organizao do grupo. Nesta parte, descrevo o processo

    de mobilizao da comunidade da Marambaia em torno de uma busca de uma

    definio, ou auto legitimao, de sua identidade.

    Nesta parte desenvolvo uma reflexo sobre um processo que se encontra

    emergente na Marambaia. Nesse sentido, concluo uma parte do trabalho e uma

    fase na histria dos marambaienses no momento em que disputam a legitimidade,

    perante a opinio pblica e o Estado, de seus direitos.

    32

  • CAP I: PESCA E PESCARIAS.

    A Ilha Marambaia est situada a 23 04 S e 43 53W, com rea

    aproximadamente a 40 Km. A Ilha da Marambaia possui um relevo diversificado

    entre baixada, meia-baixada e elevao rochosa, tendo 641 metros o seu ponto

    culminante, o pico da Marambaia, onde residem os familiares dos fuzileiros navais

    localizado prximo ao centro de Adestramento da Marinha (CADIM) (Xerez,

    1990).

    A Marambaia denominada Ilha pelos moradores locais, no entanto

    tecnicamente conceituada como restinga. A mesma liga-se ao continente, na

    regio de Barra de Guaratiba, zona oeste do estado do Rio de janeiro, por uma

    faixa de areia de 40 km de extenso.

    Na Ilha existem diversos campos de manobra militar. A Ilha administrada

    pelas Foras Armadas. Nela, encontra-se o Centro de Pesquisa do Exrcito,

    leste; o Campo da Aeronutica no intermdio da Ilha e na poro oeste, da Praia

    da Armao em diante, o CADIM. Nessa parte residem as famlias remanescentes

    da escravido, as quais se distribuem, por ncleos familiares, pelas praias da

    Pescaria Velha, Praia da Kaetana, Praia da Cachoeira, Praia do Jos, Praia da

    Kutuca, Praia Grande, Praia do CADIM, Praia Suja, Praia do Stio, Praia do Caju,

    Praia da Varjinha, Praia da Armao e Praia da Restinga. So aproximadamente

    100 casas distribudas entre as referidas reas. As vias de acesso Marambaia

    so pelo barco da Marinha, que sai todos os dias s oito horas da manh de

    Itacuru em direo Ilha (sendo que aos sbados h uma barca que sai s 11

    horas da manh), ou pelos pequenos barcos de pesca dos prprios moradores.

    As famlias de pescadores se distribuem pelas duas partes da Ilha (Ver

    mapa acima). oeste da Marambaia, concentra-se a famlia Estanislu, que mora

    em sua maioria na Praia Suja. A famlia Barcelos reside em sua maioria na Praia

    do Stio. A famlia Carvalho se localiza tambm na Praia do Stio. A famlia Rosa

    se encontra em parte na praia Suja e na Praia do Stio. A famlia Saturnino se

    concentra no Stio e na Armao. A famlia Lima reside em sua maioria na Praia

    do Caju. Na parte leste da Marambaia, concentra-se a famlia: Juvenal, na praia

    da Pescaria Velha e da Kaetana; a famlia Machado, na Praia da Kaetana e do

    33

  • Jos; a famlia Santana, na praia do Jos; a famlia Barbosa na praia da Kaetana;

    a famlia Mariano na Pescaria Velha e a famlia Firmo na Pescaria Velha.

    Travessia de Itacuru Marambaia em uma das canoas da Ilha da Marambaia.

    34

  • Os casamentos, em sua maioria, ocorrem entre as famlias nativas. Existe

    um intercurso de casamentos entre os troncos familiares, que esto relacionados

    territorialidade. Existe apenas um caso de casamento de moradores de distintas

    reas da Ilha, em que a mulher moradora na praia do Caju, casou-se com um

    homem da famlia Santana, da praia do Jos, e atualmente mora na Praia Grande.

    A Ilha da Marambaia se localiza na regio denominada de sul fluminense.

    No perodo colonial a regio do Sul Fluminense4 possua extensos povoamentos,

    principalmente Angra dos Reis e Parati. No sculo XVIII predominava o cultivo da

    cana-de-acar na maior parte da extenso territorial dos municpios que

    abrangem o litoral sul fluminense. Com o declnio econmico do cultivo da cana,

    estas regies, no incio do sculo XIX, passaram a cultivar caf, chegando a se

    tornar ponto de destaque na produo deste produto.

    Por volta da segunda metade do sculo XIX a decadncia do caf, a

    extino do Trfico Negreiro e a construo da Estrada de Ferro Pedro II - em

    1877 - foram fatores preponderantes para o declnio da economia do sul

    fluminense, acarretando um abandono das terras por parte dos latifundirios e a

    desestruturao do sistema produtivo agrcola. Todavia, os pequenos produtores e

    trabalhadores das fazendas permanecem nas terras abandonadas.

    Na primeira metade do sculo XX o perfil destes municpios estava

    passando por um processo de significativa mudana com a substituio das

    grandes propriedades escravistas pelas pequenas propriedades que cultivavam,

    sobretudo, banana.

    Na segunda metade do sculo XX, acompanhando o projeto de

    desenvolvimento industrial do Estado brasileiro, os municpios do sul fluminense

    passam a receber diversos investimentos industriais com a implementao de

    Parques Industriais em Itagua, as Usinas Nucleares e o Estaleiro Verolme, em

    Angra dos Reis e a Empresa de Mineraes Brasileiras Reunidas em

    Mangaratiba.

    4 - O Sul Fluminense compreende os municpios de Parati, Angra dos Reis, Itagua e Mangaratiba,

    sendo a Marambaia distrito desse municpio.

    35

  • Este processo intenso de industrializao e urbanizao causou um

    agravamento nas condies de vida das populaes residentes nas reas do Sul

    Fluminense5, em decorrncia da supervalorizao das terras desta regio,

    principalmente aps a implementao da Rio-Santos6. Esta rodovia foi concluda

    no ano de 1976, produzindo um aumento na especulao das terras por parte,

    principalmente, das grandes empresas imobilirias e tursticas. Para se ter uma

    compreenso, em termos numricos, segundo dados da FEEMA nos anos 70 a 75

    foram aprovados 31 projetos de parcelamento do solo nestas regies,

    representando este nmero 50% dos loteamentos e condomnios aprovados para

    a regio desde o incio de sua histria at a abertura da Rio-Santos. Angra dos

    Reis e Parati so os municpios mais requisitados ficando com 85%,

    aproximadamente, do total dos projetos.

    A valorizao turstica e a implantao de indstrias na regio modificam

    consideravelmente seu quadro social e econmico. Locais tradicionalmente

    ocupados por populaes de pescadores e/ou pequenos agricultores vo sendo,

    aos poucos, ocupados por grandes empreendimentos tursticos e imveis de

    veranistas que, aos finais de semana, desfrutam da beleza do litoral sul

    fluminense. Com a presso dos grandes empreendimentos imobilirios a

    populao local que, tradicionalmente, habitava as reas litorneas, vai sendo

    deslocada para reas distantes do litoral ou para outras regies mais longnquas.

    Com a chegada de novos campos de trabalho, ocorre uma reorganizao do

    sistema de trabalho, fazendo com que, paulatinamente, os pescadores e seus

    familiares abandonem a pesca enquanto atividade principal para trabalharem

    como caseiros, pedreiros ou empregados domsticos nas residncias de turistas,

    5 - Os municpios que compreendem esta faixa territorial (Parati, Angra dos Reis, Itagua e

    Mangaratiba) foram elevados em 1972 , pelo Governo Federal , categoria de territrio prioritrio

    para a Reforma Agrria , pelo decreto n 70.986 de 16/08/72 . O objetivo era diminuir as tenses

    no campo naquelas regies, proporcionadas principalmente pela construo da rodovia Rio-

    Santos. 6 - H tambm outro fator importante para a elevao dos preos das terras no Sul Fluminense que

    a implantao de indstrias nesta rea. No existe, neste caso, uma varivel apenas explicativa

    deste fenmeno, as duas se complementam.

    36

  • nos empreendimentos tursticos implantados na regio, na indstria e no

    comrcio7.

    Assim, a zona litornea fluminense, em

    particular o sul fluminense do Estado do Rio

    de Janeiro, desafia pressupostos e exige

    minunciosas investigaes. A rea em

    questo um exemplo tpico de expanso

    capitalista que reestrutura o universo

    agrrio em termos de terra e trabalho e

    desencadeia processos de transformaes

    da paisagem local, tanto em termos fsicos

    quanto econmicos, sociais e polticos. A

    partir dos anos 70, a regio torna-se palco

    sistemtico de lutas envolvendo questo de

    terra, produo e trabalho(Gusmo, 1995,

    21).

    Esse processo especulatrio das terras na regio do sul fluminense atingiu,

    ainda que preliminarmente, a Marambaia mesmo tendo ela sido preservada da

    especulao e da grilagem direta dos investidores como podemos, por exemplo,

    constatar em matria jornalstica veiculada pela Revista Isto , de 23 de fevereiro

    de 2002. Nela o presidente da Turis-Rio, rgo do Governo Estadual do Rio de

    Janeiro responsvel pelas polticas pblicas de turismo, propunha transformar a

    Marambaia em uma Cancun. Segundo o mesmo, as Foras Armadas deveriam

    7 - Em trabalho realizado por pesquisadores do NUFEP, em parceria com o Centro Nacional de

    Apoio as Populaes Tradicionais (CNPT) com financiamento do PNUD na regio sul

    fluminense, foi possvel constatar que a paisagem daquela regio modificou-se significativamente

    nas ltimas dcadas. As reas que tradicionalmente eram ocupadas por pescadores, e agricultores

    foram tomadas por grandes empreendimentos tursticos, casas e condomnios de veranistas. Para

    maiores detalhes ver Levantamento do litoral dos Estados do Esprito Santo, Rio de Janeiro, So

    Paulo e norte do Paran, de comunidades de pescadores artesanais com vistas criao de

    Reservas Extrativistas Marinhas Kant de Lima e at al, 2002.

    37

  • arrendar ou vender suas unidades tursticas. Os fortes poderiam ser centros de

    convenes de porte mdio. Entre estes diversos centros de convenes estaria

    a Marambaia. Todavia, estes projetos de desenvolvimento turstico no se

    realizaram. A pesca, desta maneira, continua sendo a principal renda das famlias

    da Marambaia.

    Os pescadores da Marambaia se beneficiam da riqueza natural do

    ecossistema martimo da Baa de Sepetiba. Em suas guas, como observou

    Matsuura (Matsuura apud Xerez 1990), a penetrao da massa de gua tropical

    (Corrente do Brasil) sobre a camada superficial da plataforma continental maior

    na regio onde se insere a Marambaia (entre Cabo Frio e Ilha Grande). A entrada

    da massa de gua central do Atlntico Sul, na camada inferior da plataforma

    continental, mais acentuada durante as pocas de fim de primavera e vero,

    sendo ento observada a formao de um termoclima marcante. No perodo de

    outono e incio de primavera, essa massa fica recuada, margem da plataforma

    continental, e a distribuio vertical sobre a plataforma continental homognea.

    No fim da primavera e vero registra-se o fenmeno da ressurgncia (Matsuura

    apud Xerez 1990).

    Estudos realizados pelo IBAMA (SOUZA, D. C; FERREIRA, M.G.S, 1978),

    na dcada de 70, indicavam que a pesca possua grande importncia para as

    populaes tradicionais de pescadores desta regio. No mesmo estudo aponta-se

    que, por volta de 1967, ocorre a introduo de barcos de arrasto de fundo, prtica

    que foi impedida pela portaria da SUDEPE n. 121 de 07/03/68. Todavia, os

    regimentos normativos no foram suficientes para impedir estas prticas no

    entorno da baa, que agiam (e agem) diretamente sobre as formas jovens das

    espcies e mantm um aumento exacerbado do esforo de pesca. No estudo,

    conclui-se que de extrema importncia a preservao destes espaos para a

    reproduo da biota aqutica que se utiliza destes esturios para a sua

    reproduo e desenvolvimento.

    Apesar destas aes antrpicas no ecossistema da baa, estudos apontam

    que a atividade pesqueira no local possui intensa movimentao com o

    desembarque de 1000 a 2000 toneladas de pescado por ano (Veeck, 1999).

    38

  • Contabilizam-se as populaes de pescadores que vivem no entorno da baa:

    pescadores de Guaratiba, Sepetiba, Ilha da Madeira, Ilha Grande e Ilha de

    Jaguanum. Esta ltima expressiva em termos numricos, pois ali residem cerca

    de 800 pescadores distribudos pelas 14 praias da Ilha, que utilizam pequenas

    canoas movidas a motor e traineiras de pequeno porte para a captura de camaro.

    A populao local, apesar do avano do turismo na rea, possui uma ntima

    relao com a atividade da pesca e com o espao que o grupo tradicionalmente

    utiliza para seu sustento. O grupo de pescadores de Jaguanum, diferentemente

    dos pescadores da Marambaia, esto organizados em associaes de moradores

    e de pescadores, atravs da Colnia, pois seu presidente, o Cabo, morador e

    filho de Jaguanum. Os pescadores de Jaguanum e Marambaia possuem um forte

    vnculo social, tanto em termos econmicos, sobretudo no caso da pesca os

    pescadores das duas Ilhas usufruem o mesmo espao de pesca desde o tempo

    dos antigos, como dizem - como em relao aos casamentos. Nos espaos

    profanos e sagrados perdura este lao de reciprocidade. Nos cultos das igrejas

    evanglicas podem ser encontrados pescadores de Jaguanum em Marambaia e

    vice-versa. Na festa de So Pedro, padroeiro dos pescadores, os dois grupos se

    renem para sarem em procisso, com a imagem do santo, pelas ilhas do entorno

    da baa. Nos finais de semana, freqentemente, pescadores de Jaguanum e

    Marambaia se encontram para jogarem pelada no campo de futebol da Marinha.

    Enfim, h um continuum territorial entre as duas lhas estabelecido por laos

    distintos que organizam a estrutura dos grupos locais.

    39

  • Pesca no interior da baa de Sepetiba, prximo Ponta da Marambaia, realizada por pescadores da Ilha da Marambaia.

    40

  • A atividade da pesca Particularmente, na Marambaia a pesca consiste em um espao importante

    de sociabilidade entre os diversos moradores da Ilha. Constitui, ainda, a principal

    renda das famlias. Como diz um pescador a pesca faz parte da vida dos

    pescadores vinte e quatro horas, a semana toda, o ms inteiro, o ano todo. H de

    se considerar que as pescarias enquanto instrumentos de trabalho constituem no

    apenas meio de produzir peixes, mas, tambm, elementos simblicos atravs dos

    quais se reproduzem relaes sociais especficas (Britto, 1999).

    Antigamente, os pescadores tambm plantavam, em pequenas hortas,

    feijo, arroz, banana e outros produtos. As plantaes eram no p dos morros.

    Todavia, com presena da Marinha, as plantaes foram proibidas, acabando

    gradualmente com as roas. Com isso, a pesca tornou-se a atividade econmica

    principal para as famlias de pescadores da Marambaia.

    Um dos membros da companha, levando o peixe para ser conservado em gelo na Praia da Pescaria Velha.

    41

  • Nessa atividade, existem saberes especficos a respeito dos recursos

    naturais renovveis. Existe todo um conjunto de conhecimento que ordena as

    formas de apropriao dos recursos, delimitando as reas possveis para atividade

    pesqueira. Do mesmo modo, este conhecimento engloba um saber sobre os

    comportamentos dos cardumes. Conhecer, portanto, a influncia de uma

    determinada fase da lua, o vento, e a temperatura na influncia do movimento de

    cardumes essencial para a atividade pesqueira. Esses pescadores possuem um

    domnio sobre estes espaos, um conhecimento local e especfico sobre seu

    territrio (Geertz, 1999). Conhecimento transmitido de gerao a gerao atravs

    da iniciao na atividade.

    Essa iniciao se d em torno de diversos procedimentos simblicos que

    possibilitam a insero do iniciado na pesca. Aqui muitos aprendem a pescar

    quando criana, brincando de pescar. Sai depois com o pai pra pescar at ficar

    preparado , como nos explica seu Cassilio.

    A Companha, denominao dada ao conjunto de pescadores que compe

    uma pescaria, composta por trs camaradas, sendo as funes divididas em

    mestre, contra-mestre e ajudante. Como salienta Britto (1999):

    na companha a transmisso dos

    conhecimentos se efetiva com base na sua

    apropriao coletiva, envolvendo uma

    peculiar especializao de funes , onde a

    companha comporta uma diversidade de

    papis (Britto, pg.90).

    O mais especializado na companha o mestre, que muitas vezes tambm

    o dono do barco, no sendo isso regra geral. Na hierarquia dos saberes, ele

    quem detm mais conhecimento sobre a tcnica e prtica da pescaria. O contra

    mestre o substitui em eventuais situaes. O ajudante, por sua vez, trabalha mais

    fora do barco, na manuteno da rede. Como explica Aderaldo, pescador da Praia

    da Cachoeira, o camarada que cumpre a funo de ajudante pesca muito de linha

    na poca da garoupa na Praia do Sino complementando a pesca da companha.

    O ajudante poucas vezes acionado a trabalhar embarcado, ou seja, dentro da

    42

  • canoa, por ser esta uma atividade de alto risco e demandar um profundo

    conhecimento sobre a tcnica na pesca.

    Para os pescadores da Marambaia o melhor perodo para pescar o

    perodo que chamam de quadra, quando o vento est bom, deixando o mar

    calmo. O pior perodo quando entra um Sudoeste e A-Sudoeste, o mar fica

    muito agitado e no fica bom pra pescaria, como explica Adhemir.

    O principal pescado, atualmente, na Ilha, a curvina, no caso dos

    pescadores da parte oeste da Ilha. A curvina o peixe que d o ano todo, como

    dizem.

    No entanto, na parte leste da Ilha, por conta das diferenas ambientais nos

    espaos utilizados e das tcnicas empregadas na atividade pesqueira, o camaro

    o recurso mais pescado, mesmo ele tendo escasseado com a intensificao da

    pesca por parte das traineiras industriais na regio.

    A pesca de camaro realizada com um bote a remo. Utiliza-se rede de

    malha 30 e 35, sendo esta ltima utilizada tambm para o robalo. O camaro

    pescado dentro da baa de Sepetiba, leste, na Restinga da Marambaia. Nesse

    caso, a pescaria pode ser realizada com um pescador sozinho, ou s vezes, com

    duas pessoas embarcadas. Exercem o trabalho sozinhos, em parte, por conta da

    caracterstica da atividade pesqueira do local cuja predominncia de botes bem

    maior que a de curvineiras. A pesca no bote suporta no mximo duas pessoas.

    Por outro lado, um outro motivo para esta individualizao na pesca a intensa

    migrao dos moradores para outras regies do Rio de Janeiro, principalmente os

    mais jovens. Isto ocorre porque, sem perspectiva de crescimento na Marambaia,

    devido ao fim gradual do pescado na baa de Sepetiba e s presses por parte da

    Marinha sobre os moradores, acrescido da falta de infra estrutura escolar, pois a

    escola oferece simplesmente o primeiro grau.

    Na parte oeste da Marambaia, predomina a pescaria de curvineira

    (canoas a motor). Nessa pesca, prevalece a rede de espera, tcnica que

    consiste em colocar a rede em lugar especfico que difere dependendo das

    condies climticas no costo da Ilha, na parte do alto mar. O costo tornou-

    se local de pesca h poucas dcadas. Antigamente ela era realizada no interior da

    43

  • baa de Sepetiba. Todavia, com pesca intensiva de traineiras na rea (que

    chegam a pescar em um dia cerca de 20 toneladas) os recursos martimos nessa

    parte da baa se escassearam. Uma pesca que ainda se realiza na baia de

    Sepetiba a casseia: a rede, geralmente rede 70, fica segura no barco e vai

    deixando a mar levar ela.

    Canoa sendo ancorada aps a pescaria.

    44

  • Estas tcnicas e seus materiais empregados modificaram-se com o tempo.

    Atualmente as redes so feitas de plstico, um material mais moderno, como

    enfatiza um ex-pescador, mas antigamente se pescava com fio jergo nylon de

    malha 30. Usava-se muito o gorete para o camaro e para a tainha, sendo o

    primeiro com malha menor. Para a pesca de curvinota (uma curvina menor),

    pescadinha e parati so usados rede de malha 35. As malhas 110 com fio 60 so

    para a captura da curvina grada.

    A malha 70 serve para pescar robalo e cao, que tem que ser com fio

    grosso porque esses peixes so violentos e arrebentam a rede, como enfatizam

    os pescadores. As malhas 50 e 55 so para a curvina. Para os botes se usa malha

    35 e 40 para pescadinha e curvinota. A traineira, a nica da Ilha, que pertence ao

    Pep, pesca com malha 8 para sardinha. As outras pescarias existentes so:

    anzol e linha.

    Na parte oeste da Ilha existem, atualmente, cerca de 16 curvineiras, 11

    barcos (conhecidos como traineirazinhas), 08 botes e uma traineira. Na parte

    leste da Ilha, existe um nmero bem maior de botes, cerca de uns 15 deles,

    enquanto curvineiras so apenas 04 e nenhuma traineira.

    Canoas (curvineiras) estacionadas na Praia da Pescaria Velha aps a atividade pesqueira.

    45

  • Canoa estacionada no rancho na Praia do Stio. Na foto dona Sebastiana. Foto tirada no ano de 1970.

    46

  • Formas de Pagamento e Comercializao No sistema de companha o pagamento se d na forma de quinho. Divide-

    se o lucro entre os trs pescadores: 50% so destinados para a embarcao e os

    outros 50% so divididos entre o mestre e os outros dois camaradas.

    O quinho representa muito mais de que uma forma de pagamento. Ele

    elabora e reifica as hierarquias, formaliza as representaes da vida social dos

    moradores, assim como reafirma os papis sociais dos agentes. Antigamente,

    quando ainda havia a pesca de tainha de puxada de rede na praia, as mulheres e

    as crianas que participavam da pesca puxando a rede recebiam tambm o

    quinho, mas no equivalente ao quinho dos homens. Para as mulheres dava-se

    meio quinho e para as crianas 1/3 do quinho.

    Outra caracterstica importante do quinho a importncia dada canoa.

    Como frisei acima, a canoa recebe 50% do produto total bruto produzido na pesca,

    mais do que o mestre e os outros camaradas. Mas o que nos d uma margem

    para entendermos melhor o papel da canoa so os nomes colocados nas laterais

    da canoa: tanto pode estar inscrita a colnia qual o pescador filiado, como um

    nome prprio qualquer, ou uma frase.

    Como Marcel Mauss indicava em seu trabalho, o nome possui uma

    representao importante na vida humana : ele quem pode indicar a identidade

    de um indivduo, sua posio social, o grupo ao qual pertence. Na Marambaia

    existem alguns barcos que indicam a colnia a qual pertencem, a Z 16; contudo, a

    maioria possui nomes prprios e, atualmente, com a presena da igreja Batista

    podemos encontrar diversas canoas com enunciados do tipo : Jesus Salva,

    Cristo Vive, Pela F, indicando a sua identidade crist, de irmo.

    As motivaes que levam o dono da canoa colocar o nome so relevantes

    para compreender esse mecanismo. Cito o caso da Silvana, a canoa que

    atualmente do Carlinho. Ela foi feita pelo seu av, o Adriano, morador da Praia do

    Sitio, j falecido. Era o nico pescador da Marambaia que fazia as prprias

    canoas, diziam possuir uma inteligncia surpreendente para uma pessoa

    analfabeta. Quando eu me encontrava na casa do Adriano (o filho, claro)

    estvamos conversando numa roda e nela estavam: o Adriano, o Carlinho, o

    Pedro e o Bertolino. Contaram a histria do nome da Silvana. Esse nome foi por

    47

  • causa de uma sobrinha do Adriano que tinha nascido e era de uma irm muito

    querida, ento resolveu dar esse nome a sua obra prima, como foi dito nessa

    conversa. Mas o mais interessante deste papo foi o motivo dado por eles para que

    a Silvana fosse considerada uma obra prima: ela era a n. 1 da baa, a canoa

    mais veloz da baa de Sepetiba, quando ela ia sair todos as outras canoas

    esperavam a Silvana sair, porque ningum ganhava ela na corrida, como relembra

    o Adriano. O seu pai aprimorou a dinmica da canoa para aumentar a velocidade,

    porque o seu filho mais novo, o Carlinhos, sempre quando saa para pescar com

    ele chorava ao ver as canoas ultrapassarem a do seu pai.

    Como as narrativas demonstram, a canoa se apresenta como uma

    extenso do prprio ofcio de pescador, da sua identidade, da sua pertena a um

    grupo e como uma forma de travar disputas entre os prprios pescadores.

    O carter artesanal da pesca encontra correspondncia na sua forma de

    comercializao. O pescado levado para fora da Ilha para ser vendido nas

    peixarias de Mangaratiba, no caso dos moradores da parte oeste da Marambaia.

    Os moradores da parte leste comercializam o pescado em Itacuru. Em ambos

    os lugares, o preo estabelecido nas peixarias pela sazonalidade das espcies,

    ou seja, quando uma poca em que d muito de uma espcie o preo cai. Isso

    porque os moradores no tm como armazenar durante um perodo muito grande

    o pescado, assim o dono da peixaria diminui o preo do peixe quando a espcie

    abundante.

    Como bem chama ateno Kant de Lima:

    ao analisar mecanismos de troca e

    princpios que os regem, estamos no s

    diante dos processos estabelecidos pela

    sociedade para formalizar as estruturas da

    repartio de bens e servios econmicos,

    no que diz respeito a sua circulao, como

    tambm diante de formas estabelecidas de

    estruturar relaes sociais (Kant de

    Lima,1998, pg. 222).

    48

  • Estas relaes se estabelecem de uma forma hierrquica seja na peixaria,

    onde seu dono estabelece o preo do peixe do pescador, ou mesmo na praia,

    onde quem estabelece o preo do peixe ao comprador o pescador.

    Em Mangaratiba existem dois estabelecimentos comercias que compram os

    peixes: o mais antigo fica ao lado dos bares do pequeno centro de Mangaratiba,

    em frente praia; o outro fica perto da entrada do cais, onde desembarcam as

    barcas e os barcos que vo para Ilha Grande. Atualmente, com a urbanizao do

    centro de Mangaratiba, a barraca se deslocou para mais longe do cais at o local

    atual. Os pescadores, em sua maioria, vendem o peixe na primeira peixaria

    porque na segunda o comerciante costuma pagar em vale e no o cobre com o

    dinheiro no tempo estipulado.

    Em Itacuru existem trs peixarias. Duas se localizam prximo praia,

    exatamente em frente praia. A outra se localiza perto da praa principal da

    cidade, perto da Igreja Catlica. Os pescadores da Marambaia vendem seu

    pescado na peixaria perto da praia. Como tambm vendem seus peixes na praia

    para os banhistas, o que no acontece em Mangaratiba.

    Nesses lugares prprios, para usar a expresso de DeCertau, cada espao

    privilegiado por um esquema simblico. A praia o lugar de todos, mas para o

    pescador apropriada de uma forma particularizada, o seu lugar de trabalho, o

    seu lugar prprio. E por isso, como me disse o Carlinho, na praia o preo o

    pescador quem estabelece. J na rua no. A rua o lugar prprio do outro e,

    neste caso, a rua do Gaguinho, como ressaltou o Elson ao comprador de sua

    mercadoria, ele deve comprar o peixe na peixaria. So lugares onde a hierarquia

    se move de pontos distintos, modificando a dinmica do uso destes espaos

    pblicos: a rua e a praia. Como tambm movimentam a dinmica das relaes

    sociais reafirmando os laos com uns, desatando com outros.

    49

  • A sorte de Deus

    Ao analisar a reproduo social dos pescadores de Jurujuba, Luis

    Fernando Dias Duarte, assinala a importncia do papel da sorte em oposio ao

    trabalho, pensando-as de uma forma complementar.

    Atravs da sorte que se pode explicar a

    superao, eventual, desses obstculos reais

    que se vm interpor no exerccio da

    subsistncia. Eventual, sobretudo, porque nem

    todos os limites parecem ser relativizveis ou

    contornveis por essa via. Apenas um dos trs

    domnios de limitao detectveis comporta na

    verdade a eficcia especfica da sorte. E esse,

    dentre os trs, exatamente o da produo da

    pesca, ou melhor, o da relao com o mar e

    com o peixe (Duarte, 1999, pg. 99).

    Por outro lado, demonstra como Deus e sua vontade so razes

    abrangentes do mundo da sorte. Ao inverso da vontade do Homem, destilada no

    suor, se desenha a vontade de Deus, chamando a ateno para o fato de que

    esse discurso se apresenta recorrentemente entre os pescadores protestantes.

    Com o crescimento das igrejas protestantes na Ilha, este discurso tornou-se

    mais freqente entre os pescadores artesanais. Na Ilha existem, atualmente, trs

    grupos religiosos: a Igreja Catlica, a Igreja Batista e a Assemblia de Deus. A

    Igreja Catlica tm como responsvel o capelo, que Oficial da Marinha. A sua

    implantao na Ilha remonta ao tempo da escravido, quando foi erguida uma

    capela, feita de pedra pelos escravos, onde hoje a Praia da Armao. possvel

    ver as runas da mesma na praia, pois quase foi destruda por conta de manobras

    militares no local. Uma outra capela, tambm construda pelos escravos, foi

    levantada onde hoje a Praia do CADIM, sendo substituda por uma nova de

    concreto, com a instalao da Escola de Pesca Darci Vargas nos anos 30. Essa

    instalao faz parte da paisagem da Ilha at os dias atuais.

    50

  • A Igreja Batista se constitui como religio representativa desde os anos 70.

    A igreja foi construda na Praia da Kaetana pelos prprios moradores. O seu

    fundador foi o pastor Fernando, um sargento da Marinha, na poca (dizem que

    filho da Ilha). O pastor atual da Igreja reside em Inhoaba, um bairro da Zona

    Oeste do Rio de Janeiro. Existem ainda dois pastores interinos: o Elson, morador

    da Pescaria Velha e o Durval, morador da praia Suja. Este ltimo vem negociando

    com o comandante do CADIM a liberao da construo de um templo Batista na

    Praia Suja. Enquanto no h a liberao, os cultos so realizados em uma praa

    prximo Igreja Catlica

    A Assemblia de Deus se localiza, temporariamente, na praia da Kaetana.

    Os cultos so realizados na casa do sr. Adilino. No entanto o Divino, pastor

    interino da Igreja, disse que solicitou ao comandante do CADIM um espao prprio

    para a construo do templo. No entanto, o templo ser erguido na Pescaria Velha

    afinal j h uma igreja neste local, portanto melhor levar a palavra do Senhor

    para outros rebanhos, afirma um dos integrantes da Igreja. A Assemblia de Deus

    recente na Ilha, tm pouco mais de um ano. Quem a fundou foi o Divino,

    morador da Praia da Kaetana e antigo membro da Igreja Batista.

    Grande parte dos moradores da Praia da Pescaria Velha Praia Grande,

    adepto da religio Batista ou a Assemblia de Deus. A outra metade da populao

    da Ilha, da Praia do CADIM at a Praia da Armao, catlica. Entretanto, os

    moradores reconhecem que h um fluxo crescente de fiis s igrejas protestantes

    da localidade.

    Os membros da Igreja Catlica comemoram todo ano, no dia 15 de

    setembro, a festa da padroeira Nossa Senhora das Dores. Existe tambm uma

    procisso dos pescadores em torno da Ilha de Jaguanum, onde carregam a

    imagem de So Pedro nas canoas para comemorar o dia do santo protetor dos

    pescadores. Estas festividades tm uma grande atrao ao pblico externo,

    principalmente os familiares que residem fora da Ilha, os quais nestes dias

    costumam ir para a Marambaia. Ambas as festas so organizadas pela igreja

    Catlica, portanto h uma presena muito pequena dos moradores evanglicos

    nestas comemoraes.

    51

  • Os discursos que relacionam a sorte ao trabalho na pesca se apresentam

    mais recorrentemente entre os pescadores evanglicos. Certa vez, quando me

    encontrava na Praia do Jos, a oeste da Marambaia, presenciei estes discursos.

    O Toca, morador da Praia do Jos, ao chegar com a sua canoa com mais de 500

    Kg de peixe, foi recepcionado por sua mulher que o esperava em frente a sua

    casa. Ele vira e diz a ela: viu, eu sabia que eu ia fazer uma boa pescaria, ontem o

    pastor me abenoou, e pela graa de Jesus eu hoje consegui uma boa pesca.

    Aqui, o sentido da palavra do pastor, representante da palavra do Senhor,

    ultrapassa o que o Duarte indica como a sorte relacionada batalha, transpe-

    se: a prpria peregrinao ao caminho da salvao, do caminho de Jesus, o

    relato de como o senhor o abenoou, o Testemunho explcito da graa de

    Deus.

    No mesmo dia, agora na Praia da Pescaria Velha, conversava com o

    Elson e o Adhemir. Falvamos a respeito da influncia do tempo na pesca:

    diziam da lua, do vento, mas em um momento o Elson vira e diz: no, essas

    coisas todas, tudo indicao de Jesus, ele quem nos d o caminho, quem

    determina tudo. O conhecimento no possui mais um sentido de um saber

    prprio, de um saber tradicional, apontado pelo prof. Kant em seu trabalho sobre

    Itaipu: agora se encontra um outro saber complementar a esse, o de Deus.

    A Pesca da Tainha

    Como demonstra o professor Kant, em seu livro Os pescadores de Itaipu,

    a pesca da tainha

    implica uma euforia social, exarcebando-se

    as trocas e as ddivas, com as

    conseqentes afirmaes dos desequilbrios

    da hierarquia social... a pescaria da tainha

    a sntese da vida comunitria de Itaipu

    (Kant de Lima, 1997, 252).

    52

  • Na Marambaia restaram apenas os relatos da pesca da tainha, promovida

    com rede de gorete, de arrasto de praia. A pesca da tainha no era uma coisa

    exclusiva dos camaradas que trabalhavam numa determinada canoa. Quem

    estivesse presente podia participar da pesca da tainha, inclusive crianas, era

    uma festa realmente bonita. A praia ficava cheia, todo mundo ajudando. A pesca

    da tainha uma pesca muito bonita, porque ela tenta pular, ela no vem assim

    no fundo como a pescadinha, ela tenta se livrar do cerco. A saam com as

    canoas ao lado, algumas conseguiam pular da rede, mas caam dentro da canoa,

    muito bonita a pesca da tainha.

    Nesse relato, o Adriano lembra com muita saudade de um dos momentos

    mais importantes na vida social dos moradores da Marambaia, a pesca da tainha.

    Uma pesca que estimulava a elaborao das hierarquias, com a diferenciao

    dos pagamentos (1/3 paras as crianas, quinho para as mulheres e 1 quinho

    para os homens), a reafirmao dos laos de solidariedade entre os pescadores,

    momento ldico e de aprendizado das crianas. Um ritual importante, pois trazia

    todos para um mesmo lugar: a praia. O espao que naquele momento era de

    todo mundo: do homem, da mulher e das crianas.

    Na pesca da tainha se usava um espia que ficava em cima do morro

    esperando o cardume passar para a canoa cerc-lo. O Adriano lembra que s

    vezes uma mulher no morro avistava e avisava para os pescadores que estava

    vindo um cardume de tainha. Os pescadores saam para cerc-la em qualquer

    lugar, a tainha no era especfica de um determinado ponto, qualquer praia voc

    acompanhava o cardume at chegar a determinado local. O Salvador lembra que

    se os pescadores de uma praia, quando iam cercar, se outro entrasse a porrada

    comia. Doze homens aqui e doze l . Caso chamasse a gente pra ir forra a rede

    dele l, porque era muito a gente forrava a rede dele, mas se fosse e tampasse a

    rede dele a a coisa ficava feia. As diferenas, ao contrrio do lugar onde o

    Adriano descreve, onde todos pertencem a um mesmo grupo, exarcebam-se no

    caso do pessoal da praia dos brancos e o os da praia dos pretos, em relao

    ao que o Salvador descreve: o conflito explicitado.

    53

  • Entretanto, esta pesca hoje na Marambaia no se pratica mais, em virtude

    da pesca de arrasto das traineiras industriais que esto acabando com