dissertação fabio reis mota
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Ilha da Marambaia. Pescadores e quilombolasTRANSCRIPT
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CENTRO DE ESTUDOS GERAIS PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ANTROPOLOGIA E CINCIA POLTICA
NEM MUITO MAR, NEM MUITA TERRA. NEM TANTO NEGRO, NEM TANTO BRANCO:
UMA DISCUSSO SOBRE O PROCESSO DE CONSTRUO DA IDENTIDADE DA
COMUNIDADE REMANESCENTE DE QUILOMBOS NA ILHA DA MARAMBAIA/RJ.
Niteri 2003
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FABIO REIS MOTA
NEM MUITO MAR, NEM MUITA TERRA. NEM TANTO NEGRO, NEM TANTO BRANCO: UMA DISCUSSO SOBRE O PROCESSO DE CONSTRUO DA IDENTIDADE DA COMUNIDADE
REMANESCENTE DE QUILOMBOS NA ILHA DA MARAMBAIA/RJ.
Dissertao apresentada ao Programa de Ps Graduao em
Antropologia e Cincia Poltica da Universidade Federal Fluminense, como
requisito parcial para obteno do Grau de Mestre.
Orientador: Professor Roberto Kant de Lima
Niteri 2003
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Aos meus pais por compreenderem minhas incompreenses
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Agradecimentos: Tinha uma pedra em meu caminho, em meu caminho tinha uma pedra. So essas
pedras, enquanto metforas, que Carlos Drummond descreveu para relatar os
obstculos da vida. E so elas enquanto imagens, metforas ou realidades que
cruzando nossas estradas, nossos caminhos nos ensinam a melhor percorrer os
percalos que a vida nos impe. E para atravessar a estrada da vida (e vida pode
ser aqui uma fora de expresso!) necessitamos de parcerias que nos ajudam a
superar os obstculos, a romper com as barreiras, a quebrar com os nossos
limites e fraquezas. E sem essas pessoas (e outras milhares que infelizmente no
poderei citar aqui por falta apenas de espao !) no teria superado todas essas
pedras desse caminho que busquei trilhar com carinho, dedicao e
responsabilidade. Foram alguns anos que se passaram, mas garanto que foram
anos bem aproveitados, bem vividos. Pude aprender muito (espero ter ensinado
algo?!) com pessoas que acompanharam meu trabalho, minha trajetria. Nos
inmeros momentos de angstia, inquietao intelectual foi possvel repartir com
muitos.
Entre as pedras e as guas da Marambaia foi possvel contar com inmeros
amigos e amigas que aos poucos foram tomando o respeito e carinho por mim,
assim como eu por eles. Agradeo ao Adriano e a Sonia pela hospitalidade e
amizade sempre constante (e por aquele peixe com farinha e feijo, pois sem
ele...); muito obrigado ao vascano seu Joel pela sua sapincia, ensinou-me muito
sempre quando possvel; valeu Pedro pelas conversas; valeu demais Joo Paulo
e Palu por abrirem as portas de sua casa e de sua vida para um estranho que aos
poucos se tornou um habitante permanente dessa grande casa; dona
Sebastiana e a dona Darclia por ter me ensinado o valor da vida; ao Lino pela
luta; Ao Toca pela persistncia; ao seu Adilino pela hospitalidade; ao lson pelo
respeito a minha pessoa; ao Adhemir pela pacincia em conversar com um
distante amigo; ao Salvador pelas oportunidades de conhecer mais de perto a
histria de um povo; ao seu Tio pela receptividade no momento em que o medo
atormentava a todos; dona Maria pelos almoos saborosos, recheados de
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carinho; dona Antnia pelas conversas onde me ensinava com metforas; ao
Carlinhos e ao seu Filipe, um muito obrigado. Obrigado todos marambaienses que
colaboraram com esse trabalho!
Entre as pedras e os livros foi possvel contar com a colaborao de muitos.
Sobretudo, contei com duas pessoas fundamentais para tal empreitada: Roberto
Kant de Lima, meu orientador (e meu amigo), e Ronaldo Lobo, meu amigo (e um
grande irmo) e pesquisador do NUFEP. Ao meu orientador, devo as conversas e
orientaes sempre frutferas. Ao Ronaldo, agradeo por ter sido um grande
mestre na arte de fazer uma antropologia possvel, e claro, por ter sido um grande
amigo nas horas difceis e boas da vida. Agradeo imensamente a colaborao
dos professores do PPGACP e da Graduao da UFF. Em especial, agradeo
professora Mrcia Motta pelas orientaes ao trabalho de pesquisa arquivstico e
bibliogrfico; ao professor Mello pelas orientaes sempre constante; professora
Eliane Cantarino pela pacincia em sempre escutar e poder me ensinar; agradeo
imensamente ao professor Alfredo Wagner pelas aulas sempre elucidativas e pela
receptividade e respeito ao meu trabalho. Obrigado a todos pela pacincia e
queiram me desculpar se porventura no tenha sido um aluno a altura de tamanha
dedicao em ensinar.
Entre a pedra e seus caminhos, contei sem dvida alguma com a colaborao
incalculvel de meus pais, Edina e Antonio, que me transmitiram os
conhecimentos necessrios para transpor os obstculos. Agradeo: Letcia sem
a qual no saberia melhor amar, muito obrigado por tudo; Silvana por sua
dedicao e colaborao nos caminhos pedregosos (mas cada vez mais
instigante); ao Ricardo pela colaborao em um de meus momentos mais difceis
deste caminho; aos meus tios Feliciano, Chiquinho e Mundico por me ensinarem
que na vida nada insupervel; ao meu primo Edivan e minha prima Cris por me
ensinarem que viver uma arte; ao meu irmo por ter se tornado um grande
amigo; Soninha pelas conversas sempre enriquecedoras, preenchidas de
carinho; ao Lnin amigo recente, mas j de muitas histrias; ao Andr pela
amizade; Robertinha pela sua meiga amizade; Joana e Bruno amigos da nova
gerao; Flavinha, Sabrina, Lucio por compartilharem de momentos de risos e
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choros; aos eternos amigos, eternizados pelas conversas sem fim, Fabiano, Uir,
Gustavo, Ypuan e Paulo.
Aos companheiros Mauricio Barros e Jandyr Froes, e a companheira Fernanda
Vieira por acreditarem em um caminho possvel.
Ins e Graa do PPGACP.
Ao Maranho e a Joana por me abrigarem em meu retiro intelectual.
A Capes por conceder auxlio a minha pesquisa por um ano.
Foram-se as pedras (pois logo viro outras novas!), mas permanece as
lembranas de um tempo que passou. E nessas lembranas perduram os
momentos que no viro mais, mas que ficam retidos na memria em um sem fim.
Valeu a todos!
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Queremos de deixar de ser ignorante, para deixarmos de ser ignorado!
Parte do discurso da Posse, ocorrida em 2003, da Diretoria da Associao da Comunidade Remanescente de Quilombo da
Ilha da Marambaia.
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INTRODUO Esta dissertao se insere em um conjunto de pesquisas e reflexes
levadas a cabo por pesquisadores do Ncleo Fluminense de Estudos e Pesquisa
(NUFEP). As mesmas esto concentradas em estudos que visam analisar
comparativamente as formas de produo de verdade no espao pblico,
principalmente o brasileiro, bem como os modelos de administrao de conflitos
existentes em nossa sociedade.
Nesse sentido, pretendo analisar nesta dissertao as formas institucionais
de produo de verdade, assim como os mecanismos de administrao de
conflitos em uma situao particular: o conflito existente entre moradores de uma
Ilha, a Ilha da Marambaia, pescadores e descendentes de escravos, com o Estado
Brasileiro, representado pela Marinha de Guerra, administradora da referida Ilha.
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Mapa 1 da Marambaia.
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Construo do Objeto
Foi o ano de 1998, um momento de intensas mudanas em relao
trajetria histrica dos moradores da Ilha da Marambaia. Processos judiciais de
reintegrao de posse, impetrados pela Unio Federal contra as famlias
tradicionais do local, fizeram ressurgir de modo contumaz antigas lembranas. Foi
um ano de encontros com novos interlocutores, dentre eles o etngrafo. Tomei
conhecimento da situao vivenciada pela populao da Marambaia no ano de 98.
Morava em Santa Cruz, bairro situado na Zona Oeste, e freqentava a praia de
Itacuru, distrito de Mangaratiba, quando criana. Mesmo assim foi apenas neste
perodo que passei a conhecer as histrias presentes na Ilha da Marambaia.
Neste momento, encontrava-me como bolsista de extenso de um
professor substituto (professor Jos M. Arruti), do departamento de Antropologia
da Universidade Federal Fluminense, cuja pesquisa versava sobre a temtica de
comunidades negras rurais. Ainda como aluno do 3. perodo do curso de Cincias
Sociais da UFF, interessava-me por questes relacionadas temtica das
relaes raciais no Brasil. Havia iniciado a pesquisa em meados de 97. Efetuara
diversos levantamentos de dados sobre conflitos de terras no sentido de mapear
possveis reas de tenso que envolvessem terras de pretos1. No final de 98 a
bolsa j estava para expirar, pois seu prazo era apenas de um ano. O mesmo
aconteceria com o contrato do coordenador da bolsa com a UFF, pois seu trmino
estava previsto para o final de 98. Este, como tivera que fazer uma viagem a
trabalho, requisitou que eu escolhesse uma determinada rea para a
sistematizao do levantamento. Optei em coletar os dados sobre o sul
fluminense. Sendo essa regio prxima de minha residncia poca, poderia
acomodar as minhas inquietaes intelectuais e, ainda, limitar minhas despesas
de locomoo e de alimentao.
O coordenador da pesquisa disps alguns locais possveis para o
levantamento. Um deles era a Comisso Pastoral da Terra de Itagua (CPT),
1 - No sentido atribudo pela literatura sociolgica. Para maiores detalhes ver Almeida 1989,
Gusmo, 1995.
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municpio vizinho Santa Cruz, onde se encontrava um vasto arquivo a respeito
do conflito de terra nas regies de Seropdica, Mangaratiba, Angra dos Reis,
Parati e Itagua, que eram de domnio da atuao desta Pastoral.
Apresentei-me na Pastoral como pesquisador da UFF, expliquei a pesquisa
aos responsveis pelos arquivos. Foram solcitos e receptivos. Primeiramente, fui
recebido pela madre responsvel pela organizao dos dados da CPT de Itagua,
que me apresentou ao padre coordenador da Pastoral, aps ter dado incio ao
desenvolvimento do trabalho.
Freqentava o lugar trs vezes na semana. Acomodaram-me em uma sala,
para que fosse possvel manusear os dados. Aps alguns dias, convidaram-me a
tomar caf com eles na copa da sede da pastoral. Sinalizavam com isso a minha
aceitao no local. Tomvamos caf e conversvamos acerca de assuntos os
mais variados. Acabava o ritual da tarde e retomava minhas atividades na sala de
pesquisa. Os dados que levantava diziam respeito, em sua maioria, s questes
relativas a conflitos de terra nas reas que estavam na alada da CPT de Itagua.
Todavia, no encontrara nenhuma referncia sobre a Ilha da Marambaia.
Em uma tarde, uma agente pastoral da CPT, veio sala onde trabalhava.
Soubera que me encontrava ali por conta de um levantamento sobre conflitos em
reas de comunidades negras rurais. Perguntou-me se por acaso conhecia a
situao de uma comunidade de pescadores, descendentes de escravos, que
estavam sofrendo ameaas de expulso por parte da Marinha. Nada sabia sobre o
assunto. Explicou-me, portanto, a situao corrente. Aps horas de conversa,
perguntou a respeito de meu interesse em participar de uma reunio que
aconteceria na Parquia de Itacuru, com os moradores da Ilha, no sentido de
esclarecerem a situao do conflito populao, visando orient-la.
Fui reunio. Ela ocorreu na Parquia da igreja catlica, em Itacuru, em
um final de semana no final do ano de 98. Os moradores da Ilha da Marambaia
chegaram por volta de meio dia. Serviram a eles um almoo na copa da igreja
antes do incio da reunio. Logo aps o almoo, iniciaram-se os trabalhos. Foi
dada a palavra ao coordenador da CPT regional, o pe. Galdino, que exps a
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situao jurdica dos moradores da Marambaia. Encontravam-se no local diversos
membros de outras CPTs do Brasil e do Rio de Janeiro e, para a surpresa de
alguns, estavam presentes os membros da Igreja Batista, cuja entidade era
representativa na Ilha, pois existia l uma Igreja instalada desde os anos 70. Mas,
no momento, as atenes estavam voltadas para as enunciaes do pe. Galdino,
reivindicando a rea para os moradores, por estes serem descendentes de
escravos, filhos do lugar, como diziam. Traavam estratgias para uma ao
mais eficaz, com o objetivo de garantir o direito dos moradores da Marambaia de
permanecerem no local onde nasceram.
Em um instante da reunio, pediram minha opinio sobre o assunto e fiz
uma exposio acerca do artigo 68 do Ato das Disposies Constitucionais
Transitrias da Constituio Brasileira. Disse-lhes, que segundo minha opinio,
esse era um dos artifcios jurdicos viveis para a resoluo do impasse dos
moradores.
A Comisso Pastoral da Terra de Itagua elaborou um dossi, enviado a
diversas entidades governamentais e no governamentais, cujo ttulo era Povos
da Terra - Povos do Mar - Ilha da Marambaia: Do Trfico de Escravos, Ontem, aos
Despejos de Famlias Pescadoras, Hoje. Evidenciava-se, no mesmo, a
multiplicidade da organizao local, referendada na terra, nutrida no mar e
lembrada em sua histria, composta por um enredo de interpretaes de diversas
histrias, pois as narrativas se posicionaram no sentido de (re)elaborar a sua
prpria identidade, a sua memria e seus valores diante do mundo. Com isso, a
insero da CPT produz uma reorientao da identidade do grupo. Sobretudo,
aps o envio do Dossi Fundao Cultural Palmares (FCP), quando abre um
novo precedente na histria da organizao do grupo.
Continuei a realizar minha pesquisa na CPT, a qual estava em seu final.
Com o trmino da pesquisa e da bolsa de extenso, convidaram-me para trabalhar
na CPT, acompanhando os conflitos de terra, mas na poca tinha outros planos
profissionais em mente e no pude aceitar o convite. No entanto, permaneci com o
contato com os meus novos amigos e colegas, colaborando, na medida do
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possvel, com as atividades dos membros da CPT no contato com a Fundao
Cultural Palmares.
Sem vnculo com a pesquisa e com meu ex-orientador (nesse momento ele
no se encontrava mais vinculado a UFF), dei continuidade as minhas idas a
campo em Mangaratiba. Freqentava o local aos sbados, pois era o dia possvel
para encontrar os pescadores. Uma parte dos pescadores da Marambaia vendia
seu pescado em Mangaratiba. Sbado era um dia adequado a minhas condies,
porque nos dias teis tinha aula na UFF.
Aos poucos fui conseguindo assegurar uma certa confiana por parte de
alguns pescadores. O primeiro deles a conversar mais continuadamente comigo,
no incio, era um pescador antigo da Ilha que vendia seu pescado em
Mangaratiba, porm com muita dificuldade e reticncia. Grande parte dos que tive
contato na poca desconfiavam que porventura eu poderia ser um agente da
Marinha coletando informaes para pun-los. Aproximei-me deste morador da
Marambaia em parte pela intermediao dos membros da pastoral de Itagua, que
vez ou outra, encontravam-se em Mangaratiba. Os pescadores me viam sempre
conversando amistosamente com eles.
Esta desconfiana decorria, em primeiro lugar, das circunstncias em que
viviam, sobretudo naquele momento em que sofriam retaliaes por parte do
comando da Marinha na Ilha, em especial a spera relao com o comandante do
Centro de Adestramento da Marinha (CADIM) na poca. Este comandante, como
fui saber anos depois, era considerado um dos piores que passou pela Ilha.
Diziam os pescadores, que nem os prprios Fuzileiros simpatizavam com ele.
Suas atitudes promoviam uma grande insegurana nos ilhus. Um outro fator
importante, descobri na literatura sobre a pesca, em especial no livro do professor
Roberto Kant de Lima (Kant de Lima e Pereira, 1997). Este observou em seu
trabalho de campo, em Itaipu, que os pescadores tradicionalmente possuem uma
representao negativa sobre o Estado, pois suas intervenes na poltica
pesqueira estiveram, desde o perodo colonial, marcadas por seu carter punitivo.
Coletar informaes sobre a pesca como preo, captura e etc, era um mecanismo
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utilizado pelo Estado para taxar e controlar a atividade, atribuindo sempre deveres
e nunca direitos a estas populaes. Nesse sentido, o Estado no visto por eles
como um provedor de polticas pblicas, mas como algo perigoso a sua
reproduo e desenvolvimento. Tomar conscincia dessas dificuldades do campo
possibilitou com que minha insero se tornasse mais vivel.
Mantive meus contatos com o referido padre, coordenador da CPT de
Itagua, e com os moradores da Ilha, sobretudo com os pescadores que
comercializavam o pescado em Mangaratiba. Como estavam ainda muito
desconfiados, uma estratgia para que fosse possvel ser aceito no campo, foi
colaborar com o transporte dos seus peixes at as peixarias e o atracamento de
suas canoas. Uma relao de confiana foi aos poucos se estabelecendo.
Todavia, aps dois meses, ingressei em uma bolsa de pesquisa, vinculada
temtica da produo da excluso e seus discursos referentes aos alcolatras,
sob a orientao da professora Delma Pessanha Neves, da UFF. As minhas idas
Mangaratiba passaram a ser espordicas por conta do outro trabalho de campo
que deveria executar, o qual nada tinha a ver com a Marambaia. De qualquer
forma, continuei a freqentar esporadicamente Mangaratiba, para conservar a
relao estabelecida com alguns pescadores, principalmente o pescador que
vendia seus peixes em Mangaratiba. A minha relao com a Marambaia era
apenas de um cidado curioso que almejava contribuir, possivelmente, para a
situao do problema enfrentado pelos mesmos.
Aps oito meses na bolsa de pesquisa, no final de 1999, fui trabalhar em
uma ONG especializada em questes raciais, desvinculando-me da bolsa para
no acumular diferentes funes e remuneraes. Permaneci pouco mais de um
ms na Ong.
Retornei as minhas atividades acadmicas as aulas e s idas a
Mangaratiba, ainda sociologicamente desinteressadas. Permanecia com interesse
estritamente militante em minhas incurses no local.
Passados mais ou menos dois meses, um colega e amigo indicou-me o
NUFEP no sentido de expor minhas incurses Mangaratiba, tendo o ncleo uma
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linha de pesquisa referente pesca no estado do Rio de Janeiro. Marcou-se uma
entrevista com o professor Kant de Lima, coordenador do NUFEP, para que
pudesse expor meus interesses acadmicos. Na mesma reunio estava presente
outro pesquisador do Ncleo, Ronaldo Lobo. Expus meus interesses
acadmicos, que se voltavam para a Marambaia. O objeto de estudo enquadrava-
se na perspectiva do Ncleo. Portanto, passei a freqentar as reunies semanais
do NUFEP.
Nas reunies encontravam-se alunos de graduao em diferentes
estgios -, de ps-graduao (mestrado e doutorado) com o orientador, o
professor Kant de Lima. Nelas eram discutidos os problemas enfrentados por cada
aluno no desenvolvimento de suas pesquisas. Essa dinmica enriquecia o olhar
dos trabalhos individuais a partir das compreenses e dificuldades das pesquisas
de cada colega. Alguns meses depois, tornei-me bolsista de Iniciao Cientfica do
PIBIC/UFF sob a orientao do professor Kant.
No NUFEP existiam, sob a coordenao do professor Kant de Lima, duas
linhas de pesquisa: uma ligada ao meio ambiente e outra segurana pblica.
Dois campos aparentemente opostos, mas trabalhados pelo grupo de maneira
integrada e, muitas vezes, complementar.
Na linha de pesquisa da segurana pblica so englobados diversos
estudos sobre as formas institucionais de administrao de conflitos e de
produo de verdades no espao pblico. Estuda-se tradicionalmente o sistema
de justia, sobretudo o criminal, os agentes de controle social, principalmente a
polcia e demais sistemas de controle e produtores de verdade em nossa
sociedade.
Enquadrei-me na linha de pesquisa de meio ambiente. Esta remonta a uma
tradio de estudos sobre as populaes tradicionais de pescadores, ou, como
denominamos, dos pescadores da beira de praia. O professor Castro Faria foi o
precursor desta tradio com seus estudos nos anos 50 sobre o processo de
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modernizao, com a implementao da lcalis uma indstria produtora de
barrilha - em Arraial do Cabo, rea tradicional de pesca e de pescadores2.
Nos anos 70 os professores Kant e Mello deram continuidade a este
interesse com pesquisas que buscavam estudar os saberes e prticas destes
grupos, ou como denominam, os seus saberes naturalsticos. Como fruto deste
investimento o professor Kant defendeu sua tese de mestrado sobre os
pescadores de beira de praia de Itaipu, distrito de Niteri, onde analisava o ritual
da pesca da tainha e suas implicaes na identidade local. O professor Mello,
mais tarde, defendeu como tese de doutoramento sua pesquisa sobre os
pescadores de Zacaria, na Lagoa de Maric.
Inseri-me, ainda que no instantaneamente, nesta linha de pesquisa por
conta da atividade pesqueira em Marambaia. Foram muitos encontros e
reencontros com o meu campo e com as minhas prprias problemticas, mas
ainda, com um olhar parcial a respeito das questes envolventes na Ilha da
Marambaia. O olhar do aprendiz ainda estava excessivamente tomado pelas pr-
noes, parcialmente estabelecidas, que direcionavam minhas incurses a campo.
Uma dificuldade inerente ao prprio campo. Como salienta Lenoir:
a primeira dificuldade encontrada pelo
socilogo deve-se ao fato de estar diante
das representaes pr-estabelecidas de
seu objeto de estudo que induzem a
maneira de apreend-lo e, por isso
mesmo, defini-lo e conceb-lo (Lenoir,
1978:61).
2 - Ainda hoje, Arraial do Cabo uma regio que tem na pesca artesanal umas das principais
atividades econmicas e sociais, mesmo com todas as mobilizaes de cunho modernizante que o
local enfrentou nas ltimas dcadas. Atualmente, na regio h uma Reserva Extrativista Marinha
que proporcionou uma ascenso da pesca artesanal o que uma fato particular se
considerarmos o quadro da pesca artesanal na regio Sudeste brasileira e, paradoxalmente,
vemos a indstria lcalis demitir seus funcionrios. Para melhor compreenso destas discusses
ver Lobo (2000); Prado (2002), Goulart (2000)e Britto (1999).
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importante tratar os problemas abordados pelo cientista social de uma
forma no estereotipada, entendendo, por outro lado, as formas particulares de
vida social que existem neste contexto.
Uma etapa do trabalho importante para a uma apreenso no tanto
estereotipada, iniciou-se com uma nova parceria, em mbito interdisciplinar, com
bilogos marinhos e oceangrafos da Biologia Marinha da UFF. O primeiro fruto
desta parceria foi o projeto Mecanismos Reguladores da Produo Pesqueira:
subsdios para a gesto de uma Reserva Extrativista Marinha (Itapesq), aprovado
pelo edital do PADCT III. Os recursos para a execuo do projeto foram liberados
pela Fundao Carlos Chagas de Apoio Pesquisa no Estado do Rio de Janeiro
FAPERJ somente no ano de 2000, quando foi dado incio sua execuo.
Integro-me ao grupo de pesquisadores do Itapesq em final de 2000. Neste,
concentro minhas atividades de campo em Piratininga e Arraial do Cabo. Foi um
perodo de muitas mudanas com a aprovao do Itapesq. Diversos alunos da
graduao puderam se integrar atividade do projeto e, por outro lado, os alunos
do mestrado estavam em fase final de confeco de suas dissertaes,
contribuindo com reflexes a respeito dos pescadores artesanais. O objetivo de
meu trabalho de campo nestas duas reas desdobrava-se em torno das
representaes dos pescadores acerca da atividade pesqueira, o saber
naturalstico empregado na mesma e as formas de administrao dos conflitos no
espao pblico, neste caso, mais precisamente, da praia.
O debate mais presente poca direcionava-se Reserva Extrativista
Marinha de Arraial do Cabo (RESEX-MAR), em especial as suas implicaes no
gerenciamento dos conflitos e da gesto e participao dos atores envolvidos na
administrao da RESEX3. Estes trabalhos compunham um conjunto de reflexes
3 - Em 2000, Delgado Goulart defende tese de mestrado onde analisa os conflitos na disputa pelo
uso do espao pblico da praia entre os pescadores da beira de praia e surfistas na Praia Grande.
Simone Moutinho empreende anlise sobre os injunes de mudanas sociais em Arraial do Cabo.
Ronaldo Lobo, neste mesmo ano, defende tese de mestrado onde analisa os processos de
consolidao da Reserva Extrativista Marinha em Arraial do Cabo, explicitando em seu trabalho
como este tipo de poltica pblica conferiu a este grupo social (os pescadores artesanais) um tipo
de cidadania especial em relao utilizao do espao pblico, neste caso a praia e o mar.
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de uma situao social rica, onde o grupo articulava questes referentes ao meio
ambiente e administrao de conflitos neste espao pblico. Estes debates
enriqueceram sobremaneira minha compreenso acerca do trabalho de campo na
Marambaia, onde me deparei com situaes prximas s de Arraial do Cabo.
Concomitantemente s atividades de pesquisa no ITAPESQ realizava meus
trabalhos de campo na Ilha da Marambaia. O aprendizado com os colegas de
trabalho possibilitou um amadurecimento necessrio para o trabalho de campo.
Depurei meu olhar sobre os acontecimentos na Marambaia. Imbudo de um olhar
parcial a respeito dos fenmenos sociais, sobretudo em relao aos conflitos
apresentados entre a Marinha e os pescadores, muitas vezes perdia de vista
apreender os significados simblicos rotinizados da vida cotidiana dos pescadores
da Marambaia. Isso dificultava tomar como objeto de anlise, pelo menos nesse
primeiro momento, os aspectos do conflito entre os ilhus e a Marinha. Do mesmo
modo, o campo mostrava-se muito reticente em dispor estas informaes, tendo
em vista o medo e a desconfiana dos moradores em conversarem a respeito da
situao na Ilha com pessoas de fora.
Nesse sentido, tomei como objeto de pesquisa os mecanismos de
reproduo e elaborao das identidades dos pescadores, principalmente a partir
da pesca, para ento, a partir dessa importante atividade, analisar a
representao do espao pblico e de seus conflitos (Mota, 2000), resultando
disso monografia de final de curso da graduao na UFF, sob a orientao do
professor Kant.
Repensar a estratgia de insero no campo possibilitou com que as
pessoas aos poucos fossem tomando conhecimento de meu trabalho e de meus
interesses, rompendo com as desconfianas. Tomei como ponto de partida, as
perguntas relacionadas pesca. Cautelosamente fui me enfronhando em
assuntos que diziam respeito s tcnicas de pesca, locais onde pescavam, dias,
etc. Passaram a explicar e conversar comigo sobre a pesca. Nisso, tambm
deram incio a narrativas que se relacionavam ao passado da Ilha, da histria do
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grupo. Falavam da pesca de hoje em contraste com o passado quando a pesca
era boa.
O antigamente era apontado como um elemento agregador do presente.
As transformaes ocorridas com o trabalho de campo propiciam novas vises
sobre a histria do grupo, interpretaes, reinvenes das suas narrativas.
Com as outras experincias de campo (em Arraial, Itaipu e Piratininga), a
minha disponibilidade em escutar torna-se maior, proporcional capacidade dos
moradores em narrar. Fato que corroborado com as minhas colaboraes na
puxada da embarcao, no carregamento dos peixes e, sobretudo, por minha
postura no campo de sempre me colocar disposio para interagir com o grupo
no conflito com a Marinha. Estabeleceu-se uma relao de reciprocidade entre o
etngrafo e os pescadores.
Ampliou-se a rede de relaes com outros pescadores. Dentre elas,
destaco a interlocuo que iniciei com um pescador que morava em Mangaratiba,
mas que havia nascido e sido criado na Ilha. Era uma pessoa que se dispunha a
colaborar no que fosse possvel para melhoria de vida dos nativos, levando
reprteres na Ilha, dando assistncia com sua traineira para transportar idosos, ou
pessoas debilitadas para o continente. Foi um interlocutor importante para o
trabalho, tendo mesmo, iniciado-me no campo, levando-me Marambaia.
Instalei-me na casa de seu pai - que era um dos pescadores mais antigos
da Marambaia tendo chegado a pescar na escola de pesca Darci Vargas que foi
instalada na Ilha nos anos 30 e extinta nos anos 70 - onde permaneci durante uma
semana ininterrupta. Essa ida a campo foi fundamental para a pesquisa.
O trabalho de campo A possibilidade de ir Ilha da Marambaia, observando no local a vida dos
pescadores e seus familiares, foi de suma importncia para reorientar a minha
pesquisa.
Compreender a realidade social, seus meandros, seus contornos mais
singelos expressos na vida cotidiana, constitui elemento essencial a um bom
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trabalho antropolgico. Se isso estava at ento para mim na teoria, foi possvel
perceber a relevncia de observar a realidade, articular o discurso prtica.
Nessa ida Marambaia redesenhei minhas perspectivas. Conhecer a
realidade do grupo com o qual estava aos poucos buscando estabelecer uma
relao de pesquisa, e no apenas militante, rompeu com a parcialidade de
minhas observaes, percebendo as mltiplas formas de organizao, de seus
conflitos.
O trabalho de campo na Ilha possibilitou, portanto, distinguir as diferentes
atribuies identitrias referentes categoria pescador. O pescador de linha, o
pescador de canoa, o pescador de bote, enfim uma infinidade de atribuies que
se diferenciavam e classificavam hierarquicamente cada grupo. Uma tarefa ainda
mais rdua foi problematizar a categoria escravos, pois como fui percebendo, ela
estava atrelada a um conjunto diversificado de elementos identitrios
hierarquicamente estabelecido.
Foi no campo que pude romper com as classificaes externas, que muitas
vezes se tornam arbitrrias, representando pontos de vista parciais e
interessados. Fui percebendo, no decorrer de minhas idas Marambaia, que
atribuies identitrias tomadas por alguns grupos eram operacionalizadas de
modo distinto por outros grupos.
Como meus interlocutores inicialmente se restringiam aos membros da CPT
e aos pescadores vinculados a eles, os resultados de minha pesquisa estavam
condicionados por uma viso muito parcial de como o grupo se pensava. Um dado
que foi necessrio ser circunscrito construo de meu objeto foi o conflito vivido
pelos pescadores. Era preciso levar em considerao essa condio, pois as
falas, as narrativas estavam dimensionando este aspecto. Isso se tornou claro
com o tempo. E torna-se um dado importante para contextualizar o leitor de onde
estou falando e com quem estou falando, pois o que estava em jogo era a luta por
territrio, por um lugar.
A etnografia no se realizava em uma Ilha distante, habitada por povos que
se comunicavam em lngua distinta ao do pesquisador, seus hbitos no diferiam
em grande escala daquelas do etngrafo. O exerccio, aqui, no consistia em
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descobrir os significados de rituais exticos, de prticas religiosas incomuns aos
olhos distantes do etngrafo. Ao contrrio, o exerccio nesse caso constitua
observar prticas e rituais que se aproximavam do etngrafo, portanto era preciso
realizar um distanciamento, tornar extico o familiar (DaMatta, 1997).
Nessa circunstancia o outro que se aproxima do etngrafo, o daqui. Suas histrias e a do pesquisador por vezes se confundem, ou se entrecruzam, se
inserem em um sistema holista de representaes. Esse exerccio de exotizar o
familiar, marcava-se, por outro lado, por uma postura onde a perspectiva do
cientista social/cidado (Peirano, 1991) apresentava-se de modo contumaz. Como
salienta Peirano:
Permanece o reconhecimento da pesquisa
de campo como o modo privilegiado do
conhecimento antropolgico, a situao por
excelncia do encontro com o outro. No
entanto, a prpria pesquisa de campo
tambm passou a ser vista, e aceita, como
um fenmeno histrico, e o nativo perdeu
o carter passivo. Reconhece-se hoje que,
longe de uma frmula, a pesquisa de
campo est inserida em contexto biogrfico
(do prprio pesquisador) (Peirano, 1991,
pg. 85).
Esse exerccio de uma certa biografizao de meu trabalho de campo, ou
seja, explicitar o local de onde estava falando, tornou-me mais seduzido em
encontrar mais perguntas a respostas, em intervir menos e observar mais.
Reconhecia que minha postura excessivamente militante (se que esse consiste
no termo mais adequado para qualificar tal situao) muitas vezes empreendia
uma violncia simblica ao desconsiderar a complexidade da formao do grupo
e, ao mesmo tempo, tentar supostamente resolver os problemas enfrentados
pelos moradores da Marambaia. Foi um exerccio rduo, mas necessrio. Todavia,
isso no me impulsionou para fora das aes em conjunto com os pescadores.
23
-
Apenas redimensionei o meu papel, tornando-me um interlocutor e no um
interventor.
E isso no se relacionava a um sonho positivista de uma perfeita inocncia
epistemolgica oculta na verdade (Bourdieu, 1997). Ao contrrio, buscava articular
os meus posicionamentos pessoais (ou polticos), vamos dizer assim, sobre o
conflito com minha postura terica e metodolgica, posicionando-me em situaes
diversas no campo. Era a forma que encontrei para romper com essa dualidade
posta pelo campo. Como nos lembra Bourdieu:
Ainda que a relao de pesquisa se
distingua da maioria das trocas da
existncia comum, j que tem por fim o
mero conhecimento, ela continua, apesar
de tudo, uma relao social, que exerce
efeitos (variveis segundo os diferentes
parmetros que a podem afetar) sobre os
resultados obtidos (Bourdieu, 1997, pg.
694).
Foi segundo esses parmetros que busquei orientar minha pesquisa nessa
outra fase do trabalho. Foi um exerccio que se tornou vivel em uma situao
como a do trabalho de campo, onde o pesquisador realiza um rito de passagem,
onde redescobre novas formas de organizao social, produzindo um controle de
seus prprios preconceitos e, portanto, apreende novos valores. Todavia, a
apreenso no se deu por uma capacidade sobrenatural de pensar, sentir e
perceber como um nativo, pois, como Geertz (1997) nos ensina, o problema do
trabalho de campo no moral, mas epistemolgico. Entender o ponto de vista do
outro consiste em dar significados representao do outro, orientados por
interpretaes do pesquisador. Como diz Geertz (1997):
o truque no conseguir uma
correspondncia ntima com seus
informantes, fato de preferir como ns,
em geral considerar que as almas deles
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-
(informantes) so como as suas (os
antroplogos) no vai sequer dar idia do
esforo feito. O truque descobrir o que
eles pensam, o que esto fazendo.
(Geertz, 1997 ).
As descobertas, nesse caso, foram substitudas pelas perguntas. Tornei a
explicitar os problemas que o campo me colocava. Necessitava, para tanto,
desvincular o problema social do problema sociolgico. Foi necessrio relativizar
os sentidos atribudos s narrativas emprestadas ao etngrafo para que fosse
possvel compreend-las dentro de um campo onde disputam os significados e
ordenamento do mundo. Lenoir (1998) nos lembra que:
essas lutas em volta da classificao podem
chegar transformao da viso e das
divises do mundo social, sobretudo quando
s categorias cujas definies esto em jogo,
so associados determinados direitos (...) A
realidade social resultado de todas essas
lutas. Nesse aspecto, o estudo da
emergncia de um problema social um dos
melhores reveladores desse trabalho de
construo da realidade e, tratando-se de um
problema social, o objeto de estudo de um
socilogo consiste em analisar o processo
pelo qual se constri e se institucionaliza o
que constitudo como tal (Lenoir, 1978).
O olhar do etngrafo esteve voltado para compreender os diferentes
significados atribudos pelos moradores a respeito do conflito, com intuito de
montar um esquema interpretativo que desse conta minimamente do universo
estudado.
Conseqentemente, ampliei as relaes no campo para possuir uma
dimenso mais ampla da realidade do lugar que estudava. Aos poucos fui
25
-
adentrando o universo do outro extremo da Ilha, pois at ento minha rede de
relaes se restringia aos pescadores e seus familiares da parte leste da Ilha.
Interagir com os moradores da outra extremidade da Ilha demandou de mim
um novo exerccio para me inserir. A dificuldade para aceitarem minha entrada era
grande, tendo em vista que o grupo fato que ficou mais ntido no decorrer do
trabalho de campo era segmentado. As duas partes da Ilha, constituam-se em
dois lugares distintos e antagnicos. Conflito que remonta ao perodo ps-
escravista, quando os grupos se dividiram por praias aps o declnio da fazenda
existente no lugar. Havia dois grupos, divididos em sub grupos, que possuam
verses diferentes sobre a histria. A comunidade da Marambaia era uma
inveno postulada pelas representaes externas, e reafirmada pelo grupo para
o continente como estratgia de produzir uma unidade inventada.
Deste modo, esta interlocuo seria possvel apenas sem a mediao dos
moradores com os quais interagia. Passei a caminhar sozinho para o outro lado.
Um certo dia, no momento em que conversava com um morador antigo da Ilha,
nascido e criado na Praia do Caju, fui abordado por um antigo morador da Ilha
que vive atualmente em Caxias, municpio do Rio que estava de frias na casa
de seu irmo. Ele ficou curioso com a minha presena na Ilha. Expliquei-lhe sobre
minha pesquisa, e que estava a caminho da Praia da Armao para conhecer as
runas da antiga senzala da fazenda do Breves. Convidou-me para o almoo em
sua casa. Sua mulher havia preparado um saboroso peixe. Encontrava-me
caminhando h cerca de duas horas de modo que aceitei o convite.
Tornou-se um grande amigo, e um importante colaborador de minha
pesquisa. Convidou-me para pernoitar em sua casa em outras vezes que fosse
Ilha. Aceitei o convite e meses depois me encontrava em sua casa. Conheci
outros moradores da proximidade. Tive neles importantes interlocutores para o
desenvolvimento do trabalho. Diversas vezes fui acomodado em suas casas,
sempre muito bem recebido.
Compreendi com essa mudana na pesquisa que as classificaes, as
representaes coletivas, so fruto das interpretaes e reinterpretaes do
prprio mundo. Sendo assim, buscava compreender aquilo que as pessoas
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faziam, e o que elas pensavam que elas faziam, ou seja, explicar explicaes.
Interpretar os fluxos de discursos, pois a produo de um discurso ao mesmo
tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuda por certo nmero de
procedimentos que tm por funo conjugar seus poderes e perigos, dominar seu
acontecimento aleatrio, esquivar sua materialidade (Foucault, 1996), por fim
produzindo realidade.
Presume-se, de certa forma, que h uma espcie de desnivelamento entre
os discursos: os discursos que se dizem no correr do dia a dia e os discursos que
esto na origem de certo nmero de atos novos de fala que os retomam, os
transformam.
Isto no significa que inexista um ordenamento do discurso. No entanto,
no podemos considerar que esteja no mundo assim como algo exterior a ns que
nos coage, imprimindo uma forma particular de ser que no diz respeito a nossa
prpria identidade. A narrativa, ao contrrio, constitui-se como um modo peculiar
de reflexo sobre eventos notveis. O ato de contar um momento privilegiado
para o interlocutor produzir uma imagem de si e dos outros.
Entender estes discursos consiste, como nos chama ateno Geertz, em:
olhar as dimenses simblicas da ao social arte, religio, ideologia, cincia,
lei , moralidade, senso comum no afastar-se dos dilemas existenciais da vida
em favor de algum domnio emprico de formas no-emocionalizadas; mergulhar
no meio delas. A vocao essencial da antropologia no responder s nossas
questes mais profundas, mas colocar nossa disposio as respostas que
outros deram e assim inclu-las no registro de consultas sobre o que o homem
falou (Geertz, 1989; 41).
Seguindo essas premissas que constru o meu trabalho. Participei de
festas religiosas, de festas de aniversrio, joguei futebol, pesquei com os
pescadores. Foi nesse contexto que o trabalho tomou sua dimenso, modelando-
se aos poucos.
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-
A problemtica e a construo do texto. Meu objetivo focalizar minha anlise nas diferentes produes discursivas
a respeito da identidade dos moradores da Marambaia, explorando a polmica da
definio do grupo como quilombo. Para tanto, levarei em considerao as
diferentes verses apresentadas pelos atores envolvidos no conflito. So nesses
discursos que buscarei me debruar para compreender como estas situaes
sociais produzem e reproduzem valores expressos em nossa sociedade.
Tomo como partida para analisar tais circunstncias a perspectiva do drama
social (Turner, 1968), aonde possvel considerar que h uma criao aguda da
conscincia, no s de um direito, de uma justa pretenso, violada (ou em vias de
s-lo), mas tambm do direito, quer dizer, do mecanismo de composio do
conflito, com suas estratgias possveis, dentro de um quadro de normas (Mello,
1995). Como salienta Mello (1995):
Uma vez adotada, a perspectiva do drama
social trazia consigo a referncia bsica ao
conflito. Esta referncia consagrou-se, em
oposio ortodoxia estrutural funcionalista do
modelo homeosttico, na antropologia
britnica, sobretudo a partir de Leach e
Gluckman. Em torno deste ltimo, a assim
chamada escola de Manchestrer dedicou-se
compreenso da vida social em processo,
palavra com a qual no pretendia , apenas,
designar o seu movimento, enquanto devir,
mas apoiando-se no sentido judicial da
metfora, aludir ao seu primum mobile, o
conflito e suas formas de composio. A vida
social desse modo, no seu carter
essencialmente dinmico, surgia,
concomitantemente, como produto e produtora
do tempo. As situaes, dramas e processos
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rituais, so momento crticos da apreenso
etnogrfica, graas sua capacidade de
ressaltar e, desse modo, evidenciar a forma e
o perfil processual caractersticos das
totalidades sociais . (Mello, 1995, pg. 43).
Onde h busca, h conflito, porque homens so valores, e onde h valores,
h disputas em torno dos valores. E quando mesmo que um valor adquire toda
sua carga? Quando encenado, isto , quando surge no seio do rito, da cerimnia,
do processo judicial, ou de outra representao dramtica qualquer. (Mello, pg.
45).
A emergncia do debate em torno da definio da Marambaia como
quilombo se coloca enquanto um campo privilegiado para a problematizao desta
categoria. Portanto, com isso, no busco definir a Marambaia ou enquadr-la
dentro da categoria quilombo. Todavia, minha problemtica centra-se na
discusso sobre os distintos processos que influem na produo de uma nova
identidade em nossa sociedade. Afinal, a categoria quilombo, aps a
promulgao do art. 68 em nossa Constituio, permitiu, atravs de vrias
aproximaes, desenhar uma cartografia indita na atualidade, reinventando
novas figuras do social (ODwyer, 2002). Portanto, trabalho a noo de quilombos
como tipos organizacionais, ou seja, como estas identidades se reatualizam no
tempo e espao (Barth 2000, ODwyer, 2002). O quilombo no um tipo de
identidade que est ancorada em sinais exteriores que os definem, assim como
no possvel faz-lo quando falamos de pescadores, sobretudo ao defini-los
como tradicionais.
Em relao aos quilombos importante frisar que os primeiros estudos
levaram a uma referncia histrica do perodo colonial. De Perdigo Malheiro, de
1866, at Clvis Moura, de 1996, trabalha-se com um conceito comum de
quilombo. Um conceito, como salientou Alfredo Wagner, que permaneceu
frigorificado (Almeida, 2002, 1998), em torno de noes como: a fuga, uma
quantidade mnima de escravos fugidos, o isolamento geogrfico, o rancho
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(moradias habituais) e auto suficincia (Almeida, 2002). Com isso, esses cinco
elementos funcionaram como definitivos e como definidores de quilombo. Jazem
encastoados no imaginrio dos operadores do direito e dos comentadores com
pretenso cientfica. Da a importncia de relativiz-los, realizando uma leitura
crtica da representao jurdica que sempre se mostrou inclinada a interpretar o
quilombo como algo que estava fora, isolado, para alm da civilizao e da
cultura, confinado numa suposta auto-suficincia e negando a disciplina do
trabalho (Almeida, 2002).
Do mesmo modo, como salienta Mello em seus estudos sobre os
pescadores de Maric (Mello, 1995), esta idia do isolamento, este alm-mar, os
fora da civilizao, eram atributos definidores da identidade do grupo social
pescadores artesanais, os quais sempre estiveram, segundo as representaes
exteriores, sob a tirania do meio que conviviam, por no possurem artifcios
tecnolgicos para domin-lo. Foram criados, inclusive, tipos definidores destes
pescadores, classificados na figura do muxuango e mocorongo. Tipos sociais
criados por Alberto Ribeiro Lamego em trabalhos de grande referncia para
estudos das lagunas e restingas da costa fluminense (Mello, 1995).
Ora, se considerarmos que as identidades permitem atualizar numa prtica
social valores grupais, transformando indivduos em pessoas organizados num
conjunto relativamente coerente, percebemos que as identidades quilombo e
pescador suscitam um outro tipo de problema em nossa sociedade: o de que
estas identidades sociais so tomadas negativamente por um conjunto de
representaes sociais em nossa sociedade.
Se as identidades so selecionadas, podemos chamar a ateno para o
fato de que elas esto correlacionadas a domnios, que possuem relaes
estruturadas entre si, que cada domnio pode ter mais ou menos recursos para
institucionalizar seus pontos de vista da totalidade social, estendendo ou no tais
pontos de vista a todo o sistema social. O jogo das selees de identidades
sociais est, assim, relacionado ao jogo do poder de cada sociedade. Sendo que
em nossa sociedade est distribudo de forma juridicamente desigual, em
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princpio, tendo implicao direta nas aes coletivas e no domnio da identidade
dos grupos.
Estas identidades parecem atuar como identidades onipresentes, como
uma identidade que est sempre ao lado da situao de conjuno e que pode ser
acionada para qualificar negativamente, determinar alguns ganhos ou neutralizar
conflitos (Matta, 1976). Caracterstico de uma sociedade onde o conflito aparece,
em primeiro lugar, como uma desarrumao da ordem, como um princpio de
desordem, que pe em risco a totalidade da estrutura social, a sua resoluo no
a soluo das desigualdades que incomodam, mas a sua manuteno pela
pacificao. A frmula para a administrao dos conflitos a sua supresso, ou
pela conciliao, ou pela punio das partes envolvidas (Kant de Lima 2000).
Buscarei articular os insumos tericos s minhas observaes e indagaes
sobre o conflito entre Estado e os pescadores da Marambaia.
Nesse sentido, no primeiro capitulo, exporei as formas de organizao do
grupo atravs da pesca para que o leitor tenha uma dimenso de como o grupo se
encontra organizado em sua esfera econmica e social. Ressalto a influncia da
religio na economia local e na suas formas de representao, bem como articulo
os insumos do passado para contrastar esta atividade ao presente.
Nos captulos subseqentes, tentarei articular as formas de representao
existentes em relao composio do grupo da Marambaia.
No segundo captulo articulo as vises dos pescadores e suas famlias com
as vises de cronistas, historiadores locais sobre a formao social da Marambaia.
Tento com isso, articular as fronteiras estabelecidas pelos de fora e pelos de
dentro para dar uma dimenso ao leitor de como o grupo se pensa e como
pensado pelos outros.
Divido este capitulo em trs partes temporais, levando em considerao as
formas nativas de representao de sua histria. Devo lembrar que a noo de
histria no imprime nenhum valor de veracidade, ao contrrio, estas histrias
pretendem ser aqui verses que se articulam, redimensionam-se no tempo e
espao (Sahlins, 1990). Na parte final do captulo apresento os contornos do
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conflito judicializado que propicia a polmica em relao definio do grupo
como quilombo.
No terceiro captulo, explicito os contornos do debate em relao
produo da identidade do grupo. Exponho as diferentes perspectivas e discursos
apresentados pelos atores envolvidos na polmica. O quilombo est colocado
como epicentro do debate, mas encontram-se ao seu redor outros elementos que
possibilitam compreender as lgicas dos agentes em relao ao conflito.
Finalmente, na concluso, pretendo expor os desdobramentos do debate e
do conflito em relao organizao do grupo. Nesta parte, descrevo o processo
de mobilizao da comunidade da Marambaia em torno de uma busca de uma
definio, ou auto legitimao, de sua identidade.
Nesta parte desenvolvo uma reflexo sobre um processo que se encontra
emergente na Marambaia. Nesse sentido, concluo uma parte do trabalho e uma
fase na histria dos marambaienses no momento em que disputam a legitimidade,
perante a opinio pblica e o Estado, de seus direitos.
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CAP I: PESCA E PESCARIAS.
A Ilha Marambaia est situada a 23 04 S e 43 53W, com rea
aproximadamente a 40 Km. A Ilha da Marambaia possui um relevo diversificado
entre baixada, meia-baixada e elevao rochosa, tendo 641 metros o seu ponto
culminante, o pico da Marambaia, onde residem os familiares dos fuzileiros navais
localizado prximo ao centro de Adestramento da Marinha (CADIM) (Xerez,
1990).
A Marambaia denominada Ilha pelos moradores locais, no entanto
tecnicamente conceituada como restinga. A mesma liga-se ao continente, na
regio de Barra de Guaratiba, zona oeste do estado do Rio de janeiro, por uma
faixa de areia de 40 km de extenso.
Na Ilha existem diversos campos de manobra militar. A Ilha administrada
pelas Foras Armadas. Nela, encontra-se o Centro de Pesquisa do Exrcito,
leste; o Campo da Aeronutica no intermdio da Ilha e na poro oeste, da Praia
da Armao em diante, o CADIM. Nessa parte residem as famlias remanescentes
da escravido, as quais se distribuem, por ncleos familiares, pelas praias da
Pescaria Velha, Praia da Kaetana, Praia da Cachoeira, Praia do Jos, Praia da
Kutuca, Praia Grande, Praia do CADIM, Praia Suja, Praia do Stio, Praia do Caju,
Praia da Varjinha, Praia da Armao e Praia da Restinga. So aproximadamente
100 casas distribudas entre as referidas reas. As vias de acesso Marambaia
so pelo barco da Marinha, que sai todos os dias s oito horas da manh de
Itacuru em direo Ilha (sendo que aos sbados h uma barca que sai s 11
horas da manh), ou pelos pequenos barcos de pesca dos prprios moradores.
As famlias de pescadores se distribuem pelas duas partes da Ilha (Ver
mapa acima). oeste da Marambaia, concentra-se a famlia Estanislu, que mora
em sua maioria na Praia Suja. A famlia Barcelos reside em sua maioria na Praia
do Stio. A famlia Carvalho se localiza tambm na Praia do Stio. A famlia Rosa
se encontra em parte na praia Suja e na Praia do Stio. A famlia Saturnino se
concentra no Stio e na Armao. A famlia Lima reside em sua maioria na Praia
do Caju. Na parte leste da Marambaia, concentra-se a famlia: Juvenal, na praia
da Pescaria Velha e da Kaetana; a famlia Machado, na Praia da Kaetana e do
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Jos; a famlia Santana, na praia do Jos; a famlia Barbosa na praia da Kaetana;
a famlia Mariano na Pescaria Velha e a famlia Firmo na Pescaria Velha.
Travessia de Itacuru Marambaia em uma das canoas da Ilha da Marambaia.
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Os casamentos, em sua maioria, ocorrem entre as famlias nativas. Existe
um intercurso de casamentos entre os troncos familiares, que esto relacionados
territorialidade. Existe apenas um caso de casamento de moradores de distintas
reas da Ilha, em que a mulher moradora na praia do Caju, casou-se com um
homem da famlia Santana, da praia do Jos, e atualmente mora na Praia Grande.
A Ilha da Marambaia se localiza na regio denominada de sul fluminense.
No perodo colonial a regio do Sul Fluminense4 possua extensos povoamentos,
principalmente Angra dos Reis e Parati. No sculo XVIII predominava o cultivo da
cana-de-acar na maior parte da extenso territorial dos municpios que
abrangem o litoral sul fluminense. Com o declnio econmico do cultivo da cana,
estas regies, no incio do sculo XIX, passaram a cultivar caf, chegando a se
tornar ponto de destaque na produo deste produto.
Por volta da segunda metade do sculo XIX a decadncia do caf, a
extino do Trfico Negreiro e a construo da Estrada de Ferro Pedro II - em
1877 - foram fatores preponderantes para o declnio da economia do sul
fluminense, acarretando um abandono das terras por parte dos latifundirios e a
desestruturao do sistema produtivo agrcola. Todavia, os pequenos produtores e
trabalhadores das fazendas permanecem nas terras abandonadas.
Na primeira metade do sculo XX o perfil destes municpios estava
passando por um processo de significativa mudana com a substituio das
grandes propriedades escravistas pelas pequenas propriedades que cultivavam,
sobretudo, banana.
Na segunda metade do sculo XX, acompanhando o projeto de
desenvolvimento industrial do Estado brasileiro, os municpios do sul fluminense
passam a receber diversos investimentos industriais com a implementao de
Parques Industriais em Itagua, as Usinas Nucleares e o Estaleiro Verolme, em
Angra dos Reis e a Empresa de Mineraes Brasileiras Reunidas em
Mangaratiba.
4 - O Sul Fluminense compreende os municpios de Parati, Angra dos Reis, Itagua e Mangaratiba,
sendo a Marambaia distrito desse municpio.
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Este processo intenso de industrializao e urbanizao causou um
agravamento nas condies de vida das populaes residentes nas reas do Sul
Fluminense5, em decorrncia da supervalorizao das terras desta regio,
principalmente aps a implementao da Rio-Santos6. Esta rodovia foi concluda
no ano de 1976, produzindo um aumento na especulao das terras por parte,
principalmente, das grandes empresas imobilirias e tursticas. Para se ter uma
compreenso, em termos numricos, segundo dados da FEEMA nos anos 70 a 75
foram aprovados 31 projetos de parcelamento do solo nestas regies,
representando este nmero 50% dos loteamentos e condomnios aprovados para
a regio desde o incio de sua histria at a abertura da Rio-Santos. Angra dos
Reis e Parati so os municpios mais requisitados ficando com 85%,
aproximadamente, do total dos projetos.
A valorizao turstica e a implantao de indstrias na regio modificam
consideravelmente seu quadro social e econmico. Locais tradicionalmente
ocupados por populaes de pescadores e/ou pequenos agricultores vo sendo,
aos poucos, ocupados por grandes empreendimentos tursticos e imveis de
veranistas que, aos finais de semana, desfrutam da beleza do litoral sul
fluminense. Com a presso dos grandes empreendimentos imobilirios a
populao local que, tradicionalmente, habitava as reas litorneas, vai sendo
deslocada para reas distantes do litoral ou para outras regies mais longnquas.
Com a chegada de novos campos de trabalho, ocorre uma reorganizao do
sistema de trabalho, fazendo com que, paulatinamente, os pescadores e seus
familiares abandonem a pesca enquanto atividade principal para trabalharem
como caseiros, pedreiros ou empregados domsticos nas residncias de turistas,
5 - Os municpios que compreendem esta faixa territorial (Parati, Angra dos Reis, Itagua e
Mangaratiba) foram elevados em 1972 , pelo Governo Federal , categoria de territrio prioritrio
para a Reforma Agrria , pelo decreto n 70.986 de 16/08/72 . O objetivo era diminuir as tenses
no campo naquelas regies, proporcionadas principalmente pela construo da rodovia Rio-
Santos. 6 - H tambm outro fator importante para a elevao dos preos das terras no Sul Fluminense que
a implantao de indstrias nesta rea. No existe, neste caso, uma varivel apenas explicativa
deste fenmeno, as duas se complementam.
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nos empreendimentos tursticos implantados na regio, na indstria e no
comrcio7.
Assim, a zona litornea fluminense, em
particular o sul fluminense do Estado do Rio
de Janeiro, desafia pressupostos e exige
minunciosas investigaes. A rea em
questo um exemplo tpico de expanso
capitalista que reestrutura o universo
agrrio em termos de terra e trabalho e
desencadeia processos de transformaes
da paisagem local, tanto em termos fsicos
quanto econmicos, sociais e polticos. A
partir dos anos 70, a regio torna-se palco
sistemtico de lutas envolvendo questo de
terra, produo e trabalho(Gusmo, 1995,
21).
Esse processo especulatrio das terras na regio do sul fluminense atingiu,
ainda que preliminarmente, a Marambaia mesmo tendo ela sido preservada da
especulao e da grilagem direta dos investidores como podemos, por exemplo,
constatar em matria jornalstica veiculada pela Revista Isto , de 23 de fevereiro
de 2002. Nela o presidente da Turis-Rio, rgo do Governo Estadual do Rio de
Janeiro responsvel pelas polticas pblicas de turismo, propunha transformar a
Marambaia em uma Cancun. Segundo o mesmo, as Foras Armadas deveriam
7 - Em trabalho realizado por pesquisadores do NUFEP, em parceria com o Centro Nacional de
Apoio as Populaes Tradicionais (CNPT) com financiamento do PNUD na regio sul
fluminense, foi possvel constatar que a paisagem daquela regio modificou-se significativamente
nas ltimas dcadas. As reas que tradicionalmente eram ocupadas por pescadores, e agricultores
foram tomadas por grandes empreendimentos tursticos, casas e condomnios de veranistas. Para
maiores detalhes ver Levantamento do litoral dos Estados do Esprito Santo, Rio de Janeiro, So
Paulo e norte do Paran, de comunidades de pescadores artesanais com vistas criao de
Reservas Extrativistas Marinhas Kant de Lima e at al, 2002.
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arrendar ou vender suas unidades tursticas. Os fortes poderiam ser centros de
convenes de porte mdio. Entre estes diversos centros de convenes estaria
a Marambaia. Todavia, estes projetos de desenvolvimento turstico no se
realizaram. A pesca, desta maneira, continua sendo a principal renda das famlias
da Marambaia.
Os pescadores da Marambaia se beneficiam da riqueza natural do
ecossistema martimo da Baa de Sepetiba. Em suas guas, como observou
Matsuura (Matsuura apud Xerez 1990), a penetrao da massa de gua tropical
(Corrente do Brasil) sobre a camada superficial da plataforma continental maior
na regio onde se insere a Marambaia (entre Cabo Frio e Ilha Grande). A entrada
da massa de gua central do Atlntico Sul, na camada inferior da plataforma
continental, mais acentuada durante as pocas de fim de primavera e vero,
sendo ento observada a formao de um termoclima marcante. No perodo de
outono e incio de primavera, essa massa fica recuada, margem da plataforma
continental, e a distribuio vertical sobre a plataforma continental homognea.
No fim da primavera e vero registra-se o fenmeno da ressurgncia (Matsuura
apud Xerez 1990).
Estudos realizados pelo IBAMA (SOUZA, D. C; FERREIRA, M.G.S, 1978),
na dcada de 70, indicavam que a pesca possua grande importncia para as
populaes tradicionais de pescadores desta regio. No mesmo estudo aponta-se
que, por volta de 1967, ocorre a introduo de barcos de arrasto de fundo, prtica
que foi impedida pela portaria da SUDEPE n. 121 de 07/03/68. Todavia, os
regimentos normativos no foram suficientes para impedir estas prticas no
entorno da baa, que agiam (e agem) diretamente sobre as formas jovens das
espcies e mantm um aumento exacerbado do esforo de pesca. No estudo,
conclui-se que de extrema importncia a preservao destes espaos para a
reproduo da biota aqutica que se utiliza destes esturios para a sua
reproduo e desenvolvimento.
Apesar destas aes antrpicas no ecossistema da baa, estudos apontam
que a atividade pesqueira no local possui intensa movimentao com o
desembarque de 1000 a 2000 toneladas de pescado por ano (Veeck, 1999).
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-
Contabilizam-se as populaes de pescadores que vivem no entorno da baa:
pescadores de Guaratiba, Sepetiba, Ilha da Madeira, Ilha Grande e Ilha de
Jaguanum. Esta ltima expressiva em termos numricos, pois ali residem cerca
de 800 pescadores distribudos pelas 14 praias da Ilha, que utilizam pequenas
canoas movidas a motor e traineiras de pequeno porte para a captura de camaro.
A populao local, apesar do avano do turismo na rea, possui uma ntima
relao com a atividade da pesca e com o espao que o grupo tradicionalmente
utiliza para seu sustento. O grupo de pescadores de Jaguanum, diferentemente
dos pescadores da Marambaia, esto organizados em associaes de moradores
e de pescadores, atravs da Colnia, pois seu presidente, o Cabo, morador e
filho de Jaguanum. Os pescadores de Jaguanum e Marambaia possuem um forte
vnculo social, tanto em termos econmicos, sobretudo no caso da pesca os
pescadores das duas Ilhas usufruem o mesmo espao de pesca desde o tempo
dos antigos, como dizem - como em relao aos casamentos. Nos espaos
profanos e sagrados perdura este lao de reciprocidade. Nos cultos das igrejas
evanglicas podem ser encontrados pescadores de Jaguanum em Marambaia e
vice-versa. Na festa de So Pedro, padroeiro dos pescadores, os dois grupos se
renem para sarem em procisso, com a imagem do santo, pelas ilhas do entorno
da baa. Nos finais de semana, freqentemente, pescadores de Jaguanum e
Marambaia se encontram para jogarem pelada no campo de futebol da Marinha.
Enfim, h um continuum territorial entre as duas lhas estabelecido por laos
distintos que organizam a estrutura dos grupos locais.
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Pesca no interior da baa de Sepetiba, prximo Ponta da Marambaia, realizada por pescadores da Ilha da Marambaia.
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A atividade da pesca Particularmente, na Marambaia a pesca consiste em um espao importante
de sociabilidade entre os diversos moradores da Ilha. Constitui, ainda, a principal
renda das famlias. Como diz um pescador a pesca faz parte da vida dos
pescadores vinte e quatro horas, a semana toda, o ms inteiro, o ano todo. H de
se considerar que as pescarias enquanto instrumentos de trabalho constituem no
apenas meio de produzir peixes, mas, tambm, elementos simblicos atravs dos
quais se reproduzem relaes sociais especficas (Britto, 1999).
Antigamente, os pescadores tambm plantavam, em pequenas hortas,
feijo, arroz, banana e outros produtos. As plantaes eram no p dos morros.
Todavia, com presena da Marinha, as plantaes foram proibidas, acabando
gradualmente com as roas. Com isso, a pesca tornou-se a atividade econmica
principal para as famlias de pescadores da Marambaia.
Um dos membros da companha, levando o peixe para ser conservado em gelo na Praia da Pescaria Velha.
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Nessa atividade, existem saberes especficos a respeito dos recursos
naturais renovveis. Existe todo um conjunto de conhecimento que ordena as
formas de apropriao dos recursos, delimitando as reas possveis para atividade
pesqueira. Do mesmo modo, este conhecimento engloba um saber sobre os
comportamentos dos cardumes. Conhecer, portanto, a influncia de uma
determinada fase da lua, o vento, e a temperatura na influncia do movimento de
cardumes essencial para a atividade pesqueira. Esses pescadores possuem um
domnio sobre estes espaos, um conhecimento local e especfico sobre seu
territrio (Geertz, 1999). Conhecimento transmitido de gerao a gerao atravs
da iniciao na atividade.
Essa iniciao se d em torno de diversos procedimentos simblicos que
possibilitam a insero do iniciado na pesca. Aqui muitos aprendem a pescar
quando criana, brincando de pescar. Sai depois com o pai pra pescar at ficar
preparado , como nos explica seu Cassilio.
A Companha, denominao dada ao conjunto de pescadores que compe
uma pescaria, composta por trs camaradas, sendo as funes divididas em
mestre, contra-mestre e ajudante. Como salienta Britto (1999):
na companha a transmisso dos
conhecimentos se efetiva com base na sua
apropriao coletiva, envolvendo uma
peculiar especializao de funes , onde a
companha comporta uma diversidade de
papis (Britto, pg.90).
O mais especializado na companha o mestre, que muitas vezes tambm
o dono do barco, no sendo isso regra geral. Na hierarquia dos saberes, ele
quem detm mais conhecimento sobre a tcnica e prtica da pescaria. O contra
mestre o substitui em eventuais situaes. O ajudante, por sua vez, trabalha mais
fora do barco, na manuteno da rede. Como explica Aderaldo, pescador da Praia
da Cachoeira, o camarada que cumpre a funo de ajudante pesca muito de linha
na poca da garoupa na Praia do Sino complementando a pesca da companha.
O ajudante poucas vezes acionado a trabalhar embarcado, ou seja, dentro da
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canoa, por ser esta uma atividade de alto risco e demandar um profundo
conhecimento sobre a tcnica na pesca.
Para os pescadores da Marambaia o melhor perodo para pescar o
perodo que chamam de quadra, quando o vento est bom, deixando o mar
calmo. O pior perodo quando entra um Sudoeste e A-Sudoeste, o mar fica
muito agitado e no fica bom pra pescaria, como explica Adhemir.
O principal pescado, atualmente, na Ilha, a curvina, no caso dos
pescadores da parte oeste da Ilha. A curvina o peixe que d o ano todo, como
dizem.
No entanto, na parte leste da Ilha, por conta das diferenas ambientais nos
espaos utilizados e das tcnicas empregadas na atividade pesqueira, o camaro
o recurso mais pescado, mesmo ele tendo escasseado com a intensificao da
pesca por parte das traineiras industriais na regio.
A pesca de camaro realizada com um bote a remo. Utiliza-se rede de
malha 30 e 35, sendo esta ltima utilizada tambm para o robalo. O camaro
pescado dentro da baa de Sepetiba, leste, na Restinga da Marambaia. Nesse
caso, a pescaria pode ser realizada com um pescador sozinho, ou s vezes, com
duas pessoas embarcadas. Exercem o trabalho sozinhos, em parte, por conta da
caracterstica da atividade pesqueira do local cuja predominncia de botes bem
maior que a de curvineiras. A pesca no bote suporta no mximo duas pessoas.
Por outro lado, um outro motivo para esta individualizao na pesca a intensa
migrao dos moradores para outras regies do Rio de Janeiro, principalmente os
mais jovens. Isto ocorre porque, sem perspectiva de crescimento na Marambaia,
devido ao fim gradual do pescado na baa de Sepetiba e s presses por parte da
Marinha sobre os moradores, acrescido da falta de infra estrutura escolar, pois a
escola oferece simplesmente o primeiro grau.
Na parte oeste da Marambaia, predomina a pescaria de curvineira
(canoas a motor). Nessa pesca, prevalece a rede de espera, tcnica que
consiste em colocar a rede em lugar especfico que difere dependendo das
condies climticas no costo da Ilha, na parte do alto mar. O costo tornou-
se local de pesca h poucas dcadas. Antigamente ela era realizada no interior da
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baa de Sepetiba. Todavia, com pesca intensiva de traineiras na rea (que
chegam a pescar em um dia cerca de 20 toneladas) os recursos martimos nessa
parte da baa se escassearam. Uma pesca que ainda se realiza na baia de
Sepetiba a casseia: a rede, geralmente rede 70, fica segura no barco e vai
deixando a mar levar ela.
Canoa sendo ancorada aps a pescaria.
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Estas tcnicas e seus materiais empregados modificaram-se com o tempo.
Atualmente as redes so feitas de plstico, um material mais moderno, como
enfatiza um ex-pescador, mas antigamente se pescava com fio jergo nylon de
malha 30. Usava-se muito o gorete para o camaro e para a tainha, sendo o
primeiro com malha menor. Para a pesca de curvinota (uma curvina menor),
pescadinha e parati so usados rede de malha 35. As malhas 110 com fio 60 so
para a captura da curvina grada.
A malha 70 serve para pescar robalo e cao, que tem que ser com fio
grosso porque esses peixes so violentos e arrebentam a rede, como enfatizam
os pescadores. As malhas 50 e 55 so para a curvina. Para os botes se usa malha
35 e 40 para pescadinha e curvinota. A traineira, a nica da Ilha, que pertence ao
Pep, pesca com malha 8 para sardinha. As outras pescarias existentes so:
anzol e linha.
Na parte oeste da Ilha existem, atualmente, cerca de 16 curvineiras, 11
barcos (conhecidos como traineirazinhas), 08 botes e uma traineira. Na parte
leste da Ilha, existe um nmero bem maior de botes, cerca de uns 15 deles,
enquanto curvineiras so apenas 04 e nenhuma traineira.
Canoas (curvineiras) estacionadas na Praia da Pescaria Velha aps a atividade pesqueira.
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Canoa estacionada no rancho na Praia do Stio. Na foto dona Sebastiana. Foto tirada no ano de 1970.
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Formas de Pagamento e Comercializao No sistema de companha o pagamento se d na forma de quinho. Divide-
se o lucro entre os trs pescadores: 50% so destinados para a embarcao e os
outros 50% so divididos entre o mestre e os outros dois camaradas.
O quinho representa muito mais de que uma forma de pagamento. Ele
elabora e reifica as hierarquias, formaliza as representaes da vida social dos
moradores, assim como reafirma os papis sociais dos agentes. Antigamente,
quando ainda havia a pesca de tainha de puxada de rede na praia, as mulheres e
as crianas que participavam da pesca puxando a rede recebiam tambm o
quinho, mas no equivalente ao quinho dos homens. Para as mulheres dava-se
meio quinho e para as crianas 1/3 do quinho.
Outra caracterstica importante do quinho a importncia dada canoa.
Como frisei acima, a canoa recebe 50% do produto total bruto produzido na pesca,
mais do que o mestre e os outros camaradas. Mas o que nos d uma margem
para entendermos melhor o papel da canoa so os nomes colocados nas laterais
da canoa: tanto pode estar inscrita a colnia qual o pescador filiado, como um
nome prprio qualquer, ou uma frase.
Como Marcel Mauss indicava em seu trabalho, o nome possui uma
representao importante na vida humana : ele quem pode indicar a identidade
de um indivduo, sua posio social, o grupo ao qual pertence. Na Marambaia
existem alguns barcos que indicam a colnia a qual pertencem, a Z 16; contudo, a
maioria possui nomes prprios e, atualmente, com a presena da igreja Batista
podemos encontrar diversas canoas com enunciados do tipo : Jesus Salva,
Cristo Vive, Pela F, indicando a sua identidade crist, de irmo.
As motivaes que levam o dono da canoa colocar o nome so relevantes
para compreender esse mecanismo. Cito o caso da Silvana, a canoa que
atualmente do Carlinho. Ela foi feita pelo seu av, o Adriano, morador da Praia do
Sitio, j falecido. Era o nico pescador da Marambaia que fazia as prprias
canoas, diziam possuir uma inteligncia surpreendente para uma pessoa
analfabeta. Quando eu me encontrava na casa do Adriano (o filho, claro)
estvamos conversando numa roda e nela estavam: o Adriano, o Carlinho, o
Pedro e o Bertolino. Contaram a histria do nome da Silvana. Esse nome foi por
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causa de uma sobrinha do Adriano que tinha nascido e era de uma irm muito
querida, ento resolveu dar esse nome a sua obra prima, como foi dito nessa
conversa. Mas o mais interessante deste papo foi o motivo dado por eles para que
a Silvana fosse considerada uma obra prima: ela era a n. 1 da baa, a canoa
mais veloz da baa de Sepetiba, quando ela ia sair todos as outras canoas
esperavam a Silvana sair, porque ningum ganhava ela na corrida, como relembra
o Adriano. O seu pai aprimorou a dinmica da canoa para aumentar a velocidade,
porque o seu filho mais novo, o Carlinhos, sempre quando saa para pescar com
ele chorava ao ver as canoas ultrapassarem a do seu pai.
Como as narrativas demonstram, a canoa se apresenta como uma
extenso do prprio ofcio de pescador, da sua identidade, da sua pertena a um
grupo e como uma forma de travar disputas entre os prprios pescadores.
O carter artesanal da pesca encontra correspondncia na sua forma de
comercializao. O pescado levado para fora da Ilha para ser vendido nas
peixarias de Mangaratiba, no caso dos moradores da parte oeste da Marambaia.
Os moradores da parte leste comercializam o pescado em Itacuru. Em ambos
os lugares, o preo estabelecido nas peixarias pela sazonalidade das espcies,
ou seja, quando uma poca em que d muito de uma espcie o preo cai. Isso
porque os moradores no tm como armazenar durante um perodo muito grande
o pescado, assim o dono da peixaria diminui o preo do peixe quando a espcie
abundante.
Como bem chama ateno Kant de Lima:
ao analisar mecanismos de troca e
princpios que os regem, estamos no s
diante dos processos estabelecidos pela
sociedade para formalizar as estruturas da
repartio de bens e servios econmicos,
no que diz respeito a sua circulao, como
tambm diante de formas estabelecidas de
estruturar relaes sociais (Kant de
Lima,1998, pg. 222).
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Estas relaes se estabelecem de uma forma hierrquica seja na peixaria,
onde seu dono estabelece o preo do peixe do pescador, ou mesmo na praia,
onde quem estabelece o preo do peixe ao comprador o pescador.
Em Mangaratiba existem dois estabelecimentos comercias que compram os
peixes: o mais antigo fica ao lado dos bares do pequeno centro de Mangaratiba,
em frente praia; o outro fica perto da entrada do cais, onde desembarcam as
barcas e os barcos que vo para Ilha Grande. Atualmente, com a urbanizao do
centro de Mangaratiba, a barraca se deslocou para mais longe do cais at o local
atual. Os pescadores, em sua maioria, vendem o peixe na primeira peixaria
porque na segunda o comerciante costuma pagar em vale e no o cobre com o
dinheiro no tempo estipulado.
Em Itacuru existem trs peixarias. Duas se localizam prximo praia,
exatamente em frente praia. A outra se localiza perto da praa principal da
cidade, perto da Igreja Catlica. Os pescadores da Marambaia vendem seu
pescado na peixaria perto da praia. Como tambm vendem seus peixes na praia
para os banhistas, o que no acontece em Mangaratiba.
Nesses lugares prprios, para usar a expresso de DeCertau, cada espao
privilegiado por um esquema simblico. A praia o lugar de todos, mas para o
pescador apropriada de uma forma particularizada, o seu lugar de trabalho, o
seu lugar prprio. E por isso, como me disse o Carlinho, na praia o preo o
pescador quem estabelece. J na rua no. A rua o lugar prprio do outro e,
neste caso, a rua do Gaguinho, como ressaltou o Elson ao comprador de sua
mercadoria, ele deve comprar o peixe na peixaria. So lugares onde a hierarquia
se move de pontos distintos, modificando a dinmica do uso destes espaos
pblicos: a rua e a praia. Como tambm movimentam a dinmica das relaes
sociais reafirmando os laos com uns, desatando com outros.
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A sorte de Deus
Ao analisar a reproduo social dos pescadores de Jurujuba, Luis
Fernando Dias Duarte, assinala a importncia do papel da sorte em oposio ao
trabalho, pensando-as de uma forma complementar.
Atravs da sorte que se pode explicar a
superao, eventual, desses obstculos reais
que se vm interpor no exerccio da
subsistncia. Eventual, sobretudo, porque nem
todos os limites parecem ser relativizveis ou
contornveis por essa via. Apenas um dos trs
domnios de limitao detectveis comporta na
verdade a eficcia especfica da sorte. E esse,
dentre os trs, exatamente o da produo da
pesca, ou melhor, o da relao com o mar e
com o peixe (Duarte, 1999, pg. 99).
Por outro lado, demonstra como Deus e sua vontade so razes
abrangentes do mundo da sorte. Ao inverso da vontade do Homem, destilada no
suor, se desenha a vontade de Deus, chamando a ateno para o fato de que
esse discurso se apresenta recorrentemente entre os pescadores protestantes.
Com o crescimento das igrejas protestantes na Ilha, este discurso tornou-se
mais freqente entre os pescadores artesanais. Na Ilha existem, atualmente, trs
grupos religiosos: a Igreja Catlica, a Igreja Batista e a Assemblia de Deus. A
Igreja Catlica tm como responsvel o capelo, que Oficial da Marinha. A sua
implantao na Ilha remonta ao tempo da escravido, quando foi erguida uma
capela, feita de pedra pelos escravos, onde hoje a Praia da Armao. possvel
ver as runas da mesma na praia, pois quase foi destruda por conta de manobras
militares no local. Uma outra capela, tambm construda pelos escravos, foi
levantada onde hoje a Praia do CADIM, sendo substituda por uma nova de
concreto, com a instalao da Escola de Pesca Darci Vargas nos anos 30. Essa
instalao faz parte da paisagem da Ilha at os dias atuais.
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A Igreja Batista se constitui como religio representativa desde os anos 70.
A igreja foi construda na Praia da Kaetana pelos prprios moradores. O seu
fundador foi o pastor Fernando, um sargento da Marinha, na poca (dizem que
filho da Ilha). O pastor atual da Igreja reside em Inhoaba, um bairro da Zona
Oeste do Rio de Janeiro. Existem ainda dois pastores interinos: o Elson, morador
da Pescaria Velha e o Durval, morador da praia Suja. Este ltimo vem negociando
com o comandante do CADIM a liberao da construo de um templo Batista na
Praia Suja. Enquanto no h a liberao, os cultos so realizados em uma praa
prximo Igreja Catlica
A Assemblia de Deus se localiza, temporariamente, na praia da Kaetana.
Os cultos so realizados na casa do sr. Adilino. No entanto o Divino, pastor
interino da Igreja, disse que solicitou ao comandante do CADIM um espao prprio
para a construo do templo. No entanto, o templo ser erguido na Pescaria Velha
afinal j h uma igreja neste local, portanto melhor levar a palavra do Senhor
para outros rebanhos, afirma um dos integrantes da Igreja. A Assemblia de Deus
recente na Ilha, tm pouco mais de um ano. Quem a fundou foi o Divino,
morador da Praia da Kaetana e antigo membro da Igreja Batista.
Grande parte dos moradores da Praia da Pescaria Velha Praia Grande,
adepto da religio Batista ou a Assemblia de Deus. A outra metade da populao
da Ilha, da Praia do CADIM at a Praia da Armao, catlica. Entretanto, os
moradores reconhecem que h um fluxo crescente de fiis s igrejas protestantes
da localidade.
Os membros da Igreja Catlica comemoram todo ano, no dia 15 de
setembro, a festa da padroeira Nossa Senhora das Dores. Existe tambm uma
procisso dos pescadores em torno da Ilha de Jaguanum, onde carregam a
imagem de So Pedro nas canoas para comemorar o dia do santo protetor dos
pescadores. Estas festividades tm uma grande atrao ao pblico externo,
principalmente os familiares que residem fora da Ilha, os quais nestes dias
costumam ir para a Marambaia. Ambas as festas so organizadas pela igreja
Catlica, portanto h uma presena muito pequena dos moradores evanglicos
nestas comemoraes.
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Os discursos que relacionam a sorte ao trabalho na pesca se apresentam
mais recorrentemente entre os pescadores evanglicos. Certa vez, quando me
encontrava na Praia do Jos, a oeste da Marambaia, presenciei estes discursos.
O Toca, morador da Praia do Jos, ao chegar com a sua canoa com mais de 500
Kg de peixe, foi recepcionado por sua mulher que o esperava em frente a sua
casa. Ele vira e diz a ela: viu, eu sabia que eu ia fazer uma boa pescaria, ontem o
pastor me abenoou, e pela graa de Jesus eu hoje consegui uma boa pesca.
Aqui, o sentido da palavra do pastor, representante da palavra do Senhor,
ultrapassa o que o Duarte indica como a sorte relacionada batalha, transpe-
se: a prpria peregrinao ao caminho da salvao, do caminho de Jesus, o
relato de como o senhor o abenoou, o Testemunho explcito da graa de
Deus.
No mesmo dia, agora na Praia da Pescaria Velha, conversava com o
Elson e o Adhemir. Falvamos a respeito da influncia do tempo na pesca:
diziam da lua, do vento, mas em um momento o Elson vira e diz: no, essas
coisas todas, tudo indicao de Jesus, ele quem nos d o caminho, quem
determina tudo. O conhecimento no possui mais um sentido de um saber
prprio, de um saber tradicional, apontado pelo prof. Kant em seu trabalho sobre
Itaipu: agora se encontra um outro saber complementar a esse, o de Deus.
A Pesca da Tainha
Como demonstra o professor Kant, em seu livro Os pescadores de Itaipu,
a pesca da tainha
implica uma euforia social, exarcebando-se
as trocas e as ddivas, com as
conseqentes afirmaes dos desequilbrios
da hierarquia social... a pescaria da tainha
a sntese da vida comunitria de Itaipu
(Kant de Lima, 1997, 252).
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Na Marambaia restaram apenas os relatos da pesca da tainha, promovida
com rede de gorete, de arrasto de praia. A pesca da tainha no era uma coisa
exclusiva dos camaradas que trabalhavam numa determinada canoa. Quem
estivesse presente podia participar da pesca da tainha, inclusive crianas, era
uma festa realmente bonita. A praia ficava cheia, todo mundo ajudando. A pesca
da tainha uma pesca muito bonita, porque ela tenta pular, ela no vem assim
no fundo como a pescadinha, ela tenta se livrar do cerco. A saam com as
canoas ao lado, algumas conseguiam pular da rede, mas caam dentro da canoa,
muito bonita a pesca da tainha.
Nesse relato, o Adriano lembra com muita saudade de um dos momentos
mais importantes na vida social dos moradores da Marambaia, a pesca da tainha.
Uma pesca que estimulava a elaborao das hierarquias, com a diferenciao
dos pagamentos (1/3 paras as crianas, quinho para as mulheres e 1 quinho
para os homens), a reafirmao dos laos de solidariedade entre os pescadores,
momento ldico e de aprendizado das crianas. Um ritual importante, pois trazia
todos para um mesmo lugar: a praia. O espao que naquele momento era de
todo mundo: do homem, da mulher e das crianas.
Na pesca da tainha se usava um espia que ficava em cima do morro
esperando o cardume passar para a canoa cerc-lo. O Adriano lembra que s
vezes uma mulher no morro avistava e avisava para os pescadores que estava
vindo um cardume de tainha. Os pescadores saam para cerc-la em qualquer
lugar, a tainha no era especfica de um determinado ponto, qualquer praia voc
acompanhava o cardume at chegar a determinado local. O Salvador lembra que
se os pescadores de uma praia, quando iam cercar, se outro entrasse a porrada
comia. Doze homens aqui e doze l . Caso chamasse a gente pra ir forra a rede
dele l, porque era muito a gente forrava a rede dele, mas se fosse e tampasse a
rede dele a a coisa ficava feia. As diferenas, ao contrrio do lugar onde o
Adriano descreve, onde todos pertencem a um mesmo grupo, exarcebam-se no
caso do pessoal da praia dos brancos e o os da praia dos pretos, em relao
ao que o Salvador descreve: o conflito explicitado.
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Entretanto, esta pesca hoje na Marambaia no se pratica mais, em virtude
da pesca de arrasto das traineiras industriais que esto acabando com