dissertaçªo de mestrado reminiscŒncias op. 78 de marlos ... · lista de exemplos exemplo 1:...

176
UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE MSICA PROGRAMA DE PS-GRADUA˙ˆO EM MSICA Dissertaªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos Nobre: Um Estudo TØcnico e Interpretativo Joªo Raone Tavares da Silva Salvador 2007

Upload: vuongkiet

Post on 01-Nov-2018

220 views

Category:

Documents


3 download

TRANSCRIPT

Page 1: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

ESCOLA DE MÚSICA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICA

Dissertação de Mestrado

Reminiscências Op. 78 de Marlos Nobre: Um

Estudo Técnico e Interpretativo

João Raone Tavares da Silva

Salvador

2007

id125015984 pdfMachine by Broadgun Software - a great PDF writer! - a great PDF creator! - http://www.pdfmachine.com http://www.broadgun.com

Page 2: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

João Raone Tavares da Silva

Reminiscências Op. 78 de Marlos Nobre: Um

Estudo Técnico e Interpretativo

Dissertação apresentada ao curso de mestrado da Escola de Música da

Universidade Federal da Bahia, como requisito parcial à obtenção do título de

Mestre em execução Musical. Área de concentração: Violão. Orientador: Prof. Dr. Mário Ulloa.

Salvador

Universidade Federal da Bahia - UFBA 2007

Page 3: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos
Page 4: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

DEDICATÓRIA

À Caroline Costa Fontes da Silva

Page 5: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

AGRADECIMENTOS

À minha esposa Caroline, que tanto colaborou em todas as etapas da minha

pesquisa e sempre foi a minha principal inspiração.

Ao compositor Marlos Nobre por sua atenção e por todas as preciosas

informações e materiais que gentilmente me concedeu.

A Mario Ulloa pela inestimável orientação e por tudo que me ensinou ao

longo dos anos.

Aos professores, funcionários e colegas do Mestrado em Música da UFBA.

À minha família, especialmente aos meus pais Inaldo e Zuleide por terem me

proporcionado todos os meios necessários ao meu crescimento pessoal e profissional.

À família de minha esposa, em especial Nair e Júlia pelo indispensável apoio

e incentivo.

À Ana Paula pelo seu precioso tempo dispensado à revisão desta dissertação.

A Jorge Santos e a todos os amigos pelos pertinentes comentários e demais

contribuições.

Aos meus alunos pela compreensão quando das minhas ausências

necessárias à conclusão deste trabalho.

Ao Programa de Bolsas FAPESB/CAPES pelo apoio financeiro.

Page 6: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

RESUMO

Estudo técnico e interpretativo da peça Reminiscências Op. 78 para violão

solo de Marlos Nobre (1939). Embasado em questões estilísticas, o trabalho propõe

sugestões técnico-instrumentais para minimizar as dificuldades específicas presentes na

peça, sejam elas técnicas ou interpretativas. Informações sobre o compositor, sua obra

para violão e sobre os gêneros da música popular urbana brasileira que serviram de base

para a peça (choro, seresta e frevo), foram incluídas para contextualizá-la e fornecer

dados que poderão ser úteis para novas interpretações desta composição e de outras do

mesmo compositor. A produção de uma nova edição de Reminiscências Op. 78 �

incluindo algumas correções, novas digitações, além de símbolos representando

procedimentos técnico-instrumentais � é o resultado concreto das questões levantadas

neste trabalho acerca da interpretação, e visa facilitar o acesso e a compreensão da peça

aos instrumentistas que desejarem executá-la.

Palavras-chaves: Interpretação Musical; Marlos Nobre; Música Brasileira; Violão.

Page 7: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

ABSTRACT

This dissertation is a technical and interpretative study of Reminiscências

Op. 78 for solo guitar by Marlos Nobre (1939). Based on stylistics aspects, the

dissertation proposes technical and instrumental suggestions to minimize the specific

difficulties � interpretative or technical - present in the piece. Information about the

composer, his works for guitar and the sorts of popular urban Brazilian music (choro,

seresta and frevo), which had served as the basis for the piece, has been included to

contextualize it and to supply information that could be useful for new interpretations of

this composition and others of Marlos Nobre. The production of a new edition of

Reminiscências Op. 78 - including some corrections, new fingering and symbols

representing the technical-instrumental procedures - is the concrete result of some

questions raised in this dissertation concerning the interpretation. The aim of this new

edition would be to facilitate the understanding of the piece to the guitarists that desire

to study or to perform it.

Keywords: Interpretation; Marlos Nobre; Brazilian Music; Guitar.

Page 8: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

LISTA DE TABELAS

Tabela 1...............................................................................................74

Tabela 2...............................................................................................87

Tabela 3...............................................................................................92

Tabela 4...............................................................................................95

Tabela 5...............................................................................................102

Tabela 6...............................................................................................117

Tabela 7...............................................................................................127

Page 9: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

LISTA DE EXEMPLOS

Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4 ..................................... 28

Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos Nobre), comp.1................... 30

Exemplo 3: Prólogo (Marlos Nobre), comp.1-2............................................. 32

Exemplo 4: Toccata (Marlos Nobre), comp.1-3............................................. 32

Exemplo 5: Tango Op.67 (Marlos Nobre), comp. 55-57................................ 34

Exemplo 6: Tango Op.61 (Marlos Nobre), comp. 53-55................................ 34

Exemplo 7: Rememórias: I Embolada (Marlos Nobre), comp.1-5 ................. 36

Exemplo 8: 2º Ciclo Nordestino: Sêca IV (Marlos Nobre), comp.1-6 ............ 38

Exemplo 9: Yanomâni (Marlos Nobre), comp. 86-90.................................... 45

Exemplo 10: Desafio XXXIII (Marlos Nobre), comp.1-6.............................. 47

Exemplo 11a: Frevo (piano), comp.1 ............................................................ 72

Exemplo 11b: Frevo (violão), comp.1 ........................................................... 72

Exemplo 12a: Frevo (piano), comp.17 .......................................................... 72

Exemplo 12b: Frevo (violão), comp.17 ......................................................... 72

Exemplo 13a: Frevo (piano), comp.13-14..................................................... 73

Exemplo 13b: Frevo (violão), comp.13-14.................................................... 73

Exemplo 14a: Frevo (piano), comp.10 .......................................................... 73

Exemplo 14b: Frevo (violão), comp.10......................................................... 73

Exemplo 15a: Frevo (piano), comp.28-30..................................................... 73

Exemplo 15b: Frevo (violão), comp.28-30.................................................... 73

Exemplo 16: Células rítmicas usadas no gênero choro .................................. 88

Exemplo 17: Choro (Marlos Nobre), comp. 29 ............................................. 89

Exemplo 18a: Dengoso (João Pernambuco), comp. 1-5................................. 89

Exemplo 18b: Choro (Marlos Nobre), comp. 1-5 .......................................... 89

Exemplo 18c: Odeon (Ernesto Nazareth), comp. 1-5..................................... 89

Exemplo 19: Choro (Marlos Nobre), comp. 17-20 ........................................ 91

Exemplo20: Esquema resumindo a harmonia de Choro, comp.2-5 ................ 92

Exemplo21: Esquema resumindo a harmonia de Choro, comp.16-31 ............ 93

Exemplo 22: Choro, comp. 34-36 ................................................................. 93

Exemplo 23: Ritmo do pandeiro no choro ..................................................... 93

Page 10: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

Exemplo 24a: Motivo inicial da seção A ....................................................... 94

Exemplo 24b: Motivo inicial da seção B ....................................................... 94

Exemplo 25a: Sarambeque, comp. 1-5 ......................................................... 94

Exemplo 25b: Choro (Marlos Nobre), comp. 41-43 ...................................... 94

Exemplo 26a: Choro, (Marlos Nobre), comp.15-18 ...................................... 95

Exemplo 26b: Choro, (Marlos Nobre), comp.53-56 ...................................... 95

Exemplo 27: Esquema resumindo a harmonia de Choro, comp.55-71 ........... 96

Exemplo 28a: Dengoso (João Pernambuco), comp. 13-18............................. 96

Exemplo 28b: Choro (Marlos Nobre), comp. 75-80 ...................................... 97

Exemplo 29: Choro, comp. 113-120 ............................................................. 98

Exemplo 30a: Seresta (Marlos Nobre), comp. 6 ............................................ 103

Exemplo 30b: Seresta (Marlos Nobre), comp. 24.......................................... 103

Exemplo 30c: Seresta (Marlos Nobre), comp. 74 .......................................... 103

Exemplo 31: Seresta, comp. 23-26................................................................ 104

Exemplo 32: Seresta, comp. 4-7.................................................................... 104

Exemplo 33: Seresta, comp. 41-44................................................................ 105

Exemplo 34: Seresta, comp. 57-60................................................................ 106

Exemplo 35a: Seresta, comp. 2-3.................................................................. 107

Exemplo 35b: Seresta, comp. 19-20.............................................................. 107

Exemplo 35c: Seresta, comp. 37-38 .............................................................. 107

Exemplo 36a: Frevo, comp. 17-20 (transposição, ornamentação e inversão) . 117

Exemplo 36b: Frevo, comp. 45-46 (fragmentação e variação rítmica) ........... 117

Exemplo 36c: Frevo, comp. 33-37 (transformação do tema) ......................... 118

Exemplo 37a: Frevo, comp. 1-11 .................................................................. 118

Exemplo 37b: Frevo, comp. 101-104 ............................................................ 118

Exemplo 37c: Frevo, comp. 96 ..................................................................... 118

Exemplo 38: Frevo, comp. 105-108 .............................................................. 119

Exemplo 39a: Frevo (acorde final), comp. 125-126 ...................................... 119

Exemplo 39b: Frevo (cromatismo), comp. 74-75 .......................................... 120

Exemplo 39c: Frevo (oitavas), comp. 99....................................................... 120

Exemplo 40a: Choro, comp.75 - Henry Lemoine .......................................... 128

Exemplo 40b: Choro, comp.75 - Sugestão do Autor...................................... 129

Exemplo 40c: Seresta, comp.15 - Henry Lemoine......................................... 129

Exemplo 40d: Seresta, comp.15 - Sugestão do Autor .................................... 129

Page 11: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

Exemplo 41: Choro, comp.12-14 .................................................................. 130

Exemplo 42: Choro, comp.35-36 .................................................................. 131

Exemplo 43: Frevo, comp.29-30................................................................... 132

Exemplo 44: Frevo, comp.12........................................................................ 132

Exemplo 45: Frevo, comp. 36 ....................................................................... 132

Exemplo 46: Choro, comp.25 ....................................................................... 133

Exemplo 47: Seresta, comp.12...................................................................... 133

Exemplo 48: Choro, comp.1 ......................................................................... 135

Exemplo 49: Choro, comp.19-20 .................................................................. 136

Exemplo 50: Frevo, comp.33-34................................................................... 136

Exemplo 51a: Transcrição mais antiga da síncope brasileira (�dica�) ............ 139

Exemplo 51b: Execução da célula rítmica do choro ...................................... 140

Exemplo 52: Choro, comp.5-6 ...................................................................... 141

Exemplo 53a: Odeon, comp.1-2.................................................................... 141

Exemplo 53b: Odeon, comp.1-2.................................................................... 142

Exemplo 54a: Choro, comp. 1-5 ................................................................... 142

Exemplo 54b: Choro, comp. 1-5 ................................................................... 142

Exemplo 55a: Seresta, comp. 55-56 .............................................................. 145

Exemplo 55b: Seresta, comp. 55-56: reescrito reforçando a polifonia ........... 145

Exemplo 56: Frevo, comp. 1-12.................................................................... 146

Page 12: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

ÍNDICE

Introdução ..........................................................................................................................1

Capítulo 1: O Compositor Marlos Nobre .........................................................................4

1.1 - Formação...................................................................................................8

1.2 - Estética e Fases Composicionais de Marlos Nobre .....................................14

Capítulo 2: A Obra para Violão de Marlos Nobre ...........................................................22

2.1 - Obra para violão solo .................................................................................26

2.2 - Obra para duo de violões ...........................................................................37

2.3 - Obra para conjunto de violões....................................................................39

2.4 - Obra para violão e voz ...............................................................................40

2.5 - Obra para violão e coro..............................................................................43

2.6 - Obra para violão e orquestra ......................................................................45

2.7 - Obra para formações diversas incluindo o violão .......................................46

2.8 � Conclusão .................................................................................................48

Capítulo 3: Reminiscências Op. 78 ....................................................................................50

3.1 - Sobre os Critérios para a Elaboração da Edição Presente neste

Trabalho. ...........................................................................................................55

3.2 - Procedimentos ...........................................................................................57

3.3 - Diferenças entre Manuscrito de Marlos Nobre e a Edição da Henry

Lemoine ............................................................................................................59

3.3.1 � Primeiro Movimento: �Choro� ......................................................60

3.3.2 � Segundo Movimento: �Seresta�.....................................................64

3.3.3 � Terceiro Movimento: �Frevo� .......................................................68

3.4 � Informações Extraídas do �Frevo� para piano ...........................................71

Page 13: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

Capítulo 4: Análise de Reminiscências Op. 78...................................................................79

4.1 - O Gênero Choro ........................................................................................80

4.2 - Análise do Primeiro Movimento � �Choro� ...............................................87

4.3 - O Gênero Seresta .......................................................................................99

4.4 - Análise do Segundo Movimento � �Seresta� ..............................................101

4.5 � O Gênero Frevo ........................................................................................108

4.6 - Análise do Terceiro Movimento � �Frevo� ................................................115

4.7 � Conclusão .................................................................................................120

Capítulo 5: Técnica e Interpretação em Reminiscências Op. 78 ......................................122

5.1 - Os Orientadores Técnicos ..........................................................................125

5.2 - Critérios e exemplos do uso da digitação e dos orientadores técnicos

em Reminiscências Op. 78.................................................................................128

5.3 - Elementos da interpretação ........................................................................133

5.3.1 � Articulação....................................................................................133

5.3.2 � Agógica e Tempo ..........................................................................138

5.3.4 � Dinâmica ......................................................................................143

5.4 � Conclusão .................................................................................................146

Conclusão Geral.................................................................................................................147

Referências Bibliográficas .................................................................................................149

Anexos I: Entrevistas a Marlos Nobre .................................................................................154

Anexo II: Manuscrito de Reminiscências Op. 78 ................................................................. 163

Anexo III: Edição de Reminiscências Op. 78 ...................................................................... 181

Page 14: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

1

INTRODUÇÃO

A partir da década de 70, com o advento de uma escola brasileira de violão

já em formação e expansão, e com o surgimento de violonistas brasileiros despontando

no cenário internacional como Carlos Barbosa Lima, Turíbio Santos e os irmãos Abreu,

a composição para o violão no Brasil ganha um novo impulso. A partir daí, há uma

contribuição mais substanciosa de importantes compositores brasileiros como Francisco

Mignone (1897-1986), com seus Doze Estudos, Doze Valsas, Concerto para Violão,

etc.; César Guerra-Peixe (1914-1993), com Sonata, Lúdicas e Prelúdios e outros; Edino

Krieger (1928), com a Ritmata, Romanceiro e Concerto para Dois Violões, etc.,

Radamés Gnattali (1906-1988), com os Concertos, Brasiliana 13, Estudos, Dança

Brasileira, etc.; além de importantes contribuições de Almeida Prado (1943), Ricardo

Tacuchian (1939), Ronaldo Miranda (1941), Theodoro Nogueira (1913-2002), Roberto

Victório (1959), Alexandre Eisenberg (1966), entre outros.

Nesse contexto, surge também o compositor pernambucano Marlos Nobre,

que, a partir de 1974, começa a produzir uma numerosa obra para violão, instrumento

que, embora não o tocasse, despertou o seu interesse desde a infância, principalmente

através de seu pai que era um violonista amador. Suas composições para o instrumento

são marcadas pela busca constante de uma linguagem pessoal e audaciosa, tornando

cada uma de suas peças um desafio para seus intérpretes.

O conjunto de sua obra tem uma considerável importância dentro do

repertório brasileiro para violão, não havendo, contudo, até o momento, estudos

aprofundados a respeito de suas composições para esse instrumento. É nesse sentido, e

com o intuito de facilitar o acesso da obra para violão de Nobre a um maior número de

id125229140 pdfMachine by Broadgun Software - a great PDF writer! - a great PDF creator! - http://www.pdfmachine.com http://www.broadgun.com

Page 15: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

2

violonistas, que resolvemos elaborar este trabalho sobre Reminiscências Op. 78, uma

das suas mais importantes composições para violão solo.

Reminiscências Op. 78, assim como diversas outras peças de Marlos Nobre,

é marcada por uma forte interação entre elementos da música popular brasileira e da

música contemporânea, fenômeno que gera implicações importantes para as decisões

interpretativas. Já do ponto de vista da execução em si, a peça apresenta diversas

demandas que exigem do executante diversas soluções técnicas para superá-las.

No intuito de vencer tais dificuldades, esse trabalho enfoca exatamente esses

dois aspectos � técnicos e interpretativos � com a finalidade de se chegar, o mais

próximo possível, a uma interpretação que expresse as características peculiares dos

músicos populares ao executarem os gêneros � choro, seresta e frevo � que originaram

cada movimento da peça estudada.

Para se chegar a esse desejado resultado, a digitação é, sem dúvida, de

fundamental importância. Por essa razão, além de levantar dados que contribuam para

contextualizar e fundamentar a execução da peça, realizamos uma nova edição de

Reminiscências Op. 78, com propostas de digitações mais adequadas ao alcance da

referida escolha interpretativa.

A fim de atingir os objetivos propostos, o presente trabalho está estruturado

da seguinte forma:

Capítulo 1 � Contém um estudo sobre a trajetória e o estilo composicional

de Marlos Nobre, no qual é evidenciado o pensamento estético do compositor, bem

como as características de suas diferentes fases.

Capítulo 2 � É feito um levantamento acerca da produção para violão de

Marlos Nobre. Além disso, são apontadas as características de sua escrita para violão e

suas perspectivas acerca do instrumento.

Page 16: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

3

Capítulo 3 � São levantadas informações a respeito de Reminiscências Op.

78. Neste capítulo também é feita uma comparação entre a versão editada pela Henry

Lemoine, o manuscrito e a versão de �Frevo� para piano do próprio, e então justificadas

as escolhas da nossa nova edição da peça.

Capítulo 4 � Contém uma análise musical de Reminiscências Op. 78 na

qual são evidenciados os elementos particulares dos gêneros da música popular

brasileira e da música contemporânea, próprios da linguagem composicional de Marlos

Nobre. Precedendo à análise de cada movimento, é feito um estudo que contextualiza

cada gênero que serviu de inspiração para a peça.

Capítulo 5 � Trata da interpretação de Reminiscências Op. 78 e justifica as

escolhas da digitação e soluções técnicas apresentadas na edição.

No final do trabalho, estão anexadas as entrevistas realizadas com o

compositor, que serviram como fontes ímpares de pesquisa, e a nova Edição de

Reminiscências Op. 78.

Page 17: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

4

CAPÍTULO 1

O Compositor Marlos Nobre

O compositor, pianista e regente Marlos Nobre (1939) pode ser considerado

como um dos grandes expoentes da música brasileira da segunda metade do século XX,

e um dos compositores brasileiros mais reconhecidos no cenário internacional. Os

depoimentos de diversos musicólogos e críticos do Brasil e do exterior atestam a

importância desse compositor no cenário musical. Na opinião do musicólogo David

Appleby, �Marlos Nobre é inquestionavelmente o mais notável compositor

contemporâneo brasileiro. Suas obras representam não só um artesanato do mais alto

nível, mas são produtos de um compositor altamente original e criativo�1. Segundo

Vasco Mariz, Nobre �é, de longe, o compositor brasileiro contemporâneo mais

premiado, mais gravado, mais editado�2. O compositor e crítico Amaral Vieira deu o

seguinte depoimento a respeito de Marlos Nobre:

Este brilhante músico brasileiro vem se dedicando ininterruptamente há mais de 40 anos à arte da composição e é

considerado por muitos como o legítimo sucessor de Heitor

Villa-Lobos no contexto da História da Música Brasileira. Pelo

notável conjunto de seu trabalho e infatigável dedicação à arte

da Música, Marlos Nobre ocupa um lugar de destaque no

cenário da música contemporânea.3

Atualmente, este compositor conta com um catálogo com mais de 240

peças, organizadas em 102 números de Opus, para as mais diversas formações

instrumentais. Sua obra inclui peças para grande orquestra, coro e orquestra,

1 "Marlos Nobre is unquestionably Brazil´s foremost contemporary composer. His works represent not

only craftsmanship of the highest level but are the product of a highly original creative composer. " David Appleby in �Marlos Nobre: Homepage Oficial�, disponível em <http://marlosnobre.sites.uol.com.br/index1_i.html>. Acesso em: 08 de abril de 2006. 2 Vasco Mariz, História Brasileira da Musica, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1994, p. 372. 3 Amaral Vieira in �Marlos Nobre: Homepage Oficial�, disponível em <http://marlosnobre.sites.uol.com.br/index1_i.html>. Acesso em: 08 de abril de 2006.

Page 18: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

5

instrumento solista e orquestra, coro a capella, além de uma substanciosa contribuição

para o campo da música de câmara, escrevendo peças para as mais diversas formações,

tanto as tradicionais quanto outras menos convencionais. Compôs também obras para

instrumentos solo como piano, violão, percussão, viola, flauta, oboé e cello.

Grande parte de sua obra foi escrita com finalidades específicas, seja para

concurso, a pedido de um intérprete, seja para atender a encomendas de instituições

como Companhia Brasileira de Ballet do Rio de Janeiro (1968), Instituto Goethe de

Munique (Alemanha - 1972), Orquestra Sinfônica Brasileira (1973), Guitar Society de

Toronto (Canadá - 1977), Festival de Música de Maracaibo (Venezuela - 1977),

Universidade de Indiana (EUA - 1981), Bicentenário de Simón Bolívar (Venezuela -

1982), Serviço de Radiodifusão Educativa do Brasil (1987), Orquestra de Câmara de

Neuchâtel (Suíça - 1989), Festival Internacional de Música de Bolzano (Itália - 1989),

Ministério de Cultura da Espanha � para o 5º Aniversário do Descobrimento da

América (Espanha - 1992), GHA Records (Bélgica - 1995), Fundação Carlos Gomes do

Pará (Brasil - 1999), Universidade Livre de Música de São Paulo (Brasil - 1999),

Fundação Apollon de Bremen, (Alemanha - 2000 e 2001).

O nome de Marlos Nobre começou a se firmar no cenário musical brasileiro

após uma sucessão de premiações, a partir de 1959, período em que, com apenas 20

anos, ganhou menção honrosa no I Concurso Música e Músicos do Brasil da Rádio

MEC, com o Concertino Op. 1. Em seguida, no mesmo ano, recebeu o primeiro prêmio

no Concurso da Sociedade Cultural Germano-Brasileiro do Recife, com a obra

Nazarethiana Op. 2 para piano solo. Logo no ano seguinte, ganha o segundo prêmio no

Concurso Nacional de Composição da Comissão Estadual de Música de São Paulo, com

o I Ciclo Nordestino Op. 5 para piano solo e, com o Trio Op. 4, conquistou o primeiro

Page 19: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

6

prêmio do II Concurso Música e Músicos do Brasil da Rádio MEC, que lhe valeu a

seguinte crítica do Diário de Notícias do Rio de Janeiro:

Marlos Nobre surge na cena musical brasileira como uma estrela de intensa luminosidade a quem Villa-Lobos parece ter entregado o cetro da criação musical brasileira.

4

Essa crítica foi apenas o primeiro testemunho escrito da comparação entre

Marlos Nobre e Heitor Villa-Lobos, que seria recorrente durante muitos anos, assim

como aqueles foram apenas os primeiros prêmios de uma série de outros que já somam

mais de 40 premiações nacionais e internacionais de composição, tais como:

Broadcasting Music Inc. Award, Nova York, EUA (1961);

Concurso Internacional "Jeunesses Musicales", Rio de Janeiro, Brasil (1962);

Concurso "Ernesto Nazareth" da Academia Brasileira de Música, Rio de Janeiro,

Brasil (1963);

Concurso Nacional de Composição da Escola de Música da UFRJ, Rio de

Janeiro, Brasil (1963);

Prêmio Torcuato Di Tella, Buenos Aires, Argentina (1963);

Prêmio Cidade de Santos, São Paulo, Brasil (1966);

Prêmio do "Jornal do Brasil", Brasil (1966);

Prêmio "Golfinho de Ouro" do Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro,

Brasil (1970);

Prêmio "Personalidade Global da Música", Brasil (1973);

Prêmio UNESCO, Paris, França (1974);

Prêmio Trimalca/UNESCO, Bogotá, Colômbia (1979).

Recentemente, em dezembro 2005, o compositor recebeu o VI Prêmio

Ibero-americano �Tomás Luis de Victoria�, na Espanha. Essa é tida como uma das

maiores premiações da música erudita e, pela primeira vez na história, houve

unanimidade na escolha de contemplado.

4 Marco Tomás, Marlos Nobre: El Sonido del Realismo Mágico. Madrid: Fundación Autor, 2006. p.29.

Page 20: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

7

Nobre também recebeu condecorações e títulos importantes como a

Medalha de Ouro de Mérito Cultural (Pernambuco, 1978), Grande Oficial da Ordem do

Mérito (Brasília, 1988), Oficial da Ordem do Rio Branco (Itamaraty, 1989), Oficial da

�Ordre des Arts et des Lettres� (França). Além desses, recebeu os títulos �Cecil and Ida

Green Honors Professor�, da Texas Christian University (EUA, 2000) e �Thomas Hart

Benton Medallion�, da Universidade de Indiana (EUA, 2000).

Diversas vezes, participou de júris em concursos e festivais de música em

todo o mundo como, tais como: Reine Marie-José Prize, Genebra, Suíça (1978);

Festivais Internacionais de Música Contemporânea da SIMC (New York 1976 de

Montreal 1983); Prêmio ANCONA, Itália (1981 e 1983); Concurso Internacional de

Violão, da Radio France, Paris (1979 e 1980); Prêmio Simon Bolívar, Caracas,

Venezuela (1982); Tribuna Internacional do Filme-Música, Alemanha (1980); Concurso

Internacional de Piano de Santander, Espanha (1987); Arthur Rubinstein Piano Máster

Competition, Israel (1989); Prêmios Nacionais de Música de Colcultura, Bogotá,

Colômbia (1996); Prêmio "Cidade de Alessandria", Itália (1997 e 1999); membro de

Honra do Concurso de contrabaixo "Werther Benzi", Itália (1997).

Foi Professor-Visitante nas universidades americanas de Indiana (1981),

Yale (1992), Arizona (1997), Oklahoma (1997), Geórgia (1999) e na Texas Christian

University (1999). Foi também compositor-residente na Brahms-Haus de Baden-Baden

(1980/1981), em Berlim (1982-1983), a convite do DAAD, e em Nova York

(1985/1986), com a bolsa Guggengeim Fellowship.

Como pianista e regente, atuou principalmente na divulgação de sua própria

música, apresentando-se com orquestras como: Orchestre de la Suisse Romande

(Suíça), Orchestre Philharmonique de Radio France (França); Collegium Academicum

de Genebra (Suíça); Orquesta Filarmónica del Teatro Colón de Buenos Aires

Page 21: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

8

(Argentina); Orquesta Filarmónica de Niza (França); Orquesta Sinfónica de SODRE de

Montevideo (Uruguai); St. John´s Smith Square Orchestra (Inglaterra); Royal

Philharmonic Orchestra (Inglaterra), além das orquestras nacionais de Portugal,

Espanha, México, Caracas, Peru, Guatemala e inúmeras orquestras brasileiras.

Nobre exerceu diversos cargos importantes de direção ou presidência em

instituições como o Instituto Nacional de Música da FUNARTE (1976-1979), Conselho

Internacional de Música da UNESCO (1986-1987), Academia Brasileira de Música

(1985-1993). Foi também membro do Comitê Executivo do CIM/UNESCO (1980-

1989).

Atualmente, o compositor continua em plena atividade e ocupa a cadeira

número 1 da Academia Brasileira de Música, a mesma cadeira que pertenceu a Heitor

Villa-Lobos.

1.1 - Formação

A música de Marlos Nobre reflete muito da diversidade de sua própria

formação. Ele cresceu num ambiente musical bastante rico e diversificado no qual pôde

ter contato com diversas manifestações musicais, as quais acabaram por constituir uma

espécie de tripé que sustentaria sua produção musical posterior: a música brasileira, a

música européia do passado e a música de vanguarda.

A música popular e folclórica brasileira entrou na vida do compositor muito

cedo devido a uma série de razões conjunturais extremamente favoráveis para o seu

desenvolvimento artístico. Sem dúvida, uma dessas razões foi o fato de Marlos Nobre

ter nascido e vivido em Recife que, àquela época, era considerado um dos centros

econômicos e culturais mais importantes do país. Foi nessa cidade que Nobre pôde

Page 22: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

9

manter contato direto com várias manifestações folclóricas, conforme atesta seu próprio

depoimento:

Eu nasci e vivi, até meus 12 anos de idade, na Rua de São João,

bairro de São José, em Recife, onde passavam obrigatoriamente

todas as sociedades de música no Carnaval de Recife, pois no

fim da rua, perto do Gasômetro, estava o Coreto onde os juízes

davam as notas dos vencedores do Carnaval. Assim, desde pequeno tive o contato direto, vivo, vital, com os Frevos das mais diversas e tradicionais sociedades de Frevo de Pernambuco, os Caboclinhos, os Maracatus. Foi importante e formidável impressão e uma formação musical que me alimentou o subconsciente musical para sempre. Algo que tornou-se parte de meu espírito, do meu sangue, da minha

estrutura musical mais profunda5. Somado a isso, o fato de o compositor ser filho de um violonista amador o

levou a freqüentar os saraus dominicais, na companhia de seu pai, onde vários músicos

se encontravam e tocavam os mais diversos gêneros de música popular em voga naquela

época como valsas, choros, maxixes, schottishes, polcas, frevos e baiões.

Por outro lado, desde muito cedo, Nobre também teve uma rígida formação

musical acadêmica � dentro dos moldes europeus � começando a estudar piano aos 4

anos com sua prima Nysia Nobre, que o introduziu ao piano e aos fundamentos da

teoria musical. Nysia era uma professora profissional de piano muito respeitada na

cidade do Recife de então. Esses estudos iniciais foram, posteriormente, aprofundados

em dois centros musicais de grande importância em Pernambuco: o Conservatório

Pernambucano de Música e o Instituto Ernani Braga.

O estudo nesses centros possibilitou ao compositor ter um contato mais

aprofundado com a música dos mais importantes compositores europeus como Bach,

Mozart, Beethoven e Schumann, além do aprendizado formal de teoria musical e

solfejo. A formalidade e conservadorismo de ensino nestes centros não impediram que

Nobre desenvolvesse, ainda muito cedo, as habilidades de improvisação e composição,

5 Vasco Mariz, Três Musicólogos Brasileiros: Mário de Andrade, Renato Almeida e Luiz Heitor Correa

de Azevedo, Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira S. A., 1983, p. 82.

Page 23: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

10

pois, como não tinha muita paciência para a repetição exaustiva de exercícios, ele

próprio criava exercícios através da improvisação6.

Foi também por esse período que o compositor começou a se deparar com

uma idéia, quase que dogmática, disseminada na época: a separação a entre a música

erudita e a música popular, que ele não entendia, mas que, posteriormente, seria objeto

de profunda reflexão e teria um papel central em sua estética. Ainda jovem, tinha o

costume de repetir melodias que ouvia na rua ou improvisar temas populares ao piano, a

contragosto de sua mãe que também era pianista. Mais tarde, aconteceria a mesma

coisa, enquanto estudava no Conservatório Pernambucano de Música, quando foi

duramente advertido pelo diretor da escola que lhe disse: �Aqui é lugar de música séria,

você não pode tocar essa música de rua�7.

Esse impasse permaneceu na vida do compositor até ele ouvir A Prole do

Bebê de Heitor Villa-Lobos, que é uma série de peças para piano baseada em temas

populares infantis. A partir de 1950, Nobre passou a pesquisar a música daquele

compositor, com o intuito de entender aquela separação entre música popular e erudita

que lhe fora imposta. Foi durante essas pesquisas que ele entrou em contato com a

música para piano de Ernesto Nazareth (1863-1934) que combinava diversos estilos,

inclusive, uma forte influência da música de Chopin e da música popular brasileira.

Nazareth acabou por se tornar a principal influência de Nobre em suas primeiras

composições.

Outro fator importante na definição estética de Nobre foi o contato, desde

cedo, quando tinha apenas 13 anos, com as idéias de Mário de Andrade. O compositor

deu o seguinte depoimento lembrando a influência desse pensador em sua formação:

6 Ver Raimundo Magalhães, 16 Variações sobre um tema de Frutuoso Vianna, Opus 8, de Marlos Nobre:

um estudo crítico das características, Dissertação de Mestrado, Universidade Federal da Bahia, 1994, p.16. 7 Apud Bernardo Scarambone, The Piano Works of Marlos Nobre, Tese de Doutorado, Universidade de Houston, 2006, p. 7.

Page 24: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

11

Na minha formação musical, Mário de Andrade representou um

momento decisivo e uma influência profunda. Hoje com o

distanciamento daqueles dias em que tive o primeiro contato com os escritos de Mário de Andrade, vejo ainda mais

claramente o alcance desta influência positiva. (...) Lendo Mário de Andrade, eu me dei conta, deslumbrado da

existência da �música brasileira�, isto é não havia em princípio a

separação da música popular e da clássica ou tradicional, mas sim, cabia aos compositores amalgamá-las em um todo resultante. Quer dizer, pra mim era a solução de um problema

que me angustiava.8 Igualmente importante para a formação musical de Nobre foi o contato que

ele teve com o padre jesuíta Jaime Diniz (1924-1989), um importante pesquisador da

música brasileira, responsável pela direção do Departamento de Teoria do Instituto

Ernani Braga, onde Nobre estudou desde 1954.

Nessa época, Nobre pôde aprender o contraponto sob uma perspectiva

histórica, desde Palestrina até a música do século XX, sob a orientação do Padre Diniz,

que o aconselhava dizendo: �Não perca muito tempo estudando harmonia, pois

harmonia é o resultado das vozes horizontais. Trabalhe o contraponto puro, pois

somente com a polifonia você conseguirá dominar as forças da música�. Segundo

Nobre, �esses estudos deram-me imensa flexibilidade em escrever música polifônica e

politonal, e eu sempre serei muito grato por eles�9. O padre foi um dos incentivadores

para que Nobre escrevesse música e, inclusive, permitiu que ele ouvisse o resultado de

algumas de suas composições com o coro da Igreja Matriz de São José, que dirigia.

Outro contato extremamente salutar para a formação cultural e intelectual de

Nobre foi com José Ignácio, um violinista da Orquestra Sinfônica de Recife que possuía

um vasto acervo de música contemporânea. Com ele, Nobre pôde ter acesso às mais

recentes produções musicais de então, e adquirir um conhecimento incomum para um

estudante brasileiro naquela época. Ignácio, além de conhecer e trocar correspondências

8 Vasco Mariz, Op.Cit. pp. 82-83. 9 �These studies gave me immense flexibility in writing polyphonic and polytonal music, and I�ve always

been very grateful for them�. Marlos Nobre Apud Bernardo Scarambone, Op.Cit. p.10.

Page 25: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

12

com alguns dos mais destacados compositores europeus, recebia diversas partituras e

gravações de novas obras diretamente desses compositores. Nobre freqüentou

assiduamente os encontros semanais que José Ignácio organizava para a discussão das

novas tendências musicais da época, além de poder ouvir e estudar peças de

compositores como Stravinsky, Messiaen, Bartók, Prokofiev, Webern, Berg,

Schoenberg e até as primeiras peças de Stockhausen.

Nobre concluiu seus estudos no Conservatório Pernambucano de Música e

no instituto Ernani Braga em 1956 e 1958, respectivamente. De toda essa época de

formação, entretanto, a única peça que ele preservou em seu catálogo foi o seu

Concertino Op. 1 para piano, composto quando ele tinha 19 anos. O restante das peças,

que incluíam até missas e sinfonias completas, foram destruídas pelo compositor.

A partir desse momento, uma série de conquistas fez com que Nobre se

empenhasse cada vez mais na composição e vencesse diversas premiações que, além da

projeção, proporcionaram a ele entrar em contato com duas figuras centrais da música

brasileira de então, os compositores Mozart Camargo Guarnieri (1907-1993) e Hans

Joaquin Koellreutter (1915-2005), que também tiveram um importante papel na

formação de Nobre. Esses compositores representavam duas correntes opostas que

dominaram a cena musical brasileira da década de 50: o primeiro defendia uma estética

nacionalista, enquanto o segundo pregava o uso de técnicas de vanguarda e uma música

mais universalista. O conflito deflagrado entre esses dois compositores culminou, em

1950, com a Carta Aberta aos Músicos do Brasil na qual Guarnieri criticava

publicamente a corrente difundida por Kollreutter. Foi uma época de intensos debates

públicos que acabaram por dividir os compositores brasileiros entre os nacionalistas e

universalistas durante os vários anos que se seguiram.

Page 26: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

13

O contato de Nobre com Koellreutter deu-se após a sua vitória no Concurso

da Sociedade Cultural Germano-Brasileira, que lhe valeu a oportunidade de realizar um

curso de um mês com o famoso compositor alemão num festival de música na cidade de

Teresópolis. Koellreutter introduziu várias novas correntes da música européia no

Brasil, inclusive os conceitos de música serial e dodecafônica. Foi uma figura decisiva

nos rumos que tomaram a composição no país, além de ter sido professor e guia

intelectual de muitos dos compositores brasileiros como César Guerra-Peixe (1914-

1993), Eunice Catunda (1915-1978), Cláudio Santoro (1919-1989), Esther Scliar (1926-

1978), Olivier Toni (1926), Edino Krieger (1928), entre outros.

Koellreutter foi muito aclamado por trazer novos conhecimentos oriundos

da vanguarda européia para o Brasil, mas, por outro lado, costumava impor tais

processos aos jovens compositores. Ademais, ele era contra o nacionalismo musical e

chegou a dizer a Nobre: �Você é um compositor dodecafônico nato, esqueça estes

�sambinhas� da música brasileira�10.

Um ano após o contato com Koellreutter, Nobre ganhou uma bolsa que lhe

proporcionou estudar em São Paulo com Camargo Guarnieri, que representava uma

linha estética oposta a de Koellreutter. Seu novo professor era contra as recentes

técnicas de criação, como o serialismo, e acreditava que o compositor deveria guardar

uma identidade brasileira através do estudo e do uso do folclore do país. No entanto,

Nobre considerava nacionalismo de Guarnieri demasiadamente artificial e acadêmico.

Além do mais, a personalidade impositiva de seu professor o fez abandonar seus

estudos e ir para o Rio de Janeiro continuar sua carreira.

A estreiteza e rigidez do pensamento de Koellreutter e Guarnieri

impulsionaram Nobre a seguir o seu próprio caminho, mantendo-se com uma estética

10 Marlos Nobre Apud Bernardo Scarombone, Op. Cit. p. 13.

Page 27: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

14

independente, sem se associar a nenhum dos dois seguimentos. Não abandonou,

contudo, suas experiências rítmicas com a música brasileira oriundas de sua formação,

nem tampouco desprezou as descobertas que as novas técnicas traziam. A esse respeito,

disse o compositor: �ora, desta dualidade é que eu tirei meu próprio caminho, segui em

frente, portanto, tirando dos dois aquilo que me era útil e descartando o inútil, ou seja,

os preconceitos estéticos�11.

Muitas questões estéticas para as quais Nobre buscava respostas puderam

ser amadurecidas, a partir de 1964, após ganhar uma bolsa da fundação Rockerfeller

para estudar no Instituto Torcuato di Tella em Buenos Aires onde estudou com Alberto

Ginastera (1916-1983), Aaron Copland (1900-1990), Luigi Dallapiccola (1904-1975),

Olivier Messiaen (1908-1992), Ricardo Malipiero (1914) e Bruno Maderna (1920-

1973).

Nobre considera Ginastera como o seu principal professor de composição:

As idéias de Ginastera muito se identificavam com as minhas,

ele achava que o compositor não podia abdicar das suas

tradições só porque queria ser moderno... Não fazia nenhum sentido imitar Boulez ou Stockhausen só pra ser serialista... era

ridículo esquecer que era brasileiro e também ignorar o que

estava acontecendo no mundo(...) em Ginastera encontrei um professor que me completava.12

Ginastera tinha um pensamento estético a respeito da música nacional

semelhante às idéias de Mário de Andrade que influenciaram Nobre. Tanto Ginastera,

com seu conceito de �nacionalismo subjetivo�, quanto Andrade, com o �nacionalismo

inconsciente�, acreditavam que o uso dos elementos musicais nacionalistas deveriam ser

usados pelos compositores de forma natural e espontânea, não intencional e consciente.

11 Marlos Nobre Apud Bernardo Scarambone, Op.Cit. p.16. 12 Marlos Nobre Apud Vanessa Rodrigues da Cunha, �A Influência da Música Folclórica e Popular em

Três Obras para Piano de Marlos Nobre: um Estudo Comparativo das Constâncias Técnicas e Estéticas na

Formação de um Estilo�, Dissertação de Mestrado, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1997, p.6.

Page 28: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

15

Durante os dois anos de estudos no Instituto Torcuato Di Tella, Nobre

absorveu diferentes ensinamentos de cada um dos professores com quem teve contato:

de Messiaen, a importância do ritmo; de Dallapiccola, a relação entre texto e música;

com Malipiero e Ginastera, desenvolveu as técnicas dodecafônicas e seriais. Segundo

Nobre, o período que ele passou, em Buenos Aires, entre 1964 e 1965, foi decisivo para

a sua carreira internacional.

Ao retornar ao Brasil em 1965, Nobre já era um compositor com uma forte

personalidade e domínio técnico, já tendo escrito peças do vulto de Divertimento Op. 14

para piano e orquestra, Variações Rítmicas Op.15, para piano e percussão e

Ukrinmakrinkrin Op. 17, para voz, sopros e piano. Nos anos que se seguiram continuou

a desenvolver uma intensa carreira como compositor, tendo suas obras tocadas em

diversos países e o seu trabalho cada vez mais reconhecido.

1.2 - Estética e Fases Composicionais de Marlos Nobre

Marlos Nobre, durante sua trajetória, mostrou-se um compositor preocupado

com a criação de uma linguagem própria, sem rechaçar as músicas do passado, mas

aberto às novas tendências da música contemporânea. Nessa busca por uma expressão

própria, o compositor explorou diversas tendências e técnicas, porém, apesar do

complexo de estilos utilizados, a música de Nobre possui características que guardam

uma forte identidade nacional, especialmente em relação à música nordestina, com a

qual ele teve contato direto durante sua formação. Segundo ele,

o compositor é uma esponja que absorve, durante as diferentes

etapas de sua vida e do seu processo criador, as mais variadas influências. Nenhum compositor repetirá jamais as mesmas experiências auditivas de outros, daí resultando a formação de

um estilo pessoal e peculiar em cada verdadeiro criador. Minha música é, assim, o resultado do meu subconsciente, que

Page 29: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

16

armazenou e absorveu as mais variadas influências,

selecionando-as e filtrando-as.13

A despeito do uso de elementos nacionais em sua música, Nobre não segue

os preceitos do nacionalismo, aliás, ele sempre se manteve no cenário nacional como

uma figura independente não se filiando a nenhuma corrente. Ao contrário do que

pregavam os compositores de orientação nacionalista, ele nunca estudou formalmente o

folclore. Em geral, o uso dos elementos da música nacional em suas composições é feito

de forma inconsciente ou natural, sem a intenção de �soar brasileiro�. Por essa razão, o

compositor diz que faz música �nacional� e não �nacionalista�.

A postura estética de Nobre é a de buscar um equilíbrio entre o uso das mais

diversas técnicas composicionais e de elementos nacionais, sempre em favor da

expressão. Assim, busca evitar um nacionalismo exaltado e unilateral, ou o

artificialismo de muitos compositores contemporâneos que partem de princípios

teóricos para fazer música. Nobre usa, em sua obra, um complexo de técnicas, estéticas

e impressões sonoras que são habilmente combinadas, mas normalmente com liberdade,

objetivando a comunicabilidade de idéias e emoções, conforme atesta a seguinte

declaração do compositor:

Não sinto a necessidade de me auto-definir esteticamente. Os compositores de hoje, sobretudo os mais jovens, sentem desesperada necessidade de se auto-definirem, se auto-catalogarem. Assim as definições de pós-serialista, minimalistas, maximalistas, microtonalistas, os adeptos da música �espectral�, da composição �instantânea�, da música

�acusmática�, o poli-estilismo, a nova-complexidade, a nova-simplicidade, o neo-expressionismo, o neo-Romantismo e até o

neo-neo-Classicismo! Sempre tive a sensação de frustração intelectual e um

sentimento de fraude estética frente a este emaranhado de auto-definições que são apenas noções genéricas mais do que

verdadeiras tendências estéticas do nosso tempo. (...)

13 Marlos Nobre, �Minhas convicções musicais� in Home Page Oficial de Marlos Nobre, disponível em

<http://marlosnobre.sites.uol.com.br>.

Page 30: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

17

Minha Linguagem é �impura� mas a prefiro assim, e viva, com as contradições próprias da nossa existência, do que �pura� e

morta. Só escrevo aquilo que penso valer a pena de transmitir, e se esta transmissão possuir alguma energia real e uma verdadeira

emoção, que torne melhor a vida de quem por acaso entrar em

contato com ela. Minha estética seria comunicar esta energia.

14 Entre as linguagens musicais tradicionais e de vanguarda que Nobre

conheceu e estudou � desde a música dos antigos mestres até as mais recentes

tendências � ele elege e usa aquelas que são mais apropriadas para sua obra. O

compositor espanhol Tomás Marco (1942) � autor do primeiro livro que trata da figura

e música de Nobre em profundidade � vê essa atitude não exatamente como um

�ecletismo�, mas o reflexo de um processo muito elaborado e pessoal de �síntese�15.

Outra característica marcante desse compositor é o fato de ele acreditar que

uma obra deve chegar a suas metas pelos meios mais simples, renunciando a qualquer

complicação gratuita. Com essa perspectiva, a maioria das composições de Nobre são

produzidas a partir motivos aparentemente despretensiosos, mesmo aquelas de maior

complexidade.

Por essa razão, a repetição e a variação têm uma importância fundamental

em toda a sua obra. Muitas vezes, a partir do desenvolvimento de um único motivo,

Nobre é capaz de criar uma peça inteira ou, por vezes, mais de uma, como se uma única

não fosse suficiente para explorar as possibilidades expressivas de um tema. A partir do

motivo inicial de Homenagem a Villa-Lobos, por exemplo, compôs a Sonata Breve para

piano solo, o terceiro movimento do Concerto Op. 82, além das mais de trinta peças da

série Desafios Op. 31, cada uma para uma formação instrumental diferente. Apesar do

14 Marlos Nobre Apud Maria Luiza Corker-Nobre, �Aspectos Técnicos e Estéticos de Sonâncias III de

Marlos Nobre: uma Introdução à Problemática da Intuição Versus Cerebralismo�, Dissertação de

Mestrado, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1995, p. 45. 15 Tomás Marco, Marlos Nobre: El Sonido del Realismo Mágico, Madrid: Fundación Autor, 2006, p. 145.

Page 31: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

18

uso do mesmo material temático, cada uma dessas peças revela características

peculiares que as tornam independentes umas das outras.

O processo composicional de Nobre começa a partir de uma idéia musical

que, segundo ele, brota de seu subconsciente, inicialmente de forma espontânea, errática

ou ainda selvagem. Posteriormente, se inicia o processo da composição em si, que seria

o de ordenar e organizar, de forma coerente, esses impulsos primários. A forma de cada

peça seria, portanto, uma conseqüência do desenvolvimento de cada uma das idéias.

Por fim, a seguinte declaração do compositor resume o processo

composicional e seu pensamento a respeito de suas próprias convicções musicais:

A busca do compositor de realizar uma verdadeira obra de arte deve basear-se no perfeito equilíbrio entre espontaneidade e

trabalho intelectual, entre intuição e lógica consciente; entre

fluência e arquitetura formal; entre repouso e dinamismo; entre a

perfeita junção das partes e suas feições individuais; entre

continuidade e audácia; entre economia e riqueza de detalhes;

entre concentração e extrapolação máxima das possibilidades

das idéias; entre maestria do �métier� e inovação técnica, entre

contínua experimentação sem perder jamais a lógica do discurso

sonoro.16

Cronologicamente, a produção de Nobre costuma ser dividida em cinco

fases com diferentes características. No entanto, o próprio compositor adverte que

em meio de uma seqüência bastante lógica de obras compostas

dentro de uma linha evolutiva, aparecem de repente obras que, em aparência, nada têm que ver com as anteriores. Pertencem a

momentos precedentes, algo assim como frutos tardios de uma coisa interrompida.17

A primeira fase, que vai de 1959 até 1963, inclui as peças compostas desde

Concertino Op. 1 até o Divertimento Op. 14. Essa fase representa a formação da

16 Marlos Nobre, �Minhas convicções musicais� in Home Page Oficial de Marlos Nobre, disponível em

<http://marlosnobre.sites.uol.com.br>. 17 �en medio a una secuencia bastante lógica de obras compuestas dentro de una línea evolutiva, aparecen

de repente obras que, en apariencia, nada tienen que ver con las anteriores. Pertencen a momentos precedentes, algo como frutos tardíos de una cosecha interrumpida. Marlos Nobre, apud André Pardo

Valdés, �Nueve Perguntas a Marlos Nobre� in Revista Musical Chilena, XXXIII No. 148 (1979), p. 40.

Page 32: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

19

personalidade musical de Nobre e é marcada pela influência de Villa-Lobos e,

especialmente, de Nazareth. Esse fenômeno torna-se evidente especialmente no

Concertino Op. 1, Nazarethiana Op. 2 e no Trio Op. 4.

Outro traço característico dessa fase é a presença mais direta de elementos

provenientes da música popular e folclórica vivenciada pelo compositor durante sua

formação, como pode ser observado no I Ciclo Nordestino Op. 5 para piano solo e nas

canções para voz e piano.

As suas primeiras peças se inserem ainda dentro de um sistema tonal, mas

com expansões e, posteriormente, com inclusão de elementos politonais, atonais e

seriais. Diz o compositor que:

À medida que meu campo de informação musical � estética e

tecnicamente � foi se ampliando, mediante a incorporação de

novos elementos, estes foram submergindo em meu subconsciente, e ali permaneceram expandindo-se, movendo-se até tomar corpo em novas idéias, uma confusão geral, estalando

aqui e ali em obras, segundo as circunstâncias.18

A segunda fase é marcada pelo início dos estudos em Buenos Aires, em

1963, e abrange as composições feitas até o ano de 1968. As obras desta fase mostram

uma predominância do uso de técnicas seriais e dodecafônicas, mas nunca de forma

estrita. Apesar da utilização dessas técnicas de forma mais ostensiva em sua obra, a

presença rítmica da música brasileira não foi abandonada nessa fase. Inclusive, a

percussão foi usada em diversas obras importantes desse período, como em Variações

Rítmicas Op. 15 para piano e percussão, e Rhythemetron Op. 27 para conjunto de

percussão.

18 � a medida que mi campo de información musical � estética y técnicamente � fue ampliando, mediante la incorporación musical de nuevos elementos, éstos fueron sumergiéndose en mi subconsciente, y allí

permanecieron expandiéndose, movindose hasta tomar cuerpo en nuevas ideas estallando aquí y allá en

obras, según las circunstancias� Marlos Nobre, apud André Pardo Valdés, Op. Cit. p. 41.

Page 33: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

20

A peça mais importante dessa fase é a cantata, inspirada na temática

indígena, Ukrimakrinkrin Op. 17 para soprano, sopros e piano. Nessa cantata, que foi

dedicada a Alberto Ginastera, o compositor faz uso de técnicas dodecafônicas, seriais e

aleatórias. Segundo Scarambone �a maioria das composições de Nobre deste período

exibem rebeldia e características violentas. Nobre queria romper com os maneirismos

encontrados enquanto estudava no Brasil�19.

A terceira fase é marcada pela integração dos processos das fases anteriores,

portanto um equilíbrio entre o período de formação e o período de maior

experimentalismo. Esta fase situada entre Concerto Breve Op. 33, de 1969 e

Homenagem a Villa-Lobos Op. 46 de 1977. Segundo Vasco Mariz, nessa época a

música de Nobre �demonstra uma integração dos processos politonais e já notável a

evolução de maturidade para um compositor entre os 30 e 40 anos de idade�20. As

principais obras dessa fase são Concerto Breve Op. 33, Ludus Instrumentalis Op. 34,

Mosaico Op. 36, O Canto Multiplicado Op. 38 e In Memoriam Op. 39.

A quarta fase vai de 1980 até 1989, incluindo as peças desde Yanomâni Op.

47 até o Concerto para Trompete Op. 74. Este período é marcado por uma liberdade dos

padrões rítmicos do nordeste e, no plano harmônico, a linguagem se torna mais densa e

compacta, entretanto sem desprezar completamente os elementos tonais. A estrutura

formal exclui a utilização dos esquemas clássicos, mas mantém um contínuo

desenvolvimento das idéias e conserva uma forte lógica interna.

As principais peças desta fase foram Yanomâni Op. 47, Sonâncias II Op. 48,

Sonâncias III Op. 49, Concerto para Cordas II Op. 53 e Cantata do Chimborozo Op. 56

e Tango Op. 61.

19 �The majority of Nobre�s compositions from this period exhibit rebellious and violent characteristics�. Bernardo Scarambone, Op.Cit. p. 29. 20 Vasco Mariz, Op. Cit. p.373.

Page 34: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

21

A última fase do compositor vai desde Concertante do Imaginário Op. 74

de 1989 até os dias de hoje. O compositor delineia as características deste período pela

�franca adoção de estruturas tonais, com a utilização de formas mais amplas, uma maior

presença melódica e uma mistura constante entre elementos tradicionais e

contemporâneos, fundidos e sintetizados em minha própria linguagem�21.

Além do Op. 74, outras peças importantes são Xingu Op. 75, Columbus Op.

77, Reminiscências Op. 78, Amazônia Ignota Op.95, Concerto Duplo Op. 82 e

Kabbalah Op.96.

Hoje, o compositor, aos 68 anos, continua em plena atividade e diz que sua

música atual é �cada vez mais um reflexo profundo�22 de si mesmo. Ele compõe sem

necessariamente se preocupar com estética ou técnica, simplesmente deixa fluir

naturalmente sua escrita.

21 Marlos Nobre Apud Ingrid Barancoski, �The Interaction of Brazilian National Identity and

Contemporary Musical Language: the Stylistic Development in Selected Piano Works by Marlos Nobre�, Tese de Doutorado, Universidade do Arizona, 1997, p. 56. 22 Bernardo Scarambone, Op.Cit. p. 141.

Page 35: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

22

CAPÍTULO 2

A Obra para Violão de Marlos Nobre

Apesar de não ser violonista, Marlos Nobre tem dedicado diversas peças

importantes para o violão. O primeiro contato do compositor com esse instrumento deu-

se já na sua infância, através de seu pai, um violonista amador. Talvez, dessa ligação

afetiva com o violão tenha resultado o grande interesse de Marlos Nobre pelo

instrumento. Numa entrevista à revista inglesa Classical Guitar, o compositor recorda

com carinho a sua admiração pelo pai e sua relação com o violão:

Tarde da noite, depois de um dia cansativo de trabalho, ele [o pai do compositor] costumava pegar seu violão e tocar durante

horas. Minha mãe me disse que, desde que eu tinha três anos de

idade, eu fui atraído pela música dele. Me lembro claramente

que, desde minha mais tenra infância, eu escutava encantado o

meu pai tocar, entre outras coisas, a Adelita de Tárrega. Ele

adorava ouvir as gravações de Segovia comigo ao lado. Ele ouvia aqueles discos dia após dia.

23

Num outro trecho da entrevista24, o compositor lembra-se de quando ia

acompanhando o pai em saraus dominicais onde se tocava os mais diversos gêneros em

voga na época, tais como valsas, choros, maxixes, schottishes, polcas, frevos e baiões.

Nesses encontros, podiam-se ver vários violonistas tocando solo, em duo, trio, quarteto

e até em grupos com mais de quinze violões. Nobre lembra, ainda, que o pai dele lhe

chamava a atenção para a técnica da mão direita dos melhores executantes, mostrando

como diversas vozes podiam soar simultaneamente. Esse fato ficou marcado na

23 �Late at night, after a tiring day at the accounts, he used to take his guitar and play it for hours. My

mother told me that since I was three years old I had been attracted to his music. I remember clearly that since early childhood I listened, delighted, to my father playing, among other things, Tárrega´s Adelita.

He loved to listen to Segovia recordings, with me nearby. We listened to those records day after day.� Colin Cooper, �Marlos Nobre: Speaking Internationally� in Classical Guitar Volume 12 No. 3

(Novembro, 1993) p. 11. 24 Ibidem pp. 11-12.

Page 36: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

23

lembrança do compositor e o influenciou em muitas de suas peças posteriores, como

poderemos constatar mais adiante.

A relação afetiva, feita por Marlos Nobre, entre seu pai e o violão fica

evidente na peça orquestral In Memoriam Op. 39,25 escrita em homenagem ao pai.

Nessa peça, o compositor usa as seis primeiras notas (Mi, Ré#, Si, Ré, Dó, Fá#) da valsa

Adelita de Francisco Tárrega (1854-1909) que, conforme relato, Nobre ouvira o pai

tocá-la diversas vezes. Em In Memoriam, Nobre usa o violão em meio à massa

orquestral, tocando um arpejo em cordas soltas, num dos trechos mais dramáticos da

música, fazendo clara referência às lembranças de sua infância.

De fato, o compositor vem escrevendo uma obra para violão bastante

extensa e de grande valor artístico. Vale ressaltar que é incomum compositores não

violonistas dedicarem um número tão grande e variado de peças para o violão como

Nobre fez, pois, em geral, eles compõem apenas uma ou duas peças sob encomenda, ou

através de um trabalho conjunto entre determinado compositor e um intérprete

específico.

Aliás, a prática de compositores não violonistas escreverem para o violão é

bastante recente. Segundo Norton Dudeque, em seu livro História do Violão, somente

em 1920, com Homaje Pour le Tombeau de Claude Debussy de Manuel de Falla (1876-

1946), se inicia �a produção de um repertório para o violão de alta qualidade musical,

geralmente composto por compositores não violonistas�26. Segundo Mario Ulloa:

A partir daí, a literatura violonística começou a beneficiar-se com os desafios propostos por essa categoria de compositores. Muitas restrições técnicas da época estão hoje superadas, em

parte, graças às exigências e imaginação sonora desses

compositores e ao empenho dos intérpretes em resolver esses

requerimentos.27

25 In Memorian Op. 39 foi composta em 1973 e revisada em 1976. 26 Norton Dudeque, História do Violão, Curitiba: Editora da UFPA, 1994, p. 85. 27 Mario Ulloa, �Recursos Técnicos, Sonoridades e Grafias do Violão para Compositores Não

Violonistas�, Tese de Doutorado, Universidade Federal da Bahia, 2001, p. 1.

Page 37: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

24

Tradicionalmente, o repertório para violão divergia do composto para os

outros instrumentos, pois se limitavam às peças dos próprios violonistas que nem

sempre eram grandes compositores. Essa situação havia criado um isolamento do

instrumento que acabou por perder a possibilidade de compositores da estirpe de Claude

Debussy, Maurice Ravel, Bela Bartok, entre outros, escreverem para o instrumento.

Entretanto, a partir das transformações desse cenário, foi-se desenvolvendo uma maior

interação, entre intérpretes e compositores não violonistas, que resultou algumas das

mais importantes peças do repertório para violão, a exemplo de Variações sobre a Folia

de Espanha (Manuel Ponce), Noturnal Op. 70 (Benjamin Britten), Sonata Op. 47

(Alberto Ginastera), Sequenza XI (Luciano Berio).

Marlos Nobre tem plena consciência da importância desse envolvimento e,

segundo ele, os violonistas não são, necessariamente, os melhores compositores para o

instrumento, pois o compositor violonista normalmente trabalha baseado em elementos

que já são padrões no instrumento, além de se limitar a tudo aquilo que é �violonístico�,

caindo, dessa forma, em clichê ou ficando deficiente de imaginação musical. Afirma,

contudo, que existem raras exceções, citando como exemplo o caso do violonista e

compositor cubano Leo Brouwer (1939)28.

Nobre admite a dificuldade de escrever bem para o violão, mas diz:

�Desenvolvi, com o tempo, um tal conhecimento dele que escrevo diretamente para o

papel pensando no instrumento�29. Em um depoimento dado em um fórum de discussão

na internet, ele explica o seu processo de escrita para violão da seguinte forma:

Fico com o instrumento ao lado para compor para ele, e simplesmente o coloco na minha mente como meta. Exploro as possibilidades, às vezes, diretamente no instrumento, mas a

28Colin Cooper, �Marlos Nobre: Op. Cit. p. 12. 29 Marlos Nobre, in Forum Allegro, mensagem número 37, 25 de outubro de 2003, acessado em 15 de janeiro de 2006.

Page 38: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

25

seqüência, a fluência é fruto de outra lógica, a composição

real.30 O pensamento de Nobre, a respeito da postura do compositor ao escrever

para o violão, é consoante com o pensamento de um de seus professores, o compositor

argentino Aberto Ginastera, que acreditava que o compositor deveria escrever grandes

peças para o violão e não se limitar apenas a pequenas peças características. Nobre diz:

O compositor não violonista normalmente tem medo de

escrever livremente para o violão, porque ele não é um

especialista. No entanto, é possível que este sentimento

negativo tenha uma influência negativa em sua mente e ponha

um fim em sua inspiração e imaginação. Ao mesmo tempo,

entretanto, o compositor tem que liberar sua imaginação

enquanto respeita as limitações e possibilidades do violão. Mas

isto não é sempre verdadeiro para qualquer outro

instrumento?31

Acrescenta ainda que �o compositor deve procurar sempre ter audácia e

impertinência quando for escrever para violão�32, isto é, através do desprendimento do

compositor às peculiaridades do violão, juntamente com sua ousadia, haveria maior

liberdade para compor, evitando assim limitações à atividade criativa do autor. Além

disso, deve procurar manter sua independência na busca de novas soluções, novas

possibilidades e criar novas idéias para o instrumento.

Observa o violonista Fábio Zanon que, como resultado da audácia de Nobre,

sua obra para violão, que ao todo cobre 30 anos de produção artística, atesta

sua imaginação poderosa e o coloca como um verdadeiro

herdeiro de Villa-Lobos, em sua escrita detalhada, robusta realização instrumental e perfeito equilíbrio entre a cor local e

30 Ibidem. 31�The non-guitarist composer is normally afraid to write freely for the guitar, because He is not a

specialist. Thus it is possibly that this negative feeling will have a negative influence in his mind and so put an end to his inspiration and imagination. At the same time, however, the composer must liberate his ideas while respecting the limitations and possibilities of the guitar. But is this not always true for any other instrument?� Colin Cooper, �Marlos Nobre: Op. Cit., p. 12. 32 �The composer must always have audacity and impertinence regarding the guitar� Ibidem, p.12.

Page 39: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

26

as necessidades de um argumento formal de maiores proporções.

33

A obra para violão de Marlos Nobre abarca quase todos os seus períodos

composicionais. Ao todo, são 43 peças que utilizam o violão, as quais podem ser

classificadas em:

a) Violão solo;

b) Duo de violões;

c) Conjunto de violões;

d) Violão e voz;

e) Violão e coro;

f) Violão e orquestra;

g) Formações diversas incluindo o violão.

2.1 - Obra para violão solo

A primeira peça original para violão solo foi Momentos I Op. 41 No. 1,

composta em 1974, portanto, pertencente ao terceiro período criativo do compositor.

Essa peça foi feita sob encomenda do Ministério de Assuntos Exteriores do Brasil e foi

dedicada ao violonista Turíbio Santos (1943) que a estreou no mesmo ano na Queen

Elizabeth Hall de Londres. Santos, naquela época, era um dos mais destacados

violonistas brasileiros e já vinha incentivando Nobre a compor para o instrumento.

Apesar de ser a sua primeira peça escrita para violão solo, o compositor já

demonstra uma refinada concepção instrumental, indicando, ao mesmo tempo, grande

inventividade e domínio dos recursos do violão, explorando alguns efeitos sonoros

33 Fábio Zanon, �O Violão no Brasil depois de Villa-Lobos�, artigo disponível em:

<http://vcfz.blogspot.com/2006/05/o-violo-no-brasil-depois-de-villa.html>, acesso em: 01 de maio de 2006.

Page 40: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

27

interessantes como: pizzicato alla Bartók; mudança da afinação de uma corda do violão

durante a execução; uso de sons em harmônicos naturais e artificiais; uso de rasgueados;

exploração da ressonância natural do instrumento; uso do acordes explorando cordas

soltas, entre outros.

Nessa peça, o compositor elabora uma intrincada organização interna,

inclusive fazendo um uso livre da técnica serial, apesar de sugerir uma música

espontânea. Nesse senso, Paulo de Tarso Salles comenta sobre Momentos I:

Sob a aparente �casualidade� de sons de berimbau, timbres

�estranhos�, desafinações, afinações, o aparente caráter

improvisatório (talvez decorrente de sua recusa a qualquer elemento polifônico) e o próprio título evocativo (�momentos�

soa demasiado íntimo e desvinculado de qualquer forma

tradicional), o compositor tece discretamente uma teia de elementos da linguagem musical �pura�, que alimenta-se dialeticamente dos ornamentos que nervosamente se agitam em sua superfície

34.

Apesar de as quatro primeiras peças da série Momentos terem sido escritas

em um espaço de seis anos, elas foram concebidas como uma unidade e, mesmo tendo

cada uma das peças uma personalidade individual e freqüentemente serem tocadas

como peças separadas, o compositor afirma que só quando tocadas em conjunto a obra

será completamente entendida. Neste sentido, afirma o compositor que �existe um

conceito de unidade, de coerência musical e continuidade em diferentes elementos

dessas peças que apenas podem ser percebidas como um todo�35.

A segunda peça do ciclo, Momentos II Op. 41 No. 2, é de 1975 e também foi

dedicada a Turíbio Santos que a estreou na Sala Gaveau de Paris em 1978. O caráter

aparentemente improvisatório, referido em Momentos I, também pode ser observado

naquela peça, assim como em todas as outras do ciclo. A indicação Con fuoco no início

34 Paulo de Tarso Salles, �Momentos I (1974) para Violão de Marlos Nobre: Síntese e Contraste� in

PerMusi Volume 7 (2003), p. 50. 35 �There exist a concept of unity, of musical coherence and continuity in the different elements of those

pieces that can only be perceived as a whole�. Colin Cooper, Op. Cit., p. 12.

Page 41: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

28

da partitura já dá uma idéia do seu caráter vigoroso que é entrecortado por trechos em

andamento lento. A escala cromática é utilizada em toda a peça de forma ostensiva

numa espécie de motto-continuo, gerando uma grande tensão.

Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4:

Já Momentos III Op. 41 No. 3 para violão solo, foi composta em 1976

atendendo à encomenda da The Guitar Society of Toronto e também estreada por

Turíbio Santos � a quem está dedicada � em Toronto, no MacMillan Theatre, no ano de

1978. Essa peça tem um caráter lírico e pode-se dizer que há nela certa lembrança da

música seresteira feita no Brasil, a qual Nobre pôde ouvir com freqüência quando era

jovem. Assim como em outras peças dessa fase composicional, a referência folclórica

ou à música popular brasileira não é feita de forma direta, mas sugerida, de forma

implícita, sendo, muitas vezes, feitas até inconscientemente.

Momentos IV Op. 54 só foi escrita em 1982 e estreada no ano seguinte, mais

uma vez por Turíbio Santos no Odeon Theatre de Ottawa, Canadá. Essa peça é definida

pelo compositor como �um tipo de �toccata� ou �rondó-toccata� desenvolvendo uma

única idéia obsessiva�36. O ritmo que sugere o jongo, pela alternância entre o compasso

36 �a kind of �toccata� or �rondó-toccata�, developing a single obsessive idea�. Colin Cooper, Op. Cit., p. 12.

Page 42: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

29

6/8 e 3/4, é recorrente em diversos momentos da peça. Também constante é o uso da

sexta corda solta do violão, que está presente em praticamente todos os compassos da

música.

Assim, em Momentos I-IV, pode-se observar um arcabouço de uma sonata

para violão: O primeiro movimento (Momentos I), de caráter solene e introdutório,

apresenta uma estrutura formal semelhante à sonata clássica37; o segundo movimento

(Momentos II), uma espécie de scherzo; o terceiro (Momentos III), lento e mais lírico; e,

o quarto movimento (Momentos IV), uma espécie de rondó.

A série Momentos para violão solo foi planejada inicialmente para ser em 12

números, divididas em três grupos de quatro peças cada. Até o momento, só foi

publicado o primeiro grupo, Momentos I-IV, editados pela Max Eschig, em Paris. O

restante da série está em processo de revisão e deverá ser publicado em breve. Aliás, é

um procedimento comum no processo composicional de Nobre: conceber a peça num

determinado momento e só posteriormente escrevê-la e revisá-la.

Existe uma gravação de Momentos I Op. 41 No. 1 com Turíbio Santos ao

violão e outra gravação, pela EMI, do ciclo Momentos I-IV por Sérgio e Odair Assad

num LP intitulado Yanomami, apenas com músicas de Marlos Nobre.

Outra peça central da obra violonística de Nobre é a Homenagem a Villa-

Lobos Op. 46, composta em 1977, dedicada ao violonista Dagoberto Linhares que a

estreou no ano seguinte no Alice Tuly Hall, Lincoln Center, em Nova York. Essa

composição foi ainda peça obrigatória em um dos maiores concursos de violão da

época, o XXI International Guitar Competition da Rádio France de Paris, em 1979.

37 No artigo Momentos I para Violão de Marlos Nobre: Síntese e Contraste, Paulo Salles, demonstra com detalhes como estaria estruturada a sonata-forma clássica em Momentos I. Segundo o autor �esta atitude,

algo neoclássica, não só condiz com a formação do compositor, como resulta em maior clareza formal,

contraposta à inebriante variação tímbrica�.

Page 43: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

30

Como o título evidencia, trata-se de uma homenagem ao compositor

brasileiro Heitor Villa-Lobos, na qual o tema do Prelúdio No. 4 para violão solo, desse

compositor, aparece transformado, sendo o germe inicial para o desenvolvimento da

peça. Segundo Nobre, �A �Homenagem� seria assim uma espécie de eco amplificado do

motivo citado, o qual é, por sua vez, encontrado em certas regiões da Amazônia

brasileira, segundo declarações do próprio Villa-Lobos�38.

Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos Nobre), comp.1:

O citado motivo, que foi base para a composição dessa homenagem,

também será usado, de forma bastante diversa, em outras peças posteriores, num

processo já explicado no capítulo precedente.

A peça está estruturada em três seções: a primeira assemelha-se a uma

cadenza desenvolvendo e ampliando o referido motivo, por meio de transformações

temáticas.

Na seção central da peça, é desenvolvido o tema sobre o nome BACH (Sib,

Lá, Dó e Si) � fazendo uma clara referência à influência de Bach na obra de Villa-

Lobos. Esse motivo também já fora utilizado anteriormente por Nobre, nas peças para

orquestra Biosfera Op. 35 e Convergências Op. 29, Trio Op. 4, entre outros.

38 Marlos Nobre, Joaquim Freire � Texto do Encarte do CD LC44601, Léman Classics, 1993.

Page 44: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

31

Na terceira parte, a cadenza inicial é retomada, mas, desta vez, de forma

invertida. Segundo Nobre, �o caráter da peça alterna doçura e violência, dois aspectos

tão intrínsecos da alma e da expressividade brasileira�39.

A Homenagem a Villa-Lobos Op. 46 foi gravada duas vezes, a primeira,

pelo violonista uruguaio Oscar Cáceres, e a segunda, pelo brasileiro radicado na Suíça,

Joaquim Freire em 1994, pela gravadora Léman Classics. A peça foi, inicialmente,

editada pela Tonos Edition Darmstadt, com a qual o compositor cancelou todos seus

contratos a partir de 1997, sendo atualmente editada pela "Marlos Nobre Edition" do

próprio compositor, editora do conjunto total de suas obras.

Durante os anos 80, ocorreu um significativo aumento do interesse do

compositor pelo violão, compondo, naquela década, um total de 19 peças originais ou

adaptações para violão solo ou formações diversas incluindo o violão. Talvez isto se

deva ao fato de Nobre ter, nessa época, participado como júri em prestigiosos concursos

internacionais de violão como o XXI e XXII Concurso Internacional de Violão da

Rádio France, e por entrar em contato com vários violonistas importantes como Sérgio e

Odair Assad, Marcelo Kayath, Roberto Assuel, Gondon Crosskey, que acabaram

incentivando o compositor a aumentar sua produção violonística.

Já no começo da década de 80, ele escreveu peças importantes que incluem

o violão tais como Yanomâni Op. 47 (para coro misto, tenor e violão), Sonâncias II Op.

48 (flauta, violão, piano e percussão) e o Concerto Op. 51 (violão e orquestra) que serão

comentados mais tarde. Em 1982, realizou uma adaptação para violão solo da premiada

peça, original para piano, do ano de 1960, o 1° Ciclo Nordestino Op. 5. Essa adaptação

é bastante fiel ao original para piano e está catalogada com o número de Opus 5c. A

39 Marlos Nobre, Joaquim Freire � Texto do Encarte do CD LC44601, Léman Classics, 1993.

Page 45: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

32

peça foi dedicada a Turíbio Santos, mas a primeira audição só ocorreu em 1991, no

Bolívar Hall em Londres, com Marcus Llerena ao violão.

Ainda em 1982, o compositor fez uma transcrição dos seus três primeiros

Ciclos Nordestinos, mas dessa vez para duo de violões. Além dessa transcrição, no

mesmo ano, concluiu o primeiro ciclo da série Momentos, escrevendo o Momentos IV

Op.54, e iniciou o próximo ciclo, com Momentos V Op. 55. Em 1984, compôs

Momentos VI Op. 62 e Momentos VII Op. 63, mas que permanecem não publicadas, e

ainda aguardam revisão e estréia40.

Também em 1984, Nobre compõe Prólogo e Toccata Op. 65 que foi

gravada41 e tocada com muito sucesso por Marcelo Kayath, violonista carioca a quem a

peça está dedicada. Essa peça � que foi estreada pelo próprio Kayath em 1985, no

Purcell Room de Londres � apresenta uma impressionante concisão de escrita, sendo

baseada no seguinte motivo cromático ascendente:

Exemplo 3: Prólogo (Marlos Nobre), comp.1-2:

Exemplo 4: Toccata (Marlos Nobre), comp.1-3:

40 �Marlos Nobre: Homepage Oficial�, disponível em

<http://marlosnobre.sites.uol.com.br/index1_i.html>, acesso em: 08 de abril de 2006. 41

A peça foi gravada pela Hyperion no CD Debut (1985) e foi editado pela Max Eschig, com digitações

de Marcelo Kayath.

Page 46: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

33

Segundo Fábio Zanon, �a partir desse núcleo, ele monta um edifício

semelhante a uma colméia, explorando o material com expressividade no �Prólogo� e

virtuosismo na �Toccata��42. Tanto Prólogo e Toccata Op. 65 quanto Homenagem a

Villa-Lobos Op. 46 são exemplos da concisão de escrita característica da música de

Marlos Nobre. A partir do desenvolvimento de uma pequena idéia, o compositor

constrói toda a peça, ou até, como no caso do motivo inicial da Homenagem a Villa-

Lobos Op. 46, mais de uma peça, todas com características e tratamento bem diversos.

Outra importante peça de Nobre dessa década é a Entrada e Tango Op. 67,

de 1985, que foi dedicada ao importante violonista argentino Roberto Aussel, que

posteriormente foi o responsável pela publicação desta e de outras peças para violão de

Marlos Nobre. Apesar de ter sido editada em 1993, por Aussel pela editora Henry

Lemoine, não há, até o momento, registro oficial de que a peça tenha sido estreada.

A exemplo da série Desafios Op. 31, Prólogo e Toccata Op. 65, Lamento e

Toccata Op. 99, Sonante I Op. 80, entre outras, em Entrada e Tango Op. 67, o

compositor usa um padrão formal bastante comum em sua obra: uma abertura solene

seguida de um movimento virtuosístico.

Entrada e Tango Op. 67 para violão evocava o mesmo espírito da peça para

piano, o Tango Op.61, composto um ano antes. Segundo Scarombone, Nobre �compôs

seu enérgico Tango [Op.61] com intenções satíricas de exagerar as características do

tango argentino�43.

Da mesma forma, o Tango para violão é uma evocação de como Nobre vê o

gênero tango e a sua impressão deixada na época em que viveu em Buenos Aires. Para o

compositor, o contato com o movimento musical �Novo Tango� teve grande

42 Fábio Zanon, �A Arte do Violão�. Roteiro do programa de rádio transmitido pela Cultura FM,

disponível em: <http://aadv.home.comcast.net/>. Acesso em: 01 de maio de 2006. 43 �Nobre composed his energic Tango with satirical intentions os exaggerating the characteristics of the Argentinean tango�. Bernardo Scarambone, �The Piano Works of Marlos Nobre�, Tese de Doutorado,Universidade de Huston, 2006, p. 37.

Page 47: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

34

importância na época em que estudava no Instituto Torcuato Di Tella, pois servia para

contrabalancear os efeitos das técnicas aprendidas no Instituto:

Ao lado do serialismo integral, quase obrigatório então, a convivência com o tango de Piazzolla era extremamente salutar

e até renovadora.44

O Tango Op. 67, para violão, e o Tango Op. 61, para piano, em diversos

momentos, apresentam semelhanças temáticas como pode ser verificado abaixo:

Exemplo 5: Tango Op.67 (Marlos Nobre), comp. 55-57:

Exemplo 6: Tango Op.61 (Marlos Nobre), comp. 53-55:

Em 1991, Nobre inaugura uma nova fase em sua obra para violão solo,

escrevendo peças com características que ficaram conhecidas como a sua quinta fase

composicional. Durante essa fase, Nobre explora principalmente as grandes formas e

combina elementos tradicionais e contemporâneos, mostrando-se um compositor

maduro e sem medo do que a crítica acharia de sua obra. É nesse ano de 1991, que

44 Marlos Nobre, Apud Vanessa Rodrigues da Cunha, �A Influência da Música Folclórica e Popular em

Três Obras para Piano de Marlos Nobre: um Estudo Comparativo das Constâncias Técnicas e Estéticas na Formação de um Estilo�, Dissertação de Mestrado, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1997, p. 46.

Page 48: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

35

escreve uma de suas peças para violão solo de maior sucesso: a suíte Reminiscências

Op. 78 que será analisada com mais detalhes no próximo capítulo.

Um depoimento do próprio compositor, comentando o seu Concerto Duplo

Op. 82, é bastante significativo para compreender sua nova postura nesta fase, que é

bastante consoante com o pensamento pós-modernista da música de hoje:

Acima de tudo eu não estava com medo de escrever uma música

que fosse emocional e comunicativa. Eu acredito que o compositor em nossos dias não deva ser nem de vanguarda nem reacionário. Ele tem que ser eclético, mas sempre com voz

própria. Minha música é enraizada na grande tradição da Europa

e da América Latina, sem � acredito � ser acadêmico, mas estou

sempre explorando novos mundos e tentando conquistá-los.45

Em 1993, Nobre compõe Relembrando Op. 78a, uma peça curta, dedicada a

Colin Cooper, crítico e editor da Classical Guitar, revista inglesa especializada em

violão. Essa peça é baseada em sua composição anterior, Reminiscências Op. 78, e

ainda se encontra inédita.

Dentro da mesma concepção estética, está a peça Rememórias Op. 79,

dedicada à violonista alemã Susanne Mebes, mas que foi escrita em memória de

Michele Pittaluga (1918-1995), que foi o fundador do Concorso Internazionale di

Chitarra Classica �Città di Alessandria�, do qual Marlos Nobre foi membro do júri por

duas vezes. A peça segue o mesmo espírito de Reminiscências Op. 78, na evocação das

lembranças da infância do compositor.

Rememórias Op. 79, no entanto, utiliza uma linguagem um pouco mais

simples, inserindo algumas citações diretas de elementos do folclore nordestino e, por

vezes, recorrendo à intertextualidade. O primeiro movimento, �Embolada�, faz uma

45 �Above all I was not afraid to write music that is emotional and communicative. I think the composer in our day should be neither avant-garde nor reactionary. He may be an eclectic, but he also has to have his own voice. My music is rooted in the great tradition of Europe and Latin America, without � I think � being academic, but I am always exploring new worlds and trying to conquer them�. Colin Cooper, �Marlos Nobre´s Concerto Duplo� in Classical Guitar Volume 17, No. 9 (Maio 1999), p. 32.

Page 49: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

36

citação do �Prelúdio� da Suíte BWV 996 de J. S. Bach, que, apesar de escrita para

alaúde, é mais tocada hoje em dia no violão. A referida citação, entretanto, não foi,

segundo o compositor, feita de forma deliberada. Diz o compositor que só �um dia

depois de escrevê-la, soube que era tal Suíte de Bach. Portanto, é um caso típico de

�rememória� de algo ouvido antes, mas surgido em estado meio nebuloso�46.

Sob o ritmo característico da embolada, feito na sexta corda solta, o

compositor usa fragmentos e transformações melódicas do conhecido �Prelúdio� de

Bach e assim é desenvolvido durante todo o movimento.

Exemplo 7: Rememórias: I Embolada (Marlos Nobre), comp.1-5:

O segundo movimento da suíte, �Cantilena�, assemelha-se, conforme

Eberhard Glätzle47, a uma Incelência. Esse termo é definido como um canto cerimonial

entoado coletivamente nos velórios junto aos pés dos mortos. É caracterizado pela

presença da palavra �Incelência� repetida até 12 vezes durante o canto. Embora não

tenhamos nenhuma referência que ratifique a intenção do compositor em escrever uma

música que lembrasse esse gênero, sabe-se que �Cantilena� usa a melodia folclórica

�Muié de Lampião� que Nobre já usara na peça para coro Cancioneiro de Lampião Op.

53. De fato, observa-se o uso constante do modo lídio � tão característico da música de

lamento do interior do Nordeste � e o tema é freqüentemente repetido (11 vezes),

porém, não acreditamos haver qualquer referência aos cantos fúnebres nordestinos.

46 Entrevista nº 3 (Realizada em 09/07/07). 47Eberhard Glätzle, Fábio Shiro Monteiro � Recital Brasileiro � Texto do Encarte do CD RBM 463022, RBM, 2000.

Page 50: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

37

Em �Caboclinhos�, terceiro movimento da suíte, um ostinato rítmico, com

as notas Ré da quarta e sexta cordas, é repetido e variado, enquanto as melodias, usando

principalmente os modos lídio e mixolídio, são desenvolvidas. A música é feita de

colagens de melodias genuinamente nordestinas, inclusive fazendo uma citação de

Juazeiro de Luiz Gonzaga.

Em 2004, Nobre escreve Momentos VII Op. 102 e Momentos IX Op. 103,

seguidos dos Momentos X-XII Op. 104-106, compostos em 2005, concluindo, dessa

forma, o ciclo Momentos para violão solo iniciados em 197448.

2.2 - Obra para duo de violões

As primeiras peças de Marlos Nobre escritas para dois violões foram as

transcrições dos três primeiros Ciclos Nordestinos originais para piano. Essas

transcrições foram feitas em 1982, a pedido de Sérgio e Odair Assad, que as estrearam

no mesmo ano no Grand Amphithéâtre de la Sorbonne, em Paris. Essa transcrição para

duo foi publicada pela editora Irmãos Vitale e já possui quatro gravações.

Os três Ciclos Nordestinos são importantes peças para o repertório brasileiro

de duo de violões, pois, segundo Fábio Zanon, �são verdadeiros cartões postais de uma

rica tradição folclórica nordestina que o crescimento e a modernidade vêm

gradualmente apagando� 49.

Por outro lado, observa-se também uma intenção didática nos Ciclos.

Scarambone chega a sugerir que �um paralelo ligando os Ciclos Nordestinos de Nobre

com os Microcosmos de Bartók não seria mera coincidência, uma vez que Nobre tem o

compositor húngaro como uma de suas principais influências e grande fonte de

48 No entanto, as peças ainda não foram publicadas e ainda aguardam a revisão do compositor. 49 Fábio Zanon, �A Arte do Violão�. Roteiro do programa de rádio transmitido pela Cultura FM,

disponível em: <http://aadv.home.comcast.net/>. Acesso em: 01 de maio de 2006.

Page 51: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

38

inspiração�50. Assim como o Microcosmos de Bartók, a intenção inicial dos Ciclos

Nordestinos era didática: introduzir os jovens pianistas na rica tradição da música

nordestina e, ao mesmo tempo, iniciá-los nas técnicas da música moderna, além da já

referida intenção documental de preservar esses temas e características de uma possível

extinção.

A cada ciclo, formado por cinco movimentos, a complexidade vai

aumentando, reforçando a sua função didática. O 1° Ciclo Nordestino Op. 5b, cujo

original para piano data de 1960, é formado pelos movimentos �Samba Matuto�,

�Cantiga�, �É Lamp�, �Gavião� e �Martelo�. O 2° Ciclo Nordestino Op. 13b, do

original de 1963, formado por �Batuque�, �Praiana�, �Carretilha�, �Seca�,

�Xenhenhém�. Por fim, o 3° Ciclo Nordestino Op. 22, transcrito do original de 1966, é

composto por �Capoeira�, �Côco I�, �Cantiga de Cego�, �Côco II� e �Candomblé�.

Exemplo 8: 2º Ciclo Nordestino: Sêca IV (Marlos Nobre), comp.1-6:

As peças seguintes para duo de violões foram as Três Danças Brasileiras

Op. 57 de 1983, dedicadas ao violonista inglês Gordon Crosskey. Os movimentos são:

�I- Roda�, �II- Embolada� e �III- Maracatu�. A peça foi editada pela Boosey &

Hawkes, fazendo parte de um álbum intitulado �Two Centuries of Guitar Music�.

50 �a parallel linking Nobre´s Ciclos Nordestinos to Bartók´s microcosmos would not be a mere coincidence, once Nobre regard the Hungarian composer as one of his main influences and great source of inspiration.�, Bernardo Scarambone, The Piano Works of Marlos Nobre, Tese de Doutorado, Universidade de Houston, 2006, p. 55.

Page 52: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

39

Em 1989, com revisão em 2004, Marlos Nobre escreve outra peça para o

Duo Assad, a Sonatina Op. 76, em um único movimento. Em 2004, compõe ainda

Lamento e Toccata Op. 99 para dois violões, sob encomenda do selo suíço Leman

Records, dedicado ao duo formado pelo violonista brasileiro Joaquim Freire e sua

esposa, a violonista alemã Susanne Mebes, ambos radicados na Suíça. Essas peças ainda

aguardam a estréia.

Nesse meio tempo, em 2003, Nobre realizou uma versão da importante série

Desafios para dois violões, que ainda se encontra inédita. Além dessa, escreveu mais

outras 51 versões, até o momento, para as mais diversas formações, todas com o mesmo

número de opus, embora acrescentados de um número indicativo da ordem para cada

versão. A versão para duo de violão é o Desafio XXII Op. 31/22. Toda série Desafios é

sempre baseada no mesmo material e tem dois movimentos � �Cadenza� e �Desafio� �

que acabam ganhando novos coloridos, dependendo da instrumentação utilizada.

2.3 - Obra para conjunto de violões

Nobre escreveu ainda duas peças para conjunto de violões que permanecem

inéditas até hoje. Trata-se de Desafio XXIV Op. 31/ 24, versão da citada série, composta

em 2000, e Fandango Op. 69, escrito em 1989, cujos movimentos representam cada um

dos quatro elementos da matéria, na concepção filosófica pré-socrática, conforme

evidenciam seus títulos: �Dança Ritual do Ar�, �Dança Ritual da Água�, �Dança Ritual

do Fogo� e �Dança Ritual da Terra�.

Page 53: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

40

2.4 - Obra para violão e voz

A música vocal representa um dos pilares fundamentais da obra de Marlos

Nobre, tendo produzido peças de grande valor para esse gênero no Brasil, como a

cantata Ukrinmakrinkrin Op. 17, O Canto Multiplicado Op. 38 ou Yanomâni Op. 47,

estas com um caráter mais experimental � utilizando a voz quase como um instrumento.

Numa linha mais conservadora, também realizou uma substanciosa contribuição, no

gênero das canções nacionalistas, seguindo uma tradição deixada por compositores

como Lorenzo Fernandez (1897-1948), Francisco Mignone (1897-1986), Camargo

Guarnieri (1907-1993), entre outros.

É digno de nota, o fato de Nobre escrever tantas peças com uma linguagem

mais tradicional, repleta de referências nacionais � mas com uma forte dose de

características pessoais � nos remetendo a toda uma herança da música vocal brasileira

desde a colonização, passando pelas modinhas, até os diversos gêneros cantados da

música popular brasileira.

As peças para violão e voz são, em sua maioria, transcrições feitas no ano

de 1998, a partir dos originais para piano e voz. Por esse motivo, serão analisadas na

ordem cronológica das versões originais e não das transcrições para violão.

O interesse pela composição de música vocal veio desde cedo, pois em

1961, aos 22 anos, Nobre compôs as Três Trovas Op. 6 para soprano e piano, que

ganhou menção honrosa no mesmo ano, no concurso �A canção brasileira� da Rádio

MEC. A versão para soprano e violão foi feita em 1998, sob número de opus 6a. A peça

é formada por três canções intituladas �Lundú�, �Modinha� e �Final�, que foram

escritas sobre o texto de Adelmar Tavares (1888-1963). A versão para violão e voz foi

estreada pelo tenor Reginaldo Pinheiro e pelo violonista Fábio Shiro Monteiro no

Musikwekstatt Schülermühle, em 1998. Os mesmos intérpretes também gravaram a

Page 54: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

41

peça pelo selo alemão AUREA VOZ. Existe também uma versão para voz e orquestra da

mesma peça.

No ano seguinte, 1962, compôs mais duas séries de três canções, originais

para voz e piano, que também foram transcritas para violão e voz no ano de 1998: as

Três Canções Op. 951

e Poemas da Negra Op. 10. Das Três Canções Op. 9, a primeira

peça, �Maracatu�, tem texto de Ascenço Ferreira (1895-1965), enquanto que as outras

duas, �Teu Nome� e �Boca de Forno�, levam texto de Manuel Bandeira (1886-1968).

Já os Poemas da Negra Op. 10 foram dedicados a Camargo Guarnieri52 e

todos eles escritos sobre textos de Mário de Andrade (1893-1945). Os movimentos são:

�Você é tão suave�, �Quando� e �Lembrança Boa�. As transcrições para violão e voz de

Três Canções Op. 9 e Poemas da Negra Op. 10 ainda permanecem inéditas. Assim

como Três Trovas Op. 6, também foram realizadas transcrições para voz e orquestra dos

Opus 9 e 10 .

Nobre compôs em 1965 e 1966, respectivamente, Praianas Op. 18 e

Beiramar Op. 21 que, segundo Vasco Mariz, são �uma jóia da canção praieira, com

ambientação digna do melhor Dorival Caymmi�. Estas canções, em estilos tão

tradicionais, foram compostas, surpreendentemente, logo após o estudo do compositor

no Instituto Torcuato Di Tella em Buenos Aires, e sucedem à experimental

Ukrinmakrinkrin Op. 17. Segundo Nobre:

Depois de uma obra tão experimental como Ukrinmakrinkrin era como se minha mente desejasse um repouso, um retorno (...). Não tenho preconceitos de parecer vanguarda ou retaguarda,

para mim isso não existe. Somente existe o impulso forte e

essencial da criação.53

51 Essa peça foi premiada no concurso �A Canção Brasileira da Rádio MEC�. 52 Marlos Nobre era aluno de Guarnieri na época em que compôs estas peças. 53 Entrevista nº 3 (Realizada em 09/07/07).

Page 55: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

42

Praianas Op. 18 está dividida em três movimentos (�Canoeiro�, �O Mar� e

�Janaína�) com texto do próprio compositor. A versão para voz e violão foi feita em

1998, e estreadas no mesmo ano por Reginaldo Pinheiro (tenor) e Fábio Shiro Monteiro

(violão) no Musikwekstatt Schülermühle, na Alemanha. Já Beiramar Op. 21, tem o texto

escrito por Marlos Nobre, mas retirado do folclore da Bahia. A versão para voz e violão,

também feita em 1998, ainda permanece inédita. Seus movimentos são: �Estrela do

Mar�, �Iemanjá ôtô� e �Ogum de lé�.

Outra canção original para piano e voz, composta em 1966, que recebeu

uma transcrição para violão e voz em 1998, foi Dengues da Mulata Desinteressada Op.

20, com texto de Ribeiro Couto (1898-1963), poeta e diplomata brasileiro. Esta

despretensiosa canção ganhou o primeiro prêmio no Concurso Cidade de Santos no

mesmo ano da composição54.

Duas peças concebidas originalmente para serem tocadas no violão � ao

contrário de todas as outras canções que primeiramente eram compostas em suas

versões para piano � são também as primeiras peças do compositor a ter o violão em sua

formação: Modinha Op. 23 para canto, flauta e violão de 1966 que, em 1998, teve

também uma versão apenas para violão e voz55, e Dia de Graça Op. 32

56 para voz e

violão, composta em 1968.

Modinha Op. 23 tem o texto do poeta brasileiro Marcos Konder Reis (1922)

e sua estréia (da versão com flauta) deu-se em 1966 no Gaslight Club, no Rio de

Janeiro, com Isabela Saraceni (voz), Luis Eduardo (flauta) e Murilo Alencar (violão). Já

a versão para voz e violão, sem a flauta, ainda não foi tocada.

54 A peça foi estrada no dia 10 de Julho de 1998 no Musikwerkstatt Schülermüle (Alemanha) por

Reginaldo Pinheiro (tenor) e Fabio Shiro Monteiro (violão). A peça também foi gravada pelo mesmo duo. 55 A versão para voz e violão é a de Op. 23c, escrita em 1988. Além dessa versão, há ainda mais duas

outras, para voz e orquestra e outra para voz e piano. 56 Nobre escreveu também versões da mesma peça para voz e piano, e outra para voz e orquestra.

Page 56: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

43

A canção Dia de Graça Op. 32 foi gravada57 por Maria Bethânia (voz) e

Jards Macalé (violão) em 1968, e foi composta para o filme de Glauber Rocha Antonio

das Mortes. O texto usado na canção é de autoria do próprio cineasta.

Ainda para violão e voz, existe uma versão da série Desafios. Ao revés das

outras peças da série, que são instrumentais, Desafio XVIII Op. 31/18a (Amazônia II) 58

é cantada. O texto usado na peça é de Marlos Nobre e foi escrito sobre nomes de

pássaros da selva. Essa versão foi feita em 1994 para o Duo de Pádua, formado por

Mônica de Pádua (soprano) e Fernando de Pádua (violão), que estrearam a peça no

mesmo ano no Weil Recital Hall do Carnegie Hall de Nova York.

A exemplo da série Desafios, em 2002, Nobre começa a compor uma nova

série que atualmente já conta com 16 versões: a série Poemas. A versão para voz e

violão é o Poema V (Raio de Luz) Op. 94 No. 5a, escrita em 2002 com texto do próprio

compositor. Essa é, até o momento, a última peça do compositor para esta formação.

2.5 - Obra para violão e coro

No ano de 1980, depois de dois anos sem compor � o que, nas palavras do

compositor, seria �uma pausa para respirar, olhar para trás e depois recomeçar�, �

Nobre escreveu duas de suas peças mais importantes, Sonâncias III Op.48 para dois

pianos e dois percussionistas, e Yanomâni Op. 47 para coro misto, tenor e violão. Esta

última é ainda uma das mais importantes e bem sucedidas obras sobre a temática

indígena escrita no Brasil.

Yanomâni foi uma encomenda do Choeur des XVIème de Friburgo (Suíça),

que a estreou na Igreja Reformada de Friburgo, em 1981, sob a regência de Jean-

Jacques Martin, com Olivier Rumpf (tenor) e Dagoberto Linhares (violão). O texto foi

57 Estúdio MAPA no Rio de Janeiro. 58 Assim como Amazônia I para voz e orquestra de cordas.

Page 57: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

44

escrito por Marlos Nobre utilizando sons anomatopéicos e trechos em português, e

representa o ritual dos índios após a morte de um cacique.

Nobre conta que:

Os Yanomames são o último grande povo indígena do Brasil,

sobrevivente à civilização. Eu estive com eles e a coisa que mais

me impressionou foi um ritual depois do assassinato de um grande chefe dos Yanomami, por colonos brancos. O ritual é

impressionante porque a morte para o indígena significa a perda

da cultura, mas o morto deve reintegrar-se a seu povo através

desse ritual (...). Não houve intenção documental. A obra é

construída com uma linguagem atual e contemporânea, utiliza uma escrita aleatória controlada. O sistema é o mais livre

possível, mas está estruturado serialmente, porque atualmente

trabalho com a série; uso a politonalidade, a multitonalidade e,

sobretudo, enfrento a questão rítmica (...). É portanto uma forma ditada pela idéia emotiva.

59

O resultado disso é uma música preocupada mais em expressar esse

conteúdo simbólico do que qualquer idéia etnográfica. Paulo de Tarso Salles diz que

formas canônicas, escalas modais, pentatônicas, glissandos,

clusters, são elementos mesclados pelo compositor sem nenhuma hierarquia a não ser sua adequação ao conteúdo

expressivo. Consideramos assim que Marlos Nobre tenha atingido em Yanomami uma expressão significativa para uma

música nacional, porém sem as limitações da orientação

nacionalista nem de um modernismo ortodoxo.60 O violão utiliza, nesta peça, uma scordatura incomum (Ré, Sol#, Dó#, Fá#,

Si e Mi) e segundo Quadrio �é usado ora como apoio percussivo, ora criando atmosferas

de delicadas sonoridades� 61.

O exemplo seguinte mostra um trecho da peça no qual sons onomatopéicos,

que lembram fonemas indígenas, são combinados com palavras da língua portuguesa,

simbolizando um ataque dos colonizadores brancos à tribo.

59 Apud. Paulo de Tarso Salles, Abertura e Impasses: O Pós-modernismo na Música e seus Reflexos no

Brasil � 1970-1980, São Paulo: Editora Unesp, 2003, p. 197. 60

Ibidem. p. 202. 61 Apud. Paulo de Tarso Salles, p. 199.

Page 58: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

45

Exemplo 9: Yanomâni (Marlos Nobre), comp. 86-90:

2.6 - Obra para violão e orquestra

Em 1980, Nobre escreve o Concerto Op.51 para Violão e Orquestra, em três

movimentos (�I-Dramático e tenso�, �II-Etéreo� e �III-Fantasmagórico�), sob

encomenda da Orquestra Sinfônica de Porto Alegre, que acabou por não tocá-la, pois foi

constatado que o violonista não estava bem preparado para executar a peça. O Concerto

está sendo revisto pelo compositor que já está preparando a sua estréia.

A outra obra do gênero que tem o violão como solista é o Concerto Op. 82

para dois violões, orquestra de cordas, tímpanos e percussão, composta em 1995 sob

encomenda da GHA Records S.C. de Bruxelas. Essa peça teve uma boa acolhida por

parte da crítica e do público, e teve sua estréia em 1998, no Teatro São Pedro, em São

Paulo, com o Duo Assad62 e a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo, sob

62 O Concerto também foi dedicado ao Duo Assad.

Page 59: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

46

regência de John Nechling. Posteriormente, os mesmos intérpretes fizeram uma turnê

pelos Estados Unidos tocando esse concerto.

O Concerto Op. 82, com cerca de trinta minutos de duração, está dividido

em quatro movimentos. O primeiro movimento, �Concerto Grosso�, se insere dentro da

tradição dos concertos barrocos, e os violões têm mais um papel de baixo contínuo do

que propriamente de solistas, ainda que tenham trechos muitas vezes virtuosísticos e

contenha uma cadenza ao estilo dos concertos do século XIX. O segundo movimento,

�Cadenza-Toccata Concertante�, é uma espécie de reinterpretação estendida da

Homenagem a Villa-Lobos Op.46. No terceiro movimento, �Aria-Scherzo-Aria�, paira

uma certa reminiscência do segundo movimento do Concierto de Aranjuez, de Joaquín

Rodrigo (1902-1999), embora a intenção tenha sido recriar o espírito de uma ária

barroca, pois o solo do violoncelo seria uma homenagem a Luigi Bocherini (1743-

1805). O concerto termina num brilhante e virtuosístico movimento intitulado �Presto

com Fuoco Alucinante�. O compositor espanhol Tomás Marco (1942), considera esse

um dos melhores concertos já escritos para dois violões63.

Em Concerto Op. 82 observam-se dois exemplos da �recontextualização

musical� típica de Nobre. Além do segundo movimento que usa o tema da Homenagem

a Villa-Lobos, o primeiro movimento desse concerto é uma releitura do primeiro

movimento do Concertante do Imaginário Op.74, de 1989, para piano e cordas.

2.7 - Obra para formações diversas incluindo o violão

Nobre escreveu várias peças de câmara com formações diversas, incluindo o

violão. Entretanto, ele acredita que o violão, como instrumento camerístico, ainda não

teve suas possibilidades timbrísticas totalmente entendidas pelos compositores

63 Tomás Marco, Marlos Nobre: El Sonido del Realismo Mágico. p. 93.

Page 60: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

47

contemporâneos64. Na série Desafios, além das já comentadas peças Desafio XVIII Op.

31/18a (Amazônia II) (1994), para voz e violão, e Desafio XXII Op. 31/22 (2003), para

dois violões, o compositor escreveu ainda mais seis peças para a série, incluindo o

violão em sua formação, buscando em cada uma delas diferentes expressões e

possibilidades tímbricas decorrentes de cada formação. São elas:

Desafio XX Op. 31/19 para violino, violão e violoncelo (1984);

Desafio XX Op. 31/20 para flauta, violão e violoncelo (1984);

Desafio XXI Op. 31/21 para violão e harpa (1992);

Desafio XXIII Op. 31/23 para dois violões e orquestra de cordas (2004).

Desafio XXIII Op. 31/23a para violão e piano (1992);

Desafio XXXIII Op. 31/ 33 para flauta e violão (1997).

Exemplo 10: Desafio XXXIII (Marlos Nobre), comp. 1-6:

Ademais, escreveu ainda duas peças incluindo violão e percussão em sua

formação. Em 1980, compôs Sonâncias II Op. 48, para a incomum formação flauta,

violão, piano e percussão, seguindo o mesmo espírito de Sonâncias I Op. 37 (1972),

64 Colin Cooper, �Marlos Nobre: Speaking Internationally� in Classical Guitar Volume 12 No. 3

(Novembro, 1993) p. 12.

Page 61: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

48

para piano e percussão e Sonâncias III Op.49 (1980) para dois pianos e dois

percussionistas. Em 1989, escreveu o ainda inédito Duo Op. 71 para violão e percussão.

Nessa peça, o percussionista usa a marimba, xilofone e vibrafone.

Os instrumentos de percussão sempre tiveram um papel importantíssimo na

obra de Marlos Nobre, uma vez que dois dos principais elementos nos quais esse

compositor baseia sua técnica são o ritmo e o timbre. Além do Duo Op. 71 e de

Sonâncias II Op. 48, nos quais o violão também é utilizado, Nobre usou a percussão em

importantes peças suas como Variações Rítmicas Op. 15, Canticum Instrumentale Op.

25, Rhythmetron Op. 27, Sonâncias I e III, Sonante I e II, Concerto para Percussão e

Orquestra Op.89, entre outras.

2.8 - Conclusão

A partir desse levantamento sobre o violão na obra de Marlos Nobre, é

possível observar a importância que esse instrumento sempre teve para o compositor.

Sua obra chama a atenção não só pela extensão, mas também pela variedade de técnicas,

procedimentos, estilos, formações instrumentais e recursos tímbricos utilizados. Como

já foi comentado acima, existem exemplos de praticamente todas as fases

composicionais de Nobre em sua obra violonística. No Brasil, a sua produção para

violão, possivelmente, só encontra paralelos nas obras de Heitor Villa-Lobos, Francisco

Mignone e Radamés Gnattali.

Nobre diz que um de seus principais objetivos é criar uma nova linguagem

para o violão, fugindo aos clichês usuais dos compositores violonistas e criando peças

mais ambiciosas65. O compositor acredita que o violão tem um papel que está se

65 Marlos Nobre, in Forum Allegro, mensagem número 37, 25 de outubro de 2003, acessado 8 de abril de 2006.

Page 62: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

49

tornando cada vez mais importante na música contemporânea66, daí seu grande esforço

para criar uma vasta obra para o instrumento.

66 Colin Cooper, �Marlos Nobre: Speaking Internationally� in Classical Guitar Volume 12 No. 3

(Novembro, 1993) p. 14.

Page 63: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

50

CAPÍTULO 3

Reminiscências Op. 78

Reminiscências Op. 78 é uma das mais importantes peças para violão solo

do compositor Marlos Nobre. Foi composta entre novembro de 1990 e maio de 1991,

portanto pertencente à sua quinta fase composicional, mais recente e madura. Em

Reminiscências Op. 78, assim como acontece em outras peças desta fase, fica muito

evidente a interação entre elementos característicos da música contemporânea e outros

mais tradicionais da música tonal.

A peça está dividida em três movimentos que levam o nome dos

respectivos gêneros da música popular urbana brasileira que os inspiraram, formando

uma suíte com alguns dos ritmos que povoaram a infância do compositor. Os

movimentos são: �I - Choro�, �II - Seresta� e �III - Frevo�. Estes movimentos foram

dedicados respectivamente aos violonistas cariocas Marcus Llerena e Marcelo Kayath e

ao pernambucano, radicado na Suíça, Joaquim Freire. Estes três violonistas alcançaram

reconhecimento tanto no Brasil como no exterior e foram grandes divulgadores da obra

para violão de Nobre.

A motivação para o compositor começar a escrever a peça partiu de um

pedido do violonista Marcelo Kayath, que lhe solicitou ao compositor uma peça inédita,

para ser incluída em um CD, contendo as peças prediletas do violonista. Nobre

prontamente aceitou o desafio de compor uma peça �favorita� que, como expusemos,

nem existia ainda. A peça em questão era a �Seresta� que nasceu como uma

�Homenagem a João Pernambuco�. Em 1993, foi feita a sua gravação no CD intitulado

Guitar Favourites. Sobre a �Seresta�, Nobre diz que:

Page 64: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

51

há lembranças minhas claras do estilo em geral de João

Pernambuco, por exemplo, os baixos descendentes, algumas suspensões harmônicas características, o estilo seresteiro, que,

aliás, são, o estilo muito genérico dos �chorões� tanto de Pernambuco quanto do Rio de Janeiro que eu de certa maneira, procurei homenagear nesta minha �Seresta�.

67

João Pernambuco (João Teixeira Guimarães) (1883-1947), a quem Nobre

se remete nesta peça, foi um importante nome para o choro e para o violão brasileiro.

Ele deixou peças que viraram clássicos da música popular brasileira, tais como Caboca

di Caxangá e Luar do Sertão, ambas em parceria com Catulo da Paixão Cearense

(1863-1946). Apesar de não saber escrever música (nem mesmo era alfabetizado),

muitas de suas peças para violão solo, como Sons de Carrilhões, Dengoso, Pó de Mico,

entre outras, são tocadas por violonistas de todo o mundo e fazem parte do aprendizado

da maioria dos violonistas brasileiros.

Durante a sua infância, Nobre ouvia constantemente a música de João

Pernambuco, afinal esta era tocada nos encontros de violonistas freqüentados pelo

jovem em companhia de seu pai. Assim, ao recordar aquele momento de sua vida, o

compositor abandonou parcialmente a idéia de fazer uma �Homenagem a João

Pernambuco�, e escreveu, então, dois outros movimentos, fazendo da peça uma

lembrança daqueles encontros. Após isso, o compositor renomeou a peça, dando-lhe o

título com o qual ela é conhecida hoje: Reminiscências. No encarte do CD de Joaquim

Freire, Nobre comenta, da seguinte forma, a sua inspiração para escrever a peça:

As Reminiscências resultam da forte recordação emocional das

reuniões, a que assisti em minha infância em Recife, na qual

participavam meu pai e um grupo de violonistas amadores e profissionais da cidade, todos eles absolutamente obcecados pelo violão. As reuniões repetiam-se aos domingos à tarde, e

nelas o que mais me seduzia era um violonista magro, simples, moreno, de dedos esquálidos, chamado Amarildo. Um boêmio

inveterado, tímido, silencioso e humilde, transformava-se em

67 Entrevista nº 1 (realizada no dia 09/04/07).

Page 65: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

52

um virtuoso endiabrado, no calor das reuniões, e emudecia a

todos demonstrando uma técnica absolutamente assombrosa. A fascinação que sua execução exerceu sobre mim, foi o

verdadeiro despertar do meu interesse pelo violão, guiado pelo meu pai, um violonista amador. Amarildo costumava improvisar choros, valsas, frevos, serestas, polkas e outras formas, com temas dados na hora, pelos presentes. Assim, ao compor Reminiscências, em 1991, as peças foram

escritas quase que em um estado de �transe emocional� puro.

Não pude me furtar ao envolvimento emocional daquele

ambiente efervescente e criativo, das reuniões dos chorões de

Recife nos idos de 1945-1950.68

Dessa forma, Reminiscências passa a representar, não só a visão do

compositor acerca da música de João Pernambuco, mas evoca todo um ambiente

musical onde eram tocados os mais diversos gêneros brasileiros e no qual o violão tinha

um papel fundamental. Outro dado importante é a referência à figura de Amarildo, um

violonista virtuose da época, que tinha uma forma bem peculiar de tocar, valorizando a

polifonia. Nobre recorda que seu pai lhe chamava a atenção para este fato em particular

e isto acabou ficando marcado na memória do compositor, que costuma explorar muito

a polifonia em sua obra para violão, e não poderia ser diferente no caso de

Reminiscências.

Além disso, o compositor tenta, nessa peça, cristalizar vários aspectos do

estilo e da forma característica de execução do violão no Brasil, representados pelos

gêneros: choro, seresta e frevo. Segundo as palavras do compositor, a peça representa

uma �homenagem minha a este estilo profundamente brasileiro de fazer soar o

violão�69.

Certamente, grande parte dos referidos elementos estilísticos da música

brasileira presentes em Reminiscências também podem ser encontrados na música de

68 Marlos Nobre, Joaquim Freire � Texto do Encarte do CD LC44601, Léman Classics, 1993. 69 Entrevista nº 1 (realizada no dia 09/04/07).

Page 66: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

53

João Pernambuco, assim como em muitas peças de tantos outros �chorões�70 do Brasil.

Da mesma forma, também se pode observar nesta peça a influência de Ernesto

Nazareth71 (1863-1934), cuja obra para piano teve grande importância na formação

musical de Nobre, e que não deixa de ser lembrado também em Reminiscências72

.

Assim, segundo o compositor, esta peça é �uma tripla homenagem a João Pernambuco,

Ernesto Nazareth e aos �chorões� do Rio de Janeiro e Pernambuco�, além da referência

ao �estilo profundamente brasileiro de fazer soar o violão� 73.

A primeira audição mundial de Reminiscências Op. 78 aconteceu em

setembro de 1991, em Londres, pelo violonista Lawrence Tender74. Desde então, a

crítica e os violonistas são consoantes em afirmar sobre a importância e as dificuldades

de execução da peça. Para o violonista Moacyr Teixeira Neto, em seu livro Música

Contemporânea para Violão, �a suíte Reminiscências talvez seja uma das obras [para

violão] mais ambiciosas do compositor e é também uma de execução mais difícil,

constituindo-se um desafio ao intérprete�75. Diz ainda, Teixeira Neto, �tratar-se de uma

das mais comentadas obras da atualidade�76. Marcus Llerena, em entrevista ao periódico

Apolon Musagete, reafirma a importância da peça da seguinte forma:

Trata-se de uma das melhores obras, para violão, escrita por

brasileiro nos últimos anos. Foi escolhida como �Peça de

confronto� de um dos mais importantes concursos de violão da

França e tenho certeza que o violonista que não for brasileiro terá

muita dificuldade na interpretação do frevo. 77

70 Chorão é o termo comumente usado para o músico que toca o choro. 71 O compositor e pianista Ernesto Nazareth é considerado popular por alguns musicólogos e erudito por

outros. Ele escreveu mai de 200 peças para piano, entre valsas e tangos brasileiros, que imitavam a forma com que os conjuntos de choro tocavam. 72 Entrevista nº 1 (realizada no dia 09/04/07). 73 Ibidem. 74 Ver Tomás Marco, Marlos Nobre. El Sonido del Realismo Mágico. p. 190. 75 Moacyr Garcia Texeira Neto, Música Contemporânea Brasileira para Violão, Vitória: Gráfica e

Editora A1, sd, p. 41. 76 Ibidem, p. 63. 77 Marcus Llerena Apud Moacyr Garcia Texeira Neto, Música Contemporânea Brasileira para Violão. p. 63.

Page 67: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

54

As dificuldades de execução, referidas acima por Teixeira Neto, são

intrínsecas à própria intenção da peça, pois fazem alusão ao citado �virtuosismo

endiabrado� de Amarildo que a peça pretende evocar. Por outro lado, como lembra

Llerena, há ainda as dificuldades de interpretação ligadas às características de execução

dos gêneros da música brasileira que serviram de fonte para as peças. Mesmo sendo a

escrita de Marlos Nobre, normalmente, muito detalhista, um estudo mais profundo das

formas de execução e �pronúncia� da música popular brasileira são indispensáveis para

uma execução coerente da peça. Este assunto também será tratado mais profundamente

nos próximos capítulos.

A despeito da dificuldade de execução de Reminiscências Op. 78, esta peça

tornou-se a composição para violão solo mais tocada e mais gravada deste compositor.

Até o momento, a peça já foi gravada cinco vezes. As primeiras gravações foram feitas

pelos violonistas Marcus Llerena e Joaquim Freire � a quem estão dedicados,

respectivamente, os movimentos �Choro� e �Frevo� � mais ou menos na mesma época,

no ano de 1993, o primeiro pelo selo Velas, e o segundo pela Léman Classics78. A estas

gravações, seguiram-se as de Kurt Schneeweiss e Fábio Shiro Monteiro. Mais

recentemente, em 2006, o jovem violonista gaúcho, Thiago Colombo de Freitas, fez

mais uma gravação da peça, em um CD independente intitulado �Reminiscências�.

Atestando a importância da peça, Reminiscências Op. 78 foi escolhida como

peça de confronto no Concours International d�Exécution Musicale de Genève (CIEM)

no ano de 1995, no qual o violonista búlgaro George Vassilev obteve o primeiro

prêmio. Posteriormente, em 2000, esse violonista gravou um CD com Yanomâni de

Nobre.

78 Apesar de Marcus Llerena ter sido o primeiro a gravar a peça, em abril de 1993, a gravação de Joaquim Freire, pelo selo suíço Léman Classics, foi a primeira a ser lançada.

Page 68: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

55

Em 1994, Reminiscências Op. 78 foi publicada pela editora francesa

Editions Henry Lemoine, tendo como responsável pela edição o violonista argentino

Roberto Aussel que já editara no ano anterior Entrada e Tango Op. 67. Em 1998, a

mesma editora publicou também Rememórias Op. 79.

Apesar de ter sido publicada dentro da �Collection Roberto Aussel�, as

digitações que aparecem na edição de Reminiscências Op. 78 foram colocadas pelo

próprio compositor, levando em consideração o próprio conhecimento adquirido sobre o

violão, e tendo como base as digitações de Marcelo Kayath e Marcus Llerena.

3.1 - Sobre os Critérios para a Elaboração da Edição Presente neste

Trabalho.

A edição de Reminiscências Op. 78, parte integrante deste trabalho, é o

reflexo das conclusões sobre as questões nele levantadas. Em geral, a edição, assim

como a interpretação musical, resulta de estudos sobre os vários aspectos que compõem

uma peça e o seu entorno. Portanto, de certa forma, todos os dados e questionamentos

levantados nesta pesquisa, convergem para a realização da referida edição e, também,

para as informações sobre a interpretação musical de Reminiscências Op. 78 presentes

no corpo do texto.

Sobre ato de editar, James Grier, no livro The Critical Editing of Music,

afirma que editar

consiste em uma série de escolhas críticas e instruídas; em

resumo, um ato de interpretação. Editar, além do mais, consiste

na interação entre a autoridade do editor e a autoridade do

compositor. (...) Editar, conseqüentemente, consiste em um

equilíbrio entre essas duas autoridades. Além do mais, o balanço

preciso, presente em cada edição em particular, é produto direto

do compromisso crítico do editor com a peça editada e suas

fontes.79 79 �Editing, therefore, consists of series of choices, educated, critically informed choices; in short, the act

of interpretation. Editing, moreover, consist of the interaction between the authority of the composer and the authority of the editor.(�) Editing, therefore, comprise a balance between these two authorities.

Moreover, the exact balance present in any particular edition is the direct product of the editor�s critical

Page 69: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

56

As escolhas feitas aqui durante todo o processo de editoração de

Reminiscências Op. 78 levaram em conta as intenções originais do compositor, mas, por

outro lado, não deixam de refletir a interpretação das fontes usadas pelo editor, num

processo semelhante àquele do executante ao interpretar alguma peça. Nesse sentido,

James Grier, chama a atenção para o fato de que, tanto o executante, quanto o editor, a

partir do mesmo estímulo (a notação), respondem com base em critérios de

conhecimento e gosto estético. A diferença entre eles estaria apenas no resultado final

que, para o executante, é o som e, para o editor, a página impressa.

Em nossa edição, incluímos novas digitações tendo em vista a sua

importância no resultado final da execução de uma peça, estreitando, ainda mais, o

vínculo existente entre edição e interpretação musical. Por isso, mesmo não sendo nossa

intenção, pode-se até afirmar que se trata de uma edição interpretativa80 de

Reminiscências Op. 78, devido ao fato de muitas escolhas de digitação, presentes na

edição, terem sido resultado também das escolhas de interpretação musical dadas pelo

editor, tal como será demonstrado adiante.

As inserções de novas digitações, entretanto, não constituem desrespeito às

intenções originais do compositor, mas, ao contrário, quaisquer modificações nas

digitações foram orientadas por criteriosas escolhas com o intuito de reforçar aquilo que

o editor julgou ser intenção do compositor que, não sendo violonista, podia desconhecer

certos detalhes muito particulares e especializados da técnica do instrumento. Aliás, é

importante destacar que Marlos Nobre, mesmo sendo ele um pianista de grande

capacidade, nunca coloca os dedilhados em suas próprias peças para piano, deixando-os

engagement with the piece edited and its sources.�, James Grier, Critical Editing of Music, Nova York, Press Sydicate of the University of Cambridge, 1996, pp. 2-3. 80 Edição interpretativa pode ser conceituada como aquela que contribui com informações sobre o modo de interpretar a peça editada.

Page 70: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

57

a critério de seus intérpretes. Apesar disso, no caso de suas peças para violão, as

digitações foram colocadas a pedido das editoras, por questões comerciais, a fim de

facilitar o acesso destas publicações aos estudantes81.

Considerando a edição de uma partitura um ato de interpretação da mesma,

o objetivo aqui não é, em hipótese alguma, o de se fazer uma edição definitiva de

Reminiscências Op. 78, mas apenas o de demonstrar e explicar uma possível

interpretação da peça, na ótica do editor. A fim de reforçar a convicção de que não

existe uma interpretação ideal ou definitiva, e sim uma infinidade de formas que ela

pode assumir conforme as escolhas pessoais e circunstanciais de cada intérprete,

transcrevemos abaixo uma citação de Luigi Pareyson sobre o tema:

A primeira coisa que salta à vista no fenômeno da interpretação

é a sua infinidade: a interpretação é infinita quanto ao seu número e ao seu processo. Por um lado, não há interpretação

definitiva, nem processo de interpretação que, alguma vez, possa

dizer-se verdadeiramente acabado: a série das revelações não

está nunca fechada, e toda proposta de interpretação é passível

de revisão, integração, aprofundamento, e há sempre alguma

nova circunstância que a desmente, limita, ou corrige: cada vez

que se relê uma obra, o processo de interpretação que se

mantinha fechado reabre-se, e tudo é recolocado em questão;(...)

Por outro lado, as interpretações são muitas, tantas quantas as

pessoas que se aproximem de uma determinada obra, e até mais,

se pensarmos nas mudanças a que, no curso de sua vida, uma

mesma pessoa é levada, sob o estímulo de novas circunstâncias

e de novos pontos de vista: não é sem razão que, quando se fala

de matéria interpretável, pensa-se logo no dito tot capita tot

sententiae, já que a interpretação é, geralmente, qualificada pelo

possessivo, �minha, tua, sua interpretação�, sempre

personalíssima, por isso múltipla, ou melhor, infinita.82

3.2 � Procedimentos

Para elaborar a edição de Reminiscências Op. 78, apresentada no final da

dissertação, foram utilizados como fontes o manuscrito autógrafo de Marlos Nobre de

81 Entrevista nº 2 (realizada no dia 23/06/07). 82 Luigi Pareyson, Os Problemas da Estética, 2ª Edição, São Paulo: Martins Fontes, 1989, p. 165.

Page 71: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

58

Reminiscências; a edição � da mesma peça � que foi publicada pela Editora Henry

Lemoine, em 1994; e a versão para piano de �Frevo� publicada pela Editora Música

Nova, em 1985.

Para se chegar à versão aqui apresentada, foram feitas comparações entre as

diferentes fontes, além de consultas ao compositor, com a finalidade de esclarecer

dúvidas sobre as suas intenções originais. Todas as diferenças, encontradas entre o

manuscrito e a edição, serão apontadas e comentadas logo adiante.

Da versão para piano do �Frevo�, foi aproveitada a maior parte das

indicações de articulação e de caráter que não estão presentes nem no manuscrito, nem

na edição, da versão para violão. Mesmo sendo, o piano e o violão, instrumentos com

características técnicas e de produção sonora diferentes, acreditamos que as referidas

indicações de articulação e caráter, presentes na versão para piano, representam, no

mínimo, uma possibilidade mais detalhada de interpretação dada pelo próprio

compositor, fato este que, por si só, já justificaria a inclusão dos referidos detalhes,

mesmo que só como referência.

Entretanto, em entrevista realizada para este trabalho, o compositor informou

que, intencionalmente, não colocou na partitura para violão um detalhamento tão

acentuado quanto no �Frevo� para piano. Por outro lado, Nobre diz que, �também neste

caso, é essencial um conhecimento prévio de como se tocam os frevos pelas orquestras

típicas de frevo de Pernambuco�83. A despeito da fonte de informação, que são as

referidas indicações presentes no �Frevo� para piano, entendemos que o compositor

optou por dar mais liberdade de escolha para o intérprete, por isso incluímos também

uma versão do �Frevo� sem os acréscimos das indicações de articulação da versão para

piano.

83 Entrevista nº 1 (realizada no dia 09/04/07).

Page 72: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

59

Acreditamos que, ao optar pela versão com inclusão das articulações, o

intérprete não precisa seguir todas as indicações que estão escritas; basta escolher,

dentre elas, as que lhe forem mais convenientes. O executante também terá a opção de

modificar as articulações ao seu gosto � desde que dentro do estilo � já que o próprio

compositor deu esta possibilidade ao não incluí-las na partitura para violão.

A digitação sugerida neste trabalho teve como base a que aparece na

partitura de Reminiscências Op.78 editada pela Henry Lemoine84, pois refletem muito a

intenção do compositor, uma vez que ele mesmo as inseriu e revisou. Contudo,

inúmeras modificações nas digitações foram feitas: em alguns momentos, no intuito de

facilitar a execução da peça; já em outras situações, o objetivo foi buscar uma maior

aproximação da sonoridade característica da música popular brasileira que inspirou a

composição da peça, utilizando, para isso, determinados recursos técnicos próprios do

instrumento.

As indicações de dedilhados da mão direita e dos procedimentos técnicos a

serem utilizados também foram inseridas na partitura, com a finalidade de facilitar o

aprendizado da peça por outros violonistas.

3.3 - Diferenças entre Manuscrito de Marlos Nobre e a Edição da

Henry Lemoine

A edição de Reminiscências Op. 78, feita pela editora francesa Henry

Lemoine em 1994, é, em geral, bastante fiel ao manuscrito do próprio compositor,

entretanto, há algumas diferenças que merecem destaque. Por outro lado, o manuscrito

autógrafo da peça também contém pequenas incorreções, além de só apresentar

digitação em um trecho do primeiro movimento.

84 No manuscrito só aparecem as digitações de um pequeno trecho do �Choro�.

Page 73: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

60

A seguir, estão relacionadas e comentadas as diferenças encontradas entre as

duas versões, a fim de chegar a um consenso para uma nova edição da peça.

3.3.1 � Primeiro Movimento: �Choro�

Título Manuscrito � Não há indicação de dedicatória. Edição Henry Lemoine � Com a indicação �à

Marcus LLERENA�.

Segundo informação de Marlos Nobre em entrevista, a dedicatória ao

violonista Marcus Llerena não consta no manuscrito porque ela só foi feita depois que a

peça já estava pronta e que o compositor viu a execução de Reminiscências pelo

homenageado. Por essa razão também optamos por incluir a dedicatória.

Título Manuscrito � Apresenta o número de catalogação

�Op. 83�. Edição Henry Lemoine � Apresenta o número de

catalogação �Op. 78�.

A catalogação que aparece na edição Henry Lemoine é a correta.

Compasso 29 Manuscrito � A primeira semicolcheia do primeiro tempo deste compasso é separada das três outras

restantes. Edição Henry Lemoine � As quatro semicolcheias do primeiro tempo deste compasso estão

agrupadas.

Este tipo de separação do grupo de semicolcheias enfatiza a organização

formal da peça. Neste caso, significando que a frase conduz até o �Dó5� (primeira

Page 74: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

61

semicolcheia do compasso), sendo o que se segue uma nova idéia. Optamos em deixar

tal como está no manuscrito.

Compassos 31 e 54 Manuscrito � Barras duplas separando estes compassos e o seguinte. Edição Henry Lemoine � Não há barra dupla.

Estas duas barras duplas presentes no manuscrito reforçam, mais uma vez, a

estrutura formal da peça, estabelecendo a separação entre as diferentes partes. No caso

específico do gênero choro, em geral, cada parte tem um caráter mais ou menos

diferenciado, assim como acontece no �Choro� de Marlos Nobre, reforçando a

importância de deixar mais clara as separações.

Compasso 75 Manuscrito � Indicação �Como uma recordação�. Edição Henry Lemoine � Indicação �Come uma

recordação�.

Esse erro, aparentemente insignificante, foi devido, provavelmente, à não

compreensão do editor da letra do manuscrito, revelando uma certa incoerência da

edição em utilizar indicações de tempo e caráter, ora escritos em português, ora em

italiano. Com o objetivo de padronizar a língua usada e tornar compreensíveis as

indicações aos instrumentistas de qualquer nacionalidade, optamos em traduzir as

indicações que estavam em português para o italiano, língua tradicionalmente usada

para essa finalidade.

A edição Lemoine também não é coerente com relação ao uso do indicativo

de pestana, pois, apenas entre os compassos 75 e 90, foi usado esse indicador como �C�

(do espanhol �Ceja�), enquanto no restante da peça, foi usado �B� (do françês �Barré�).

Page 75: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

62

Em nossa edição, padronizamos a indicação da pestana com a utilização de �C� por ser

a mais comum.

Compasso 76

Manuscrito � Há uma portato na nota �Lá4� do

primeiro tempo da voz superior. Edição Henry Lemoine � Não há indicação de

portato na nota �Lá4� do primeiro tempo.

A omissão foi possivelmente uma incorreção da edição, pois é coerente com

toda a escrita desta seção.

Compasso 76 Manuscrito � A primeira semicolcheia do segundo tempo deste compasso é separada das três outras

restantes. Edição Henry Lemoine � As quatro semicolcheias do segundo tempo deste compasso estão

agrupadas.

A separação do grupo de semicolcheias que é feita no manuscrito, neste

caso, parece desnecessária, pois não esclarece a organização formal da peça. Ademais,

não é coerente com outros momentos da mesma peça, nos quais o mesmo trecho (ou

trechos semelhantes) está escrito sem a referida separação, como, por exemplo, no

compasso 84. Mantivemos tal como a edição.

Compasso 82 Manuscrito � Barra dupla separando este compasso e o próximo. Edição Henry Lemoine � Não há barra dupla.

A barra dupla que aparece no manuscrito, no compasso 82, não foi utilizada

em nossa edição, pois julgamos que estão subdividindo desnecessariamente uma secção

única.

Page 76: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

63

Compasso 84 Manuscrito � Há uma portato na nota �Lá4� do

primeiro tempo da voz superior. Edição Henry Lemoine � Não há indicação de

portato na nota �Lá4� do primeiro tempo.

A omissão foi possivelmente uma incorreção da edição, pois é coerente com

toda a escrita desta seção.

Compasso 86

Edição Henry Lemoine � Falta a indicação de

quiáltera sobre o segundo tempo deste compasso.

O editor não colocou a indicação de quiáltera no segundo tempo do

compasso, embora pela escrita seja possível supor a sua existência. Preferimos incluir a

quiáltera para não deixar qualquer dúvida sobre a divisão rítmica do trecho.

Compasso 88 Manuscrito � Não há indicação portato em nenhuma nota do segundo tempo da voz inferior. Edição Henry Lemoine � Há indicação de portato apenas na segunda colcheia do segundo tempo da voz inferior..

No manuscrito, não aparece o portato nem na primeira, nem na segunda

colcheia do segundo tempo da voz inferior. Já na edição citada, foi colocada apenas o

portato da segunda colcheia. Ocorre que, comparando-se ao compasso 84, no qual

aparece uma figuração semelhante, conclui-se que deve ser colocado o portato nas duas

colcheias em questão.

Compasso 90 Manuscrito � Barra dupla separando este compasso e o próximo. Edição Henry Lemoine � Não há barra dupla.

Page 77: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

64

Apesar de não delimitar uma seção, como as outras barras duplas deste

movimento, no compasso 90, a referida anotação está reforçando uma mudança de

andamento que ocorrerá nesse trecho da peça, por isso mantivemos em nossa edição.

Final da Peça

Manuscrito � Local e data da composição da

seguinte forma: �Rio de Janeiro, 04 de maio de

1991�. Edição Henry Lemoine � Não há informações

sobre o local e data da composição.

Decidimos incluir o local e data da composição como elementos de

contextualização necessários a uma melhor interpretação da peça.

3.3.2 � Segundo Movimento: �Seresta�

Título Manuscrito � Não há indicação de dedicatória.

Edição Henry Lemoine � Com a indicação �à

Marcelo KAYATH�.

Embora não conste no manuscrito, foi visto que quando Marlos Nobre

compôs sua �Seresta�, inicialmente como �Homenagem a João Pernambuco�, já havia a

dedicatória a Marcelo Kayath.

Título Manuscrito � Repete o título da peça:

�REMINISCÊNCIAS Para violão Opus 83 e, em

seguida, o título do movimento: �II. SERESTA�. Edição Henry Lemoine � Só apresenta o título do

movimento: �II. SERESTA�.

Assim como feito na edição Henry Lemoine, julgamos desnecessário repetir

o título da peça a cada novo movimento.

Compasso 4 Manuscrito � Fermata na nota �Lá� do primeiro

Page 78: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

65

tempo. Edição Henry Lemoine � Não há indicação de

fermata.

A omissão desta fermata por parte do editor pode ter-se dado devido ao

tenuto que já está na partitura. Acreditamos, entretanto, que a colocação da fermata

neste ponto tem o objetivo de reforçar a necessidade de sustentar esta nota por um

tempo maior, razão pela qual optamos pela sua inclusão.

Compasso 11, 13,

17, 29, 31, 79, 81,

85

Manuscrito � Acordes arpejados. Edição Henry Lemoine � Não há indicação de

arpejos (acordes plaquê).

O editor omitiu todas as indicações de acordes arpejados que estão no

manuscrito deste movimento, embora tenha deixado as indicações de arpejos no

�Choro� e no �Frevo�. Facilmente, observa-se entre os violonistas populares, em

especial os seresteiros, o uso constante arpejos nos acordes. No caso dessa peça de

Marlos Nobre, que pretende evocar a forma peculiar com que os chorões tocavam o

violão, todos estes arpejos são pertinentes. Outrossim, são dados extras que expressam,

com mais detalhes, a vontade do compositor e, por isso, são indicações indispensáveis.

Compasso 15 Manuscrito � Não há indicação de a tempo.

Edição Henry Lemoine � Não há indicação de a

tempo.

Mesmo não havendo nenhuma indicação de a tempo no compasso 15, nem

do manuscrito nem da edição, seguindo a coerência de outros trechos similares a esse,

Page 79: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

66

como, por exemplo, o compasso 11, a indicação a tempo deve ser inserida, corrigindo a

omissão.

Compasso 22, 40,

57

Manuscrito � Barra dupla separando este compasso e o próximo. Edição Henry Lemoine � Não há barra dupla.

Tal como aconteceu no �Choro�, o editor omitiu diversas barras duplas

presentes no manuscrito, que, a nosso ver, eram de grande importância para delimitar a

estrutura formal, tal como explicado anteriormente.

Compasso 23 Manuscrito � Indicação: �Calmo = 63�.

Edição Henry Lemoine � Indicação: �Calmo

(Tempo I)�, ou seja, = 72.

Segundo entrevista feita com o compositor, deve prevalecer a versão que

está indicando a colcheia = 72, tal como na edição.

Compasso 32 Manuscrito � Notas do primeiro tempo da voz inferior: Lá, Fá, Sol. Edição Henry Lemoine � Notas do primeiro tempo da voz inferior: Lá, Sol, Fá.

Apesar de serem os compassos 14, 32 e 82 praticamente idênticos,

diferenças como a que ocorre entre �Lá�-�Sol�-�Fá� (nos compassos 14 e 82) e �Lá�-

�Fá�-�Sol� (no compasso 32), presente no manuscrito, é bastante comum na escrita de

Marlos Nobre como forma de variação, já comentada no Capítulo 1 e 2. Inclusive, o

compositor, em entrevista, confirma a intenção de alterar a ordem das notas nesse

trecho, por isso deixamos igual ao manuscrito.

Page 80: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

67

Compasso 67 Manuscrito � Não há a indicação �poco

pecipitato�. Edição Henry Lemoine � Indicação �poco

pecipitato�.

Provavelmente, uma falha do editor que repetiu a indicação poco

precipitato, que aparece no compasso setenta, no sistema logo abaixo do compasso

sessenta e sete. Inclusive, no citado compasso setenta, o editor grafou poco

precipitando, ao invés de poco precipitato, conforme o manuscrito.

Compasso 79 Manuscrito � Não há indicação de �ten.� no

�Sib3� do segundo tempo. Edição Henry Lemoine � Há indicação de �ten.�

no �Sib3� do segundo tempo.

A indicação de tenuto, presente apenas na edição, não é coerente, visto que,

em outros trechos iguais, não são colocados os tenutos, como ocorre com os compassos

11 e 29. Portanto não incluímos o �ten.� que está na edição Lemoine.

Compasso 83 Manuscrito � �Lá#3�. Edição Henry Lemoine � �Lá3�.

Segundo o compositor, trata-se de um �Lá3#�, da mesma forma que nos

compassos 15 e 33.

Final da Peça,

(no rodapé da

página).

Manuscrito � Local e data da composição da

seguinte forma: �Rio de Janeiro, 11 de outubro de

1990�. Edição Henry Lemoine � Não há informações

sobre o local e data da composição.

Page 81: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

68

Decidimos incluir o local e data da composição pelas mesmas razões já

expostas ao tratar do primeiro movimento da peça.

3.3.3 � Terceiro Movimento: �Frevo�

Título Manuscrito � Não há indicação de dedicatória. Edição Henry Lemoine � Com a indicação �à

Joaquim Freire�.

Da mesma forma que sucedeu com Marcus Llerena, em relação ao �Choro�,

a dedicatória a Joaquim Freire, no �Frevo�, só ocorreu depois de concluída a peça.

Título Manuscrito � Repete o título da peça:

�REMINISCÊNCIAS Para violão Opus 83� e, em

seguida, o título do movimento: �III. FREVO�. Edição Henry Lemoine � Só apresenta o título do

movimento: �III. FREVO�.

Mais uma vez, tal como na �Seresta�, julgamos desnecessário repetir o

título da peça.

Compasso 26 Manuscrito � Nota �Mib3� na segunda colcheia da

voz superior. Edição Henry Lemoine � Nota �Réb3� na segunda

colcheia da voz superior.

No manuscrito não está muito claro se a nota da segunda colcheia da voz

superior é �Réb3� ou �Mib3�. Contudo, possivelmente, houve um equívoco do editor ao

Page 82: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

69

escolher o �Réb3�, pois, confrontando com �Frevo� para piano, percebemos que se trata

mesmo de um �Mib�.

Compasso 27 Manuscrito e Edição Henry Lemoine � Notas �Fá#2�, �Ré2�, �Mi2� na voz inferior.

Provavelmente houve um equívoco do compositor ao passar para a partitura

o �Fá2� � que completaria a linha cromática descendente � acabou escrevendo o �Ré2�

que está na linha suplementar logo abaixo. O editor acabou repetindo o mesmo

equívoco. Tal incorreção pode ser ratificada ao se comparar com a versão para piano de

�Frevo�.

Compasso 49 Manuscrito � A primeira colcheia deste compasso é separada das três outras restantes. Edição Henry Lemoine � As quatro colcheias deste compasso estão agrupadas.

Assim como aconteceu nos casos anteriores, o editor preferiu não separar a

primeira semicolcheia do grupo restante, contrariando aquilo que está no manuscrito.

Mais uma vez, acreditamos na pertinência de tal separação no intuito de esclarecer a

independência entre os dois trechos.

Compasso 63 Manuscrito e Edição Henry Lemoine � Notas �Sib3�, �Lá2� e �Sol2� na voz inferior.

Provavelmente, a última nota desse compasso é �Sol#2�, se for mantida a

coerência com o compasso 57 e outros onde o mesmo motivo aparece.

Page 83: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

70

Compasso 83 Edição Henry Lemoine � A indicação poco

cedendo é repetida desnecessariamente.

No manuscrito, o compositor repete a indicação poco cedendo para reforçar

a idéia devido a uma mudança de página que ocorre. Na edição Lemoine, não ocorre tal

mudança de página, fato esse que torna desnecessária e até confusa tal repetição.

Compasso 101 Manuscrito � Há um acento na terceira colcheia do

compasso. Edição Henry Lemoine � Não há acento na

terceira colcheia do compasso.

A omissão do acento pela edição foi, provavelmente, uma falha. Portanto

mantivemos o acento em nossa edição.

Compasso 112 Manuscrito e Edição Henry Lemoine � Na última

semicolcheia do segundo tempo deste compasso está escrito um �Mi4� onde deveria estar um

�Ré4�.

Levando em consideração o motivo inicial de �Frevo�, a nota em questão

seria mesmo um �Ré4�, e não um �Mi4� como aparece tanto no manuscrito quanto na

edição.

Final da Peça,

(no rodapé da

página).

Manuscrito � Local e data da composição da

seguinte forma: �Rio de Janeiro, 11 de outubro de 1990�. Edição Henry Lemoine � Não há informações

sobre o local e data da composição.

Page 84: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

71

Tal como já foi comentado no �Choro� e na �Seresta�, julgamos pertinente

manter as datas de composição que foram incluídas no manuscrito.

3.4 � Informações Extraídas do �Frevo� para Piano

O �Frevo�, último movimento do IV Ciclo Nordestino Op.43 para piano de

Marlos Nobre, teve os seus primeiros esboços em 1977, mas só foi completamente

revisto e publicado em 1985. Esse frevo fez grande sucesso e acabou ganhando certa

independência do restante do Ciclo Nordestino Op.43, pois, só em 2006, os outros

movimentos foram publicados. A peça foi dedicada ao escritor e musicólogo, Leonardo

Dantas (1945) que, além de ter sido um dos incentivadores de Nobre em Recife, foi um

importante estudioso do frevo.

Já �Frevo� para violão, foi escrita posteriormente, no ano de 1991, como

parte integrante da suíte Reminiscências Op. 78 para violão solo, também de Marlos

Nobre. Para este compositor, apesar de ambas usarem o mesmo material musical, ele

não considera a versão para violão como uma transcrição, mas �uma reutilização, em

um instrumento diferente, das mesmas idéias�85. Este é mais um exemplo de um

processo composicional recorrente na obra de Marlos Nobre � que já foi comentado nos

Capítulos 1 e 2 � e consiste em �revisitar� um mesmo material musical, mas optando

por soluções diferentes das tomadas anteriormente.

Segundo o compositor, uma das principais motivações para escrever o

�Frevo� para violão era o fato de não existir, até o momento, nenhum frevo autêntico

para o instrumento e, além disso,

o frevo, sendo uma dança típica do Carnaval de Recife, tocada

por grande conjunto de metais, clarinetas, e percussão, nas ruas

85 Entrevista nº 2 (realizada no dia 23/06/07).

Page 85: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

72

de Recife, ao ser transportado para o violão, me levou a um exercício de imaginação que me foi extremamente excitante

artística e musicalmente falando86.

Nas versões para violão e piano a estrutura básica da peça é a mesma:

mesmo material temático, mesma organização formal, mesmo número de compassos.

Apesar disso, a diferença entre os caminhos tomados, em vários elementos da

composição, faz com que as duas peças tenham resultados sonoros e estéticos bastante

diversos.

Uma das primeiras coisas que chama atenção ao se comparar as duas peças

é a escolha dos registros das oitavas usados em cada versão. Não se trata de uma

simples adaptação à tessitura do violão. O compositor optou, em certos momentos, por

escrever, no �Frevo� do Op.78, em registro grave, o que, no �Frevo� do Op.43, está no

registro agudo e vice-versa.

Exemplo 11a: Frevo (piano), comp.1: Exemplo 11b: Frevo (violão), comp.1:

Exemplo 12a: Frevo (piano), comp.17: Exemplo 12b: Frevo (violão), comp.17:

Há momentos em que Nobre adapta a versão para violão para torná-la mais

idiomática para o instrumento, como no exemplo [13], mas, em outros momentos,

alguns padrões são modificados sem que haja relação com as particularidades do violão,

como é o caso do exemplo [14]:

86 Ibidem

Page 86: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

73

Exemplo 13a: Frevo (piano), comp.:13-14 Exemplo 13b: Frevo (violão), comp.13-14:

Exemplo 14a: Frevo (piano), comp.10: Exemplo 14b: Frevo (violão), comp.10:

Há também momentos em que acordes ou trechos inteiros são adaptados, ou

até completamente modificados como é o caso dos compassos 28, 29 e 30:

Exemplo 15a: Frevo (piano), comp.28-30:

Exemplo 15b: Frevo (violão), comp.28-30:

Entretanto, para os objetivos desta pesquisa, não é tão importante quais são

as diferenças entre as duas versões da peça, nem as razões pelas quais o compositor fez

tais modificações. O que importa, realmente, são as informações de articulação que

Page 87: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

74

estão presentes na primeira versão e que não estão no �Frevo� para violão, pois

influenciarão diretamente na interpretação da peça. Além das citadas informações, há,

ainda, na versão para piano, indicações de caráter que podem ser relevantes para o

executante.

A seguir, estão listadas as principais anotações que foram omitidas na

partitura para violão, mas que julgamos de grande utilidade para orientar o intérprete em

suas decisões, pois, além de reproduzir o estilo de execução das orquestras de frevo,

também refletem as possíveis intenções interpretativas do compositor.

Já que, entre as duas versões de �Frevo�, existem diferenças de oitavas e

troca de vozes (linhas que estavam na voz superior, podem aparecer na inferior e vice-

versa), optamos, no quadro onde são listadas as diferenças que incorporamos à nossa

edição de Reminiscências Op. 78, por fazer referência apenas à versão para violão.

Assim, ao nos referirmos à voz superior, significa a voz superior da versão para violão

(que pode ou não coincidir com a versão do piano). A altura das notas será feita

considerando o �Dó3� da primeira linha suplementar inferior da pauta, ou seja, sem

levar em conta que o violão é um instrumento transpositor.

Na tabela abaixo, serão descritos, a cada compasso, os dados incorporados

em nossa edição de �Frevo� da suíte Reminiscências Op. 78:

Tabela 1

Compasso �Frevo� para Piano

Início da

página Indicação �Vivo e Molto Rítmico�.

2 Indicação �Nervoso�. Staccatos na primeira e terceira colcheia da voz

superior deste compasso (�Fá3� e �Ré3�) e no baixo (�Ré2�).

3 Staccato na segunda, terceira e quarta colcheias deste compasso (�Si2�,

�Lá2� e �Sol2�).

4 Ligadura de expressão da segunda nota deste compasso até a primeira do

compasso seguinte. 5 Staccato nos baixos �Fá2� e �Ré2�. 6 Staccato na voz inferior �Ré2�.

Page 88: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

75

7 Staccato na segunda e terceira colcheia da voz inferior (�Sol2� e �Lá2�)

e acento na quarta colcheia (�Sib2�). 8 Staccato na segunda e terceira colcheia da voz inferior (�Lá2� e �Sol2�).

9 Staccato ns segunda, terceira e quarta colcheia da voz superior deste compasso (�Mib3�, �Ré3� e �Dó3�).

10 Ligadura de expressão da primeira nota deste compasso até a primeira do

compasso seguinte da voz superior.

11 Staccato na primeira e segunda semicolcheia do primeiro tempo (�Sib2�

e �Lá2�) e na segunda semicolcheia do segundo tempo (�Lá2�). O

crescendo já começa neste compasso.

12 Staccato na primeira, segunda e terceira colcheia deste compasso (�Sib2�, �Lá2� e �Sol2�). Um �Láb2� soa junto com o �Lá2� da segunda

colcheia.

13 Indicação �scherzando� com um �decrescendo� até o compasso seguinte.

Todas as notas deste compasso estão em staccato. 14 Todas as notas deste compasso estão em staccato, exceto a última.

16 Ligadura de expressão da primeira nota deste compasso até a primeira do

compasso seguinte.

17 Staccato na última semicolcheia do primeiro tempo (�Ré4�) e na

segunda e quarta do segundo tempo (�Mi4� e �Ré4�).

18 Staccato na primeira, segunda e terceira colcheia da voz superior deste compasso (�Fá4�, �Mi4� e �Ré4�).

19 Staccato na segunda e terceira colcheia da voz superior (�Sol3� e �Lá3�). 20 Staccato na segunda e terceira colcheia da voz superior (�Lá3� e �Sol3�).

21 Staccato na última semicolcheia do primeiro tempo (�Ré4�) e na

segunda e quarta do segundo tempo (�Mi4� e �Ré4�).

22 Staccato na primeira, segunda e terceira colcheia da voz superior deste compasso (�Fá4�, �Mi4� e �Ré4�).

23 Staccato na segunda e terceira colcheia da voz superior (�Sol3� e �Lá3�). 24 Staccato na segunda e terceira colcheia da voz superior (�Lá4� e �Sol4�). 25 Indicação �marcato�.

27

Staccato na segunda e quarta semicolcheias do primeiro tempo (�Lá3� e

�Sol3�) e na segunda e quarta semicolcheias do segundo tempo (�Lá3� e

�Sol3�) da linha superior, com um ligado entre a última semicolcheia do

primeiro tempo e a primeira do segundo tempo. A segunda colcheia da linha inferior é um �Fá2� e não �Ré2�.

33 Indicação �deciso�.

36 Ligado entre as notas do primeiro tempo e outro entre as notas do segundo tempo.

40 Ligado da primeira nota deste compasso até a primeira do compasso

seguinte.

41 Staccato na primeira nota do compasso. Ligado da penúltima

semicolcheia deste compasso até a primeira do compasso seguinte. 42 Staccato na primeira nota do compasso (�Lá4�). 47 Staccato na segunda e terceira colcheias da voz inferior (�Sol#2, �Lá2�).

49 Staccato na segunda, terceira e quarta nota da voz superior (�Dó3�,

�Ré3� e �Mib3�)

50 Indicação �impetuoso�. Ligado da primeira nota deste compasso até a

primeira do próximo.

Page 89: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

76

51 Indicação �Rudo�. Staccato na primeira, segunda e terceira colcheia da

voz superior (�Lá3�, �Sol3� e �Ré3�). SFZ na primeira e última colcheia

do compasso. 52 SFZ na última colcheia do compasso. 54 Indicação �furioso�.

56 Ligado da primeira nota deste compasso até a primeira do compasso

seguinte.

57 Ligado entre a terceira e quarta colcheia da voz superior (�Ré3� e

�Fá3�). Staccato na última colcheia da voz superior (�Fá3�). 58 Ligado nas duas primeiras colcheias e staccato na terceira colcheia.

59 e 60

Apesar de ser este compasso completamente diferente da versão para

violão, para ser coerente com outros trechos anteriores, supõe-se que, no compasso 59, deve haver staccatos na segunda, terceira e quarta colcheia (�Sib2�, �Lá2� e �Sol#2�). Já o compasso 60 deve ter um ligado da

primeira nota deste compasso até a primeira nota do compasso seguinte.

61 e 62 Também seguindo a coerência dos compassos 57 e 58, acreditamos que

deve-se usar a mesma articulação dos referidos compassos.

63 Staccato na segunda, terceira e quarta colcheia da voz inferior (�Sib2�,

�Lá2� e �Sol2�). 64 Ligado da primeira nota deste compasso até a primeira do seguinte. 65

Ligado da penúltima semicolcheia deste compasso até a primeira do

compasso seguinte.

66 Staccato na primeira colcheia deste compasso (�Fá2�). Indicação �molto

deciso�. Acentos na primeira nota do primeiro e segundo tempo (�Fá2�).

67 Indicação de �crescendo�. Staccato na segunda e terceira colcheia (�Sol2� e �Lá2�).

69

Indicação �crescendo�. Ligado da segunda colcheia do primeiro tempo

até a primeira nota do segundo tempo, e da segunda colcheia do segundo

tempo até a primeira nota do compasso seguinte. Staccato na primeira

nota do segundo tempo (�Fá2�).

71

Ligado da segunda colcheia do primeiro tempo até a primeira nota do

segundo tempo, e da segunda colcheia do segundo tempo até a primeira

nota do compasso seguinte. Staccato na primeira nota do segundo tempo (�Sib3�).

72 Staccato na primeira, segunda e terceira colcheia da voz superior (�Sib3�, �Lá3� e �Sol3�).

73 Indicação �crescendo�. Staccato na segunda, terceira e quarta colcheia

do compasso superior (�Mib4�, �Ré4� e �Dó4�).

74 As notas da voz inferior são: �Dó3�, �Si2�, Sib2� e �Lá2�, todas com

staccato. Ligado da primeira nota deste compasso até a primeira nota do

compasso seguinte.

75

As notas da voz inferior são: �Láb2�, �Sol2�, �Solb2� e �Fá2� todas com

staccato. Staccato na segunda semicolcheia do primeiro e segundo tempo (�Lá3�). Ligado da última semicolcheia do primeiro tempo até a

primeira nota do segundo tempo, e da última semicolcheia do segundo

tempo até a primeira nota do compasso seguinte.

76 A nota da primeira colcheia da voz inferior é �Mi2�. Indicação

�impetuoso�. Staccato na primeira, segunda e terceira colcheia. 77 Indicação �grazioso�. Staccato em todas as notas. Indicação

Page 90: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

77

�decrescendo� até o fim do compasso seguinte. 78 Staccato em todas as notas exceto a última colcheia. 79 Staccato na segunda, terceira e quarta colcheia da voz superior.

81 (continuação)

Ligado da terceira semicolcheia do primeiro tempo até a primeira nota

do segundo tempo. Staccato na primeira colcheia do segundo tempo (�Lá3�).

82 Ligado da primeira semicolcheia até a terceira semicolcheia do primeiro tempo. Staccato na segunda colcheia do primeiro tempo e segunda colcheia do segundo tempo.

83 Ligado da terceira semicolcheia do primeiro tempo até a primeira nota

do segundo tempo. Staccato na primeira colcheia do segundo tempo (�Si2�).

84 Ligado da primeira semicolcheia até a terceira semicolcheia do primeiro

tempo. Staccato na segunda colcheia do primeiro tempo e segunda colcheia do segundo tempo.

85 Ligado da terceira semicolcheia do segundo tempo até a primeira nota do

compasso seguinte.

86 Indicação �sherzando�. Ligado da terceira semicolcheia do primeiro

tempo até a segunda semicolcheia do segundo tempo. Staccato na

primeira nota do compasso.

87 Staccato na segunda e terceira colcheia da voz inferior (�Sol#2� e

�Lá2�). 88 Staccato na segunda e terceira colcheia da voz inferior (�La2� e �Sol2�).

89

Ligado da terceira semicolcheia do primeiro tempo até a primeira nota

do segundo tempo. Ligado da terceira semicolcheia do segundo tempo até a primeira nota do compasso seguinte. Staccato na primeira colcheia do segundo tempo.

90 Ligado da terceira semicolcheia do primeiro tempo até a segunda

semicolcheia do segundo tempo. Staccato na primeira nota do compasso.

91 Staccato na segunda e terceira colcheia da voz inferior (�Sol#2� e

�Lá2�).

92 Ligado da terceira semicolcheia do primeiro tempo até a segunda

semicolcheia do segundo tempo.

93 Staccato na segunda, terceira e quarta nota da voz superior (�Mib3�,

�Ré3� e �Dó3�). 94 Ligado da primeira nota deste compasso até a primeira do seguinte.

95

Staccato na primeira nota do primeiro e segundo tempo (�Sib2�). Ligado

da última semicolcheia do primeiro tempo até a primeira nota do

segundo tempo e da última semicolcheia do segundo tempo até a

primeira nota do compasso seguinte. 96 Staccato na segunda e terceira colcheia. 100 Ligado da primeira nota deste compasso até a primeira do seguinte.

101 Ligado entre a terceira e quarta colcheia da voz superior (�Ré3� e

�Fá3�). Staccato na última colcheia da voz superior (�Fá3�). 102 Ligado nas duas primeiras colcheias e staccato na terceira colcheia. 103 Staccato na segunda colcheia do primeiro tempo. 104 Staccato na primeira e última colcheia do compasso. 107 Staccato na segunda e quarta nota da voz superior (�Sib3�). 109 Staccato na segunda semicolcheia do primeiro e segundo tempo. Ligado

Page 91: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

78

da quarta semicolcheia do primeiro tempo até a segunda semicolcheia do

segundo tempo. Ligado da última semicolcheia deste compasso até a

primeira nota do compasso seguinte. 110 Staccato na primeira, segunda e terceira colcheia (�Fá2�, �Mi2� e �Ré2�) 111 Staccato na segunda e terceira colcheia da voz superior (�Sol#3�, �Lá3�) 112 Staccato na segunda e terceira colcheia da voz superior (�Lá3� e �Sol3�) 115 Staccato na segunda e terceira colcheia da voz superior (�Sol#3�, �Lá3�) 119 Staccato em todas as notas deste compasso. 120 Staccato em todas as notas deste compasso. 121 Staccato em todas as notas deste compasso. 122 Staccato em todas as notas deste compasso exceto a última.

Em nossa edição de Reminiscências op. 78 incluiremos duas versões da

partitura de �Frevo� para violão. Uma só com as indicações que o próprio compositor

escreveu em seu manuscrito e na edição da Henry Lemoine, e uma outra versão

incluindo todos os acréscimos listados acima, que foram extraídos do �Frevo� para

piano do IV Ciclo Nordestino, de Marlos Nobre.

Page 92: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

79

CAPÍTULO 4

Análise de Reminiscências Op. 78

Ao se executar uma partitura, necessariamente, o intérprete tem que tomar

diversas decisões, ainda que de forma planejada ou impulsiva. Ao mesmo tempo em que

as limitações dos sinais de notação são um dado incontestável, há ainda o fato de um

texto musical, por si só, não alcançar a sua significação plena sem o contexto histórico,

geográfico e da tradição na qual está inserido.

Assim, dentro da multiplicidade de possibilidades de interpretação que uma

partitura pode oferecer, uma das metodologias mais usadas pelos intérpretes para

embasar suas escolhas tem sido a análise musical da peça. No entanto, Edward Cone

alerta que não se trata de tentar aproximar-se de algum ideal de interpretação perfeita,

mas que todas as interpretações válidas são o resultado da escolha de quais as relações

implícitas da peça devem ser enfatizadas87.

Para a análise de Reminiscências Op. 78, julgamos importante expor não só

a organização e estrutura interna da peça, mas também apontar os elementos

tradicionais da música brasileira que serviram de referência para a composição da peça,

bem como demonstrar as interações desses elementos com os que são próprios da

linguagem da música contemporânea utilizados por Nobre. A partir da identificação

desses dois últimos aspectos, que se encontram condensados nesta peça de Nobre,

certamente, o intérprete poderá ter mais ferramentas para decidir sobre a forma de

execução de cada trecho.

87 Edward Cone, Musical Form and Musical Performance, Nova York: W.W. Norton & Company, 1968, p. 34.

Page 93: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

80

Ademais, a análise de cada movimento será precedida por uma

contextualização acerca do gênero da música brasileira que lhe serviu de base, além do

levantamento de dados históricos, sociais e estilísticos de cada gênero.

4.1 - O Gênero Choro

A origem do nome �Choro� é confusa e controversa. Para o folclorista Luiz

da Câmara Cascudo, a origem do nome vem de um baile rural dos escravos denominado

xolo que, por confusão com a parônima portuguesa �choro� (sinônimo de pranto),

passou a ser conhecido como xoro, até que, ao chegar à cidade, foi grafada

definitivamente como choro.

Para outros pesquisadores, no entanto, o termo resultaria da redução ou

abreviação88 do vocábulo choromeleiros, o qual denominava o agrupamento musical do

período colonial que executava charamelas. Nesse sentido, Ary Vasconcelos, que atribui

a formação da nova palavra a um processo de simplificação não apenas da língua, como

também da música.

Há, ainda, a corrente que atribui a formação do vocábulo choro à maneira

exageradamente sentimental e �chorosa� com que os músicos daquela época

abrasileiravam as danças vindas da Europa. Esta última suposição tem sido a mais

aceita, embora ainda haja muita divergência sobre a origem do nome. O estudioso do

choro Henrique Cazes, conclui esse assunto afirmando:

Um estudo mais profundo da palavra choro certamente apontaria ainda mais caminhos, pois choro pode significar pechincha ou aquela quantidade além da dose de qualquer

bebida alcoólica. Tudo isso poderia gerar teorias as mais

assombrosas, que não ajudariam em nada a compreensão do

processo artístico de desenvolvimento dessa musicalidade.89

88 Processo de formação de palavras que consiste na eliminação de um segmento da palavra, a fim de se

obter uma forma mais curta. Ex.: moto (motocicleta), gel (gelatina), cine (cinema)). 89 Henrique Cazes, Choro: Do Quintal ao Municipal, São Paulo: Editora 34, 2005, p.17.

Page 94: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

81

Assim, como a maior parte dos gêneros da música popular urbana do Brasil,

o choro nasceu da transformação, e por que não da nacionalização, de danças de origem

européia que, com o tempo, acabou por adquirir características e feições próprias que

dificilmente permitiriam confundi-lo com os gêneros europeus do qual descende. Esse

mesmo fenômeno também pode ser observado em diversos países que sofreram

colonização européia. A partir da polka vinda da Boêmia, por exemplo, surgiram ritmos

tão diversos como o maxixe brasileiro, a beguine da Martinica, o dazón de Cuba e o

ragtime norte-americano.

O provável surgimento do que viria a ser o Choro ocorreu por meados do

século XIX, nos subúrbios do Rio de Janeiro. Nessa época, a palavra �Choro� ainda não

designava o gênero, mas os conjuntos instrumentais típicos e uma maneira particular de

se executar as danças européias de salão em voga na época, tais como a valsa, o

schottishe e, principalmente, a polca. Nesse sentido, o cavaquinhista Henrique Cazes,

em seu livro Choro: do Quintal ao Municipal informa que se tivesse que �apontar uma

data para o início da história do Choro, não hesitaria em dar o mês de julho de 1845,

quando a polca foi dançada pela primeira vez no Teatro São Pedro�90.

Uma série de fatores históricos e socais contribuíram para a formação do

choro como gênero musical no Rio de Janeiro de então. Após 1860, quando a

exportação de café garantia até a metade das divisas do país e o Brasil passava a

demonstrar os primeiros sinais de industrialização, diversos melhoramentos urbanos

começavam a surgir na Capital do Império. Instituições públicas como Correios e

Telégrafos, Alfândega, Casa da Moeda, Arsenal da Marinha, Estrada de Ferro Central

do Brasil, juntamente com empresas particulares da área de transportes públicos,

iluminação pública, indústria, entre outras, mudariam radicalmente o quadro social

90 Ibidem, p. 17.

Page 95: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

82

herdado da colônia e do primeiro reinado, com o aparecimento da figura do operário

industrial e dos pequenos funcionários do serviço público91. Dessa nova classe média

começaram a surgir não só os músicos que faziam o Choro, mas também o público

consumidor dessa música.

Segundo José Ramos Tinhorão:

Enquanto os melhor situados na distribuição dos empregos

procuravam equiparar-se à pequena burguesia européia

freqüentando os espetáculos lorettes franceses do Alcazar

Lyrique da Rua da Vala, a camada mais ampla dos pequenos burocratas passava a cultivar a diversão familiar das reuniões e

bailes nas salas de visitas, ao som de tocadores de valsas, polcas, schottiches e mazurcas à base de flauta, violão e

cavaquinho.92

Uma das grandes fontes de informação sobre quem eram e quais as práticas

dos antigos tocadores do choro é o livro de Alexandre Gonçalves Pinto, intitulado O

Choro � Reminiscências dos Chorões Antigos, no qual o autor recorda e lista os

�chorões� da antiga capital da república entre os anos de 1870 e 1935.

Nesse livro, que é uma das mais importantes referências histórica acerca do

choro, há detalhes sobre a vida dos chorões, informações sobre as suas músicas e sobre

a ambiência na qual ocorriam os encontros de que participavam.

Confirmando a importância que a nova classe trabalhadora de funcionários

públicos tinha para o choro dessa época, no livro de Gonçalves Pinto, observa-se que,

dentre os cento e vinte oito músicos citados, cujas profissões estavam discriminadas,

cento e vinte e dois eram funcionários públicos. Dentro destes, cerca de um terço era

constituído de empregados dos Correios e Telégrafos.

No que diz respeito aos instrumentos usados por esses músicos, os mais

comuns eram a flauta, o cavaquinho e o violão. O quarto instrumento mais usado era o

oficlide, que depois caiu em desuso e foi substituído pelo saxofone devido a influência

91 Ver José Ramos Tinhorão, História Social da Música Popular Brasileira, São Paulo: Editora 34, 1998. 92 José Ramos Tinhorão, Op. Cit. p.195.

Page 96: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

83

das jazz bands norte-americanas. Outros como o bandolim, por exemplo, também eram

utilizados, mas a flauta, o cavaquinho e o violão tornaram-se os instrumentos ícones do

Choro. Já o pandeiro, que posteriormente se tornou um instrumento quase indispensável

a um grupo de choro, só foi definitivamente introduzido por volta da década de vinte. À

essa formação instrumental para se tocar Choro, acabou-se dando o nome de �regional�.

Segundo Henrique Cazes:

O nome regional se originou de grupos como Turunas Pernambucanos, Voz do Sertão e mesmo Os Oito Batutas que,

na década de 1920, associavam a instrumentação de violões,

cavaquinho, percussão e algum solista a um caráter de música

regional.93

É interessante perceber que o referido instrumental típico do Choro é

comum em diversos países de colonização portuguesa. Da mesma forma, o caráter

sentimental e nostálgico que marcava o estilo dos primeiros executantes do choro, que

tocavam as danças de salão européias, também parece herdada da colonização

portuguesa94.

O processo de desenvolvimento do Choro, que se extende desde a

consolidação de um conjunto instrumental e de uma forma característica de tocar as

danças européias de salão, até o surgimento de um gênero brasileiro com fisionomia

própria, foi lento e gradual. Isso foi possível devido à influência de importantes músicos

que contribuíram para essa transformação durante várias etapas do choro, tais como

Joaquim Callado (1848-1880), Ernesto Nazareth (1863-1934), Chiquinha Gonzaga

(1847-1935), Anacleto de Medeiros (1866-1907), Pixinguinha (1897-1973), Zequinha

de Abreu (1880-1935), Luis Americano (1900-1960), Luperce Miranda (1904-1977),

Garoto (1915-1955), Jacob do Bandolim (1918-1969), Waldyr Azevedo (1923-1980),

Severino de Araújo (1917-2002), entre outros. 93 Henrique Cazes, Op.Cit. p.83. 94 Ver Henrique Cazes, Op.Cit.

Page 97: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

84

Nos mais de cem anos de história do Choro, esse gênero passou por épocas

de maior ou menor popularidade e aceitação, mas segue sua trajetória como um dos

principais gêneros da música instrumental urbana brasileira, que continua se renovando

por novos intérpretes e compositores até hoje.

Na música erudita brasileira, o choro foi uma freqüente fonte de inspiração

de muitos compositores. Heitor Villa-Lobos, por exemplo, tem em sua série, Os Choros,

uma de suas mais marcantes obras, e que teve como fonte de inspiração o choro carioca,

sem copiá-lo, mas utilizando-o de forma bastante original. Outro importante compositor

da chamada música erudita nacional, o gaúcho Radamés Gnattali (1906-1988), não só

foi influenciado pelo choro, como também foi responsável por diversas inovações que

acabaram se incorporando ao citado gênero.

Seria inútil tentar listar aqui todos os compositores que usaram, em obras

suas, traços característicos do Choro, pois é provável que esse tenha sido o gênero da

música popular urbana que mais influenciou os compositores de música instrumental

deste país. Quase todos os importantes nomes da música erudita brasileira, como

Francisco Mignone, Camargo Guarnieri, Cláudio Santoro, tiveram obras que de alguma

forma utilizaram elementos proveniente do choro.

São várias as características que distinguem o choro como um gênero, assim

como são variadas as formas como os compositores eruditos se utilizaram dos

elementos do choro para compor peças, com um maior ou menor grau de aproximação

do gênero original. Neste estudo, serão destacados apenas alguns aspectos importantes

do choro tradicional, os quais servirão como referência para a posterior análise do

�Choro� e também da �Seresta�� primeiro e segundo movimentos de Reminiscências

Op. 78 � de Marlos Nobre.

Page 98: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

85

O compasso mais comum no choro é o 2/4. Assim como acontece no jazz,

cujos acentos fortes do compasso 4/4 estão no segundo e quarto tempo, na música

brasileira este acento está localizado, geralmente, no segundo tempo (samba, choro,

frevo etc). Também é muito comum o compasso 3/4 nos choros originados da valsa.

O caráter e o andamento dos choros podem variar muito, existindo choros

mais sentimentais e melancólicos como Carinhoso e Lamentos, de Pixinguinha, ou mais

rápidos e brejeiros como Apanhei-te Cavaquinho, de Ernesto Nazareth, e Brasileirinho,

de Waldir Azevedo. É importante salientar que, mesmo com o aparecimento do Choro

como um gênero com características próprias, o repertório dos �chorões�, e até o

próprio Choro, continuou incorporando elementos e composições de outros gêneros.

Com efeito, percebe-se que, além das já tradicionais polcas, quadrilhas, valsas, maxixe,

entre outros, passa a ser comum utilizar-se de gêneros como o frevo e o baião para

serem executados com a formação instrumental e elementos característicos do choro.

As figuras rítmicas mais comuns nos choros são: 1) Figura que tem sua

origem no maxixe, que, por sua vez, descende da habaneira: ; 2) Figura também

característica de outros ritmos brasileiros como o samba: .

A forma tradicional do choro é em três partes � A, B e C �, geralmente

havendo uma estrutura harmônica estabelecendo modulações para os tons vizinhos entre

as partes. O padrão de execução dessas partes é A-A-B-B-A-C-C-A. Entretanto, é

comum que essas repetições não sejam seguidas rigidamente, podendo ser encontrados

exemplos nos quais o próprio compositor executa a sua música com alterações nas

repetições. O Choro em duas partes � executado A-A-B-B-A � também é comum, não

sendo, portanto, aquela uma regra rígida, nem no que diz respeito à forma, nem às

modulações, especialmente nos choros mais modernos. O clarinetista e compositor de

choro K-Ximbinho declara sobre o choro em duas partes:

Page 99: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

86

É menos enfadonho, porque três partes é o choro característico

brasileiro dos bandolins (...) isso ainda existe hoje, mas (...) desde que iniciaram a apresentação de chorinho, parece que,

talvez, obrigatoriamente, o choro tinha que apresentar três

seções. Hoje, eu acho que é desnecessário isso; em duas seções

você demonstra o conteúdo melódico de uma composição

popular como é o chorinho, e acho que na primeira seção a

melodia já fica explicitada, estabelecida, esclarecida (...). Isso é

uma maneira de pensar (...) não sei se estou fugindo da regra (...) se estou fugindo, eu volto!95

Harmonicamente, é freqüente o movimento linear, descendente ou

ascendente da linha do baixo, em intervalos diatônicos ou cromáticos. Os acordes

diminutos de passagem são muito freqüentes como forma de dar o movimento

cromático da linha do baixo. Os acordes são baseados nas tríades, mas, com freqüência,

estes aparecem com a sexta ou com a sétima acrescentada. Modulações bruscas, e o uso

constante de tonicalizações explorando, principalmente, o cromatismo, também são

características harmônicas freqüentes nos choros. Com a influência do jazz, diversos

choros mais modernos têm uma harmonia bem mais complexa, com mais notas

acrescentadas e modulações inesperadas.

No que diz respeito à utilização dos instrumentos, cada um tem uma função

específica dentro do conjunto. O solo � que freqüentemente é feito pela flauta, clarinete,

bandolim ou outro instrumento melódico � geralmente toca a melodia e, no caso de

haver mais de um solista, a melodia pode ser dividida entre eles, ou um faz um

contracanto, enquanto o outro executa a melodia principal. À função do cavaquinho é

dado o nome de �centro�, e ele faz o ritmo e a base harmônica. O violão (ou violões),

sendo com freqüência um deles com sete cordas, realiza, além das harmonias,

contracantos na região dos baixos, que são chamadas de �baixaria� ou �obrigações�. Ao

pandeiro e aos demais instrumentos de percussão, cabem a realização do ritmo.

Geralmente, ao se introduzir outros instrumentos na formação de um regional de choro, 95 K.Ximbinho Apud Elisa Alves Goritzki, �Manezinho da Flauta no Choro: uma Contribuição para o Estudo da Flauta Brasileira�, Dissertação de Mestrado, Universidade Federal da Bahia, 2002, p. 22.

Page 100: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

87

os instrumentos acrescidos acabam tendo uma das funções acima. No caso do repertório

para instrumentos solos, como violão ou piano, o instrumento assume um pouco de cada

uma das funções.

4.2 - Análise do Primeiro Movimento � �Choro�

O �Choro�, primeiro movimento da Suíte Reminiscências Op.78, possui 120

compassos que estão estruturados num esquema formal semelhante ao usado pela

maioria dos choros tradicionais (ABACA). Contudo, há particularidades nesta peça de

Nobre, como a ausência de ritornelos entre as diferentes partes; outra diferença está na

seção A (também chamada de refrão) que, aqui, a cada reaparição, vai sofrendo

modificações, chegando à sua última aparição (A3) como uma síntese entre as partes A

(inicial) e B. É verdade que, nas execuções tradicionais dos choros, são feitas

modificações a cada repetição do refrão, entretanto, normalmente, estas modificações

não são escritas, e sim improvisadas. Além do mais, a estrutura básica costuma ser

sempre a mesma, inclusive com igual número de compassos, ao contrário do que

acontece no �Choro� de Nobre.

A organização formal do primeiro movimento do Op. 78 de Nobre pode ser

resumida conforme o seguinte quadro:

Tabela 2 Partes: A B A2 C A3

N. dos Compassos: 1-31 32-53 54-74 75-96 97-120 Andamento: Vivo Poco meno mosso Tempo I Adágio Tempo I

Na maioria dos choros tradicionais, cada seção é composta de 16

compassos. Embora isso não seja uma regra, é uma prática muito comum. No entanto,

esse tipo de formalismo limitador não é usual na obra de Nobre. Para ele, a forma é

derivada do desenvolvimento dos temas, e não o contrário. Segundo Vanessa da

Page 101: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

88

Cunha96, �o esquema formal da obra de Marlos Nobre nunca é pré-estabelecido, a forma

em sua música é sempre uma conseqüência do desenvolvimento do material�, por isso a

não adoção daquele padrão de 16 compassos e a irregularidade que se observa entre o

número de compassos das seções A, A2 e A3, ou mesmo entre as outras partes desta

peça. Nobre, em outras composições, chegou a usar padrões formais consagrados como,

por exemplo, a forma sonata, mas sempre de forma livre e nunca como um molde pré-

estabelecido e rígido.

No plano rítmico da peça, Nobre se utiliza apenas das células rítmicas mais

comuns no choro, sobre o usual compasso 2/4, que só deixa de ser usado em um trecho

muito curto que não descaracteriza em nada a rítmica do choro. Segundo um

levantamento e classificação, feitos por Carlos Almada97, das células rítmicas usadas

nos choros, ele chega ao seguinte quadro, no qual as mesmas são divididas entre

principais (mais características) e as secundárias (de apoio), que são basicamente as

mesmas usadas por Nobre em todo o movimento:

Exemplo 16: Células rítmicas usadas no gênero choro:

Entretanto, Nobre faz uso de um recurso que, aliás, é freqüente em toda a

sua obra: o deslocamento dos padrões de acentos criando uma instabilidade e balanço,

que reforçam as síncopes comuns na música brasileira.

96 Vanessa Rodrigues da Cunha. �A Influência da Música Folclórica e Popular em Três Obras para Piano

de Marlos Nobre: um Estudo Comparativo das Constâncias Técnicas e Estéticas na Formação de um

Estilo�. Dissertação de Mestrado, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1997, p. 50. 97 Carlos Almada, A Estrutura do Choro. Rio de Janeiro: Da Fonseca, 2006, pp.10-11.

Page 102: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

89

Exemplo 17: Choro (Marlos Nobre), comp. 29:

Em Reminiscências Op. 78, mesmo se tratando de uma obra da fase mais

recente do compositor, classificada dentro de sua quinta fase composicional, a

influência de Ernesto Nazereth98 pode ser notada em certos padrões rítmicos e

melódicos, que, aliás, também estão presentes na obra de João Pernambuco e diversos

outros compositores do choro, que influenciaram essa composição de Nobre. Podemos

observar algumas semelhanças entre os seguintes exemplos de peças dos três

compositores:

Exemplo 18a: Dengoso (João Pernambuco), comp. 1-5:

Exemplo 18b: Choro (Marlos Nobre), comp. 1-5:

Exemplo 18c: Odeon (Ernesto Nazareth), comp. 1-5:

Já nos motivos iniciais das três peças podem ser observadas muitas

similaridades. Por um lado, Dengoso e �Choro� têm a mesma célula rítmica e o mesmo

98 Ernesto Nazareth foi a principal influência do compositor durante sua primeira fase que vai de 1959 até

1963.

Page 103: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

90

contorno melódico. Por outro, em Odeon e �Choro�, observa-se o uso da cromatização

descendente para atingir a nota estrutural do compasso seguinte. No decorrer das três

peças, observa-se em comum o uso de uma linha de baixo descendente sobre as mesmas

células rítmicas, com algumas intervenções mais ativas em dados momentos. Há, ainda,

outras semelhanças como o compasso 2/4, o tipo de textura e o ritmo do

acompanhamento. Os elementos ora citados podem ser encontrados em diversos outros

choros, por isso, são meras ilustrações de como Nobre se utiliza do vocabulário do

choro para compor o primeiro movimento de Reminiscências Op. 78.

A partir do desenvolvimento do material temático presente no exemplo 1,

Nobre desenvolve toda a seção A com grande concisão, típica da escrita deste

compositor. São usados procedimentos de transformação temática como transposição,

fragmentação, extensão, figurações adicionadas ou subtraídas, inversão melódica,

cromatismos e variação das acentuações. Dessas transformações temáticas, resultam

frases de grande variedade e aparente espontaneidade. Segundo Maria Luiza Corker

Nobre, esposa do compositor, �o princípio do desenvolvimento e da variação orgânica

dos motivos e idéias iniciais de cada obra, seria cada vez mais [a partir de 1980] a

obsessão de Marlos Nobre�99. Numa análise mais minuciosa, poder-se-ia observar que

todos os motivos melódicos que aparecem no decorrer desta seção parecem derivar do

primeiro compasso, pois os contornos melódicos seguem o mesmo desenho, o desenho

melódico oposto, ou algum tipo de derivação deles: seja por variação, fragmentação ou

extensão.

A seção A deste movimento explora, principalmente, frases do baixo

evocando o estilo das �baixarias� do choro. Os baixos desenvolvem linhas, ricas em

cromatismos, sobre células rítmicas características, baseadas em motivos ascendentes

99 Maria Luiza Corker-Nobre,�Aspectos Técnicos e Estéticos de Sonâncias III de Marlos Nobre: uma

Introdução à Problemática da Intuição Versus Cerebralismo�, Dissertação de Mestrado, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1995, p.12.

Page 104: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

91

ou descendentes que têm como objetivo uma nota �alvo�. Esta é, normalmente, uma

nota estrutural da harmonia usada, tal como fazem os violões de 7 cordas nas execuções

de samba e choro100. No entanto, o alto grau de modernidade alcançado por Nobre é

resultado da harmonia escolhida, bem como dos intervalos e desenhos melódicos

resultantes da criação das linhas do baixo, como se poderá observar adiante.

Na criação das linhas melódicas do baixo, o compositor usa melodias nas

quais os intervalos de segunda menor e maior são combinados de forma não usual e sem

uma regularidade aparente. Usa também mudanças de oitava, quebrando a linha

esperada e fazendo com que a melodia não tenha um aspecto que a identifique com a

música tonal:

Exemplo 19: Choro (Marlos Nobre), comp. 17-20:

Já a harmonia usada na seção A é predominantemente quartal, contrariando

a tradicional harmonia triádica típica dos choros, além do mais, Nobre explora de forma

muito incisiva e pessoal o uso do cromatismo, como pode ser observado no exemplo

[18b]. A tendência de cromatização de determinadas notas dos acordes e de passagens

do baixo, que encontramos nos choros tradicionais, é levada a extremo por Marlos

Nobre, num procedimento adotado, freqüentemente, em diversas outras peças do

compositor.

100 Ver Remo Tarazona Pellegrini, �Análise dos Acompanhamentos de Dino Sete Cordas em Samba e

Choro�, Dissertação de Mestrado, Universidade de Campinas, 2005.

Page 105: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

92

A organização das frases nesta seção pode ser resumida no seguinte quadro:

Tabela 3

Apesar de não haver os usuais ritornelos nesta seção, Nobre parece, a partir

do compasso 15, reescrever toda a seção já tocada, porém de forma completamente

variada. Chega-se a esta conclusão porque a idéia de linha ascendente cromática da voz

superior, que parte do �Lá3� (no compasso 2) até chegar ao �Fá5� (no compasso 15), é

repetida a partir desse compasso (15). Ao mesmo tempo, o motivo inicial da peça é

reapresentado, e a nova linha ascendente é criada, desde o �Ré4�, no compasso 16, até

chegar novamente ao �Fá5�, no final dessa seção (compasso 31). O fato de Nobre, ao

re-expor esta seção em A2, só usar os compasso 15 a 31, corrobora com essa visão

analítica, como se comprovará mais adiante.

Exemplo 20: Esquema resumindo a harmonia e a melodia de Choro, comp. 2-15:

Seção Frases Compassos Dinâmicas

a 1-5 F

b 6-10 (f) A

c 10-15 MF

a 15-21 F

b 21-25 piú f A�

c 26-30 (piú f), ff

Page 106: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

93

Exemplo 21: Esquema resumindo a harmonia e a melodia de Choro, comp. 16-31:

Já a parte B da peça, apesar de aparentar uma preocupação melódico-

contrapontística � por tratar-se de uma espécie de canon livre a duas vozes em oitava �

o resultado sonoro, devido ao uso constante dos intervalos de segunda, sétima e nona, é

mais textural e rítmico do que propriamente contrapontístico.

Ocorre, nesse trecho, uma espécie de parafonia livre entre as duas vozes,

onde a divisão rítmica, combinada aos intervalos muito dissonantes, obscurece qualquer

referência à harmonia ou contraponto, fazendo com que haja, nele, um efeito

percussivo. Assim, somado a tudo isso, a divisão rítmica toda em semicolcheias tocadas

em staccato, juntamente com o acento na última semicolcheia de cada tempo, faz com

que o efeito de todo esse trecho lembre o som de um pandeiro no acompanhamento do

choro.

Exemplo 22: Choro, comp. 34-36:

Exemplo 23: Ritmo do pandeiro no choro:

Page 107: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

94

O motivo que gera toda esta seção é derivado daquele que inicia a peça,

apenas com o acréscimo de duas notas cromáticas e a substituição de uma colcheia

pontuada por três semicolcheias.

Exemplo 24a: Motivo inicial da seção A: Exemplo 24b: Motivo inicial da seção B:

O uso do motivo rítmico, no qual a colcheia pontuada é trocada por três

semicolcheias na mesma nota, é comum em diversos choros, pois dão um balanço

característico, como na peça Sarambeque de Ernesto Nazareth:

Exemplo 25a: Sarambeque, comp. 1-5:

Exemplo 25b: Choro (Marlos Nobre), comp. 41-43:

Marlos Nobre utiliza, durante toda seção B, o mesmo material temático que

é desenvolvido de forma semelhante ao descrito na seção A. Aqui, o compositor

também cria um acúmulo de tensão, partindo de um mp até chegar ao ff no final da

seção, como pode ser observado no quadro seguinte.

Page 108: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

95

Estrutura formal da seção B:

Tabela 4 Frases Compassos Dinâmicas

A 32-37 mp, cresc.

B 38-44 mf, f

C 44-51 piú f, crec., ff

Ao voltar para a parte A, ao contrário do esperado, Nobre não repete a seção,

mas a reescreve, incluindo diversas variações e modificações de notas. Contrariando

ainda mais a expectativa, ele reescreve apenas a partir da segunda metade da seção A

inicial (do compasso 15 ao 31).

Exemplo 26a: Choro, (Marlos Nobre), comp.15-18:

Exemplo 26 b: Choro, (Marlos Nobre), comp.53-56:

Esse fato ratifica a idéia exposta anteriormente de que, no A inicial, ao invés

de usar o ritornelo, o compositor opta por reescrever variando, numa possível analogia

às variações feitas a cada repetição pelos executantes de choro. O seguinte exemplo

mostra a harmonia e o direcionamento melódico de A2 que, inclusive, é semelhante ao

da segunda metade de A1:

Page 109: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

96

Exemplo 27: Esquema resumindo a harmonia e a melodia de Choro, comp.55-71:

A seção C da peça, que traz a indicação �Adagio (como uma recordação)�, é,

como em muitos choros, um trecho de maior contraste de caráter. Nesta parte, o

ambiente da peça se modifica completamente, mostrando o lado mais melodioso e

nostálgico do choro. Nobre modifica e re-harmoniza o tema de Dengoso de João

Pernambuco, recordando, talvez, a execução desta peça durante os encontros de

violonistas que Nobre freqüentou com o pai na década de quarenta.

Em entrevista, Nobre declarou que, apesar da homenagem a João

Pernambuco, não há citações diretas das peças desse compositor em Reminiscências Op.

78101. É possível que, assim como ocorreu em Rememórias Op. 79

102, Nobre tenha

escrito a melodia de Dengoso a partir uma lembrança remota, sem ter consciência da

citação.

Exemplo 28a: Dengoso (João Pernambuco), comp. 13-18:

101 Ver entrevista 1 (Realizada em 09/04/07). 102 Ver Capítulo 2.

Page 110: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

97

Exemplo 28b: Choro (Marlos Nobre), comp. 75-80:

Em todo o trecho é utilizada uma harmonização tonal das frases, enriquecido

por um delicado contraponto, que, pela riqueza de informações, acaba criando a

impressão de se ouvir todo um conjunto de choro. Isso porque, além de uma melodia

cantabile, há linhas do baixo fazendo desenhos rítmicos e melódicos característicos,

além do uso de contramelodias e figurações lembrando os demais instrumentos

acompanhantes.

Toda a seção C é estruturada em frases regulares de 4 compassos cada.

Finalizando essa seção, Nobre cria uma suave atmosfera, com andamento ainda mais

lento, usando uma modificação de um motivo desta seção, mas desta vez utilizando

harmônicos, sobre a figuração do baixo semelhante à usada no final da seção A e A2.

Na última parte de �Choro�, o compositor usa um pedal na nota �Ré� grave

do violão em um ostinato rítmico, enquanto fragmentos melódicos das seções A e B vão

aparecendo com extensões cada vez maiores e com dinâmica crescente, partindo de um

pp misterioso até chegar num ff; finalizando com um acorde de sonoridade cheia,

aproveitando a afinação natural do instrumento.

Logo após, o compositor desenvolve um intenso stretto utilizando o motivo

inicial da peça, totalizando cinco entradas do referido motivo, que cria ainda maior

Page 111: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

98

tensão que culminam em acordes rasgueados rapidíssimos. O efeito desses acordes

lembra muito a sonoridade do cavaquinho devido ao uso de notas no registro agudo do

violão e pelo uso daqueles rasgueados, lembrando o acompanhamento feito com palheta

pelo cavaquinho. A peça termina de forma súbita e violenta, após uma breve figuração e

um acorde final curto, usando as três cordas soltas mais graves do violão.

Exemplo 29: Choro, comp. 113-120:

É interessante notar que, em toda peça, a sonoridade de cada um dos

instrumentos ícones do choro (flauta, cavaquinho, violão e pandeiro) é lembrado em

momentos da peça: o violão nas �baixarias� da seção A; o pandeiro na seção B; o som

cantabile e lânguido da flauta na seção C; e finalmente o som dos acompanhamentos do

cavaquinho nos acorde rasgueados do final da seção A3.

Em suma, parece-nos que a fragmentação e transformação dos diversos

elementos do chorinho � sejam eles do gênero choro ou do próprio grupo instrumental

que o executa � são as principais estratégias composicionais de Marlos Nobre no intuito

de criar uma reminiscência deste que é um dos mais importantes gêneros de música

instrumental brasileira.

Page 112: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

99

4.3 � O Gênero Seresta

Seresta é uma designação genérica da música executada por boêmios em

andanças pelas noites. A denominação passou a ser usada no Rio de Janeiro, a partir de

inícios do século XX, em substituição aos nomes serenata ou serenada. Esses termos

derivam do substantivo �sereno�, fazendo uma clara alusão a algo que no período

noturno, e se referem mais especificamente à prática, de origem bastante remota, de se

tocar canções sentimentais à noite, diante das residências das mulheres amadas.

Segundo Câmara Cascudo, �todos os povos históricos tiveram a serenata. Cantar à porta

do seu amor é direito consuetudinário e milenar�103.

Os gregos antigos chamavam de Paraclausithyron as cantigas amorosas

noturnas. Os romanos também admiravam as serenatas e, inclusive, existem referências

a esta prática nas Odes II e VII de Horácio. Na Península Ibérica, conforme os

testemunhos de cronistas da Idade Média, era comum trovadores e menestréis entoarem

cantigas de amor para suas amadas. Em Portugal, a serenata aparece descrita em 1505,

na farsa Quem tem farelo?, de Gil Vicente (1465-1536). No Brasil, já aparecem

referências escritas sobre a prática das serenatas no ano de 1717, no livro Nouveau

voyage autour du monde, do viajante francês Lê Gentil de la Barbinais, ao narrar sua

passagem por Salvador, na Bahia.

A seresta tem estreita ligação com dois outros gêneros da música brasileira:

a modinha brasileira e o choro.

A modinha, surgida em meados do século XVIII, é apontada por

pesquisadores como o primeiro gênero da música brasileira cantada a atender ao gosto

das novas camadas médias das cidades. Esse gênero acabou por se tornar um dos

principais a ser utilizado nas serenatas noturnas, frente às casas das pessoas

103 Luiz Câmara Cascudo, Dicionário do Folclore Brasileiro, Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1962, p. 707.

Page 113: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

100

homenageadas, geralmente das namoradas ou pretendidas. José Ramos Tinhorão afirma

que, �até o aparecimento da modinha, não havia um gênero de canção capaz de atender

às expectativas de homens e mulheres, dentro da nova tendência de maior aproximação

entre sexos, característica da moderna sociedade definitivamente urbanizada� 104.

Ainda segundo Tinhorão, a modinha mais popularesca, acompanhada ao

som de violas e violão pelos seresteiros, coexistiu com a modinha mais erudita que era

cantada nos salões burgueses com o acompanhamento do piano. Inclusive, a

repopularização do gênero, que ficou a esta época conhecido como modinhas

romântico-sentimentais, também foi feita pelas mãos dos boêmios cantores,

especialistas em serenatas.

Foi também por meio dessa nova modinha seresteira que se deu o advento,

no Brasil, de uma nova forma de se escrever música popular, que era a da parceira entre

o compositor da música e o autor da letra. A referida parceria deu-se entre os poetas

eruditos românticos brasileiros que, na busca de uma identidade nacional, se

aproximaram de manifestações tidas como �do povo�, como era o caso dos choros que

incorporavam e popularizavam diversos gêneros importados da Europa105. Segundo

Câmara Cascudo, �por todo o século XIX parte essencial da produção poética

destinava-se às serenatas�106.

Estilisticamente, a modinha seresteira começa a abandonar os compassos

2/4 ou 4/4, que eram os mais usados nas modinhas do Primeiro Império, para usar,

preferencialmente, os compassos ternários derivados das Valsas. Segundo Oneyda

Alvarenga, �a melódica adquiriu seus elementos característicos, esboçados por vezes na

104 José Ramos Tinhorão, Op. Cit. p. 118. 105 Ver José Ramos Tinhorão. Op. Cit. 106 Luiz Câmara Cascudo, Op. Cit. 707.

Page 114: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

101

produção anterior: a linha cheia de arabescos ondulosos, o uso intenso de arpejos, e

saltos largos�107.

O instrumental passa a ser o mesmo dos choros. Luciano Gallet chega a

afirmar que �a seresta (serenata) é o choro, com a mesma formação instrumental, ou

diversa, - acompanhando um cantor solista popular�108. Sobre a formação instrumental

mais comum das serestas, Câmara Cascudo informa que �obrigatoriamente, o único

instrumento de sopro nas serenatas era a flauta. Os demais, de cordas, o indispensável

violão, os cavaquinhos, às vezes o violino e depois o bandolim, solista, nos intervalos,

melocomentando a modinha�109.

A seresta atingiu o seu auge no início do século XX, porém, atualmente,

tornou-se anacrônico diante do alto grau de urbanização e do ritmo frenético que as

cidades atingiram, não havendo mais tempo nem ocasião para a apreciação desse

gênero. Entretanto, os compositores da música erudita brasileira ainda encontram na

seresta uma rica fonte de inspiração.

4.4 - Análise do Segundo Movimento � �Seresta�

�Seresta�, segundo movimento da suíte Reminiscências Op. 78, possui 91

compassos estruturados com base no esquema formal AABBA, comum em diversos

gêneros da canção brasileira, como a modinha e a seresta. Segundo Nobre, esta peça �é

uma canção triste, uma evocação de uma serenata ao luar�110, na qual o estilo de João

Pernambuco é lembrado, uma vez que a intenção inicial do compositor foi de prestar

uma homenagem ao referido violonista.

107 Oneyda Alvarenga, Música Popular Brasileira, São Paulo: Duas Cidades, 1982, p. 129. 108 Luciano Gallet, Apud Mário de Andrade, Dicionário Musical Brasileiro. São Paulo: Editora da

Universidade de São Paulo, 1989, p.471. 109 Luiz Câmara Cascudo, Op. Cit. p.707. 110 Marlos Nobre, Joaquim Freire � Texto do Encarte do CD LC44601, Léman Classics, 1993.

Page 115: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

102

O termo seresta, como foi dito anteriormente, é bastante genérico, e os

elementos musicais encontrados aqui são muito próximos dos encontrados no choro,

sendo a principal diferença o caráter mais romântico e melancólico.

O quadro a seguir mostra um resumo da estrutura formal de �Seresta�:

Tabela 5 Seção Andamento Subdivisão Compasso Dinâmica

Introdução Liberamente - 1-4 mf, mp, f

A 5-10 p, mp

B 11-14 (mp), mf

a� 15-18 mp, crec. A1 Calmo

Conectivo 19-22 f, decresc.

A 23-28 p, mp

B 29-32 (mp), mf

a� 33-36 (mf), mp A2 Calmo

Conectivo 37-40 Ff

A 41-44 p, mp

B 45-48 mf, f

C 49-53 mp, mf, f B1

Piu Animato ed Agitato

Conectivo 54-56 piú f, ff, mf, decresc.

A 57-60 p, mp

B 61-64 mf, f

C 65-69 mp, mf, f B2 -

Conectivo 70-72 piú f, ff, mf, decresc.

A 73-78 P

B 79-82 mp, mf

a� 83-86 MP A3 Calmo

Coda 87-90 f, piú f, ff,

É interessante observar que Nobre, ao invés de usar ritornelos, reescreve

cada parte, mas inserindo, a cada repetição, diversas variações e ornamentações tal

como um músico de choro faria ao repetir as partes durante a execução, embora o

�chorão� fizesse isso de forma improvisada no momento da execução. Este

procedimento de variações já foi referido durante a análise do �Choro�, e é uma prática

comum na obra deste compositor, mas na �Seresta� as variações são, principalmente,

nas formulas das �baixarias�, dando um caráter improvisatório. Os exemplos a seguir

demonstram as variações feitas por Nobre em três repetições do mesmo compasso:

Page 116: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

103

Exemplo 30a: Seresta (Marlos Nobre), comp. 6:

Exemplo 30b: Seresta (Marlos Nobre), comp. 24:

Exemplo 30c: Seresta (Marlos Nobre), comp. 74:

�Seresta�, além de ter um caráter melancólico típico das canções

sentimentais noturnas brasileiras, apresenta diversas características tonais marcantes. O

principal centro tonal da peça é o de �Ré�, sendo a tonalidade maior na parte A e menor

na parte B.

Harmonicamente, em geral, os acordes, representam funções tonais

definidas, embora o compositor faça uso de notas alteradas, dissonâncias acrescentadas

ou, em certos momentos, de acordes incompletos que deixam sua função harmônica

ambígua.

As funções harmônicas mais usadas são tônica, acordes com função de

dominante secundário, segundos cadenciais e dominantes. Os cromatismos também são

muito explorados nas conduções internas das vozes dos acordes.

Em �Seresta�, mais uma vez, assim como no primeiro movimento, o

compositor explora a linha de baixo cromática descendente, que ele diz ser um

Page 117: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

104

verdadeiro �leitmotiv da música brasileira para violão�111, e, assim como no �Choro�,

também são usadas figurações que lembram as já comentadas �baixarias�.

Exemplo 31: Seresta, comp. 23-26:

O uso de �baixarias�, feito pelos violões nos acompanhamentos de choro,

samba e da seresta, tem funções específicas: primeiramente, deve dar a marcação clara

dos tempos e do fundamento da harmonia; e em outros momentos, realizar um

contraponto interagindo com a melodia, ou formar frases mais ativas em momentos

quando não houver muita atividade melódica. Essas frases, na maioria das vezes

descendentes, podem ter um caráter virtuosístico e fazem uso constante de notas

cromáticas, sempre tendo como meta a �nota alvo�. Todas essas funções citadas podem

ser encontradas nas �baixarias� feitas por Nobre, tanto neste movimento quanto no

precedente, embora, mais uma vez, as cromatizações aqui são bem mais acentuadas que

o usual na música popular.

Na seção A, após uma introdução desenvolvendo um motivo de três notas, o

compositor passa a explorar, na linha superior, uma idéia que vem fazer referência à

flutuação rítmica dos rubatos feitos pelos cantores de seresta, ao atrasar a entrada da

melodia com relação à parte forte do tempo. Em toda a seção, são poucos os momentos

em que a melodia incide sobre o pulso ou sobre a parte forte do tempo, dando uma

impressão constante de �flutuação� da melodia. Observa-se também que, a cada dois

111Gerard Béhague, �Marlos Nobre: Reminiscências and Homenagem a Villa-Lobos; Marlos Nobre: Orchestral, Vocal and Chaber Works� in Latin American Music Review, Volume 17, No. 1 (1996), p. 87.

Page 118: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

105

compassos, os desenhos melódicos desta seção repetem, na maioria das vezes, o padrão

de uma linha ascendente seguida de uma resolução descendente.

Exemplo 32: Seresta, comp. 4-7:

Já a voz inferior cria um efeito de falsa polifonia, uma vez que há uma

considerável distância entre a nota mais grave e as restantes, fazendo com que soem

como linhas independentes. Inclusive, a parte mais grave desempenha uma clara função

de marcar os pontos de apoio da harmonia, além de apresentar uma lógica própria em

sua condução. Por outro lado, a parte mais aguda desempenha também um importante

papel no desenvolvimento harmônico, e evoca o efeito dos �dedilhados� usados

tradicionalmente nos acompanhamentos deste gênero.

A parte �B� de �Seresta� segue o estilo geral já apresentado na seção

anterior, porém, na tonalidade menor e com um caráter um pouco mais agitado. Mais

uma vez, a escrita de Nobre esconde a textura a três vozes, porém, desta vez, é a linha

superior que tem a dupla função de melodia e acompanhamento. A �flutuação� da

melodia presente na parte A continua sendo usada, nesta seção, pelo atraso, a cada

compasso, da entrada da melodia e pelo uso de uma polimetria entre a voz superior e

inferior na segunda parte de cada compasso.

Page 119: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

106

Exemplo 33: Seresta, comp. 41-44:

Aquilo que seria a repetição desta seção, também é reescrita e apresenta os

mesmos procedimentos de variação presentes em A. Digno de nota é o procedimento

adotado pelo compositor de trocar a ordem das notas da voz superior. Com isso, o

compositor cria um efeito interessante, pois acaba modificando a melodia, e as

quiálteras da voz superior passam a ter funções melódicas diferentes, passado, por

exemplo, de bordadura para apogiatura ou nota de passagem.

Exemplo 34: Seresta, comp. 57-60:

Um elemento constitutivo importante desta peça, que ainda não foi

comentado até o momento, é a sua introdução, que posteriormente é reutilizada como

transição entre as seções. O motivo de três notas é transposto e transformado,

explorando o cromatismo e antecipando a tendência de uso deste recurso durante toda a

peça. Faz, ainda, pelo uso dos cromatismos, uma identificação com o movimento

anterior, proporcionando maior coesão entre os movimentos. A cada vez que a transição

é utilizada entre as seções, Nobre a transforma, desenvolve ou modula, enfim, usa

Page 120: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

107

algum tipo de variação. A variação e transformação de idéias como esta é marcante em

todos os movimentos da peça. Segundo o compositor:

Este princípio, aprendi principalmente através do estudo

aprofundado das obras de Mozart... Mais do que qualquer outro compositor da história da música, Mozart jamais disse a mesma

coisa duas vezes, sem que da segunda não exercesse o seu

mágico domínio da variação112.

Exemplo 35a: Seresta, comp. 2-3: Exemplo 35b: Seresta, comp. 19-20: Exemplo 35c: Seresta, comp. 37-38:

A última repetição escrita da seção A não traz nenhuma novidade com

relação às outras. O compositor faz variações especialmente em algumas �baixarias� e

finaliza a peça com o acode de Ré maior com sétima maior e sexta acrescentadas,

deixando inequívoco a tom de Ré que marca esta peça.

112 Vanessa Rodrigues da Cunha, Op. Cit., p. 49.

Page 121: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

108

4.5 � O Gênero Frevo

O carnaval brasileiro é palco das mais diversas manifestações populares e

folclóricas expressadas através das danças e músicas, nas quais estão representados

elementos culturais representativos dos três principais grupos étnicos que formaram o

povo brasileiro: o branco, o indígena e o negro.

Entre as cidades que se destacam pela realização do carnaval, Recife

aparece como uma das que possui maior diversidade de ritmos carnavalescos, possuindo

em torno de 13 gêneros diferentes, dentre os quais, o de maior notoriedade talvez seja o

frevo. Este é caracterizado por ser uma marcha, em compasso binário, feita para

acompanhar a dança � de rua ou de salão � e que possui um ritmo acelerado,

�sincopado, obsedante, violento e frenético, que é a sua característica principal�,

segundo Câmara Cascudo113.

O Frevo � dança e música �, apesar de já difundido por todo o país, ainda

pode ser tido como um gênero exclusivamente pernambucano, pois, além de ter-se

originado neste Estado, é também o local onde o ritmo é mais executado. No dizer do

pesquisador do frevo, Valdemar de Oliveira,

Pernambuco (somente Pernambuco, não há falar nem mesmo

em seus vizinhos mais próximos) possui uma música e uma

dança carnavalesca que são coisa sua, original, que se criou no

meio do povo, quase espontaneamente, e se cristalizou depois, como traço marcante de sua fisionomia urbana. Urbana sim. Até

seria mais justo dizer de Recife, do que de Pernambuco.114

É importante ressaltar que, apesar de o Frevo ter surgido �quase

espontaneamente�, isso não significa, para o autor supracitado, que o gênero tenha se

113 Luiz Câmara Cascudo, Dicionário do Folclore Brasileiro, Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1962, p. 346. 114 Valdemar de Oliveira, Frevo, Capoeira e Passo, Recife: Companhia Editora de Pernambuco, 1971, p.11.

Page 122: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

109

tornado folclórico, já que, pelo conceito tradicional de Folclore115, o anonimato seria um

dos requisitos essenciais à sua caracterização. E reforça sua convicção quando assevera:

Ao encarar o frevo como obra musical, é bom considerá-lo, desde logo, em sua verdadeira posição de música popular � e não folclórica, pois não revela uma ascendência ou um

�passado� a que esteja o povo ligado de qualquer modo. (...) O autor do frevo nunca é anônimo e os elementos de que se serve

não se envolvem no anonimato, como sucede na música

folclórica.116

A origem da música do frevo vem da tradição das bandas de corporações

militares que, a partir da segunda metade do século XIX, passaram a prover música

instrumental ao gosto das amplas camadas sociais das grandes cidades, função esta que,

nas cidades menores, era exercida pelas bandas ou liras municipais. Segundo José

Ramos Tinhorão,

uma das poucas oportunidades que a maioria da população das

principais cidades brasileiras tinha de ouvir qualquer espécie de

música instrumental, nessa segunda metade do século XIX, era

de fato a música domingueira dos coretos das praças ou jardins,

proporcionada pelas bandas marciais. Pois foi exatamente pela necessidade de entremear as marchas militares com músicas do

agrado do público de gosto popular que essas bandas de corporação fardadas começaram a incluir em seus repertórios os

gêneros mais em voga àquele tempo, ou seja, as valsas, polcas,

schottisches e mazurcas importadas da Europa para atender aos propósitos de modernidade das novas camadas da pequena burguesia. 117

Os gêneros que mais influenciaram a formação do frevo foram a modinha, o

maxixe, o dobrado, a quadrilha e principalmente a marcha-polca. Os primeiros

compositores, daquilo que viria a ser o frevo, aproveitavam livremente os elementos

harmônicos, rítmicos e melódicos das músicas em voga, sejam elas cantadas,

instrumentais ou dançadas, e aceleravam e sincopavam mais seus ritmos e andamentos,

115 Segundo a Carta do Folclore Brasileiro, elaborado no I Congresso Brasileiro do Folclore Brasileiro, no Rio de Janeiro em 1951. 116 Valdemar de Oliveira, Op. Cit., p.41. 117 José Ramos Tinhorão, Op.Cit. p.182.

Page 123: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

110

a fim de melhor adaptarem a música à dança e ao gosto popular. A partir dessas

modificações, foi surgindo um gênero com características próprias, assim como

aconteceu com o choro. Destarte, não existe um exato momento para o aparecimento do

frevo, embora a maioria dos pesquisadores apontem José Lourenço da Silva (1889-

1952), o capitão Zuzinha, mestre da banda do 4º Batalhão de Infantaria do Recife, como

principal precursor desse gênero.

Já o �passo� � nome dado aos movimentos de dança do frevo � teve sua

origem a partir do costume, comum em alguns grandes centros, dos chamados

�valentões� abrirem passagem para as bandas, principalmente nas saídas das procissões.

No caso particular de Recife, esses �valentões� pertenciam a grupos rivais dos partidos

de capoeira, divididos entre os que eram os defensores dos desfiles das bandas de

música do 4º Batalhão de Infantaria do Recife, conhecida como �Quarto�, e os

defensores da banda de música do corpo da Guarda Nacional, dirigida pelo espanhol

Pedro Garrido e que era conhecida como �Espanha�. Durante os desfiles, os capoeiras

saíam gingando e aplicando rasteiras em uma espécie de competição coreográfica,

facilitada pela quantidade crescente de síncopes executadas pelos músicos das bandas,

que estimulavam cada vez mais o virtuosismo dos dançarinos.

Dada a rivalidade, os capoeiras, armados com paus, facas e outros artefatos,

se exibiam e lutavam entre si causando, muitas vezes, grandes confusões, com vários

feridos. No início do século XX, com a proibição dos capoeiristas de usarem armas,

começou-se a usar um guarda-chuva que, além de ser manuseado como arma de ataque

e defesa, também servia para equilibrar o passo. Com o tempo, a sombrinha

multicolorida passou a ser um dos mais representativos símbolos do frevo e deixou sua

função de ataque e defesa para ser um dos mais importantes acessórios para a

coreografia desta dança.

Page 124: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

111

Nos atuais passos ou evoluções do frevo, como a pernada, apesar de já

estilizados pelo tempo, assemelham-se a golpes de capoeira de Angola. Esse fato,

indiscutivelmente, remonta à presença de capoeiristas nas bandas de música do passado.

São ainda passos comuns nas coreografias do frevo: a �tesoura�, �britadeira

parada�, �saci-pererê�, �pontilhando com calcanhar�, �passa-passa embaixo� e �faz que

vai e não vai�. E, apesar de dançado por multidões, o frevo é uma dança individual, na

qual os passos são improvisados de acordo com o ritmo da música.

Muito já se discutiu sobre o que veio primeiro: a música ou a dança do

frevo. Entretanto, hodiernamente os pesquisadores têm sido unânimes em afirmar que,

na verdade, nasceram juntas e que uma foi influenciando a outra, até se estabelecer o

frevo tal como é conhecido hoje.

A incorporação do frevo como música carnavalesca, deu-se por volta de fins

do século XIX e início do século XX, em conseqüência das mudanças sociais que se

operavam a essa época. Um dos motivos era a ascensão dos ex-escravos, agora homens

livres, e as novas classes trabalhadoras urbanas que incluíam, principalmente, negros e

mestiços que não podiam participar do carnaval da alta sociedade de Pernambuco. O

carnaval das elites acontecia em clubes fechados e era centrado nos bailes de máscaras e

alegorias, na tentativa de realizar um carnaval culto em que se fazia a crítica social dos

costumes, e no qual não havia espaço para as camadas mais pobres. Assim, a população

excluída criou os Clubes Carnavalescos Pedestres e invadiu as ruas com um modelo de

carnaval completamente diferente do festejo das elites, que, inclusive, fora mal visto por

elas e nem sequer era visto como carnaval.

Fica bem clara a relação existente entre a nova classe trabalhadora e os

Clubes Carnavalescos Pedestres no nome dado aos recém criados clubes-de-rua. Já por

volta do ano de 1888, saía às ruas o Bloco das Pás de Carvão, que depois ficou

Page 125: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

112

conhecido como o Clube das Pás, composto pelos carvoeiros e estivadores que

trabalhavam no cais. Outros blocos de rua também faziam alusão aos trabalhos dos

participantes como o Clube Vassourinhas � formado pelos varredores da cidade � além

dos clubes dos Suineiros, dos Empalhadores do Feitosa, dos Abanadores, dos

Verdureiros, Espanadores, entre outros. Alguns destes existem até hoje, sem que haja,

no entanto, co-relação entre o nome e a profissão de seus componentes.

Da aglomeração formada nas ruas pelo povo comum, o trabalhador

assalariado pobre e toda a massa dos marginalizados, nasceu a expressão �frevo�, termo

que vem de �ferver�, uma alusão metafórica de efervescência e ebulição feita às grandes

massas em frenética agitação.

Já em 1907, surge, na imprensa escrita, o primeiro registro da palavra

�frevo� que aparece numa nota de 9 de fevereiro, no Jornal Pequeno, como o nome de

uma das músicas do repertório do Clube dos Empalhadores do Feitosa. Devido a esse

primeiro registro, o ano de 1907 passou a ser considerado o ano do nascimento do

frevo, muito embora a expressão �olha o frevo� já fosse muito comum nos carnavais

antes daquela data, e a música já tivesse adquirido uma forma muito semelhante à

atualmente conhecida. Nesse sentido, Valdemar de Oliveira afirma, numa linguagem

conotativa, que:

Os nomes de batismo vieram depois de nascida a criança, já ela

crescida e dona de si. A palavra �frevo� veio tarde, quando a

música � que era uma �marcha� para todos os efeitos � se impunha no carnaval.118 Por volta de 1930, o frevo já apresentava variantes que o distinguiam em

três tipos: o frevo-canção, frevo-de-bloco e o frevo-de-rua.

O frevo-canção ou marcha-canção nasceu de certas composições, algumas

já de fins do século XIX, que possuíam melodias bonitas e que eram capazes de animar

118 Valdemar de Oliveira, Op.Cit., p. 11.

Page 126: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

113

tanto o público dos mais reservados bailes, como os passistas nas ruas. A estrutura,

dentre vários outros aspectos, se assemelhava à marcha carioca, contendo uma parte

introdutória e outra cantada, começando ou acabando com estribilhos. Valdemar de

Oliveira diferencia as duas marchas da seguinte forma:

Duas coisas, porém, as diferenciam: primeira: a parte

introdutória tem todas as características do frevo autenticamente

pernambucano, rasgado, desabrido, furioso. Depois ameniza, abrindo passagem para o canto. Segunda: o andamento da marchinha carioca é moderado; o do frevo-canção é bem mais

vivo.119

Já o frevo-de-bloco, ou marcha-de-bloco, tem sua origem nas famílias, em

sua maioria da classe média e moradora dos bairros burgueses, que, por não se

agradarem de entrar no meio da confusão do carnaval das multidões, faziam uma

carnaval mais reservado, não ao som das barulhentas bandas formadas com

instrumentos de metais, mas ao som das chamadas orquestras de pau e corda, formadas

por flautas, clarinetes, bandolins, cavaquinhos e violões. Em regra, o frevo-de-bloco é

cantado. Nota-se, neste tipo de frevo, uma fusão entre elementos do frevo-de-rua, do

frevo-canção e dos ranchos de reis e dos pastoris. Segundo Valdemar de Oliveira:

A introdução da marcha-de-bloco é pura jornada de pastoril. No

miolo da peça, a melodia é, via de regra, movimentada,

saltitante, sucedendo-se, livremente, quiálteras e semicolcheias.

Resulta mais ingênua, mais singela, mais sentimental. Até na

letra, à qual não se aplicam certas licenças, comuns, até

necessárias, ao condimento do frevo-canção.120

O frevo-de-rua, normalmente identificado simplesmente como frevo, é

considerado o mais autêntico e original dos três tipos. Sua principal característica é ser

puramente instrumental e destinado à dança. Os instrumentos geralmente utilizados para

119 Ibidem, p.36. 120

Ibidem, p.36.

Page 127: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

114

a sua execução são os mesmos dos instrumentos das bandas marciais, ou seja, os

instrumentos de metais, sopros e percussão.

Costuma-se distinguir três classes diferentes de frevo-de-rua: o frevo-abafo,

ou de encontro, no qual há a predominância dos trombones e dos trompetes tocando em

fortíssimo e que era executado com o intuito de �abafar� as bandas de outros blocos,

quando acontecia de haver encontros nas ruas de diferentes blocos. O frevo-coqueiro é

aquele que contém muitas notas extremamente agudas que saem muito do pentagrama.

Já o frevo-ventania é caracterizado por possuir uma introdução repleta de semicolcheias

em andamento muito rápido.

Melodicamente e, por conseqüência, na harmonia, o frevo não apresenta

características do modalismo presente em tantos outros gêneros da música nordestina

devido à sua herança européia mais recente121. Embora não haja uma estrutura formal

única, segundo Câmara Cascudo, o frevo-de-rua costuma �dividir-se em duas partes e os

seus motivos se apresentam sempre em diálogos de trombones e pistões com clarinetes

e saxofones�122.

A introdução do frevo costuma ser anacrústica, e a peça, quase

invariavelmente, acaba de forma brusca, seguido de um acorde agudo longo e em

fortíssimo no segundo tempo do compasso que, nos frevos mais antigos, era um acorde

perfeito e, nos mais recentes, acrescido de diversas dissonâncias. Valdemar de Oliveira

chama atenção, ainda, para a passagem entre as parte que, segundo ele, �intervêm todos

os instrumentos, sobressaindo-se os metais, num �rasgado� violento�123 e que este seria

�um dos aspectos mais impressivos do frevo�124.

121 O modalismo presente na música nordestina, possivelmente, provém de uma herança remota da música

modal dos países ibéricos da Idade Média, enquanto que o frevo tem como origem a música européia em voga durante o século XIX. 122 Câmara Cascudo Op. Cit., p. 346. 123 Valdemar de Oliveira,Op.Cit., p. 50. 124 Ibidem

Page 128: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

115

O andamento, sempre rápido e frenético, é repleto de síncopes para

estimular os movimentos da dança. O compositor de frevo costuma deslocar figurações

iguais, em tempos fortes e fracos, para, assim, desestabilizar a métrica. Segundo

Valdemar de Oliveira:

A imaginação do compositor intervém arbitrariamente, embora

submissa a certas constantes composicionais. Ele utiliza colcheias e semicolcheias como um perdulário, visando um

único fim: a movimentação da melodia, que se desenvolve em

imprevistos e surpresas. Pode dizer-se mesmo que o frevo é

tanto mais dinamogênico quanto mais explora esses imprevistos

e essas surpresas, principalmente à custa das síncopas e dos

grupos de 2 semicolcheias e 1 colcheia.125 Na música erudita brasileira, os compositores não recorreram ao frevo como

fonte de inspiração com a mesma freqüência que a outros gêneros brasileiros como o

choro, mas existem diversos exemplos que merecem destaque. O amazonense Cláudio

Santoro (1919-1989) escreveu um frevo para piano em 1953 e posteriormente realizou

uma versão para orquestra da mesma peça. O paulista Mozart Camargo Guarnieri

(1907-1993) também se utilizou de temas do frevo em peças suas, como o Concerto

para Piano e Orquestra nº 2 e o Concertino para Piano e Orquestra de Câmara,

embora de forma bem pessoal, distanciando-se do frevo mais autêntico. César Guerra-

Peixe, Marlos Nobre, Wellington Gomes e Clóvis Pereira são alguns outros importantes

nomes da música brasileira que também se utilizaram de elementos do frevo em suas

composições.

4.6 - Análise do Terceiro Movimento � �Frevo�

O último movimento de Reminiscências Op. 78 é intitulado �Frevo� e é uma

recriação de Nobre, no violão, do último movimento de seu IV Ciclo Nordestino Op. 43

para piano solo. O compositor, ao comentar o referido frevo para piano, afirmou que

125Valdemar de Oliveira,Op.Cit., p.49.

Page 129: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

116

�não é uma �estilização� desta dança, é um Frevo mesmo, com todas suas características

rítmicas e harmônicas, e também de dança�126.

Apesar de �Frevo�, tanto a versão para piano quanto para violão, apresentar

muitas características de um autêntico frevo-de-rua, é perceptível o alto grau de

dissonância e modernidade dado por Nobre nestas peças, que, no entanto, não chega a

descaracterizá-las como frevo, mas dá um toque pessoal e renovador ao gênero.

O tom central da peça é o Ré menor. O estudioso do frevo, Valdemar de

Oliveira, faz o seguinte comentário, bastante poético, a respeito dos frevos nesta

tonalidade:

Nos frevos escritos em menor, há um indecifrável encanto, uma certa força nostálgica na fusão da melodia triste com o rasgado

repentino dos metais em ff , quase uma contradição, espécie de

tristeza desesperada, arranque de pessoa que passa de um pranto amargo a uma revolta incontida.127

No �Frevo�, assim como nos dois movimentos precedentes, observa-se uma

grande concisão na escrita e o uso constante de texturas polifônicas. Mas, ao contrário

das outras duas peças, no �Frevo�, Nobre não usa o padrão formal usual do gênero. A

estrutura mais comum no frevo é a forma binária, com repetições que podem variar de

acordo com o arranjo, ou mesmo serem decididas pelos intérpretes na hora, conforme a

maior ou menor empolgação do público dançante. O �Frevo� de Nobre não apresenta

seções definidas, mas um contínuo desenvolvimento dos temas, criando inesperadas

surpresas rítmicas, ao explorar as síncopes e os acentos deslocados, como em todos os

frevos, mas sempre com base no mesmo material temático. Esse procedimento de

Nobre, revela, em parte, que as suas intenções não eram documentais, mas tão somente

expressar a forma como ele via e sentia o frevo.

126 Marlos Nobre, in Forum Allegro, mensagem número 265, 09 de março de 2005, acessado em 15 de janeiro de 2006. 127Valdemar de Oliveira, Op.Cit., p.37.

Page 130: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

117

A organização dos temas de �Frevo� pode ser demonstrada no seguinte

quadro: Tabela 6

Temas Compassos

a1 1-8 b1 9-16 a1 17-24 b1 25-32 a2 33-41 a3 41-48 b2 49-57 b3 57-65 a3 65-72 b1 73-80

a3 (fragmento) 81-85 a3 85-92 b2 91-100 b3 101-108 a3 109-116 b1 117-126

Os tipos de desenvolvimentos temáticos usados no �Frevo� e no �Choro� da

Suíte Reminiscências Op. 78 são semelhantes. As transformações dos temas incluem

ornamentação, transposição, inversão, fragmentação, variação rítmica, entre outros,

como pode ser verificado nos seguintes exemplos:

Exemplo 36a: Frevo, comp. 17-20 (transposição, ornamentação e inversão):

Exemplo 36b: Frevo, comp. 45-46 (fragmentação e variação rítmica):

Page 131: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

118

Exemplo 36c: Frevo, comp. 33-37 (transformação do tema):

No plano harmônico, a peça revela relações tonais bem claras, embora o

grau de dissonância e a quantidade de notas alteradas, como as que podem ser

observadas nos exemplos abaixo [37a], não sejam usuais nos frevos tradicionais. Além

do mais, em diversos momentos, Nobre se utiliza de harmonias quartais [37b e 37c]:

Exemplo 37a: Frevo, comp. 1-11:

Exemplo 37b: Frevo, comp. 101-104: Exemplo 37c: Frevo, comp. 96:

No plano rítmico, Nobre é conservador: utiliza o compasso 2/4 e células

rítmicas e as síncopes características do gênero, embora, em alguns momentos, ele

Page 132: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

119

também faça uso de compassos que não são usuais nos frevos, como os 3/4 e 4/4, que

Nobre usa especialmente em algumas finalizações como a seguinte:

Exemplo 38: Frevo, comp. 105-108:

Mesmo em se tratando de uma peça para violão solo, a polifonia presente na

escrita da peça, além do constante jogo de perguntas e respostas dos temas, lembra o

diálogo que acontece entre os diferentes naipes das orquestras de frevo. Já os trechos

em que aparecem dinâmicas mais fortes ou o uso dos rasgueados lembram o tutti

orquestral típico. O dissonante acorde final, no segundo tempo do último compasso, é

praticamente uma marca registrada dos frevos e também está presente nesta peça de

Nobre.

O cromatismo observado nos dois movimentos precedentes desta suíte

também é marcante no �Frevo�, da mesma forma que a quebra das linhas melódicas

oitavando notas, o que dá uma sonoridade mais moderna à peça, como pode ser

observado nos seguintes exemplos:

Exemplo 39a: Frevo (acorde final), comp. 125-126:

Exemplo 39b: Frevo (cromatismo), comp. 74-75:

Page 133: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

120

Exemplo 39c: Frevo (oitavas), comp. 99:

4.7 - Conclusões

Os três movimentos de Reminiscências Op. 78, �Choro�, �Seresta� e

�Frevo�, demonstram diversos aspectos que dão unidade e coerência entre si.

Primeiramente, a existência de uma matriz popular aliada ao uso de técnicas

contemporâneas para a criação de uma peça de concerto com uma linguagem pessoal,

refletindo uma tendência pós-modernista da quinta fase de Marlos Nobre.

O uso do centro tonal Ré e o constante cromatismo são outros importantes

fatores unificadores. O princípio da variação, a concisão de escrita, a importância do

ritmo, o uso de síncopes, acentos deslocados, também são elementos presentes nos três

movimentos.

Num fórum da internet, Nobre fez uma declaração informal orientando como

é o seu processo de criação. Por conseguinte, em decorrência de tal declaração, tornou-

se mais fácil compreender a razão da economia e concisão de materiais nas três peças

analisadas:

Ao criar, deve o compositor identificar claramente sua idéia

musical mãe, a "célula-mater" do pensamento musical que brotou talvez do seu inconsciente; depois, deve o criador reunir a maior quantidade possível de idéias derivadas, através dos

processos de transformação, variação, transgressão, proliferação

temática e metamorfose. Este estágio já é mais consciente, mas

nele não deve e não pode o compositor aplicar o espírito

Page 134: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

121

analítico nem judicioso (a autocrítica); o terceiro estágio é o de

tentar criar o maior número possível de idéias-soluções, idéias-contrastantes, idéias-díspares; de posse do maior número

possível de idéias derivadas, pelos processos acima, já

subliminarmente o criador estará exercendo um processo de

filtragem, de escolha das idéias que mais lhe parecem lógicas

para seu trabalho; segue então a etapa mais consciente, de julgar,

analisar, filtrar e organizar as idéias: aqui começa o processo de

composição, que é definitivamente o processo de ESCOLHA e

RECHAÇO daquilo que presta e aquilo que não presta, de

acordo com a ótica do criador. Este processo é essencialmente

individual, é aí que se sente o compositor real, pois ao escolher,

rechaçar e aplicar idéias, ele o faz de acordo com suas

necessidades pessoais mais íntimas128.

Outra declaração de Nobre esclarece o cromatismo constante usado nos três

movimentos e que já faz parte da linguagem desse compositor:

A minha busca harmônica baseia-se sempre na íntima convicção consolidada com o tempo, de que é ainda

possível descobrir novas possibilidades harmônicas

independentes da técnica de 12 sons, da tonalidade e da consonância tal como as vemos tradicionalmente. Acredito

que a escala tradicional cromática ainda não foi totalmente

explorada e esgotada. É possível ainda descobrir meios

diferentes e novos, além dos tradicionais, dos

dodecafônicos e dos seriais, de ligar e religar as harmonias

entre si.129

Enfim, Reminiscências Op. 78 é um exemplo bem acabado da combinação

entre o tradicional e o moderno, sempre com o traço marcante do estilo e da

personalidade de Marlos Nobre.

128 Marlos Nobre, in Forum Allegro, mensagem número 88, 27 de fevereiro de 2003, acessado 15 de janeiro de 2006. 129 Marlos Nobre, �Minhas convicções musicais� in Home Page Oficial de Marlos Nobre, disponível em

<http://marlosnobre.sites.uol.com.br>.

Page 135: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

122

CAPÍTULO 5

Técnica e Interpretação em Reminiscências Op. 78

Já foram comentadas, no Capítulo 3, as dificuldades de execução e

interpretação que a maioria dos violonistas se depara ao preparar para execução a peça

Reminiscências Op. 78 de Marlos Nobre. Nesse sentido, Fábio Zanon, no artigo O

Violão no Brasil depois de Villa-Lobos, menciona que

A considerável dificuldade técnica de suas obras tem se mostrado um fator inibidor, e Nobre é, num plano

internacional, mais respeitado que tocado, mas este é um fator

que deve ser superado em favor de obras de qualidade superlativa que merecem atenção incondicional.

130

No entanto, o domínio de Nobre da escrita para violão é inegável. Em um

depoimento num fórum da internet, o compositor narra um ocorrido que ilustra tanto o

conhecimento dele das possibilidades do violão, quanto a necessidade de empenho dos

intérpretes para superar as dificuldades impostas por uma obra que pretende ir além dos

clichês usuais do violão:

Marcelo Kayath, logo após triunfar nos concursos de Paris e

Toronto, era muito amigo meu e me pediu uma peça para

estrear em Londres. Escrevi o Prólogo e Toccata. Na primeira vez que leu, o Marcelo me disse ser demasiadamente difícil.

Então fiz uma versão mais fácil. O Marcelo a provou e me

disse: �Fico com a primeira, a mais difícil, vou estudar� E a

tocou e gravou excepcionalmente bem. Eu mostrei ao Marcelo que podia escrever �mais fácil�, mas que a dificuldade inicial da obra não era gratuita, mas um elemento essencial ao espírito

da obra. Eu o havia provocado, escrevendo uma versão mais

fácil, e isso mexeu com os brios dele. A obra foi editada como

a concebi e assim é tocada, e joguei fora a versão �fácil�131.

130Fábio Zanon, O Violão no Brasil depois de Villa-Lobos, Artigo disponível em:

<http://vcfz.blogspot.com/2006/05/o-violo-no-brasil-depois-de-villa.html>, Acesso em: 01 de maio de 2006. 131 Marlos Nobre, in Forum Allegro, mensagem número 37, 10 de outubro de 2003, acessado 8 de abril de 2006.

Page 136: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

123

Com o intuito de minimizar algumas das dificuldades técnicas existentes

especificamente em Reminiscências Op. 78, foi elaborada, neste trabalho, uma nova

edição da peça, contendo novas digitações, além da inclusão de sinais que representam

procedimentos instrumentais � aqui chamados de orientadores técnicos �, que também

visam facilitar o estudo e a execução da peça. Esperamos que, com a adição desses

dados, aliada a informações sobre elementos da interpretação, consigamos tornar a peça

mais acessível a um maior número de violonistas.

A respeito das digitações de sua obra para violão, Marlos Nobre comenta

que normalmente não faz consultas a violonistas durante o processo composicional das

peças,132 e que os intérpretes já as recebem finalizadas, seja com as digitações

totalmente inclusas, ou parcialmente deixadas a cargo dos mesmos, mas, geralmente,

não são necessárias modificações da peça em si133. No caso específico de

Reminiscências Op. 78, a digitação foi feita com ajuda do violonista Marcelo Kayath,

mas o compositor comenta, em depoimento, que �uma vez que eu assimilei totalmente

como escrever a digitação eu sempre prefiro colocar, eu mesmo, as digitações que

pensei eu mesmo, originalmente�134. E conclui seu pensamento com a seguinte

declaração:

Penso que todo instrumentista tem seus macetes particulares e isso é coisa deles. Eu tenho minhas próprias idéias

instrumentais para o violão, especificamente, e coloco o mais

exatamente possível estas idéias em escritura definitiva em

minhas partituras para o violão.135

132 O compositor afirma também que possui dois ótimos violões e que ele próprio, apesar de não ser

violonista, faz, posteriormente, o teste de escritura nos violões. Diz ainda que o seu processo composicional, tanto para violão como para qualquer outro instrumento, dá-se mentalmente, não

necessitando do instrumento. Ver Entrevista No. 2 (Realizada em 24/06/2007). 133 Ver Entrevista No. 1 (Realizada em 09/04/07) e Colin Cooper, �Speaking Internationally, Colin Cooper Interviews with Marlos Nobre� in Classical Guitar Volume 12, No. 3 (Novembro, 1993). 134 Entrevista No. 2 (Realizada em 24/06/2007). 135 Entrevista No. 2 (Realizada em 24/06/2007).

Page 137: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

124

Portanto, as digitações originais de Nobre podem, ou, até mesmo, devem,

servir como ponto de partida para tentar entender sua idéia original, mas, a despeito da

importância e grande fonte de informação para o intérprete, há de ser levado em

consideração que Marlos Nobre, apesar de grande conhecedor do instrumento, não era

violonista e, devido a isso, algumas particularidades próprias da execução do

instrumento podem ter passado despercebidas. Além do mais, como já foi comentado no

Capítulo 2, uma das grandes virtudes da obra para violão de Nobre, é o fato de sua

escrita extrapolar os padrões costumeiramente usados no violão, e criar uma linguagem

inovadora que exigirá novas soluções por parte dos intérpretes.

Sobre a elaboração de uma digitação, sabe-se que muitas vezes ela pode

fazer com que uma idéia musical seja bem entendida ou prejudicada de acordo as

escolhas feitas e que, para tais escolhas, segundo Daniel Wolff, �é necessário um

profundo conhecimento do violão através de estudo�136, ou seja, só por meio da prática

contínua de execução do instrumento que se poderá ter o domínio de como realizar uma

boa digitação. Por outro lado, há ainda o fato de que uma digitação pode funcionar para

uns e não para outros. Para Wolff, a escolha de uma digitação depende de fatores como:

Dificuldade da peça; Características individuais (anatomia, instrumento a ser usado,

domínio técnico, sonoridade do instrumento); Estilo da peça; Interpretação (fraseado,

articulação, timbre, etc.).

Por tudo isso, ao digitar Reminiscências Op. 78, o executante deve tentar

buscar, em primeiro lugar, as intenções musicais do compositor. Essas intenções

poderão ser percebidas através de indícios encontrados na análise musical da peça; no

levantamento de questões estilísticas; e nas próprias indicações do compositor na

partitura, que incluem as suas digitações e demais anotações. Só após um exame

136 Daniel Wolf, �Como Digitar uma Obra para Violão� in Violão Intercâmbio No. 46 (2001).

Page 138: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

125

aprofundado de diversos aspectos de cada música, é que o interprete poderá, então,

definir a sua própria digitação para executar a peça de forma eficiente e coerente.

No caso de Nobre, ele é um compositor, normalmente, muito detalhista em

sua escrita, que contém muitas indicações de articulações, dinâmicas, caráter, entre

outros fatores que explicitam suas intenções musicais, mas, por outro lado, sempre há

uma grande margem entre o que está no papel e o que é realmente intencional do

compositor, como atesta Nicholas Cook no livro Musical Analysis and the Listener:

Quando o compositor coloca uma música no papel ele conta

com que os leitores tenham ouvido musical e imaginação o

suficiente para precisar o intervalo, ritmo e dinâmica que a

notação omite, da mesma forma que ele [o leitor] terá que

contribuir com valores sonoros, dramáticos e emocionais que

não são possíveis de se especificar na partitura137.

Levando em consideração a influência que a digitação tem sobre o resultado

final de uma execução, passaremos a comentar sobre os orientadores técnicos que serão

usados em apoio à digitação elaborada. Em seguida, passaremos a expor os critérios e as

conclusões acerca da interpretação de Reminiscências Op. 78, assim como a relação

desta com as digitações e orientadores técnicos inseridos na edição que elaboramos.

5.1 - Os Orientadores Técnicos

Pode-se definir �orientadores técnicos� como o conjunto de sinais impressos

em partitura que indicam não necessariamente como a música deve soar, mas como o

executante deve proceder em sua técnica instrumental para tocar determinada passagem.

137�When a composer writes down music he is relying heavily on the reader�s musical ear and

imagination in supplying the precise intervallic, rhythmic and dynamic values that the notation omits, just as he has to contribute sonorous, dramatic and emotional values that cannot possibly be specified in the score.� Nicholas Cook, Apud Fredi Gerling,�Analysis for Performance and Performance Analysis: A

Study of Villa-Lobos Bachianas Brasileiras No.9�. Tese de Doutorado. University of Iowa, 2000.

Page 139: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

126

Na literatura violonística tradicional, é comum encontrar alguns tipos de

orientadores técnicos simples como, por exemplo, a indicação dos dedos a serem usados

pela mão esquerda ou direita, o uso de pestanas, indicação da corda em que a nota deve

ser tocada, tipo de timbre da mão direita, ou em qual posição no braço do instrumento

deve ser executado determinado trecho.

No entanto, vários outros procedimentos técnicos, freqüentemente usados

por violonistas, ainda não se encontram impressos em partitura, ficando tais

informações restritas às orientações de professores ou violonistas mais experientes, por

meio de tratados sobre execução ou em aulas privadas, como observa Albérgio Diniz

Soares, em sua dissertação de mestrado138.

O mesmo autor observa que tal situação vem paulatinamente se

modificando, e diversos trabalhos já começam a inserir sinais representando novos

procedimentos técnicos como parte integrante da partitura. Na referida dissertação de

mestrado de Albérgio Diniz Soares, são elaborados e aplicados orientadores técnicos,

numa edição de dois estudos para violão solo de Francisco Mignone. Há também, no

Brasil, o livro Técnica Violonística de Edílson Eulálio, que desenvolveu símbolos que

representam diferentes modos de pulsar as cordas com a mão direita, e, também, a

dissertação de mestrado de Eugênio Lima de Souza139, na qual é tratada a utilização de

símbolos, que são chamados por ele de Operadores de Execução (Opex), e que, de

forma semelhante ao trabalho de Diniz Soares, representam tanto procedimentos

mecânicos como interpretativos. Mario Ulloa, no artigo Articulação musical e técnica

instrumental, e Orlando Fraga, no livro 10 Estudos de Leo Brouwer: Análise Técnico-

138 Albérgio Claudino Diniz Soares, �Orientadores Técnicos nos Estudos IV e VII de Francisco

Mignone�. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal da Bahia, 1998. 139 Eugênio Lima Souza,�Recursos Técnicos e Processos Intertextuais na Sonatina para Violão de José

Alberto Kaplan�, Dissertação de Mestrado, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1997.

Page 140: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

127

Interpretativa, também incluíram, em seus trabalhos, símbolos que representavam

procedimentos técnicos.

Para o presente trabalho, serão utilizados orientadores técnicos, não só com

o objetivo de facilitar a execução de determinados trechos da peça ora em estudo, mas

também tornar mais claras as intenções interpretativas sugeridas. Os símbolos a serem

utilizados e suas finalidades estão resumidos no seguinte quadro140:

Tabela 7

Símbolo Definição Apagamento da corda indicada.

Apagamento da corda indicada por um dedo da mão direita (p,i,m,a) ou da mão esquerda

(1,2,3,4).

[ Tocar as notas simultaneamente com um

dedo da mão direta.

Apagamento de cordas com a borda externa

da mão direita.

Apagamento de cordas com a borda interna

da mão esquerda.

Tocar a nota indicada com o polegar da mão

esquerda.

Posição transversal do braço esquerdo em

relação ao braço do violão. Aqui, os dedos

são posicionados paralelamente aos trastes do violão.

Posição semi-transversal. O braço esquerdo

fica posicionado com o cotovelo afastado do corpo, direcionado para a sua esquerda.

Posição oblíqua. O braço esquerdo

posiciona-se com o cotovelo direcionado para o lado do corpo, ou seja, no sentido

contrário à posição anterior.

140 Esses símbolos são os mesmos utilizados Albérgio Diniz e Orlando Fraga, em seus respectivos

trabalhos.

Page 141: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

128

5.2 - Critérios e exemplos do uso da digitação e dos orientadores

técnicos em Reminiscências Op. 78

Passaremos a listar e justificar alguns exemplos nos quais utilizamos os

orientadores técnicos ou fizemos alterações na digitação. Para não tornar o capítulo

demasiadamente extenso e cansativo, serão mostrados apenas os principais trechos em

que ocorrem as referidas mudanças e inserções de símbolos, pois todos os restantes que

não forem comentados encaixam-se em algum dos casos descritos. Basicamente, as

mudanças foram guiadas por razões técnicas, musicais ou ambas.

Alguns orientadores técnicos inseridos e mudanças de digitação feitas na

edição de Reminiscências Op. 78 ocorreram em função da duração das notas no decorrer

da execução. Sendo a polifonia um dos elementos mais importantes em todos os três

movimentos da peça, o intérprete deve ter grande cuidado para que a nota não soe

menos do que deveria, perdendo a continuidade da linha; tampouco pode ela soar mais

do que o escrito, a fim de não obscurecer a polifonia. No entanto, em Reminiscências,

existem casos em que não será possível deixar soar o quanto está escrito, então o

intérprete terá que ter o cuidado para não fazer um corte brusco, mantendo alguma outra

voz soando para disfarçar a que não pôde ser ouvida até o final. Por outro lado, há casos

onde a textura é harmônica, e não polifônica, por isso, é interessante deixar a nota soar

mais do que está escrito. Nos exemplos a seguir, pode ser observado o uso da digitação

e dos orientadores técnicos atuando no sentido de deixar mais evidente para o

executante os problemas descritos acima:

Exemplo 40a: Choro, comp.75 - Henry Lemoine:

Page 142: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

129

Exemplo 40b: Choro, comp.75 - Sugestão do Autor:

Exemplo 40c: Seresta, comp.15 - Henry Lemoine:

Exemplo 40d: Seresta, comp.15 - Sugestão do Autor:

No exemplo [40a], tanto a melodia quanto a voz interna são cortadas quando

ocorre a mudança da pestana da casa 2 para a 5, no segundo tempo do compasso. Dessa

forma, o �Lá4� e o �Ré4� ficam impossibilitados de continuarem soando, prejudicando

o entendimento da polifonia. A mudança de digitação feita em [40b] evita o referido

corte das vozes.

Outro fator que prejudicaria a polifonia seria se o executante deixasse a nota

�Lá3� da voz interna soando junto com o �Ré4�, pois daria uma impressão de uma

figuração com funções harmônicas, e não melódicas. O orientador técnico presente no

exemplo [40b] tem a função de alertar o intérprete para que o referido �Lá3� não

continue soando. As setas presentes em [40b] sugerem a posição do braço esquerdo do

violonista a fim de facilitar a execução trecho.

Page 143: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

130

O caso contrário é representado nos exemplos [40c] e [40d], no qual deixar

as notas ressoando harmonicamente é uma possibilidade interpretativa interessante, pois

evita cortar o cromatismo do baixo e faz com que haja maior destaque para a harmonia.

Além da polifonia, outro elemento marcante de Reminiscências é, sem

dúvida, o ritmo. Em diversos trechos de toda a peça, o compositor escreve acentos, que

são de grande importância para dar o �gingado� típico da música brasileira. No entanto,

a interpretação de quanto forte deve ser o acento é altamente subjetiva e, portanto,

podem acontecer casos em que sua função é distorcida, causando um efeito diferente do

pretendido pelo compositor. Se nos basearmos nos acentos usados pelos executantes de

choro, por exemplo, veremos que o acento não deve ser tão explícito, mas, ao contrário,

discreto.

Em alguns casos, a simples escolha correta da digitação da mão direita pode

resolver, ou, pelo menos, minimizar o problema das acentuações. Em geral,

naturalmente, o dedo polegar da mão direita tende a tocar mais acentuado que os demais

dedos. Então, por essa razão, funciona muito bem, sempre que possível, se utilizar do

polegar nos momentos em que ocorrem acentos e os demais dedos quando não. Claro

que se o intérprete desejar acentuar ainda mais a nota, o polegar poderá fazê-lo com

mais facilidade. O uso do polegar para facilitar as acentuações pode ser observado nos

seguintes trechos do �Choro�:

Exemplo 41: Choro, comp.12-14:

Page 144: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

131

Exemplo 42: Choro, comp.35-36:

Seria muito difícil executar o trecho do exemplo [41] só com o polegar e,

ainda, fazendo acentos, pois o trecho é consideravelmente rápido. Igualmente complexo

seria realizar os acentos com a digitação de mão direita alternando os dedos indicador e

médio, pois, além da velocidade, não existe regularidade nos acentos, o que causa certa

confusão para execução. Portanto, com a digitação usando o polegar para as

acentuações, tanto o problema técnico quanto o musical estão parcialmente resolvidos.

Já o exemplo [42], como já foi demonstrado em análise, provavelmente o

compositor faz recordar o ritmo do pandeiro de um grupo de choro. A simples

alternância do toque dos demais dedos com o polegar nos acentos torna o efeito muito

natural e próximo da acentuação típica do choro. No entanto, executar o exemplo [42]

usando sempre o polegar na voz inferior e alternando os dedos indicador e médio na voz

superior, seria uma forma de execução que, embora possível, deixaria o ritmo todo

muito pesado e o acento forçado.

De uma forma geral, durante o aprendizado de uma peça, a maioria dos

violonistas não tem tanta preocupação com a escolha dos dedos da mão direita,

improvisando, a cada momento, os dedos a serem usados. Além disso, as edições de

música para violão nem sempre costumam indicar os dedilhados da mão direita. Este

fato é lastimável, pois a boa digitação de mão direita é um fator básico para o

desempenho eficiente da mão direita e conseqüentemente de toda a música.

As digitações de mão direita foram inseridas em trechos nos quais havia

fatores complicadores como possíveis cruzamentos de dedos, mudanças inadequadas da

Page 145: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

132

posição da mão, entre outros fatores. O exemplo seguinte demonstra um trecho de

considerável dificuldade técnica, em que uma boa digitação, tanto de mão direita quanto

de esquerda, é fundamental para a fluência da música, a não ser que o executante tenha

uma excepcional facilidade para realizar escalas.

Exemplo 43: Frevo, comp.29-30:

Ademais, há trechos nos quais é possível combinar o uso de ligados com

digitações alternativas, utilizando os quatro dedos da mão direita em trechos de escalas

que, tradicionalmente, são tocadas apenas com os dedos indicador e médio da mão

direita. Nos trechos seguintes, podem ser observados exemplos desse tipo de recurso

que, além de facilitar tecnicamente, contribui para a articulação:

Exemplo 44: Frevo, comp.12:

Exemplo 45: Frevo, comp. 36:

Aliás, o uso de ligados de mão esquerda, além de, em certas passagens,

facilitar a execução, torna a linguagem mais próxima de como os executantes de violão

de 7 cordas costumam tocar, fazendo com que soe estilisticamente mais aproximado das

intenções do compositor.

Page 146: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

133

Exemplo 46: Choro, comp.25:

Exemplo 47: Seresta, comp.12:

5.3 - Elementos da Interpretação

Foi demonstrado na análise de Reminiscências Op. 78 (Capítulo 4) que

diversos elementos característicos da música popular urbana brasileira estão fortemente

presentes em todos os três movimentos da peça. Da mesma forma que na composição,

acreditamos que o intérprete deve tentar buscar uma execução da peça que valorize a

forma particular com que os gêneros de música popular que inspiraram Reminiscências

são tocados em seus contextos originais. Neste sentido, Marlos Nobre declarou:

Esta minha peça Reminiscências capta muito deste espírito

especial do �chorão� de tocar, reminiscência das reuniões dos

chorões pernambucanos, que se reuniam aos domingos

simplesmente para tocarem pelo prazer de fazerem música em

conjunto. Portanto, uma vivência ou uma especial atenção e

estudo dos toques tão peculiares dos �chorões� brasileiros é

muito útil para interpretar esta obra como tem de ser. 141

5.3.1 - Articulação

Um recurso interpretativo importante na busca de uma sonoridade mais

próxima daquela que Nobre se refere na citação anterior, certamente, é a articulação. Já

141 Entrevista No. 2 (Realizada em 24/06/2007).

Page 147: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

134

nos referimos acima ao uso dos ligados no estilo geral dos executantes de violão de 7

cordas nos choros. O violonista Charles Duncan, no livro The Art of Classical Guitar

Playing, ao comentar sobre a importância dos ligados como recurso expressivo, fazia

seguinte afirmação, que é perfeitamente condizente com maleabilidade típica dos

chorões no uso dessa técnica em suas frases melódicas:

Fazer um ligado de uma nota a outra resulta num contraste distinto. Primeiro, a nota tocada é sonoramente mais forte que a

ligada. Além do mais, o ligado cria uma sutil, mas inequívoca,

ênfase agógica; as notas tocadas não só são mais fortes, mas

também um pouco mais longas que as notas ligadas.142

Os ligados devem ser acrescentados, principalmente, nos trechos do

�Choro� e da �Seresta� em que o violão realiza as �baixarias�, já que os ligados são

idiomáticos do estilo. Em nossa edição, acrescentamos sugestões de ligados, não só com

essa finalidade musical, mas também com as já explicadas finalidades técnicas. O

intérprete, contudo, ter liberdade ao criar as suas próprias articulações.

Além dos ligados, os staccatos também têm uma importante função no

intuito de dar mais riqueza e �balanço� na execução da música brasileira. Almir Côrtes

Barreto ao analisar, em sua dissertação de mestrado, o uso do staccato por Jacob do

Bandolim, afirma que este recurso é �bastante utilizado em seções onde percebemos

mais �molho�143 no trato da melodia, de modo a reforçar os deslocamentos rítmicos�

144.

É importante que o intérprete determine exatamente em que momentos será

usado o staccato para dar maior variedade de articulação. O motivo inicial do �Choro�,

por exemplo, dá margem a diversas interpretações possíveis:

142 �Slurring from one note to the next results in distinct contrast. First, the plucked note is audibly louder

than the slurred note. Furthermore, slurs create a subtle but unmistakable agogic emphasis; plucked notes ore not only louder but also a little longer than slurred notes� Charles Duncan, The Art of Classical

Guitar Playing. Princeton, New Jersey: Summy-Birchard Music, 1980, p. 87. 143 Segundo Almir Côrtes Barreto, �molho� é uma gíria usada pelos tocadores de choro que significa

deslocamento rítmico, balanço, suingue, bossa. 144 Almir Côrtes Barreto, �O Estilo Interpretativo de Jacob do Bandolim�, Dissertação de Mestrado,

Universidade Estadual de Campinas � UNICAMP, 2006, p. 55.

Page 148: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

135

Exemplo 48: Choro, comp.1:

Em nossa edição do �Choro� e da �Seresta�, optamos por não colocar

nenhum staccato que já não tivesse sido escrita pelo compositor. Isto porque as

possibilidades de articulações são infinitas e se trata de algo muito pessoal, que pode ser

usado à vontade, desde que não descaracterize o estilo. No entanto, sugerimos que, uma

vez determinada a articulação dos motivos recorrentes � como o do exemplo anterior �

ela deve ser mantida no restante da peça, a menos que o intérprete deseje,

conscientemente, realizar um contraste.

Já os staccatos que inserimos na edição de �Frevo�, foram copiados das

indicações que o próprio compositor colocou na versão para piano da mesma peça. É

importante lembrar que Marlos Nobre teve a oportunidade de vivenciar o frevo durante

muitos anos em que morou no Recife, e que todas as indicações de stacatos que

aparecem na partitura para piano são, na verdade, uma transposição do estilo de tocar

das bandas típicas de frevo. Em geral, os frevos são tocados de forma muito marcada e

rítmica, fazendo um uso freqüente de notas curtas. Embora o compositor não tenha

escrito as mesmas indicações da versão para piano na partitura de �Frevo� para violão,

ele declarou que:

No meu Frevo para violão, o intérprete pode ter certa liberdade,

dentro da escritura que proponho, mas esta liberdade tem de estar ligada à tradição do gênero, ou seja, do �frevo� popular de

Recife.145

145 Entrevista No. 2 (Realizada em 24/06/2007).

Page 149: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

136

Ainda que o intérprete não necessite fazer todas as indicações que

inserimos, elas podem servir como importantes referências do estilo geral de se tocar o

frevo.

Em alguns casos, o staccato também pode ser usado em substituição a

certos acentos, pois o acento não é só um golpe mais forte em uma nota. Pode-se

conseguir um efeito semelhante ao se tocar uma nota em staccato dentro de um contexto

essencialmente legato, chamando a atenção para a nota destacada, criando, assim, uma

maior riqueza de sonoridade.

Exemplo 49: Choro, comp.19-20:

Na técnica tradicional do violão, a execução do staccato pode ser feita tanto

com a mão direita quanto com a mão esquerda. No entanto, há diferenças perceptíveis

na sonoridade dos dois tipos de técnicas. O staccato feito com a mão direita tende a ser

mais seco e preciso, funcionando bem nas partes da peça que necessitam de maior

precisão, como no caso da seguinte passagem de �Frevo�:

Exemplo 50: Frevo, comp.33-34:

Entretanto, de uma forma geral, o staccato feito com a mão esquerda é o

mais usual entre os violonistas populares, pois faz com que a música não fique tão

marcada, ajudando com que ela tenha um �gingado� mais característico. Assim, desde

que não seja necessário um staccato mais marcado, como no exemplo anterior, o

Page 150: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

137

intérprete deve dar preferência àquele tipo de técnica, sempre que for possível.

Ademais, Mario Ulloa, em seu artigo Articulação Musical e Técnica Instrumental,

lembra que esse tipo de articulação, quando feito com a mão esquerda, além de sua

contribuição no discurso musical, serve também como uma importante ferramenta para

o relaxamento muscular.

Já nas partes lentas de Reminiscências Op. 78 � a seção C do �Choro� e a

�Seresta� � devem ser tocadas explorando o máximo de legato e a polifonia destas

passagens. Neste caso, o staccato é usado com a finalidade de ressaltar a polifonia em

alguns momentos específicos. A este respeito, Elisa Alves Goritzki diz que:

Como os demais elementos interpretativos, a articulação está

diretamente ligada ao andamento e ao caráter da peça. De

acordo com isso, um choro rápido de caráter mais alegre,

necessita de uma articulação mais solta, salpicada. Em músicas

lentas a articulação mais usada é a ligada, sendo a destacada

utilizada como um ornamento para reforçar ou indicar o

fraseado.146

Na análise que Almir Côrtes fez das interpretações gravadas de Jacob do

Bandolim, ele observou que era muito freqüente o uso do staccato na colcheia

intermediária da célula rítmica semicolcheia/colcheia/semicolcheia: . Não significa,

entretanto, que, sempre que apareça essa célula rítmica, o intérprete deva fazer o

staccato, pois isso tornaria o efeito previsível e perderia o sentido de criar variedade.

Por outro lado, ao menos nos momentos em que tal célula rítmica aparece

com função de acompanhamento em acordes � tal como nos compassos 5 ou 25 do

�Choro� � recomendamos a inclusão de um staccato na colcheia central, por ser a forma

mais usual de se executar este padrão de acompanhamento por um violonista de choro.

146 Elisa Alves Goritzki, �Manezinho da Flauta no Choro: uma Contribuição para o Estudo da Flauta

Brasileira�, Dissertação de Mestrado, Universidade Federal da Bahia, 2002, p. 54.

Page 151: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

138

5.3.2 � Agógica e Tempo

Marlos Nobre geralmente coloca em suas partituras as indicações de

andamento que ele deseja que sua música seja tocada, e costuma ser rigoroso quanto a

isso. Nos três movimentos da suíte Reminiscências, aparecem as indicações base do

andamento de cada peça, colocadas pelo próprio compositor. Suas partituras também

são muito detalhadas quanto a variações internas de andamento.

Na interpretação da música popular, entretanto, o suingue é tido como um

dos principais atributos de um bom executante. Acreditamos que para uma interpretação

coerente de Reminiscências Op. 78 é muito importante inserir esse elemento expressivo.

Suingue é um termo de difícil definição e descrição. Segundo J. Bradford Robinson, o

termo se refere, basicamente, �ao fenômeno rítmico resultante entre o conflito de um

pulso fixo e uma grande variedade de acentos e rubato�147. Segundo, Fábio Zanon, o

suingue �talvez seja uma percepção aguçada de alguns elementos da pronúncia musical,

que normalmente não são prioritários para músicos treinados exclusivamente na música

clássica�148.

Segundo Eliane Salek, �as variações rítmico-melódica utilizadas na

interpretação do choro são resultado da criatividade do intérprete, aliada aos elementos

de sua formação ou �escola� musical�149. Ouvir atenciosamente aos importantes

intérpretes e uma vivência especial nos gêneros é a principal forma de adquirir essa

habilidade cujo detalhamento fugiria ao escopo deste trabalho. Todavia, tem sido cada

vez mais freqüentes os trabalhos de acadêmicos que têm se debruçado na tentativa de

147J. Bradford Robinson, �Swing� in The New Grove Dictionary of Music and Musicians, London: Macmillan Publishers Corp., 1980, Vol. 24, p.416. 148 Fábio Zanon, �A Arte do Violão�. Roteiro do programa de rádio transmitido pela Cultura FM,

disponível em: <http://aadv.home.comcast.net/>. Acesso em: 01 de maio de 2006. 149 Eliane Salek, �A flexibilidade rítmico-melódica na interpretação do choro� in Cadernos de

Colóquio,(Abril 1999), p. 73.

Page 152: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

139

levantar as características de execução de nomes da música popular brasileira que

fizeram escola por suas formas marcantes de execução.

Sabe-se que em diversos gêneros da música brasileira, nem sempre a escrita

corresponde à execução. Segundo Tânia Mara Lopes Cançado, há, na música brasileira,

certa irregularidade e instabilidade na execução dos ritmos sincopados que estariam

associados à origem africana de nossa música, a essa irregularidade a autora chama de

�fator atrasado�. Ela afirma que:

Esse fator atrasado não se apresenta definido na partitura, e para se interpretar de maneira idiomática os ritmos da música

brasileira, o músico necessita não só do conhecimento desses

elementos, mas, literalmente, incorporá-los. Assim, os intérpretes deveriam estar cientes dessa prática de performance ao lerem a notação musical de boa parte do repertório

nacional.150

Cançado diz ainda que �a irregularidade e instabilidade presente na

performance dos ritmos populares brasileiros são características antigas�151. Ela cita

Mário de Andrade, que confirma o fato e afirma que era comum, na época da formação

do maxixe, os compositores incluírem uma �dica� de como executar a célula rítmica

semicolcheia/colcheia/semicolcheia, com a seguinte representação:

Exemplo 51a: Transcrição mais antiga da síncope brasileira (�dica�):

Neste senso, segundo o compositor Cyro Pereira152, seria muito difícil

escrever o que realmente é interpretado num samba ou choro. Conforme ele, a

150 Tânia Mara Lopes Cançado, �O fator atrasado na música brasileira: evolução, características e

interpretação� in Per Musi � Revista Acadêmica de Música, nº2, (2000), p.12. 151 Ibidem, p.9. 152 Apud Renato Kutner, �Brasiliana nº 2 de Cyro Pereira: Análise Interpretativa, Preparação de Edição e

Redução para Viola e Piano�, Dissertação de Mestrado, Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP, 2006, p. 17.

Page 153: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

140

correspondência entre o escrito e o executado desta célula rítmica seria,

aproximadamente, o seguinte:

Exemplo 51b: Execução da célula rítmica do choro

A irregularidade rítmica da música popular brasileira não é uma

característica apenas das músicas com origem na dança, mas também em músicas mais

lentas e sentimentais. Nobre, ao comentar sobre a atitude do intérprete ao tocar a sua

�Seresta�, diz:

Os baixos descendentes na �Seresta� não podem nem devem ser

tocados mecanicamente, mas com aquele jeito tão especial jeito

dos violonistas populares brasileiros e �chorões� de fazerem

esses baixos descendentes, como, por exemplo, o fazem no violão de sete cordas. (...) Uma espécie de �flutuação�, um

�rubato fluido� sem perder a precisão, que é uma característica

do �chorão brasileiro� é fundamental.153

No que diz respeito a músicas de caráter mais rítmico e dançante, a pulsação

deve ser muito precisa e constante como se houvesse uma percussão acompanhando

constantemente a execução. Os rubatos, preferencialmente, devem ser melódicos,

evitando os rubatos estruturais. Antonio Guerreiro de Faria, ao analisar gravações da

interpretação de Ernesto Nazareth de sua própria música, declarou o seguinte:

A surpresa foi a constatação da ausência de qualquer tempo

rubato, quando Nazareth, ora acompanhando o flautista Pedro de Alcântara, ora solando suas próprias composições, se

revelava sóbrio, imprimindo um caráter dançante e alegre às

suas execuções. Nada de parecido com a prática dos músicos de

concerto e recitalistas de música clássica que, ao executarem

153 Entrevista No. 2 (Realizada em 24/06/2007).

Page 154: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

141

música brasileira, imprimem o rubato estrutural, no afã de melodizar e vocalizar aquilo que é dançante e ritmado.

154

No exemplo seguinte podemos observar uma aplicação do que foi dito sobre

o rubato melódico na execução do �Choro� de Marlos Nobre:

Exemplo 52: Choro, comp.5-6:

Apesar de ser um final de uma frase e início de outra, o intérprete pode

atrasar o início da anacruse da segunda frase, desde que compense com um acelerando e

o início do compasso seguinte esteja estritamente em tempo, pois, numa execução dessa

peça por um regional de choro, o pandeiro manteria a marcação constante, e não faria

rubatos junto com a melodia ou �baixaria�; ou seja, o rubato pode acontecer desde que

sob uma pulsação fixa.

Ainda a respeito da variação do ritmo na interpretação do choro, é

importante lembrar que a inventividade dos músicos populares faz com que eles, muitas

vezes, mudem radicalmente muita coisa que está determinada pela partitura. Um

exemplo clássico é a diferença entre as seguintes formas de tocar Odeon de Ernesto

Nazareth, sendo a primeira, como o compositor escreveu:

Exemplo 53a: Odeon, comp.1-2:

154 Antonio Guerreiro de Faria, �O pianismo de Nazareth em tempo rubato� in Per Musi � Revista Acadêmica de Música, nº10, (2004), p.92.

Page 155: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

142

Exemplo 53b: Odeon, comp.1-2:

Alguns intérpretes, como Marcus Llerena e Joaquim Freire, fazem o mesmo

tipo de variação acima em suas gravações do �Choro�, fazendo com que soem da

seguinte forma:

Exemplo 54a: Choro, comp. 1-5:

Ao invés de:

Exemplo 54b: Choro, comp. 1-5:

No entanto, é importante ressaltar que não é uma modificação que conta

com o apoio do compositor, inclusive, acreditamos que tal modificação prejudique o

efeito criado com o contraste entre o uso da figura rítmica , (cujo uso no choro é

derivado da Habanera), e o uso da síncope característica .

Para uma execução estilisticamente correta dos ritmos de �Frevo� de

Nobre, é igualmente importante ouvir e incorporar as sutilezas da interpretação próprias

do gênero. Valdemar de Oliveira faz uma declaração, com um certo exagero, próprio do

escritor, que ressalta essa importância na execução do frevo em geral:

Reclama, a execução do frevo, sangue pernambucano nas veias.

Não é tarefa para quem nunca o ouviu, num terceiro dia de carnaval, no Recife. Nem valores individuais pesam, isoladamente, na balança, como, de resto, toda orquestra. Não se

Page 156: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

143

trata de homogeneidade, afinação, justeza. É preciso um cachet

especial, de cada músico em particular e do conjunto global, para emprestar ao frevo seu corte rítmico inconfundível. (...)

Também o frevo exige �jeitinho�, além do tudo o mais que o

singulariza no populário musical do Brasil.155

O ritmo é certamente um dos elementos essenciais para uma boa

interpretação desse gênero. A execução do �Frevo�, assim como no �Choro�, exige

grande precisão na marcação do tempo, pois todos os deslocamentos rítmicos

característicos do gênero só fazem sentido se feitos dentro de uma pulsação regular e

precisa. No entanto, a execução dos acentos no �Frevo� deve ser bem mais pronunciada

que no �Choro� ou na �Seresta�. Ao ouvir orquestras de frevo, percebe-se que é comum

uma ligeira antecipação de certas síncopes, recurso este que também pode ser feito na

interpretação da peça de Nobre.

5.3.4 - Dinâmica

Nobre também costuma ser muito detalhista ao escrever informações sobre

dinâmica em suas peças. No caso do violão, por ser um instrumento com uma gama

dinâmica relativamente pequena, é importante que o intérprete saiba dosar bem

principalmente os crescendos, para não correr o risco de chegar ao limite do

instrumento antes de atingir o ponto culminante da dinâmica.

A fim de ajudar o intérprete a planejar e controlar a dinâmica durante a

execução da peça, quadros, como o que inserimos aqui, podem servir de parâmetro, pois

oferecem uma visão geral da dinâmica da peça. Jonh Rink, no entanto, chama a atenção

do intérprete ao usar esse recurso:

Um ponto fraco dessa abordagem é sua limitada atenção ao

contexto, que normalmente influencia o resultado de uma dada

155 Valdemar de Oliveira, Frevo, Capoeira e Passo. Recife: Companhia Editora de Pernambuco, 1971, p.54-55.

Page 157: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

144

dinâmica. (Por exemplo, uma indicação de piano deve ter um significado diferente num contexto predominantemente fortíssimo do que numa passagem marcada com pianíssimo).156

Abaixo, estão apresentados os gráficos com as dinâmicas durante os dois

primeiros movimentos de Reminiscências Op. 78:

Choro:

Seresta:

É importante que o intérprete observe o contorno da dinâmica em cada

seção das peças, antes de ter uma noção do conjunto inteiro. No caso do Frevo, esse tipo

de gráfico não cumpre sua função de forma eficaz, devido à existência de uma variação

freqüente e intensa da dinâmica. A melhor solução para isso poderá ser ressaltar os

contrastes através de acentuadas diferenças dinâmicas e mudanças de timbres.

Rafael dos Santos, no artigo Análise e Considerações sobre a Execução dos

Choros para Piano Solo �Canhôto� e �Manhosamente� de Radamés Gnattali, ao 156 John Rink, �Analysis and (or?) Performance� in Musical Performance: a guide to Understanding, Cambridge: Cambridge University Press, 2002, p. 36.

1 4 7 10 13 16 19 22 25 28 31 34 37 40 43 46 49 52 55 58 61 64 67 70 73 76 79 82 85 88 91 94 97 100

103

106

109

112

115

118

121

Compassos

pp

p

mp

mf

piuf

ff

fff

sffff

f

Seção B Seção A2 Seção C Seção A3Seção A

1 3 5 7 9 11 13 15 17 19 21 23 25 27 29 31 33 35 37 39 41 43 45 47 49 51 53 55 57 59 61 63 65 67 69 71 73 75 77 79 81 83 85 87 89

Compassos

p

mp

mf

f

pf

ff

Intro. Seção A1 Seção A2 Seção B2 Seção A3Seção B1

Page 158: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

145

comentar alguns cuidados que se deve ter ao executar peças que tenham relação com

práticas específicas da música popular, destaca a importância de que o intérprete deve

tentar buscar �uma sonoridade leve, que mantenha a textura transparente�157. Além

disso, chamamos a atenção para a necessidade de manter planos dinâmicos distintos nas

texturas polifônicas, distinguido bem o que é melodia, acompanhamento,

contramelodia, linhas do baixo ou outra função, e delimitar o que deve soar mais a cada

trecho. O seguinte exemplo retirado da �Seresta� ilustra bem como o intérprete deve

proceder:

Exemplo 55a: Seresta, comp. 55-56:

Exemplo 55b: Seresta, comp. 55-56: reescrito reforçando a polifonia

Já na interpretação de �Frevo� é importante que o intérprete defina timbres

que possam reforçar o contraste entre as perguntas e respostas que, nas orquestras de

frevo, são feitas entre diferentes naipes de instrumentos:

157 Rafael Santos, �Análise e considerações sobre a execução dos choros para piano solo Canhôto e

Manhosamente de Radamés Gnattali� in Per Musi � Revista Acadêmica de Música, nº3, (2001), p. 5.

Page 159: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

146

Exemplo 56: Frevo, comp. 1-12:

5.4 � Conclusão

Esperamos que esses apontamentos sobre Reminiscências. Op.78 possam

ser utilizados na interpretação de toda a peça, já que tais informações abarcam os

principais problemas que a peça poderia gerar em sua execução. As demais soluções,

além das já sugeridas pela nova edição, poderão ser buscadas por cada intérprete com

base em suas próprias experiências musicais, sem prescindir da possibilidade de refutar

qualquer sugestão aqui apresentada.

Page 160: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

147

CONCLUSÃO GERAL

Apesar de incluir em sua obra diversos elementos oriundos da música

popular e folclórica brasileira, o compositor Marlos Nobre não se identifica e, até

mesmo, rejeita a estética Nacionalista que dominou o cenário da música deste país

durante muitos anos. Segundo ele, os traços característicos da música brasileira estão

presentes em suas composições, na maioria das vezes, de forma espontânea, ou seja,

eles não são apresentados de forma intencional ou acadêmica, sendo apenas o reflexo

natural de suas experiências pessoais com a música genuinamente brasileira que ele

vivenciou desde a sua infância.

Tendo em vista que os referidos elementos característicos da música

brasileira estão intrinsecamente ligados às composições de Nobre e, levando-se em

consideração todas as informações levantadas acerca de Reminiscências Op. 78 e de seu

compositor, chegamos à conclusão de que a execução dessa peça, ressaltando a forma

peculiar de como os músicos populares tocam os gêneros que originaram os três

movimentos da peça, seria uma possibilidade interessante de interpretação.

A digitação que elaboramos como parte integrante do trabalho vem, não só

reforçar a concepção interpretativa sugerida, mas também minimizar as dificuldades

técnicas encontradas na peça. Sendo Marlos Nobre um compositor não-violonista e,

além do mais, preocupado em criar uma linguagem nova para o instrumento, muitas

demandas de suas peças requerem dos intérpretes algumas soluções que muito

contribuem para o enriquecimento da técnica do instrumento. No caso específico de

Reminiscências Op. 78, recursos pouco usuais como o uso do polegar da mão esquerda

e o uso de digitações alternativas de mão direita foram necessários para buscar a

sonoridade desejada a partir da concepção interpretativa escolhida.

Page 161: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

148

Por fim, acreditamos que, por tratar de forma abrangente e, ao mesmo

tempo detalhada, diferentes aspectos de Reminiscências Op.78 � que é uma das mais

recentes e significativas peças para violão solo de Nobre � e por pertencer à sua quinta

fase composicional na qual elementos antigos são apresentados com uma visão mais

amadurecida e, de certa forma, com as características estéticas peculiares já

consolidadas do compositor, o presente estudo poderá ser de ímpar relevância para os

interessados na sua obra violonística ou, até mesmo, auxiliá-los na produção de novos

trabalhos acadêmicos.

Page 162: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

149

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Almada, Carlos. A Estrutura do Choro. Rio de Janeiro: Da Fonseca, 2006.

Alvarenga, Oneyda. Música Popular Brasileira. São Paulo: Duas Cidades, 1982.

Andrade, Mário de. Aspectos da Música Brasileira. São Paulo: Livraria Martins Fontes

Editora, 1965.

________. Ensaio Sobre a Música Brasileira. São Paulo: I. Chiarato & Cia, 1928.

________. Dicionário Musical Brasileiro. São Paulo: Editora da Universidade de São

Paulo, 1989.

Barancoski, Ingrid. �The Interaction of Brazilian National Identity and Contemporary

Musical Language: the Stylistic Development in Selected Piano Works by Marlos Nobre�. Tese de Doutorado, Universidade do Arizona, 1997.

Bark, Josely Maria Machado. �Marlos Nobre: Concertante do Imaginário para Piano e

Orquestra de Cordas Op. 74 - Estudo Analítico e Interpretativo�. Tese de

Doutorado, Universidade Estadual de Campinas � UNICAMP, 2006.

Barreto, Almir Côrtes. �O Estilo Interpretativo de Jacob do Bandolim�. Dissertação de

Mestrado, Universidade Estadual de Campinas � UNICAMP, 2006.

Béhague, Gerard. �Marlos Nobre: Reminiscências and Homenagem a Villa-Lobos; Marlos Nobre: Orchestral, Vocal and Chaber Works� in Latin American Music

Review, Volume 17, No. 1 (1996): 85-89.

_______. Music in Latin America: An Introduction. New Jersey: Prentice-Hall, 1979.

Brandão, José Mauricio Valle. �Nacionalismo: Uma Tipificação da Segregação�.

Salvador: 2005.

Cançado, Tânia Mara Lopes. �O fator atrasado na música brasileira: evolução,

características e interpretação� in Per Musi � Revista Acadêmica de Música, nº2,

(2000): 5-14.

Cascudo, Luiz Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1962.

Cazes, Henrique. Choro: Do Quintal ao Municipal. São Paulo: Editora 34, 2005.

Page 163: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

150

Cone, Edward. Musical Form and Musical Performance. Nova York: W.W. Norton & Company, 1968.

Cook, Nicholas. A Guide to Musical Analysis. London: J. M. Dent & Sons, 1987.

Cooper, Colin. �Marlos Nobre´s Concerto Duplo� in Classical Guitar Volume 17, No. 9

(Maio 1999): 31-32.

________. �Speaking Internationally, Colin Cooper Interviews with Marlos Nobre� in

Classical Guitar Volume 12, No. 3 (Novembro, 1993): 11-14.

Corker-Nobre, Maria Luiza. �Sonâncias III, Opus 49 de Marlos Nobre� in Latin

American Music Review Volume 15, No. 2 (1994): 226-243.

________. �Aspectos Técnicos e Estéticos de Sonâncias III de Marlos Nobre: uma

Introdução à Problemática da Intuição Versus Cerebralismo�. Dissertação de

Mestrado, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1995.

Crook, Larry. Brasilian Music: Notheastern Traditions and the Heartbeat of a Modern

Nation. Califórnia: ABC-CLIO World Music Series, 2005.

Cunha, Vanessa Rodrigues da. �A Influência da Música Folclórica e Popular em Três

Obras para Piano de Marlos Nobre: um Estudo Comparativo das Constâncias

Técnicas e Estéticas na Formação de um Estilo�. Dissertação de Mestrado,

Univentersidade Federal do Rio de Janeiro, 1997.

Dudeque, Norton. História do Violão. Curitiba: Editora da Universidade Federal do Paraná, 1994.

Duncan, Charles. The Art of Classical Guitar Playing. Prinston, New Jersey: Summy-Birchard Music, 1980.

Faria, Antonio Guerreiro de. �O pianismo de Nazareth em tempo rubato� in Per Musi �

Revista Acadêmica de Música, nº10, (2004): 89-95.

Fraga, Orlando. Dez estudos de Leo Brower: Análise Técnico Interpretativa. Curitiba: Data Música, 2005.

Gerling, Fredi. �Analysis for Performance and Performance Analysis: A Study of Villa-Lobos Bachianas Brasileiras No.9�. Tese de Doutorado. University of Iowa, 2000.

Goritzki, Elisa Alves. �Manezinho da Flauta no Choro: uma Contribuição para o Estudo

da Flauta Brasileira�. Dissertação de Mestrado, Universidade Federal da Bahia,

2002.

Page 164: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

151

Grier, James. Critical Editing of Music. Nova York, Press Sydicate of the University of Cambridge, 1996.

Kutner, Renato. �Brasiliana nº 2 de Cyro Pereira: Análise Interpretativa, Preparação de

Edição e Redução para Viola e Piano�. Dissertação de Mestrado, Universidade

Estadual de Campinas - UNICAMP, 2006.

Magalhães, Raimundo. �16 Variações sobre um tema de Frutuoso Vianna, Opus 8, de

Marlos Nobre: um estudo crítico das características�. Dissertação de Mestrado,

Universidade Federal da Bahia, 1994.

Marco, Tomás. Marlos Nobre: El Sonido del Realismo Mágico. Madrid: Fundación

Autor, 2006.

Marcondes, Marcos Antônio. Enciclopédia da Música Brasileira � Erudita, Folclórica

e Popular. 3ª Edição. São Paulo: Art Editora / Publifolha, 2000.

Mariz, Vasco. História da Música no Brasil. 4ª Edição, Rio de Janeiro: Civilização

Brasileira, 1994.

________. Três Musicólogos Brasileiros: Mário de Andrade, Renato Almeida e Luiz

Heitor Correa de Azevedo. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira S. A.,

1983.

Mota, Sophia Karlla Almeida. �Frevo e Identidade Sociocultural Pernambucana: Um Estudo Etnoterminológico�. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal de

Pernambuco, 2001.

Neves, José Maria. Música Contemporânea Brasileira. São Paulo: Ricordi Brasileira,

1977.

________. Villa-Lobos, o Choro e os Choros. São Paulo: Ricordi Brasileira, 1977.

Nobre, Marlos. �Criação, Descoberta e Invenção� in Revista da Sociedade Brasileira de

Música Contemporânea 4 (1997): 115-119.

________. �Tendências da Criação Musical Contemporânea� in Revista da Sociedade

Brasileira de Música Contemporânea 1 (1994): 70-86.

________. �La Problemática de la Música Latinoamericana� in Revista Musical Chilena

(1978): 125-130.

________.�Marlos Nobre: Homepage Oficial�, disponível em

<http://marlosnobre.sites.uol.com.br/index1_i.html>. Acesso em: 08 de abril de 2006.

Page 165: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

152

________.�Marlos Nobre�. Fórum Allegro, disponível em

<www.allegrobr.com/forum/topico.php?id=815>. Acesso em: 08 de abril de 2006.

________.�Marlos Nobre (1)�. Fórum Allegro, disponível em

<www.allegrobr.com/forum/topico.php?id=1084>. Acesso em: 08 de abril de 2006.

________.�Marlos Nobre (2)�. Fórum Allegro, disponível em

<www.allegrobr.com/forum/topico.php?id=1520>. Acesso em: 08 de abril de 2006.

________.�Marlos Nobre (3)�. Fórum Allegro, disponível em

<www.allegrobr.com/forum/topico.php?id=3070>. Acesso em: 08 de abril de 2006.

Oliveira, Valdemar de. Frevo, Capoeira e Passo. Recife: Companhia Editora de Pernambuco, 1971.

Pareyson, Luigi. Os Problemas da Estética. 2ª Edição. São Paulo: Martins Fontes, 1989.

Pellegrini, Remo Tarazona. �Análise dos Acompanhamentos de Dino Sete Cordas em

Samba e Choro�. Dissertação de Mestrado, Universidade de Campinas, 2005.

Persichetti, Vincent. Twentirth-Century Harmony: Creative Aspects and Practice. Nova York: W.W. Norton & Company, 1961.

Rink, John. �Analysis and (or?) Performance� in Musical Performance: a guide to

Understanding. Cambridge: Cambridge University Press, 2002.

Ripper, João Guilherme. �Pós-modernismo na Música Latinoamericana� in Revista da

Sociedade Brasileira de Música Contemporânea 4 (1997): 75-83.

Robinson, J. Bradford. �Swing� in The New Grove Dictionary of Music and Musicians.

London: Macmillan Publishers Corp., 1980. Vol. 24, p.416.

Salles, Paulo de Tarso. Abertura e Impasses: O Pós-modernismo na Música e seus

Reflexos no Brasil � 1970-1980. São Paulo: Editora Unesp, 2003.

________. �Momentos I (1974) para Violão de Marlos Nobre: Síntese e Contraste� in

PerMusi Volume 7 (2003): 37-51.

Santos, Rafael. �Análise e considerações sobre a execução dos choros para piano solo Canhôto e Manhosamente de Radamés Gnattali� in Per Musi � Revista

Acadêmica de Música, nº3, (2001): 5-16.

Page 166: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

153

Scarambone, Bernado. �The Piano Works of Marlos Nobre�. Tese de Doutorado, Universidade de Houston, 2006.

Slonimsky, Nicolas. Baker´s Biographical Dictionary of Musicians. New York: Schimer Books, 1984.

Soares, Albérgio Claudino Diniz. �Orientadores Técnicos nos Estudos IV e VII de

Francisco Mignone�. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal da Bahia,

1998.

Salek, Eliane. �A flexibilidade rítmico-melódica na interpretação do choro� in Cadernos

de Colóquio (Abril 1999): 69-73.

Souza, Eugênio Lima. �Recursos Técnicos e Processos Intertextuais na Sonatina para

Violão de José Alberto Kaplan�. Dissertação de Mestrado, Universidade Federal

do Rio de Janeiro, 1997.

Teles, José. Do Frevo ao Manguebeat. São Paulo: Editora 34, 1998.

Texeira, Moacyr Garcia Neto. Música Contemporânea Brasileira para Violão. Vitória:

Gráfica e Editora A1, sd.

Tinhorão, José Ramos. História Social da Música Popular Brasileira. São Paulo:

Editora 34, 1998.

Ulloa, Mario. �Articulação Musical e Técnica Instrumental: Sugestões para Aprimorar o

Desempenho Instrumental no Violão� in Ictus 5 (dezembro 2004). pp 53-56.

________. �Recursos Técnicos, Sonoridades e Grafias do Violão para Compositores Não Violonistas�. Tese de Doutorado, Universidade Federal da Bahia, 2001.

Valdés, André Pardo. �Nueve Perguntas a Marlos Nobre� in Revista Musical Chilena,

XXXIII No. 148 (1979). pp. 37-47.

Wolf, Daniel. �Como Digitar uma Obra para Violão� in Violão Intercâmbio No. 46 (2001).

Zanon, Fábio. �A Arte do Violão�. Roteiro do programa de rádio transmitido pela

Cultura FM, disponível em: <http://aadv.home.comcast.net/>. Acesso em: 01 de

maio de 2006.

________. �O Violão no Brasil depois de Villa-Lobos�. Artigo disponível em:

<http://vcfz.blogspot.com/2006/05/o-violo-no-brasil-depois-de-villa.html>. Acesso em: 01 de maio de 2006.

Page 167: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

154

ANEXO I

Entrevistas a Marlos Nobre

Page 168: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

155

Entrevista No. 1 (Realizada em 09/04/2007) 1) Moacyr Teixeira Neto, em sua dissertação de mestrado diz que Reminiscências

Op. 78 foi concebida inicialmente como uma homenagem a João Pernambuco. Por

outro lado, no comentário que o senhor fez sobre a peça no encarte do CD de

Joaquim Freire, apenas são feitas referências às reuniões de violonistas em Recife e

ao violonista Amarildo, não havendo qualquer menção a João Pernambuco. Há

contradição entre ambas as versões, ou uma é complemento da outra? Resposta: Na verdade, uma é complemento da outra. As reuniões das quais participei

ainda menino, levado pelo meu pai, violonista amador, foram a minha primeira iniciação no violão e esta experiência me marcou para sempre. A virtuosidade e a

maneira particular de tocar do Amarildo, me impressionaram imensamente sobretudo sua criatividade ao tecer uma polifonia natural, algo como se estivessem tocando dois, três violões. E para esta particularidade meu pai me chamou a atenção de maneira muito

especial. Veja portanto na escritura de �Reminiscências� que a polifonia, a

multiplicidade de vozes é um dado muito importante nesta peça, e, aliás, em todas

minhas peças para violão. Não me esqueço por exemplo, da observação do Odair Assad

ao tocar e gravar o �Momentos IV� que chamava a atenção para como a peça parecia

soar como dois violões, apesar da escritura ser para um só instrumento. 2) Caso tenha havido, de fato, a referida homenagem, de que forma ela foi

expressa, e quais elementos musicais foram utilizados para sua caracterização?

Existem, por exemplo, citações de obras de João Pernambuco nesta composição?

Resposta: Não existem realmente citações diretas, mas sobretudo na segunda peça de

�Reminiscências� (Seresta) há lembranças minhas claras do estilo em geral de João

Pernambuco, por exemplo os baixos descendentes, algumas suspensões harmônicas

características, o estilo seresteiro, que são aliás o estilo muito genérico dos �chorões�

tanto de Pernambuco quanto do Rio de Janeiro que eu de certa maneira, procurei homenagear nesta minha �Seresta�. São elementos genéricos, que é possível encontrar

em um sem número de peças dos chorões cariocas e em João Pernambuco, algo que

procurei cristalizar nesta peça, como homenagem minha a este estilo profundamente

brasileiro de fazer soar o violão. 3) Que outras observações relevantes o senhor faria a respeito de Reminiscências

Op. 78? (processo criativo e �inspiração� para escrever, história, características

técnicas e estilísticas da peça, relações com outras obras suas, etc.).

Resposta: A �inspiração� de maneira geral foi o que disse anteriormente: a maneira

peculiar dos �chorões� da primeira metade do século XX de tocarem o violão e de

criarem seus choros. Portanto a primeira peça �Choro� é um evocação deste estilo, no

qual não está ausente a grande figura de Ernesto Nazareth, um compositor popular

carioca que estudei profundamente quando estava ainda em Recife, na década 1950-60. Eu comprei simplesmente todos os �tangos brasileiros� de Nazareth e os estudei, todos,

quando estava em Recife. Sempre me pareceu que Ernesto Nazareth foi o primeiro compositor brasileiro a captar realmente, em toda sua integridade e autenticidade, o

Page 169: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

156

estilo peculiar da música brasileira daquela época. Acho portanto Nazareth o compositor

mais importante no sentido de cristalizar, em suas obras para piano, o estilo tão próprio

dos cavaquinhos, flautas, baixos de violão, clarinetes, e percussão, que marcavam a

maneira peculiar de tocarem e criarem daqueles grupos de �chorões� cariocas. Nazareth

transpôs como ninguém o fez, nem antes nem depois, a verdadeira essência deste estilo.

Tão profunda foi a influência de Ernesto Nazareth em minha formação que minhas

primeiras obras, são �Homenagem a Ernesto Nazareth� para piano, o �Concertino� para

piano e orquestra de Cordas; a Nazarethiana para piano e o meu �Trio para

piano,violino e violoncelo�. Portanto esta obra �Reminiscências� para violão é uma

evocação e uma homenagem tripla, minha, a João Pernambuco, a Ernesto Nazareth e

aos �chorões� do Rio e de Pernambuco. O último (terceiro) movimento da peça é um

�Frevo�, que é o primeiro a ser escrito para violão solista. Nunca antes (que eu saiba)

algum compositor escreveu um verdadeiro �frevo� para violão solo. E esta peça é

realmente isto: um verdadeiro �frevo�, com todas suas características melódicas,

rítmicas, harmônicas e de inconfundível �gingado� desta dança que caracteriza

fundamentalmente o próprio Carnaval de Recife. Naturalmente eu vivi desde minha

infância a influência do frevo, escutando as mais variadas formas de frevo nas ruas de

Recife durante o carnaval. E ao escrever �Reminiscências� quis então render uma

homenagem a esta forma imperecível da criatividade popular de Pernambuco. 4) Sabe-se que cada movimento de Reminiscências Op. 78 é dedicado a um

violonista diferente. Existe alguma relação entre as dedicatórias e o estilo

compositivo de cada um dos movimentos?

Resposta: Na realidade não há um relação direta entre o estilo da composição das

diferentes partes e cada violonista a quem dediquei um das peças. Na verdade os três

são queridos amigos e grandes intérpretes de minhas obras para violão. E foi o Marcelo

Kayath quem provocou o nascimento da peça, ao me pedir uma peça �favorita� para ser

incluída em seu CD na Hyperion em Londres, entitulado �Guitar Favourites�. Ora, eu

tinha então de escrever uma peça �favorita� que ainda não existia e que não tinha sido

jamais tocada por ninguém! Certamente um desafio. E, como gosto de desafios eu

aceitei a idéia e comecei escrevendo apenas a �Seresta� que o Marcelo Kayath adorou

de cara e logo gravou realmente no CD em questão. Em seguida me veio a idéia de

completar a série, com mais três. Uma, o Choro, para o Marcus Llerena, grande

intérprete de minhas obras para violão e o �Frevo� para o Joaquim Freire, que aliás foi o

primeiro da gravar toda a suíte em CD (pela Leman Classics), e sendo pernambucano como eu, sentiu integralmente como fazer soar o �frevo�. 5) Houve alguma influência, sugestão ou consulta a algum violonista durante o

processo de composição dessa peça?

Resposta: Não, nenhuma sugestão nem consulta de qualquer espécie a algum violonista durante o processo de criação da peça. Aliás é assim que sempre fiz, desde o

�Momentos I� primeira peça que escrevi para o Turíbio Santos, ao qual entreguei a peça totalmente escrita para ele tocar, e assim foi com todas as peças para violão que fiz depois, incluindo a �Reminiscências�. Na realidade tenho dois excelentes violões em

casa e apesar de não ser violonista, eu realizo tudo que penso mentalmente e depois faço

o teste da escritura, eu mesmo nos meus violões. E nunca necessitei depois de consultar

Page 170: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

157

um violonista para opinar: eles sempre receberam as obras totalmente pensadas e realizadas por mim. 6) Como foi o processo para incluir a digitação de Reminiscências Op. 78?

Resposta: A digitação foi feita esta sim, com a ajuda do Marcelo Kayath, fundamentalmente em todas as três peças. Mas uma vez que eu assimilei totalmente

como escrever a digitação eu sempre prefiro colocar, eu mesmo, as digitações que

pensei eu mesmo, originalmente. Mas naturalmente sempre estou aberto a sugestões

mas nunca a interferências de qualquer tipo que for ou que seja, por parte de algum

violonista. Penso que todo instrumentista tem seus macetes particulares e isso é coisa

deles. Eu tenho minhas próprias idéias instrumentais para o violão, especificamente, e

coloco o mais exatamente possível estas idéias em escritura definitiva em minhas

partituras para o violão. Um caso por exemplo típico: eu escrevi a versão para dois

violões do meus Três Ciclos Nordestinos e o Sérgio e Odair Assad vieram gravar

diretamente a obra nos estúdios da EMI no Rio de Janeiro. Praticamente leram à

primeira vista, na hora, e foram gravando número a número. E sempre me lembro do

espanto deles, ao constatarem que não havia nada a mudar, estava tudo ali, era só tocar.

Creio que este exemplo é bastante claro para responder á sua pergunta.

Page 171: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

158

Entrevista No. 2 (Realizada em 23/06/2007) 1) Gostaria que o senhor esclarecesse uma dúvida, a respeito da digitação de

Reminiscências, que me surgiu ao comparar um e-mail seu enviado no dia 12 de

julho de 2006 e a resposta dada na entrevista que te enviei no dia 09 de abril de

2007. Na primeira, o senhor informava : �a digitação é do Marcelo Kayath (a

Seresta) e do Marcus Llerena (o chôro e o frevo)�. Já na última entrevista, senhor

dizia: �A digitação foi feita esta sim, com a ajuda do Marcelo Kayath,

fundamentalmente em todas as três peças. Mas uma vez que eu assimilei

totalmente como escrever a digitação eu sempre prefiro colocar, eu mesmo, as

digitações que pensei eu mesmo, originalmente�.

Por favor, esclareça-me como se deu o processo até se chegar à digitação que

aparece na partitura editada pela Henri Lemoine. Até que ponto são digitações

suas, digitações de outros violonistas ou revisão de outros violonistas, neste caso

específico? Resposta: A digitação definitiva tomou como base a digitação do Marcelo Kayath nas

três peças, apesar de também eu ter consultado e comparado com a digitação do Marcus

Llerena. No final do processo eu tomei como ponto de partida a digitação do Marcelo e

fiz uma digitação definitiva, minha, que é a que consta na partitura editada. 2) Nos manuscritos de Reminiscências não aparecem as dedicatórias a Marcus

Llerena, Marcelo Kayath e Joaquim Freire. Já havia, durante a concepção da

peça, a intenção de dedicá-la a estes três violonistas ou a dedicatória foi posterior à

escrita da mesma?

Resposta: A inclusão das dedicatórias foram colocadas definitivamente na edição

Lemoine. No princípio apenas a �Seresta� era dedicada ao Marcelo, que me

encomendou esta peça. Depois que ouvi as execuções da obra pelo Joaquim Freire e o Marcus Llerena, dediquei as outras também aos dois, principalmente pelo fato de que

estes três violonistas terem tido sempre uma atenção especial à minha obra violonistica,

fazendo constantemente primeiras audições e interpretações de minhas peças em seus

concertos. 3) O senhor comenta na entrevista feita no dia 09 de abril de 2007 que em

Reminiscências há uma homenagem sua ao �estilo profundamente brasileiro de

fazer soar o violão�. Ao mesmo tempo, em geral, a escrita de sua música é bem

detalhada, cheia de indicações de articulação, dinâmica, caráter, acentos e etc. O senhor acredita que, para uma boa interpretação de uma música inspirada em

gêneros populares � tal como é o caso de Reminiscências � a simples obediência às

indicações da partitura seriam suficientes para uma execução �correta� da peça,

ou o conhecimento daqueles gêneros e de suas particularidades de execução seriam

necessárias para um melhor desempenho na peça? Na sua opinião, qual deve ser a

atitude do intérprete ao executar esta música? O �estilo brasileiro de soar o violão�

de Reminiscências estaria apenas nos elementos da composição ou deve ser

buscado também na execução e de que forma o intérprete ele pode fazer isso?

Page 172: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

159

Resposta: No espírito de sua pergunta, eu, por exemplo, ouvi um interpretação desta

obra por um excelente violonista inglês (não me lembro do nome agora) que tocou

exatamente todas as notas, respeitou todas as indicações dinâmicas, de tempo, mas cuja

interpretação me deixou insatisfeito. Faltava nele esta vivência especial com este tão

peculiar jeito brasileiro de tocar, seja o violão seja outro instrumento. Mas sobretudo no

violão, por exemplo, os baixos descendentes na �Seresta� não podem nem devem ser

tocados mecanicamente, mas com aquele tão especial jeito dos violonistas populares

brasileiros e �chorões� de fazerem estes baixos descendentes,como por exemplo o

fazem no violão de sete cordas. Esta minha peça �Reminiscências� capta muito deste

espírito especial do �chorão� de tocar, uma reminiscência das reuniões dos chorões

pernambucanos, que se reuniam aos domingos simplesmente para tocarem pelo prazer de fazerem música em conjunto. Portanto uma vivência ou uma especial atenção e

estudo dos toques tão peculiares dos �chorões� brasileiros é muito útil para interpretar

esta obra como tem de ser. Uma espécie de �flutuação�, um �rubato flúido� sem perder

a precisão, que é característica do �chorão brasileiro� é fundamental. 4) Ainda com relação ao detalhamento de escrita, o �Frevo� do �IV Ciclo

Nordestino� para piano apresenta uma quantidade bem maior de articulações do

que o �Frevo� da suíte �Reminiscências� para violão. Esta diferença significaria

uma maior liberdade do intérprete violonista na escolha das articulações, ou existe

alguma outra motivação para este fato? Resposta: Sim, eu procurei na versão para o violão não colocar um detalhamento mais

acentuado, como o fiz na escritura do �Frevo� para piano. Mas também neste caso, é

essencial um conhecimento prévio de como se tocam os frevos pelas orquestras típicas

de frevo de Pernambuco. Não quero dizer que isso seja absolutamente essencial, mas

sim aconselhável. Para fazer uma alusão clara, por exemplo, bem dizia Rubinstein que

para se tocar realmente bem as Mazurkas de Chopin, o pianista bem de conhecer como se dançam as mazurkas na Polônia. Um interpretação literal, mecânica, do ritmo escrito

por Chopin não leva ao verdadeiro espírito do gênero �mazurka�. Assim como as

�valsas vieneneses�, com uma ligeira tenuta no segundo tempo, isso só se aprende

ouvindo e praticando este gênero �in locu�. No meu Frevo para violão, o intérprete pode

ter certa liberdade, dentro da escritura estrita que proponho, mas esta liberdade tem de estar ligada à tradição do gênero, ou seja, do �frevo� popular de Recife. 5) Em sua obra existem vários exemplos de peças baseadas em um mesmo

material temático ou adaptações da mesma peça com formações instrumentais

diversas. No caso de �Frevo� para violão e para piano, como o senhor classifica o

�Frevo� para violão (transcrição, adaptação, versão, reutilização do material

temático, arranjo, etc.)?

Resposta: Em alguns casos específicos, eu pratico um tipo de revisitação a certas idéias

e certas obras minhas. É o caso da minha série de �Desafios� onde a mesma matéria

musical é escrita para diferentes instrumentos. Minha idéia neste caso é sempre o

resultado da minha disposição de que, nestes casos, eu não esgotei totalmente as

possibilidades ao usar um certo instrumento. Escrever para piano é uma coisa, para

contrabaixo solo é outra. No caso do �Frevo� não considero uma �transcrição�, mas

uma reutilização em um instrumento totalmente diferente das mesmas idéias. É como ao

fazer uma obra ficassem resíduos, isto é, escolhi antes um caminho mas ficaram abertos outros. No caso do frevo para violão o que me fascinou foi a idéia de que até então

Page 173: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

160

ninguém tinha ousado escrever um verdadeiro frevo para violão. O frevo, sendo uma

dança típica do Carnaval de Recife, tocada por grande conjunto de metais, clarinetas e percussão, nas ruas de Recife, ao ser transportado para o violão me levou a um exercício

de imaginação que me foi extremamente excitante artística e musicalmente falando. É o

primeiro frevo escrito para um instrumento tão delicado como o violão, e nele soa

muitíssimo bem,pelo menos é o que penso. 6) Reminiscências e outras peças sua para violão foram editadas pela Henri

Lemoine na coleção Roberto Aussel. O contato com esta editora deu-se

diretamente ou por intermédio de Roberto Aussel? Como se deu o contato com este

violonista? Houve alguma participação dele na edição de Reminiscências (seja de

revisão, dedilhados ou outras)? Resposta: Na realidade meu primeiro contato com o Roberto Aussel é antigo, mas tudo

começou com o pedido dele para eu escrever uma obra nova para violão para a coleção

com seu nome na Henri Lémoine. Para atender este seu pedido eu escrevi não a

Reminiscências, mas sim a peça �Entrada e Tango�,que consta de sua coleção. Foi

somente depois de editada esta peça que enviei �Reminiscências� para o Aussel que se

entusiasmou com a obra e a incluiu também na sua coleção. No caso, houve uma

participação do Aussel na digitação da Entrada e Tango, mas não em Reminiscências.

Aliás quero lhe dizer que jamais eu deixaria que qualquer violonista, qualquer intérprete

fizesse jamais uma �revisão� de obra minha. Desde o princípio, desde minha primeira

obra escrita para violão o Momentos I, eu a escrevo toda e sempre os violonistas a

tocaram, como todas as demais, exatamente como eu as escrevi, sem tirar nem pôr.

Aliás é o mesmo com as obras para piano. Em nenhuma obra para piano que escrevei eu

coloco jamais o dedilhado, inclusive também coloco pouquíssimas indicações de pedal.

Os verdadeiros artistas e grandes intérpretes não necessitam destas indicações, pois

dedilhado e pedal são opções muito pessoais, sobretudo o dedilhado, que vai sempre de

acordo com a mão de cada executante. O que serve para um não serve para outro. No

caso do violão existe uma espécie de mania de dar importância à digitação, quando eu

até prefiriria editar minhas obras para violão sem qualquer digitação. Mas por questão

editorial, as editoras como a Lémoine ou a Max Eschig sempre preferem colocar as

digitações para facilitar de certa maneira a venda das partituras para os estudantes, sobretudo.

Page 174: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

161

Entrevista nº 3 (realizada em 09/07/2007) 1) A sua peça para orquestra �In Memorian� (1973/ 1976) foi escrita em

memória de seu pai que era um violonista amador. O senhor acredita haver

alguma relação entre �In Memorian�, cuja composição se iniciou em 1973 e o

senhor começar a escrever peças para violão solo (Momentos I) a partir de 1974?

Qual foi sua motivação para começar a escrever para violão?

Resposta: A motivação para eu escrever a minha primeira obra para violão �Momentos

I� decorreu do naquela época amigo o violonista Turíbio Santos, que me pediu

insistentemente uma obra para violão, para ele estrear em seus concertos. Naquela

época, ou seja, em 1974, o violonista Turíbio Santos tinha uma certa carreira no exterior como violonista, e ao receber a obra em questão, a estreou em diversas apresentações

dele na Europa. A partir desta primeira obra senti despertar em mim o interesse pelo instrumento e comecei a série dos Momentos escrevendo os de nº 2,3 e 4 que pretendo completar, com o tempo, até o número 12. A editora Max Eschig imediatamente editou

os 4 primeiros Momentos. Não há portanto nenhuma relaçõ com minha peça In

Memoriam, mas o fato do meu pai ter sido violonista amador e ter me levado desde pequeno, como disse em diversas ocasiões, a reuniões de grupos de violonistas em

Recife, foi um fator também importante para despertar meu interesse pelo instrumento.

2) Em depoimento seu a um fórum de discussão na internet (Forum Allegro) o

senhor comenta: �Desenvolvi, com o tempo, um tal conhecimento dele [do violão]

que escrevo diretamente para o papel pensando no instrumento�. Ao mesmo

tempo, na matéria sobre sua obra para violão da �Classical Guitar� de novembro

de 1993, Colin Cooper comenta: �Later he studied violin, cello and the guitar�.

Gostaria que o senhor esclarecesse este dado, informando se houve, em algum

momento, o estudo formal do violão? Como se deu o seu conhecimento do violão a

ponto de dominar a escrita de um instrumento que muitas vezes é estigmatizado

por compositores não-violonistas devido às suas particularidades idiomáticas?

Resposta: Eu estudei o violão totalmente de maneira autodidata, sem qualquer

professor. Aliás o mesmo ocorreu praticamente com o piano, pois após minha iniciação

passei a estudar só, por minha conta, seguindo o método Leimer-Gieseking. Com o violão foi o método de Tarrega que me orientou desde o início e comprei dois

excelentes instrumentos. Quero salientar que escrevo mentalmente sempre, seja para o violão ou qualquer outro meio. Realizo a obra mentalmente e depois a passo para o papel. Neste processo eu realizo testes, diretamente no violão, eu mesmo provando os

acordes, as posições, as diferentes cordas que quero que sejam usadas. Por exemplo no

meu Concerto Duplo para dois violões eu entreguei a partitura para Sérgio e Odair

Assad, com todos os detalhes, incluindo sutilezas como até mesmo as cordas, os

dedilhados, exatamente como quero que sejam utilizados. Chame isso de profissionalismo no mais grau, mesmo, pois quando entrego qualquer obra minha, para qualquer instrumento, seja solo, em conjunto, câmara ou orquestra, tudo já foi testado,

pensado e colocado com a maior exatidão possível. 3) Gostaria que o senhor comentasse um pouco sobre a sua peça �Rememórias�

para violão solo (história, �inspiração� para escrever, características técnicas e

Page 175: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

162

estilísticas da peça, intertextualidade, estréia, relações com outras obras suas,

etc.)? Resposta: A peça �Rememórias� nasceu de uma encomenda o Concurso Internacional

de Violão de Alessandria, Itália, para ser a peça de confronto deste Concurso de 1998 sendo dedicada à memória do criador do Concurso, Michele Pittaluga e também à

violonista Susanne Mebes. A obra consta de Embolada, Cantilena e Caboclinhos. A obra foi então estreada mundialmente na ocasião do Concurso mencionado, mas não

tenho no momento a data certa nem o nome do violonista. O 1º movimento, Embolada,

é inspirada na primeira peça de uma Suíte de Bach creio que em mi menor. O ritmo de

embolada nordestina me surgiu primeiro e naturalmente a melodia minha me lembrava algo, e um dia depois de escrevê-la soube que era a tal Suíte de Bach. Portanto, é um

caso típico de �rememória� de algo ouvido antes, mas surgido em estado meio

nebuloso. Não foi absolutamente uma coisa deliberada, eu não peguei a Suíte de Bach e

fiz a Embolada, não mesmo! Foi então que decidi pelo nome de �Rememória�, pois era

uma peça que rememorava uma experiência auditiva anterior que me marcara muito.

Portanto o caráter da peça é de um prelúdio tipo �embolada nordestina�. A 2ª. Peça

�Cantilena� é uma rememória de uma canção do nordeste, �A muié de Lampião� que

sempre me pareceu belíssima e que eu utilizo no meu �Ciclo de Lampião� para coro

mixto a cappella. A escritura é muito trabalhada e muito polifônica,com aquêle caráter

tipicamente nostálgico do nordeste; a 3ª. Peça �Caboclinhos� é uma rememória dos

grupos folklóricos dos caboclinhos do Carnaval de Recife, um grupo de crianaças índias

que pulam, dançam e tocam uma espécie de arco e flecha que bate na madeira, pontualizando o ritmo. É uma lembrança muito forte do Carnaval de minha infância. É

opus 79 portanto logo em seguida de Reminiscências. Como toda peça minha, ela é

independente como obra, mas tem sempre algo no plano rítmico, formal e harmônico

que marcam meu estilo. 4) Respectivamente nos anos de 1965 e 1966, o senhor escreveu �Praianas Op.

18� e �Beiramar Op. 21� para voz e piano (que posteriormente são reescritas para

voz e violão). Porque razão o senhor escreveu estas peças em estilo tão tradicional

logo em seguida a peças mais experimentais como o �Ukrinmakrinkrin Op. 17� e

seu ao estudo no Tocuato Di Tella?

O senhor acredita haver alguma continuidade entre essa parte mais tradicional de

suas canções e o gênero da canção nacionalista, mesmo declarando rejeitar o

nacionalismo musical como ideologia?

Resposta: Eu nego e rejeito o nacionalismo musical ou qualquer outro tipo de nacionalismo isso quero deixar bem claro. Mas não nego nem jamais negarei as raízes

mais puras e fortes de minhas experiências musicais de minha infância, que sempre vão

estar presentes em minhas obras. Elementos rítmicos, melódicos, harmônicos e até

formais destas experiências sobretudo do Carnaval de Recife, sempre estão em minhas

obras. O fato de ter escrito peças como Praianas e Beiramar, logo depois de

Ukrinmakrinkrin, nunca foi algo estranho para mim. Na minha mente criadora, sempre existem resíduos de pensamentos e de experiências passadas que afluem naturalmente à

superfície me obrigando quase diria, a escrevê-las. Depois de uma obra tão

experimental com Ukrinmarkrinkrin era como se minha mente desejasse um repouso, um retorno, algo para mim natural. Tudo faz parte natural de minha criação. Não tenho

preconceitos de parecer vanguarda ou retaguarda, para mim isso não existe. Somente

existe o impulso forte e essencial da criação.

Page 176: Dissertaçªo de Mestrado ReminiscŒncias Op. 78 de Marlos ... · LISTA DE EXEMPLOS Exemplo 1: Momentos II (Marlos Nobre), comp.1-4.....28 Exemplo 2: Homenagem a Villa Lobos (Marlos

163

ANEXO II