dissertacao

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 FUNDAÇÃO EDSON QUEIROZ UNIVERSIDADE DE FORTALEZA - UNIFOR CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS - CCJ PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO CONSTITUCIONAL A POSSE DAS TERRAS TRADICIONALMENTE OCUPADAS PELOS ÍNDIOS COMO UM INSTITUTO DIVERSO DA POSSE CIVIL E SUA QUALIFICAÇÃO COMO UM DIREITO CONSTITUCIONAL FUNDAMENTAL Luís de Freitas Júnior Fortaleza - CE Abril, 2010

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FUNDAO EDSON QUEIROZ UNIVERSIDADE DE FORTALEZA - UNIFOR CENTRO DE CINCIAS JURDICAS - CCJPROGRAMA DE PS-GRADUAO EM DIREITO CONSTITUCIONAL

A POSSE DAS TERRAS TRADICIONALMENTE OCUPADAS PELOS NDIOS COMO UM INSTITUTO DIVERSO DA POSSE CIVIL E SUA QUALIFICAO COMO UM DIREITO CONSTITUCIONAL FUNDAMENTAL

Lus de Freitas Jnior

Fortaleza - CE Abril, 2010

LUS DE FREITAS JNIOR

A POSSE DAS TERRAS TRADICIONALMENTE OCUPADAS PELOS NDIOS COMO UM INSTITUTO DIVERSO DA POSSE CIVIL E SUA QUALIFICAO COMO UM DIREITO CONSTITUCIONAL FUNDAMENTALDissertao apresentada ao Programa de PsGraduao em Direito como requisito parcial para a obteno do ttulo de Mestre em Direito Constitucional, sob a orientao da Prof. Dr. Joyceane Bezerra de Menezes.

Fortaleza - CE 2010

F866p

Freitas Jnior, Lus de. A posse das terras tradicionalmente ocupadas pelos ndios como um instituto diverso da posse civil e sua qualificao como um direito constitucional fundamental / Lus de Freitas Jnior. - 2010. 247 f. Dissertao (mestrado) Universidade de Fortaleza, 2010. Orientao: Profa. Dra. Joyceane Bezerra de Menezes. 1. Posse indgena. 2. Direitos fundamentais. 3. Constituio de 1988. 4. Posse da terra. I. Ttulo. CDU 347.251(=87)

LUS DE FREITAS JNIOR

A POSSE DAS TERRAS TRADICIONALMENTE OCUPADAS PELOS NDIOS COMO UM INSTITUTO DIVERSO DA POSSE CIVIL E SUA QUALIFICAO COMO UM DIREITO CONSTITUCIONAL FUNDAMENTAL

BANCA EXAMINADORA

________________________________________________________ Prof. Dr. Joyceane Bezerra de Menezes Universidade de Fortaleza - UNIFOR

________________________________________________________ Prof. Dr. Fernando Antnio de Carvalho Dantas Universidade do Estado do Amazonas - UEA

________________________________________________________ Prof. Dr. Gustavo Raposo Pereira Feitosa Universidade de Fortaleza - UNIFOR

Dissertao aprovada em: 23/04/2010

minha me, por tanta ternura...

AGRADECIMENTOS

Ao Grande Arquiteto do Universo por se constituir em pedra angular em minha existncia; professora Joyceane Menezes, por confiar, orientar, corrigir, persistir e estimular-me; Aos professores Fernando Dantas e Gustavo Feitosa por disponibilizarem-se em fazer parte desta banca examinadora; A todos os professores e funcionrios do Programa de Ps-graduao em Direito Constitucional; Aos meus familiares e amigos, especialmente aos colegas de mestrado; Advocacia-Geral da Unio AGU e seus rgos, pelo apoio a este trabalho e pela defesa incondicional da causa indgena deste pas; Aos povos indgenas do Brasil, especialmente s comunidades indgenas do Cear, que, ao longo desse perodo de trabalho em conjunto, mostraram-me a importncia da salvaguarda dos seus direitos e, assim, deram-me um sentido a mais para cada amanhecer.

O que fizemos apenas por ns mesmos, morre conosco. O que fizemos pelos outros e pelo mundo, permanece e imortal. Albert Pike

RESUMO

Esta dissertao compreende um estudo acerca do direito fundamental dos ndios sobre as terras que tradicionalmente ocupam, conforme a Constituio da Repblica Federativa do Brasil promulgada em 1988. Previamente, foi realizado um estudo sobre as definies legais de ndio e comunidade indgena no direito brasileiro e sobre a evoluo constitucional do instituto da posse indgena no Brasil, a partir da Constituio Imperial de 1824, com vistas a facilitar a compreenso do referido instituto. Verifica-se que os direitos dos ndios sobre as terras que tradicionalmente ocupam so reconhecidos literalmente pela Constituio da Repblica Federativa do Brasil de 1988 como direitos originrios, anteriores, portanto, ao prprio advento do Estado brasileiro. A posse dessas terras tradicionalmente ocupadas permanentemente garantida aos ndios, mesmo que sua propriedade pertena Unio. A determinao da posse indgena se faz no a partir dos elementos que determinam a existncia da posse civil, e sim de acordo com o modo de vida tradicional da comunidade indgena que ocupa a terra, ou seja, conforme seus usos, seus costumes e suas tradies. Defende-se que o direito constitucional dos ndios sobre as terras que tradicionalmente ocupam tem natureza de direito fundamental, embora no esteja previsto no rol do art. 5 da CF. Contudo, esse direito adequa-se ao previsto no art. 5, 2 da CF, que reconhece a fundamentalidade dos preceitos insertos em tratados internacionais sobre direitos humanos dos quais o Brasil faz parte, bem como os decorrentes dos princpios e do regime constitucional. A partir da, elencam-se as caractersticas dos direitos fundamentais e verifica-se que elas esto presentes no direito dos ndios s suas terras, gerando consequncias jurdicas de grande importncia para se buscar a efetividade de tal direito. Ao final, trazido julgamento emblemtico da histria recente sobre direitos indgenas onde o Supremo Tribunal Federal expe sua compreenso e confirma algumas das teorias defendidas neste trabalho. Palavras-chave: Posse indgena. Posse civil. Constituio Federal. Direito fundamental. Efetividade.

ABSTRACT

This paper includes a study on the fundamental rights of indigenous peoples on the lands they traditionally occupy, as the Constitution of the Federative Republic of Brazil enacted in 1988. Previously, a study was conducted on the legal definitions of indigenous peoples and indigenous communities in Brazilian law and on the constitutional development of indigenous territory rights in Brazil, since the Imperial Constitution of 1824, in order to facilitate understanding of land possession. It has been verified that the rights of indigenous peoples on the lands they traditionally occupy are recognized by the Constitution of the Federative Republic of Brazil of 1988 as originary rights, therefore predating the emergence of the Brazilian State. Possession of traditionally occupied lands is thus permanently secured to the indigenous peoples, notwithstanding land property rights of the Brazilian Federal Union. The grant of indigenous land possession is done not out of the elements that determine the existence of a civilian ownership, but according to the traditional way of life of the indigenous community that occupies the land, ie, according to their uses, customs and traditions. It is argued that the constitutional right of indigenous peoples to the lands they traditionally occupy can be perceived as a fundamental right, although it has not been foreseen in the 5 art. of the Brazilian Constitution. However, this right complies with the 5 art. 2 of the Brazilian Constitution, which recognizes the fundamentality of precepts found in international treaties on human rights to which Brazil is a signatory, as well as those resulting from principles and the constitutional system. From there, it is perceivable that the characteristics of fundamental rights are present in the right of indigenous peoples to their lands, creating legal consequences of great importance to the pursuit of the effectiveness of such a right. Lastly, an emblematic trial of the recent history of indigenous rights is presented, where the Brazilian Supreme Court confirms its understanding of the issue and exposes some of the theories advocated in this work. Keywords: Indigenous possession. Civil possession. Brazilian Federal Constitution. Fundamental right. Effectiveness.

SUMRIO

INTRODUO ................................................................................................................... 13 1 O NDIO NA ORDEM JURDICA NACIONAL DEFINIES E PRINCIPAIS DIREITOS CIVIS NA LEGISLAO DE 1824 A 2010 ......................................... 18 1.1 Apontamentos numricos e antropolgicos sobre a questo indgena ........................ 19 1.2 Anlise das definies de ndio e comunidade indgena na legislao brasileira: 1824 -2010 ............................................................................................................... 26 1.2.1 Perodo Imperial .............................................................................................. 27 1.2.2 Perodo posterior Proclamao da Repblica................................................. 29 1.2.2.1 Decreto n. 8.072/1910 e Decreto n. 9.214/1911 e a criao do Servio de Proteo aos ndios......................................................................... 30 1.2.2.2 Cdigo Civil Brasileiro - Lei n. 3.071, de 1 de janeiro de 1916 ...... 31 1.2.2.3 Decreto n 5.484, de 27 de junho de 1928 .......................................... 31 1.2.2.4 Estatuto do ndio - Lei n. 6.001, de 19 de dezembro de 1973 ............ 32 1.2.2.5 Atos internacio nais: as Convenes n. 107 /57 e 169/89 da Organizao Internacional do Trabalho .................................... 37 1.2.3 Perodo atual e suas perspectivas nos cenrios nacional e internacional ........... 39 1.2.3.1 Constituio Federal de 1988 ............................................................. 40 1.2.3.2 Novo Cdigo Civil - Lei 10.402/2002 ................................................ 41 1.2.3.3 Declarao das Naes Unidas sobre os Direitos dos Povos Indgenas 2007................................................................................................... 45 1.2.3.4 Projetos de lei para um novo Estatuto do ndio................................... 48 2 EVOLUO DO TRATAMENTO CONSTITUCIONAL DO DIREITO DOS NDIOS SOBRE SUAS TERRAS ................................................................................................ 57 2.1 Constituio Imperial de 1824 .................................................................................. 58 2.2 Constituio Republicana de 1891 ............................................................................ 61

2.3 Constituio da Repblica Federativa do Brasil de 1934 ........................................... 62 2.4 Constituio da Repblica Federativa do Brasil de 1937 ........................................... 63 2.5 Constituio da Repblica Federativa do Brasil de 1946 ........................................... 63 2.6 Constituio da Repblica Federativa do Brasil de 1967 ........................................... 65 2.7 Emenda Constitucional de 1969................................................................................ 66 2.8 Constituio da Repblica Federativa do Brasil de 1988 ........................................... 67 2.9 Da inexistncia de direito adquirido contra a Constituio ........................................ 73 2.10 Notas sobre o tratamento constitucional de outros pases sobre direitos indgenas...................... 75 3 POSSE INDGENA ........................................................................................................ 77 3.1 Aspectos peculiares da posse indgena ...................................................................... 78 3.2 O indigenato ............................................................................................................. 79 3.3 Posse permanente sobre as terras tradicionalmente ocupadas .................................... 83 3.4 Distino entre terra devoluta e terra tradicionalmente ocupada pelos ndios ......................... 87 3.5 Distino entre unidade de conservao ambiental e terra tradicionalmente ocupada pelos ndios .............................................................................................................. 91 3.6 Distino entre posse civil e indgena ....................................................................... 93 3.6.1 Delimitao conceitual de posse civil e de posse indgena no Direito brasileiro........ 95 3.6.2 Origem, identificao e motivaes da posse civil e da posse indgena ............ 96 3.6.3 Natureza da posse indgena e da posse civil ..................................................... 99 3.6.4 Aquisio da posse ........................................................................................ 102 3.6.5 Efeitos da posse indgena e da posse civil ...................................................... 103 3.6.6 Perda da posse civil e da posse indgena ........................................................ 105 4 O DIREITO FUNDAMENTAL DOS NDIOS POSSE DAS SUAS TERRAS TRADICIONALMENTE OCUPADAS ................................................................... 107 4.1 Da fundamentalidade do direito dos ndios sobre a posse das terras tradicionalmente ocupadas................................................................................................................. 109 4.1.1 Tratados internacionais de direitos humanos e a posse indgena..................... 110 4.1.2 Posse indgena como direito fundamental decorrente do regime e dos princpios adotados pela CF 88 Caractersticas.............................................................. 114

4.1.2.1 Posse indgena como decorrncia da dignidade da pessoa humana ... 116 4.1.2.2 Posse indgena como decorrncia do regime democrtico .................. 118 4.1.2.3 Posse indgena como princpio jurdico ............................................ 120 4.1.2.4 Posse indgena e a sua equivalncia com os demais direitos fundamentais constitucionais ........................................................... 123 4.2 Efeitos dos direitos fundamentais Aplicao ao direito dos ndios sobre a posse de suas terras............................................................................................................... 125 4.2.1 Posse indgena como clusula ptrea ............................................................. 126 4.2.2 Posse indgena e sua aplicabilidade plena e eficcia imediata......................... 129 4.2.3 Posse indgena e a implantao de polticas pblicas pelo Estado .................. 133 4.2.4 Aplicao do princpio da proporcionalidade para a coliso entre os direitos fundamentais da posse indgena e da propriedade particular........................ 136 4.3 Os direitos indgenas no quadro das dimenses dos direitos fundamentais .............. 142 4.3.1 Posse indgena e a primeira dimenso dos direitos fundamentais ................... 143 4.3.2 Posse indgena e a segunda dimenso dos direitos fundamentais.................... 145 4.3.3 Posse indgena e a terceira dimenso dos direitos fundamentais ..................... 151 4.3.4 Posse indgena e a quarta dimenso dos direitos fundamentais....................... 153 5 PERSPECTIVAS ATUAIS DO DIREITO DOS NDIOS POSSE DE SUAS TERRAS158 5. 1 Histrico do caso da Terra Indgena Raposa Serra do Sol ....................................... 158 5.2 As dezenove condicionantes aplicadas para o caso Raposa Serra do Sol e suas implicaes para o trato futuro dos direitos dos ndios terra........................... 162 5.3 Fundamentos da deciso do caso Raposa Serra do Sol ............................................ 172 5.3.1 O significado do substantivo ndios na Constituio Federal ...................... 172 5.3.2 A d e ma r c a o d e t er r a s i nd g e na s co m o ca p t u lo a va n ad o do co n s t it u c io na li s mo fr at er na l ............................................................... 174 5.3.3 Direitos originrios .................................................................................... 175 5.3.4 O contedo positivo do ato de demarcao das terras indgenas ..................... 176 5.3.5 O falso antagonismo entre a questo indgena e o desenvolvimento ............... 180 CONCLUSO................................................................................................................... 182

REFERNCIAS ................................................................................................................ 188 ANEXOS........................................................................................................................... 199

INTRODUO

A Histria relata o processo de acentuada diminuio do contingente populacional indgena brasileiro. De um povo que foi precedente e predominante nos primeiros anos de descobrimento do Brasil, resta hoje, uma pequena margem de sobreviventes que resistem ao processo de aculturao. Tal fato foi incitado pelo descaso, por longos anos, s necessidades mnimas para o desenvolvimento desse grupo humano. bem verdade que, desde a poca da colonizao, sempre houve um aparato legislativo dedicado aos povos indgenas, mxime proteo da posse de suas terras. Contudo, a to-s existncia de normas no suficiente para garantir a proteo cultural e existencial desses povos. preciso implement-las. Portanto, necessrio se faz um estudo detalhado sobre a realidade indgena no Brasil, os seus direitos e a sua aplicao judicial. Nesses termos, esta dissertao vem tratar do instituto da posse indgena no Direito brasileiro e sua aplicabilidade no contexto social. Objetiva-se, com isso, a anlise da posse indgena sob o foco do Direito Constitucional a fim de distingui-la da posse comum tratada pelo Direito Civil. Uma vez individualizada, pretender-se- demonstrar a natureza de direito fundamental dessa posse dos ndios sobre as terras de ocupao tradicional e os efeitos dessa classificao, de maneira que o resultado final possa auxiliar no alcance da eficcia social dos direitos indgenas. A Constituio Federal de 1988 prescreve os pressupostos da posse indgena e defere largos direitos aos ndios. Contudo, mesmo aps vinte anos da sua promulgao, ainda h complexa problemtica em torno de sua aplicao. Observa-se uma inexata compreenso dos direitos indgenas, influenciada pelas tradies dogmticas em que se fundamentam os juristas brasileiros. Estes sempre limitaram uma interpretao jurdica mais aberta quanto aos aspectos sociolgicos e antropolgicos da problemtica indgena, especialmente no que se refere apreciao do instituto da posse indgena. Parece ser um tanto difcil, para alguns dos operadores jurdicos brasileiros, a possibilidade de se aplicar aos ndios um direito diferente

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ou pelo menos fundado em pressupostos diversos daquele a ser aplicado ao cidado comum, no que pertine a questes especficas. Essa dificuldade redobrada quando se intenta sustentar uma posse distinta dos pressupostos seculares daquela delineada pelo direito romano. Entretanto, tratar os indgenas de maneira genrica, sem considerar a sua diferenciao tnica, desconsiderar as particularidades culturais, histricas e econmicas de cada povo. Esquecer o modo de vida e os valores das comunidades indgenas no momento de aplicao dos seus direitos de certo modo reneg-los, desconsider-los. Destaca-se, ainda, o problema da forte conotao etnocntrica que permeou por muito tempo a disciplina jurdica das questes indgenas, que visava, em ltima anlise, cooptar os ndios comunho nacional. Por essa via, poder-se-ia presumir que, uma vez integrados, perderiam o status de ndio e com ele a garantia de alguns direitos especiais, dentre os quais, a posse das terras por eles habitadas. Nessa perspectiva integracionista, os direitos especiais dos ndios seriam prerrogativas to provisrias quanto o prprio status de ndio. E o direito que tinham sobre as suas terras tenderia a desaparecer com a sua emancipao. Nada obstante, a atual Constituio da Repblica Brasileira rompeu com a poltica indigenista etnocntrica e integracionista presente nas constituies anteriores, passando a reconhecer em seu texto a scio-diversidade e a pluralidade tnica do povo brasileiro. Reconheceu aos ndios o direito peculiaridade tnica, garantindo-lhes o respeito ao seu modo prprio de vida. Assegurou s comunidades indgenas a sua organizao social, os seus usos, as suas lnguas, crenas, os seus costumes e as suas tradies, alm dos direitos originrios sobre as terras que tradicionalmente ocupam. E a idia de posse indgena restou correlacionada ao trinmio - usos, costumes e tradies de cada comunidade indgena, demarcando a sua distino em face da posse civil. Entretanto, para alm da existncia de uma legislao completa e avanada, importa a sua devida implementao no caso concreto. Essas dificuldades foram percebidas por esse subscritor, principalmente a partir do exerccio da advocacia pblica no mbito da Procuradoria Federal especializada na defesa dos direitos indgenas. Verificou-se que, mesmo tendo passado tantos anos da disciplina constitucional de 1988, ainda hoje h certa dificuldade para se alcanar a efetividade das normas indigenistas. A rotina de trabalho informa que parte dos ndios brasileiros continuam privados de sua terra. A carncia na regularizao da posse das terras indgenas deve-se, em parte, influncia

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de diversos nveis dos rgos estatais e atores sociais. Observa-se, assim, que o Estado brasileiro ainda no conseguiu demarcar todas as terras indgenas, como previa a Constituio Federal de 1988. Os particulares, a seu turno, insistem na prtica de esbulhos e turbaes em terras tradicionalmente ocupadas pelos ndios. O Judicirio, por sua vez, quando provocado, nem sempre, vem garantindo a titularidade da posse dessas terras aos ndios. Ademais, verifica-se uma indevida e desproporcional invaso do mesmo Judicirio na funo administrativa que, por apego aos elementos caracterizadores da propriedade privada, pela compreenso distorcida do conceito de ndio e de sua posse, insiste em intervir nos processos administrativos de delimitao e demarcao da terra, atrapalhando sobremaneira a proteo dos povos e terras indgenas. Portanto, arrisca-se, em afirmar que o desrespeito ao direito dos ndios, especialmente, proteo de suas terras, deve-se em muito interpretao distorcida dos aplicadores do direito, seja no Judicirio, seja no Executivo. Por mais que se tenha uma legislao adequada, ainda se verifica, por parte dos juzes de primeira instncia, uma confuso entre os institutos da posse indgena e da posse civil. Confuso essa, que se deve, em grande parte, influncia da ideologia liberal burguesa na leitura de dispositivos incidentes sobre os direitos reais. Essa inconformao em face das reiteradas distores na compreenso e no tratamento da posse indgena motivou a construo deste trabalho, haja vista que muitas so as alternativas legislativas e doutrinrias destinadas proteo dos ndios, mas que esbarram em certa inrcia administrativa e resistncia judicial. Assim, para a melhor proteo desse direito, necessrio se faz um estudo contextualizado com a Constituio e atento aos instrumentos jurdicos pertinentes. O desenvolvimento do tema calcou-se, eminentemente, em pesquisa bibliogrfica. Foi realizada pesquisa da legislao ptria e estrangeira, das normas constitucionais e ordinrias, abrangendo os dispositivos de entendimento mais genrico e confrontando-os com as regras legais prprias da populao indgena. Dessa forma, foi explorada a perspectiva do direito comparado e da evoluo histrica da lei. Ainda houve a coleta de dados em bases oficiais e, finalmente, foi apresentada a compreenso da doutrina ptria e estrangeira acerca de temas constitucionais, civis e indigenistas, bem como a posio dos Tribunais, com citaes da jurisprudncia dominante que demonstra como a questo est realmente sendo aplicada contemporaneamente no pas.

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Em consonncia com os objetivos propostos, esta dissertao dividir-se- em cinco captulos. O primeiro captulo abordar os contornos conceituais dos termos indgena e comunidade indgena. Essas definies so elementos necessrios ao estudo da posse indgena, posto que so essenciais para se compreender a construo desse instituto. Da mesma sorte, a delimitao de quem pode ser considerado indgena, mostra-se indispensvel para saber quem tem direito posse dessas terras. J o segundo captulo versar sobre a evoluo das normas constitucionais sobre posse indgena. O exame cotejar a legislao da poca luso-brasileira, concentrando anlise das vrias constituies brasileiras, no que pertine ao tema. Procurar-se- demonstrar o vis etnocntrico das primeiras constituies e a sua passagem para um entendimento pluritnico na Constituio de 1988, tudo isso com o fim de se entender o contedo jurdico construdo para a posse indgena. O captulo terceiro enfrentar os aspectos relacionados teoria geral da posse civil, diferenciando-a da posse indgena. indispensvel a anlise da figura do indigenato, descrito por Joo Mendes Jr. como fundamento da posse indgena. Sero delineados os contornos dos pressupostos constitucionais da posse indgena, tais como, ocupao tradicional e posse permanente. Por oportuno, tambm se apresentaro as distines entre posse indgena, unidade de conservao ambiental e terra devoluta. O quarto captulo considerar a posse dos ndios sobre as suas terras tradicionalmente ocupadas como um direito fundamental dos ndios, embora localizado topograficamente fora do catlogo definidor dos direitos fundamentais da Constituio Federal de 1988. Para tanto, sero tambm destacadas as caractersticas dos direitos fundamentais em geral e os efeitos dessa classificao. A partir da, procurar-se- identificar a dimenso ou as dimenses de direitos fundamentais nas quais a posse indgena possa se localizar. No captulo cinco, prope-se uma anlise do acrdo do Supremo Tribunal Federal, referente ao caso da terra indgena Raposa Serra do Sol, como um caso paradigmtico recente relativo questo indgena. Nesse espao, sero abordadas as dezenove condicionantes que esse Tribunal elegeu para o trato das causas indgenas e os fundamentos da deciso para, a partir disso, verificar a coerncia desses argumentos com as idias defendidas neste trabalho. A ltima parte do trabalho conduzir s concluses.

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Diante desse panorama, esse estudo visa contribuir para otimizar a aplicabilidade jurdica do instituto da posse indgena nos conflitos contemporneos. Da, ressalta-se a necessidade da correo dos desequilbrios do passado, a partir de uma aplicao atualizada e constitucional dos institutos possessrios, de maneira que o resultado final possa auxiliar as aes afirmativas em prol dos direitos indgenas, efetivar os seus mandamentos e insuflar a sua pesquisa e conhecimento.

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O NDIO NA ORDEM JURDICA NACIONAL DEFINIES E PRINCIPAIS DIREITOS CIVIS NA LEGISLAO DE 1824 A 2010

O ncleo da presente dissertao ser a discusso acerca da posse sobre as reas tradicionalmente1 ocupadas pelos ndios2, diferenciando-a da posse meramente civil e qualificando-a como um direito constitucional fundamental, ainda que topograficamente localizado fora do artigo 5 da Constituio Federal da Repblica Federativa do Brasil de 19883, bem como a aplicao atual dos dispositivos legais referentes posse indgena pela Administrao Pblica e pelo Judicirio. Neste captulo, entretanto, sero abordados temas introdutrios que so indispensveis para a compreenso global e exata do objeto principal da presente pesquisa. Inicialmente apresenta-se o quadro estatstico das comunidades indgenas, indicando a densidade populacional, sua distribuio em comunidades, as lnguas faladas e as terras demarcadas no Brasil, sem deixar de cotejar alguns dados de outras partes do mundo. Os nmeros encontrados, comparados aos que se achavam no perodo pr-cabraliano, por si, j ilustraro o vis etnocentrista e assimilacionista que acompanhou a trajetria do tratamento poltico-jurdico dispensado aos ndios. Exatamente a anlise dos eixos norteadores do arcabouo jurdico indigenista se faz neste captulo, destacando as definies legais oferecidas pela legislao infraconstitucionais, nacionais e estrangeiras, desde a poca do Brasil-colnia at a atualidade.

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A expresso posse sobre as terras tradicionalmente ocupadas pelos ndios a mais adequada compreenso do presente estudo e conforme com a previso constitucional em seu art. 231. Contudo, ser possvel que se observe, no decorrer desta dissertao, a meno resumida a esse direito, a partir de expresses como posse indgena, posse sobre terras indgenas etc. Sero adotados, nessa dissertao, os termos ndio ou indgena, por serem mais frequentes na literatura cientfica, embora sejam criaes dos colonizadores europeus no processo de dominao e no reflitam a grande diversidade de comunidades e culturas que compem os povos indgenas brasileiros. (DANTAS, 2008, p. 120) Adiante ser possvel encontrar meno Constituio da Repblica Federativa do Brasil de 1988, de forma resumida, atravs da utilizao dos termos Constituio Federal ou CF 88.

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1.1

Apontamentos numricos e antropolgicos sobre a questo indgenaH, no mundo, entre 350.000.000 (trezentos e cinquenta milhes) a 400.000.000

(quatrocentos milhes) de ndios4. Esse quantum margeia entre 10% (dez por cento) a 12% (doze por cento) da populao mundial. Destes ndios, estipula-se que entre 30.000.000 (trinta milhes) a 50.000.000 (cinquenta milhes) esto na Amrica latina. Diante desse elevado contingente populacional indgena, justifica-se a sua grande proporo no conjunto global da populao de alguns pases da Amrica Latina, v.g., no Peru 32% (trinta e dois por cento), Bolvia 62% (sessenta e dois por cento) e na Guatemala 41% (quarenta e um por cento). (URQUIDI, 2009) Quando se analisam esses nmeros considerando a distribuio dos ndios em comunidades indgenas, observa-se que h um total de 671 (seiscentos e setenta e uma) comunidades indgenas no mundo, concentrando-se o quantum de 642 (seiscentos e quarenta e duas) na Amrica Latina. Estima-se que essas comunidades falem cerca de 860 (oitocentos e sessenta) dialetos. (URQUIDI, 2009) Contemporaneamente, a populao indgena no Brasil tem cerca de 730 (setecentos e trinta) mil pessoas vivendo em aldeias, o que corresponde a 0,4 % (quatro dcimos por cento) do povo brasileiro. Esse nmero pode subir para um milho, se forem includos os ndios que vivem nas cidades. Esse total atual, ainda que considervel, pequeno se comparado populao indgena na poca do descobrimento5, que margeava os cinco milhes de habitantes .6 Contudo, a partir do fim da dcada de 1950, houve uma mudana no cenrio de diminuio da populao indgena brasileira. Observou-se um aumento demogrfico desses povos, influenciado, em parte, pela demarcao de suas terras e pela assistncia da Fundao Nacional do ndio - FUNAI. Os ndios brasileiros distribuem-se em 220 (duzentas e vinte) comunidades, que falam uma mdia de 170 (cento e setenta) lnguas distintas. Metade dessas comunidades tem menos de 50 (cinquenta) indivduos, e apenas 3 (trs) dessas comunidades tm mais de 20 mil4

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Optou-se, neste estudo, pela adoo dos termos indgena ou ndio, para designar os habitantes pr-cabralianos do territrio brasileiro, haja vista a sua adoo pela Constituio Federal da Repblica Federativa do Brasil de 1988 e novos diplomas legislativos, como ser estudado adiante neste captulo. Os nossos aborgenes, encontrados pelos descobridores, foram vtimas no perodo colonial, de um processo quase sistemtico de dizimao, expulsos da orla litornea e pouco a pouco atingidos no interior em que residiam ou se refugiavam (PEREIRA, 2004, p.287). Dados obtidos do ltimo censo demogrfico realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica- IBGE no ano de 2000. O prximo censo est previsto para ser divulgado em 2010 (BRASIL, IBGE, 2000, p. 500).

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indgenas. A maior parte da populao indgena brasileira est concentrada nas regies Norte e Centro-Oeste. (ABRAMOVAY, 2009) S na Amaznia, contam-se 60 % (sessenta por cento) da populao indgena e 98% (noventa e oito por cento) das terras indgenas no Brasil. A razo dessa concentrao porque os procedimentos administrativos de demarcao nessas reas podem ser feitos com menos custo poltico e financeiro que em outras localidades mais demograficamente ocupadas do pas. Outro ponto favorvel a cooperao internacional. Desde a ECO92, foi constitudo um fundo pelos sete pases mais ricos, para preservao das florestas tropicais e para os procedimentos administrativos de demarcao na rea amaznica. (SANTILLI, 2009) Existem 653 (seiscentos e cinquenta e trs) reas reconhecidas como tradicionalmente ocupadas pelos indgenas (que se difere de reservas e parques indgenas), compreendendo 12,5% (doze e meio por cento) do territrio nacional, o que equivale a 106.359.281 ha (cento e seis milhes, trezentos e cinquenta e nove mil e duzentos e oitenta e um hectares) de terras indgenas no Brasil. (ABRAMOVAY, 2009) As dcadas de 80 (oitenta) e 90 (noventa) marcam o perodo em que mais se demarcaram terras indgenas no Brasil. Cerca de 2/3 (dois teros) das terras indgenas hoje existentes foram demarcadas naquele perodo. (SANTILLI, 2009). Talvez os ares da democracia que sopravam no cenrio poltico nacional, logo aps a promulgao da Constituio de 1988, haja justificado a implementao dessas demarcaes. Nesse contexto, os dados informam que mais de 95% (noventa e cinco por cento) das terras indgenas do territrio brasileiro j foram demarcadas ou esto sob processo de identificao e demarcao. Especificando esse total, 65% (sessenta e cinco por cento) j foram demarcadas e 30% (trinta por cento) ainda aguardam a concluso do processo de demarcao. (BRASIL, IBGE, 2000, p. 500) No que tange s populaes indgenas da Amrica Latina, nada obstante a relevncia demogrfica nesses pases e a sua riqueza cultural, verifica-se forte movimento discriminatrio contra os indgenas. Nesses termos, constata-se que os ndios ocupam as piores posies nos ndices de desenvolvimento humano. A mortalidade infantil 60% (sessenta por cento) maior entre indgenas que nos no indgenas, quer seja por causa de doenas, quer por violncia. A indigncia (populao que vive com menos de um dlar por dia) e a baixa escolaridade entre os indgenas tambm maior. Logo, citando o exemplo da

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Colmbia, os ndios migram para as cidades, devido pobreza, bem como violncia infligida pelos particulares s suas comunidades. Isso se torna um problema maior porque quando chegam s cidades, via de regra, os ndios no tm sua etnicidade reconhecida e carecem de assistncia especial. (URQUIDI, 2009) Nesse contexto, citam-se atitudes institucionais discriminatrias, como, por exemplo, na Bolvia, onde se fala em capital tnico,7 para demonstrar uma superioridade de oportunidades e incentivos financeiros, que dada etnia branca, em detrimento dos povos indgenas. Igualmente, verifica-se atitude estatal e particular que no compreende a nova condio dos ndios urbanos, ou seja, o direito de permanecerem com sua etnicidade diferenciada mesmo estando fora de sua comunidade e em contato com a cultura no-ndia. Assim, a garantia aos direitos dos povos indgenas na Amrica Latina vem se tornando um problema poltico, porque, alm do preconceito de parte da populao civil, h uma ideologia estatal (administrativa e judicial) que dificulta a implementao dos direitos dos ndios. Os Estados precisam adaptar o seu entender e agir com os novos conceitos de auto-reconhecimento da etnicidade indgena. Destaca-se, nesse ponto, a importncia de os rgos do Poder Judicirio no desconfiarem da etnicidade indgena, no momento de concesso dos seus direitos, bem como o Executivo conferir uma educao e sade diferenciadas aos ndios, ainda que no aldeados. Logo, a questo indgena que, antes se verificava apenas como um tema antropolgico, hoje se observa sobre as lentes de uma verdadeira politizao das questes tnicas.8 No que pertine realidade indgena no Brasil, verifica-se que, atualmente, os ndios, semelhana do que ocorre com os menores, as mulheres e os negros, compem grupos da populao brasileira aos quais a ordem jurdica delibera um tratamento jurdico diferenciado. Em funo de razes especificas, como, idade, sexo, cor ou etnia, essas minorias so qualificadas como tais pelo Ordenamento Jurdico, dele recebendo uma proteo jurdica excepcional. Contudo, nem sempre foi essa a realidade no Brasil. Assim, por muito tempo, os ndios receberam um trato excludente quanto sua diferenciao tnica. Predominava uma forte ideologia etnocntrica, que discriminava as demais culturas a partir dos valores da etnia predominante. O objetivo seria impor os valores da cultura majoritria s demais etnias, de7 8

Terminologia empregue por Alvaro Garca Linera, vice-presidente da Bolvia (2010, p. 05). Terminologia empregue por Rachel Sieder (2002, p. 45).

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forma a incorporar os pequenos grupos e os seus costumes sociedade brasileira derivada da civilizao europeia.9 Importante citar o entendimento de Fernando Antnio de Carvalho Dantas (2008, p. 103):A questo da identidade tnica na contemporaneidade tem fundamental importncia dada urgncia na concretizao dos direitos humanos, em razo dos processos institucionalizados de excluso a que foram submetidos e dominados, povos e grupos populacionais majoritrios ou minoritrios, seja a partir de diferenas culturais que caracterizam a etnicidade diferenciada, como o caso dos povos indgenas, seja por distintos e mltiplos aspectos relacionados religio, gnero, cor da pele, classe social, preferncia sexual, entre tantos outros.

Embora, desde a poca da colonizao, a legislao previsse uma disciplina jurdica diferenciada para os ndios, no havia um tratamento especial enquanto etnia distinta, fato que s se reverteu com o fortalecimento dos direitos humanos, no plano internacional e a consagrao dos direitos fundamentais, notadamente na Constituio de 1988.10 Portanto, no perodo que antecede Constituio Federal de 1988, a excepcionalidade desse tratamento jurdico se fundava em um suposto estgio de debilidade dos indgenas em face das estruturas institucionais, culturais e econmicas da sociedade envolvente. O tratamento especial se fundava na compreenso de que os ndios viviam um estgio de atraso e/ou ignorncia relativamente aos padres estruturais da sociedade ocidental, e no no reconhecimento de uma organizao social especfica e diferenciada por eles vivenciada. Portanto, acredita-se que to logo ocorresse a sua integrao, ou seja, a sua assimilao comunho nacional, a tendncia seria dispensar aos ndios tratamento jurdico anlogo ao do cidado comum. O etnocentrismo visa transformar o outro no eu, ou seja, erradicar a cultura do outro, pois a tendncia humana achar que a cultura do grupo dominante seja sempre melhor. Dessa

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Para abreviar o termo sociedade brasileira derivada da civilizao europia, como forma de distingui-la dos ndios que habitavam o Brasil poca do Descobrimento, ser possvel que a partir de agora se use nessa dissertao o termo civilizao, no ndios etc., ainda que no sejam os termos mais apropriados e no definam toda a sua complexidade. (DANTAS, 2008, p. 103) 10 A diferena entre os termos direitos humanos e fundamentais ser melhor explicada no captulo 4 dessa dissertao. Inobstante, cita-se, preliminarmente, a lio de Paulo Bonavides (1996, p. 22-23): A primeira questo que se levanta com respeito teoria dos direitos fundamentais a seguinte: podem as expresses direitos humanos, direitos do homem e direitos fundamentais ser usadas indiferentemente? Com relao aos direitos fundamentais, Carl Schmitt estabeleceu dois critrios formais de caracterizao. Pelo primeiro podem ser designados como direitos fundamentais todos os direitos ou garantias nomeados e especificados no instrumento constitucional. Pelo segundo, so direitos fundamentais aqueles que receberam da Constituio um grau mais elevado de garantia ou de segurana. J do ponto de vista material, os direitos fundamentais, segundo Schmitt, variam conforme a ideologia, a modalidade de Estado, a espcie de valores e princpios que a Constituio consagra. Em suma, cada Estado tem os seus direitos fundamentais especficos.

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forma, havia uma idia de hierarquia quando se constatavam diferenas culturais. (STRAUSS, 1952, p. 87) A teoria integracionista ou assimilacionista foi inspirada na teoria do evolucionismo social. Essa teoria da evoluo, oriunda da Biologia de Darwin, foi construda a partir de dados empricos, qual seja, a seleo de diversos organismos e sua diferenciao tipolgica. Contudo, essa teoria foi refutada pelas cincias sociais, notadamente pela

antropologia.(SANTILLI, 2009) O evolucionismo vigorou at o final do sculo XIX e, depois dessa poca, foi atacado por todos os modos. Umas das crticas foi de Franz Boas (culturalismo americano) e Emile Durkheim (funcionalismo francs), cujo ponto principal situava-se no argumento de que no se pode tomar traos isolados das culturas para da supor estgios obrigatrios pelos quais todas as culturas humanas tivessem passado. Portanto, a sociedade deve ser vista como um todo e seus traos no podem ser destacados de dentro desse todo e comparados isoladamente. (PIMENTEL, 2009) Anteriormente, havia, na antropologia, uma idia de que o progresso humano seguia um caminho nico que conduz do mais simples ao mais complexo. Assim, o pice seria a civilizao atual branca e o incio seria representado pela cultura indgena. Assim, como se as culturas europia e norte-americana fossem o presente da humanidade e as outras culturas seriam um testemunho do que os aqueles foram no passado. Contudo, nos dias atuais, obsoleta a idia de se colocar sob uma escala de evoluo, a diversidade da cultura dos povos do mundo. (CASTRO, 2005, p. 10) Ademais, as culturas humanas no passam pelas mesmas linhas de evoluo. Evidncia disso que coisas que parecem semelhantes em sociedades diversas podem ter decorrido de processos histricos diferentes. Cada cultura tem uma histria e vrios caminhos podem levar a um mesmo resultado. Agregue-se tambm que no h um critrio universal que permita comparar culturas, em contraposio uma da outra. Portanto, critrios como a tecnologia no podem ser empregues para classificar uma cultura como atrasada ou avanada. (STRAUSS, 1952, p. 34)

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Raa e cultura no andam atreladas. A pessoa, para ser considerada um ndio, tambm no precisa ter o fentipo predominante. Para saber sobre a cultura de um povo, preciso saber se esse povo tem costumes prprios diversos do restante da sociedade. A cultura, num primeiro momento, era entendida como um conjunto de reaes dos indivduos e das manifestaes da sociedade, o que englobaria a lngua, os costumes, os ritos, as idias e os princpios. J no sculo XX, a cultura passa a ser entendida como um conjunto de processos. Logo, a cultura est em constante modificao, modernizao, tais como, os humanos e as sociedades. Contudo, quando essa transformao acontece com os ndios, falase que est havendo uma aculturao. Esse argumento falso, pois, quando eles usam bens provenientes de outras culturas, v.g., quando assistem televiso, no esto ficando menos ndios. Da mesma forma que o brasileiro usa o papel primeiramente pensado pelos egpcios, a escrita criada pelos fencios e a imprensa inventada pelos ingleses, nem por isso est em processo de aculturao. (PERRONE, 2009) Portanto, a prpria histria da humanidade de trocas culturais. No se pode dizer que h deturpao de uma cultura, ainda que indgena, pela incorporao de um elemento exgeno. Assim, quando uma cultura recebe um elemento de outra cultura, faz uma transformao no seu lidar, usar. Logo, uma manifestao isolada no carrega em si o todo da cultura de onde emanou. Nenhuma dessas realidades tem um sentido absoluto em si. Os ndios continuam sendo diferentes do restante da sociedade civil de um modo que deles. A adaptao cultural intrnseca a todos os grupos tnicos, porque todos se submetem ao processo histrico. Portanto, a cultura formada por princpios de como receber elementos novos de culturas diversas. um modo especfico que permite a transformao. A diferena permanece, porque hoje os ndios no so iguais ao que eram h cem anos, mas ainda so mais parecidos com seus antepassados do que com a civilizao no-ndia. (PERRONE, 2009). Assim, com o advento da Constituio Federal de 1988, foi dado aos ndios um tratamento jurdico especial, que se justificava a partir do reconhecimento oficial de sua diferenciao tnica. Se anteriormente os direitos especiais dos ndios eram transitrios como o prprio status de ndio, com a Constituio atual, esses direitos especiais decorrem do reconhecimento da sua condio tnica diferenciada, sendo garantidos permanentemente.

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Alm de vrios dispositivos esparsos, a Constituio Federal de 1988 dedicou um captulo inteiro aos ndios,11 ratificando assim a plurietnicidade do povo brasileiro. Reconheceu s comunidades indgenas os seus direitos originrios sobre as terras que tradicionalmente ocupam, a sua organizao social, as suas crenas e lnguas, seus costumes, usos e suas tradies, como uma forma de garantir o livre desenvolvimento tnico dos ndios. Nessa conjuntura, fundamental analisar os conceitos de ndio e de comunidade indgena porque, a partir desses elementos, determina-se a posse indgena, instituto marcado por notas antropolgicas e especficas caractersticas constitucionais que a distanciam por demais da posse civil. Embora, a priori, a posse indgena e a posse civil apresentem algumas semelhanas, substancialmente revelam profundas diferenciaes. Enquanto a posse civil se identifica como um poder de fato que algum tem sobre a coisa, sendo a exteriorizao do domnio decorrente do exerccio pleno ou no, de alguns poderes inerentes condio de proprietrio, com animus domini ou a pretenso de auferir benefcios de natureza econmica, a posse indgena se apresenta a partir da relao que uma determinada comunidade indgena tem com o territrio no qual se estabeleceu, onde a terra deixa de ser um mero bem de apropriao econmica para se configurar um habitat fsico-cultural de um povo, imprescindvel ao seu desenvolvimento e a sua manuteno. Em funo dessa ligao que existe entre essas comunidades e os seus respectivos territrios, a Constituio Federal de 1988, no art. 231, pargrafo 1o, resolveu condicionar a conceituao de terras

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Art. 231 - So reconhecidos aos ndios sua organizao social, costumes, lnguas, crenas e tradies, e os direitos originrios sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo Unio demarc-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens. 1 - So terras tradicionalmente ocupadas pelos ndios as por eles habitadas em carter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindveis preservao dos recursos ambientais necessrios a seu bem-estar e as necessrias a sua reproduo fsica e cultural, segundo seus usos, costumes e tradies. 2 - As terras tradicionalmente ocupadas pelos ndios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes. 3 - O aproveitamento dos recursos hdricos, includos os potenciais energticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indgenas s podem ser efetivados com autorizao do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participao nos resultados da lavra, na forma da lei. 4 - As terras de que trata este artigo so inalienveis e indisponveis, e os direitos sobre elas, imprescritveis. 5 - vedada a remoo dos grupos indgenas de suas terras, salvo, ad referendum do Congresso Nacional, em caso de catstrofe ou epidemia que ponha em risco sua populao, ou no interesse da soberania do Pas, aps deliberao do Congresso Nacional, garantido, em qualquer hiptese, o retorno imediato logo que cesse o risco. 6 - So nulos e extintos, no produzindo efeitos jurdicos, os atos que tenham por objeto a ocupao, o domnio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a explorao das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse pblico da Unio, segundo o que dispuser lei complementar, no gerando a nulidade e a extino direito a indenizao ou aes contra a Unio, salvo, na forma da lei, quanto s benfeitorias derivadas da ocupao de boa f. 7 No se aplica s terras indgenas o disposto no Art. 174, 3 e 4.

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tradicionalmente ocupadas pelos ndios aos usos, costumes e s tradies de cada comunidade indgena especificamente. E disso exsurge a inexorvel necessidade de analisar os conceitos antropolgicojurdicos j mencionados antes de enveredar pela discusso em torno dos aspectos particulares da posse indgena.

1.2

Anlise das definies de ndio e comunidade indgena na legislao brasileira: 1824 -2010Dentre os direitos especiais garantidos aos ndios, exemplificativamente, proteo sua

cultura, lngua, educao e sade diferenciadas, defesa jurdica institucional pela AdvocaciaGeral da Unio (AGU) e Ministrio Pblico Federal (MPF), sero tratados neste trabalho, especificamente, acerca do direito sobre as terras tradicionalmente ocupadas. Logo, cabe indagar sobre o modus de identificao dos titulares dessa proteo excepcional, ou seja: Quem so os ndios no Brasil? Na tentativa de alcanar uma resposta satisfatria para essa indagao, sero analisados os principais dispositivos que regularam e/ou regulam a matria, procurando, a um s tempo, identificar a evoluo das definies de ndio e de comunidade indgena na legislao brasileira e precisar os elementos que fundamentam as definies atuais. Valioso documento internacional oriundo da ONU, como a Declarao das Naes Unidas sobre os Direitos dos Povos Indgenas, de 13 de setembro de 2007, tambm aborda a temtica, sintetizando a compreenso ocidental sobre quem sejam os ndios e suas comunidades. As definies de ndio e de comunidade indgena nem sempre foram empregadas de maneira adequada pela legislao brasileira. Isso porque, somente com a Constituio Federal de 1988, a diversidade tnica foi assegurada, ainda que formalmente. Da mesma sorte, a poltica indigenista presente nas constituies anteriores era basicamente etnocntrica e integracionista. (MENEZES, 1995) Portanto, o exame dos principais dispositivos de lei relativos matria, a partir do advento da Constituio Imperial de 1824, no permitir encontrar definies satisfatrias, do ponto de vista antropolgico, do que seja ndio e comunidade indgena. A exemplo dos dispositivos do Estatuto do ndio, Lei n. 6.001/73, arts. 1o e 3o, outras normas que ofereceram tais definies, prestaram-se a contribuir para os conflitos de ordem

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interpretativa, pois ora desconsideram a questo da identidade tnica, ora se fundam em critrios hetergeneos e contraditrios. Com efeito, a anlise dessas definies na legislao imperial apoiar-se- em estudos j realizados por alguns autores12 e, no perodo que se segue a Proclamao da Repblica, a anlise partir do exame direto dos diplomas legais, dentre os quais:13 - Dec n. 9.214 de 15/12/1911, que regulamenta o Servio de Proteo aos ndios e Localizao de Trabalhadores Nacionais, criado pelo Decreto n. 8.072 de 20/06/1910; - Cdigo Civil (1916 e 2002); - Dec. n. 5.484 de 27/06/1928, que regula a situao dos ndios nascidos no territrio nacional; - Lei n. 6.001 de 19/12/1973 (Estatuto do ndio); - Atos Internacionais: a Conveno n. 107 da Organizao Internacional do Trabalho, de 1957, sobre a Proteo e integrao de populaes indgenas e ilibais, ratificada atravs do Dec. n.58.824/66 e a Conveno n.169 da Organizao Internacional do Trabalho de 1989, sobre Povos indgenas e tribais; - Declarao das Naes Unidas sobre os Direitos dos Povos Indgenas, de 13 de setembro de 2007; - Projeto de Lei acerca do Estatuto dos Povos Indgena, proposto pela Comisso Nacional de Poltica Indigenista de 5 de junho de 2009.

1.2.1 Perodo ImperialA legislao do Brasil-Colnia no ser aqui objeto de anlise minuciosa, por ser anterior ao sistema constitucional brasileiro. Contudo, ser citada para melhor contextualizar a legislao nacional subsequente, quais sejam, a legislao infraconstitucional citada acima e as constituies nacionais do Imprio Repblica. A primeira referncia da fase colonial que se encontra a respeito a Carta Rgia de 10/09/1611, promulgada por Filipe III. Cita-se12 13

Manuel Miranda e Allpio Bandeira (1995, p. 29). Oliveira Sobrinho (1997, p. 93) e Clvis Bevilqua (1992, p. 77). Neste captulo, o estudo das normas referir-se- mais definio e tratamento dos indgenas. Nos captulos seguintes, algumas normas aqui tratadas sero revisitadas sob o enfoque, especificamente, do direito dos ndios sobre a posse das terras por eles ocupadas tradicionalmente.

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tambm o Alvar Rgio de 1 de abril de 1680, recepcionado pela Constituio Federal de 1988, ao cuidar das Sesmarias concedidas pela Coroa, que ressalvou os direitos dos ndios, a quem chamou de primrios e naturais senhores. Reafirmado o estabelecimento pelo citado Alvar, a Lei Pombalina de 6 de julho de 1755 tambm garantiu o direito dos ndios. (COUTINHO, 2010, p. 03) Quanto ao trato dos indgenas, anota-se que, at o perodo colonial, a legislao norteou-se merc dos interesses do momento. Constitua uma srie contnua de contradies e hesitaes: ora os condenando ao cativeiro sem restries, ora lhes reconhecendo o direito de liberdade absoluta. (OLIVEIRA SOBRINHO, 1992, p.108) A legislao imperial, por sua vez, tentou organizar uma poltica indigenista oficial mais estvel, estabelecendo um tratamento de cunho paternalista aos indgenas brasileiros. Apesar da omisso da Constituio Imperial de 1824, algumas medidas favorveis aos interesses dos ndios foram adotadas. Atravs de lei sancionada em 27 de outubro de 1831, determinou-se a libertao daqueles indgenas que se achavam em regime de servido e, como forma de melhor resguardar os seus interesses, os ndios foram equiparados aos rfos e entregues proteo dos respectivos juzes de rfos. Outras leis foram publicadas na tentativa de melhor resguardar os direitos desses povos considerados incapazes de, por si s, promover a defesa de seus interesses. Destacam-se, dentre elas, as de 3 e 18 de junho de 1833; a primeira beneficiava os ndios que se estabelecessem nos aldeamentos margem do rio Arinos, no estado do Mato Grosso, com a iseno do pagamento de

qualquer tributo por um perodo de vinte anos, e a segunda transferia a administrao dos seus bens para os juzes dos rfos, tambm tutores dos interesses dos indgenas. (OLIVEIRA SOBRINHO, 1992, p.108) Em 1845, com o regulamento que tratava do regime de aldeamento, foi determinada aos missionrios religiosos a tarefa de catequizar e adaptar os ndios ao convvio com a sociedade brasileira. s misses cabia a tarefa de desenvolver a catequese dos ndios; trabalhando diretamente nas aldeias j existentes e agrupando os ndios nmades em aldeamentos, para ministrar, nestes e naquelas, o ensino das primeiras letras, as mximas da Igreja Catlica, incutindo o respeito e a prtica dos seus sacramentos, dentre eles o casamento. Construam tambm habitaes mais confortveis, tudo com o fim de promover a adaptao dos ndios s prticas correntes na sociedade brasileira. E como uma espcie de prmio aos ndios que bem

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se comportavam nos aldeamentos, a eles eram concedidas terras separadas das aldeias para suas granjearias particulares, que passariam a sua propriedade definitiva, atravs de Carta de Sesmaria, se, durante doze anos ininterruptos, mantivessem-nas cultivadas. (OLIVEIRA SOBRINHO, 1992, p.110) A proposta legislativa do Imprio era notadamente integracionista. O ndio era visto como um indivduo pertencente a uma sociedade primitiva que precisava, para o prprio bem seu

e melhor desenvolvimento do Pas, sair do estado de barbrie e se adaptar

cultura nacional. A concepo oficial de ndio no permitia sequer a garantia de suas terras, enquanto propriedade coletiva do grupo indgena. Qualquer garantia posse de terras dada aos ndios seria somente mais uma estratgia de facilitar o processo civilizatrio. Sendo a qualidade de ndio apenas um status provisrio a desaparecer com a sua integrao comunho nacional, os aldeamentos se configuravam apenas como espaos necessrios colonizao e no como habitats dos povos indgenas. Somente com a Lei n. 601 de 18 de setembro de 1850 (Lei de Terras), as terras destinadas colonizao dos indgenas passaram ao usufruto exclusivo dos ndios, tornando-se inalienveis at que o Governo Imperial lhes concedesse o pleno gozo delas, quando assim permitisse o seu estado de civilizao. Nota-se que a Lei n. 601/1850 foi o primeiro diploma legal a referir-se em terra indgena como inalienvel e de usufruto exclusivo dos ndios, estabelecendo elementos que ainda hoje compem a definio constitucional de terra indgena. A Lei n. 601/1850 era marcada por um contedo eminentemente integracionista. A poca de sua publicao vigia, no Brasil, o regime da propriedade individual plena, mas o direito dos ndios era visivelmente limitado. Possuam apenas o direito de usufruto exclusivo, sem a possibilidade de disposio e somente alcanariam a propriedade plena mediante a sua emancipao.

1.2.2 Perodo posterior Proclamao da RepblicaA Proclamao da Repblica (1889) e a elaborao da Constituio de 1891 nada dispuseram em relao aos direitos indgenas. Os ndios s mereceram a ateno legislativa da Repblica em 1910, quando, com o Dec. n. 8.072, foi criado o Servio de Proteo aos ndios e Localizao dos Trabalhadores Nacionais e aprovado o seu regulamento. certo que, ainda nessa fase, os governantes, os juristas e os legisladores, a exemplo da sociedade como um todo, eram adeptos de uma forte viso integracionista que s permitia a compreenso

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de bem-estar dos indgenas mediante a sua integrao

comunho

nacional.

O

pronunciamento do jurista Clvis Bevilqua (1921, p. 184) sobre o Dec.n.8.072/1910 emblemtico dessa corrente de opinio:Sou dos que, mais cordialmente, aplaudem a preoccupao philanthropica do Governo actual, por iniciativa do preclaro Sr. Rodolpho Miranda, de velar pela sorte dos nossos aborgenes, encaminhando a sua effectiva incorporao na sociedade brasileira, do qual so parte integrante, mas de cujo convvio, no obstante, se acham afastados, por circunstncias, que ocioso agora recordar.

Juristas da lavra de Clvis Bevilqua no eram necessariamente contrrios ao direito de autodeterminao dos indgenas, enquanto povos etnicamente diferenciados; o imaginrio social da poca que no permitiria compreender o bem-estar dessa gente longe da cultura ocidental dominante.

1.2.2.1 Decreto n. 8.072/1910 e Decreto n. 9.214/1911 e a criao do Servio de Proteo aos ndiosDepois do Dec. n. 8.072/10 que criou um rgo encarregado da defesa dos interesses dos ndios - o Servio de Proteo aos ndios e Localizao dos Trabalhadores Nacionais, o Dec. n. 9.214/1911(Regulamento do Servio de Proteo aos ndios e Localizao dos Trabalhadores Nacionais) surgiu como uma das primeiras manifestaes da Repblica em regulamentar exaustivamente a relao do Estado com os ndios. A nova poltica civilizatria adotou por princpios fundamentais o direito de autoafirmao das tribos indgenas e a garantia de preservao dos seus respectivos territrios. Qualquer proposta de mudana no comportamento dos ndios no poderia pretender um resultado a curto prazo, mas, lentamente e com brandura, as alteraes poderiam ser alcanadas, embora ainda comprometida com as idias integracionistas. O decreto n. 9.214/11 no menciona a expresso comunidade indgena; fala em tribus indgenas e em populaes indgenas. Embora no apresente uma definio explcita de ndio, fez uma classificao que distingue trs categorias distintas - ndios aldeados, ndios em estado nmade e ndios promiscuamente reunidos com os civilizados, garantindo a todos a mesma assistncia indiscriminadamente. Os ndios aldeados eram os ocupantes de espao territorial determinado, cuja posse territorial cabia ao Governo resguardar efetivamente (art.10), delimitando-a e demarcando-a na forma estabelecida pelo prprio decreto. Eram grupos reunidos em tribos, cada qual com

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organizao interna, instituies e hbitos especficos que deviam ser respeitados. Os ndios em estado nmade eram aqueles que, mesmo agrupados em tribos, perambulavam por diversas regies sem se fixarem num lugar determinado. Os ndios em promiscuidade com os civilizados, por sua vez, eram os que se haviam misturado aos cidados comuns, compartilhando, consequentemente, de modo mais ou menos intenso, da cultura branca.

1.2.2.2 Cdigo Civil Brasileiro - Lei n. 3.071, de 1 de janeiro de 1916O antigo Cdigo Civil (Lei n. 3.071, de 01/01/1916) somente se ocupou dos ndios no art. 6 o caput e pargrafo nico, quando os equiparou aos relativamente incapazes e os submeteu ao regime de tutela. O autor intelectual do cdigo, Clvis Bevilqua (1921, p. 185), justificou que a utilizao do termo silvcola tinha sido para deixar claro que ali se tratava de homens habitantes das selvas e no dos cidados comuns confundidos com a massa geral da populao, aos quais se aplicariam os preceitos do direito comum. Os silvcolas eram indivduos em situao especial que mereciam um tratamento jurdico diferenciado. Acreditava-se que os ndios, embora capazes de manifestar a sua vontade, no viviam um grau de civilizao suficiente para compreender os institutos e as normas da sociedade civilizada, razo pela qual deveriam ser submetidos ao regime de tutela, ou seja, deveriam ser assistidos todos os seus atos da vida civil, por um rgo da civilizao apto a defender os seus interesses. Dessa forma, o pargrafo nico do art. 6o determinou o regime de tutela dos silvcolas, a ser estabelecido por lei especial, at que o seu estado de adaptao sociedade permitisse o gozo da capacidade civil plena. Foi deixada a regulamentao mais extensiva sobre a matria a cargo de leis especiais, que deveriam ser editadas posteriormente. Assim, uma vez adaptados ao convvio dos civilizados e comprovado o grau de assimilao atravs da sua emancipao oficial, os ndios deixariam de s-los, do ponto de vista legal.

1.2.2.3 Decreto n 5.484, de 27 de junho de 1928Outro documento legislativo importante do qual se pode extrair uma definio de ndio o Dec. n. 5.484 de 27 de junho de 1928, que se props a regular a situao dos ndios nascidos no Brasil, sem revogar totalmente o Dec. n 9.214/11. Tratava de resguardar os interesses dos ndios, dispondo sobre a sua situao jurdica a do seu patrimnio e sobre as

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terras que lhes seriam destinadas. Estabelecia, tambm, algumas normas de direito penal referentes aos crimes praticados contra os ndios e aos crimes praticados pelos ndios. Os ndios foram classificados por esse decreto em quatro categorias: os nmades, os arranchados (ou aldeados), os pertencentes s povoaes indgenas, os pertencentes aos centros agrcolas ou que viviam em promiscuidade com os civilizados. Se, por um lado, o decreto protegia a pessoa e os bens de todos os ndios independentemente do estado em que se encontrassem, por outro lado, somente garantia respeito aos usos, costumes e s tradies daqueles que ainda no viviam em contato com os civilizados, a saber, os pertencentes quelas trs primeiras categorias. Em muitos aspectos, os ndios que viviam nos centros agrcolas ou em promiscuidade com os civilizados eram tratados de acordo com as normas de direito comum, aplicveis aos cidados em geral. Mais uma vez, o ndio foi classificado segundo o seu estgio de adaptao sociedade civilizada, sendo tanto mais especiais os seus direitos quanto menor fosse o contato que mantinha com esta sociedade. Embora emancipados da tutela orfanolgica a que estavam submetidos, o patrocnio dos seus interesses ficou a cargo do Servio de Proteo aos ndios, permanecendo restrita a sua capacidade civil. A esse respeito dizia o art. 5 o. do decreto em exame que a capacidade dos ndios sofreria restries at que eles se incorporassem sociedade civilizada. Por esse

raciocnio, estando os ndios totalmente incorporados aos institutos e costumes da sociedade civil, perderiam o tratamento especial.

1.2.2.4 Estatuto do ndio - Lei n. 6.001, de 19 de dezembro de 1973O Estatuto do ndio, promulgado pela lei n. 6.001 de 1973, constituiu uma tentativa de codificao das normas de direito indgena esparsas em diversos diplomas. Contudo, esse diploma apresenta uma srie de ambiguidades e contradies. J no art. 1o, quando define os seus objetivos, demonstra a sua natureza contraditria, pois a um s tempo estabelece o intento de preservar a cultura dos ndios e o interesse em integr-los comunho nacional, objetivos que se excluem mutuamente. Incongruncia de igual teor est no art. 2o, caput e inciso IV. Num primeiro momento, estabelece a obrigao da Unio, dos Estados, dos Municpios e das demais autoridades brasileiras de, nos limites de sua competncia, promoverem a proteo das comunidades indgenas e a defesa dos seus direitos,

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revelando uma postura eminentemente preservacionista. Num segundo momento, ao definir as regras dessa proteo, determina que, no processo de integrao do ndio comunho nacional, devero ser respeitados a coeso das comunidades indgenas, os seus valores culturais, usos, costumes e as suas tradies. Na realidade, o aludido Estatuto mistura disposies de carter preservacionista com condicionamentos de origem etnocntrica e integracionista, levando concluso de que se constitui em mais um instrumento de desarticulao scio-cultural dos ndios. Porquanto, a integrao do ndio comunho nacional de forma impositiva e abrupta poderia comprometer o direito de autodeterminao tnica das comunidades indgenas. No art. 3, o Estatuto do ndio apresenta as definies de ndio e de comunidade indgena e, no art. 4o, classifica os ndios em trs categorias distintas - os isolados, os em via de integrao e os integrados, de acordo com o grau de adaptao comunho nacional, formalmente identificado a partir do critrio jurdico da capacidade civil. A seguir, a redao de cada artigo:Art. 3 o. - Para garantir os efeitos da lei, ficam estabelecidas as definies a seguir discriminadas: I - ndio ou silvcola - todo indivduo de origem e ascendncia pr-colombiana que se identifica e identificado como pertencente a um grupo tnico cujas caractersticas culturais o distinguem da sociedade nacional; II - comunidade indgena ou grupo tribal um conjunto de famlias ou comunidades de ndios, quer vivendo em estado de completo isolamento em relao aos outros setores da comunho nacional, querem contatos intermitentes ou permanentes, sem contudo estarem nelas integrados. Art. 4o. - Os ndios so considerados: I - isolados quando vivem em grupos desconhecidos ou de que se possuem poucos e vagos informes atravs de contatos eventuais com elementos da comunho nacional; II- em vias de integrao - quando, em contato intermitente ou permanente com grupos estranhos, conservem menor ou maior parte das condies de sua vida nativa, mas aceitam algumas prticas e modos de existncia comuns aos demais setores da comunho nacional, da qual vo necessitando cada vez mais para o prprio sustento; III - integrados - quando incorporados comunho nacional e reconhecidos no pleno exerccio dos direitos civis, ainda que conservem usos, costumes e tradies caractersticas da sua cultura.

As definies de ndio ou silvcola e de comunidade indgena, apontadas no art. 3o do Estatuto do ndio, apresentam algumas incongruncias de ordem formal e antropolgica. (CUNHA, 1988, p. 56). O problema de ordem formal est na definio de comunidade indgena ou grupo tribal (art. 3 o, II). Ao definir comunidade indgena ou grupo tribal, o legislador inclui as denominadas comunidades ndias como subgrupos das comunidades

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indgenas14, como se comunidade ndia e comunidade indgena constitussem objetos conceituais diferentes. Como os principais dicionrios da lngua portuguesa consideram os vocbulos indgena e ndio 15 sinnimos entre si, qualquer diferenciao conceitual que se tente produzir entre comunidades indgenas e comunidades ndias carecer de legitimidade semntica e validade lgica. Outra impropriedade registrada entre as definies de ndio integrado (art. 4, III) e de comunidade indgena (art. 3 o, II). De acordo com o Estatuto do ndio, os ndios que adquirem plena capacidade civil no perdem a condio de ndios passam apenas categoria de ndios integrados, prevista no art. 4o, inciso III. Entretanto, estes, classificados como ndios integrados, quando reunidos em grupo, no podem formar uma comunidade indgena na acepo legal da expresso. A definio de comunidade indgena apresentada pelo Estatuto do ndio (art. 3, II) dispe que tais comunidades no podem ser constitudas por ndios integrados comunho nacional. Como os ndios integrados so igualmente considerados ndios pelo prprio Estatuto do ndio 16, como seria possvel a existncia de um grupo de ndios legalmente considerados como tais, compondo uma comunidade que, do ponto de vista da lei, no seja considerada indgena? Assim, pelo Estatuto do ndio, como uma comunidade formada por ndios integrados no gozaria de legitimidade legal, no teria, por conseqncia, a titularidade de uma srie de direitos especiais destinados s comunidades indgenas. Quando o legislador classifica os ndios em isolados, em vias de integrao e em integrados (art. 4 o), faz uso de expresses formuladas por Darcy Ribeiro (1993, p. 432-434), embora com algumas alteraes. O Estatuto do ndio se refere aos ndios integrados (art. 4 o., III) como sendo ndios incorporados comunho nacional, ou seja, oficialmente emancipados, ainda que mantenham usos, costumes e tradies caractersticos de sua cultura. Para Darcy Ribeiro, integrados so os ndios articulados com a esfera econmica e institucional da sociedade brasileira. Poderiam vir a ser confundidos com a populao em geral, se no guardassem em si a conscincia de que constituem um povo parte, se no14

Art. 3, II do Estatuto do ndio estabelece que comunidade indgena ou grupo tribal corresponde a um conjunto de famlias ou comunidades ndias, quer vivendo em estado de completo isolamento em relao aos outros setores da comunho nacional, querem contatos intermitentes ou permanentes, sem contudo estarem neles integrados (grifo proposital). 15 Celso Pedro Luft (1984, p.311), utiliza as seguintes definies: ndio - Diz-se do, ou o natural do lugar ou pas em que habita; autctone; aborgene; indgena. 16 Art. 4o. Os ndios so considerados: I. isolados [...]; II. em vias de integrao [...] e, III. integrados [...].

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cultivassem uma espcie de lealdade a essa identidade tnica e se no fossem vistos e discriminados como ndios pelos demais. Ribeiro (1993, p. 432-434) enftica ao afirmar que essa articulao no corresponde fuso desses grupos indgenas na sociedade nacional como parte indistinta dela; corresponde, sim, a uma espcie de acomodao que concilia a identidade tnica a uma crescente participao na vida econmica e nas esferas de comportamento institucionalizado da sociedade nacional Ademais, se na prpria compreenso do Estatuto os ndios integrados continuam sendo considerados como ndios, no faz sentido negar a legitimidade jurdica das comunidades por eles constitudas. Afinal, o que faz uma comunidade indgena so fatores determinantes diversos de uma mera declarao legal. A definio de ndio (art. 3, I) se estrutura a partir da aceitao de trs critrios: a origem e ascendncia pr-colombiana (critrio biolgico); b) a autoidentificao e identificao pelos outros como pertencentes a um grupo tnico diferenciado (critrio scioantropolgico) e c) a diversidade cultural (critrio de ordem cultural). Entretanto, para a elaborao de uma definio de ndio mais adequada do ponto de vista antropolgico, algumas observaes devem ser feitas, em relao aos critrios de ordem biolgica e cultural. A origem e ascendncia pr-colombiana no podem ser entendidas como um critrio de origem puramente biolgica ou racial. Atualmente, a prpria existncia de raas humanas no sentido biolgico cientificamente questionada. Franois Jacob (apud CUNHA, 1987, p. 24) escreve que a distncia biolgica entre duas pessoas de um mesmo grupo, de uma mesma aldeia to grande que torna insignificante a distncia entre a mdia de dois grupos, o que retira qualquer contedo ao conceito de raa. Portanto, a origem e a ascendncia prcolombiana dos ndios devem ser entendidas como uma afirmao de natureza genealgica vinculada idia de continuidade histrica que os grupos indgenas atuais mantm com os seus respectivos ancestrais. O critrio cultural utilizado pelo Estatuto na definio de ndio tambm s ser antropologicamente significativo se levar em conta as seguintes condies: Os traos estruturais de um grupo tnico devem ser considerados como um produto da sua organizao social. Logo, os traos culturais no devem ser considerados como suficientes em si mesmo, para determinar a identidade tnica de um grupo. Quando na classificao dos grupos tnicos se prioriza a diversidade do aparato cultural que apresentam,

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sem considerar os elementos estruturais da sua organizao social, as diferenciaes encontradas passam a ser diferenas entre culturas, e no entre organizaes tnicas. Os argumentos que fundamentam a especificidade de cada grupo tnico devem partir do exame das estruturas que constituem a sua organizao social. A cultura deve ser entendida como um resultado dessa organizao social. Nesse sentido, a corrente antropolgica defendida por Frederick Barth e seguida pelos principais antroplogos brasileiros17

a que melhor define

grupo tnico como um tipo de organizao social. De acordo com essa corrente antropolgica, indivduos conscientes de sua identidade tnica dela se valem para se autoidentificar e identificar os outros com o propsito de interao mtua, formando grupos tnicos em seu sentido de organizao. As caractersticas culturais de um povo tambm no devem ser entendidas como idnticas cultura ancestral. Um gr u p o tnico exibir caractersticas culturais diferentes quando diante de situaes ecolgicas, sociais e temporais diferenciadas. Nem ns, os ocidentais, mantivemos de meio exato os mesmos costumes, as mesmas crenas, lnguas e tradies dos nossos antepassados. A cultura de um dado grupo tnico vai se adaptando s condies naturais e s oportunidades sociais decorrentes do processo de interao com outros grupos, sem que isso represente a perda de sua identidade prpria (CUNHA, 1987, p.25). Do ponto de vista antropolgico, o critrio da autoidentificao e da identificao pelos outros (hetero-identificao) suficiente em si para determinar a definio de ndio, porque engloba a questo cultural e a correlao histrica com os antepassados (CUNHA, 1987, p. 25). Os ndios brasileiros proclamam explicitamente a sua ascendncia pr-colombiana e a sua diversidade cultural como fatores caractersticos de sua indiandade. Contudo, esses elementos so apenas o resultado da organizao social de cada grupo indgena e fluem da forma como eles interagem entre si. Partindo da aceitao do critrio antropolgico da autoidentificao e de heteroidentificao como determinantes da organizao de um grupo tnico, conclui-se que a definio de ndio est diretamente imbricada com a definio de comunidade indgena. Se o ndio se identifica como tal por integrar um determinado grupo tnico, sendo por este aceito como membro, parece intil formular uma definio de ndio sem antes estabelecer o significado de comunidade indgena. Cabe apenas comunidade indgena a tarefa de definir quem a integra e quem no a integra como membro. Nesse sentido, a ordem das definies de17

A exemplo de Darcy Ribeiro e Manuela Carneiro da Cunha.

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ndio e de comunidade indgena, tal como estabelecida no Estatuto do ndio, deveria ser invertida conforme a sugesto de Carneiro da Cunha (1987, p. 25), para quem as definies mais satisfatrias seriam:- Comunidades indgenas so aquelas que se consideram segmentos distintos da sociedade nacional em virtude da conscincia de sua continuidade histrica com sociedades pr-colombianas. - ndi o quem se considera pertencente a uma dessas comunidades e por ela reconhecido como membro.

O atual Estatuto de 1973 deve ser todo reinterpretado, porque est baseado na tutela dos povos indgenas e na idia de assimilacionismo, ou seja, proteg-los, mas sabendo que aquele um estgio inferior do desenvolvimento humano e que, em algum momento, ele dever vir a adotar a cultura da civilizao dominante. Importante citar o Parecer n. 04/PGF/PG/FUNAI/07 expedido pela Procuradoria-Geral Federal com atribuio sobre a FUNAI, que consolida a atuao de todos os seus rgos acerca de algumas questes indgenas:Nesse sentido, deve-se esquecer a classificao ultrapassada e no recepcionada de ndios integrados e em vias de integrao, pois a Constituio garante direitos a todos os ndios, independentemente de fatores como ser alfabetizado em portugus, votar, ter relaes com o resto da sociedade etc.(grifo proposital). (FUNDAO NACIONAL DO NDIO, 2009)

Desta feita, anota-se que o art. 4 da Lei 6001/73, que classifica os ndios em nointegrados, em vias de integrao e integrados no foi recepcionado pela Constituio Federal de 1988, pois contraria a idia de respeito diversidade tnica e cultural. Logo, todos os dispositivos da legislao ordinria que visem incorporao dos ndios comunho nacional restaram derrogados, v.g., os arts. 4, 7, 8, 9, 10 e 11 do Estatuto do ndio. A idia central nos dias atuais que os ndios tenham autonomia para viver em sociedade, embora deva cuidar para a preservao da pluralidade e da sua cultura.

1.2.2.5 Atos internacionais: as Convenes n. 107 /57 e 169/89 da Organizao Internacional do TrabalhoTanto a Conveno n.107 da Organizao Internacional do Trabalho de 1957 quanto a Conveno n169 da Organizao Internacional do Trabalho de 1989 oferecem definies de ndio e de comunidade indgena. A Conveno n.107 (Dec. n.58.884/66) define os indgenas no art.1, alnea b, quando dispe:

38 Artigo 1o. A presente Conveno se aplica: b) aos membros das populaes tribais ou semitribais de pases independentes que sejam consideradas como indgenas pelo fato de descenderem das populaes que habitavam o pas, ou uma regio geogrfica a que pertena tal pas, na poca da conquista ou da colonizao e que, qualquer que seja seu estatuto jurdico, levem uma vida mais conforme s instituies sociais, econmicas e culturais daquela poca do que s instituies peculiares nao a que pertencem.

A Conveno 169 da OIT, atualmente, um dos principais instrumentos jurdicos sobre direitos indgenas a nvel internacional. Foi ratificado por 20 (vinte) pases, dentre eles o Brasil, que o fez em 25/07/2003, onde foi aprovado pelo Decreto n. 5.051 de 19 de abril de 2004. obrigatrio para todos os Estados que o ratificaram. No que pertine aos efeitos jurdicos, sinala-se que a Conveno 169 da OIT gera obrigaes estatais em favor dos ndios (proteo dos direitos em favor de um sujeito, qual seja, os ndios) e se configura como um parmetro para avaliar as normas e a atuao (definir metas para as polticas pblicas, acordos entre estados e comunidades e avaliar as normas e atuao dos poderes do Estado). Aprimorando a definio, a Conveno de n.169 oferece uma definio mais condizente com os propsitos da Constituio Federal de 1988, quando dispe, no art.1, item 2, que a conscincia da identidade tnica deve ser um critrio fundamental na determinao dos grupos indgenas. A seguir, o art.1, alnea b, item 2 da referida Conveno:Artigo 1o. A presente Conveno aplica-se: b) aos povos em pases independentes, considerados indgenas pelo fato de descenderem de populaes que habitavam o pas ou uma regio geogrfica pertencente ao pas na poca da conquista ou da colonizao ou do estabelecimento das atuais fronteiras estatais e que, seja qual for a sua situao jurdica, conservam todas as suas prprias instituies sociais, econmicas, culturais e polticas, ou parte delas. 2 A conscincia de sua identidade indgena ou tribal dever ser considerada como critrio fundamental para determinar os grupos aos que se aplicam as disposies da presente Conveno. (grifo proposital).

Com essa Conveno, v-se o predomnio do critrio antropolgico da autoidentificao orientando a conceituao de ndio e de comunidade indgena, posto que cada pessoa poder optar por manifestar a cultura de seus ancestrais, bem como identificar-se como pertencente dada etnia. No se trata de se conceder s pessoas uma liberdade desmesurada, de se considerar como pertencente a uma etnia, haja vista que o critrio de autoidentificao deve vir aliado descendncia pr-colombiana e aceitao pela respectiva comunidade indgena.

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A partir desse reconhecimento intrnseco, a Fundao Nacional do ndio FUNAI - chamada a fazer um estudo antropolgico sobre o grupo. Nessa fase, feita uma aferio de um estilo de vida prprio, tais como, a cultura peculiar que remontam aos seus descendentes, sua lngua e organizao social, bem como sua forma de cultuar os entes sagrados, somado a uma relao mais ntima com a terra em que vive e com os elementos da natureza. De outro quadrante, entende-se que o Estado brasileiro adotou o termo Povos Indgenas, ou seja, toda a coletividade de origem pr-colombiana que mantm, de acordo com os seus ascendentes, uma estrutura organizacional, costumes, lngua e crenas prprias. Dentre os diplomas internacionais acerca da questo indgena, ainda ressalta-se a Declarao das Naes Unidas sobre os Direitos dos Povos Indgenas de 13 de setembro de 2007. Contudo, por um critrio de sequncia temporal, optou-se por discuti-la adiante, por se tratar de um documento que reflete as tendncias mais contemporneas do indigenismo.

1.2.3 Perodo atual e suas perspectivas nos cenrios nacional e internacionalCom o reconhecimento dos direitos humanos, notadamente no final do sculo XX, houve importante e benfica alterao no tratamento dispensado s minorias tnicas. No que tange ao mbito indgena, destaca-se um novo paradigma, qual seja, o multiculturalismo18, que reconhece a necessidade de proteo da cultura das diferentes etnias, em pacfica convivncia. Logo, a cultura19 do grupo predominante no deve ser imposta aos demais.

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Citando Srgio Costa (apud VIEIRA, 2004, p. 04): O multiculturalismo a expresso da afirmao e da luta pelo reconhecimento desta pluralidade de valores e diversidade cultural no arcabouo institucional do Estado Democrtico de Direito, mediante o reconhecimento dos direitos bsicos dos indivduos enquanto seres humanos e o reconhecimento das necessidades particulares dos indivduos enquanto membros de grupos culturais especficos. 19 Acerca do termo cultura, entende Morgan, que os humanos so iguais e possuem aptides semelhantes, portanto no h razo para diferenciaes em raas (antropologia anterior). No final da 2 Guerra Mundial e com a expedio da Declarao dos Direitos Humanos, passa a prevalecer o entendimento de que todos constituem uma mesma espcie. Ento, a forma de especificao humana no se faria por raas, mas por cultura. Entretanto, no se pode pretender hierarquizar as culturas, pois pensar as outras culturas a partir dos valores da cultura de quem est fazendo o inventrio, tambm no seria cientfico. Assim, improcedente as comparaes entre as culturas, pois se estaria a trabalhar com a noo de progresso. Da no cabe classificar as culturas, mas respeitar as diversidades. To importante quanto o reconhecimento da igualdade o reconhecimento da diversidade entre os humanos, pois estes no vivem abstratamente, mas em determinado tempo e espao com formas prprias. O progresso no a homogeneizao, mas a preservao das diversidades. Logo, cultura seria aquilo que construdo socialmente e, portanto deve ser respeitado. Em contrapartida, aculturao supe a existncia de uma nica cultura vlida e que estar em maior progresso quanto mais complexa for a sua estrutura. Logo, se a organizao social era mais frgil ela tenderia a desaparecer por supremacia da civilizao dominante. Haveria uma unidirecionabilidade da sociedade

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Nesse contexto, ao passo que as constituies brasileiras anteriores foram marcadas por um profundo etnocentrismo, a Constituio Federal de 1988 reconhece a existncia de uma diversidade tnica. Assim, foi inaugurada uma nova poltica indigenista, reconhecedora da plurietnicidade brasileira. Para isso, os instrumentos legais que asseguram os direitos dos ndios foram cada vez mais detalhados e fortalecidos, no af de que seja assegurada a permanncia desse grupo tnico e seus elementos culturais.

1.2.3.1 Constituio Federal de 1988A Constituio da Repblica Federativa do Brasil20, promulgada em 1988, ainda no prembulo, refere-se sociedade brasileira como uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos. Sobreleva o princpio da dignidade humana como fundamento do estado brasileiro, cujos objetivos se voltam para a construo de uma sociedade livre, justa e solidria, sem preconceitos ou discriminao de qualquer natureza. Sob a inspirao de esprito democrtico, a Constituio Federal de 1988 acaba por admitir a diversidade biolgica, cultural e social existente no estado brasileiro, procurando compatibiliz-las harmonicamente. No captulo referente ao direito ambiental, a Constituio Federal refere-se ao direito de todos a um meio ambiente ecologicamente equilibrado. Dessa forma, prope-se a harmonizar no apenas a biodiversidade, mas tambm a proteger os elementos culturais que integram o patrimnio do pas. certo que, no conceito de meio ambiente, no h referncia apenas aos recursos naturais, mas tudo que tem a ver com a vida, sua manuteno e reproduo. Nesse conceito, esto inclusos, igualmente, os elementos fsicos (a terra, o ar e a gua), o clima, os elementos culturais (os hbitos, o saber, a histria de cada grupo, de cada comunidade) e a maneira como esses elementos so tratados pela sociedade. (NEVES, 1992, p.14) Alm da biodiversidade, a Constituio Federal de 1988 reconhece a sciodiversidade do povo brasileiro (SOUSA FILHO, 1994), a diversidade tnica das populaes indgenas, garantindo aos ndios o seu livre desenvolvimento de acordo com os signos e valores de suas

tradicional sobre a sociedade primitiva. Nega-se essa ideologia da aculturao, pois se entende que, h vrias maneiras de se ver o mundo, ento no h que se proteger um modelo nico. (CASTRO, 2005, p. 40-70) 20 Nesse momento ser feita referncia geral CF 88, dando destaque influncia das novas idias antropolgicas no tratamento dos ndios. O detalhamento acerca dos direitos indgenas s suas terras, previstos na CF 88, ser tratado nos Captulos 2 e 3.

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respectivas comunidades. Nesse sentido, assegurou aos ndios sua lngua, sua cultura, seu uso, seus costumes, suas crenas e suas tradies (art. 231, caput). Garantiu tambm os direitos originrios sobre as terras que tradicionalmente ocupam, determinando que, na identificao dos limites das terras ocupadas por cada comunidade indgena, fossem considerados os seus usos, costumes e as suas tradies (art. 231, 1 o). Outros dispositivos constitucionais demonstram o intento da poltica indigenista inaugurada pela atual Constituio Federal, dentre eles: o art. 20, inciso XI, que inclui as terras tradicionalmente ocupadas pelos ndios entre os bens da Unio, enfatizando a idia de ocupao tradicional e no a mera ocupao fsica da terra; o art. 22, inciso XIV, que atribui Unio competncia exclusiva para legislar sobre populaes indgenas; o art. 129, que inclui entre a competncia do Ministrio Pblico Federal a defesa judicial dos interesses das populaes indgenas; o art. 210, 2 o, que permite s comunidades indgenas o uso de sua lngua materna e dos seus processos de aprendizagem no ensino fundamental regular de seus membros; o art. 215, que determina a proteo das manifestaes culturais dos ndios pelo Estado e, por fim, no dispe sobre a integrao dos ndios comunho nacional. Observa-se a preferncia da Constituio Federal de 1988 pelos termos ndio e comunidades indgenas, contudo no oferece sua definio. Estabelece, entretanto, algumas condies objetivas que intentam a promoo do desenvolvimento tnico dos ndios e de suas comunidades de acordo com os seus valores e as suas estruturas sociais. Em vista da relevncia dada organizao social, as tradies, aos costumes, cultura, enfim, aos valores dos ndios e de suas comunidades, possvel entender que o texto constitucional prefere uma definio de ndio e de comunidade indgena orientada pelos critrios antropolgicos que sobreleve a idia de sua conscincia tnica a definies orientadas por critrios de ordem puramente biolgica ou cultural.

1.2.3.2 Novo Cdigo Civil - Lei 10.402/2002O Novo Cdigo Civil (Cdigo Civil de 2002) trata a respeito dos ndios no art. 4, pargrafo nico. Inova, em relao ao Cdigo Civil de 1916, quanto sua capacidade civil, pois no mais incluiu os indgenas no rol dos relativamente incapazes21. Nesse sentido, Caio

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O Cdigo Civil de 1916 considerava os ndios relativamente incapazes, sujeitando-os, para proteg-los, ao regime tutelar estabelecido em leis e regulamentos especiais, o qual cessaria medida que se fossem adaptando civilizao do pas (art. 6). (GONALVES, 2003, p. 99). Ainda consoante Clvis Bevilqua (2007, p. 28): So nulos os atos praticados pelos ndios e indivduos civilizados, sem a interveno do inspetor competente ou seu representante.

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Mrio da Silva Pereira (2004, p. 288): O novo Cdigo, segundo o princpio indicado no Projeto de 1965, deixa exclusivamente legislao especial a tutela dos ndios (art. 4, pargrafo nico). Assim, nada obstante o pargrafo nico do art. 4 determinar que a capacidade civil dos indgenas seria regulada por lei especial, ainda no foi editada uma nova lei especial que regule a matria. Portanto, a lei que atualmente versa sobre o assunto o Estatuto do ndio, que foi editado em 1973. Dessa feita, mesmo considerando a importncia desse diploma jurdico, devese ficar atento que foi editado em perodo anterior CF 88 e ao novo Cdigo Civil, logo, como de se esperar, a classificao da capacidade civil dos indgenas oferecida pelo Estatuto do ndio (como outrora analisado) no adequada ao atual contexto jurdico-social. Contudo, parte da doutrina, contrariamente ao que se defende neste trabalho, entende que a capacidade dos ndios ainda definida a partir da sua integrao ou no sociedade civil. o que ensina Slvio de Salvo Venosa (2006, p.139): Os ndios, enquanto no absorvidos pelos costumes da civilizao, submetem-se ao regime tutelar da Unio. Desse modo, para praticar atos da vida civil necessitam da assistncia do rgo tutelar. Dessa forma, se o ndio for isolado da civilizao, estar cingido ao regime tutelar da Unio; por conseqncia, os negcios realizados entre estes e os no-ndios, sem a assistncia da FUNAI seriam anulveis. Excepcionalmente, quando fosse provada a capacidade de discernimento do ndio pelo juiz,o negcio jurdico poderia ser considerado. A razo da incapacidade relativa imposta pelo Cdigo Civil anterior e por parte da doutrina atual deve-se ao iderio de que ndio era um habitante das selvas, sem a compreenso dos hbitos, costumes e da legislao da sociedade civil. Cita-se o comentrio de Ricardo Fiza (2007, p. 20): Os ndios, devido a sua educao lenta e difcil, so colocados pelo nov