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Caroline Perovano Gisele Schwede Jaqueline Jablonsky Luciana Laube Nasser Haidar Barbosa DIREITOS HUMANOS E PSICOLOGIA: Mediando re-significações no CDH Maria da Graça Bráz JOINVILLE 2006

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Caroline Perovano

Gisele Schwede

Jaqueline Jablonsky

Luciana Laube

Nasser Haidar Barbosa

DIREITOS HUMANOS E PSICOLOGIA: Mediando re-significações no CDH Maria da Graça Bráz

JOINVILLE

2006

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Caroline Perovano

Gisele Schwede

Jaqueline Jablonsky

Luciana Laube

Nasser Haidar Barbosa

DIREITOS HUMANOS E PSICOLOGIA: Mediando re-significações no CDH Maria da Graça Bráz

JOINVILLE

2006

Relatório de Estágio Supervisionado em PsicologiaSocial, apresentado à Faculdade de Psicologia de Joinville, da Associação Catarinense de Ensino, como requisito parcial para a obtenção do grau de Psicólogo. Professor Supervisor: Esp. Julio Schruber Junior

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Caroline Perovano

Gisele Schwede

Jaqueline Jablonsky

Luciana Laube

Nasser Haidar Barbosa

DIREITOS HUMANOS E PSICOLOGIA: Mediando re-significações no CDH Maria da Graça Bráz

Aprovado em 7 de dezembro de 2006, pelo Professor Supervisor.

________________________________________________

Profº. Esp. Julio Schruber Junior CRP 12/0969

Relatório de Estágio Supervisionado em Psicologia Social, apresentado à Faculdade de Psicologia de Joinville, da Associação Catarinense de Ensino, como requisito parcial para a obtenção do grau de Psicólogo. Professor Supervisor: Esp. Julio Schruber Junior

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EPÍGRAFE

Nós vos pedimos com insistência:

Nunca digam – Isso é natural

Diante dos acontecimentos de cada dia,

Numa época em que corre o sangue

Em que o arbitrário tem força de lei,

Em que a humanidade se desumaniza

Não digam nunca: Isso é natural

A fim de que nada passe por imutável.

(Bertold Brecht)

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TÍTULO: DIREITOS HUMANOS E PSICOLOGIA: Mediando re-significações no CDH

Maria da Graça Bráz

AUTORES: Caroline Perovano, Gisele Schwede, Jaqueline Jablonsky, Luciana

Laube e Nasser Haidar Barbosa

PROFESSOR SUPERVISOR: Prof. Esp. Julio Schruber Junior

RESUMO

Este trabalho apresenta o relato do desenvolvimento da prática profissional no estágio supervisionado em Psicologia Social, realizado no Centro de Direitos Humanos Maria da Graça Braz (CDH), na cidade de Joinville/SC, a partir do convênio firmado entre esta organização e a Associação Catarinense de Ensino, através das faculdades de Psicologia e de Direito. Esta parceria gerou três frentes de trabalho conjuntas entre a Psicologia e o Direito, sempre com vistas ao desenvolvimento de um trabalho interdisciplinar de apoio a causas jurídicas e psicológicas dos clientes do CDH. A frente de trabalho em que atuou este grupo de estagiários e que gerou o presente relatório foi a de orientação e atendimento psicológico aos movimentos sociais e grupos, bem como individuais, que procuram o CDH a fim de esclarecer suas dúvidas, buscando orientação ou mesmo apoio psicológico frente à suas demandas. O papel dos estagiários neste sentido foi o de mediar práticas frente às questões sociais, com vistas à emancipação das pessoas que apresentam demandas de vulnerabilidade, buscando assim novas alternativas para as complexas questões da sociedade contemporânea. Pautado na concepção de homem e de mundo da Psicologia Histórico-cultural, este estágio foi realizado entre os meses de julho e novembro de 2006.

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LISTA DE GRÁFICOS

Gráfico 1 Tipos de atendimentos realizados pelo PAS-JP................................ 66

Gráfico 2 Tipo de renda das pessoas atendidas............................................... 67

Gráfico 3 Tipo de demanda apresentada.......................................................... 67

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SUMÁRIO INTRODUÇÃO....................................................................................................... 7 1 DIREITOS HUMANOS........................................................................................ 11 1.1 DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS......................... 16 1.2 DIREITOS HUMANOS E CONTEMPORANEIDADE................................... 18 1.3 PSICOLOGIA E DIREITOS HUMANOS....................................................... 20

2 MEDIAÇÃO......................................................................................................... 24 2.1 PSICOLOGIA JURÍDICA E MEDIAÇÃO...................................................... 24 2.2 PSICANÁLISE E MEDIAÇÃO...................................................................... 27 2.3 PSICOLOGIA HISTÓRICO-CULTURAL E MEDIAÇÃO............................... 28

3 O CONTEXTO BRASILEIRO............................................................................. 34 3.1 VIOLÊNCIA.................................................................................................. 37 3.2 UMA GRANDE DEMANDA: O SISTEMA PRISIONAL................................ 41 3.2.1 Prisões................................................................................................43 3.2.2 Santa Catarina no cenário prisional....................................................46 3.3 VULNERABILIDADE E EXCLUSÃO............................................................ 47

4 A TRAJETÓRIA PERCORRIDA.........................................................................53 4.1 CENTRO DE DIREITOS HUMANOS MARIA DA GRAÇA BRÁZ................ 53 4.2 INTERDISCIPLINARIDADE......................................................................... 55 4.3 PSICOLOGIA E DIREITO............................................................................ 57 4.4 PROJETO DE ASSISTÊNCIA JURÍDICA E PSICOLÓGICA (PAS – JP).... 61

CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................... 69 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..................................................................... 73 ANEXO.................................................................................................................. 79

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INTRODUÇÃO

Realizar-se uma faculdade de Psicologia em meados da primeira década do

século XXI necessariamente implica em ser convidado a se olhar para a realidade

mundial e especialmente à brasileira no que tange à contundente vulnerabilidade e

exclusão social que assola a sociedade hodierna. Herança de séculos de acúmulo

de bens em mãos de poucas pessoas a custo da exploração e espoliação de direitos

fundamentais de muitas pessoas, a precária situação contemporânea requer

reflexões daqueles que de alguma forma se apropriam da ciência Psicológica, isto é,

tanto de pesquisadores e estudantes quanto de professores e demais profissionais

que se ocupam dos diversos campos onde há o fazer “psi”.

Visto que já ao longo da formação em Psicologia é necessário ao futuro

profissional apropriar-se das diferentes formas deste fazer “psi”, o exercício das mais

variadas possibilidades de atuação durante este período deve ocupar lugar central

da atenção de cada estudante, pois são exercícios profissionais comprometidos com

a população que permitem um espaço de reflexão e, concomitantemente, a

construção de novas formas de atuação, que consigam responder a novas

demandas.

Nessa perspectiva, este relatório é resultado do estágio supervisionado em

Psicologia Social realizado no Centro de Direitos Humanos Maria da Graça Braz,

durante o segundo semestre de 2006. Este CDH, conforme discorrido mais adiante,

possui uma longa história de compromisso com a população de Joinville e região,

em situação de vulnerabilidade social e este estágio que relatamos é resultado da

realização de um convênio entre esta instituição e a Associação Catarinense de

Ensino, por meio de suas Faculdades de Psicologia e de Direito, firmado na primeira

metade do ano. Este acordo resultou na realização do Projeto de Assistência

Jurídica e Psicológica (PAS-JP), com vistas ao atendimento interdisciplinar

(Psicologia e Direito) à clientela do CDH.

Aqui, faz-se necessário indicar a matriz epistemológica que norteou nossa

reflexão e prática: o materialismo histórico e dialético. A partir desta perspectiva,

entendemos que a subjetividade constitui-se historicamente a partir das relações,

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isto é, a partir de seu trabalho, o indivíduo, construtor de si mesmo, constrói sua

subjetividade no contexto das relações nas quais está inserido.

Segundo Figueira, parafraseando Karl Marx, o homem se constitui como tal

por meio do trabalho, isto é, faz-se pelo trabalho, a partir de determinadas condições

(FIGUEIRA, 1987). É ainda um ser social, já que é do contato com o outro que tira

os meios para sua sobrevivência e aprende a ser humano. Assim, há duas

características peculiares à humanidade: o trabalho e a interação social (LEONTIEV,

1978).

Nesta perspectiva, queremos fazer perguntas à realidade que se coloca em

questão e colocamos em pauta o compromisso que assumiremos com a sociedade

ao sermos nomeados psicólogos.

Tendo em vista que esta foi a primeira experiência realizada entre as

instituições citadas, após ter sido realizado o convênio, algumas formas de trabalho

foram planejadas, isto é, algumas frentes de trabalho foram definidas, para melhor

adequar a concretização da experiência, conforme adiante será colocado. A frente

de trabalho norteadora desta equipe foi a de Movimentos Populares e tinha por

objetivos atender familiares e egressos do sistema prisional, pessoas em situação de

violência e todas aquelas cujos direitos estejam de algum modo sendo violados

(enfoque em atendimento de apoio, bem como, orientação e encaminhamento para

os serviços públicos existentes, de acordo com a demanda). Além disso, concentrou-

se na orientação psicológica para os movimentos sociais e grupos assessorados

pelo Centro de Direitos Humanos, especialmente por meio da formação de

lideranças comunitárias.

O caminho percorrido

Para a concretização destas atividades, a equipe trabalhou em esquema de

plantão na sede do CDH, às quintas-feiras a tarde, em conjunto com a equipe de

estagiários do terceiro ano da faculdade de Direito, atendendo as pessoas que

(normalmente) já haviam agendado sua visita à instituição durante a semana prévia.

O atendimento acontecia em duplas (um estagiário de cada área), ouvindo a

demanda e dando a adequada tratativa ou encaminhamento. Perfez-se assim um

total de 73h de atendimentos no CDH, somados à horas de supervisão, na

Faculdade de Psicologia.

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Procuramos, ao longo da realização deste estágio, “elucidar o

relacionamento entre o funcionamento mental humano com contextos culturais,

institucionais e históricos” (WERTSCH, 1995, p. 81 apud CHAVES, 2000, p. 159).

Logo, com a proposta de atender interdisciplinarmente à demanda do Centro de

Direitos Humanos Maria da Graça Braz, consideramos necessário conhecer mais

este contexto: lançamos um olhar para o tema Direitos Humanos, buscando

compreender suas origens e seus pressupostos e ainda, buscamos conhecer as

principais demandas da instituição: familiares e egressos do Sistema Prisional. Dois

temas por si só amplos e peculiares. Além destas, outras questões colocaram-se

constantemente, exigindo leituras e reflexões. Queríamos, para além de uma

compreensão dos fatos, buscar o entendimento dos compromissos sociais que

compõe a geração de saberes que permeiam os acontecimentos. Com este olhar

para a contextura, queríamos melhor compreender a demanda.

Ao longo do semestre, a equipe de estagiários esteve amplamente assistida

pela psicóloga e pela assistente jurídica do CDH e pelo professor supervisor do

estágio, pois, conforme já citado, esta foi a primeira experiência conjunta entre as

instituições. Logo, demandou de todos os envolvidos uma concomitante construção

de novos saberes e de novas formas de intervenção.

Desta forma, o presente trabalho está organizado da seguinte maneira: no

capítulo inicial, Direitos Humanos, abordamos o nascimento de uma compreensão

de Direitos, própria de um determinado período histórico – a modernidade – e suas

implicações sociais, mais especificamente, a consolidação de uma concepção de

homem com direitos que lhe são inerentes desde o nascimento.

No capítulo seguinte, Mediação, discorremos sobre esta importante forma de

intervenção, buscando elucidar seus diferentes entendimentos: seu entendimento

jurídico; seu entendimento para a Psicanálise e finalmente, aquela concepção que

nos norteou: o entendimento da Psicologia Histórico-cultural. Buscamos, portanto,

entender um pouco mais os meandros que engendraram a institucionalização da

mediação enquanto recurso do sistema jurídico, diferenciando este recurso da

mediação que realizamos no CDH, sem deixar, todavia, de indicar suas confluências

enquanto meio para alcançar-se um novo modo de configuração da realidade que se

coloca, isto é, modo de enfrentamento da realidade e planejamento de projetos de

vida.

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No próximo capítulo, O contexto brasileiro, foi onde nos debruçamos à

descrição do cenário maior no qual se produzem as demandas de vulnerabilidade,

violência e exclusão, historicamente atendidas pelo CDH. Procurando compreender

e elucidar aspectos da história brasileira de concentração de renda excessiva de

alguns poucos e extrema pauperização da maioria, lançamos um olhar ao fenômeno

social da violência, aspecto a que, de alguma forma, estão submetidas a maioria das

pessoas que busca o CDH. Neste capítulo também indicamos o que consideramos

ser o adequado papel do psicólogo, profissional também embrenhado nesta tessitura

social.

No capítulo seguinte, A trajetória percorrida, apresentamos o relato do

cenário encontrado: ainda que de forma bastante sucinta, descrevemos a história do

Centro de Direitos Humanos Maria da Graça Braz. Apresentamos ainda os motivos

de consideramos importante um trabalho deste âmbito ser realizado de forma

interdisciplinar, apresentando aspectos teóricos deste tipo de intervenção. Nesta

esteira, logo em seguida fez-se necessário pensar possibilidades de confluência

entre Direito e Psicologia. Finalmente, explicamos o projeto PAS, suas

peculiaridades e seus resultados. Convém salientar que certamente não esgotamos

as possibilidades de análises destas intervenções e, para além disso, talvez o mais

importante: antes de encontrarmos respostas às nossas reflexões oriundas desta

práxis, supomos que mais questões colocam-se.

Por fim, em Considerações Finais, expressamos o que acreditamos ser

relevante enquanto percepções resultantes deste estágio: aquilo que nos chamou

atenção durante o percurso, considerando nisto o contexto histórico no qual se

produziram os aprendizados e as concepções.

Finalmente, cabe destacar que se tratou este de um estágio novo na

Faculdade de Psicologia e quiçá tal tipo de intervenção tornar-se-á, futuramente,

teor para novas investigações, relacionando-se o conteúdo deste relatório com

novas vivências e outros contextos. A escolha deste objeto de estudo para a

consolidação de um projeto de estágio derivou-se de ocuparmos um lugar apreciado

pelos estagiários desta equipe: o lugar de estudantes do curso para uma profissão

que deve assumir o compromisso social com a maioria da população.

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1 DIREITOS HUMANOS

Direitos humanos podem ser definidos como:

[...] as ressalvas e restrições ao poder político ou as imposições a este, expressas em declarações, dispositivos legais e mecanismos privados e públicos, destinados a fazer respeitar e concretizar as condições de vida que possibilitem a todo ser humano manter e desenvolver suas qualidades peculiares de inteligência, dignidade e consciência e permitir a satisfação de suas necessidades materiais e espirituais (ALMEIDA, 1996, p. 24).

São direitos garantidos ao homem por sua condição humana, capazes de

assegurar a dignidade de sua condição e que “[...] não resultam de uma concessão

da sociedade política. Pelo contrário, são direitos que a sociedade política tem o

dever de consagrar e garantir” (HERKENHOFF, 1994, p. 31).

Assim, podem ser ainda definidos como parâmetros, de caráter histórico,

capazes de regular a vida entre os indivíduos em uma sociedade, baseados

moralmente na justiça, igualdade e democracia, que devem prevalecer em qualquer

estado ou nação, independendo do sistema político, social ou econômico adotado

por esta (CUNHA, 1998). Pereira et al (2004) ainda afirmam que os direitos humanos

são reguladores das relações entre os indivíduos e os estados, postulados pela

Organização das Nações Unidas.

Os Direitos Humanos passaram por um longo processo de “evolução”.

Desde uma fase embrionária, em que eram confundidos com direitos individuais e,

muitas vezes, mais fundamentados em interesses econômicos e políticos do que

humanitários, até chegarem ao século XX (BRAYNER; LONGO; PEREIRA, 2006).

A proto-história dos direitos humanos começa na Baixa Idade Média, mais exatamente na passagem do século XII ao século XIII. Não se trata, ainda, de uma afirmação de direitos inerentes à própria condição humana, mas sim do início do movimento para instituições de limites ao poder dos governantes, o que representou uma grande novidade histórica. Foi o primeiro passo em direção ao acolhimento generalizado da idéia de que havia direitos comuns a todos os indivíduos, qualquer que fosse o estamento social – clero, nobreza e povo – no qual eles se encontrassem (COMPARATO, 1999, p. 33).

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O conceito de Direitos Humanos é, pela tradição no ocidente, segundo Leal

(1997), tratado principalmente pelo marco do direito constitucional e do direito

internacional, cujo objetivo é “[...] construir instrumentos institucionais à defesa dos

direitos dos seres humanos contra os abusos de poder cometidos pelos órgãos do

Estado” (LEAL, 1997, p. 19), ao mesmo tempo em que visa à promoção de

condições dignas da vida humana e de seu desenvolvimento. Isto se explica em

razão do período histórico em que se inicia o debate sobre o tema.

Os Direitos Humanos

[...] não eram conhecidos na Antigüidade, embora a noção de igualdade, pelo menos entre os que eram considerados cidadãos daquilo que se entendia por Estado, tenha florescido no Oriente. Com efeito, a Grécia e a Roma republicana concediam participação política a determinadas classes sociais, o que pode ser considerado o começo da liberdade política (BRAYNER; LONGO; PEREIRA, 2006).

Ainda segundo estes autores (2006), quando do esfacelamento do Império

Romano, surge um novo modo de produção, o feudal, que viria a dominar a Europa,

e então o processo de formação dos Direitos Humanos sofreria uma involução

(exceto na Inglaterra). Porém, mais tarde com a Independência dos Estados Unidos,

a Revolução Francesa e os ideais iluministas, o processo de formação dos Direitos

Humanos tomaria novo fôlego e sua disseminação pelo mundo já não poderia ser

contida. Todavia, muito ainda deveria ser percorrido até que se chegasse ao ponto

culminante das Revoluções Modernas.

Parece ser consenso entre os historiadores que as origens mais antigas dos direitos fundamentais da pessoa humana se encontram nos primórdios da civilização, abarcando desde as concepções formuladas pelos hebreus, pelos gregos, pelos romanos, e pelo cristianismo, passando pela Idade Média, até os dias de hoje (LEAL, 1997, p.20).

Segundo Leal (1997), a postura filosófica dos hebreus (cosmovisão) e sua

religião monoteísta irrompem uma profunda alteração nas crenças e convicções do

mundo antigo: e, considerando sua situação de povo perseguido e discriminado, tem

uma singular importância na delimitação do tema “[...] direitos fundamentais da

pessoa humana” (LEAL, 1997, p. 20).

A lei mosaica, com os Dez Mandamentos, constitui, a despeito dos aspectos religiosos, um autêntico código de ética e de comportamento social, cujo cumprimento identifica um conteúdo e uma prática voltada aos direitos

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humanos mais tarde protegidos. A própria Bíblia tem um conteúdo essencialmente humanista, a partir de um marco religioso presente na cultura greco-romana, consolidou-se no cristianismo (LEAL, 1997, p. 20).

O autor ainda afirma que “com a dispersão do povo hebreu por todo mundo,

a nova concepção de homem e de Deus tem uma divulgação e proliferação

significativa” (LEAL, 1997, p. 20).

Já o povo grego, enfatiza Leal (1997), especula sobre a vida humana e suas

potencialidades, registrando na história uma concepção nova de existência, voltada

para o humanismo racional. “Esta racionalidade lhe propicia enfrentar os fatos da

vida com discernimento e objetividade, buscando implementar a idéia de liberdade

política” (LEAL, 1997, p. 21).

A liberdade de que se fala não é sinônimo de autogoverno; antes, é o hábito de viver de acordo com as leis da cidade1, leis estas que louvam a liberdade, colocando-a como condição de cidadania e hombridade (LEAL, 1997, p. 21).

No momento em que se registra este paradoxo: filosofia, cultura e política,

verifica-se também que a “[...] grande contribuição do povo grego à questão dos

direitos humanos se dá no âmbito das idéias: de liberdade política, racionalidade,

princípios de moralidade universal e dignidade humana” (LEAL, 1997, p. 22).

Entretanto, coube ao direito romano estabelecer uma relação entre os direitos

individuais e o Estado. “A Lei das Doze Tábuas, uma criação romana, foi a origem

escrita dos ideais de liberdade e de proteção dos direitos dos cidadãos” (BRAYNER;

LONGO; PEREIRA, 2006).

Afirmam ainda os autores que

[...] o desenvolvimento dos Direitos Humanos na Antigüidade não foi possível, porque a noção de liberdade pessoal, que lhe é inerente, ainda não existia. A escravidão era vista quase como algo natural e mesmo a idéia de democracia que havia na Grécia e na Roma do período republicano estava vinculada à integração do indivíduo ao Estado, que o absorvia completamente. Não se concebia que a liberdade pudesse, em certos casos, ir de encontro à soberania do Estado (BRAYNER; LONGO; PEREIRA, 2006).

Como afirmam os autores (2006) ao citarem Darcy Azambuja, “a

fragmentação da autoridade determina o desaparecimento da liberdade, tanto é 1 Deve-se aqui ressaltar que os gregos mantinham uma cultura escravagista e discriminatória no que tange às mulheres e aos estrangeiros (LEAL, 1997).

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certo que uma é complemento da outra”. Assim, desaparecem, com a queda do

vasto Império Romano, os rudimentos de liberdade política ou civil.

Com o advento do cristianismo, de maneira mais ou menos intensa, há uma

singular alteração de enfoque filosófico e social no que tange aos direitos humanos

(LEAL, 1997).

Os princípios de igualdade e fraternidade preconizados pela doutrina cristã representam um momento de ruptura com o modelo de sociedade até então existente. Sustentar que inexistem diferenças entre amos e escravos significa alterar as regras do jogo, não só as morais, mas também econômicas (LEAL, 1997, p. 24).

A mudança deste quadro, afirma Leal (1997), se dá a partir dos séculos XVIII

e XIX, através dos processos de humanização e pelas garantias processuais penais,

“[...] influenciada pelos pressupostos do direito natural, este mesmo direito que fora

maturado com as influências dos gregos, com o pragmatismo romano e as doutrinas

do evangelho cristão” (LEAL, 1997, p. 28).

Portanto entende-se que durante a Idade Média, pouco ou quase nada

aconteceu de relevante no plano dos Direitos Humanos. Pelo menos até 1215, com

a Carta Magna.

A idéia de direitos humanos há muito tempo já existia na Europa, porém costuma-se afirmar que foi com o Rei John Landless, da Inglaterra, e sua Magna Carta (Great Charter, 1215) que surgiu o embrião do que seriam os Direitos Humanos. Não que esse documento tratasse especificamente disso, mas havia menções à liberdade da Igreja em relação ao Estado (embora de maneira nenhuma consagrasse a tolerância religiosa) e à igualdade do cidadão perante a lei. Com efeito, o parágrafo 39 declarava: “Nenhum homem livre poderá ser preso, detido, privado de seus bens, posto fora da lei ou exilado sem julgamento de seus pares ou por disposição da lei”. O Rei John foi pressionado a assinar a Carta Magna, para evitar as constantes violações às leis e aos costumes da Inglaterra. A partir de então, a sucessão hereditária de bens foi permitida a todos os cidadãos livres, assim como ficou proibida a cobrança de taxas excessivamente altas (BRAYNER; LONGO; PEREIRA, 2006).

Até o surgimento da Idade Média e com ela seus teóricos, as noções de

direitos e direitos fundamentais estão limitados pelo contexto de seu período,

marcado segundo Leal (1997), “[...] pela transição do poder, das mãos

centralizadoras do Rei para seu séqüito e para uma nova classe social: a burguesia”

(p. 30). Os conceitos de liberdade e de igualdade são forjados nesta realidade,

buscando contemplar os interesses políticos e econômicos do período.

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Em 20 de junho de 1776, “[...] a convenção de Virgínia sanciona o que se

pode considerar como a primeira declaração de direitos em sentido moderno” (LEAL,

1997, p. 32), expressando:

[...] que todos os homens são por natureza igualmente livres e independentes, possuindo certos direitos inerentes, dos quais, quando ingressam no estado social, não podem, por nenhum contrato, privar-se ou deles abrir mão, como o gozo da vida e da liberdade, os meios de adquirir e possuir a propriedade, perseguir e obter a felicidade e segurança; afirma a separação dos poderes como premissa fundamental de organização do Estado; a liberdade de imprensa; o direito do acusado de conhecer a causa de sua detenção e ser julgado rapidamente por juízes imparciais; que nenhum homem pode ser privado de sua liberdade, senão segundo a lei do país ou segundo o juízo de seus pares (LEAL, 1997, p. 32-33).

Segundo Comparato (1999), esta declaração constitui o registro de

nascimento dos Direitos Humanos na história. Este autor também afirma que esta

declaração

[...] é o reconhecimento solene de que todos os homens são igualmente vocacionados, pela sua própria natureza, ao aperfeiçoamento constante de si mesmo. A “busca da felicidade”, repetida na Declaração de Independência dos Estados Unidos, duas semanas após, é a razão de ser inerentes á própria condição humana (COMPARATO, 1999, p. 38).

A declaração de independência dos Estados Unidos ocorre em 04 de julho

de 1776, contendo além dos direitos já mencionados na declaração de Virgínia,

outros, como o de insurreição contra governos que abusem de seus poderes (LEAL,

1997).

Comparato (1999), afirma que treze anos depois, no ato de abertura da

Revolução Francesa, a mesma idéia de liberdade e igualdade dos seres humanos é

reafirmada e reforçada: “os homens nascem e permanecem livres e iguais em

direitos” (DECLARAÇÃO DOS DIREITOS DO HOMEM E DO CIDADÃO, 1789, art.

1º apud COMPARATO, 1999, p.38). Faltou apenas o reconhecimento da

fraternidade, o que só veio acontecer com a Declaração Universal dos Direitos

Humanos de 1948.

A Declaração Francesa é abstrata e universalizante, sustentada por um tripé

ideológico, segundo Jacques Robert (apud BRAYNER; LONGO; PEREIRA, 2006):

[...] intelectualismo, pois a afirmação de direitos imprescritíveis do homem e a restauração de um poder legítimo baseado no consentimento popular

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foram uma operação de ordem puramente intelectual que se desenrolaria no plano unicamente das idéias, é que para os homens de 1789, a Declaração dos direitos era, antes de tudo, um documento filosófico e jurídico que deveria anunciar a chegada de uma sociedade ideal; universalismo, na acepção de que os princípios enunciados no texto da Declaração pretendem um valor geral que ultrapassa os indivíduos do país, para alcançar um valor universal; individualismo, porque só consagra as liberdades dos indivíduos, não menciona a liberdade de associação nem a liberdade de reunião, preocupa-se em defender o indivíduo contra o Estado. É por isso, o documento marcante do Estado Liberal, e que serviu de modelo às declarações constitucionais de direitos do século passado e deste (ROBERT, 1992 apud BRAYNER; LONGO; PEREIRA, 2006. Sem grifos no original).

A Declaração de 1789 proclamava, através dos seus dezessete artigos, os

fundamentos da liberdade, da igualdade, da propriedade, da legalidade e “[...] as

garantias individuais liberais que ainda se fazem presentes nas declarações

contemporâneas” (BRAYNER; LONGO; PEREIRA, 2006).

A Constituição Francesa de 03/09/1791 foi a primeira a conter uma enumeração dos direitos individuais e suas garantias. Porém, a doutrina política contida nessas declarações achava-se estreitamente ligada ao processo econômico e às suas conseqüências sociais. Trazendo para as Constituições as teses de Adam Smith, o direito público confundia proteção aos interesses sociais com o progresso da coletividade. Interesses decorrentes da organização econômica eram considerados no mesmo plano que atributos inerentes à personalidade. Em conseqüência, os direitos ligados à propriedade privada ocupavam lugar conspícuo entre as liberdades individuais. Não obstante, já estava em curso o processo inexorável de difusão das declarações de direitos pelo continente europeu, através das diversas constituições escritas que começaram a surgir a partir daquele momento, como a Constituição da República Germânica de Weimar (1919-1933) (BRAYNER; LONGO; PEREIRA, 2006).

Todavia, o reconhecimento dos Direitos Humanos de caráter econômico e

social só se deu, segundo Comparato (1999), através dos movimentos socialistas

que se iniciaram na primeira metade do século XIX em que, ao contrário do

capitalismo, onde o titular dos direitos era um ser humano abstrato; no socialismo os

beneficiários destes direitos passaram a ser os grupos sociais esmagados pela

miséria, a doença, a fome e a marginalização.

1.1 DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS

A Declaração Universal dos Direitos Humanos, tal como é conhecida nos

dias de hoje, teve o início de sua promulgação durante a reunião de 16 de fevereiro

de 1946 do Conselho Econômico e Social das Nações Unidas, em que ficou

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acordado que a Comissão de Direitos Humanos, a ser criada, deveria desenvolver

seus trabalhos em três etapas (COMPARATO, 1999).

A primeira destas atividades a serem desenvolvidas seria a criação de uma

Declaração de Direitos Humanos, conforme o acordo com o disposto no artigo 55 da

Carta das Nações Unidas. Logo após dever-se-ia produzir um “[...] documento

juridicamente mais vinculante do que uma mera declaração” (COMPARATO, 1999,

p. 208), devendo ser este documento um tratado ou convenção internacional. E por

fim, segundo Comparato (1999), seria necessário criar uma maneira adequada para

assegurar o respeito aos Direitos Humanos e tratar os casos de sua violação.

A primeira etapa foi concluída pela Comissão de Direitos Humanos em 18 de junho de 1948, com um projeto de Declaração Universal de Direitos Humanos, aprovado pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro do mesmo ano. A segunda etapa somente se completou em 1996, com a aprovação de dois Pactos, um sobre direitos civis e políticos, e outro sobre direitos econômicos, sociais e culturais (COMPARATO, 1999, p. 208).

Coelho (2003) aponta que não há como negar o fato de que a partir das

atrocidades cometidas durante o período da Segunda Guerra consagrou-se a idéia

de que era necessário

[...] que se agisse politicamente para a preservação e respeito a alguns valores essenciais a sobrevivência da raça humana como tal. Tal guerra gerou insegurança quanto aos rumos da humanidade, impondo o questionamento sobre o que o homem estava a fazer consigo mesmo, sobre para que estavam servindo os Estados (COELHO, 2003, p. 66).

A Declaração Universal dos Direitos Humanos surgiu então neste contexto,

centrando-se na universalidade e individualidade, a qual passou então a conduzir os

“[...] Estados contemporâneos a um papel de garantidor das condições humanas de

existência no mundo” (COELHO, 2003, p. 66). Isto pode ser percebido na leitura de

seu preâmbulo (anexo), que foi redigida como acima mencionado sob o impacto das

atrocidades cometidas durante a Segunda Guerra Mundial.

Inegavelmente, a Declaração Universal de 1948, com seus 30 artigos,

representa a culminância de um processo ético que iniciou com a Declaração de

Independência dos Estados Unidos e com a Declaração dos Direitos do Homem e

do Cidadão, da Revolução Francesa. Todavia muitas são as críticas feitas aos

redatores da Declaração dos Direitos do Homem: “[...] a maioria delas se refere ao

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fato da inexistência de uma base teórica homogênea ao seu conteúdo” (LEAL, 1997,

p. 87).

1.2 DIREITOS HUMANOS E CONTEMPORANEIDADE

Segundo Alves (2006), embora freqüentemente violados, são, hoje em dia,

amplamente conhecidos os direitos estabelecidos na Declaração:

[...] à vida, à liberdade, à segurança pessoal; de não ser torturado nem escravizado; de não ser detido ou exilado arbitrariamente; à igualdade jurídica e à proteção contra a discriminação; a julgamento justo; às liberdades de pensamento, expressão, religião, locomoção e reunião; à participação na política e na vida cultural da comunidade; à educação, ao trabalho e ao repouso; a um nível adequado de vida, e a uma série de outras necessidades naturais, sentidas por todos e intuídas como direitos próprios por qualquer cidadão consciente (ALVES, 2006).

Exatamente ao proclamar os Direitos Humanos para todas as pessoas,

estabelecendo-os como uma meta a ser atingida por todos os povos e todas as

nações, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, afirma Arzabe e Graciano

(2006), se manifesta por um lado como uma construção que vem abrir o espaço para

o tratamento universalizante das questões relacionadas aos Direitos Humanos e às

suas violações, e por outro, abre caminho para uma vasta área de discussão sobre a

real possibilidade de execução de seus artigos (COELHO, 2003).

Após seus 58 anos de existência, diversas são as promessas não cumpridas,

nos mais diversos âmbitos. O clamor pelos Direitos Humanos se faz ainda ouvir em

“sociedades que atingiram elevados níveis de desenvolvimento econômico e social”

(OLIVEIRA, 2003, p. 07). Em países como o Brasil, Oliveira (2003) afirma que este

clamor é ainda mais contundente, pois a violência em diversas maneiras – “[...] fome,

insuficiência de serviços públicos de saúde, educação e segurança, entre outras

carências”(OLIVEIRA, 2003, p. 07) – demonstra que o homem não foi alçado a

elemento central da sociedade ou ao fim a que se objetiva o desenvolvimento

econômico.

[...] tudo o que se investe no social, no ser humano, parece ser um gasto não rentável, um disparate que se deve evitar e, com este pensamento neoliberal, estão sendo desmontadas e desintegradas políticas, instituições e programas sociais (MÁSPERO, 1994 apud OLIVEIRA, 2003, p. 07).

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Coimbra (2000) citando Deleuze (1992) afirma que os Direitos Humanos –

desde suas gêneses – têm servido para levar aos subalternizados a ilusão de

participação

[...] de que as elites preocupam-se com o seu bem estar, de que o humanismo dentro do capitalismo é uma realidade e, com isso, confirma-se o artigo primeiro da Declaração de 1948: “todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos”. Entretanto, sempre estiveram fora desses direitos à vida e à dignidade os segmentos pauperizados e percebidos como “marginais”: os “deficientes” de todos os tipos, os “desviantes”, os miseráveis, dentre muitos outros. A estes, efetivamente, os direitos humanos sempre foram – e continuam sendo – negados, pois tais parcelas têm sido produzidas para serem vistas como “sub-humanas”, como não pertencentes ao gênero humano. Não há dúvida, portanto, que esses direitos – proclamados pelas diferentes revoluções burguesas, contidos nas mais variadas declarações - têm tido um claro conteúdo de classe. Os excluídos de toda ordem nunca fizeram parte desse grupo privilegiado que teve, por todo o século XIX e XX, seus direitos respeitados e garantidos. Ou seja, foram e continuam sendo defendidos certos tipos de direitos, dentro de certos modelos, que terão que estar e caber dentro de certos territórios bem marcados e delimitados e dentro de certos parâmetros que não poderão ser ultrapassados (DELEUZE, 1992 apud COIMBRA, 2000, p. 141-142).

Todavia, existem fatores que devem também nos alertar no sentido positivo

da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Leal (1997) afirma que os Direitos

Humanos hoje apresentam-se [...] como uma questão filosófica e política. Isto quer dizer que as condições de possibilidade destes direitos estão diretamente ligadas à forma com que as sociedades contemporâneas os encaminham, delimitam e protegem, frente às instituições jurídicas e políticas existentes (LEAL, 1997, p. 68).

Neste sentido também é necessário pensar os Direitos Humanos resgatando

uma discussão sobre os pressupostos basilares, as “[...] formas de governo e as

regras que estabelecem quem está autorizado a tomar as decisões coletivas e com

quais procedimentos” (LEAL, 1997, p. 68). Sendo assim pode-se concluir

[...] paradoxalmente, que os direitos humanos são pervertidos no exato momento em que se tornam objeto de tratamento jurídico, pois, concebidos historicamente como um mecanismo de proteção dos cidadãos livres contra o arbítrio dos governantes absolutistas e contra os abusos do Estado, sob a forma de censura e tortura, eles são esvaziados na medida em que é o próprio Estado que os regulamenta. Talvez a regra clássica dos freios e contrapesos de Montesquieu, tomada por uma cidadania emergente, seja uma das formas de se fazer com que as garantias asseguradas a esses direitos sejam eficazes na sua totalidade (LEAL, 1997, p. 154-155).

Dessa forma, ainda segundo o autor

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[...] encontra-se aqui o grande dilema dos direitos humanos em sociedades altamente diferenciadas e com um tecido social desintegrado, como é o caso do Brasil, fazendo com que se questione de que maneira é possível deixar o campo do formalismo político e jurídico, cuja vagueza e ambigüidade desempenham o papel pragmático de viabilizar a comunicação entre indivíduos, grupos e classes antagônicas, e passar para uma ação efetiva, em que as leis sobre tais direitos, ao mesmo tempo em que reconheçam as prerrogativas civis e políticas individuais, também atendam as demandas de massas marginalizadas, aplacando injustiças e oportunidades a construção de um espaço de reforma das estruturas socioeconômicas vigentes (LEAL, 1997, p. 155).

Assim, no Brasil, os Centros de Direitos Humanos são instâncias que

defendem o cumprimento dos Direitos Humanos. Estes centros se congregam no

Movimento Nacional de Direitos Humanos, que é definido em sua página eletrônica

como uma organização da sociedade civil sem fins lucrativos, democrático,

ecumênico, supra-partidário, presente em todo o país, contando com mais de 400

entidades filiadas. Fundado em 1982, o Movimento Nacional dos Direitos Humanos

constitui-se hoje na principal articulação nacional de luta e promoção dos direitos

humanos.

1.3 PSICOLOGIA E DIREITOS HUMANOS

Segundo Coimbra (2000), o que fica evidente em se tratando dos

movimentos relacionados aos Direitos Humanos é que as diferentes práticas sociais,

em diferentes momentos da história,

[...] vão produzindo diferentes ‘rostos’, diferentes ‘fisionomias’; portanto, diferentes objetos, diferentes entendimentos do que são os direitos humanos. Estes, produzidos de diversas formas, não têm uma evolução ou uma origem primeira, mas emergem em certos momentos, de certas maneiras bem peculiares. Devem ser, assim, entendidos não como um objeto natural e a-histórico, mas forjados pelas mais variadas práticas e movimentos sociais (COIMBRA, 2000, p. 142).

Dessa forma, deve-se entender o homem como um ser histórico, um ser

constituído no seu movimento ao longo do tempo, pelas relações sociais e culturais

engendradas pela humanidade (BOCK, 2002). Nesse mesmo sentido, Coimbra

(2000) afirma que no lugar de pensar os Direitos Humanos enquanto

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[...] essência imutável e universal do homem poderíamos, através de outras construções, garantir e afirmá-los enquanto diferentes modos de sensibilidade, diferentes modos de viver, existir, pensar, perceber, sentir; enfim, diferentes modos e jeitos de ser e estar neste mundo (COIMBRA, 2000, p. 142).

Entretanto, estas maneiras de ver a vida ainda são em sua grande maioria

entendidas como estando fora desses Direitos Humanos, “[...] pois não estão

presentes nos modelos condizentes com a essência do que tem sido produzido

como humano” (COIMBRA, 2000, p. 142). Então surge a afirmação de que a luta

pelos Direitos Humanos é uma espécie de conservadorismo, de inquietação, que

percebemos, toma corpo atualmente entre muitos críticos do capitalismo.

Reafirmamos que, se não entendemos esses direitos como um objeto natural, obedecendo a determinados modelos que lhes seriam inerentes, podemos produzir outros direitos humanos: não mais imutáveis, universais, absolutos, eternos, contínuos e evolutivos. Teríamos ao contrário, a afirmação de direitos locais, descontínuos, fragmentários, processuais, em constante movimento e devir, provisórios e múltiplos como as forças que se encontram no mundo (COIMBRA, 2000, p. 146).

Deve-se, dessa forma, entender que só através da força dos movimentos

sociais organizados é que este quadro poderá mudar. “É no nível das práticas

cotidianas, micropolíticas, que podem estar as respostas para tais impasses”

(COIMBRA, 2000, p. 146). A reinvenção de novas maneiras de ser, de estar, de

sentir e de viver neste mundo, isto é, o processo de subjetivação é o que poderá

fortalecer e expandir as práticas, e os movimentos que visam o contra-ataque das

políticas tradicionais, e dessa forma afirmar os Direitos Humanos como direitos de

todos, em especial dos miseráveis de hoje (COIMBRA, 2000, p. 146).

Partindo dos pressupostos apontados até aqui, de que forma a Psicologia

poderia contribuir no que tange os Direitos Humanos?

Para Coimbra (2000) é necessário entendermos a Psicologia, assim como a

Política, não em cima desses modelos hegemônicos,

[...] mas como produções históricas, como territórios não separados, mas que se complementam e se atravessam constantemente, poderemos encarar nossas práticas não como neutras, mas como implicadas no e com o mundo (COIMBRA, 2000, p. 147).

Portanto, esta implicação aponta para o lugar que o profissional ocupa nas

relações sociais em geral e não apenas no âmbito da intervenção que está

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realizando, “[...] os diferentes lugares que ocupa no cotidiano e em outros locais de

sua vida profissional; em suma, os lugares que ocupa na História” (COIMBRA, 2000,

p. 147).

Estar implicado (realizar ou aceitar a análise de minhas próprias implicações) é, ao fim de tudo, admitir que eu sou objetivado por aquilo que pretendo objetivar: fenômenos, acontecimentos, grupos, idéias, etc, Com (sic) o saber científico anulo o saber das mulheres, das crianças, dos loucos – o saber social, cada vez mais reprimido como culpado e inferior (LOURAU, 1997, apud COIMBRA, 2000, p. 147).

Ainda, segundo Lourau (1977) citado por Coimbra (2000), é necessário que

se encontrem formas de analisar nossas implicações para que, em quaisquer

situações possíveis, possamos nos situar nas relações de classe, nas redes de

poder, em vez de nos fixarmos, e permanecermos numa posição chamada de

científica, objetiva e neutra.

Assim, se entendemos os objetos, saberes e sujeitos como produções históricas, advindos das práticas sociais; se aceitamos que os especialismos técnico-científicos que emergem como a divisão social do trabalho no mundo capitalístico têm como função a produção de verdades e a desqualificação de muitos outros saberes que se encontram neste mundo; se entendemos como importante em nossas práticas cotidianas a análise de nossas implicações, assinalando o que nos atravessa, nos constitui e nos produz, e o que constituímos e produzimos com essas mesmas práticas, negaremos as dicotomias. Articularemos Psicologia, Política e Direitos Humanos e entenderemos uma série de outras questões: que nossas práticas produzem efeitos poderosíssimos no mundo, sendo portanto, políticas. Assumir tais desafios é estabelecer rupturas com o pensamento hegemônico no Ocidente, é romper com as “verdades” que estão no mundo e vê-las como temporárias, mutantes, provisórias (COIMBRA, 2000, p. 147).

O II Seminário Nacional de Psicologia e Políticas Públicas, em maio de

2003, na cidade de João Pessoa, tratou do protagonismo da Psicologia enquanto

promotora de saúde nas questões sociais que se mostram tão urgentemente

necessárias de intervenção. A conferência Protagonismo Social da Psicologia na

Defesa dos Direitos Humanos apontou que direitos humanos é uma questão de

militância, de política, que o psicólogo deve ser defensor dos direitos humanos como

cidadão, engajado na defesa dos direitos da vida, nas suas práticas cotidianas.

Destaca-se ainda que o Conselho Federal de Psicologia e os Regionais possuem

comitês de Direitos Humanos, que conduzem importantes debates e avanços da

Psicologia brasileira nesta área. Há a necessidade de discussão crítica e reflexiva

desde a academia e no exercício profissional, pois os psicólogos têm, muitas vezes,

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a idéia de senso comum de direitos humanos, tornando-os algo a parte da prática

profissional.

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2 MEDIAÇÃO

Após a discussão sobre os Direitos Humanos e as implicações da Psicologia

no que tange ao respeito às pessoas, partimos para tentar entender um pouco mais

as possibilidades que se colocam à nossa ciência de contribuição à superação dos

quadros contraditórios acerca dessa questão que mostra-se tão cara aos saberes

que produzimos. Para tanto, buscamos discutir um termo conhecido e amplamente

difundido na Psicologia: mediação. Primeiramente afirma-se que a profusão deste

conceito não pode ser entendida como o estabelecimento de um campo consensual

em torno de uma única forma de ver e conceber o homem e o mundo, isto é, o uso

da palavra mediação pode estar associado a diversas concepções epistemológicas,

até mesmo antagônicas, e, portanto, dependendo do seu emprego, os saberes e

fazeres psicológicos variarão.

Esta diversidade na utilização do termo, entende-se, é representante da

característica própria da Psicologia de ser um campo científico que se embasa em

diversas linhas teóricas, que resultam em diferentes metodologias de intervenção

sobre a realidade. Sendo assim, de início, deve-se levar em conta que qualquer

trabalho proposto em um modelo de mediação deve partir de uma análise

pormenorizada das implicações do uso de tal terminologia.

Dessa forma, nossa intenção neste capítulo, é fazer uma breve leitura

acerca das utilizações da palavra mediação como representante de determinadas

formas de intervenção da Psicologia, para, mesmo cientes do perigo de deixarmos

de lado aspectos importantes das teorias e dos trabalhos que subjazem essas

intervenções, abordarmos a nossa prática de estágio no CDH sob o olhar de uma

forma específica de entender a mediação.

2.1 PSICOLOGIA JURÍDICA E MEDIAÇÃO

Iniciamos nossas análises abordando o conceito encontrado no dicionário

desta palavra, que é:

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[...] ato ou efeito de mediar [...] intervenção, intercessão, intermédio [...] relação que se estabelece entre duas coisas, ou pessoas, ou conceitos, etc. [...] intervenção com que se busca produzir um acordo [...] processo pacífico de acerto de conflitos internacionais, no qual (ao contrário do que se dá na arbitragem) a solução é sugerida e não imposta às partes interessadas (FERREIRA, 2004, p. 1299).

Quanto ao verbo mediar, aponta-se que é o ato de “intervir como árbitro ou

mediador (...) ficar no meio de dois pontos; distar” (FERREIRA, 2004, p. 1299).

Partindo desse entendimento, buscamos entender as formas como a

mediação vem sendo representada nas práticas da Psicologia. Primeiramente,

chama a atenção o emprego que se faz desta palavra no dicionário em termos das

ciências do Direito. De fato, uma das áreas da Psicologia que se apropria deste

conceito é a Psicologia Jurídica (que será aprofundada em outra seção), salientando

o papel do psicólogo como uma pessoa apta a mediar conflitos pela natureza de sua

formação.

França (2004) citando Popolo (1996) afirma que a Psicologia Jurídica é uma

área específica de nossa ciência e, portanto, deve produzir e se embasar em

conhecimentos de uma perspectiva de homem e mundo específica. Porém, “[...]

pode-se valer de todo o conhecimento produzido pela ciência psicológica” (FRANÇA,

2004, p. 74).

Esta autora (2004) ainda destaca que Popolo (1996) aponta duas principais

características da Psicologia em trabalho junto com o Direito. A primeira

[...] segue o modelo de subordinação. Assim, a Psicologia jurídica procura tão-somente atender a demanda jurídica como uma Psicologia aplicada cujo objetivo é contribuir para o melhor exercício do Direito (POPOLO, 1996, p. 15 apud FRANÇA, 2004, p. 77).

A segunda característica diz respeito à complementaridade.

a Psicologia jurídica como ciência autônoma produz conhecimento que se relaciona com o conhecimento produzido pelo Direito, incorrendo numa interseção. Portanto há um diálogo, uma interação, bem como haverá diálogo com outros saberes como da Sociologia, Criminologia, entre outros (FRANÇA, 2004, p. 77).

Dessa forma, a Psicologia Jurídica utiliza-se do conceito já citado de

mediação para designar uma forma nova de trabalho da justiça na qual as partes

devem assumir a responsabilidade por encontrar a dissolução de seu conflito, tendo

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como facilitador desse processo o mediador, a quem atribui-se o papel de terceiro

imparcial (FRANÇA, 2004).

Segundo Sales (2006) em texto publicado no Dicionário de Direitos

Humanos (on-line),

a mediação representa uma forma consensual de resolução de controvérsias, na qual as partes, por meio de diálogo franco e pacífico, têm a possibilidade, elas próprias, de solucionarem seu conflito, contando com a figura do mediador, terceiro imparcial que facilitará a conversação entre elas (SALES, 2006).

Esta autora (2003) ainda aponta que,

o mediador não interfere, não impõe e não intercede em favor das partes, mas apenas facilita o processo de mediação, estimulando-as a descobrir a melhor opção para a resolução do conflito e, as encontra-la, encerra a mediação por meio de acordo em que as partes devem sair satisfeitas (SALES, 2003, p. 226).

Portanto, temos aqui destacada uma forma de entender a mediação que diz

respeito a um novo aparato teórico e técnico de intervenção da Psicologia. Contudo,

a história nos revela que as soluções de conflitos entre grupos humanos se efetivaram, de forma constante e variável, através da mediação. Culturas judaicas, cristãs, islâmicas, hinduístas, budistas, confucionistas e indígenas, têm longa e efetiva tradição em seu uso. Trata-se de uma prática antiga, embora seja comum ser representada como um novo paradigma, uma nova metodologia de resolução de conflitos (SCHNITMAN, 1999 apud MENDONÇA, 2005, p. 21).

Nesse sentido, não somente porque a Psicologia é considerada uma ciência

nova que se entende a mediação como uma nova área de atuação no campo

psicológico, mas porque segundo Mendonça (2005), apenas no fim século XX

(especialmente os últimos 25 anos) que esta prática obteve reconhecimento

institucional como uma abordagem profissional.

No Brasil, essa forma de trabalho do sistema jurídico é ainda fonte de

estudos por parte do poder legislativo, que observa o projeto de Lei nº. 4.827/98,

visando institucionalizar a disciplina de mediação para prevenção e solução de

conflitos. O modelo que se apresenta nesse projeto de Lei está embasado naquele

adotado especialmente no Canadá e em países da Europa, entretanto, tal

metodologia foi adequada para atender a realidade brasileira e em muitos estados a

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mediação faz parte das possibilidades de solução de conflitos sugeridas à

população. Esta abordagem visa especialmente desafogar o sistema judiciário na

resolução pacífica de problemas nas áreas do Direito da família, vizinhança, posse,

herança, comércio, consumo, ambiente, etc. (SALES, 2003).

Assim, destaca-se o papel do psicólogo como mediador. Não há instituição

sobre quem pode ou não exercer esse papel, porém algumas especificações devem

ser observadas. Primeiramente, já existem cursos de capacitação para esta função,

contudo, estes ainda carecem de regulamentação e metodologia obrigatória

mínimas. Contudo, entende-se que alguns dos assuntos abordados nesses cursos

se referem à conhecimentos já discutidos em uma graduação de Psicologia, tais

como regras relacionadas à ética, “[...] técnicas de trabalho em grupo, técnicas de

comunicação, técnicas de escuta, relações de poder entre as pessoas” (SALES,

2003, p. 240). Portanto, conforme já apontado, entende-se que pela natureza de sua

formação, o psicólogo é um profissional apto à mediar conflitos.

2.2 PSICANÁLISE E MEDIAÇÃO

Neste momento faz-se necessário abordar outras formas de se entender o

conceito de mediação nas teorias “psi”. Atente-se ao caso da Psicanálise.

Nessa abordagem, atribui-se à mediação o adjetivo de transformadora,

conforme Carneiro (2006) citando Warat (1998). Desta forma,

a mediação transformadora se apresenta [...] como um processo psíquico de reconstrução simbólica do conflito, o conflito é reconstruído simbolicamente pelos envolvidos e é essa reconstrução que possibilita o seu equacionamento e, também, a construção da autonomia daqueles que o reconstroem (CARNEIRO, 2006, p. 1).

Assim, em termos gerais de metodologia, a Psicanálise trabalha com a

mediação sob uma perspectiva muito próxima àquela adotada pela Psicologia

Jurídica em abordagens mais tradicionais, porém, em termos de aparato teórico

observa-se um aprofundamento no que concerne ao papel das partes conflituosas.

É característica conhecida da Psicanálise privilegiar os discursos dos

sujeitos como representação que está para além do manifesto. Nesse sentido, as

pessoas em conflito têm abertura para suas falas, tendo como princípio o

entendimento de que esses sujeitos são capazes de tomar as decisões. É a partir

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desse espaço de escuta que as pessoas passam a escutar a si mesmas e aos

outros (CARNEIRO, 2006 p. 2).

A partir do momento em que o sujeito sente-se competente e chamado a falar e debater, ele fala, mas também escuta, escuta a si mesmo e se reconhece como sujeito de sua história; mas também escuta ao outro, pois esse outro estará falando para ele, para um sujeito, sujeito que antes, sem o reconhecimento do outro, não se sentia sujeito. A fala do outro envolvido na desavença é muito importante para o sujeito, uma vez que significa a fala direcionada a esse sujeito merecedor de fala e de atenção, para esse sujeito competente. Dessa forma, importante também é a escuta dela decorrente, pois o sujeito escuta a alguém que lhe fala, que lhe reconhece enquanto um sujeito dono de sua história (CARNEIRO, 2006, p. 2).

Então, o papel que se atribui ao mediador nesse percurso de transformação

do conflito pela via do discurso manifesto é o da pessoa que “[...] retira do conflito a

pulsão destrutiva” (CARNEIRO, 2006, p. 2). Daí que se atribui, no sentido

psicanalítico da mediação, ao mediador a função de facilitador do processo de

escuta e re-significação do processo de descobrimento dos desejos dos envolvidos

(seus próprios e da outra parte) para além dos aspectos legais a que geralmente são

reduzidos os conflitos humanos no âmbito jurídico.

Nesse processo, tem condições de construir a sua subjetividade ou a sua singularidade, já que se posiciona de forma original através da articulação com o outro sujeito, com o mediador e com toda a gama de agenciamentos coletivos implicados no conflito (CARNEIRO, 2006, p. 6).

Em síntese, entendendo-se a mediação por esse prisma, propiciar-se-á às

partes fugir da comum rotulação estéril que é uma das marcas do positivismo

aplicado às ciências humanas e sociais. Então, os sujeitos, assim como a prática do

Direito, escapam à positivação do fenômeno de interação social. Assim como no

setting terapêutico o analista juntamente com o analisando realiza um trabalho de

fala e escuta (fazer falar e fazer ouvir), o mediador sob essa perspectiva

desencadeia um trabalho de repetição, recordação e elaboração na intenção de re-

significação e reconstrução (CARNEIRO, 2006).

2.3 PSICOLOGIA HISTÓRICO-CULTURAL E MEDIAÇÃO

Uma outra forma de se entender mediação é aquela que encontramos na

Psicologia histórico-cultural. Pautando suas premissas nas formulações marxistas e

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transpondo o método dialético às análises da Psicologia, Vigotski, um dos

precursores desta linha teórica, buscando entender a gênese dos processos

psicológicos, atribui à mediação lugar central no desenvolvimento humano. Porém, a

fim de entender plenamente quais as idéias e conclusões deste autor acerca deste

conceito, faz-se necessário investigar um pouco mais seus estudos.

Primeiramente, salienta-se que se utilizando de suporte na teoria marxista, a

Psicologia Histórico-cultural entende o homem como um ser inerentemente social.

Também, seguindo estes pressupostos, entende-se que aquilo que torna o homem

um ser humano é o trabalho, a capacidade do homem de modificar a natureza e

utilizá-la para seus fins. Este uso que faz da natureza, o homem faz por meio de

instrumentos, ou seja, não apenas intervém no que está dado, mas o modifica e com

isso que já existe, produz outras coisas e com uso destas, modifica a si mesmo –

qualitativamente – dialeticamente.

Figueira (1987), discutindo os textos de Marx afirma que o homem se

constitui como tal através do trabalho:

[...] o homem é produto do seu próprio trabalho. A grande revolução que Marx provocou consistiu em demonstrar que o homem é um ser que se faz - pelo trabalho - um ser humano. Faz-se humano, porém não segundo seus próprios desejos, mas a partir de dadas condições: um ser humano histórico. Tal como se faz - diz Marx - assim o homem é (FIGUEIRA, 1987, p. 03).

Esta é a concepção da abordagem dialética que, para Vigotski (1994)

relendo Engels: “[...] admitindo a influência da natureza sobre o homem afirma que o

homem, por sua vez age sobre a natureza e cria, através das mudanças nela

provocadas, novas condições naturais para sua existência” (p. 80).

Assim, é com base nessa premissa epistemológica que se afirma o homem

como um ser inerentemente social, pois é do contato com o outro que ele tira os

meios de sobrevivência e também é a partir desse contato que ele aprende a ser

humano. Desta forma, temos duas características singulares à humanidade: o

trabalho e a interação social.

Trasladando esse entendimento às investigações acerca do

desenvolvimento infantil, Vigotski e seus companheiros fizeram diversas pesquisas

em laboratórios de Psicologia. Ao confrontar seus resultados com aqueles obtidos

por outros psicólogos contemporâneos seus, Vigotski passou a atribuir à fala o papel

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de instrumento humano – um instrumento de linguagem que é, por sua vez, a

principal ferramenta de sociabilidade do homem – aquilo que lhe possibilita a

interação social.

Segundo Vigotski (1994), na resolução de um problema, a criança que pode

se utilizar da fala atem-se não somente ao caminho direto de resolução, mas

também à outras coisas que circundam o referido problema e que podem ajudar

instrumentalmente.

As crianças com a ajuda da fala, criam maiores possibilidades [...]. Uma manifestação dessa maior flexibilidade é que a criança é capaz de ignorar a linha direta entre o agente e o objetivo. Ao invés disso, ela se envolve em vários atos preliminares, usando [...] métodos instrumentais ou mediados (indiretos) (VIGOTSKI, 1994, p. 35).

Pautando-se nas observações deste autor, torna-se possível fazer as

primeiras correspondências entre aquilo que a Psicologia Histórico-cultural traça

como caminho no desenvolvimento psíquico (entendendo que este desenvolvimento

é incessante) e as práticas, em termos de mediação, propiciadas por nosso estágio

de Psicologia em um Centro de Direitos Humanos.

Observa-se que, através da fala, a pessoa pode primeiramente planejar e

depois executar uma ação. Este planejamento passa pela avaliação de

interlocutores em quem se deposita confiança técnica e profissional. Sendo assim,

ao falar, a pessoa coloca-se fora de si e torna-se sujeito e objeto de seu

comportamento, porque nesse movimento lhe é possibilitado analisá-lo. Desta forma,

quando as pessoas nos procuram no Centro de Direitos Humanos e lhes

concedemos espaço de fala, elas passam a agir com menos impulsividade. Segundo

Vigotski (1994):

a criança que usa a fala divide sua atividade em duas partes consecutivas. Através da fala, ela planeja como solucionar o problema e então executa a atividade visível. A manipulação direta é substituída por um processo psicológico complexo através do qual a motivação interior e as intenções, postergadas no tempo, estimulam o seu próprio desenvolvimento e realização (p. 35).

E continua observando que, quando as crianças percebem que não são

capazes de resolver um problema por si mesmas “[...] dirigem-se a então a um

adulto e, verbalmente descrevem o método que, sozinhas, não foram capazes de

colocar em ação” (VIGOTSKI, 1994, p. 37).

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Então, o que fazemos é proporcionar às pessoas que estão sem norte, como

as crianças frente a algum desafio aparentemente insuperável, espaço para a fala

que é por si só a primeira forma de mediação. Nesse sentido, a primeira atividade

direta de mediação diz respeito à passagem de uma “fala egocêntrica” à fala social,

isto é, da busca por resolução de conflitos sem espaço para uma discussão a um

movimento que considere alternativas que podem ser descobertas no contato com o

outro. Esta fala social, portanto, pressupõe que em um primeiro momento, a

linguagem que já se dá de forma mediada, é passiva, porém em seu segundo

estágio torna a passividade em atividade de busca pelo outro (VIGOTSKI, 1994).

Em síntese, o que se entende na Psicologia Histórico-cultural por linguagem

(onde se inclui não somente a fala) é que esta somada a significação dos objetos e

artefatos culturais – por meio da mediação cultural, é que compõe a primeira forma

de mediação e “a seguir, toda aprendizagem será mediada pela linguagem”

(VIGOTSKI, 1994, p. 43) – dialeticamente.

Aqui novamente cabe citar a prática de nosso estágio. O sujeito que procura

ajuda do CDH o faz primeiramente de forma mediada por si mesmo, sendo que é por

meio da linguagem (os significados sociais atribuídos ao trabalho desenvolvido no

CDH mais o ato de se comunicar conosco) que busca a resolução para seu

problema. Ele já planejou o caminho para o desfecho de sua situação, mesmo que

não verbalize. A ação de estabelecer o contato com nosso estágio é expressão de

que há um planejamento e que sozinha a pessoa não consegue colocá-lo em

prática. Com efeito, a fala torna-se a via de acesso ao entendimento mais amplo das

questões que circundam uma situação social, e sendo assim, em conjunto com a

ação que visa sanar o conflito (inerente ao sujeito humano a quem se aplica o

princípio da dialética) torna-se a forma caracteristicamente humana de

comportamento social. É importante destacar que

o momento de maior significado no curso do desenvolvimento intelectual, que dá origem as formas puramente humanas de inteligência prática e abstrata, acontece quando a fala e a atividade prática, então duas linhas completamente independentes de desenvolvimento convergem (VIGOTSKI, 1994, p. 33).

Aqui, percebe-se uma ligação entre os conceitos de mediação tratados

anteriormente, tanto no campo da Psicologia Jurídica, quanto no campo da

Psicanálise, com a forma de entendimento que se tem deste termo na Psicologia

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Histórico-cultural. Há diferenças que não podem ser ignoradas, porém é possível

traçar um paralelo que nos leve ao encontro das práticas desenvolvidas em nosso

estágio. Atentando para o fato de que nas duas primeiras seções desse capítulo a

mediação é tida como conceito que representa uma determinada técnica ou conjunto

de técnicas institucionalizadas que são empregadas na resolução de conflitos

sociais, mas quase que exclusivamente no âmbito jurídico. Faz-se necessário

recortar aos objetivos de nossa análise, as teorizações que mais se aproximam do

entendimento histórico-cultural de mediação, que é aquele que observamos, se

aplica às nossas práticas de estágio. Essa aproximação é possível uma vez que este

estágio é uma proposta de assistência conjunta de Psicologia e de Direito a pessoas

de baixa renda que necessitem de apoio em situação de vulnerabilidade.

Tomando como base as palavras de Vigotski (1994) acima discutidas,

entende-se que o mediador está para além de uma pessoa que atuará como um

terceiro neutro na resolução de um conflito. A neutralidade, caso caiba nesse

momento uma crítica, é inclusive, em termos da Psicologia Histórico-cultural, algo

inexistente, uma convenção impossível de se alcançar e incompatível com o

entendimento de que o homem se constitui histórica e socialmente, pois, a

neutralidade ignora a presença da história individual no contexto da atividade social.

Assim, o mediador pode ser mais do que uma pessoa, pode ser a fala, os

significados, o próprio problema. A mediação não tem fim, somos mediados

constantemente pelo contato social; aprendemos constantemente e o simples fato

de se colocar disponível à busca do outro torna ao estagiário do CDH um mediador.

Então, na tentativa de entender os trabalhos desenvolvidos em nosso

estágio e seus objetivos à luz das discussões sobre mediação, afirmamos que

buscamos mediar práticas frente às questões sociais que se colocam ao serviço de

atendimento psicológico disponibilizado por este projeto de assistência jurídica e

psicológica do CDH – a ser discorrido adiante – com vistas à emancipação dos

atores sociais que apresentam as demandas de vulnerabilidade social, buscando

assim novas alternativas para as complexas questões da sociedade contemporânea,

pois, entende-se que essas questões centrais de nossa prática em Psicologia no

CDH dizem respeito a toda uma concepção de Psicologia compromissada com a

sociedade brasileira. Trata-se de um entendimento da Psicologia como sendo

essencialmente social, pois, concordando com Lane (1984):

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esta afirmação não significa reduzir as áreas específicas da Psicologia à Psicologia Social, mas sim cada uma assumir dentro da sua especificidade a natureza histórico-social do ser humano. Desde o desenvolvimento infantil até as patologias e as técnicas de intervenção, características do psicólogo, devem ser analisadas criticamente à luz desta concepção do ser humano – é a clareza de que não se pode conhecer qualquer comportamento humano isolando-o ou fragmentando-o, como se este existisse em si e por si (1984, p. 19).

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3 O CONTEXTO BRASILEIRO

Propormo-nos a mediar práticas frente às questões sociais que se colocam

ao serviço de atendimento psicológico disponibilizado pelo Projeto de Assistência

Jurídica e Psicológica (PAS-JP), do Centro de Direitos Humanos Maria da Graça

Bráz, em Joinville (CDH), com vistas à emancipação dos atores sociais que

apresentam as demandas de vulnerabilidade social, buscando assim novas

alternativas para as complexas questões da sociedade contemporânea, implica em

algumas reflexões acerca do contexto que o demanda: a realidade brasileira.

Ainda que se reconheça os perigos de uma condensação demasiada de

todos os aspectos desta realidade, especialmente quando propomo-nos a um

resgate histórico, pois elementos importantes poderão ser deixados à margem, faz-

se, à guisa de contextualização, uma síntese muito breve da história deste país, que

permita uma visão panorâmica do processo, reconhecendo-se que isto não irá

esgotar o assunto. No entanto, mesmo localizando essas limitações, a opção em

realizar tal contextualização advém da procura de tentar compreender um pouco

quais são os fatores que pesaram na construção de certos cenários contemporâneos

encontrados em nossa prática de estágio no PAS-JP: a violência, a vulnerabilidade e

a exclusão social. Sabemos que os vários determinantes históricos destas questões

não ocorrem isoladamente de um determinado tempo ou contexto social.

Segundo Relatório de Desenvolvimento Humano (RDH) do PNUD

(Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), o Brasil ocupa o 69º lugar

no ranking mundial (numa lista de 177 países e territórios) no quesito Índice de

Desenvolvimento Humano. Este índice é, conforme a análise deste relatório, a

síntese de quatro indicadores, que são: Produto Interno Bruto (PIB) per capita,

expectativa de vida, taxa de alfabetização de pessoas com 15 anos ou mais de

idade e taxa de matrícula bruta nos três níveis de ensino (PNUD, 2006).

A título de ilustração, cita-se o modo de realização deste cálculo: em

educação, faz-se a relação entre a população em idade escolar e o número de

pessoas matriculadas no ensino fundamental, médio e superior. No caso da renda, o

índice é avaliado a partir do Produto Interno Bruto per capita, ajustado pela paridade

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do poder de compra (dólar PPC, taxa que elimina as diferenças de custo de vida

entre os países). Finalmente, para verificar a longevidade, o PNUD utiliza a

esperança de vida ao nascer (PNUD, 2006).

Todavia, há que se ressaltar que o país, segundo este mesmo relatório, é

campeão em má distribuição de renda: concentração de grandes fortunas com

poucas pessoas e uma quantidade muito grande de pessoas vivendo em situação

de pobreza, denotando “[...] as profundas situações de desigualdade que

caracterizam os actuais padrões de globalização e apanhando os agregados

familiares vulneráveis em ciclos de pobreza” (PNUD, 2006).

Tomando o cuidado de não simplificar exageradamente, pode-se dizer que

este índice é resultado, em parte, da longa história brasileira de exploração e

concentração de renda, desde os tempos de Brasil-colônia. Enquanto ex-colônia

portuguesa, quando o país conquistou sua independência (1822), suas bases

socioeconômicas e políticas estavam calcadas nas grandes propriedades rurais de

monocultura e exportadoras de produtos primários. Calcava-se ainda na utilização

da força de trabalho escrava e na rígida organização social que mantinham

separados brancos proprietários de terras, escravos, homens livres sem terras e

indígenas (ADORNO, 1988, p. 28 apud ADORNO, 2002, p. 84). A organização

política, por sua vez, consistia-se de um regime oligárquico, com pouca organização

político-partidária e incipiente mobilização de grupos subalternos (DONNELL, 1988

apud ADORNO, 2002, p. 85).

Após cerca de seis décadas de duração da estrutura acima descrita (até

1889), que consolidou elites políticas regionais, o cenário brasileiro gradativamente

passou a apresentar mudanças: o eixo econômico, antes localizado na região

Nordeste do país, a partir da produção e exportação de açúcar, paulatinamente

transferiu-se para a região Sudeste, devido a grande produção de café que lá

passou-se a desenvolver, utilizando-se mão-de-obra imigrante da Europa, para este

fim contratada (regime de colonato) e finalmente, em 1889, deu-se a Proclamação

da República (MARTINS, 1971 apud ADORNO, 2002, p. 85).

A partir de então, a sociedade brasileira paulatinamente abandonou seu

perfil agrário-exportador e passou a ingressar na era industrial, com maior

dependência econômica em relação ao mercado externo e comércio

internacionalizado. A partir daí, o que se observa é o contínuo caminhar da

organização social em direção ao abandono das relações hierárquicas estamentais

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pela organização da vida social em classes (constituição do proletariado urbano).

Este período passou a observar um aprofundamento nas situações de

desigualdades regionais e a concentração de riquezas nas mãos dos cafeicultores,

grandes proprietários rurais e a classe que se formava: os empresários industriais.

Começa a surgir revoltas no campo e greves nas cidades (ADORNO, 2002).

Em meados do século XX, grandes complexos industriais começaram a

desenvolver-se na região Sudeste, estimulados pela substituição das exportações,

pela política de subsídios estatais, regulação das atividades econômicas e o grande

protecionismo da indústria nacional. Tal fato incentivou veementemente a

consolidação do capitalismo no país, o grande crescimento econômico de então

(década de 1970), a modernização da infra-estrutura tecnológica e da infra-estrutura

urbana (SANTOS, 1993 apud ADORNO, 2002). Todavia, já em 1980, uma

substancial crise socioeconômica se colocou, com elevadíssimas taxas de inflação e

baixo crescimento. Os governos perceberam que a política de substituição das

exportações não mais cabia, buscando saída na abertura econômica, iniciando um

grande programa de privatizações, integrando a economia do país ao mercado

globalizado (ADORNO, 2002).

O autor (2002) continua, neste resgate histórico, nos ensinando as

conseqüências funestas do tipo de desenvolvimento acontecido no país. As

tendências que apresenta incluem: o crescimento da delinqüência urbana; a

emergência da criminalidade organizada (especialmente voltada ao tráfico

internacional de drogas); violações graves aos direitos humanos; e finalmente, a

explosão de conflitos nas relações intersubjetivas. Todas estas conseqüências estão

permeadas pela violência, tema cuja discussão vem aumentando

consideravelmente, especialmente nas últimas três décadas. Os primeiros debates

voltavam-se especialmente para a violência institucional (na forma do arbítrio do

Estado), pois desde o início da República, há exemplos de trabalhadores das

cidades, pauperizados, sendo vistos como pertencentes às classes perigosas e

consequentemente, passíveis de detenções ilegais, submetimento à tortura e maus

tratos em delegacias. Há que se pontuar que, quando lançou-se, finalmente, os

primeiros olhares preocupados para este tipo de contenção da criminalidade, havia

uma crença de que a criminalidade tinha raízes estruturais, isto é, atribuía-se a

delinqüência ao capitalismo, às estruturas de exploração e dominação e à exclusão,

estabelecendo-se portanto, uma “associação mecânica, por assim dizer, entre

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pobreza e violência” (ADORNO, 2002). Imediatamente, as elites conservadoras

contestaram este argumento, explicando que a violência estava ligada à falência das

políticas retributivas (isto é, na repressão dos crimes e na aplicação rigorosa da lei),

ao invés de estar ligada à falência das políticas distributivas. Este embate de

posicionamentos proporcionou, na seqüência, novos olhares para a questão,

favorecendo a percepção de que a associação mecânica acima citada (violência e

pobreza) trazia mais problemas do que soluções, visto que, ainda que a maioria dos

delinqüentes fosse originária das classes trabalhadoras empobrecidas, a maioria

destes não direcionava-se para a criminalidade. Logo, concluiu-se que o foco no

problema não estava na pobreza, mas na criminalização das pessoas pobres

(ADORNO, 2002).

Patto (1999) complementa:

As diferenças de qualidade de vida entre as classes sempre foram justificadas através de explicações geradas pelos que, em cada ordem social, são considerados competentes para elaborar uma interpretação legítima do mundo e a interpretação tida como verdadeira é a que dissimula e oculta, com maior sutileza, que as divisões sociais são divisões de classes, o que equivale a afirmar sua condição ideológica, aqui entendida como “um conjunto lógico, sistemático e coerente de representações (idéias e valores) e de normas ou regras (de conduta)... cuja função é dar aos membros de uma sociedade divida em classes uma explicação racional para as diferenças sócias, políticas e culturais, sem jamais atribuir tais diferenças à divisão da sociedade em classes” (Chauí, 1981ª, p. 113-114) (PATTO, 1999, p. 75)

Salientando-se que o princípio básico que norteia o Centro de Direitos

Humanos Maria da Graça Braz, contexto da realização deste estágio, é a luta pela

vida, contra todas as formas de violência, faz-se necessário aqui lançarmos um olhar

mais apurado a esta questão: a violência, conforme o subtítulo que segue.

3.1 VIOLÊNCIA

Para abordarmos a questão da violência, apresenta-se aqui alguns conceitos

postulados pela socióloga alemã Hannah Arendt, que tratou sobre o assunto em seu

livro Sobre a Violência (1994). Nesta obra, Arendt diferencia poder de violência,

elucidando cinco conceitos, deixando claro, deste modo, o que é o poder e o que

não pode ser poder. São elas: poder, vigor, força, violência e autoridade. A autora

faz esta distinção entre os cinco conceitos já que, em seu entendimento, distinguir

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apenas poder de violência, seria insuficiente, já que não abarcaria outras dimensões

da realidade, também importantes (PERISSINOTTO, 2004).

Segundo a autora,

poder corresponde à habilidade humana não apenas para agir, mas para agir em concerto. O poder nunca é propriedade de um indivíduo; pertence a um grupo e permanece em existência apenas na medida em que o grupo se conserva unido (ARENDT, 1994, p. 36).

Já o vigor, para esta autora (1994), é entendido como uma entidade

individual, sendo inerente a um objeto ou alguma pessoa, pertencendo ao seu

caráter. Pode se provar a si mesmo na relação com as outras pessoas ou objetos,

entretanto, sendo diverso destas.

Em relação à força, a autora (1994) entende que está ligado ao termo

‘violência’, mas mais utilizado na fala cotidiana. Contudo, ela compreende que este

termo “[...] deveria ser reservado, na linguagem terminológica, às ‘forças da

natureza’ ou ‘à força das circunstâncias’ isto é, deveria indicar a energia liberada por

movimentos físicos ou sociais” (ARENDT, 1994, p. 37).

Quanto à autoridade, Arendt (1994) postula que é colocada em pessoas e

“sua insígnia é o reconhecimento inquestionável por aqueles a quem se pede que

obedeçam; nem a coerção nem a persuasão são necessárias” (ARENDT, 1994, p.

37).

Finalmente, o último conceito e sobre o qual mais nos debruçaremos neste

estudo, a violência, é entendido por Arendt (1994) como tendo um caráter

instrumental,

[...] próxima do vigor, posto que os implementos da violência, como todas as outras ferramentas, são planejados e usados com o propósito de multiplicar o vigor natural até que, em seu último estágio de desenvolvimento, possam substituí-lo (ARENDT, 1994, p. 37).

Entende-se assim, que para Arendt (1994) não é a violência que gera o

poder: “uma das mais óbvias distinções entre poder e violência é a de que o poder

sempre depende dos números, enquanto violência, até certo ponto, pode operar

sem eles, porque se assenta em implementos” (ARENDT, 1994, p. 35). Mais adiante

a autora continua: “poder e violência são opostos; onde um domina absolutamente,

o outro está ausente” (ARENDT, 1994, p. 44).

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Perissinotto (2004) observa que esta definição de poder, de Arendt (1994)

enfatiza quatro aspectos, que são:

primeiro, o poder é um fenômeno do campo da ação humana; não é, portanto, uma “estrutura”, nem se iguala à posse de determinados recursos; segundo, o poder é um fenômeno do campo da “ação coletiva”; terceiro, o poder surge na medida em que um grupo se forma e desaparece quando ele se desintegra, o que reforça a tese de que o poder está ligado a um momento de fundação; por fim,“estar no poder” significa “estar autorizado” pelo grupo a falar em seu nome (PERISSINOTTO, 2004).

Já em relação à violência, Arendt (1994) explica que esta pode ser

justificada por fazer denúncias para a atenção pública, isto é, denuncia a falta do

diálogo e reclamada falta de cidadania. Além disso, pontua-se que a burocratização

da vida pública suscitará uma atração pela violência, visto que neste tipo de

organização social não há ninguém a quem se inquirir, isto é, a quem apresentar

queixas (ROSA; TASSARA, 2004).

Ainda na concepção arendtiana, a violência seria um

fenômeno cultural advindo da tentativa de se “arrancar as máscaras da hipocrisia e da mentira, e da consciência de uma injustiça praticada (SANTOS, 1998, p. 28 apud ROSA; TASSARA, 2004, p. 35).

Assim,

a violência teria um papel retórico a desempenhar, dramatizando queixas e trazendo-as à atenção pública, visando a alcançar objetivos a curto prazo e, assim, operar reformas em uma ordem política dada (SANTOS, 1998, p. 29 apud ROSA; TASSARA, 2004, p. 35-36).

Passar-se-á agora, seguindo os mesmos passos de ROSA; TASSARA

(2004), a lançar um olhar a este caráter emancipatório dado por Arendt (1994) à

violência, contextualizado ao cenário nacional. Todavia, ainda antes disso, pontuar-

se-á as palavras de Perissinotto (2004) acerca da teoria de Arendt sobre poder e

violência, querendo com isso, não apenas reforçar a necessidade de uma adequada

contextualização da realidade brasileira, mas ainda, contribuir, de algum modo, para

a elucidação de que os conceitos teóricos podem sequer se adequar a diferentes

contextos, o que, consequentemente, requer novas reflexões e busca de solução

para os problemas sociais.

Para Perissinotto,

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a terminologia que faz referência aos “dominantes” e “dominados” só pode ser abandonada completamente, em favor de uma outra que fale apenas de consentimento, se o conflito de interesses (aberto ou não) entre grupos sociais (e não entre indivíduos) for inteiramente suprimido da análise. Como diz Steven Lukes, a proposta teórica de Hannah Arendt elimina “o aspecto conflituoso do poder – o fato de que ele é exercido sobre pessoas”, desaparecendo com isto o interesse central em estudá-lo, qual seja, saber como alguns grupos conseguem (ou não) “assegurar a obediência das pessoas superando ou impedindo sua oposição” (Steven Lukes 1976: 31). (...) Não se trata, portanto, de entender as interações políticas apenas em termos de “consentimento” ou apenas em termos de “conflito de interesses”, mas sim de formular conceitos que permitam ao analista conjugar essas duas dimensões essenciais (PERISSINOTTO, 2004, p. 136).

Segundo o entendimento de Alves (1988, apud ROSA; TASSARA, 2004), na

sociedade brasileira este caráter emancipatório acima citado não é visualizado, já

que

o exercício da violência externa e concretamente visual é, não raro, estimulado ou destacado diurnamente, precisamente para banalizá-la e, com isso, embargar ou bloquear o pensamento analítico e o discurso crítico a respeito das bases sociais e difusas onde deitam as verdadeiras raízes da violência externa (ALVES, 1998, p. 251-253 apud ROSA; TASSARA, 2004, p. 36).

Para ilustrar estas peculiaridades, Rosa e Tassara (2004) citam duas

pesquisas realizadas no contexto do sistema judiciário brasileiro. Na primeira delas,

realizada por Adorno (1996 apud ROSA; TASSARA, 2004), o autor analisa o

tratamento dispensado a réus brancos e a réus negros e constata haver indícios de

discriminação racial na Justiça brasileira. Além disso,

réus negros tendem a ser mais perseguidos pela vigilância policial; [...] experimentam maiores obstáculos de acesso à justiça criminal e maiores dificuldades de usufruírem do direito de ampla defesa (ADORNO, 1996, p. 272 apud ROSA; TASSARA, 2004, p. 36).

O segundo estudo apontado pelas autoras (ROSA, 2003 apud ROSA;

TASSARA, 2004) indica que, em uma análise de processos que dizem respeito a

violência contra crianças, juízes desqualificam os atos de violência de pais contra

filhos. Para estas autoras, o discurso jurídico acerca de maus tratos cometido contra

crianças é composto especialmente “[...] de um raciocínio falacioso pautado em

crenças e valores que legitimam a opressão e o poder dos pais, disfarçando o

verdadeiro sentido da violência” (ROSA; TASSARA, 2004, p. 36).

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Chauí (1999 apud ROSA; TASSARA, 2004) discorre acerca dos dispositivos

utilizados para que a violência real fique oculta, conforme segue:

1- um dispositivo jurídico, que localiza a violência apenas no crime contra a propriedade e contra a vida; 2) um dispositivo sociológico, que considera a violência um momento de anomia social, isto é, como um momento no qual grupos sociais ‘atrasados’ ou ‘arcaicos’ entram em contato com grupos ‘modernos’, e ‘desadaptados; 3) um dispositivo de exclusão, isto é, a distinção entre um ‘nós brasileiros não-violentos’ e um ‘eles violentos’; 4) um dispositivo de distinção entre o essencial e o acidental: por essência, a sociedade brasileira não seria violenta, e, portanto, a violência é apenas um acidente na superfície social sem tocar em seu fundo essencial não-violento (...) (CHAUÍ, 1999, p. 3 apud ROSA; TASSARA, 2004, p. 36).

Esta filósofa continua denunciando:

Dessa forma, as desigualdades econômicas, sociais e culturais, as exclusões econômicas, políticas e sociais, o autoritarismo que regula as relações sociais, a corrupção como forma de funcionamento das instituições, o racismo, o sexismo, as intolerâncias religiosa, sexual e política não são consideradas formas de violência, isto é, a sociedade brasileira não é percebida como estruturalmente violenta, e, por isso, a violência aparece como um fato esporádico superável (CHAUÍ, 1999, p. 3 apud ROSA; TASSARA, 2004, p. 36).

Desse modo, o entendimento que neste trabalho fazemos sobre violência,

procura sempre, pautados em um modo sócio-histórico de compreensão da

realidade, e portanto, contextualizando o cenário brasileiro, adotar a definição de

violência apresentada por esta filósofa. Para ela, violência é:

1- tudo o que age usando a força para ir contra a natureza de algum ser (é desnaturar); 2) todo ato de força contra a espontaneidade, a vontade e a liberdade de alguém (é coagir, constranger, torturar, brutalizar); 3) todo ato de violação da natureza de alguém ou de alguma coisa valorizada positivamente por uma sociedade (é violar); 4) todo ato de transgressão contra o que alguém ou uma sociedade define como justo e como um direito (CHAUÍ, 1999, p. 3 apud ROSA; TASSARA, p. 36).

3.2 UMA GRANDE DEMANDA: O SISTEMA PRISIONAL

Uma das principais demandas do plantão do projeto PAS-JP, como será

discorrido adiante de forma mais aprofundada, é o atendimento a detentos e

egressos do Sistema Prisional. Logo, foi necessário debruçarmo-nos a esta questão,

procurando compreender suas peculiaridades, para que atendimentos mais eficazes

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a esta população pudessem ser realizados. Assim, discorremos abaixo sobre o

sistema, procurando entender a contextura do público atendido.

A punição perpassa a história da humanidade a tempos. Porém, o

encarceramento, tal como hoje é realizado, advém do século XVIII e ao longo dos

anos obedeceu a diversos regimes, com o isolamento completo do preso, realização

de obrigações religiosas – tal como a leitura bíblica, exigência de silêncio, reforma

moral dos detentos, utilização de lemas como o tratamento deve ser preventivo mais

que curativo, olhar para o futuro e não para o passado (OLIVEIRA, 2003).

A atual legislação que regula a Execução Penal no país foi promulgada em

1984. Trata-se da Lei nº 7.270, de 11 de julho de 1984, que delibera sobre o objetivo

básico das instituições prisionais brasileiras: “[...] proporcionar condições para a

harmônica integração social do condenado e do internado” (BRASIL, 1984).

Daufemback (2005), porém aponta:

[...] é duvidoso o quanto a reclusão dos indivíduos a meios artificiais (prisão), sem envolvimento da sociedade como parte do problema da criminalidade, produz benefícios. No “aparelho” social de defesa dos direitos do cidadão, que envolve o sistema policial, judiciário e carcerário, a prisão parece compor, com as demais instituições, um “esquema” complexo e com efetividade (resultados duradouros e abrangentes) questionável na garantia e na promoção da segurança, da justiça e da cidadania (DAUFEMBACK, 2005, p. 14).

Bajer (2002 apud DAUFEMBACK, 2005) aponta que, no decorrer dos anos,

a ênfase brasileira no combate ao desarraigamento das situações insatisfatórias do

ponto de vista do convívio social (resultando no aprisionamento dos chamados

‘criminosos’), modificou-se: “o discurso humanitário, nos anos 1990, está voltado

para a erradicação da violência e para a punição da criminalidade organizada” (p.

18). Assim, mostra que no momento da criação destas instituições, pode ter sido

relevante o papel do encarceramento no controle da criminalidade daquele tempo

histórico, mas faz-se urgente uma revisão desse sistema, pois

A história do processo penal na sociedade é também a história da constituição do poder. A coerção e punição adotadas pelo poder público na repressão da delinqüência transcorrem desde os séculos passados até as instituições penais do século XXI, pelas relações sociais de poder. Na modernidade, as autoridades judiciais alegam, aparentemente, não tanto o castigo dos delinqüentes, mas sua recuperação, que deve ser operacionalizada pela domesticação disciplinar a fim de integrar indivíduos

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“dóceis e úteis” à sociedade. Para atingir tal objetivo, o tratamento penal é baseado, fundamentalmente, na disciplina dos corpos: restrição de espaço, de atividade, de horário, de contato humano e de autonomia, resumidamente submissão e institucionalização. Parece que a pena no século XXI ainda mantém o mesmo caráter, punitivo e repressor, que tinha no início da civilização (DAUFEMBACK, 2005, p. 16).

Wacquant (2001) autentica esta afirmação:

[...] para que serve, finalmente, a prisão do século XXI? (...) Invoca-se ritualmente a filosofia terapêutica e continua-se a acreditar e fazer acreditar que a prisão tem por missão “reformar” e “reinserir’ seus internos, enquanto tudo, da arquitetura à organização dos trabalhos dos guardas, passando pela indigência dos recursos institucionais (trabalho, formação, escolaridade, saúde), pelo esgotamento deliberado da liberação em condicional e pela ausência de medidas concretas de ajuda na saída, o nega. (...) A reinserção não é na prisão que se faz. É mais tarde. É preciso inserir as pessoas dando trabalho, uma igualdade de oportunidades no início, na escola. É preciso fazer a inserção (WACQUANT, 2001 apud OLIVEIRA, 2003).

Oliveira (2003), por sua vez, confirma:

[...] no estado democrático de direito, é imprescindível que exista uma coerência entre legislação e política pública. [...] No entanto, o que constatamos é um fosso gigantesco que existe entre a letra da lei e as políticas aplicadas na área, ou seja, a adoção do enfraquecimento e do declínio do ideal de reabilitação, uma nova penalogia e o sucateamento dos meios que o estado deveria utilizar visando o bem-estar social, sobretudo quando não cumpre minimamente suas obrigações para com a massa carcerária, ignora a prática da orientação e da reflexão de atos e atitudes (OLIVEIRA, 2003, p. 13).

3.2.1 Prisões

A função social, oficial ou não, das prisões, é a de exclusão, vigia e punição,

visando a recuperação dos que são considerados indesejados ao convívio social. As

instituições prisionais cumprem esta função, seja por meio de suas construções, seja

por meio dos que desenvolvem suas atividades prisionais (os agentes carcerários,

os diretores, os administradores, o corpo técnico: médicos, enfermeiros, psicólogos,

assistentes sociais, etc). Assim, entendemos, tal como Daufemback (2005) que “os

presídios e penitenciárias, em um tempo e lugar determinado, materializam a ordem

social que é estabelecida pela instituição prisão” (p. 26).

Cabe lembrar que

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a prisão é elemento de complexas relações sociais que envolvem a violência nas cidades, o crime organizado, o sentimento de (in) segurança da população, a criminalização da pobreza, entre outras questões. Essa instituição representa para a sociedade a possibilidade de controle, vingança e reversão do “mal”. Ela é influenciada e influencia o comportamento das pessoas pela sua representação social e ação. Os indivíduos que são submetidos ao encarceramento expõem-se a um cotidiano permeado por essas complexas relações sociais de forma intensa, pois todas as suas possibilidades de vivência passam a ser na prisão e a partir dessa vivência acontecem modificações da sua conduta (DAUFEMBACK, 2005, p.15).

Goffman (1996), que discorre sobre as instituições totais, mostra que estas

se caracterizam pela barreira à relação social com o mundo externo e por proibições

à saída que muitas vezes estão incluídas no esquema físico, ou seja, não é

permitido fisicamente que as pessoas mantenham contato social, a partir de muros,

grades, enfim, enclausuramento. O autor (1967, apud DAUFEMBACK, 2005) ainda

aponta que as instituições prisionais são compostas por dois grupos opostos: os

presos, totalmente dependentes e com quaisquer vontades restringidas

(cumpridores de determinada pena) e os trabalhadores, que vão às prisões cumprir

uma carga horária e que fazem parte do mundo externo, como qualquer outro ator

social. Para Daufemback (2005)

[...] cada grupo tende a conceber os membros do outro em termos de estereótipos hostis e estreitos e que, os funcionários tendem a sentirem-se superiores e certos e os presos tendem a sentirem-se inferiores, fracos e dignos de culpa (DAUFEMBACK, 2005, p. 29).

Assim, pensa-se no papel ressocializador das prisões, na complexa trama

que participa deste processo:

Parece necessário conhecer qual a relação existente entre o sistema penitenciário e a produção da criminalidade e como essas implicações se transformam em comportamentos no processo prisional. O comportamento aprendido nas prisões é influenciado pelas condições ambientais da organização, que tem sido, historicamente, condições de dependência dos presos para com os funcionários, de arbitrariedade e com situações cotidianas repetitivas e massificadas à exaustão. Nessas circunstâncias, ainda é preciso considerar que, embora exista a proposta de uma função “ressocializadora” para a prisão, de fato, a punição se mantém como finalidade e técnica, o que não tem demonstrado resultado positivo na vida do sujeito após a prisão, apenas um certo controle durante o encarceramento e outros efeitos indesejados de sofrimento e humilhação. O psicólogo Gonçalves (1999), que realizou pesquisa sobre psicopatologia e adaptação à prisão, descobriu que há uma relação direta sobre a forma como foi vivenciada a prisão e o sucesso da vida em liberdade, evidenciando que a situação de reincidência, entre outros aspectos, é

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influenciada pelo processo de encarceramento (DAUFEMBACK, 2005, p. 30).

Desta forma, ‘ressocializar’ é um objetivo realizado de maneira falha:

[...] estamos nos referindo a que as estratégias elaboradas e aplicadas hoje não têm por objetivo reabilitar os criminosos, mas sim gerenciar custos e controlar populações perigosas. A mídia tem colaborado para o fortalecimento desses objetivos; em seus relatos apenas discutem valores perante uma população desinformada sobre o complexo papel do sistema penitenciário em nossos dias [...] O que vemos hoje é a desfiguração, a mutilação e o aniquilamento das garantias, dos ideais e vontade de ambos os lados: dos servidores e da população carcerária. Vai se desenhando a atual política de contenção repressiva. Ambas as partes acabam não tendo espaço para tratar de suas questões e são empurradas pelas circunstâncias a desconhecê-las (OLIVEIRA, 2003).

Para além desta análise e crítica, faz-se importante, também, comentar o

momento histórico que o país vivencia na atualidade. Lembramos os acontecimentos

de 2006, com as freqüentes rebeliões e revoltas de detentos do sistema prisional

que simultaneamente ocorreram em diversos estados do país (inclusive da região

Sul). Assim, perguntamos: até quando esse modelo de sistema prisional suportará a

pressão por condições mais justas e dignas? Foucault (2000) faz uma análise sobre

o contexto no qual acontecem revoltas contra este tipo de sistema e o papel dos

profissionais neste âmbito inseridos:

Nos últimos anos, houve revoltas em prisões em muitos lugares do mundo. Os objetivos que tinham, suas palavras de ordem, seu desenrolar tinham certamente qualquer coisa de paradoxal. Eram revoltas contra toda uma miséria física que dura há mais de um século: contra o frio, contra a sufocação e o excesso de população, contra as paredes velhas, contra a fome, contra os golpes. Mas eram também revoltas contra as prisões-modelos, contra os tranqüilizantes, contra o isolamento, contra o serviço médico ou educativo. Revoltas cujos objetivos eram só materiais? Revoltas contraditórias contra a decadência, e ao mesmo tempo contra o conforto; contra os guardas, e ao mesmo tempo contra os psiquiatras? De fato, tratava-se realmente dos corpos e de coisas materiais em todos esses movimentos: como se trata disso nos inumeros discursos que a prisão tem produzido desde o começo do século XIX. O que provocou esses discursos e essas revoltas, essas lembranças e invectivas foram realmente essas pequenas, essas ínfimas coisas materiais. [...] Tratava-se bem de uma revolta, ao nível dos corpos, contra o próprio corpo da prisão. O que estava em jogo não era o quadro rude demais ou ascético demais, rudimentar demais ou aperfeiçoado demais da prisão, era sua materialidade na medida em que ele é instrumento e vetor de poder; era toda essa tecnologia do poder sobre o corpo, que a tecnologia da “alma” – a dos educadores, dos psicólogos e dos psiquiátras – não consegue mascarar nem compensar, pela boa razão de que não passa de um de seus instrumentos (FOUCAULT, 2000, p. 29).

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3.2.2 Santa Catarina no cenário prisional

Segundo Teixeira (2003), o estado de Santa Catarina reproduz um problema

crônico existente no restante do país: a superlotação das prisões (DAUFEMBACK,

2005). Há, neste estado, 26 unidades penais com uma população de cerca de 5.074

pessoas, havendo um déficit de cerca de 50% entre o número de vagas existentes e

aquelas realmente necessárias (TEIXEIRA, 2003). Este autor indica que

diante desse quadro, não seria imprudente afirmar que a superlotação gera uma péssima qualidade de vida no sistema prisional e também funciona como um estímulo para rebeliões, brigas entre os próprios presos e tentativas de fuga (TEIXEIRA, 2003, p. 04).

Na cidade de Joinville, há duas unidades prisionais: o Presídio Regional de

Joinville, com capacidade para cerca de 300 detentos e que abriga uma média de

600 pessoas e a Penitenciária Industrial de Joinville. Esta última, completamente

terceirizada, foi inaugurada em janeiro de 2005. Tem capacidade para abrigar

aproximadamente 365 internos, mas até o momento, especialmente devido ao

pouco tempo de inauguração, ainda não está com esta capacidade lotada. Esta

unidade prisional está equipada com oficinas, para, em parceria com empresas

privadas, possibilitar trabalho a sua população carcerária, buscando assim a

reinserção social destas pessoas a partir do trabalho e da ocupação profissional.

Este expediente ajuda na aplicação de novas alternativas para o cumprimento de

penas, uma vez que, segundo a Lei n˚ 7210/84 em seu artigo 126, “o condenado

que cumpre pena em regime fechado ou semi-aberto poderá remir pelo trabalho,

parte do tempo de execução da pena” (BRASIL, 1984)2.

Essas duas instituições são atendidas pelo CDH Maria da Graça Bráz tanto

em questões que dizem respeito aos processos de pessoas que ainda se encontram

presas, quanto no que se refere às pessoas que acabam de sair de suas

dependências para a vida fora dos limites totais que lhes foram impostos pela força

da Lei. Lembrando que

o estudo de questões relativas à criminalidade violenta, hoje, no Brasil, tem sido marcado pelas reflexões acerca da exclusão social e das relações sociais mediadas pela violência. Em nosso cotidiano, a violência manifesta-

2 As informações sobre as duas unidades prisionais da cidade de Joinville/SC foram obtidas pessoalmente nas respectivas unidades, ao longo da realização deste estágio.

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se de inúmeras formas e, em alguns casos, não causa reação de perplexidade entre as pessoas, mas, sim, de conformidade. A exclusão social é uma das manifestações mais violentas contra indivíduos em nossa sociedade, uma vez que produz a carência de qualquer horizonte de perspectivas [...] Ao tomarmos como foco de atenção os indivíduos confinados em presídios, realizamos uma ampliação do tema e dos problemas sociais mencionados acima. As prisões brasileiras funcionam como mecanismo de oficialização da exclusão que já paira sobre os detentos, como um atestado de exclusão com firma reconhecida. Dizemos isso não só considerando o estado de precariedade atual das prisões, mas também o estado de precariedade em que se encontram os indivíduos antes do encarceramento – em sua maioria, provenientes de grupos marcados pela exclusão [...] Que tipo de perspectiva de vida pode vislumbrar um indivíduo que passa por tantas precariedades e privações infligidas pelo sistema socioeconômico? (TAVARES; MENANDRO, 2004, p. 86-87).

Os autores (2004) ainda ressaltam que as condições de exclusão social que

geram a criminalidade continuam intactas quando do encarceramento dos atores

sociais infratores. Assim, quando cumpre sua pena e torna-se um ex-presidiário, a

pessoa volta a uma sociedade que mantém suas condições excludentes: “[...] as

condições sociais do seu passado estarão novamente presentes no seu futuro”

(TAVARES; MENANDRO, 2004, p. 87). Desta forma, percebemos como

fundamental o apoio jurídico e psicológico destinado a esta população a quem se

destina, em grande parte, os trabalhos oferecidos pelo projeto PAS-JP.

3.3 VULNERABILIDADE E EXCLUSÃO

Na esteira da violência (e do sistema carcerário como “remédio” deste

problema social), imediatamente coloca-se a indagação: quem são as pessoas

susceptíveis a ela. Cabe aqui, portanto, um olhar à questão da vulnerabilidade

social.

O termo vulnerabilidade, originário do direito, a partir de meados da década

de 1980 e posteriormente, já na década de 1990, passou a ser bastante utilizado na

área da saúde pública para designar aquelas pessoas vulneráveis a infecção de

certas doenças. Todavia,

o conceito de vulnerabilidade social é tratado aqui como todo e qualquer processo de exclusão, discriminação ou enfraquecimento de grupos sociais. De fato, a vulnerabilidade relaciona-se inversamente tanto com a capacidade de reação dos grupos, quando da ocorrência de um evento, quanto com as possibilidades de informação e comunicação entre os pares (PALMA; MATTOS, 2001, p. 575).

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Para melhor compreendermos, utilizamo-nos do esquema elaborado por

Castel (1991 apud FEIJÓ; ASSIS, 2004), que aponta a constituição da

vulnerabilidade na convergência de dois vetores, que são:

um eixo de inserção/não inserção pelo trabalho e um eixo de inserção/não inserção em uma sociabilidade sócio-familiar. O indivíduo pode estar inserido completamente nos dois eixos (zona de integração), ou pode estar inserido no eixo do trabalho, mas não no eixo da família e/ou da comunidade, e assim por diante. O indivíduo que está desvinculado na esfera do trabalho sofre maiores conseqüências do que aquele desvinculado apenas na área familiar, pois o seu sustento e o de sua família, sua participação na comunidade, assim como todo o funcionamento das relações sociais e da cidadania estão baseados na sua inserção ocupacional. A zona de vulnerabilidade refere-se à precariedade do trabalho e à fragilidade relacional. Na zona de desvinculação o indivíduo encontra-se sem trabalho e em isolamento social: “ao final do processo, a precariedade econômica torna-se privação, a fragilidade relacional isolamento” (CASTEL, 1991, p. 139 FEIJÓ; ASSIS, 2004, p. 158).

Tendo esta explicação sobre a questão da vulnerabilidade social, há que se

refletir sobre quem são os atores sociais propensos à vulnerabilidade e, na

seqüência, faz-se necessário compreender a exclusão social. Sabemos que este

conceito por si só, tal como pontua Wanderley (2001), é praticamente impossível de

ser completamente abarcado em seu sentido epistemológico. Todavia, há que se

olhar, mais uma vez, para a contextura brasileira, tentando compreender, conforme

já dito, a realidade que se nos coloca. Neste país, há um caráter estrutural do

fenômeno exclusão, segundo Sposatti (1996 apud WANDERLEY, 2001), pois as

desigualdades social, econômica e política são incompatíveis com a democratização

na sociedade brasileira. Ainda que atinja pessoas, a exclusão implica uma lógica

que se coloca nas relações econômicas, sociais, culturais e políticas da sociedade e,

para a autora (1996 apud WANDERLEY, 2001) inclui pobreza, discriminação,

subalteridade, desigualdade, falta de acesso a recursos e falta de representação

política.

Assim, para Jodelet (2001), a exclusão implica em certo tipo de organização

de relações interpessoais ou intergrupos, material ou simbolicamente. Quer dizer: a

segregação se dá pelo afastamento; a marginalização, mantendo-se um indivíduo à

parte de um determinado grupo, instituição ou corpo social; a discriminação,

impedindo-se o acesso a certos bens, recursos, status ou papéis.

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Em uma compreensão histórico-cultural, que nos propomos com este

estágio, pode-se inferir que atitudes que conduzam à segregação, discriminação e

preconceito, tal como acima citado, implicam em discursos sociais desqualificantes

da população pobre e “[...] a sociedade [...] contribui para a criação de um lugar

social desvalorizado, portador de sofrimento” (CARRETEIRO, 2001, p. 92). O

sofrimento, por sua vez, “[...] é a dor mediada pelas injustiças sociais. É o sofrimento

de estar submetida à fome e à opressão“ (SAWAIA, 2001, p. 102).

Assim, entendemos, nesta concepção, que as emoções (especialmente aqui

abordado o sofrimento oriundo da exclusão), são um fenômeno histórico e têm sua

contextura própria. Nesta abordagem vigotskiniana de entendimento das emoções

humanas, lembramos o que este autor ensina em sua obra Pensamento e

Linguagem (apud SAWAIA, 2001), isto é, o significado dado a todas as coisas é a

premissa do desenvolvimento da consciência e é inseparável da palavra. Assim,

emoção e o sentimento não são dados a priori no psiquismo humano, mas

apreendidos e aprendidos pelas relações sociais, e re-significados, pela mediação.

Desse modo, cabe falar sobre o papel do psicólogo na construção de uma

sociedade mais justa e cidadã. Considerando os fatos acima expostos, pensamos

que ações profissionais pautadas no compromisso com a maioria excluída são

condição sine qua non para o desenvolvimento de uma atuação crítica e inquieta.

Logo, entendemos que na Psicologia Social podemos encontrar o

necessário embasamento epistemológico para assumir este compromisso político e

social. Para Lane (1981), a Psicologia Social:

[...] estuda a relação essencial entre o indivíduo e a sociedade, esta entendida historicamente, desde como seus membros se organizam para garantir sua sobrevivência até seus costumes, valores e instituições necessários para a continuidade da sociedade. Porém a história não é estática nem imutável, ao contrário, ela está sempre acontecendo, cada época gerando o seu contrário, levando a sociedade a transformações fundamentalmente qualitativas. E a grande preocupação atual da Psicologia Social é conhecer como o homem se insere neste processo histórico, não apenas em como ele é determinado, mas principalmente, como ele se torna agente da história, ou seja, como ele pode transformar a sociedade em que vive (LANE, 1981, p. 10 – sem grifos no original).

Assim, a Psicologia Social ocupa-se do estudo do homem nas suas relações

sociais, históricas e culturalmente organizadas. Gonçalves Filho (1998) ainda define:

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O exame de processos psíquicos beneficia-se do recurso ao seu tempo social, um recurso à maneira pela qual cada época geralmente organizou as relações dos homens com outros homens, com a cidade e também com a natureza. Esta disciplina de fronteira, a Psicologia Social, caracteriza-se não pela consideração do indivíduo, pela focalização da subjetividade no homem separado, mas pela exigência de encontrar o homem na cidade, o homem no meio dos homens, a subjetividade como aparição singular, vertical, no campo intersubjetivo e horizontal das experiências. Não o homem separado, o indivíduo, mas sempre um homem: a subjetividade realizando-se intersubjetivamente, uma revelação – trata-se sempre do modo mais ou menos singular por que um homem aparece em companhia de outros. A pessoa sofre e habita a experiência comum: em alguma medida, sofrendo-a, vem afetá-la por traços originais, por qualidades surpreendentes que tornam irredutível a fisionomia de cada homem. Impossível tomar o rosto e a voz de um homem como expressões sob perfeito condicionamento. Os temas da Psicologia Social, justamente, incidem sobre problemas intermediários, difíceis de considerar apenas pelo lado do indivíduo ou apenas pelo lado da sociedade (GONÇALVES FILHO, 1998).

Segundo Silva (2004), toda Psicologia é social, visto o homem, objeto desta

ciência, ser eminentemente um ser social, que se constitui na relação com outros

homens. Assim, deve-se levar em conta nesta constituição subjetiva de cada

homem, as relações que se engendram na sociedade formada pelos próprios

homens. A realidade é construída pelo sujeito, enquanto o sujeito é construído pela

realidade, dialeticamente (GONÇALVES, 2002). Deve-se levar em conta, portanto,

no olhar para a realidade, a diversidade social, os aspectos que constituem cada

realidade e cada sociedade em dado momento histórico:

[...] não vamos encontrar apenas uma configuração do social, mas várias: cada formação histórica cria um campo de possibilidades de onde emerge uma certa problemática que engendra, ao mesmo tempo, uma configuração específica do social. Todavia, o que nos interessa para o desenvolvimento de nossa análise é poder compreender os dispositivos criados por uma determinada formação social no sentido de resolver os problemas aos quais ela se vê confrontada. Em suma, é poder compreender a partir de que momento o social passa a ser formulado como um problema que requer um tipo de intervenção específica (SILVA, 2004).

A partir disto e também baseados na noção já descrita por Lane (1981), da

preocupação da Psicologia Social na transformação que o homem é capaz de

empreender na realidade, é que discutimos os movimentos sociais, público alvo da

intervenção psicológica no estágio no CDH. Dessa forma, Scherer-Warren (2006)

localiza os movimentos sociais e suas reivindicações no domínio da sociedade civil:

[...] a sociedade civil, embora configure um campo composto por forças sociais heterogêneas, representando a multiplicidade e diversidade de

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segmentos sociais que compõem a sociedade, está preferencialmente relacionada à esfera da defesa da cidadania e suas respectivas formas de organização em torno de interesses públicos e valores, incluindo-se o de gratuidade/altruísmo, distinguindo-se assim dos dois primeiros setores [...] que estão orientados, também preferencialmente, pelas racionalidades do poder, da regulação e da economia. É importante enfatizar, portanto, que a sociedade civil nunca será isenta de relações e conflitos de poder, de disputas por hegemonia e de representações sociais e políticas diversificadas e antagônicas. Às vezes, também, a sociedade civil é tratada como sinônimo de "terceiro setor", mas isso não é adequado e comporta certa ambigüidade. O termo "terceiro setor" tem sido empregado também para denominar as organizações formais sem fins lucrativos e não-governamentais, com interesse público. A sociedade civil inclui esse setor, mas também se refere à participação cidadã num sentido mais amplo. Pode-se, portanto, concluir que a sociedade civil é a representação de vários níveis de como os interesses e os valores da cidadania se organizam em cada sociedade para encaminhamento de suas ações em prol de políticas sociais e públicas, protestos sociais, manifestações simbólicas e pressões políticas (SCHRER-WARREN, 2006).

A autora ainda discorre, descrevendo os níveis de organização da sociedade

civil, sendo um deles denominado associativismo local, formado por movimentos e

atores sociais que defendem causas sociais, culturais e cotidianas. Aí se incluem

organizações não-governamentais (ONGs), este, o denominado terceiro setor.

Porém, outros movimentos estão incluídos, representativos da sociedade civil em

âmbito local e/ou comunitário, tais como núcleos dos movimentos de sem-terra,

sem-teto, piqueteiros, empreendimentos solidários, associações de bairro, etc.

Acerca da mediação social, Scherer-Warren (2006) descreve linhas de

atuação para o auxílio aos movimentos populares:

1) Atuar no sentido de resgatar a dignidade dos sujeitos socialmente excluídos, porque sem a desconstrução das discriminações introjetadas pelos dominados socialmente não há luta por direitos; atuar no sentido de resgatar positivamente suas raízes (culturais, simbólicas, estéticas), sem abrir mão de avaliações auto-críticas transformadoras, potencializando as iniciativas da base para enfrentar e resolver os problemas sociais [...] 2) Promover novas formas de ação coletiva junto às populações excluídas [...] potencializando os mecanismos de reconhecimento social, de solidariedade, de cooperação, de confiança, de reciprocidade, enfim, construindo uma nova ética para o social. 3) Associar-se a outras experiências (articulação e trocas de experiências de vários coletivos em redes, formando redes de redes, e participando de mobilizações de base), empoderando-se, assim, na direção de uma rede de movimento social (SCHRER-WARREN, 2006).

Ainda são propostas dimensões sociais para “[...] um trabalho de

empoderamento democrático e de inclusão social das bases” (Scherer-Warren

2006):

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[...] o combate à exclusão em suas múltiplas faces e a respectiva luta por direitos (civis, políticos, socioeconômicos, culturais e ambientais); o reconhecimento da diversidade dos sujeitos sociais e do respectivo pluralismo das idéias; a promoção da democracia nos mecanismos de participação no interior das organizações e nos comitês da esfera pública, criando novas formas de governança (SCHRER-WARREN, 2006).

Nossa proposta, com este estágio, buscou estar consoante com tais

premissas, objetivando sempre respeitar o compromisso social assumido quando do

início deste trabalho, conforme procuraremos denotar, no capítulo que segue.

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4 A TRAJETÓRIA PERCORRIDA

Agora, passamos a apresentar a prática do Estágio Supervisionado em

Psicologia Social, que aconteceu ao longo do segundo semestre de 2006, no Centro

de Direitos Humanos Maria da Graça Bráz (CDH). Este estágio foi realizado sempre

em conjunto com estagiários do curso de Direito, da Faculdade de

Direito de Joinville (ACE), em atendimentos normalmente feitos em duplas (um

estagiário de cada área), conforme segue.

4.1 CENTRO DE DIREITOS HUMANOS MARIA DA GRAÇA BRÁZ

O Centro de Direitos Humanos Maria da Graça Braz (CDHMGB) é uma

organização da sociedade civil, sem fins lucrativos, com o objetivo de promover,

difundir e garantir os Direitos Humanos Civis, Políticos, Econômicos, Sociais,

Culturais, à Paz e ao Desenvolvimento, filiado ao Movimento Nacional dos Direitos

Humanos (MNDH). Foi fundado no dia 11 de março de 1979, por um grupo de

lideranças populares, operários e religiosos locais, motivado com o compromisso

com pessoas em situação de pobreza e exclusão social, isto é, aquelas pessoas

alijadas de seus direitos fundamentais, com o intuito de organizá-las na defesa

destes direitos e na conquista e construção de uma sociedade justa.

É o terceiro CDH fundado no país e observa os princípios da Declaração

Universal dos Direitos Humanos e a carta de Princípios do Movimento Nacional dos

Direitos Humanos. Tem como eixo a defesa da vida e dos direitos universais,

individuais e coletivos previstos na constituição federal brasileira, dentre outros

documentos pertinentes, contra a violência. Desde sua criação apresenta

significativa atuação em defesa da moradia, da terra, dos diretos da criança e

adolescente e da mulher, incentivo a não-violência, na melhoria do sistema prisional,

na organização dos movimentos populares, entre outras demandas que incluem os

empobrecidos e aqueles que são vítimas de preconceitos diversos.

Em sua história, este CDH incentivou e articulou fóruns importantes de

discussão e a fundação de Conselhos, visando a implementação de políticas

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públicas justas e de qualidade. Dentre os conselhos criados com a participação

deste CDH está o Conselho Carcerário da Comunidade de Joinville, oficializado em

1997. Desde sua criação, este Conselho vem atuando fortemente contra a violência

institucionalizada e pela implantação de serviços de saúde, educação, qualificação

profissional, trabalho e assistência jurídica, bem como na ampliação da visibilidade

da questão prisional por meio de mostras fotográficas, pesquisa referente à

realidade carcerária, seminários, encontros, entre outras ações.

Atualmente é dirigido por uma Diretoria Colegiada composta de dez

membros: Coordenadora Geral, Sra. Irma Kniess; Tesoureira, Sra. Luiza De

Bastiani; Secretária, Sra. Maria da Consolação Osório, mais sete membros que

fazem parte da diretoria colegiada e um Conselho fiscal composta por 3 pessoas.

Em seus objetivos, lê-se:

Promover, conscientizar, assessorar e defender pessoas, famílias, grupos e associações em favor de sua organização e dos Direitos Humanos; - Manter colaboração mútua com entidades de Direitos Humanos e outras interessadas nos mesmos objetos, oportunizando estudos, debates, seminários e outras atividades; - Denunciar tudo que lesa a VIDA, a JUSTIÇA e os DIREITOS HUMANOS3.

Por missão, assim tem posto: “Promover a cidadania; denunciar a violência;

defender a vida; estimular as organizações populares; registrar a luta do povo”. O princípio básico que orienta o CDH é a Luta pela Vida contra todas as

Formas de Violência, sendo portanto, um espaço de referência para os Movimentos

Populares, Sociais, Pastorais e outros do município e também do Estado de Santa

Catarina.

Tem por frentes de atuação os seguintes eixos:

- Reforma Urbana: Luta pela moradia digna, organização e apoio à luta dos moradores de loteamentos e sem tetos. Luta pela reforma agrária. - Arquivo: Manutenção de arquivos de dados através de periódicos, textos, livros, fotos, slides e videoteca contendo a história do CDH desde sua fundação e demais questões, para pesquisa. - Formação: Formação de militantes, lideranças e operadores jurídicos que atendem na defesa dos Direitos Humanos. - Políticas Públicas: Participação nos Conselhos municipais da Saúde, da Criança e Adolescente, da Habitação, COMSEAN - Cons. Munic. de Segurança Alimentar e Nutricional, Conselho Munic. da Mulher e Conselho Carcerário.

3 Todas as informações referentes ao histórico do Centro de Direitos Humanos Maria da Graça Brás , sua missão, frentes de atuação, etc., foram obtidas de documentos não publicados, no local.

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- Assessoria Jurídica: Orientação e encaminhamento de denúncias de violação dos Direitos individuais ou de grupos, junto ao Ministério Público, promoção de ações judiciais na defesa dos interesses coletivos. - Violência: Denúncia das más condições carcerárias em Joinville e promoção de ações que visem a punição da violência instituicional. - Gênero: Formação, organização e orientação de grupos de mulheres apoiando a luta por seus direitos.

Assim sendo, é importante ressaltar que o CDH também busca contribuir na

formação de profissionais engajados com a realidade latino-americana e com os

princípios ligados aos Direitos Humanos. Logo, com o projeto que este relatório

descreve, o CDH alia esforços com instituições de ensino superior, visando propiciar

aos futuros profissionais reflexões e práxis à promoção da cidadania da população e

a ampliação e melhoria das atividades desenvolvidas em prol das lutas sociais.

Conforme escrito acima, os atendimentos à população são realizados conjuntamente

com estagiários da faculdade de Direito. Logo, faz-se necessário lançar um olhar

para a questão da interdisciplinaridade, conforme segue.

4.2 INTERDISCIPLINARIDADE

A fim de entender mais claramente o desenvolvimento do trabalho

realizado, faz-se necessário ainda discutir a natureza das práticas prestadas a

populações que buscou a a ajuda do CDH Maria da Graça Braz. Trata-se de lançar

um olhar mais apurado à interdisciplinaridade que permeou todos os atendimentos

feitos conforme já citado. Segundo Leis (2005), a interdisciplinaridade é condição

fundamental do ensino e da pesquisa, sendo que defini-la é tarefa que lembra a

estreiteza paradigmática proposta pela disciplinaridade. Ainda assim aponta:

A interdisciplinaridade pode ser definida como um ponto de cruzamento entre atividades (disciplinares e interdisciplinares) com lógicas diferentes. Ela tem a ver com a procura de um equilíbrio entre a análise fragmentada e a síntese simplificadora (Jantsch & Bianchetti, 2002). Ela tem a ver com a procura de um equilíbrio entre as visões marcadas pela lógica racional, instrumental e subjetiva (Lenoir & Hasni, 2004). Por último, ela tem a ver não apenas com um trabalho de equipe, mas também individual (Klein, 1990) (LEIS, 2005).

Pombo (2006) lista as vantagens da interação disciplinar:

A interdisciplinaridade traduz-se na constante emergência de novas disciplinas que não são mais do que a estabilização institucional e

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epistemológica de rotinas de cruzamento de disciplinas. Este fenômeno, não apenas torna mais articulado o conjunto dos diversos "ramos" do saber (depois de os ramos principais se terem constituído, as novas ciências, resultantes da sua subdivisão sucessiva, vêm ocupar espaços vazios), como o fazem dilatar, constituindo mesmo novos espaços de investigação, surpreendentes campos de visibilidade.

Leis (2005) afirma que, na atualidade, há um grande esforço pelo

intercruzamento das áreas, de acordo com as demandas apresentadas pelo mundo

hodierno. Os períodos clássico e medieval da história foram pródigos no sentido da

aproximação das conceituações no entendimento do mundo. Mais do que separar os

conhecimentos, buscava-se uma aproximação entre seus diferentes tipos. A busca

pela cientificidade desmembrou o conhecimento. É o caminho que se busca

percorrer nos dias de hoje:

A historia da interdisciplinaridade se confunde, portanto, com a dinâmica viva do conhecimento. O mesmo não pode ser dito da história das disciplinas, as quais congelam de forma paradigmática o conhecimento alcançado em determinado momento histórico, defendendo-se numa guerra de trincheiras de qualquer abordagem alternativa. Num sentido profundo, a interdisciplinaridade é sempre uma reação alternativa à abordagem disciplinar normalizada (seja no ensino ou na pesquisa) dos diversos objetos de estudo. Existem sempre, portanto, varias reações interdisciplinares possíveis para um mesmo desafio do conhecimento (LEIS, 2005).

A fragmentação e a especialização científica, ou seja, a disciplinação do

conhecimento é descrita como ruinosa por De Zan:

A reivindicada autonomia de cada uma das disciplinas teve como resultado a fragmentação do universo teórico do saber numa multiplicidade crescente de especialidades desligadas entre si, que não se fundam já em princípios comuns, nem se podem integrar numa unidade sistemática. Esta dispersão das ciências trouxe também a sua incomunicação e isolamento, devido à diversidade de métodos que cada uma foi desenvolvendo e à especialização da linguagem própria cujos termos não têm equivalência na linguagem das outras e resultam, na maior parte das vezes, intraduzíveis, visto que a sua significação apenas adquire sentido no contexto das suas próprias teorias. (...) Com o correr do tempo, a progressiva especialização que separava as ciências umas das outras foi igualmente desmembrando os diversos ramos de cada ciência, desintegrando a sua própria unidade interna até a pulverizar em secções super-especializadas, fechadas sobre si, que muitas vezes se ignoram mutuamente (DE ZAN, 1983 apud POMBO, 2006).

A interdisciplinaridade é motivada para que se realize síntese do

conhecimento, abertura e ampliação dos horizontes disciplinares, com vistas ao

atendimento das demandas atuais apresentadas à ciência e às profissões. “Se algo

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entra por definição na prática interdisciplinar é a condição de que se deve buscar a

complementação entre os diversos conhecimentos disciplinares” (LEIS, 2005).

Ser interdisciplinar não deve ser visto como

[...] uma eleição entre diversos modos opostos de chegar ao conhecimento, senão como uma integração de alternativas complementares. Neste sentido, parece oportuno lembrar a sugestão de Bernstein (1983), quando reivindica que o conhecimento deve ser empírico, interpretativo e crítico, ao mesmo tempo. Esta proposta converge plenamente com o dia a dia da prática interdisciplinar. Indo além, podemos considerar hoje que conhecimento e ensino se constituem, por excelência, como fruto de um esforço interdisciplinar, no contexto de uma transformação cultural que possa facilitar tal esforço (LEIS, 2005).

Assim, para Pombo (2006)

[...] a interdisciplinaridade existe sobretudo como prática. Ela traduz-se na realização de diferentes tipos de experiências interdisciplinares de investigação (pura e aplicada) em universidades, laboratórios, departamentos técnicos; na experimentação e institucionalização de novos sistemas de organização, programas interdepartamentais, redes e grupos inter-universitários adequados às previsíveis tarefas e potencialidades da interdisciplinaridade.

Nesse sentido, realizar um trabalho adjacente entre a área jurídica e a

Psicologia implica em ações interdisciplinares entre estas duas ciências. Pois,

conforme defende Teixeira (1992), o encontro entre Psicologia e Direito não somente

é possível, como necessário:

a troca entre estes dois “saberes” deve funcionar como instituintes de um em relação ao outro, a fim de reinventar dinâmicas que sirvam para romper os modelos estagnados, restituindo identidade aos cidadãos que a elas recorrem e abrindo espaço para a reflexão constante (p.57).

Assim, discorreremos a seguir acerca da interface Psicologia e Direito. 4.3 PSICOLOGIA E DIREITO

Segundo Altoé (2001) a Psicologia e o Direito aproximaram-se no final do

século XIX, surgindo a “Psicologia do Testemunho”, que consistia em “[...] verificar

através do estudo experimental dos processos psicológicos, a fidedignidade do

relato do sujeito envolvido em um processo jurídico”. Essa primeira aproximação das

duas ciências mostrou-se muito influenciada pela concepção positivista, que emergia

naquela época, destacando a importância do método científico utilizado pelas

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ciências naturais, principalmente com a utilização de testes como ferramenta para

analisar as pessoas e seus comportamentos em ações jurídicas (JACÓ-VILELA,

1999 apud ALTOÉ, 2001).

A autora (2001) ainda aponta que, a partir dessa história inicial, a prática

profissional da Psicologia na área jurídica passa a se restringir à aplicação de testes,

realização de perícia, exame criminológico e parecer psicológico. Desta forma, a

Psicologia passa a ter uma função que “favorecia a eficácia do controle social e

reforçava a natureza repressora que está inserida no direito, ao invés de garantir as

liberdades e os direitos fundamentais dos indivíduos” (VERANI, 1994 apud ALTOÉ,

2001).

No Brasil, a área da Psicologia que se dedica ao trabalho conjunto com o

Direito é nomeada de Psicologia Jurídica (FRANÇA, 2004). Esta mesma autora

(2004) defende a utilização deste termo, visto que o sentido dicionarizado para a

palavra jurídico é “concernente ao Direito, conforme às ciências do Direito e aos

seus Preceitos” (FRANÇA, 2004). O dicionário Aurélio traz o conceito de jurídico

como sendo “1. Relativo ou pertencente ao direito. 2. Conforme aos princípios do

direito” (FERREIRA, 2004, p.1164). Portanto, mais adequado do que o termo

forense, por exemplo, que segundo o mesmo dicionário, tem como significado, “1.

Respeitante ao foro judicial. 2. Judicial” (FERREIRA, 2004, p. 922). Logo, uma

prática que se propõe a superar os limites dos tribunais e intervir em contextos

sociais mais abrangentes ficaria assim melhor definida.

Do que se entende como práticas tradicionais da Psicologia Jurídica,

salienta-se o papel do psicólogo perito. Segundo Popolo (apud FRANÇA, 2004) há a

necessidade de que este profissional reconheça

[...] o limite de sua perícia, pois se trata de conhecimento produzido a partir de um recorte da realidade. Assim, deve-se reconhecer a limitação do conhecimento da conduta por meio da perícia. Neste contexto, torna-se necessário verificar a confiabilidade e a validez dos instrumentos e do modelo teórico utilizados, a fim de verificar se os mesmos respondem ao objetivo do procedimento. Em virtude dessa limitação do conhecimento produzido, torna-se imperativa a compreensão interdisciplinar do fenômeno estudado para melhor abordá-lo em sua complexidade (FRANÇA, 2004, sem grifos no original).

Entretanto, o que se observa é uma prática dos peritos pautada apenas em

procedimentos positivistas. Acerca dessa metodologia de intervenção entendemos

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que não implica na real apreensão do contexto social que se apresenta ao trabalho

desse profissional, pois,

[...] sob o nome de crimes e delitos, são sempre julgados corretamente os objetos jurídicos definidos pelo Código. Porém julgam-se também as paixões, os instintos, as anomalias, as enfermidades, as inadaptações, os efeitos de meio ambiente ou de hereditariedade. [...] Dir-se-ia que não são eles que são julgados; se são invocados, é para explicar os fatos a serem julgados e determinar até que ponto a vontade do réu estava envolvida no crime. [...] Julgadas mediante recurso às “circunstâncias atenuantes”, que introduzem no veredicto não apenas elementos “circunstanciais” do ato, mas coisa bem diversa, juridicamente não codificável: o conhecimento do criminoso, a apreciação que dele se faz, o que se pode saber sobre suas relações entre ele, seu passado e o crime, e o que se pode esperar dele no futuro (FOUCAULT, 2000, p. 19).

Assim, o psicólogo perito, extensão dos magistrados no ato de julgar, ao se

tornar responsável apenas pela mensuração da culpa do indivíduo, reduz suas

práticas à avaliação psicológica que há muito sofre críticas que consideramos

pertinentes (MOYSÉS; COLLARES, 1997).

França (2004) propõe a necessidade de repensar as avaliações

psicológicas, tais como as perícias, justificando isso no fato de que a realização de

tal perícia é uma das possibilidades de atuação do psicólogo jurídico, mas não a

única (assim, não descarta a importância desta atividade). A autora ainda sugere

que o psicólogo, na área jurídica, pode desenvolver práticas de orientações e

acompanhamentos, contribuir às políticas preventivas, estudar os efeitos do campo

jurídico sobre a subjetividade do indivíduo, entre outras atividades e enfoques de

atuação. Ainda destacamos as análises de França (2004) acerca das ponderações

de Popolo (1996) que

[...] são importantes para compreendermos que o conhecimento resultante da perícia não representa a compreensão do indivíduo como um todo. Por esse motivo, esse conhecimento refere-se a um recorte parcial da realidade (do indivíduo). No entanto, por vezes, esses conhecimentos produzidos pelas perícias são tratados como a verdade sobre o indivíduo. Por exemplo, o que a perícia produz sobre o comportamento do indivíduo criminoso estende-se a todo o indivíduo em sua integridade e essa marca determinará a sua existência. Esse fenômeno é resultado da própria expectativa do jurídico, cujo caráter é positivo, e visa à compreensão do todo (indivíduo) por meio do estudo do particular (comportamento). Por outro lado, há teorias psicológicas positivas que buscam compreender o indivíduo pelo estudo do particular, isolando-o do contexto no qual está inserido. Nessa perspectiva, Direito e Psicologia possuem uma concepção de homem positivista. Todavia, considero que a Psicologia Jurídica deva adotar outra concepção de homem. Ressalto um grande desafio para os psicólogos jurídicos peritos: serem produtores de

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conhecimento levando em consideração os aspectos sócio-históricos, de personalidade e biológicos que constituem o indivíduo (FRANÇA, 2004, p. 75).

Desta forma, a prática da Psicologia Jurídica resumida aos testes e

classificações de sujeitos passou a ser discutida com as mudanças ocorridas nas

leis, a partir do regime militar, questionando-se o papel da Psicologia, sendo que

surgiu um rico debate e novos posicionamentos dos psicólogos que, questionando uma prática que era prioritariamente voltada para a elaboração do psicodiagnóstico, ou, como diz Jacó-Vilela (1999), para uma atuação de “estrito avaliador da intimidade” das pessoas, buscaram então novas formas de atuação junto ao poder judiciário. Isto influenciou também o ensino universitário (ALTOE, 2001).

Torna-se importante aqui discorrer sobre o papel do psicólogo na Psicologia

Jurídica, a partir das mudanças e discussões citadas acima. Levando-se em conta o

trabalho interdisciplinar entre a Psicologia e o Direito, entende-se que o trabalho

dessas duas áreas de saber sejam complementares e não de subordinação de uma

a outra. Altoé (2001) aponta que o psicólogo

[...] com a legitimidade que lhe confere seu campo específico de saber, tenha autonomia para definir suas funções dentro do sistema judiciário. E isto em relação direta com uma prática situada dentro de um contexto histórico e cultural, em contínua transformação.

O trabalho do psicólogo jurídico não se restringe mais somente à aplicação

de testes ou elaboração de laudos, apesar de se saber que ainda muitos deles

realizam essas atividades. Cabe aqui ressaltar que não se deslegitima essa prática,

porém pensada de uma outra forma, conforme supracitado. Assim Altoè (2001)

ainda aponta para o papel do psicólogo jurídico:

[...] tem sido também o de informar, apoiar, acompanhar e dar orientação pertinente a cada caso atendido nos diversos âmbitos do sistema judiciário. Há uma preocupação praticamente inexistente antes com a promoção de saúde mental dos que estão envolvidos em causas junto à Justiça, como também de criar condições que visem a eliminar a opressão e a marginalização (ALTOÉ, 2001).

Assim, propõe-se uma metodologia que supere os meios tradicionais de se

trabalhar com os problemas de que se ocupa a Psicologia Jurídica. Verani (1992)

defende que duas áreas que lidam com os seres humanos, tais como a Psicologia e

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o Direito, só podem realizar um trabalho “[...] destinado a garantir a cidadania, a

garantir a dignidade da pessoa humana, que é um compromisso com a Constituição”

(p. 15-16). O autor continua: “este é o sentido – que eu imagino – do encontro entre

Direito e Psicologia: uma aliança em favor da dignidade da pessoa humana, em

favor da cidadania, em favor da liberdade” (p. 20). Desta forma, torna-se importante

aqui apresentar o estágio que realizamos no Centro de Direitos Humanos Maria da

Graça Braz, juntamente com estagiários do Direito, que compõe uma nova forma de

se trabalhar a Psicologia Jurídica.

4.4 PROJETO DE ASSISTÊNCIA JURÍDICA E PSICOLÓGICA (PAS – JP)

O PAS-JP – Projeto de Assistência Jurídica e Psicológica ao Conselho

Carcerário de Joinville e ao Centro de Direitos Humanos, é uma parceria firmada

entre o Centro de Direitos Humanos (CDH) Maria da Graça Bráz, o Conselho

Carcerário de Joinville e a Associação Catarinense de Ensino4 (mantenedora da

Faculdade de Psicologia de Joinville e da Faculdade de Direito de Joinville), com

vistas a fornecer apoio jurídico e psicológico aos encarcerados (da cidade e região),

aos egressos e a seus familiares. A finalidade do projeto é agilizar a resolução dos

trâmites que envolvem os processos jurídicos dos encarcerados e egressos e o

encaminhamento para a dimensão psicológica dos problemas sociais enfrentados

por esta população, buscando novas alternativas para as complexas questões

sociais trazidas pela sociedade contemporânea. Esta parceria propicia também, por

outro lado, contribuir na formação de profissionais engajados com a realidade latino-

americana e com os princípios ligados aos Direitos Humanos. Entende-se ser

preciso concentrar esforços, visando a formação de profissionais voltados à

promoção da cidadania da população e a ampliação e melhoria das atividades

desenvolvidas em prol das lutas sociais pelo Centro de Direitos Humanos e pelo

Conselho Carcerário.

Este projeto é composto por três frentes de trabalho, quais sejam: Frente A,

junto ao Conselho Carcerário de Joinville; Frente B, no Fórum da Comarca de

Joinville e; Frente C, no próprio CDH, em uma atuação interdisciplinar entre a

4 A descrição do PAS-JP aqui feita tem por bibliografia o documento não publicado que organiza o projeto no Centro dos Direitos Humanos Maria da Graça Braz.

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Psicologia e o Direito. As atribuições destacadas aos estagiários de Psicologia são

abaixo descritas:

- atendimento psicológico aos familiares e egressos do sistema prisional, orientando

e encaminhando para os serviços públicos existentes, de acordo com a demanda;

- orientação e atendimento psicológico aos movimentos sociais e grupos

assessorados pelo CDH com enfoque na Psicologia Social; elaboração de

diagnósticos psicossociais e apoio no planejamento e nas intervenções junto a

esses grupos.

Este relatório é oriundo do trabalho realizado pela frente C, cujo objetivo foi o

de orientação e atendimento psicológico aos movimentos sociais e grupos, bem

como individuais (em sua maioria, parentes de pessoas detidas no presídio ou

penitenciária da cidade, ainda que outras demandas também fossem comuns), que

procuram o CDH a fim de esclarecer suas dúvidas, buscar orientação ou mesmo

apoio psicológico perante as suas vicissitudes. O papel dos estagiários neste sentido

foi o de mediar práticas frente às questões sociais, com vistas à emancipação dos

atores que apresentam demandas de vulnerabilidade, buscando assim novas

alternativas para as complexas questões da sociedade coetânea.

Os atendimentos foram realizados na sede do Centro de Direitos Humanos,

em quatro horas semanais, sempre nas quintas-feiras, durante cinco meses (de julho

a novembro de 2006). É importante salientar que o CDH possui uma tradição no

acolhimento de demandas nesse dia da semana e por isso o movimento de pessoas

era alto. Nesses atendimentos, sempre realizados com um estagiário de Psicologia e

outro de Direito, orientados pela assessora jurídica da entidade, ouvia-se a demanda

do cliente e buscava-se orientá-lo naquilo que fosse necessário para que pudesse

resolver seu problema.

Relembrando a discussão de Vigotski acerca da mediação da fala, aponta-

se a dupla via mediadora da prática desse estágio. Primeiramente o serviço de

assistência oferecido culmina na ampliação das possibilidades de busca por

autonomia por parte do cliente. Este, ao apresentar sua demanda, encontra, por

meio dos atendentes, apoio das redes sociais que integram a estrutura de parcerias

do CDH (tal como o Conselho Carcerário, a Secretaria Municipal do Bem Estar

Social, etc.). Conforme apontado nas discussões de Sherer-Warren (2006), trata-se

de um movimento de mediação social que atua no empoderamento das pessoas

rumo à cidadania e defesa de seus direitos.

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Nesse sentido, destaca-se o caso de S.J. que foi assistido pelo plantão. Ele

representava sua esposa, D.M., que aguardava por uma consulta médica no SUS.

Conforme seu relato, havia demora excessiva para que tal consulta acontecesse.

Levando-se em conta que se tratava de um caso grave de doença cardíaca, S.J. foi

orientado acerca de seus direitos de pronto atendimento, bem como recebeu o apoio

institucional do CDH por meio de um documento de encaminhamento de denúncia a

ser entregue à Secretaria da Saúde, que em seu quadro conta com uma conselheira

do CDH, que por sua vez, encaminhou a referida denúncia ao Ministério Público

para as devidas providências. É a “articulação e trocas de experiências de vários

coletivos em redes, formando redes de redes” (SHERER-WARREN, 2006) que se

observa nas parcerias do CDH.

A segunda forma de mediação diz respeito à via de acesso ao atendimento

utilizada pelos clientes do CDH. O que se percebe é que o processo de

comunicação (espaço de fala/escuta) cliente/estagiário permite que a pessoa em

situação de demanda perceba suas possibilidades de ação, bem como dá subsídios

à intervenção técnica do projeto. Aqui, a título ilustrativo, recorremos ao caso do Sr.

F., que tem um neto preso. O Sr. F. procurou a assistência do CDH por diversas

vezes e nessas ocasiões ele relatava os problemas enfrentados: antes mesmo das

intervenções dos estagiários, ele fazia inferências acerca das possibilidades de

resolução, ou seja, a partir de sua própria fala elaborava estratégias de

enfrentamento das demandas geradas pela situação do neto. Trata-se da re-

significação de sua contextura.

Sendo assim, destaca-se ainda que muitas pessoas atendidas pelo projeto

foram encaminhadas a outras instituições que oferecem serviço à comunidade,

como por exemplo, a Faculdade de Direito de Joinville, que presta serviço jurídico

gratuito. Muitas pessoas também, verificando-se que necessitavam de atendimento

psicológico, recebiam apoio imediato, ou eram encaminhadas a alguma instituição

para realizar um trabalho a longo prazo.

Salienta-se que, no que se refere aos movimentos populares, os estagiários

participaram das reuniões de comunidades que se organizaram em torno de

demandas de violação de direitos. O trabalho nesses casos consistia-se de

intervenções, a fim de orientá-los enquanto grupo, bem como no sentido de prepará-

los para as vicissitudes que inerentemente perpassam os movimentos sociais.

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Portanto, agia-se para que pudessem ter força política e reivindicar seus direitos,

sempre em consonância com as reais possibilidades de atuação legal.

Cita-se o acompanhamento feito junto à Associação dos Vendedores

Ambulantes de Joinville (AVAJO). Na época, os representantes dessa entidade

relatavam que pessoas que trabalham no comércio de rua estavam sendo proibidas

pela prefeitura da cidade de exercer suas atividades laborais. Tratava-se de uma

questão do município que impedia legalmente qualquer ação que resolvesse

definitivamente o problema naquela ocasião (período de licença do prefeito). Porém,

havia a possibilidade de outras estratégias que agregariam força à luta desses

trabalhadores. Era justamente nesta direção que atuavam os estagiários: em uma

reunião da citada entidade, estes estudantes participaram primeiramente ouvindo as

queixas e relatos, ficando salientes as incoerências e os aspectos das falas que

remetiam à desorganização de seu movimento. No segundo momento dessa

reunião, pediu-se espaço para se colocar as impressões acerca da situação,

apontamento de atitudes necessárias para o primeiro passo da resolução de suas

questões, a impreterível coesão esperada de qualquer entidade que busca força

política. Dessa experiência percebemos que muitas providências foram assumidas

pelos integrantes da AVAJO e a força de suas atitudes se renovou para enfrentar o

período de espera que inevitavelmente ainda teriam que passar.

Seguindo nas considerações sobre o perfil dos clientes do projeto, afirma-se

que as pessoas procuram o CDH quando não têm mais para onde recorrer.

Geralmente já procuraram um advogado particular, foram nas instituições que estão

relacionadas à demanda, porém não obtendo resultado algum, recorrem ao CDH,

indicados por alguma instituição ou pessoa que já passou pela mesma situação. Há

ainda outro aspecto a se destacar acerca do perfil das pessoas que procuram o

Centro de Direitos Humanos: a grande maioria está em uma situação de

vulnerabilidade social, excluídos da sociedade. O que se observa é que, assim como

aponta Escorel (1995) ao falar sobre uma naturalização do fenômeno de exclusão,

existe uma

[...] natureza da incidência dos mecanismos que promovem o ciclo de reprodução da exclusão, representado pela aceitação tanto ao nível social, como do próprio excluído, expressa em afirmações como “isso é assim e não há nada para fazer” (ESCOREL, 1995 apud WANDERLEY, 1999, p. 23).

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Apontamos aqui um exemplo de atendimento que denota adequadamente

esta situação: o Sr. N., uma pessoa de cerca de 60 anos, sempre foi o provedor da

família, que por sua vez, esteve sempre em situação de pauperização.

Desempregado, este homem começou a realizar tráfico de drogas. Foi preso,

condenado e cumpriu pena na Penitenciária Industrial de Joinville. Lá, trabalhou na

lavanderia durante 1 ano, com vistas à redução desta pena e geração de renda.

Chegada a época da soltura, o Sr. N. não recebeu a remuneração acumulada deste

período, conforme deferia ter acontecido. Assim, estava novamente em liberdade,

desempregado e sem dinheiro e a família, em situação bastante precária. Desta vez,

procurou o plantão do PAS-JP, já em situação que beirava o desespero. Sua queixa

referia-se ao descuido com que seu caso vinha sendo tratado pelas autoridades

responsáveis há considerável tempo, com quem procurava dialogar, sem sucesso.

Fragilizado, o Sr. N. lamentava-se de sua condição, cogitando a necessidade

iminente de reincidência no crime de tráfico. O caso do Sr. N. confirma-nos o que

aponta Teles (1990 apud WANDERLEY, 1999) “[...] a estigmatização da pobreza

funciona através da lógica que faz os direitos serem transformados em ajuda, em

favores”. Assim, muitas pessoas, ao se deparem com a violação de seus direitos,

recorrem a instâncias públicas, a fim de solicitarem um “favor” para que seu

“problema” – que na verdade muitas vezes é apenas seu direito – seja resolvido,

reforçando assim, em nossa sociedade o processo de exclusão (WANDERLEY,

1999). Carvalho (1995) aponta que “por mais que discursemos sobre ‘direito’, na

prática, os serviços das diversas políticas públicas, ainda se apresentam aos

excluídos e subordinados como um ‘favor’ das elites dominantes” (CARVALHO,

1995 apud WANDERLEY, 1999 p. 24).

Ainda em se tratando do perfil das pessoas atendidas, pode-se perceber, a

partir dos dados levantados de todas as frentes de trabalho, que os atendimentos no

CDH aconteceram na sua maioria individualmente: dos 96 casos atendidos, apenas

dois foram de movimentos populares (2%) e 11 de famílias (11%). Assim, totalizou-

se 87% de casos individuais atendidos, conforme o gráfico 1, a seguir:

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47%

40%

11%

1% 0% 2%0%

10%

20%

30%

40%

50%

Masculino Feminino Família Grupo Entidade Movimento Social

Gráfico 1: Tipos de atendimentos realizados pelo PAS-JP

A maioria dos clientes atendidos pelo projeto estão desempregados ou

trabalham como autônomos, estando apenas 28% das pessoas empregadas. Com

esses dados, reforça-se a questão da situação em que uma grande parcela das

pessoas que procuram ajuda no CDH encontra-se - corroborando com os altos

índices de desemprego e a forma com a qual a sociedade contemporânea se

apresenta. Aqui, remonta-se à questão da vulnerabilidade já discutida

especificamente quanto ao trabalho, tal como apontado por Wanderley (1999):

existem,

[...] camadas da população consideradas aptas ao trabalho e adaptadas à sociedade moderna, porém, vitimas da conjuntura econômica e da crise de emprego. Assim, os excluídos na terminologia dos anos 90, não são residuais nem temporários, mas contingentes populacionais crescentes que não encontram lugar no mercado (p.19).

Outro dado importante de se salientar é a presença de algumas pessoas já

aposentadas, totalizando 11% dos atendidos (gráfico 2).

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28%

38%

8%11%

0%5%

10%15%20%25%30%35%40%

Empregado Desempregado Autônomo Aposentado

Gráfico 2: Tipo de renda das pessoas atendidas

O gráfico 3 apresenta o tipo de demanda das pessoas que procuram o CDH.

Observa-se que 28% das demandas trazidas foram em relação a algum crime,

geralmente cometido por um familiar. Segue-se o número de 23%, constituído de

pessoas com problemas de moradia, como por exemplo, que moram em lugares

sem documentação, casos de ocupação, etc. Ainda observa-se 15% de casos

relacionados à família, como por exemplo, separação do casal ou guarda de filhos.

As demandas relacionadas à previdência, psicológica e trabalhista aparecem em

menor número. Aqui, destaca-se que a demanda psicológica expressa por este

número aponta apenas para aqueles casos de pessoas que buscaram o CDH

exclusivamente para fins de orientação clínica.

13%

28%

23%

15%

2%

7%5%

7%

0%

5%

10%

15%

20%

25%

30%

Cível Criminal Moradia Família Previdenciário Trabalhista Psicológica Outras

Gráfico 3: Tipo de demanda apresentada

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Fazendo referência aos números acima apresentados, discute-se abaixo

outros casos acolhidos pela equipe interdisciplinar no plantão de atendimento do

CDH:

M. B. está presa na Turquia acusada de tráfico de drogas. O CDH dá

atenção ao seu caso por conta das peculiaridades de sua situação: ela é uma

mulher que se encontra detida em um país muçulmano, acusada de um crime lá

considerado hediondo, além de ter problemas graves de saúde. Dadas as precárias

condições financeiras e psicológicas de sua família, o CDH lhes concentra duas

frentes de apoio, sendo que uma se refere diretamente à assistência jurídica

prestada à M. B. e outra que concerne ao trabalho psicológico desenvolvido com

seus familiares, que necessitam constantemente do acompanhamento de pessoas

tecnicamente aptas, visto que, além da situação de encarceramento em um país

longínquo, há uma ampla exposição à mídia.

Por fim, ilustra-se os dados apresentados nos gráficos acima citando o

atendimento feito ao Sr. C., que havia saído da Penitenciária Industrial de Joinville

(PIJ) em caráter temporário e, portanto deveria retornar depois de alguns dias. Sr. C.

procurou o plantão do CDH para conseguir informações sobre o que fazer para

resolver seu problema de vício em álcool. Ele mostrou-se implicado nesta questão e

assim, depois de longa conversa com um estagiário, foi encaminhado para uma

entidade que acompanha pessoas com questões dessa natureza. Então, Sr. C. é um

homem, desempregado, que apresenta uma demanda oriunda de uma questão

criminal, que procurou atendimento junto ao CDH, representando dessa maneira, o

público que se tornou a principal clientela desse estágio.

Abranger a totalidade das implicações do trabalho desenvolvido no CDH

Maria da Graça Braz não resulta em tarefa fácil, porém, a fim de registrar as

concepções e os passos que nortearam esta atividade acadêmica e profissional,

salienta-se que, como um trabalho inicial, muito ainda deve sistematizado. Tudo o

que se desenvolveu pautou-se, primeiro e especialmente, na responsabilidade que

entendemos é condição sine qua non para todos os movimentos da pessoa que se

pretende psicóloga.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este relatório de Estágio Supervisionado em Psicologia Social estende um

olhar para um momento de mudanças e aprendizado muito importante: aquele que

marca o fim da formação em Psicologia e a primeira inserção longa em um campo

de estágio muito peculiar, qual seja, um Centro de Direitos Humanos. Entre tantos

fatores que marcaram essa trajetória, procuramos, neste relatório, sintetizar um

pouco as muitas experiências vivenciadas, ainda que tentar compreender as

questões discutidas aqui nem sempre foi tarefa fácil. Estamos cientes de que muito

mais poderia ainda ser explorado, isto é, de forma alguma esgotamos os temas

levantados, seja em sua análise teórica (e histórica), ou prática (também histórica).

À maneira de Lane (1981), pensamos que nossa grande preocupação,

enquanto psicólogos, é conhecer a pessoa humana e “como ela pode transformar a

sociedade” (p. 10). Apontamos que tudo que se realizou neste estágio, tanto em

termos de discussão teórica quanto de práticas adotadas, tratou-se de uma leitura

da realidade com vistas à sua transformação. Tratou-se em última instância, da

práxis.

É daí que se justifica a leitura histórica destacada na parte inicial deste

relatório. Não entendemos ser possível apreender a realidade se a descolarmos de

suas raízes sócio-culturais.

O que está se dizendo de modo cada vez mais claro é que a invenção da Psicologia acompanha uma necessidade historicamente posta de justificação da desigualdade estrutural e de controle do corpo social com procedimentos compatíveis com a ideologia liberal e a serviço dos que querem reproduzir a ordenação social em vigor porque se beneficiam dela. Como parte desse controle, a patologização dos comportamentos indesejáveis. O que equivale dizer que a Ciência é sempre engajada, que o conhecimento é sempre interessado. Mas os que fazem a Psicologia como cientistas ou profissionais tendem a desconsiderar esta questão. A ética do exercício de uma profissão é muito mais do que medidas pragmáticas que visam garantir a confidenciabilidade de dados sobre clientes. A ética do exercício da profissão refere-se à escala de valores que orienta essa prática (PATTO, 2003, p. 33-34).

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Nesse sentido, a Psicologia a que os propomos ao longo de cada quinta-

feira que estivemos no CDH, nos moldes da Psicologia Histórico-cultural, é uma

ciência dialética, uma Psicologia científica

[...] das formas mais gerais do devir tal como se manifesta no comportamento e nos processos de conhecimento, isto é, assim como a dialética da ciência natural é, ao mesmo tempo, a dialética da natureza, a dialética da psicologia é, por sua vez, a dialética do homem como objeto da psicologia (VIGOTSKI, 1996, p. 247).

Primeiramente, reler a história que nos conta a expressão “Direitos

Humanos”, ou aquela que entendemos como a história do Brasil, é buscar neste

passado respostas para questões do futuro. Olhar para a peculiar rede de poder que

se estabelece no bojo da concepção de um sistema punitivo carcerário, ou para a

singular condição social que vitimou uma pessoa, a levando a cometer o delito, é

sempre atentar para os fatos. Conforme já discutido, os direitos humanos tal qual

são conhecidos hoje foram concebidos e modificados de acordo com

acontecimentos históricos baseados em determinantes sociais que contribuíram para

o entendimento e luta daqueles que têm na proteção dos direitos humanos seu

principal ideal. Desta forma, sabe-se que a luta por estes direitos extrapola uma

questão somente humanista, de cuidado com o ser humano acima de tudo, mas

contempla também uma questão política.

Neste sentido, o discurso dos especialistas aborda o trabalho da Psicologia

no âmbito judiciário como sendo uma área chamada Psicologia Jurídica. Todavia, no

estágio realizado no CDH, pretendíamos ultrapassar o que tradicionalmente está

posto. Entendemos ter realizado uma mediação no sentido histórico-cultural, por

meio da fala.

Torna-se aqui importante salientar a interdisciplinaridade que permeou este

trabalho: durante todo o estágio no CDH, trabalhou-se em parceria com a equipe de

estagiários de Direito. Destaca-se que muitas vezes nosso papel, ao nos

depararmos com questões jurídicas, era o de mediar a fala das pessoas envolvidas,

para que estas pudessem se fazer entender e assim o estagiário de direito, por

exemplo, conseguir passar as informações ao cliente adequadamente.

Com as muitas intervenções que lá buscamos realizar, durante os

atendimentos realizados, queríamos possibilitar às pessoas que procuraram o CDH

novas formas de compreensão do mundo. Assim, procuramos mediar o modo como

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estas pessoas poderiam compreender sua realidade. Buscamos, concomitantemente

à nossa prática, entender a gênese dos processos psicológicos, pois entendemos

que o homem é um ser inerentemente social, já que é do contato com o outro que

ele tira os meios de sobrevivência e também é a partir desse contato que ele

aprende a ser humano, conforme já dito. Assim, propiciamos espaço para a fala.

Queríamos, pela mediação, propiciar ampliação de consciência, segundo os termos

de Vigotski, pois,

para ele, a consciência e as funções superiores se originam no espaço exterior, na relação com os objetos e pessoas, nas condições objetivas da vida social (...). Vigotski chamava de internalização a reconstrução interna da atividade externa. Sem os signos externos, principalmente a linguagem, não seria possível a internalização e a construção das funções superiores (FREITAS, 1994, p. 90-91 apud BOCK, 1999, p. 31).

Buscávamos, com estas pessoas, novos sentidos pessoais, dados por elas

durante os atendimentos. Sabíamos que:

(...) se, por um lado, os significados atribuídos às palavras são produzidos pela coletividade, no seu processar histórico e no desenvolvimento de sua consciência social, e como tal, se subordina às leis histórico-sociais, por outro, os significados se processam e se transformam através de atividades e pensamentos de indivíduos concretos e assim se individualizam, se ‘subjetivam’, na medida em que ‘retornam’ para a objetividade sensorial do mundo que os cerca, através das ações que eles desenvolvem concretamente. Dessa forma os significados produzidos historicamente pelo grupo social adquirem, no âmbito do indivíduo, um ‘sentido pessoal’, ou seja, a palavra se relaciona com a realidade, com a própria vida e com os motivos de cada indivíduo (LANE, 1984, p.33-34 apud BOCK, 1999, p. 32).

Ao iniciar o trabalho, não sabíamos exatamente como o realizaríamos.

Tínhamos certeza, todavia, do compromisso que tínhamos assumido. Sabíamos que

as possibilidades de atuação seriam diversificadas e que muitos caminhos poderiam

ser adotados. Escolhemos aquele que pensamos seria o que mais transformações

deixaria naquele contexto, levando em conta que esta foi a primeira inserção de um

grupo de estagiários em Psicologia Social neste CDH.

Devemos lembrar ainda que o aprendizado da prática profissional do

psicólogo só se dá efetivamente quando se realiza de fato o trabalho. Todavia,

salientamos, tal como apontado por Silva, Ribeiro e Marçal (2004) que o momento

de supervisão é privilegiado de aprendizagem, já que possibilitou-nos pensar acerca

de nossas ações, pensamentos e sentimentos que constituíram a prática. É um

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momento no qual o professor tem a oportunidade de ensinar aos estagiários modos

de atuação de um psicólogo desta área (SILVA; RIBEIRO; MARÇAL, 2004) e

conforme Schön (2002 apud SILVA; RIBEIRO; MARÇAL, 2004) a supervisão

circunscreve um “ensino prático reflexivo”, isto é, a reflexão sobre a ação. Isto nos foi

propiciado ao longo do semestre, em cada encontro com o professor supervisor,

cujas reflexões nos foram fundamentais para a adoção do norte de nosso trabalho.

À guisa de conclusão, convém salientar que esperamos ter contribuído para

mediações com vistas à compreensões novas sobre a realidade, intervindo de modo

a transformar em alguma medida aquela contextura. Esperamos ter, em uma mínima

parte, contribuído para a superação de injustiças a partir dessa práxis, certos de que

caminhar por este percurso implica no desafio de buscar compreender a gênese das

coisas. O que queremos com isso afirmar é que primeiramente ou finalmente

(porque dialeticamente) o significado do fenômeno que é a injustiça social é

subjetivo – próprio de cada pessoa, contudo, possui sua dimensão social. Ou seja,

iniciamos uma caminhada a fim de entender a dimensão social de um fenômeno

subjetivo para então, ao final de nossas análises, tentar entender algo sobre a

dimensão subjetiva do fenômeno social a fim de não mais olhar para essa realidade

ingenuamente.

Afirmamos ainda que novas compreensões foram possíveis aos estagiários.

Hoje sabemos que queremos, ao exemplo de Bock,

um psicólogo em movimento. Essa deve ser a nossa meta. Um psicólogo aliado da transformação social, do movimento da sociedade e dos interesses da maioria da população. Um psicólogo inquieto, conspirador, que saiba estranhar aquilo que na realidade se torna tão familiar que chega a ser pensado como natural (...). Um psicólogo permeável às inovações que aceite o desafio de, coletivamente, produzir alternativas à Psicologia tradicional (BOCK, 1997, p. 41).

Cientes deste compromisso e responsabilidade, esperamos ultrapassar, com

este trabalho, somente o registro de fatos. Antes, propomo-nos a uma compreensão,

somada a ações, que venham a alargar o campo de práticas e concepções da

Psicologia.

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ANEXO DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS

PREÂMBULO CONSIDERANDO que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros

da familia humana e seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade,

da justiça e da paz no mundo; CONSIDERANDO que o desprezo e o desrespeito pelos direitos do homem

resultaram em atos bárbaros que ultrajaram a consciência da Humanidade, e que o

advento de um mundo em que os homens gozem de liberdade de palavra, de crença

e da liberdade de viverem a salvo do temor e da necessidade foi proclamado com a

mais alta aspiração do homem comum;

CONSIDERANDO ser essencial que os direitos do homem sejam protegidos pelo

império da lei, para que o homem não seja compelido, como último recurso, à

rebelião contra a tirania e a opressão;

CONSIDERANDO ser essencial promover o desenvolvimento de relações amistosas

entre as nações;

CONSIDERANDO que os povos das Nações Unidas reafirmaram, na Carta, sua fé

nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor da pessoa humana e

na igualdade de direitos do homem e da mulher, e que decidiram promover o

progresso social e melhores condições de vida em uma liberdade mais ampla;

CONSIDERANDO que os Estados-Membros se comprometeram a promover, em

cooperação com as Nações Unidas, o respeito universal aos direitos e liberdades

fundamentais do homem e a observância desses direitos e liberdades, CONSIDERANDO que uma compreensão comum desses direitos e liberdades é da

mais alta importância para o pleno cumprimento desse compromisso,

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A ASSENBLÉIA GERAL das NAÇÕES UNIDAS PROCLAMA

a presente "Declaração Universal dos Direitos do Homem" como o ideal

comum a ser atingido por todos os povos e todas as nações, como o objetivo de que

cada indivíduo e cada órgão da sociedade, tendo sempre em mente esta

Declaração, se esforce, através do ensino e da educação, por promover o respeito a

esses direitos e liberdades, e, pela adoção de medidas progressivas de caráter

nacional e internacional, por assegurar o seu reconhecimento e a sua observância

universais e efetivos, tanto entre os povos dos próprios Estados-Membros, quanto

entre os povos dos territórios sob sua jurisdição.

Artigo 1

Todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São

dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com

espírito de fraternidade.

Artigo 2

I) Todo o homem tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades

estabelecidos nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça,

cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou

social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição.

II) Não será também feita nenhuma distinção fundada na condição política,

jurídica ou internacional do país ou território a que pertença uma pessoa, quer se

trate de um território independente, sob tutela, sem governo próprio, quer sujeito a

qualquer outra limitação de soberania.

Artigo 3

Todo o homem tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal.

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Artigo 4

Ninguém será mantido em escravidão ou servidão; a escravidão e o tráfico

de escravos estão proibidos em todas as suas formas.

Artigo 5

Ninguém será submetido a tortura, nem a tratamento ou castigo cruel,

desumano ou degradante.

Artigo 6

Todo homem tem o direito de ser, em todos os lugares, reconhecido como

pessoa perante a lei.

Artigo 7

Todos são iguais perante a lei e tem direito, sem qualquer distinção, a igual

proteção da lei. Todos tem direito a igual proteção contra qualquer discriminação que

viole a presente Declaração e contra qualquer incitamento a tal discriminação.

Artigo 8

Todo o homem tem direito a receber dos tribunais nacionais competentes

remédio efetivo para os atos que violem os direitos fundamentais que lhe sejam

reconhecidos pela constituição ou pela lei.

Artigo 9

Ninguém será arbitrariamente preso, detido ou exilado.

Artigo 10

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Todo o homem tem direito, em plena igualdade, a uma justa e pública

audiência por parte de um tribunal independente e imparcial, para decidir de seus

direitos e deveres ou do fundamento de qualquer acusação criminal contra ele.

Artigo 11

I) Todo o homem acusado de um ato delituoso tem o direito de ser

presumido inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a

lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias

necessárias a sua defesa.

II) Ninguém poderá ser culpado por qualquer ação ou omissão que, no

momento, não constituiam delito perante o direito nacional ou internacional. Também

não será imposta pena mais forte do que aquela que, no momento da prática, era

aplicável ao ato delituoso.

Artigo 12

Ninguém será sujeito a interferências na sua vida privada, na sua família, no

seu lar ou na sua correspondência, nem a ataques a sua honra e reputação. Todo o

homem tem direito à proteção da lei contra tais interferências ou ataques.

Artigo 13

I) Todo homem tem direito à liberdade de locomoção e residência dentro das

fronteiras de cada Estado.

II) Todo o homem tem o direito de deixar qualquer país, inclusive o próprio, e

a este regressar.

Artigo 14

I) Todo o homem, vítima de perseguição, tem o direito de procurar e de

gozar asilo em outros países.

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II) Este direito não pode ser invocado em casos de perseguição

legitimamente motivada por crimes de direito comum ou por atos contrários aos

objetivos e princípios das Nações Unidas.

Artigo 15

I) Todo homem tem direito a uma nacionalidade.

II) Ninguém será arbitrariamente privado de sua nacionalidade, nem do

direito de mudar de nacionalidade.

Artigo 16

I) Os homens e mulheres de maior idade, sem qualquer restrição de raça,

nacionalidade ou religião, tem o direito de contrair matrimônio e fundar uma família.

Gozam de iguais direitos em relação ao casamento, sua duração e sua dissolução.

II) O casamento não será válido senão com o livre e pleno consentimento

dos nubentes.

III) A família é o núcleo natural e fundamental da sociedade e tem direito à

proteção da sociedade e do Estado.

Artigo 17

I) Todo o homem tem direito à propriedade, só ou em sociedade com outros.

II) Ninguém será arbitrariamente privado de sua propriedade.

Artigo 18

Todo o homem tem direito à liberdade de pensamento, consciência e

religião; este direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade

de manifestar essa religião ou crença, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela

observâcia, isolada ou coletivamente, em público ou em particular.

Artigo 19

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Todo o homem tem direito à liberdade de opinião e expressão; este direito

inclui a liberdade de, sem interferências, ter opiniões e de procurar, receber e

transmitir informações e idéias por quaisquer meios, independentemente de

fronteiras.

Artigo 20

I) Todo o homem tem direito à liberdade de reunião e associação pacíficas.

II) Ninguém pode ser obrigado a fazer parte de uma associação.

Artigo 21

I) Todo o homem tem o direito de tomar parte no governo de seu país

diretamente ou por intermédio de representantes livremente escolhidos.

II) Todo o homem tem igual direito de acesso ao serviço público do seu país.

III) A vontade do povo será a base da autoridade do governo; esta vontade

será expressa em eleições periódicas e legítimas, por sufrágio universal, por voto

secreto ou processo equivalente que assegure a liberdade de voto.

Artigo 22

Todo o homem, como membro da sociedade, tem direito à segurança social

e à realização, pelo esforço nacional, pela cooperação internacional e de acordo

com a organização e recursos de cada Estado, dos direitos econômicos, sociais e

culturais indipensáveis à sua dignidade e ao livre desenvolvimento de sua

personalidade.

Artigo 23

I) Todo o homem tem direito ao trabalho, à livre escolha de emprego, a

condições justas e favoráveis de trabalho e à proteção contra o desemprego.

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II) Todo o homem, sem qualquer distinção, tem direito a igual remuneração

por igual trabalho.

III) Todo o homem que trabalha tem direito a uma remuneração justa e

satisfatória, que lhe assegure, assim como a sua família, uma existência compatível

com a dignidade humana, e a que se acrescentarão, se necessário, outros meios de

proteção social.

IV) Todo o homem tem direito a organizar sindicatos e a neles ingressar para

proteção de seus interesses.

Artigo 24

Todo o homem tem direito a repouso e lazer, inclusive a limitação razoável

das horas de trabalho e a férias remuneradas periódicas.

Artigo 25

I) Todo o homem tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e

a sua família saúde e bem estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação,

cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em

caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda de

meios de subsistência em circunstâncias fora de seu controle.

II) A maternidade e a infância tem direito a cuidados e assistência especiais.

Todas as crianças, nascidas dentro ou fora do matrimônio, gozarão da mesma

proteção social.

Artigo 26

I) Todo o homem tem direito à instrução. A instrução será gratuita, pelo

menos nos graus elementares e fundamentais. A instrução elementar será

obrigatória. A instrução técnico-profissional será acessível a todos, bem como a

instrução superior, esta baseada no mérito.

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II) A instrução será orientada no sentido do pleno desenvolvimento da

personalidade humana e do fortalecimento do respeito pelos direitos do homem e

pelas liberdades fundamentais. A instrução promoverá a compreensão, a tolerância

e amizade entre todas as nações e grupos raciais ou religiosos, e coadjuvará as

atividades das Nações Unidas em prol da manutenção da paz.

III) Os pais têm prioridade de direito na escolha do gênero de instrução que

será ministrada a seus filhos.

Artigo 27

I) Todo o homem tem o direito de participar livremente da vida cultural da

comunidade, de fruir as artes e de participar do progresso científico e de fruir de

seus benefícios.

II) Todo o homem tem direito à proteção dos interesses morais e materiais

decorrentes de qualquer produção científica, literária ou artística da qual seja autor.

Artigo 28

Todo o homem tem direito a uma ordem social e internacional em que os

direitos e liberdades estabelecidos na presente Declaração possam ser plenamente

realizados.

Artigo 29

I) Todo o homem tem deveres para com a comunidade, na qual o livre e

pleno desenvolvimento de sua personalidade é possível.

II) No exercício de seus direitos e liberdades, todo o homem estará sujeito

apenas às limitações determinadas pela lei, exclusivamente com o fim de assegurar

o devido reconhecimento e respeito dos direitos e liberdades de outrem e de

satisfazer as justas exigências da moral, da ordem pública e do bem-estar de uma

sociedade democrática.

III) Esses direitos e liberdades não podem, em hipótese alguma, ser

exercidos contrariamente aos objetivos e princípios das Nações Unidas.

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Artigo 30

Nenhuma disposição da presente Declaração pode ser interpretada como o

reconhecimento a qualquer Estado, grupo ou pessoa, do direito de exercer qualquer

atividade ou praticar qualquer ato destinado à destruição de quaisquer direitos e

liberdades aqui estabelecidos.