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Direitos Difusos e Coletivos

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Júlio Camargo de Azevedo. Mestre em Direito Processual Civil pela Universidade de São Paulo (USP). Especialista em Direito Processual Civil e Bacharel pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP). Defensor Público no Estado de São Paulo. Coordenador do Grupo de Estudos de Direito Processual Civil da Defensoria Pública de São Paulo (GEDPC-DPSP). Membro do Centro de Estudos Avançados de Processo (CEAPRO). Mediador formado pelo Instituto de Mediação Transformativa. Professor convidado de Cursos Preparatórios para Concurso Público e de Cursos de Pós-graduação. Vencedor do VII Prêmio “Justiça para Todas e Todos – Josephina Bacariça” na categoria Defensor Público.

Tiago Fensterseifer. Doutor e Mestre em Direito Público pela PUC/RS (Ex-Bolsista do CNPq), com pesquisa de doutorado-sanduíche junto ao Instituto Max-Planck de Direito Social e Política Social de Munique, na Alemanha (Bolsista da CAPES). Atualmente, realiza pesquisa em nível de pós-doutorado junto ao Instituto Max-Planck de Direito Social e Politica Social de Munique (2018-2019). Conselheiro eleito do Conselho Superior da Defensoria Publica do Estado de São Paulo (2008-2009). Membro-colaborador do Núcleo de Direitos Humanos da Defensoria Publica do Estado de São Paulo (2007-2012). Examinador das disciplinas de Direito Constitucional, Direitos Humanos, Direitos Difusos e Coletivos e Princípios Institucionais da Defensoria Pública de diversos concursos para o cargo de Defensor Publico Estadual (DP/SP, DP/SC, DP/BA, DP/ES, DP/AM, DP/AP). Autor, entre outras, das obras Defensoria Pública, Direitos Fundamentais e Ação Civil Pública (São Paulo: Saraiva, 2015) e Defensoria Pública na Constituição Federal (Rio de Janeiro: GEN/Forense, 2017); coautor, juntamente com Ingo Wolfgang Sarlet, das obras Direito Constitucional Ambiental (6.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019, no prelo), Direito Ambiental: Introdução, Fundamentos e Teoria Geral (São Paulo: Saraiva, 2014), obra finalista do Premio Jabuti 2015, na Categoria Direito, e Princípios do Direito Ambiental (2.ed. São Paulo: Saraiva, 2017); coautor, juntamente com Ingo W. Sarlet e Paulo Affonso Leme Machado da obra Constituição e Legislação Ambiental Comentadas (São Paulo: Saraiva, 2015). Defensor Público do Estado de São Paulo (desde 2007).

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PROFESSOR TIAGO FENSTERSEIFER

🏳 DIREITO AMBIENTAL

1. A “CONSTITUCIONALIZAÇÃO” DO DIREITO AMBIENTAL

1.1. O NOVO CONSTITUCIONALISMO ECOLÓGICO

O Direito e, especialmente, o Direito Constitucional e a Teoria dos Direitos Fundamentais não podem recusar respostas aos problemas e desafios postos pela situação de risco existencial e degradação ambiental colocadas no horizonte contemporâneo diante da crise ambiental. Cumpre ao Direito, portanto, a fim de restabelecer o equilíbrio e a segurança nas relações sociais (agora socioambientais), a missão de posicionar-se em relação a essas novas ameaças que fragilizam e colocam em risco a ordem de valores e os princípios republicanos e do Estado Democrático de Direito, bem como comprometem fortemente a sobrevivência (humana e não humana) e a qualidade de vida.

Com base em tais premissas, J. J. Gomes Canotilho aponta para os “problemas de risco” como um dos principais desafios postos para a Teoria da Constituição na contemporaneidade. Entre os conceitos de risco, o constitucionalista português elenca: os perigos (conhecidos e desconhecidos) gerados pela moderna tecnologia; as ameaças de toda a civilização planetária (a partir da teoria de Ulrich Beck); as potencialidades do domínio tecnológico da natureza e da pessoa; os desafios colocados às comunidades humanas no plano da segurança e previsibilidade perante eventuais catástrofes provocadas pela técnica e pela ciência.1

De igual maneira, J. C. Vieira de Andrade situa a problemática do risco no âmbito da Teoria Constitucional, pontuando que os sociólogos descrevem a sociedade atual, já num contexto pós-industrial, como uma “sociedade de risco” (Beck) ou uma “sociedade do desaparecimento” (Breuer), seja em face dos “perigos ecológicos” (e mesmo perigos genéticos) ou, segundo alguns, em virtude de uma caminhada, por força do seu próprio movimento, para a destruição das condições de vida naturais e sociais, transitando da “da autorreferência (autopoiesis) para a autodestruição”.2 Destarte, a Teoria da Constituição e, consequentemente, a Teoria dos Direitos Fundamentais, assim como o direito constitucional positivo, devem avançar e se desenvolver, acolhendo os novos conceitos e os valores ecológicos, especialmente

1 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 5. ed. Coimbra: Almedina, 2002, p. 1354.

2 ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. 2. ed. Coimbra: Almedina, 2001, p. 61.

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no sentido de uma Teoria Constitucional e uma Teoria dos Direitos Fundamentais “ecologicamente” adequada e comprometida.

1.2. ESTADO “AMBIENTAL OU ECOLÓGICO” DE DIREITO

O princípio do Estado de Direito (nas suas diferentes dimensões) é um dos princípios fundamentais do constitucionalismo contemporâneo. Mas o Estado de Direito (aqui compreendido sempre como um Estado Democrático) tem assumido diferentes configurações ao longo da evolução do constitucionalismo. Assim, tendo em conta os novos desafios gerados pela crise ecológica e pela sociedade tecnológica e industrial, a configuração de um novo modelo de Estado de Direito no horizonte jurídico-constitucional contemporâneo, superando os paradigmas antecedentes, respectivamente, do Estado Liberal e do Estado Social, passou a assumir um lugar de destaque.

No tocante ao modelo contemporâneo de Estado de Direito, é possível aderir à ideia da superação do modelo do Estado Social (que, por sua vez, já havia superado o Estado Liberal) – pelo menos na forma assumida após a Segunda Grande Guerra – por um modelo de Estado Democrático, Social e Ecológico de Direito, também designado por alguns de Pós-Social,3 que, em verdade, não abandona as conquistas dos demais modelos de Estado de Direito em termos de salvaguarda da dignidade humana, mas apenas agrega a elas uma dimensão ecológica, comprometendo-se com a estabilização e prevenção do quadro de riscos e degradação ecológica.

O Estado contemporâneo, pelo menos como aqui compreendido, não pode ser concebido como um Estado “Pós-Social”, precisamente em virtude da circunstância de que o projeto de realização dos direitos fundamentais sociais longe está de uma realização satisfatória, ainda mais considerando a privação, até mesmo na esfera de um patamar minimalista, do acesso aos bens sociais básicos para um expressivo número de seres humanos. Em regra, a miséria e a pobreza (como projeções da falta de acesso aos direitos sociais básicos, como saúde, saneamento básico, educação, moradia, alimentação, renda mínima etc.) caminham juntas com a degradação e poluição ambiental, expondo a vida das populações de baixa renda e violando, por duas vias distintas, a sua dignidade.

O processo de afirmação histórica dos direitos fundamentais, sob a perspectiva das suas diferentes dimensões (liberal, social e ecológica), reforça a caracterização constitucional do Estado Socioambiental, em superação aos modelos de Estado Liberal e Social. O marco jurídico-constitucional socioambiental ajusta-se à necessidade da tutela e promoção – integrada e interdependente – dos direitos sociais e dos direitos ambientais num mesmo projeto jurídico-político para o desenvolvimento humano em padrões sustentáveis, inclusive pela perspectiva da noção ampliada e integrada dos direitos fundamentais

3 SARMENTO, Daniel. “Os direitos fundamentais nos paradigmas liberal, social e pós-social (pós-modernidade constitucional?)”. In: SAMPAIO, José Adércio Leite (Coord.). Crise e desafios da Constituição: perspectivas críticas da teoria e das práticas constitucionais brasileiras. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 375-414.

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socioambientais ou direitos fundamentais econômicos, sociais, culturais e ambientais (DESCA).

Não sem razão, adota-se aqui a formulação do jurista alemão Gerd Winter e o reconhecimento dos três pilares centrais que integram e dão suporte à noção de desenvolvimento sustentável, quais sejam, o econômico, o social e o ambiental,4 o que, diga-se de passagem, encontra perfeita sintonia com o projeto normativo da nossa Lei Fundamental de 1988, facilmente apreensível do somatório entre o objetivo constitucional erradicar a pobreza, reduzir as desigualdades sociais (art. 3.º, I e III), o estabelecimento de uma ordem econômica sustentável (art. 170, VI) e o dever de tutela ecológica atribuído ao Estado e à sociedade (art. 225).

O Estado de Direito contemporâneo, nesse novo cenário jurídico, tem por missão e dever constitucional atender ao comando normativo emanado do art. 225 da Constituição Ecológica de 1988, considerando, inclusive, o extenso rol exemplificativo de deveres de proteção ambiental do Estado elencado no seu § 1.º, sob pena de, não o fazendo, tanto sob a ótica da sua ação quanto da sua omissão (ou atuação insuficiente), incorrer em práticas inconstitucionais ou antijurídicas autorizadoras da sua responsabilização por danos causados a terceiros – além do dano causado ao meio ambiente em si.

CAPÍTULO VI

DO MEIO AMBIENTE

Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações.

§ 1º - Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público:

I - preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o manejo ecológico das espécies e ecossistemas;

II - preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do País e fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético;

III - definir, em todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos, sendo a alteração e a supressão permitidas somente através de lei, vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção;

IV - exigir, na forma da lei, para instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente, estudo prévio de impacto ambiental, a que se dará publicidade;

V - controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias

4 WINTER, Gerd. Desenvolvimento sustentável, OGM e responsabilidade civil na União Europeia. Campinas: Millennium Editora, 2009, p. 2 e ss.

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que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente;

VI - promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e a conscientização pública para a preservação do meio ambiente;

VII - proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade.

§ 2º - Aquele que explorar recursos minerais fica obrigado a recuperar o meio ambiente degradado, de acordo com solução técnica exigida pelo órgão público competente, na forma da lei.

§ 3º - As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados.

§ 4º - A Floresta Amazônica brasileira, a Mata Atlântica, a Serra do Mar, o Pantanal Mato-Grossense e a Zona Costeira são patrimônio nacional, e sua utilização far-se-á, na forma da lei, dentro de condições que assegurem a preservação do meio ambiente, inclusive quanto ao uso dos recursos naturais.

§ 5º - São indisponíveis as terras devolutas ou arrecadadas pelos Estados, por ações discriminatórias, necessárias à proteção dos ecossistemas naturais.

§ 6º - As usinas que operem com reator nuclear deverão ter sua localização definida em lei federal, sem o que não poderão ser instaladas.

De igual maneira, a CF/1988 delineou a competência administrativa (art. 23), em sintonia com os deveres de proteção ambiental, de todos os entes federativos (Municípios, Estados, Distrito Federal e União) na seara ambiental, de modo que incumbe a todos a tarefa – e responsabilidade solidária – de “proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas (inciso VI)” e “preservar as florestas, a fauna e a flora (inciso VII)”.5 A partir de tal entendimento, a omissão ou não atuação (quando lhe é imposto juridicamente agir) ou a atuação insuficiente (de modo a não proteger o direito fundamental de modo adequado e suficiente), no tocante a medidas legislativas e administrativas voltadas ao combate às causas geradoras da degradação do ambiente, pode ensejar, em alguns casos, até mesmo a intervenção e o controle judicial, inclusive no tocante às políticas públicas levadas a cabo pelos entes federativos em matéria socioambiental.

Há, nesse sentido, um papel determinante do Poder Judiciário, bem como das instituições públicas voltadas à tutela dos direitos socioambientais e que dispõem de legitimidade para a adoção de medidas extrajudiciais e judiciais – por exemplo, do termo de ajustamento de conduta e da ação civil pública – para

5 A norma constitucional em questão foi regulamentada no âmbito infraconstitucional por meio da Lei Complementar 140/2011 (Competência administrativa em matéria ambiental).

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a resolução de tais conflitos, como é o caso do Ministério Público e da Defensoria Pública, além, é claro, das associações civis de proteção ambiental e do próprio cidadão, este último através do manuseio da ação popular.

DEVERES DE PROTEÇÃO AMBIENTAL DO ESTADO BRASILEIRO

Estado-Legislador - Elaborar a legislação ambiental, tendo por premissa o regime constitucional e infraconstitucional de tutela ecológica;

- Dever de progressividade, proibição de retrocesso e vedação de proteção insuficiente na regulamentação normativa em matéria ambiental;

Estado-Administrador - Executar a legislação ambiental;

- Assegurar adequada estrutura organizacional-administrativa dos órgãos ambientais;

- Exercer o poder de polícia ambiental;

- Promover políticas públicas ambientais (ex. educação e conscientização ambiental);

Estado-Juiz - Aplicação da legislação ambiental na atividade jurisdicional;

- Exercer o controle subsidiário da atuação dos demais poderes e judicialização dos danos causados ao ambiente;

Há a necessidade de transcender de um pacto social para um pacto ecológico, em vista de contemplar o novo papel que o Estado e a sociedade desempenham no âmbito do novo Estado Ambiental ou Ecológico de Direito. Deve-se projetar uma nova postura política (e também jurídica) para a sociedade civil, que, especialmente sob o marco normativo da solidariedade, deverá compartilhar com o Estado (não obstante em menor intensidade) a carga de responsabilidades e deveres de tutela do ambiente para as gerações presentes e futuras.

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EVOLUÇÃO HISTÓRICA DOS MODELOS DE ESTADO DE DIREITO

Modelos de Estado

de Direito

Função estatal (em relação aos direitos

fundamentais)

Princípio básico Dimensões

de direitos fundamentais

Estado Liberal Defensiva/negativa Liberdade 1ª dimensão ou direitos liberais

Estado Social Prestacional/positiva Igualdade 2ª dimensão ou direitos sociais

Estado Ambiental

(e Democrático)

Preponderantemente prestacional/positiva

Solidariedade

(ou Fraternidade)

3ª dimensão ou direitos ecológicos

1.3. DIREITO (E DEVER) FUNDAMENTAL AO AMBIENTE

O tratamento jurídico-constitucional dispensado à proteção do ambiente pela nossa Lei Fundamental de 1988 permite a constatação de que a norma constitucional não impôs apenas deveres de proteção ambiental ao Estado, mas também lançou mão da responsabilidade dos particulares para a consecução de tal objetivo constitucional. Ao dispor no caput do seu art. 225 que se impõe “ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”, a tutela constitucional do ambiente passou a vincular juridicamente (para além de uma obrigação moral) também os particulares – e não somente os entes públicos –, atribuindo aos mesmos não apenas um direito fundamental ao ambiente (pelo menos no sentido de um direito de exigir que o Estado e terceiros se abstenham de atentar contra o ambiente e atuem no sentido de protegê-lo), mas também deveres fundamentais de proteção do ambiente atribuídos aos particulares (pessoas físicas e jurídicas), inclusive por forca da eficácia entre particulares (ou horizontal) do direito ao ambiente, o que conduz ao reconhecimento do direito ao ambiente como autêntico direito-dever.

1.3.1. DIREITO AO AMBIENTE COMO DIREITO FUNDAMENTAL DE 3ª DIMENSÃO (OU GERAÇÃO)

O reconhecimento de um direito fundamental a um ambiente ecologicamente equilibrado ajusta-se, consoante já enfatizado, aos novos enfrentamentos históricos de natureza existencial postos pela crise ecológica, complementando os já amplamente consagrados direitos civis, políticos e socioculturais. Com efeito, considerando a insuficiência dos direitos de liberdade e mesmo dos direitos sociais, o

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reconhecimento de um direito fundamental ao meio ambiente (ou à proteção ambiental) constitui aspecto central da agenda político-jurídica contemporânea. Nesse contexto, consoante pontua Perez Luño, a incidência direta do ambiente na existência humana (sua transcendência para o seu desenvolvimento ou mesmo possibilidade) é que justifica a sua inclusão no estatuto dos direitos fundamentais, considerando o ambiente como todo o conjunto de condições externas que conformam o contexto da vida humana.6

De acordo com Norberto Bobbio – e cientes das justificadas críticas que têm sido formuladas em relação à classificação dos direitos (humanos e fundamentais) em gerações e mesmo dimensões7 –, “ao lado dos direitos sociais, que foram chamados de direitos de segunda geração, emergiram hoje os chamados direitos de terceira geração, que constituem uma categoria, para dizer a verdade, ainda excessivamente heterogênea e vaga, o que nos impede de compreender do que efetivamente se trata. O mais importante deles é o reivindicado pelos movimentos ecológicos: o direito de viver num ambiente não poluído”.8 Na base da terceira categoria de direitos fundamentais, conforme pontua Klaus Bosselmann, radica a ideia de serem eles essencialmente coletivos (transindividuais), expressando direitos coletivos ou de grupos, bem como o fato de dependerem fortemente de mecanismos de cooperação substancial de todas as forças sociais para a sua realização.9

No compasso da evolução histórica dos direitos fundamentais, passou-se da perspectiva do indivíduo à da espécie humana, considerada inclusive em perspectiva futura, através da proteção jurídica dos interesses das futuras gerações. Assim como, das liberdades individuais migrou-se à solidariedade planetária.

Ademais, da mesma forma como os direitos liberais tem o seu alicerce normativo no princípio da liberdade e os direitos sociais são formatados sob a égide do princípio da igualdade, os direitos fundamentais de terceira dimensão, como é o caso do direito ao ambiente, encontrariam o seu suporte normativo-axiológico no princípio (e dever) da solidariedade. As duas dimensões (liberal e social) dos direitos humanos e fundamentais conformam as duas maiores tradições políticas (o pensamento liberal e o pensamento social). A primeira resulta do liberalismo cunhado no Século 18 e reformulado nos Séculos subsequentes, ao passo que a segunda marca os Séculos 19 e 20, desembocando na estruturação do modelo contemporâneo do Estado Constitucional, na condição de um Estado Democrático, Social e Ecológico de Direito10, comprometido, para além das liberdades individuais, com as noções de igualdade

6 PÉREZ LUÑO, Antonio Enrique. Derechos Humanos, Estado de Derecho y Constitución. 5. ed. Madrid: Editorial Tecnos, 1995, p. 463.

7 A respeito da trajetória “evolutiva” dos direitos fundamentais e especialmente no que diz com uma perspectiva crítica à classificação em gerações, v., por todos, SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 10. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, especialmente p. 52-57.

8 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. 10. ed. Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 06.

9 BOSSELMANN, Klaus. Ökologische Grundrechte: zum Verhältnis zwischen individueller Freiheit und Natur. Baden-Baden: Nomos Verlagsgesellschaft, 1998, p. 293.

10 V. SARLET, Ingo W.; FENSTERSEIFER, Tiago. Direito constitucional ecologico. 6.ed. Sao Paulo: Revista dos Tribunais, 2019.

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substancial e solidariedade.

QUADRO DAS DIMENSÕES (OU GERAÇÕES) DE DIREITOS FUNDAMENTAIS

Direitos Fundamentais Princípio Geral Titular Fundamento Constitucional

1ª Dimensão ou liberais

(ex. vida, integridade física e psíquica, liberdade, etc.)

Liberdade Indivíduo Art. 5º

2ª Dimensão ou sociais

(ex. saúde, educação, moradia, alimentação, etc.)

Igualdade Grupo social

(e também o indivíduo)

Art. 6º

3ª Dimensão ou ecológicos

(ex. meio ambiente, água, paz, patrimônio comum da

humanidade, etc.)

Solidariedade Toda a coletividade

(e futuras gerações?)

Art. 225

A Declaração de Estocolmo das Nações Unidas sobre Meio Ambiente Humano (1972) apresenta-se como o marco histórico-normativo inicial da proteção ambiental, projetando pela primeira vez no horizonte jurídico internacional, a ideia em torno de um direito humano a viver em um ambiente equilibrado e saudável, tomando a qualidade do ambiente como elemento essencial para uma vida humana com dignidade e bem-estar.

“Princípio 1 - O homem tem o direito fundamental à liberdade, à igualdade e ao desfrute de condições de vida adequadas em um meio ambiente de qualidade tal que lhe permita levar uma vida digna e gozar de bem-estar, tendo a solene obrigação de proteger e melhorar o meio ambiente para as gerações presentes e futuras”

De acordo com Guido F. Silva Soares, a Declaração de Estocolmo “pode ser considerada como um documento com a mesma relevância para o Direito Internacional e para a Diplomacia dos Estados que teve a Declaração Universal dos Direitos do Homem (...). Na verdade, ambas as Declarações têm exercido o papel de verdadeiros guias e parâmetros na definição dos princípios mínimos que devem figurar tanto nas legislações domésticas dos Estados, quanto na adoção dos grandes textos do Direito Internacional da atualidade”.11

Vinte anos após a Declaração de Estocolmo, a Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (1992), quando da Conferência das Nações Unidas (Eco-92), em 1992, reforçou o mesmo entendimento.

11 SOARES, Direito internacional do meio ambiente..., p. 55.

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“Princípio 1 - Os seres humanos estão no centro das preocupações com o desenvolvimento sustentável. Tem direito a uma vida saudável e produtiva em harmonia com a Natureza”

A Declaração e Programa de Ação de Viena (1993), promulgada no âmbito da 2.ª Conferência Mundial sobre Direitos Humanos, também conferiu, no seu art. 11, destaque especial ao direito humano ao desenvolvimento, considerando que o mesmo deve ser realizado de modo a satisfazer as “necessidades ambientais e de desenvolvimento das gerações presentes e futuras”.

O direito ao ambiente tomou acento de forma definitiva também no âmbito do Direito Internacional dos Direitos Humanos e dos Sistema Global e Regionais de Proteção dos Direitos Humanos, em razão da sua essencialidade à dignidade da pessoa humana.

No âmbito do Sistema Interamericano de Direitos Humanos, o Protocolo de San Salvador Adicional à Convenção Americana de Direitos Humanos em Matéria de Direitos Econômicos Sociais e Culturais (1988) consagrou expressamente o direito humano a um meio ambiente sadio no seu art. 11:

“Artigo 11 (Direito a um meio ambiente sadio) 1. Toda pessoa tem direito a viver em meio ambiente sadio e a contar com os serviços públicos básicos. 2. Os Estados Partes promoverão a proteção, preservação e melhoramento do meio ambiente”.

Mais recentemente, merece registro o fenômeno designado de “greening” (ou, em português, “esverdeamento”) da jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), com o reconhecimento gradual e progressiva da proteção ecológica para o exercício dos demais direitos humanos no seu conjunto. O ponto culminante de tal evolução jurisprudencial da CIDH foi a edição da Opinião Consultiva n. 23/2017 sobre “Meio Ambiente e Direitos Humanos”, conforme veremos em tópico subsequente.

A CF/1988 (art. 225 e art. 5.º, § 2.º), seguindo a influência do direito constitucional comparado (por exemplo, a Constituição portuguesa de 1976) e do direito internacional, sedimentou e positivou ao longo do seu texto os alicerces normativos de um constitucionalismo ecológico, atribuindo ao direito ao ambiente o status de direito fundamental, em sentido formal e material, orientado pelo princípio da solidariedade, conforme inclusive já resultou reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal, no âmbito de emblemática decisão relatada pelo Ministro Celso de Mello.

JURISPRUDÊNCIA STF: “A QUESTÃO DO DIREITO AO MEIO AMBIENTE ECOLOGICAMENTE EQUILIBRADO – DIREITO DE TERCEIRA GERAÇÃO – PRINCÍPIO DA SOLIDARIEDADE. O direito à integridade do meio ambiente – típico direito de terceira geração – constitui prerrogativa jurídica de titularidade coletiva, refletindo, dentro do processo de afirmação dos direitos humanos, a expressão significativa de um poder atribuído, não ao indivíduo identificado em sua singularidade, mas, num sentido verdadeiramente mais abrangente, a própria coletividade social. Enquanto os direitos de primeira geração (Direito Civis e Políticos) –

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que compreendem as liberdades clássicas, negativas ou formais – realçam o princípio da liberdade e os direitos de segunda geração (Direitos Econômicos, Sociais e Culturais) – que se identificam com as liberdades positivas, reais ou concretas – acentuam o princípio da igualdade, os direitos de terceira geração, que materializam poderes de titularidade coletiva atribuídos genericamente a todas as formações sociais, consagram o princípio da solidariedade e constituem um momento importante no processo de desenvolvimento, expansão e reconhecimento dos direitos humanos, caracterizados, enquanto valores fundamentais indisponíveis, pela nota de uma essencial inexauribilidade” (STF, MS 22.164/SP, rel. Min. Celso de Mello, j. 30.10.1995).

Ademais, muito embora o art. 225 esteja topograficamente situado fora do Título II da CF/1988 (onde se encontram arrolados os direitos fundamentais), a doutrina e a jurisprudência brasileira são pacíficas no sentido de reconhecer o direito ao ambiente como integrante do rol dos direitos e garantias fundamentais da pessoa humana, constante da Carta Magna de 1988. Na medida em que integra a Constituição formal (art. 225), mesmo que não inserido expressamente no catálogo dos direitos fundamentais, pode-se dizer que o direito ao ambiente se trata de um direito formal e materialmente fundamental. A despeito de não estar previsto no Título II da Constituição, é por intermédio do direito constitucional positivo, ou seja, da cláusula de abertura material do catálogo de direitos fundamentais (art. 5°, § 2°, da CF/88), que é atribuído ao direito ao ambiente fundamentalidade material.

Aquém de tal padrão ecológico, a vida e a dignidade humana estariam sendo violadas no seu núcleo essencial. A qualidade, o equilíbrio e a segurança ambiental, com base em tais considerações, passaria a figurar como elemento integrante do conteúdo normativo do princípio da dignidade da pessoa humana, sendo, portanto, fundamental ao desenvolvimento de todo o potencial humano num quadrante de completo bem-estar existencial.

Atualmente, pode-se dizer que os valores ecológicos tomaram assento definitivo no conteúdo do princípio da dignidade da pessoa humana. Portanto, no contexto constitucional contemporâneo, consolida-se a formatação de uma dimensão ecológica da dignidade humana, que abrange a ideia em torno de um bem-estar ambiental (assim como de um bem-estar social) indispensável a uma vida digna, saudável e segura. Dessa compreensão, pode-se conceber a indispensabilidade de um patamar mínimo de qualidade ambiental para a concretização da vida humana em níveis dignos.

Não se pode conceber a vida – com dignidade e saúde – sem um ambiente natural saudável e equilibrado. A vida e a saúde humanas (ou como refere o caput do art. 225 da CF/1988, conjugando tais valores, a sadia qualidade de vida) só estão asseguradas no âmbito de determinados padrões ecológicos. O ambiente está presente nas questões mais vitais e elementares da condição humana, além de ser essencial à sobrevivência do ser humano como espécie natural.

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DIMENSÕES NORMATIVAS

DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

Dimensões normativasdo princípio da dignidade da

pessoa humana(art. 1º, III, da CF/1988)

Liberal (direitos liberais: vida, integridade física e psíquica, liberdade de locomoção, etc.)Social ou Comunitária (direitos sociais: saúde, educação, moradia, alimentação, assistência social, etc.)Ecológica (direitos ecológicos)

Obs. A qualidade, o equilíbrio e a segurança ambiental passam a integrar o conjunto de condições materiais (novo direito fundamental) indispensáveis a uma vida digna e saudável e à inserção político-comunitária do indivíduo (mínimo existencial ecológico).

1.3.2. OPINIÃO CONSULTIVA 23/2017 SOBRE “MEIO AMBIENTE E DIREITOS HUMANOS” DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS

A Opinião Consultiva n. 23/2017 sobre “Meio Ambiente e Direitos Humanos” da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), conforme referido anteriormente, representou o ápice do reconhecimento da relevância da proteção ecológica e do direito humano ao meio ambiente no Sistema Interamericano de Direitos Humanos. O mesmo fenômeno também tem sido verificado no Sistema Global ou ONU de Proteção dos Direitos Humanos, com a criação, no âmbito do Alto Comissariado de Direitos Humanos, por decisao tomada pelo Comitê de Direitos Humanos em 2012, de um mandato específico sobre os “direitos humanos e o meio ambiente” e, desde 2015, com uma relatoria especial sobre Direitos Humanos e Meio Ambiente.12

A CIDH reconheceu, por meio da Opinião Consultiva n. 23/2017, “a inegável relação entre a proteção do meio ambiente e a realização de outros direitos humanos”. Foi a primeira vez a Corte Interamericana desenvolveu o conteúdo do direito a um ambiente saudável, previsto no artigo 11 do Protocolo de San Salvador e em alguma medida, também no artigo 26 da Convenção Americana, que contém os direitos econômicos, sociais e culturais. A CIDH reconheceu expressamente a relação de interdependência e indivisibilidade entre direitos humanos, meio ambiente e desenvolvimento sustentável.

A Opinião Consultiva n. 23/2017 foi elaborada a partir de consulta formulada pela Colômbia, em 14 de março de 2016. Um dos pontos mais relevantes do documento da CIDH diz respeito às obrigações dos Estados-Partes para proteger o meio ambiente. Entre outros pontos, a CIDH assinalou que os Estados-

12 Disponível em: https://www.ohchr.org/en/Issues/environment/SRenvironment/Pages/SRenvironmentIndex.aspx. Acesso em 02.04.2019.

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Partes estão obrigados a respeitar e garantir os direitos humanos de todas as pessoas e que isso pode incluir, numa base casuística e excepcional, situações que ultrapassem os seus limites territoriais, inclusive como uma obrigação de prevenir danos transfronteiriços. Da mesma forma, a CIDH estabeleceu as obrigações derivadas do respeito e da garantia dos direitos à vida e à integridade pessoal no contexto da proteção ambiental.

Entre os pontos mais relevantes da Opinião Consultiva 23/2017, a obrigação dos Estado-Partes de:

OC 23/2017

CIDH

Obrigações Estados-Partes

- regular, supervisionar e supervisionar as atividades sob sua jurisdição, realizar estudos de impacto ambiental, estabelecer planos de contingência e mitigar danos;

- agir em conformidade com o princípio da precaução contra eventuais danos graves ou irreversíveis para o ambiente, que afetem os direitos à vida e à integridade pessoal, mesmo na ausência de certeza científica;

- cooperar de boa fé com outros Estados-Membros para a proteção contra danos ambientais significativos;

- garantir o acesso à informação sobre os eventuais efeitos no ambiente;

- garantir o direito à participação pública dos indivíduos na tomada de decisões e nas políticas que possam afetar o ambiente; e

- assegurar o acesso à justiça no que respeita às obrigações do Estado em matéria de proteção do ambiente.

Por fim, outro aspecto inovador verificado no documento da CIDH diz respeito ao reconhecimento da proteção jurídica autônoma, ou seja, “em si mesma” da Natureza, destacando “uma tendência a reconhecer a personalidade jurídica e, por fim, os direitos da Natureza, não só em decisões judiciais, mas também nos ordenamentos constitucionais”.

1.3.2. TITULARIDADE DIFUSA DO DIREITO FUNDAMENTAL AO AMBIENTE

A questão da titularidade do direito ao ambiente é outro aspecto que diferencia o ambiente de outros bens jurídicos e direitos, reconhecendo-se a sua natureza de direito ou interesse difuso. Segundo Rodolfo de C. Mancuso, os interesses difusos “são referíveis a um conjunto indeterminado ou dificilmente determinável de sujeitos”, o que se contrapõe “fundamentalmente ao esquema tradicional, visto que a tutela não pode mais ter por base a titularidade, mas a relevância, em si, do interesse, isto é, o fato de

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sua relevância social”.13 Em razão de congregar o interesse de toda a coletividade, conforme evidencia a norma constitucional-ambiental contida no caput do art. 225, a sua natureza jurídica transcenda da órbita individual que tradicionalmente sempre caracterizou o regime jurídico dos direitos (fundamentais e não fundamentais).

O direito ao ambiente rompe com tal paradigma, de modo que a lesão ao ambiente passa a ser uma lesão a toda a coletividade, e não apenas a direitos individuais. Ou seja, tem-se a indeterminação dos sujeitos titulares do direito. Apropriando-nos novamente da lição de Mancuso, “essa ‘indeterminação de sujeitos’ revela-se, também, quanto à natureza da lesão decorrente de afronta aos interesses difusos: essa lesão é disseminada por um número indefinido de pessoas, tanto podendo ser uma comunidade (por exemplo, uma vila de pescadores, ameaçada pela emissão de dejetos urbanos no mar) como uma etnia (nos casos de discriminação racial) ou mesmo toda a humanidade (como a ameaça constante de guerra nuclear, ou na ‘exploração’ predatória e anárquica da Amazônia)”.14

Isso, por si só, implica abrir mão da tradição clássica de matriz liberal-individualista na leitura de diversos institutos jurídicos. O conceito de bem ambiental difere substancialmente do que a doutrina civilista clássica conceitua como “coisa”15, sobre a qual recai a exclusividade do exercício da titularidade. O ordenamento jurídico brasileiro identifica a natureza de direito difuso que recai sobre o patrimônio ambiental, ou seja, o bem jurídico ambiental é um bem de uso comum do povo (caput do art. 225 da CF/1988).

Toda a sociedade é titular de tal direito, incidindo sobre os bens ambientais uma multiplicidade de interesses (patrimoniais e não patrimoniais; individuais, coletivos e difusos) e, consequentemente, limitações a outros direitos (fundamentais e não fundamentais). Ao mesmo tempo em que reconhece a incidência do interesse social e o regime de direito público na regulação dos bens jurídicos ambientais, a norma constitucional limita substancialmente o poder de disposição dos indivíduos (particulares) em relação aos mesmos.

Outra questão relevante na caracterização da natureza difusa do bem jurídico ambiental diz respeito a não o confundir com o interesse do Estado em sentido estrito. Ou seja, a sociedade é a titular do direito ao ambiente, e não o Estado. A categoria do interesse público primário, empregada comumente

13 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Interesses difusos: conceito e legitimação para agir. 6.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 93.

14 MANCUSO, “Interesses difusos...”, p. 97.

15 De modo a sinalizar a evolução do Direito Civil, sob a perspectiva da proteção ecológica, o Código Civil de 2002 dispôs no seu art. 1228, § 1º, que “o direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as sua finalidade econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como a poluição do ar e das águas”.

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na seara do Direito Administrativo16, pode ser utilizada, em certa medida, para caracterizar o interesse da sociedade na proteção do patrimônio ambiental, mas jamais o interesse público secundário (ou seja, o puro interesse do Estado).

De acordo com a lição de Hugo Nigro Mazzilli, ao retomar os ensinamentos do publicista italiano Renato Alessi, a distinção ora tratada “permite evidenciar, portanto, que nem sempre coincidem o interesse público primário e o secundário. Nesse sentido, o interesse público primário (bem geral) pode ser identificado com o interesse social, o interesse da sociedade ou da coletividade, e até mesmo com alguns dos mais autênticos interesses difusos (o exemplo, por excelência, do meio ambiente em geral)”.17

A distinção em questão é relevante em razão de a proteção do ambiente colocar-se também contra o Estado, e não apenas em face dos particulares poluidores, de modo que o Estado não pode dispor do bem jurídico ambiental, uma vez que o mesmo não lhe pertence. Não por outra razão, a própria legislação ambiental reconhece, por meio da Lei 6.938/81, art. 3º, IV, que a pessoa jurídica de direito público também pode ser enquadrada no conceito de poluidor e, consequentemente, responsabilizada18, direta ou indiretamente, por atividade causadora de degradação ambiental.

Muito embora a natureza do Direito Ambiental seja essencialmente pública, o bem jurídico ambiental transita na “fronteira” entre o público e o privado. A natureza difusa do bem jurídico ambiental implica a fusão dos universos público e privado, mas sempre permeado pela prevalência do interesse de toda a coletividade na sua proteção, bem como pela limitação ao interesse privado e público (secundário) quando esses se colocarem em rota de colisão com a tutela ecológica. Em sintonia com esse entendimento, o art. 2º, I, da Lei 6.938/81 institui como princípio da Política Nacional do Meio Ambiente que “a ação governamental na manutenção do equilíbrio ecológico, considerando o meio ambiente como um patrimônio público a ser necessariamente assegurado e protegido, tendo em vista o uso coletivo”.

1.3.3. EFICÁCIA DO DIREITO FUNDAMENTAL AO AMBIENTE NAS RELAÇÕES ENTRE PARTICULARES

A irradiação da eficácia dos direitos fundamentais nas relações entre particulares (ou eficácia horizontal) assume função central na consolidação do Estado Socioambiental de Direito contemporâneo, ressalvando-se que hoje as fronteiras entre o Público e o Privado diluírem-se na convergência e unificação de ambos rumo ao horizonte normativo de proteção da dignidade humana e dos direitos fundamentais. A partir de um resgate jurídico-normativo do princípio da solidariedade, juntamente com os deveres fundamentais correlatos aos direitos, a eficácia entre particulares (ou, como refere a doutrina alemã, a

16 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 22.ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 69.

17 MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo. 22.ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 49.

18 STJ, REsp 1.071.741/SP, 2.ª T., rel. Ministro Herman Benjamin, j. 24.03.2009.

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Drittwirkung) balanceia a relação entre Estado e sociedade, em vista de que o primeiro é destituído do cargo de único responsável (e guardião) pela efetivação dos direitos fundamentais.

De tal sorte, coloca-se agora parcela da responsabilidade (e deveres jurídicos) também nas mãos dos particulares (pessoas físicas e jurídicas), o que tem especial importância num contexto social onde certos atores sociais privados possuem tanto ou mais poder (econômico, político, técnico, etc.) do que os próprios Estados nacionais. Há que se postular, portanto, um dever de respeito e consideração mútuo entre particulares, fundado no marco constitucional da solidariedade, o que, no seu conjunto, e diante do quadro de risco existencial imposto pela degradação ecológica, impõe maior carga de responsabilidade (e deveres) pelas ações e omissões de particulares (pessoas físicas e jurídicas), que, de alguma forma, possam, mesmo que potencialmente – em face da aplicação do princípio e dever de precaução –, comprometer o equilíbrio ecológico.

A título de exemplo, a inversão do ônus da prova pode ser fundamentada na eficácia dos direitos fundamentais entre particulares. No entanto, o mecanismo de equalização da relação processual suscitado não deve ser tomado de forma abstrata ou a priori, mas sempre à luz da constatação da desigualdade na relação jurídica posta no caso concreto (ou seja, a posteriori). Juntamente com a inversão do ônus da prova, há que se ter em conta também o dever fundamental de informação ambiental como projeção normativa da eficácia entre particulares do direito fundamental ao ambiente.

1.3.4. MÍNIMO EXISTENCIAL ECOLÓGICO (OU SOCIOAMBIENTAL)

O reconhecimento da condição de direito humano e fundamental à proteção do ambiente tem como corolário a identificação de novos elementos normativos relacionados ao conteúdo do assim chamado “direito e garantia a um mínimo existencial”, abrindo caminho para a noção de uma dimensão ecológica do direito-garantia ao mínimo existencial. A necessária integração entre a tutela ecológica e a proteção e promoção de uma existência digna em termos socioculturais (portanto, não restrita a um mínimo vital ou fisiológico), há de ser designada pelo rótulo de um mínimo existencial socioambiental ou ecológico, coerente, aliás, com o projeto político-jurídico do Estado Ambiental ou mesmo Socioambiental de Direito.

A preocupação doutrinária de se conceituar, no plano normativo, um padrão mínimo em termos ambientais para a realização de uma vida digna e saudável justifica-se a partir da importância que o equilíbrio e segurança ambiental representam para o desenvolvimento da vida humana em toda a sua potencialidade. Tais condições materiais elementares de natureza socioambiental, conforme pode ser facilmente identificado na hipótese da falta de saneamento básico em dada localidade, constituem-se em premissas do próprio exercício dos demais direitos (fundamentais ou não), resultando em uma espécie de direito a ter e exercer os demais direitos.

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Sem o acesso a tais condições existenciais básicas (que, todavia, não podem ser compreendidas no sentido de uma redução da proteção dos direitos socioambientais a um patamar minimalista), que exigem o respeito, proteção e promoção de um padrão mínimo – no sentido de necessário – de qualidade ambiental, não há que falar em liberdade real ou fática, quanto menos em um padrão de vida digno. Dentre outras justificativas que se poderia invocar, assume relevância a noção do dever de respeito e consideração, por parte do Estado e da sociedade, pela vida de cada indivíduo. Mais recentemente, a CIDH, por meio da Opinião Consultiva 23/2017, reconheceu expressamente que “vários direitos fundamentais exigem, como condição prévia necessária para o seu exercício, uma qualidade ambiental mínima e são profundamente afetados pela degradação dos recursos naturais”.19

Jurisprudência do STJ (sobre mínimo existencial ecológico):

1) “PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. COLETA DE LIXO. SERVIÇO ESSENCIAL. PRESTAÇÃO DESCONTINUADA. PREJUÍZO À SAÚDE PÚBLICA. DIREITO FUNDAMENTAL. NORMA DE NATUREZA PROGRAMÁTICA. AUTO EXECUTORIEDADE. PROTEÇÃO POR VIA DA AÇÃO CIVIL PÚBLICA. POSSIBILIDADE. ESFERA DE DISCRICIONARIEDADE DO ADMINISTRADOR. INGERÊNCIA DO PODER JUDICIÁRIO. 1. Resta estreme de dúvidas que a coleta de lixo constitui serviço essencial, imprescindível à manutenção da saúde pública, o que o torna submisso à regra da continuidade. Sua interrupção, ou ainda, a sua prestação de forma descontinuada, extrapola os limites da legalidade e afronta a cláusula pétrea de respeito à dignidade humana, porquanto o cidadão necessita utilizar-se desse serviço público, indispensável à sua vida em comunidade. 2. Releva notar que uma Constituição Federal é fruto da vontade política nacional, erigida mediante consulta das expectativas e das possibilidades do que se vai consagrar, por isso cogentes e eficazes suas promessas, sob pena de restarem vãs e frias enquanto letras mortas no papel. (...). 3. Em função do princípio da inafastabilidade consagrado constitucionalmente, a todo direito corresponde uma ação que o assegura, sendo certo que todos os cidadãos residentes em Cambuquira encartam-se na esfera desse direito, por isso a homogeneidade e transindividualidade do mesmo a ensejar a bem manejada ação civil pública. 4. A determinação judicial desse dever pelo Estado, não encerra suposta ingerência do judiciário na esfera da administração. Deveras, não há discricionariedade do administrador frente aos direitos consagrados, quiçá constitucionalmente. Nesse campo a atividade é vinculada sem admissão de qualquer exegese que vise afastar a garantia pétrea. 5. Um país cujo preâmbulo constitucional promete a disseminação das desigualdades e a proteção à dignidade humana, alçadas ao mesmo patamar da defesa da Federação e da República, não pode relegar a saúde pública a um plano diverso daquele que o coloca, como uma das mais belas e justas garantias

19 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, Opinião Consultiva n. 23/2017..., p. 22.

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constitucionais. (...) 9. Ressoa evidente que toda imposição jurisdicional à Fazenda Pública implica em dispêndio e atuar, sem que isso infrinja a harmonia dos poderes, porquanto no regime democrático e no estado de direito o Estado soberano submete-se à própria justiça que instituiu. Afastada, assim, a ingerência entre os poderes, o judiciário, alegado o malferimento da lei, nada mais fez do que cumpri-la ao determinar a realização prática da promessa constitucional. 10. “A questão do lixo é prioritária, porque está em jogo a saúde pública e o meio ambiente.” Ademais, “A coleta do lixo e a limpeza dos logradouros públicos são classificados como serviços públicos essenciais e necessários para a sobrevivência do grupo social e do próprio Estado, porque visam a atender as necessidades inadiáveis da comunidade, conforme estabelecem os arts. 10 e 11 da Lei n.º 7.783/89. Por tais razões, os serviços públicos desta natureza são regidos pelo princípio da continuidade”. 11. Recurso especial provido” (STJ, REsp 575.998/MG, 1ª Turma, Rel. Min. Luiz Fux, j. 07.10.2004).

2) “O mínimo existencial não se resume ao mínimo vital, ou seja, o mínimo para se viver. O conteúdo daquilo que seja o mínimo existencial abrange também as condições socioculturais, que, para além da questão da mera sobrevivência, asseguram ao indivíduo um mínimo de inserção na ‘vida’ social”. (STJ, REsp 1.185.474/SC, Rel. Min. Humberto Martins, j. 20.04.2010).

1.4. O DIRETO AO AMBIENTE COMO CLÁUSULA PÉTREA DA CF/1988

Inicialmente, cabe destacar que não há qualquer distinção quanto ao regime jurídico ou força jurídica a ser aplicada aos direitos fundamentais presentes no catálogo e àqueles incluídos no rol através da abertura material do art. 5.º, § 2.º, da CF/88, tendo, portanto, o direito fundamental ao ambiente aplicação imediata, na linha do que dispõe o § 1.º do art. 5.º, bem como constituindo-se de norma de eficácia direta e irradiante frente a todo ordenamento jurídico e passando a integrar o rol das cláusulas pétreas (art. 60, § 4.º, inc. IV, da CF/88). Do ponto de vista material, houve uma decisão tomada pelo constituinte brasileiro ao consolidar o direito subjetivo dos indivíduos e da coletividade a viverem em um (e não qualquer) ambiente ecologicamente equilibrado, considerando ser o mesmo “essencial à sadia qualidade de vida” (art. 225, caput, da CF/88).

Ao declarar ser a qualidade ambiental essencial a uma vida humana saudável (e também digna), o constituinte consignou no pacto constitucional sua escolha de incluir a proteção ambiental entre os valores permanentes e fundamentais da República brasileira. Portanto, eventual retrocesso em tal matéria constitucional – por exemplo, supressão total ou parcial do conteúdo na norma inscrita no art. 225 da CF/88 – representaria flagrante violação aos valores edificantes do nosso sistema constitucional. Conforme a lição de José Afonso da Silva, em razão da aderência do direito ao ambiente ao direito à vida, há a contaminação da proteção ambiental com uma qualidade que impede sua eliminação por via de

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emenda constitucional20, estando, por via de consequência, inserido materialmente no rol das matérias componentes dos limites materiais ao poder de reforma constantes do art. 60, § 4.º, da CF/88, de modo a conferir ao direito fundamental ao ambiente o status de cláusula pétrea.

Art. 60 (...) § 4º - Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:

I - a forma federativa de Estado;

II - o voto direto, secreto, universal e periódico;

III - a separação dos Poderes;

IV - os direitos e garantias individuais.

Outra não poderia ser a interpretação constitucional dada ao direito ao ambiente, em vista da consagração da sua jusfundamentalidade. Com o reconhecimento da proteção ambiental como cláusula pétrea, a Constituição brasileira, como identificou Antonio Herman Benjamin, conferiu um “valioso atributo de durabilidade” à proteção ambiental no âmbito ordenamento jurídico-constitucional brasileiro, o qual “funciona como barreira à desregulamentação e a alterações ao sabor de crises e emergências momentâneas, artificiais ou não”.21 O reforço constitucional que se pretende conferir ao direito fundamental ao ambiente por meio do seu reconhecimento como cláusula pétrea também está em consonância com a garantia constitucional de proibição de retrocesso (social e ecológico ou socioambiental), já que tal instituto jurídico-constitucional objetiva blindar o bloco normativo constitucional-ambiental contra eventuais retrocessos. O STJ, nesse sentido, passou a reconhecer a categoria jurídica dos direitos ambientais adquiridos, como “limite constitucional intocável e intransponível da “incumbência” do Estado de garantir a preservação e a restauração dos processos ecológicos essenciais” (art. 225, § 1º, I).

JURISPRUDÊNCIA DO STJ: Direitos ambientais adquiridos. “PROCESSO CIVIL E AMBIENTAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. RESPONSABILIDADE POR DANOS AMBIENTAIS. MATA CILIAR AO REDOR DO RESERVATORIO HIDRELÉTRICO DE SALTO SANTIAGO. ÁREA DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE. DANOS AMBIENTAIS. REFLORESTAMENTO. (...) NOVO CODIGO FLORESTAL. IRRETROATIVIDADE. PRECEDENTES.(...) O novo Código Florestal não pode retroagir para atingir o ato jurídico perfeito, os direitos ambientais adquiridos e a coisa julgada, tampouco para reduzir de tal modo e sem as necessárias compensações ambientais o patamar de proteção de ecossistemas frágeis ou espécies ameaçadas de extinção, a ponto de transgredir o limite constitucional intocável e intransponível da “incumbência” do Estado de garantir a preservação e a restauração dos processos ecológicos essenciais

20 SILVA, José Afonso da. Fundamentos constitucionais da proteção do meio ambiente. In: Revista de Direito Ambiental, n. 27, jul.-set., 2002, p. 55.

21 BENJAMIN, Antonio Herman. Constitucionalização do ambiente e ecologização da Constituição brasileira. In: CANOTILHO, José Joaquim Gomes; MORATO LEITE, José Rubens (Orgs.). Direito constitucional ambiental brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 79.

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(art. 225, § 1º, I). Precedentes. Agravo regimental improvido.” (STJ, AgRg no REsp 1.434.797/PR, 2ª Turma, Rel. Min. Humberto Martins, j. 17.05.2016)

QUESTÃO VUNESP (Magistratura Estadual RJ, 2016): “O reconhecimento material do direito fundamental ao ambiente justifica-se na medida em que tal direito é extensão do direito à vida, sob os aspectos da saúde e da existência digna com qualidade de vida, ostentando o status de cláusula pétrea, consoante entendimento do STF”. (CORRETA)

1.5. PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE E PROIBIÇÃO DE PROTEÇÃO INSUFICIENTE OU DEFICIENTE EM MATÉRIA AMBIENTAL

O princípio da proporcionalidade, não obstante se tratar de princípio geral do Direito, apresenta particular relevância no âmbito do Direito Ambiental, sobretudo em razão da natureza fundamental do direito ao ambiente e da constante colisão deste com outros bens jurídicos também plasmados no texto constitucional, de modo que nos pareceu imprescindível tratá-lo como um dos princípios gerais que regem a proteção jurídica do ambiente. Sob o enfoque do princípio da precaução, Ana G. e Freitas Martins assinala que “o princípio da proporcionalidade joga aqui um papel fundamental, garantindo a ponderação de diversos interesses envolvidos ao exigir que as medidas adotadas no âmbito de uma política guiada pela precaução se revelem economicamente viáveis, com ponderação de custos e ganhos decorrentes da sua adoção”. 22 Na mesma perspectiva, contextualizando a adoção do princípio da proporcionalidade à temática dos riscos ecológicos, J. J. Gomes Canotilho enuncia o princípio da proporcionalidade dos riscos.23

As ideias de proporção e de razoabilidade, vinculadas à própria noção de justiça e equidade, sempre estiveram presentes no âmbito do fenômeno jurídico, permeando, em termos gerais, o direito contemporâneo. De acordo com a vertente germânica, o ponto de referência é o princípio do Estado de Direito (art. 1°, caput, da CF/1988), notadamente naquilo que veda o arbítrio, o excesso de poder, entre outros desdobramentos. Já para quem segue a orientação do direito norte-americano, a proporcionalidade guarda relação com o art. 5º, LIV, da CF/1988, no que assegura um devido processo legal substantivo.

No plano da legislação infraconstitucional, por sua vez, os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade foram positivados em vários momentos, destacando-se o art. 2° da Lei n° 9.784/99, que regulamenta o processo administrativo no âmbito da Administração Federal direta e indireta. Também a Lei da Política Nacional de Resíduos Sólidos (Lei 12.305/2010), já no contexto da legislação ambiental brasileira, consagrou de forma expressa, no seu art. 6º, XI, “a razoabilidade e a proporcionalidade” entre os princípios gerais da PNRS. É bom frisar, contudo, que independentemente de sua expressa previsão em textos constitucionais ou legais, o que importa é a constatação, amplamente difundida, de que a

22 MARTINS, O princípio da precaução..., p. 27.

23 CANOTILHO, Direito constitucional ambiental português..., p. 10.

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aplicabilidade dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade não está excluída de qualquer matéria jurídica.

O princípio da proporcionalidade, que constitui um dos pilares do Estado (Democrático, Social e Ambiental ou Ecológico) de Direito brasileiro, desponta como instrumento metódico de controle dos atos – tanto comissivos quanto omissivos – dos poderes públicos, sem prejuízo de sua eventual aplicação a atos de sujeitos privados. Nesse contexto, assume relevância, por sua vez, a conhecida e já referida distinção entre as dimensões negativa e positiva dos direitos fundamentais, com destaque para a atuação dos direitos fundamentais como deveres de proteção ou imperativos de tutela, implicando uma atuação positiva do Estado, obrigando-o a intervir tanto preventiva quanto repressivamente, inclusive diante de agressões oriundas de particulares.

Ao Estado, no que tange aos seus deveres de proteção ambiental, também incumbe medidas positivas no sentido de assegurar a tutela do ambiente, de tal sorte que a ação estatal acaba por se situar, no âmbito do que se convencionou designar de uma dupla face (ou dupla dimensão) do princípio da proporcionalidade, entre a proibição de excesso de intervenção, por um lado, e a proibição de proteção insuficiente ou deficiente, por outro. Se, por um lado, o ente estatal não pode atuar de modo excessivo, intervindo na esfera de proteção de direitos fundamentais a ponto de desatender aos critérios da proporcionalidade ou mesmo a ponto de violar o núcleo essencial do direito fundamental em questão, também é certo que o Estado, por força dos deveres de proteção aos quais está vinculado, não pode omitir-se ou atuar de forma insuficiente na promoção e proteção de tal direito, sob pena incorrer em violação da ordem jurídico-constitucional.

Se tomarmos a questão ambiental como exemplo, considerando os deveres de proteção ambiental dos entes federativos delineados na CF/1988 (art. 225 e art. 23, VI e VII), a não atuação (quando lhe é imposto juridicamente agir) ou a atuação insuficiente ou deficiente (de modo a não proteger o direito fundamental de modo adequado), no tocante a medidas legislativas e administrativas voltadas ao combate às causas geradoras da degradação do ambiente, pode ensejar até mesmo a responsabilidade do Estado, inclusive no sentido de reparar os danos causados a indivíduos e grupos sociais afetados pelos efeitos negativos dos danos ambientais.

A nossa Corte Constitucional já se pronunciou sobre dever estatal de proteção ecológica ass luz do princípio da proporcionalidade e a vedação de proteção insuficiente ou deficiente. Em passagem do voto do Ministro Celso de Mello no julgamento da ADI 4.901/DF, que versava sobre a constitucionalidade do Novo Código Florestal de 2012, resultou consignado:

“Com efeito, emerge do próprio art. 225 de nossa Lei Fundamental o dever constitucional de proteção ao meio ambiente, que incide não apenas sobre a própria coletividade, mas, notadamente, sobre o Poder Público, a quem se impõe o gravíssimo encargo de impedir,

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de um lado, a degradação ambiental e, de outro, de não transgredir o postulado que veda a proteção deficiente ou insuficiente, sob pena de intervenção do Poder Judiciário, para fazer prevalecer o mandamento constitucional que assegura a incolumidade do meio ambiente e para neutralizar todas as ações ou omissões governamentais de que possa resultar a fragilização desse bem de uso comum do povo. Essencial, portanto, que o Estado, seja no exercício de suas funções legislativas, seja na realização de suas atividades administrativas, respeite o princípio da proporcionalidade, em cuja estrutura normativa compreende-se, além da proibição do excesso, o postulado que veda, em sua outra dimensão, a insuficiência da proteção estatal”.24

JURISPRUDÊNCIA STF. Princípio da Proibição DE PROTECAO INSUFICIENTE ou deficiente.

O Plenário do STF, nesse sentido, reconheceu recentemente a inconstitucionalidade de legislação estadual que teria conferido proteção deficitária às áreas de proteção permanente (APPs) em comparação ao regramento nacional estabelecido pelo Código Florestal (Lei 12.651/2012), extrapolando o ente federativo estadual, ao assim agir, os limites da sua competência suplementar decorrente da competência concorrente estabelecida no art. 24, caput, VI, § 2º, da CF/1988. O STF, na referida decisão, reconheceu expressamente a violação à proporcionalidade (e à razoabilidade) na atuação do legislador estadual ao expor bens jurídicos de máxima importância (no caso, a proteção ecológica), violando, em outras palavras, o princípio da proibição de proteção insuficiente ou deficiente (STF, ADI 4.988/TO, Tribunal Pleno, rel. Min. Alexandre de Moraes, j. 19.9.2018)

1.6. PRINCÍPIO DA PROIBIÇÃO DE RETROCESSO AMBIENTAL OU ECOLÓGICO (E DEVER DE PROGRESSIVIDADE)

“É a degradação da lei levando à degradação ambiental” (Ministro Antônio Herman Benjamin).25

Do ponto de vista da Teoria dos Direitos Fundamentais e mesmo do Direito Internacional dos Direitos Humanos, nos parece adequado o tratamento integrado e interdependente dos direitos sociais e dos direitos ecológicos, a partir da sigla DESCA (para além da clássica denominação de DESC), ou seja, como direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais, de modo a contemplar a evolução histórica dos direitos fundamentais e humanos, incorporando a tutela do ambiente em tal núcleo privilegiado de proteção da pessoa. Nesse sentido, o Protocolo de San Salvador Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1988) incorpora a compreensão acerca dos DESCA, apontando, no bojo do seu texto, que “toda pessoa tem direito a viver em um meio ambiente sadio e a contar com os serviços públicos básicos” (art. 11.1), bem como que “os Estados-Partes

24 STF, ADI 4.901/DF, Tribunal Pleno, Rel. Min. Luiz Fux, j. 28.02.2018.

25 BENJAMIN, O princípio da proibição de retrocesso ambiental..., p. 72.

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promoverão a proteção e melhoramento do meio ambiente” (11.2). 26

A cláusula de progressividade atribuída aos direitos sociais, consagrada tanto no art. 2º, § 1º, do PIDESC quanto no art. 1º do Protocolo de San Salvador, deve abarcar, necessariamente, também as medidas fáticas e normativas voltadas à tutela ecológica, de modo a instituir uma progressiva melhoria da qualidade ambiental e, consequentemente, da qualidade de vida em geral. A proibição de retrocesso em matéria de proteção e promoção dos DESCA guarda relação com a previsão expressa de um dever de progressiva realização contido em cláusulas vinculativas de direito internacional, poder-se-á afirmar que pelo menos tanto quanto proteger o pouco que há em termos de direitos sociais e ecológicos efetivos, há que priorizar o dever de progressiva implantação de tais direitos. O progresso (em termos fáticos e normativos), compreendido na perspectiva de um dever estatal de desenvolvimento sustentável, deve necessariamente conciliar os eixos econômico, social e ambiental.

O regime jurídico ecológico – tanto sob a perspectiva constitucional quanto infraconstitucional – deve operar de modo progressivo, a fim de ampliar a qualidade de vida existente hoje e atender a padrões cada vez mais rigorosos de tutela da dignidade da pessoa humana, não admitindo o retrocesso, em termos fáticos e normativos, a um nível de proteção inferior àquele verificado hoje. De acordo com Canotilho, “a liberdade de conformação política do legislador no âmbito das políticas ambientais tem menos folga no que respeita à reversibilidade político-jurídica da proteção ambiental, sendo-lhe vedado adoptar novas políticas que traduzam em retrocesso retroactivo de posições jurídico-ambientais fortemente enraizadas na cultura dos povos e na consciência jurídica geral”.27

Não sem razão, o conceito de desenvolvimento sustentável, cunhado no âmbito da Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento das Nações Unidas, por conta da publicação, no ano de 1987, do Relatório Nosso Futuro Comum, traz que o mesmo seria “aquele que atende às necessidades do presente sem comprometer a possibilidade de as gerações futuras atenderem a suas próprias necessidades”.28 A ideia de sustentabilidade está na razão de ser da proteção do ambiente, já que manter (e, em alguns casos, recuperar) o equilíbrio ambiental implica o uso racional e harmônico dos recursos naturais, de modo a não os levar ao seu esgotamento, e, consequentemente, à sua degradação.

Até por uma questão de justiça entre gerações humanas, a geração presente teria a responsabilidade de deixar como legado às gerações futuras condições ambientais idênticas ou melhores do que aquelas recebidas das gerações passadas, estando a geração vivente, portanto, vedada a alterar em termos negativos as condições ecológicas, até por força do princípio da proibição de retrocesso ambiental e do

26 Mais recentemente, resultou consagrado no Princípio 25 da Declaração do Rio de 1992 que “a paz, o desenvolvimento e a proteção ambiental são interdependentes e indivisíveis”.

27 CANOTILHO, Direito constitucional ambiental português..., p. 5.

28 Relatório Nosso Futuro Comum..., p. 43.

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dever (do Estado e dos particulares) de melhoria progressiva da qualidade ambiental.

No ordenamento jurídico brasileiro, em sintonia com tal contexto normativo internacional e comparado, verifica-se também, em diversos diplomas, a adoção de um princípio (ou dever) de melhoria progressiva da qualidade ambiental. O nosso “Código Ambiental”, ou seja, a Lei da Política Nacional do Meio Ambiente (Lei 6.938/81), de forma bastante clara, seguiu tal diretriz normativa e consagrou, no seu art. 2º, caput, “que a Política Nacional do Meio Ambiente tem por objetivo a preservação, melhoria e recuperação da qualidade ambiental propícia à vida, visando assegurar, no País, condições ao desenvolvimento socioeconômico, aos interesses da segurança nacional e à proteção da dignidade da vida humana”.29

Outro exemplo é verificado no caso do direito ao saneamento, onde resultou consagrada de forma expressa na Lei da Política Nacional de Saneamento Básico (Lei 11.445/2007), art. 3.º, III, que, por meio do objetivo de universalização das políticas públicas para o setor, deve-se contemplar a “ampliação progressiva do acesso de todos os domicílios ocupados ao saneamento básico”. Assim, no tocante às medidas legislativas e políticas públicas levadas a cabo para a efetivação do direito fundamental ao saneamento básico, típico direito fundamental de feição socioambiental, deve o Legislador – e, em certa medida, também o Administrador – atentar para a garantia constitucional da proibição de retrocesso ambiental, conforme resulta expresso na norma em comento.

Seguindo na análise da legislação brasileira, é importante destacar, ainda, que há um déficit de proteção ambiental existente hoje, na medida em que, como é visível na questão do aquecimento global, impõem-se medidas no sentido de “recuar” em termos de práticas poluidoras – por exemplo, reduzir as emissões dos gases geradores do efeito estufa –, não sendo suficiente apenas impedir que tais práticas sejam ampliadas. Em sintonia com tal entendimento, com o intuito de fazer com que as práticas poluidoras “recuem” – através da “redução dos impactos” da ação humana sobre o ambiente – e a qualidade ambiental melhore de forma progressiva, a Lei da Política Nacional sobre Mudança do Clima – PNMC (Lei 12.187/2009), que, além de enunciar, no caput do art. 3º, como diretrizes para a questão climática, a consagração dos princípios da precaução, da prevenção, da participação cidadã e do desenvolvimento sustentável – bem como do princípio das responsabilidades comuns, porém diferenciadas, aplicado no âmbito internacional –, estabelece, no mesmo artigo citado, inciso I, que “todos têm o dever de atuar, em benefício das presentes e futuras gerações, para a redução dos impactos decorrentes das interferências antrópicas sobre o sistema climático”.

No caso especialmente da legislação ambiental que busca dar operatividade ao dever constitucional de proteção do ambiente, há que se assegurar a sua blindagem contra retrocessos que a tornem menos rigorosa ou flexível, não admitindo que voltem a ser adotadas práticas poluidoras hoje proibidas, assim

29 De modo complementar, o art. 4.º, VI, da Lei 6.938/81, entre os objetivos da Política Nacional do Meio Ambiente, destaca “a preservação e restauração dos recursos ambientais com vistas à sua utilização racional e disponibilidade permanente, concorrendo para a manutenção do equilíbrio ecológico propício à vida”.

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como buscar sempre um nível mais rigoroso de proteção, considerando especialmente o déficit legado pelo nosso passado e um “ajuste de contas” com o futuro, no sentido de manter um equilíbrio ambiental também para as futuras gerações. O que não se admite, até por um princípio de justiça (equidade e solidariedade) entre gerações humanas, é que sobre as gerações futuras recaia integralmente o ônus do descaso ecológico perpetrado pelas das gerações presentes e passadas.

A doutrina, sensível à questão e, sobretudo, à atual tendência de “flexibilização” da legislação ambiental, o que se vê de modo preocupante no caso brasileiro, tem caminhado no sentido de consagrar a vertente ecológica do princípio da proibição de retrocesso, inclusive a pontos de reconhece-lo como um novo princípio geral do Direito Ambiental. Nesse sentido, Antônio H. Benjamin assinala que a proibição de retrocesso “transformou-se em princípio geral do Direito Ambiental, a ser invocado na avaliação da legitimidade de iniciativas legislativas destinadas a reduzir o patamar de tutela geral do meio ambiente, mormente naquilo que afete em particular: a) processos ecológicos essenciais, b) ecossistemas frágeis ou à beira de colapso e) espécies ameaçadas de extinção”.30

Ao analisar a proibição de retrocesso ambiental (ou princípio da não regressão, como prefere), Michel Prieur assinala que “a regressão não deve, jamais, ignorar a preocupação de tornar cada vez mais efetivos os direitos protegidos. Enfim, o recuo de um direito não pode ir aquém de certo nível, sem que esse direito seja desnaturado. Isso diz respeito tanto aos direitos substanciais como aos direitos procedimentais. Deve-se, assim, considerar que, na seara ambiental, existe um nível de obrigações jurídicas fundamentais de proteção, abaixo do qual toda medida nova deveria ser vista como violando o direito ao ambiente”.31 Em outras palavras, não se deixa de admitir uma margem de discricionariedade do legislador em matéria ambiental, mas, como bem colocado por Prieur, existem fortes limites à adoção de medidas restritivas no tocante aos direitos ecológicos, tanto pelo prisma material quanto processual (ou procedimental).

Assumindo como correta a tese de que a proibição de retrocesso não pode impedir qualquer tipo de restrição a direitos socioambientais, parte-se aqui da mesma diretriz que, de há muito, tem sido adotada no plano da doutrina especializada, notadamente a noção de que sobre qualquer medida que venha a provocar alguma diminuição nos níveis de proteção (efetividade) dos direitos fundamentais recai a suspeição de sua ilegitimidade jurídica, portanto, na gramática do Estado Constitucional, de sua inconstitucionalidade, acionando assim um dever no sentido de submeter tais medidas a um rigoroso controle de constitucionalidade,32 onde assumem importância os critérios da proporcionalidade (na

30 BENJAMIN, Princípio da proibição de retrocesso ambiental..., p. 62.

31 PRIEUR, Michel. “Princípio da proibição de retrocesso ambiental”. In: Comissão de Meio Ambiente, Defesa do Consumidor e Fiscalização e Controle do Senado Federal (org.). O princípio da proibição de retrocesso ambiental. Brasília: Senado Federal, 2012, p. 45.

32 V., por todos, COURTIS, Christian. “La prohibición de regresividad en materia de derechos sociales: apuntes introductorios”. In: COURTIS, Christian (comp.). Ni un paso atrás: la prohibición de regresividad en materia de derechos sociales. Buenos Aires. Editores del Puerto, 2006, p. 29 e ss.

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sua dupla dimensão anteriormente referida), da razoabilidade e do núcleo essencial (com destaque para o conteúdo “existencial”) dos direitos socioambientais, sem prejuízo de outros critérios, como é o da segurança jurídica e dos seus respectivos desdobramentos.

No campo da edição de atos legislativos e administrativos que afetam o âmbito de proteção dos direitos ecológicos ou mesmo socioambientais, é preciso ter sempre presente que tanto o legislador quanto o administrador encontram-se vinculados às proibições de excesso e de insuficiência de proteção, portanto, deverão observar as exigências internas do princípio da proporcionalidade, quais sejam, da adequação, da necessidade e da proporcionalidade em sentido estrito, bem como da razoabilidade, mas que são – juntamente com a segurança jurídica (em especial a proteção da confiança e dos direitos adquiridos) reconhecidos por expressiva doutrina como indispensáveis também ao controle de medidas restritivas em matéria de direitos ecológicos. A título de exemplo, o STJ reconheceu na sua jurisprudência a existência de direitos adquiridos ambientais, no sentido de impedir a redução do patamar normativo de proteção ambiental vigente, inclusive no sentido da existência de “limite constitucional intocável e instransponível”.

JURISPRUDÊNCIA STJ. Direitos adquiridos ambientais: “’o novo Código Florestal não pode retroagir para atingir o ato jurídico perfeito, os direitos ambientais adquiridos e a coisa julgada, tampouco para reduzir de tal modo e sem as necessárias compensações ambientais o patamar de proteção de ecossistemas frágeis ou espécies ameaçadas de extinção, a ponto de transgredir o limite constitucional intocável e intransponível da ‘incumbência’ do Estado de garantir a preservação e a restauração dos processos ecológicos essenciais (art. 225, § 1º, I)”. 33

A garantia ou constitucional da proibição de retrocesso ambiental ou ecológico, tem ganhado cada vez mais destaque no cenário jurídico brasileiro, tanto do ponto de vista doutrinário quanto jurisprudencial. De tal sorte, a garantia (e princípio) constitucional em análise assume importância ímpar na edificação do Estado de Direito contemporâneo, pois opera como instrumento jurídico apto a assegurar, em conjugação com outros elementos, níveis normativos mínimos em termos de proteção jurídica do ambiente, bem como, numa perspectiva mais ampla, de tutela da dignidade da pessoa humana e do direito a uma existência digna, sem deixar de lado a responsabilidade para com as gerações humanas vindouras.

PRINCÍPIO DA PROIBIÇÃO DE RETROCESSO ECOLOGICO CONSAGRADO NO ROL DE PRINCÍPIOS DO ACORDO DE ESCAZÚ (2018):

Artigo 3 – Princípios - Na implementação do presente Acordo, cada Parte será guiada

pelos seguintes princípios:

33 STJ, AgRg no REsp 1.434.797/PR, 2ª Turma, Rel. Min. Humberto Martins, j. 17.05.2016; e STJ, AgInt no AREsp n. 1.319.376/SP, 2ª Turma, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, j. 04.12.2018.

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a) princípio de igualdade e princípio de não discriminação;

b) princípio de transparência e princípio de prestação de contas;

c) princípio de vedação do retrocesso e princípio de progressividade;

d) princípio de boa-fé;

e) princípio de prevenção;

f) princípio de precaução;

g) princípio de equidade intergeracional;

h) princípio de máxima publicidade;

i) princípio de soberania permanente dos Estados sobre

seus recursos naturais;

j) princípio de igualdade soberana dos Estados;

k) princípio pro persona.

JURISPRUDÊNCIA STJ. Princípio da melhoria da qualidade ambiental. A Corte consagrou o princípio da melhoria progressiva da qualidade ambiental na sua jurisprudência, conforme passagem que segue:“(...) Ante o princípio da melhoria da qualidade ambiental, adotado no Direito brasileiro (art. 2.º, caput, da Lei 6.938/81), inconcebível a proposição de que, se um imóvel, rural ou urbano, encontra-se em região já ecologicamente deteriorada ou comprometida por ação ou omissão de terceiros, dispensável ficaria sua preservação e conservação futuras (e, com maior ênfase, eventual restauração ou recuperação). Tal tese equivaleria, indiretamente, a criar um absurdo cânone de isonomia aplicável a pretenso direito de poluir e degradar: se outros, impunemente, contaminaram, destruíram, ou desmataram o meio ambiente protegido, que a prerrogativa valha para todos e a todos beneficie”. 34

JURISPRUDÊNCIA STJ. Princípio da não regressão (ou da proibição de retrocesso) urbanístico-ambiental. “PROCESSUAL CIVIL, ADMINISTRATIVO, AMBIENTAL E URBANÍSTICO. LOTEAMENTO CITY LAPA. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. AÇÃO DE NUNCIAÇÃO DE OBRA NOVA. RESTRIÇÕES URBANÍSTICO-AMBIENTAIS CONVENCIONAIS ESTABELECIDAS PELO LOTEADOR. ESTIPULAÇÃO CONTRATUAL EM FAVOR DE TERCEIRO, DE NATUREZA PROPTER REM. DESCUMPRIMENTO. PRÉDIO DE NOVE ANDARES, EM ÁREA ONDE SO SE ADMITEM RESIDÊNCIAS UNIFAMILIARES. PEDIDO DE DEMOLIÇÃO. VÍCIO DE LEGALIDADE E DE LEGITIMIDADE DO ALVARÁ. IUS VARIANDI ATRIBUÍDO AO MUNICÍPIO. INCIDÊNCIA DO PRINCÍPIO DA NÃO REGRESSÃO (OU DA PROIBIÇÃO DE RETROCESSO) URBANÍSTICO-

34 STJ, REsp 769.753/SC, 2.ª T., rel. Min. Herman Benjamin, j. 08.09.2009.

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AMBIENTAL. (...) 1. As restrições urbanístico-ambientais convencionais, historicamente de pouco uso ou respeito no caos das cidades brasileiras, estão em ascensão, entre nós e no Direito Comparado, como veículo de estímulo a um novo consensualismo solidarista, coletivo e intergeracional, tendo por objetivo primário garantir às gerações presentes e futuras espaços de convivência urbana marcados pela qualidade de vida, valor estético, áreas verdes e proteção contra desastres naturais. (...) 10. O relaxamento, pela via legislativa, das restrições urbanístico-ambientais convencionais, permitido na esteira do ius variandi de que é titular o Poder Público, demanda, por ser absolutamente fora do comum, ampla e forte motivação lastreada em clamoroso interesse público, postura incompatível com a submissão do Administrador a necessidades casuísticas de momento, interesses especulativos ou vantagens comerciais dos agentes econômicos. 11. O exercício do ius variandi, para flexibilizar restrições urbanístico-ambientais contratuais, haverá de respeitar o ato jurídico perfeito e o licenciamento do empreendimento, pressuposto geral que, no Direito Urbanístico, como no Direito Ambiental, é decorrência da crescente escassez de espaços verdes e dilapidação da qualidade de vida nas cidades. Por isso mesmo, submete-se ao princípio da não regressão (ou, por outra terminologia, princípio da proibição de retrocesso), garantia de que os avanços urbanístico-ambientais conquistados no passado não serão diluídos, destruídos ou negados pela geração atual ou pelas seguintes (...)” (STJ, REsp 302.906/SP, 2.ª T., rel. Min. Herman Benjamin, j. 26.08.2010).

JURISPRUDÊNCIA STF. Proibição de retrocesso ecológico:

1) O caso da suspensão do defeso e a proibição de retrocesso ecológico (ADI 5.447/DF).

2) O caso do NOVO CÓDIGO FLORESTAL – LEI 12.651/2012 (ADIS 4.901, 4.902 E 4.903), como referido ontem na audiencia publica pelo Mauricio Gueta, a nossa Corte Constitucional reconheceu a proibicao de retrocesso ambiental como um principio do nosso sistema juridico.

3) O caso da redução dos limites de unidade de conservação por medida provisória: a proteção do núcleo essencial do direito fundamental ao ambiente e vedação de retrocesso ecológico (ADI 4.717/DF). A decisão do STF reconheceu a impossibilidade de diminuição ou supressão de espaços territoriais especialmente protegidos por meio de medida provisória. Segundo a Corte, a proteção ao meio ambiente é um limite material implícito à edição de medida provisória, ainda que não conste expressamente do elenco das limitações previstas no art. 62, § 1º, da CF/1988. Além disso, segundo a nossa Corte Constitucional, as normas que importem diminuição da proteção ecológica só podem ser editadas por meio de “lei formal”. A adoção de Medida Provisória nessas hipóteses, conforme entendimento do STF, “possui evidente potencial de causar prejuízos irreversíveis ao meio ambiente

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na eventualidade de não ser convertida em lei”. No que tange ao aspecto material, segundo a Corte, a norma impugnada “contrariou o princípio da proibição de retrocesso socioambiental. Isso porque as alterações legislativas atingiram o núcleo essencial do direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado (art. 225 da CF/1988)”.

JURISPRUDÊNCIA STF. Proibição de retrocesso ecológico:

1) O caso da suspensão do defeso e a proibição de retrocesso ecológico (ADI 5.447/DF).

2) O caso do NOVO CÓDIGO FLORESTAL – LEI 12.651/2012 (ADIS 4.901, 4.902 E 4.903), como referido ontem na audiencia publica pelo Mauricio Gueta, a nossa Corte Constitucional reconheceu a proibicao de retrocesso ambiental como um principio do nosso sistema juridico.

3) O caso da redução dos limites de unidade de conservação por medida provisória: a proteção do núcleo essencial do direito fundamental ao ambiente e vedação de retrocesso ecológico (ADI 4.717/DF). A decisão do STF reconheceu a impossibilidade de diminuição ou supressão de espaços territoriais especialmente protegidos por meio de medida provisória. Segundo a Corte, a proteção ao meio ambiente é um limite material implícito à edição de medida provisória, ainda que não conste expressamente do elenco das limitações previstas no art. 62, § 1º, da CF/1988. Além disso, segundo a nossa Corte Constitucional, as normas que importem diminuição da proteção ecológica só podem ser editadas por meio de “lei formal”. A adoção de Medida Provisória nessas hipóteses, conforme entendimento do STF, “possui evidente potencial de causar prejuízos irreversíveis ao meio ambiente na eventualidade de não ser convertida em lei”. No que tange ao aspecto material, segundo a Corte, a norma impugnada “contrariou o princípio da proibição de retrocesso socioambiental. Isso porque as alterações legislativas atingiram o núcleo essencial do direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado (art. 225 da CF/1988)”.

JURISPRUDÊNCIA STF. Dever de progressividade em matéria ambiental:

1) ADI 3.646, PRINCIPIO DA PROGRESSIVIDADE e UCs (ACO 838)

O Min. Alexandre de Moraes proferida em 16.05.2019, julgou improcedente a Ação Cível Originária (ACO) 838, na qual o Estado de Santa Catarina pedia a declaração de nulidade do Decreto Presidencial 19/2005, que criou o Parque Nacional das Araucárias. O Min. Alexandre de Morais, muito embora não tenha utilizado a expressão “princípio da progressividade”, decidiu o caso tomando por base as premissas que o caracterizam. O Ministro assinalou que a exigência de lei para a alteração de espaços ambientais, prevista no artigo 225, parágrafo 1º, inciso III, da CF/1988, visa à manutenção de um determinado nível de proteção ambiental. “Entretanto, essa garantia não pode agir em detrimento da

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melhoria do nível de proteção ambiental...”.

2) Competência legislativa concorrente, proibição de retrocesso e dever de progressividade em matéria de Direitos (Humanos e Fundamentais) Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais - DESCA (ADI 5016/BA, Rel. Min. Rel. Min. Alexandre de Moraes, j. 11.10.2018) “A lei atacada resultou em afronta ao princípio da vedação do retrocesso, que impossibilita qualquer supressão ou limitação de direitos fundamentais já adquiridos. Tal garantia se coaduna com os princípios da dignidade da pessoa humana e da segurança jurídica, estabelecendo um dever de progressividade em matérias sociais, econômicas, culturais e ambientais”.

1.7. O STATUS CONSTITUCIONAL (OU, AO MENOS, SUPRA LEGAL) DOS TRATADOS INTERNACIONAIS EM MATÉRIA AMBIENTAL

A incorporação ao direito interno de normas internacionais, com destaque aqui para os tratados internacionais como ato típico de direito internacional público que estabelece direitos e obrigações recíprocas entre os Estados-Parte, não é um privilégio reservado aos tratados em matéria de direitos humanos. Isso porque todo e qualquer tratado internacional, uma vez celebrado pelo Poder Executivo e referendado pelo Congresso Nacional (que vem utilizando o instrumento formal do Decreto Legislativo para tanto), passa a viger como norma jurídica vinculante e com força de lei ordinária na esfera jurídica interna brasileira, quando não for o caso de um tratado de direitos humanos, pois a esses foi assegurada uma hierarquia mais qualificada.

Por força do disposto no art. 5.º, § 2.º e § 3.º, da CF/1988, os tratados internacionais em matéria de direitos humanos (o que se evidencia também no caso da proteção ambiental, a teor do que sinaliza o art. 11 do Protocolo de San Salvador Adicional à Convenção Americana de Direito Humanos em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 198835), passaram a fruir de um estatuto jurídico-constitucional privilegiado, agregando-se ao conjunto dos direitos e garantias fundamentais estabelecidos pelo Constituinte de 1988, no âmbito do que se convencionou designar de cláusula de abertura em matéria de direitos fundamentais

Art. 11 do Protocolo de San Salvador Adicional à Convenção Americana de Direito Humanos em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1988): “Art. 11.1. Toda pessoa tem direito a viver em um meio ambiente sadio e a contar com os serviços públicos básicos. Art. 11.2. Os Estados-Partes promoverão a proteção e melhoramento do meio ambiente”.

35 O Protocolo de San Salvador entrou em vigor no plano internacional em novembro de 1999, quando foi depositado o 11.º instrumento de ratificação (art. 21). O Brasil, por sua vez, ratificou o Protocolo de San Salvador no ano de 1999, tendo o mesmo sido promulgado internamente por meio do Dec. 3.321, de 30 de dezembro de 1999.

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No nosso sentir, cuidando-se de tratados de direitos humanos (pelo menos no que diz com parte de seus preceitos), os tratados internacionais em matéria ambiental deveriam ter reconhecido o seu status constitucional ou, ao menos, supralegal, conforme, alias, já se pronunciou o STF no julgamento da ADI 4.066/DF (Caso do Amianto), em razão dos diplomas internacionais ambientais veicularem conteúdo inerente ao regime jurídico de proteção tanto dos direitos fundamentais quanto dos direitos humanos.36

Art. 5.º (...) “§ 2.º - Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.

§ 3.º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais” (incluído pela EC 45/2004).

Desde logo, importa frisar a divergência a respeito do procedimento de incorporação dos tratados internacionais sobre direitos humanos. Especialmente desde a inserção, mediante a EC 45/2004 (Reforma do Judiciário), do citado § 3 º do art. 5º., da CF/1988, a matéria voltou a ser objeto de atenção pela doutrina e jurisprudência, pois tal dispositivo prevê que os tratados aprovados pelo Congresso Nacional mediante o procedimento ali regulado (maioria de três quintos, nas duas casas do Congresso e em dois turnos de votação), passam a ter valor equivalente ao das emendas constitucionais, ainda que não venham a alterar o texto da Constituição. Isso, contudo, não significa que os tratados aprovados antes da vigência do § 3.º do art. 5.º da CF/1988 não possam ter reconhecida sua hierarquia constitucional já por força do próprio § 2.º do mesmo artigo, como, aliás, vinha sustentando importante doutrina37, mas é certo que, mediante o novo procedimento, os tratados assim aprovados terão sempre hierarquia normativa constitucional.

Todavia, independentemente do posicionamento aqui adotado no sentido da hierarquia constitucional de todos os tratados de direitos humanos, já por força do disposto no art. 5º, § 2º, da CF/1988, o STF, desde o julgamento do RE 466.343/SP, ocorrido em 03 de dezembro de 2008, muito embora alguns ministros tenham adotado posição em prol da hierarquia constitucional de todos os tratados de direitos humanos, acabou chancelando a tese da supralegalidade dos tratados internacionais de direitos humanos, ressalvados os tratados aprovados pelo rito previsto no § 3.º do art. 5.º da CF/1988. Assim, a nossa Corte Constitucional entende que os tratados internacionais em matéria de direitos humanos aprovados anteriormente ou os que vierem a ser aprovados por maioria simples em um turno de votação, ocupam posição normativo-hierárquica superior à legislação infraconstitucional de um modo geral, cedendo apenas em face da Constituição.

36 STF, ADI 4.066/DF, Tribunal Pleno, Rel. Min. Rosa Weber, j. 24.08.2017.

37 PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 71 e ss.

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Dito de outro modo, tais tratados situam-se apenas abaixo da Constituição, de tal sorte que segue cabendo o controle de sua constitucionalidade. Tal entendimento convém lembrar, resultou cristalizado na hipótese da prisão civil do depositário infiel, que foi considerada incompatível com a Convenção Interamericana de Direitos Humanos (ou Pacto de San José da Costa Rica), segundo a qual é autorizada somente prisão civil do devedor de alimentos, de tal sorte que a tendência vai no sentido de ampliação dos casos levados ao STF no sentido de ver reconhecida a prevalência dos tratados sobre a legislação interna, no âmbito do que se convencionou chamar de controle de convencionalidade, que será objeto de análise logo a seguir.

JURISPRUDÊNCIA STF: HABEAS CORPUS. (...) DEPOSITÁRIO INFIEL. PRISÃO CIVIL. INADMISSIBILIDADE. ORIENTAÇÃO PLENÁRIA DESTE SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ORDEM CONCEDIDA DE OFÍCIO. 1. O Plenário do STF firmou a orientação de que só é possível a prisão civil do ‘responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia’ (inc. LXVII do art. 5.º da CF/1988). Precedentes: HCs 87.585 e 92.566, da relatoria do Min. Marco Aurélio. (...) 3. O Pacto de San José da Costa Rica (ratificado pelo Brasil - Decr. 678, de 6 de novembro de 1992), para valer como norma jurídica interna do Brasil, há de ter como fundamento de validade o § 2.º do art. 5.º da Magna Carta. A se contrapor, então, a qualquer norma ordinária originariamente brasileira que preveja a prisão civil por dívida. Noutros termos: o Pacto de San José da Costa Rica, passando a ter como fundamento de validade o § 2.º do art. 5.º da CF/1988, prevalece como norma supralegal em nossa ordem jurídica interna e, assim, proíbe a prisão civil por dívida. Não é norma constitucional - à falta do rito exigido pelo § 3.º do art. 5.º -, mas a sua hierarquia intermediária de norma supralegal autoriza afastar regra ordinária brasileira que possibilite a prisão civil por dívida. 4. Na concreta situação dos autos, a prisão civil do paciente foi decretada com base nos arts. 652 do CC e 904, parágrafo único, do Diploma Civil Adjetivo (...)”.38

Com base nesse raciocínio, nos parece correto que também os tratados internacionais em matéria ambiental, notadamente no tocante ao seu conteúdo nuclear, vinculado diretamente à proteção do direito humano ao ambiente, passariam a ter ao menos (salvo se aprovados pelo rito do art. 5.º, § 3.º, da CF/1988) natureza hierárquico-normativa supralegal, prevalecendo em face da legislação infraconstitucional. No entanto, a incorporação não deve ser tomada em termos abrangentes, ou seja, no sentido de abarcar todas as normas ambientais dispostas em tratados internacionais, sob pena de se subverter o sistema de proteção dos direitos humanos em si, mas especificamente aquelas normas (em termos materiais e procedimentais) que tratam de forma direta núcleo normativo da proteção do direito humano ao ambiente.39

38 STF, HC 94.523/SP, 1ª Turma, Rel. Min. Carlos Ayres Britto, j. 10.02.2009. Ver também os precedentes do HC 87.585 e do HC 92.566.

39 Na doutrina brasileira, sustentando o mesmo entendimento, v. CAPPELLI, Sílvia; MARCHESAN, Ana Maria Moreira;

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Mas isso, a nosso ver, só valeria para aquele conteúdo de caráter mais protetivo em termos materiais e procedimentais disposto nos diplomas internacionais em matéria ambiental. Do contrário, se a legislação internacional fosse mais permissiva, prevaleceria a legislação infraconstitucional, considerando a incidência do princípio pro homine40, ou seja, dito de modo mais preciso, fazendo prevalecer a norma mais favorável à proteção da pessoa (no tocante aos seus direitos humanos e fundamentais e dignidade).

1.8. O “CONTROLE DE CONVENCIONALIDADE” EM MATÉRIA AMBIENTAL

O entendimento adotado pelo STF, por ocasião da decisão que referimos no tópico anterior, reconhecendo o caráter supralegal dos tratados internacionais sobre direitos humanos, implica a possibilidade do chamado controle de convencionalidade da legislação infraconstitucional. Conforme assinala Valério de Oliveira Mazzuoli, o controle de convencionalidade das leis “nada mais é que o processo de compatibilização vertical (sobretudo material) das normas domésticas com os comandos encontrados nas convenções internacionais de direitos humanos. À medida que os tratados de direitos humanos ou são materialmente constitucionais (art. 5.º, § 2.º) ou material e formalmente constitucionais (art. 5.º, § 3.º), é lícito entender que o clássico ‘controle de constitucionalidade’ deve agora dividir espaço com esse novo tipo de controle (de convencionalidade) da produção e aplicação da normatividade interna”.41

Na medida em que os tratados internacionais em matéria ambiental, por deterem a mesma natureza dos tratados internacionais de direitos humanos, possuem status supralegal, o seu conteúdo prevalece em face da legislação infraconstitucional. Mas, cumpre reiterar, a prevalência ocorre apenas no tocante ao conteúdo que estabelecer um padrão normativo mais protetivo e rígido. Do contrário, prevalece a legislação infraconstitucional nacional, haja vista os princípios que norteiam o Direito Internacional dos Direitos Humanos, bem como o critério hermenêutico de prevalência da norma mais protetiva, aplicando-se aqui o conhecido postulado do in dubio pro natura.42

A título exemplificativo, pode-se destacar a garantia (e princípio) da proibição de retrocesso em matéria ambiental. Isso porque, independentemente de a doutrina atual – brasileira e comparada - já o reconhecer como um princípio geral do Direito Ambiental43, não há previsão expressa do mesmo na

STEIGLEDER, Annelise Monteiro. Direito ambiental. 7. ed. Porto Alegre: Editora Verbo Jurídico, 2013, p. 40.

40 V. MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de direito internacional público. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 869.

41 MAZZUOLI, Curso de direito internacional público..., p. 404. Para Valerio de Oliveira Mazzuoli, os tratados internacionais de direitos humanos, independentemente da adoção do rito previsto no art. 5.º, § 3.º da CF/1988, por serem os mesmos materialmente constitucionais (art. 5.º, § 2.º), ensejariam o controle difuso de convencionalidade, ao passo que os tratados internacionais de direitos humanos submetidos ao procedimento do § 3.º do art. 5.º, por serem material e formalmente constitucionais, possibilitariam o controle concentrado de constitucionalidade, por exemplo, por meio de ADI perante o STF (p. 409-413).

42 STJ, REsp 1.198.727/MG, 2.ª T., rel. Min. Herman Benjamin, j. 14.08.2012.

43 PRIEUR, Michel. Princípio da proibição de retrocesso ambiental. In: Comissão de meio ambiente, Defesa do consumidor e fiscalização e Controle do Senado Federal (Org.). O princípio da proibição de retrocesso ambiental. Brasília: Senado Federal,

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legislação brasileira (constitucional ou infraconstitucional). Tal princípio, todavia, foi objeto de expresso reconhecimento pelo Protocolo de San Salvador Adicional à Convenção Americana sobre Direito Humanos em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1988), mais precisamente no seu art. 1.º. O art. 11 (11.1 e 11.2) do referido diploma internacional, conforme sinalizamos no tópico anterior, prevê o direito ao ambiente como direito humano.

De tal sorte, o status supralegal do Protocolo de San Salvador, na linha do entendimento do STF, estabelece também no direito interno (em virtude da ratificação do tratado), e com hierarquia supralegal, a garantia da proibição de retrocesso ambiental para fazer frente a toda e qualquer nova medida legislativa infraconstitucional que tenha por escopo a flexibilização, de forma desproporcional e arbitrária, da legislação ambiental brasileira atualmente vigente. Assim, importa enfatizar, um dos aspectos mais importantes do controle de convencionalidade diz respeito ao dever ex officio de Juízes e Tribunais internos de atentarem para o conteúdo dos diplomas internacionais sobre direitos humanos, entre os quais o direito ao meio ambiente.

JURISPRUDÊNCIA STF. O primeiro julgamento da nossa Corte Constitucional que se tem notícia no sentido de reconhecer a supralegalidade de tratado internacional em matéria ambiental, conferido, assim, o mesmo tratamento assegurado aos tratados internacionais de direitos humanos, verificou-se na fundamentação lançada no voto-relator da Min. Rosa Weber no julgamento da ADI 4066/DF (Caso do Amianto). No seu voto, a Ministra atribui status supralegal à Convenção de Basileia sobre o Controle de Movimentos Transfronteiriços de Resíduos Perigosos e seu Depósito, de 1989, aprovada no Brasil pelo Decreto Legislativo n. 34/1992 e promulgada pelo Decreto n. 875/1993. Segundo a Ministra, “porque veiculadoras de regimes protetivos de direitos fundamentais, as Convenções n. 139 e 162 da OIT, bem como a Convenção de Basileia, assumem, no nosso ordenamento jurídico, status de supralegalidade (…). (STF, ADI 4066/DF, Tribunal Pleno, Rel. Min. Rosa Weber, j. 24.08.2017).

Mais recentemente, a CIDH, no âmbito da Opinião Consultiva n. 23/2017 sobre “Meio Ambiente e Direitos Humanos”, assinalou que, na linha da jurisprudência consolidada pelo Tribunal e nos termos do direito internacional, quando um Estado é parte de um tratado internacional, como a Convenção Americana de Direitos Humanos, esse tratado vincula todos os seus órgãos, incluindo os Poderes Legislativo e Judiciário, de modo que a violação da normativa internacional por um desses órgãos implica a responsabilidade internacional do Estado-Parte. Por essa razão, a CIDH manifestou seu entendimento no sentido da necessidade de que os vários órgãos do Estado efetuem o correspondente controle da convencionalidade, também com base no exercício da sua competência consultiva, aplicando, portanto,

2012, p. 45 e ss.

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as normas estabelecidas na Opinião Consultiva n. 23/2017 como parâmetro para tal controle.44

Com efeito, em homenagem ao necessário Diálogo das Fontes Normativas45 e também Diálogo de Cortes46, cabe aos aplicadores do Direito, com destaque especial para Juízes e Tribunais, interpretarem a legislação nacional infraconstitucional não apenas pelo prisma do regime constitucional de proteção dos direitos fundamentais, mas também em vista do regime internacional global e regional de proteção dos direitos humanos, com o propósito de assegurar efetividade ao direito humano a viver em um ambiente sadio, equilibrado e seguro.

44 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, Opinião Consultiva n. 23/2017..., p. 15-16.

45 MARQUES, Cláudia Lima (Coord.). Diálogo das fontes : do conflito à coordenação de normas do direito brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012.

46 RAMOS, André de Carvalho. O diálogo das cortes: o Supremo Tribunal Federal e a Corte Interamericana de Direitos Humanos. In: AMARAL JUNIOR, Alberto do; JUBILUT, Liliana Lyra (Orgs.) O STF e o direito internacional dos direitos humanos. São Paulo: Quartier Latin, 2009, v. 1, p. 805-850.

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Simulado1) Os direitos fundamentais de terceira dimensão ou geração, entre os quais se inclui o direto ao meio ambiente, encontram seu fundamento nuclear no princípio da igualdade, o quer toma forma por meio do princípio da igualdade intergeracional.

2) A Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (1992) foi o primeiro documento internacional a reconhecer o status de direito humano (e fundamental) do direito a viver em um ambiente de qualidade, inclusive como condição a uma vida digna.

3) Não obstante a Corte Interamericana de Direitos Humanos tenha reconhecido o seu status de direito humano na Opinião Consultiva 23/2017 sobre “Meio Ambiente e Diretos Humanos”, tal decorre de uma interpretação ampliativa, sistemática e teleológica do Pacto de São José da Costa Rica, haja vista que não há previsão expressa de um direito humano ao meio ambiente adequado nos diplomas que integram o Sistema Interamericano de Direitos Humanos.

4) No tocante ao princípio da proibição de retrocesso ambiental (ou socioambiental), em que pese o reconhecimento e a defesa da sua aplicação no âmbito doutrinário, o mesmo não foi consagrado expressamente no sistema jurídico brasileiro, de modo que o nossos Tribunais Superiores (STJ e STF) rejeitam a sua aplicação.

5) O Supremo Tribunal Federal reconhece o status supralegal de tratados internacionais em matéria ambiental.

GABARITOQ1 ERRADO02 ERRADOQ3 ERRADOQ4 ERRADO05 CERTO