direito, marxismo e liberalismo - tarso genro

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Início Traços Biográficos Direito do Trabalho Links Políticos Publicações no Exterior Contato Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social MEC Direito do Trabalho Especial Direito e Estado Tamanho da letra A- A+ DIREITO, MARXISMO E LIBERALISMO 05/04/2011 - 00h28 — Atualizado em 05/04/2011 - 01h28 Curtir Seja o primeiro de seus amigos a curtir isso. “O rechaço em bloco de todos os princípios teóricos e de todas as conquistas políticas e jurídicas da tradição liberal e a vaga utopia de um estado bom destinado a autodissolver-se, fizeram possível o contrário, eludir “ab origene” o problema dos limites dos poderes estatais. E isto permitiu aos socialismos realizados as perversões totalitárias que todos conhecemos, sem sequer considerar a responsabilidade de ter que desmentir uma inexistente teoria do Direito”. (Luigi Ferrajoli, “Derecho y Razón”, Teoria del Garantismo Penal, Ed. Trotta, 1998, p. 891). I Hegel escreveu no dia seguinte à batalha de Iena: “Eu vi o imperador a cavalo – eu vi a Razão a cavalo”[1]. Era o “espírito da época” representado por Napoleão montado num cavalo branco. Assim ele pôde contemplar a materialização simbólica da idéia num indivíduo que, segundo ele, representava a revolução do conceito tornado História: o conceito tornado história pela força do espírito, “a unidade viva do diverso” que constitui uma realidade como ordem e norma. É o jurídico que vem da idéia, que vem do conceito, que se fez história e também Direito. Se a força do espírito produz um real organizado – espírito objetivado em instituições que fazem a nova sociedade – o Direito, em si, “quando é posto em sua existência objetiva, isto é, determinado pela consciência mediante o pensamento, e conhecido como o que é direito e tem valor, é (o Direito) a lei; e o Direito por meio desta determinação é Direito positivo”[2]. Trata-se de um enunciado direto “sobre um certo tipo de ser”: o Direito. O enunciado culmina com uma trajetória, que abrange um largo período histórico, no qual, segundo Roscoe Pond, o filósofo busca uma “idéia final”, que unificaria todas as demais, “equivalente à aspiração de produzir um direito perfeito que sempre se mantivesse constante”[3]. O mundo atual já desarticulou esta possibilidade que também poria um fim à História, se é que ela alguma vez existiu. Contrariamente à indigência teórica que as abordagens pós-modernas revelam perante os atuais níveis de fragmentação e alienação, um novo descortino teórico só pode ser aberto a partir da categoria da totalidade. A partir desta postura metodológica o próprio “ser” do Direito moderno ainda não teria completado a sua evolução sistêmica: ele estaria “aguardando” uma nova fusão cultural e teórica, cujo processo ainda estaria em curso, assim como ainda estaria em curso o processamento do ponto ótimo da própria cultura da modernidade. As vicissitudes da atual conjuntura histórica seriam, inclusive, estimulantes para esta evolução. A visibilidade imediata da fragmentação[4] e da exclusão, a tensão entre o mundo ficto do Direito democrático e a realidade social do capitalismo, a degradação cada vez mais evidente da norma como hipótese perante a força imperativa do capital financeiro, seriam, assim, radicalmente transparentes e esclarecedores para estimular a busca da “nova fusão”. "Ainda hoje, lançaremos a Rede de Direitos Humanos do RS e o inicio das obras do Distrito Industrial de Guaíba. Um ótimo dia a todos/as!" "Bom dia! RT: “@marcelonepomu2: 9h -Gov. @tarsogenro lança campanha "Rio Grande sem Homofobia". Parceria @SJDH_RS ministra @mariadorosario”" "RT: “@mobilizacaobr: Seg. Alimentar do Brasil para o Mundo, Eleição de Graziano é vitória da política externa do Br http://t.co/VhAnLqQ”" SEJA BEM-VINDO ARTIGOS ENSAIOS LIVROS

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  • I n c i o T r a o s B i o g r f i c o s D i r e i t o d o T r a b a l h o L i n k s P o l t i c o s P u b l i c a e s n o E x t e r i o r C o n t a t o

    C o n s e l h o d e D e s e n v o l v i m e n t o E c o n m i c o e S o c i a l M E C D i r e i t o d o T r a b a l h o E s p e c i a l D i r e i t o e E s t a d o

    Tamanho da letra A- A+DIREITO, MARXISMO E LIBERALISMO05/04/2011 - 00h28 A tualizado em 05/04/2011 - 01h28

    Curtir Seja o primeiro de seus amigos a curtir isso.

    O rechao em bloco de todos os princpios tericos e de todas as conquistas polticas e jurdicas da tradio liberal e a vaga utopia deum estado bom destinado a autodissolver-se, fizeram possvel o contrrio, eludir ab origene o problema dos limites dos poderesestatais. E isto permitiu aos socialismos realizados as perverses totalitrias que todos conhecemos, sem sequer considerar aresponsabilidade de ter que desmentir uma inexistente teoria do Direito. (Luigi Ferrajoli, Derecho y Razn, Teoria del GarantismoPenal, Ed. Trotta, 1998, p. 891).

    I

    Hegel escreveu no dia seguinte batalha de Iena: Eu vi o imperador a cavalo eu vi a Razo a cavalo[1]. Era o esprito da pocarepresentado por Napoleo montado num cavalo branco. Assim ele pde contemplar a materializao simblica da idia num indivduoque, segundo ele, representava a revoluo do conceito tornado Histria: o conceito tornado histria pela fora do esprito, a unidadeviva do diverso que constitui uma realidade como ordem e norma. o jurdico que vem da idia, que vem do conceito, que se fezhistria e tambm Direito.

    Se a fora do esprito produz um real organizado esprito objetivado em instituies que fazem a nova sociedade o Direito, em si,quando posto em sua existncia objetiva, isto , determinado pela conscincia mediante o pensamento, e conhecido como o que direito e tem valor, (o Direito) a lei; e o Direito por meio desta determinao Direito positivo[2].

    Trata-se de um enunciado direto sobre um certo tipo de ser: o Direito. O enunciado culmina com uma trajetria, que abrange umlargo perodo histrico, no qual, segundo Roscoe Pond, o filsofo busca uma idia final, que unificaria todas as demais, equivalente aspirao de produzir um direito perfeito que sempre se mantivesse constante[3]. O mundo atual j desarticulou esta possibilidadeque tambm poria um fim Histria, se que ela alguma vez existiu.

    Contrariamente indigncia terica que as abordagens ps-modernas revelam perante os atuais nveis de fragmentao e alienao,um novo descortino terico s pode ser aberto a partir da categoria da totalidade. A partir desta postura metodolgica o prprio serdo Direito moderno ainda no teria completado a sua evoluo sistmica: ele estaria aguardando uma nova fuso cultural e terica,cujo processo ainda estaria em curso, assim como ainda estaria em curso o processamento do ponto timo da prpria cultura damodernidade.

    As vicissitudes da atual conjuntura histrica seriam, inclusive, estimulantes para esta evoluo. A visibilidade imediata dafragmentao[4] e da excluso, a tenso entre o mundo ficto do Direito democrtico e a realidade social do capitalismo, a degradaocada vez mais evidente da norma como hiptese perante a fora imperativa do capital financeiro, seriam, assim, radicalmentetransparentes e esclarecedores para estimular a busca da nova fuso.

    "Ainda hoje, lanaremos a Rede de Direitos Humanos do RS e oinicio das obras do Distrito Industrial de Guaba. Um timo dia atodos/as!"

    "Bom dia! RT: @marcelonepomu2: 9h -Gov. @tarsogenro lanacampanha "Rio Grande sem Homofobia". Parceria @SJDH_RSministra @mariadorosario"

    "RT: @mobilizacaobr: Seg. Alimentar do Brasil para o Mundo,Eleio de Graziano vitria da poltica externa do Brhttp://t.co/VhAnLqQ"

    S E J A B E M - V I N D O

    A R T I G O S

    E N S A I O S

    L I V R O S

  • Os ensaios de sociologia crtica (munidos de um instrumental dialtico de carter no positivista), que no desloquem o pensamentocrtico somente de uma idia para outra idia, ou mesmo de um dado fragmentrio para outro - estes ensaios de sociologiacrtica so capazes de propor certas abstraes que podem concentrar conhecimentos abrangentes, relativamente a largos perodoshistricos. A prpria gravidade da crise atual, como crise de um padro civilizatrio, j oferece elementos para estas abstraes maisousadas.

    Ensaios deste porte so portanto acumulaes de conhecimento. So construes do intelecto fundamentais para uma novafilosofia do Direito que no renuncie busca da totalidade. Este um primeiro passo. O segundo passo, neste roteiro, seria entopropor novos enunciados diretos sobre o ser do Direito. A partir deles, iniciar-se-ia a edificao de um novo sistema conceitual:novas categorias para abordar o fenmeno jurdico, ou novas aproximaes tericas com as categorias atuais. (Quanto a estas, impossvel simplesmente abandon-las, pois sua solidez vem referenciada por um largo perodo que se abriu com a formao do EstadoModerno.)

    Trata-se, em conseqncia, de, partindo do amplo continente da sociologia do Direito. chegar quelas abstraes (fundadas nasociologia crtica), para tentar construir enunciados ontolgicos. Seria um movimento nico do pensamento em direo vida, capazde superar e absorver, tanto o jusnaturalismo como o positivismo analtico. Com base nesta viso, ento, comearia a rduaconstruo de um novo sistema, concebendo que somente com ele surgiriam as conseqncias normativas a respeito do Direito paraum novo tipo de Estado que esta aventura terica pode encerrar.

    Vejamos o que superar. Tomemos a fico da identidade jurdica, de carter normativo, que o Estado de Direito estabelece com opovo, como corpo social homogneo[5]; tambm o princpio da igualdade perante a lei; e ainda a previsibilidade / seguranajurdica. Todas elas so conquistas categricas da Ilustrao e do racionalismo Iluminista. Estas categorias no foram nem superadasnem vencidas pela anlise do marxismo, enquanto elementos da teoria geral do Estado e do Direito. Foram subestimadas por umadialtica negativa[6], atravs da qual o pensamento crtico sucumbiu ao objeto criticado, que acabou por paralisar a elaborao dasbases de uma filosofia jurdica revolucionria. A ao terica conservadora-superadora do acmulo originrio do liberalismo polticoainda no foi, portanto, processada de maneira plena.

    Como ocorre esta limitao na vida? Vejamos um exemplo. Est provado que a eficcia das garantias constitucionais, na ordem jurdica,e a sua efetividade real (a possibilidade de avoc-las perante uma instncia formalmente neutra com liberdade e segurana e aincidncia prtica dos direitos sociais constitucionais) no um problema do direito burgus: um problema de qualquer sistemajurdico democrtico moderno e de qualquer sociedade moderna, em maior ou menor grau[7].

    O dficit de Direito, originrio do choque da ordem jurdica com a ordem social, da superestrutura com a base, do conceitocom a realidade que a sociedade fez de si mesma[8], merece, em conseqncia, uma investigao que j supe a necessidade deuma outra inverso metodolgica. Pergunto-me se no seria, esta inverso, a capacidade de propor que a vida real seja observadaa partir do discurso do Direito[9], e no somente que se veja o Direito a partir da base material da sociedade? Tratar-se-ia, seassim fosse, de inverter a inverso que Marx fez de Hegel: dar conseqncia ao prprio mtodo de Marx, para depois voltar novamente da base para o mundo das idias e, novamente, recomear incessantemente, do movimento anterior para este, e assimpor diante.

    S isso j bastaria para problematizar o Direito como instncia especfica da reproduo social, cuja explicao classista-economicistapura torna-se totalmente problemtica. Em oposio a esta proposta metodolgica, podero dizer os espritos que tendem simplificao: a ineficcia do jurdico decorre apenas de problemas de origem social a serem vencidos; ou ento diro os marxistas-naturalistas do tipo stalinista: origina-se esta limitao do Direito simplesmente da explorao capitalista.

    Ambas assertivas, bvio, so verdadeiras. S que no servem para nada no trabalho terico para desvendar o ser do Direito, nempara impulsionar o sistema jurdico para outra definio de si mesmo. Nesta hiptese como contra-ofensiva seria possvelperguntar: mas por que os homens fazem o Direito assim? Ou ainda, mais adiante: por que os homens fazem um Direito sempreimpossvel? Ou ainda, seguindo o mesmo rumo: no possvel, com a experincia j vivida, comear a inventar um Direito queaproxime vida e conceito?

    II

    As relaes do marxismo com o liberalismo poltico sempre foram relaes tensas. O ponto de partida terico, para examinar taistenses e conflitividades, talvez possa ser dado pelas seguintes formulaes sobre a categoria da liberdade (cujo grau de generalidadeno prejudica o entendimento da controvrsia de origem): a liberdade plena, para Marx, identificava-se com a sociedade sem classessociais; a liberdade poltica, para o liberalismo, s seria rica se cada classe aceitasse o seu lugar e se dispusesse a contratar oslimites das liberdades reais. (Esta, a liberdade real, seria a plenitude da liberdade, ou seja, uma plenitude subordinada liberdademercantil).

    As duas grandes vertentes do marxismo histrico, aquele marxismo que produziu fortes efeitos que se integraram vida de milhes,

  • o comunismo real e a social-democracia, esto no mesmo plo de uma contradio que revela duas tenses, quanto s funes doEstado. De uma parte, o comunismo real espelhava a potncia do Estado a servio da extino das classes; de outra, a social-democracia assentava-se na mesma potncia do Estado, tornado poder arbitral, para avalizar o contrato social.

    No comunismo real a classe operria extinguiria todas as classes para extinguir-se como classe, o que implicava na imposio dasupresso de qualquer contrato: realizaria e ao mesmo tempo suprimiria o garantismo. A social-democracia predestinava as classesa aceitarem o seu lugar especfico, subordinado ou subordinante, e considerava o papel histrico das classes vinculado harmoniasocial, enquanto projeto poltico, e ao garantismo jurdico, enquanto projeto de ordem econmico-mercantil: o garantismo teria umpapel fundante e estabilizador.

    O comunismo real e a social-democracia esgotaram o seu ciclo histrico. A recorrncia a ambos d-se, hoje, esquerda e direita,como recorrncia negativa por diferentes motivos. O primeiro caminho, do comunismo real, porque pagou um duro tributo ditadurado partido nico, que sufocou a fora constituinte/civilizatria, que emergiria de um Direito democrtico-revolucionrio. O segundocaminho, da social-democracia, porque entregou-se a um pacto de curta durao, tambm atualmente em extino: a fora histricado capital-dinheiro zomba de qualquer pacto econmico ou poltico, pois pode impor a sua reproduo sem vnculos estruturais com aproduo da riqueza social. (Esta fora tornou-se a fora normativa global que se impe, no s sobre a democracia como contratopoltico, mas tambm sobre as polticas distributivas sociais-democratas.)

    As recorrentes tentativas dos marxistas de elaborar enunciados diretos sobre o ser do Direito (uma filosofia pura do Direito)tiveram curso e fixaram-se em trs grandes tendncias tericas, classificao esta que tambm meramente indicativa: o caminho dePashukanis (o ponto de partida a relao real entre os sujeitos, no a norma)[10]; o caminho de Wishinsky (o ponto de partida arelao do Direito com o poder de Estado, que legitima a norma da classe no poder); e o caminho reformista de Karl Renner (o pontode partida so as categorizaes centrais do iluminismo jurdico, que devem ser adequadas aos interesses da classe universal, ou seja,da classe operria)[11].

    possvel provar, no sentido positivista, que os trs caminhos metodolgicos tm sustentao nos escritos marxianos. KarlRenner, no Jovem Marx, para quem as coisas tm uma natureza prpria, especificamente jurdica[12], que o Direito apanha,organiza e constrange em categorias formais, por deciso poltica; Wishinsky, nos conhecidos escritos marxianos sobre a ditadura doproletariado, classe com a vocao de universalidade que legitima o Direito por esta destinao messinica[13]; e Pashukanis, noMarx do Prefcio Contribuio Crtica da Economia Poltica, texto no qual o autor deixa evidente a concepo radical de que ossujeitos so movidos exclusivamente pelos seus interesses de classe, duramente constrangidos pela estrutura de produo[14].

    Evidentemente aqui estamos passando ao largo de brilhantes contribuies, que desenvolveram agudas abordagens, de marxistas eneomarxistas (at a dcada de 70) como Umberto Cerroni, Radomir Lukic, Max Adler, Poulantzas e Roberto Lyra Filho, entre outros. Ostrs caminhos acima apontados poderiam abrir-se em muitas rvores conceituais, embora a metodologia, presente neles, sempre tenhauma identidade de fundo: a tentativa de constituir uma Filosofia do Direito tendo como matriz terica a perspectiva fundadana explicao exclusivamente classista do Direito. Ou seja, o que poderia ser um frtil ponto de chegada de determinadasconceituaes tornou-se um ponto de partida extremamente simplificador.III

    verdade que esta posio preliminar no impediu o notvel potencial crtico do marxismo sobre o Direito da sociedade capitalista. Mastambm no menos verdade que esta dialtica, predominantemente negativa, sufocou a produo de conceitos mais sofisticados,destinados a trabalhar (principalmente a partir do prprio marxismo) uma teoria especfica de organizao do Estado e depromoo da liberdade. A ausncia desta teoria sobre tcnicas de poder, atos criadores de poder e geradores de novas instituies,concorreu embora de forma involuntria para a aceitao do mundo atual e estvel da desigualdade, combinada com a expectativade um futuro distante, prometido de forma meramente idealizada[15].

    Para que este sufocamento no ocorresse, seria preciso tomar o trabalho terico no somente como crtica do Direito e do Estado,mas tambm como trabalho propositivo em busca de categorias e instituies novas para uma sociedade a construir. Este processoseria vivel, menos a partir de uma tica histrico-sociolgica e mais a partir de uma pretenso utpica, que pudesse dar sustentaoao projeto de um novo tipo de Estado, que no fosse a mera destruio do anterior: o Estado que conciliasse as formas jurdicaspropositivas da igualdade, em termos normativos, com as formas concretas de reproduo da igualdade, em termoseconmico-sociais.

    Kelsen percebia claramente o carter instrumental e limitado da teoria dos seus opositores marxistas soviticos, o que deixouevidente quando disse, na Teoria comunista do Direito[16], que este carter ideolgico da teoria sovitica do direito conseqnciainevitvel do princpio marxista () de que a cincia social, em geral, e a cincia do Estado e do Direito, em particular, tm que serpolticas, isto , tem que se traduzir em frmulas que possam ser usadas na luta poltica de um grupo contra outro. (Grifei,T.G.)

    Assim, a tradio do marxismo foi expandida como teoria jurdica, fundamentalmente atravs de um corte histrico-sociolgico de

  • carter pouco propositivo, em relao ao novo tipo de Estado. E tambm atravs de um limitado esforo para propor um sistemajurdico, suficientemente realista para ser efetivo e, ao mesmo tempo, suficientemente utpico, para ser emancipatrio. uma tradioque se encontra, agora, numa situao peculiar: viu a sua prpria crtica do Estado e do Direito voltar-se contra as suasexperincias reais, que se identificaram com a sua negao.

    Sustento que a simplificao com que o marxismo dominante abordou as teorias jurdicas modernas e mesmo o Direito romano, foium dos fatores culturais mais fortes que limitaram sua evoluo como teoria jurdica e impulsionaram o recurso ao totalitarismo naURSS. Estas verdadeiras frmulas dogmticas abrigaram-se principalmente no reducionismo classista, que pretendia abranger tanto odesvendamento do Estado Absolutista Moderno como do Estado Democrtico de Direito, praticamente sob a mesma luz analtica.

    A concluso que a viso acumulada a partir da chamada crtica das armas ao Estado da sociedade capitalista no s mostrou-seinsuficiente, enquanto experimento terico e desenho histrico da realidade pretendida (afinal, era uma viso permeada pela certezado fim do Estado e do Direito), como tambm foi extremamente frgil como construo terica propositiva.

    Tomemos ainda dois exemplos emblemticos. O princpio da igualdade perante a lei e o do devido processo legal. Ambos jamaissofreram qualquer contestao consistente dos defensores de um direito marxista, mas ambos os princpios foram, em regra,sistematicamente violados no socialismo real, em confronto com os prprios princpios constitucionais fundantes dos respectivosEstados. E o foram, no s no bojo da consolidao das revolues (o que facilmente explicvel), mas tambm, permanentemente,depois de estabilizados os Estados de Direito tidos como socialistas.

    O princpio da igualdade formal nas sociedades socialistas reais e nas sociedades capitalistas, confrontado com as relaes sociaisreais do dinheiro ou do poder burocrtico que multiplicavam e multiplicam desigualdades, entra permanentemente em crise peranteuma brutal contradio: a que existe entre a infinita abstratividade e generalidade da norma e a infinita concretude de cadacaso singular*. Um locatrio que no paga os aluguis, como tcnica de acumulao, enquadrado no mesmo tipo legal queenquadra o empresrio-locatrio, que no os paga porque est acossado pelos juros extorsivos do sistema bancrio. O burocrata dopartido e o burocrata que no do partido no socialismo real no tm o mesmo valor, quando sofrem a incidncia de um atoadministrativo de carter corretivo, sobre as respectivas funes que exercem na administrao.

    Tambm o tipo abstrato inadimplncia, pela dogmtica jurdica atual, subsume e anula a igualdade como conquista democrticacivilizatria. Sendo a relao uma relao entre sujeitos hipotticos, que s so iguais na abstrao da norma, a deciso do Estado,como regra, no contempla o verdadeiro contedo da inadimplncia dos sujeitos concretos. O discurso do Estado como garantidor daLei e da Ordem, para usar a expresso de Dahrendorf, ficaria desconstitudo se ele assim no procedesse como Poder, pela voz do Juiz.

    O devido processo legal, que na sociedade capitalista desmontado diariamente, pela desigualdade brutal dos sujeitos concretosperante a ao judicial, no compensado pelo Estado. No socialismo real, alis, ele apresenta-se, quando importantepoliticamente, como farsa e como tragdia, experincia que vem desde os Processos de Moscou e chega at o sistema judiciriocubano. O caso dos irmos La Guardia e do General Ochoa, que foram acusados de travar relaes com os narcotraficantes, para obterfundos para as guerrilhas latino-americanas (e que teriam assim amealhado recursos para suas contas pessoais) exemplar. Eles notiveram direito a uma defesa ampla nem a advogados isentos e, ao que tudo indica, por necessidade poltica do regime deveriam, emqualquer hiptese, ser duramente sancionados pelo Estado: por uma estranha dialtica, as circunstncias atenuantes setransformaram rapidamente em seu contrrio na boca do procurador: Senhor Presidente, nosso dever profissional reconhecer queem todos os acusados concorrem circunstncias atenuantes, em especial a boa conduta anterior aos fatos Mas, ao mesmo tempo,e com bastante evidncia, concorrem tambm circunstncias agravantes desde o ponto de vista moral e poltico: so os prpriosmritos e sua elevada posio os que no caso de Ochoa e dos irmos La Guardia fazem ainda mais grave suasituao[17]

    As violaes, nos chamados Estados socialistas, da sua prpria legalidade formal, so at observadas por uma certa verso marxista-leninista como cruis, mas, ao lado do registro da crueldade, est sempre a afirmativa da legtima necessidade do novo Estado,que necessita firmar uma nova ordem contra a dominao anterior. O argumento lembra e justifica a crtica de Kelsen, citadaanteriormente.

    A absoluta falta de eficcia, nestes pases, do sistema de garantias individuais, que representa uma das mais importantescontribuies da doutrina alem ao desenvolvimento terico do direito constitucional[18], equipara suas ordens jurdicas quelas dosEstados fascistas, o que detecta a existncia de um estranho ritual de aproximao dos contrrios, pelo Direito.

    No gratuito, pois, que o Terror de Robespierre e o Terror de Stlin construram categorias jurdicas anlogas, como antemas,atravs das quais os dissidentes eram demonizados pela frmula inimigo do Estado ou inimigo objetivo. O conceito, na prtica,afastava os seus protagonistas da trama de direitos outorgveis aos que integram a comunidade jurdico-formal. Tais respostas doEstado, independentemente de que sejam julgadas como dolorosas contingncias, em defesa dos interesses da classe, raa ounao, indicam que ambas as ordens estatais as da burguesia e as presumidamente do proletariado estavam informadaspelos mesmos fundamentos tericos, embora instrumentalizados por propsitos diferentes.

    S uma viso de mundo e do ser humano que no perca o gosto pela utopia nem a esperana na emancipao, ser capaz de

  • sair deste impasse. A jovem tradio revolucionria e reformista do marxismo e do neomarxismo, articulada com o sentidodemocrtico-radical tambm inscrito no liberalismo poltico, poder dar uma contribuio importante para este novo projeto.

    * O artigo uma adaptao do texto de introduo ao livro Direito, Marxismo e Liberalismo Ensaios para uma sociologia crtica doDireito, de Edmundo Lima de Arruda Jr.

    [1] GARAUDY, Roger. Para conhecer o pensamento de Hegel. Porto Alegre: L&PM Editores, 1966, p. 27.

    [2] HEGEL, Guillermo Federico. Filosofia del Derecho. Buenos Aires: Editorial Claridad, SA, vol. 5. 1968, p. 187.

    [3] POUND, Roscoe. Introduccin a la Filosofia del Derecho. Buenos Aires: Tipografica Editora Argentina, 1972, p. 15.

    [4] RAMOS FILHO, Wilson. O Fim do Poder Normativo e a Arbitragem. So Paulo: Editora LTR, 1999, p. 69: O ps-modernismosustenta que no podemos aspirar a nenhuma representao unificada do mundo, nem retrat-lo como uma totalidade cheia deconexes e diferenciaes, vez que estamos diante de fragmentos em perptua mudana. Para seus principais tericos, nopoderamos aspirar e agir corretamente diante de um mundo de tal maneira multifacetado. Esta correta conscincia dos fragmentosem perptua mudana no dizer de Ramos Filho seria o ponto de partida crtico para a compreenso de uma nova totalidade,caracterizadora de um novo perodo na acumulao capitalista.

    [5] MULLER, Friedrich. Quem o povo? A questo fundamental da Democracia. So Paulo: Ed. Max Limonad, 1998, p. 35: O povoigualmente aparece na teoria jurdica da democracia enquanto bloco. Ele a pedra fundamental imvel da teoria da soberaniapopular e fornece como lugar-comum de retrica a justificativa para qualquer ao do Estado. Nessa utilizao em bloco o conceitode povo justamente encobre as diferenas que permitiriam distinguir entre retrica ideolgica e democracia efetiva. O povo e o seupoder (Gewalt), sem os quais a sociedade nem seria capaz de receber uma constituio, no pode permanecer uma metfora citadaem discursos domingueiros (Sonntagsreden) inofensivos, diz Ralph Christensen, na Introduo ao livro..

    [6] ADORNO, Theodor W. Tres Estudios sobre Hegel. Madri: Taurus Ediciones SA, 1981, pp. 111/112: A doutrina hegelianasegunda a qual somente como negao determinada chega o pensamento a algo que convenha com a gravidade do seu objeto, sepe, indubitavelmente, em lugar de disparar sem tardana por cima dele, a servio do aspecto apologtico, da justificao do ente;pois o pensamento que somente chega a converter-se em verdade ao assumir inteiramente ao que se lhe ope sucumbe sempre,assim mesmo, tentao de explicar, justamente por ele, o mesmo que se lhe ope como pensamento, idia ou verdade. notvelcomo esta explicao de Adorno sintetiza a trajetria das concepes de Lnin sobre o Direito negao absoluta do Direito burgusno Estado e a revoluo depois aperfeioado, expresso na frmula legalidade socialista.

    [7] BONAVIDES, Paulo. Do pas constitucional ao pas neocolonial a derrubada da Constituio e a recolonizao pelo golpe deEstado institucional. So Paulo: Malheiros Editores Ltda, 1999, p. 163: Quanto mais largo o hiato entre a Constituio e a realidade,o Estado e a sociedade, a norma e a sua eficcia, os governantes e os governados, a lei e a justia, a legalidade e a legitimidade, aconstitucionalidade formal e a constitucionalidade material, mais exposto e vulnervel crise constituinte fica o arcabouo doordenamento estatal, por cujas juntas e articulaes estalam todas as estruturas do poder e da organizao social. Em momentosagudos de falta de efetividade ocorre o que o mestre citado designa como crise constituinte, ou seja, a exacerbao da distnciaentre o sistema normativo e a realidade social, com possibilidade de total deslegitimao da ordem jurdica.

    [8] CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional. Coimbra (Portugal): Livraria Almedina, 6 edio revista, 1995, p. 545: Emboraos direitos sociais, econmicos e culturais estejam dependentes de uma reserva de medida legislativa (a Massgabevorbehalt deHberle), e sejam considerados como leges imperfectae (Martens), eles possuem relevante significado jurdico como direitossubjetivos.

    [9] SANTOS, Boaventura de Sousa. O Discurso e o Poder Ensaio sobre a Sociologia da Retrica Jurdica. Porto Alegre: SergioAntonio Fabris Editor, 1988, p. 52: A autonomizao e a sistematizao da funo jurdica concomitantes, alis, da produo deuma ideologia especfica, o legalismo tm a sua reproduo alargada garantida pela cincia jurdica, a chamada dogmtica jurdica,sobretudo atravs da pesada tecnologia lingstica e conceitual e da criao de um universo terico onde se segregam as coernciassistmicas do fragmentrio e fragmentante agir tcnico-jurdico. Por esta via se consolidam as especializaes/diferenciaesfuncionais e novas divises tcnicas e sociais do trabalho jurdico, inclusivamente a diviso entre o trabalho prtico-utilitrio e otrabalho cientfico dogmtico, uma diviso estruturalmente homolgica da que intercede entre trabalho manual e trabalhointelectual.

    [10] Professor Kubech, no debate com Norberto Reich. Teoria Pura del Derecho y Teoria Marxista Del Derecho. Instituto HansKelsen. Bogot: Ed. Temis Libraria, 1984, p. 41: O professor Kubech opina que entre a teoria pura do Direito e a teoria marxista doEstado e do Direito h um abismo qualificvel de fundamental, difcil de salvar. A teoria pura do Direito uma doutrina do Direitopositivo, em primeiro lugar uma lgica e uma cincia estrutural do Direito. Distinto o caso da teoria marxista do Estado e doDireito. A teoria marxista ou marxista-leninista do Estado e do Direito poltica. Ignora o dualismo entre o ser e o dever ser porquenum mundo caracterizado pela necessidade causal, dificilmente se pode falar de um dever ser, de uma norma em geral. E ainda

  • LEGITIMIDADE E SENTENA NA ORDEM GLOBALDEMOCRACIA, DIREITO E SOBERANIA ESTATAL

    quando a teoria materialista do Estado e do Direito fale de um dever ser, o faz de tal modo que o dever ser determina-se pelo ser e oreflete. A teoria jurdica marxista v o direito como fenmeno em seu completo enlace com os demais fenmenos, em particularcom os da economia. A teoria pura do Direito pode ser til para a legalidade marxista em virtude da sua anlise da norma jurdica.

    [11] LESER, Norbert. Hans Kelsen y Karl Renner. In: Teora Pura del Derecho y Teora Marxista del Derecho. Instituto Hans Kelsen.Bogot (Colombia): Ed. Temis Libraria, 1984, p. 53: Como no caso de todos os tericos que no se consideram meros juristas eadeptos do positivismo jurdico, a teoria do Direito de Karl Renner est estreitamente vinculada a suas concepes polticas e sociaisem geral, das quais se infere o lugar que, no conjunto da realidade, corresponde ao Direito. Renner, em sua obra, teve em conta arealidade e a eficincia do Direito, na medida em que suas reflexes e atividades de ndole primordialmente scio-polticas lherequeriam. Kelsen, por outro lado, primeiro que tudo, teorizante do Direito, e a partir desta posio fundamental, acomete arealidade social como cientista e filho da sua poca, da qual era ativo partcipe. Sem menosprezar este aspecto formal que os separa,Renner e Kelsen so confrontados com o mesmo objeto material que lhes coube compreender e tratar cientificamente, de sorte que diferena entre os pontos de partida de ambos, ainda h de dar maior mrito concordncia de suas opinies.

    [12] GUASTINI, Ricardo. El lxico jurdico del Marx liberal. Mxico: Universidad Autnoma de Puebla, 1984, p. 157.

    [13] GRAU, Eros Roberto. Direito, Conceitos e Normas Jurdicas. So Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1988, p. 31: AfirmaKelsen que uma norma jurdica no vale porque tem um determinado contedo, mas sim porque foi criada de modo determinado,fixado em uma norma fundamental pressuposta. Da, pois, saca a concluso de que todo e qualquer contedo pode ser Direito e deque no h qualquer conduta humana que, como tal, por fora do seu contedo, esteja excluda de ser contedo de uma normajurdica. A posio, formalmente aceita no Direito sovitico, a partir do Stalinismo, veio de uma abordagem to positivista como aquelaque atribuda Kelsen, pela interpretao dominante da sua obra, cuja sntese tima est exposta no texto transcrito, do professorEros Grau.

    [14] MARX, Karl. Prefcio Contribuio Crtica da Economia Poltica. In: Obras Escolhidas. So Paulo: Editora Alfa-Omega,, vol.1, p. 301: Ao chegar a uma determinada fase de desenvolvimento, as foras produtivas materiais da sociedade se chocam com asrelaes de produo existentes, ou, o que no seno a sua expresso jurdica, com as relaes de propriedade dentro dasquais se desenvolveram at ali. De formas de desenvolvimento das foras produtivas, estas relaes se convertem em obstculos aelas. E se abre, assim, uma poca de revoluo social. Ao mudar a base econmica, revoluciona-se, mais ou menos rapidamente,toda a imensa superestrutura erigida sobre ela.

    [15] STRECK, Lenio Luiz. Hermenutica jurdica e(m) crise uma explorao hermenutica da construo do Direito. Porto Alegre:Livraria do Advogado Editora, 1999, p. 27: A absoluta maioria da sociedade passa a acreditar que existe uma ordem de verdade, naqual cada um tem o seu lugar (de)marcado. Cada um assume o seu lugar. Essa maioria, porm, no se d conta de que essaordem, esse cada-um-tem-o-seu-lugar engendra a verdadeira violncia simblica da ordem social, bem para alm de todas ascorrelaes de foras que no so mais do que a sua configurao movente e indiferente na conscincia moral e poltica. O sistemacultural engendra exatamente um imaginrio no qual, principalmente atravs dos meios de comunicao de massa, se faz umaamlgama do que no amalgamvel.

    [16] MANERO, Juan Ruiz. El otro Kelsen (Oscar Correas, compilador). Mxico: Universidade Autnoma do Mxico, 1989, p. 120.Oscar Correas, na mesma obra (p. 29), em notvel ensaio, que resgata Kelsen do ponto de vista da prpria metodologia marxista,defende-o ao sustentar, explicitando uma posio dele, Kelsen: a ideologia jurdica no deve seguir fazendo-se passar por cincia e,portanto, exercida por algum que no deseja confessar que o faz. A razo para fundar uma cincia pura do Direito no consiste emjustificar todo o poder, mas ao contrrio: despojar de toda a justificao cientfica qualquer poder.

    * Este exemplo foi inspirado por orientao, ao signatrio do presente texto, do professor Ernildo Stein.

    [17] MASETTI, Jorge. El furor y el delrio itinerario de un hijo de la Revolucin cubana. Barcelona: Tusquets Editores, SA, 1999, p.236.

    [18] COMPARATO, Fabio Konder. Parecer, datilo, sobre Coisa julgada e ao rescisria, p. 5.

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