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7 RESUMO DIREITO, ESTADO E PODER: POULANTZAS E O SEU CONFRONTO COM KELSEN 1 Rev. Sociol. Polít., Curitiba, v. 19, n. 38, p. 7-25, fev. 2011 Recebido em 1 de fevereiro de 2009. Aprovado em 7 de julho de 2009. Luiz Eduardo Motta A Teoria do Estado, no campo da Ciência Política, viveu momentos de crise, em particular na passagem dos anos 1980 para os 1990, quando algumas correntes intelectuais apontavam que o Estado-nação e as instituições estatais deixariam de ocupar um papel central como objetos de análise. O presente artigo vai de encontro a essa posição e visa a estabelecer uma análise comparativa de dois dos mais sistemáticos autores que trataram do conceito de Estado moderno e da relação deste com o Direito moderno: Hans Kelsen e Nicos Poulantzas. O ponto de partida é a analogia estabelecida entre ambos por David Easton, em seu artigo O sistema político sitiado pelo Estado, que identifica a obra marxista de Poulantzas com a teoria sistêmica e normativa de Kelsen sobre o Direito e o Estado. De fato, paradoxalmente, Poulantzas converge em muitos aspectos com Kelsen quando critica o pensamento liberal (ao qual Kelsen é filiado) e quando define que o Estado de Direito seria a antítese dos estados autoritários. Mas, a despeito dessas convergências, as diferenças entre Poulantzas e Kelsen demarcam duas formas distintas no trato teórico e político sobre os conceitos de Direito e Estado. Para Kelsen, o Estado é impermeável, não havendo contradições e fissuras internas, enquanto, para Poulantzas, o Estado é definido como um campo estratégico de lutas, permeado de micropolíticas e de contradições. O artigo é composto de uma introdução, seguida por duas seções que sistematizam as principais definições de Kelsen e Poulantzas sobre o papel do Estado e do Direito modernos, além de uma conclusão, que demarca os aspectos convergentes e divergentes entre os dois autores. PALAVRAS-CHAVE: Nicos Poulantzas; Hans Kelsen; Direito; Estado; poder. I. INTRODUÇÃO A reflexão teórica sobre os conceitos de Esta- do e de Direito tem sido uma das marcas predo- minantes do pensamento moderno. Isso é percep- tível nas mais distintas correntes de pensamento da filosofia política moderna a exemplo do jusnaturalismo de Hobbes, Locke, Rousseau e Kant, como também no utilitarismo de Bentham e Stuart Mill. O mesmo ocorreu na obra dos pre- cursores da Sociologia Política, como Montesquieu, Tocqueville e Max Weber. O pen- samento marxista também não ficou por menos. A questão do Estado e do Direito estão presentes no jovem Marx em 1843, na sua obra Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, como também de modo disperso nos seus escritos tidos como de sua fase de maturidade (científica, em oposição à filosófica de sua juventude, como define Althusser e a sua escola), a exemplo das obras Ideologia Alemã, Grundrisse, Crítica ao Programa de Gotha e o Capital. Também cabe destacar o interesse de Engels por essa temática em seus livros Anti- Dühring e A Origem da Família, da Propriedade e do Estado. Essa tradição ainda permaneceu na primeira metade do século XX, por meio de autores mar- xistas como Stuckha, Pasukanis, Reisner, Vyshinsky, Golunskii, Strogovich, Korovin, Krylov, Yudin, além do próprio Gramsci, de modo disperso e assistemático, em seus Cadernos do cárcere. Nicos Poulantzas (1936-1979), com efei- to, foi o pensador marxista que mais contribuiu a essa problemática na segunda metade do século passado. Suas reflexões sobre o Estado e o Direi- to estiveram presentes em toda a sua obra desde a sua fase existencialista sartreana, em A natureza das coisas e do Direito, passando pela sua aproxi- 1 Trabalho apresentado no Grupo de Trabalho Marxismo e Ciências Sociais, no XXXII Congresso Anual da Associ- ação Nacional de Pós-Graduação em Ciências Sociais, em 2008.

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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA V. 19, Nº 38: 7-25 FEV. 2011

RESUMO

DIREITO, ESTADO E PODER:POULANTZAS E O SEU CONFRONTO COM KELSEN1

Rev. Sociol. Polít., Curitiba, v. 19, n. 38, p. 7-25, fev. 2011Recebido em 1 de fevereiro de 2009.Aprovado em 7 de julho de 2009.

Luiz Eduardo Motta

A Teoria do Estado, no campo da Ciência Política, viveu momentos de crise, em particular na passagem dosanos 1980 para os 1990, quando algumas correntes intelectuais apontavam que o Estado-nação e asinstituições estatais deixariam de ocupar um papel central como objetos de análise. O presente artigo vai deencontro a essa posição e visa a estabelecer uma análise comparativa de dois dos mais sistemáticos autoresque trataram do conceito de Estado moderno e da relação deste com o Direito moderno: Hans Kelsen eNicos Poulantzas. O ponto de partida é a analogia estabelecida entre ambos por David Easton, em seuartigo O sistema político sitiado pelo Estado, que identifica a obra marxista de Poulantzas com a teoriasistêmica e normativa de Kelsen sobre o Direito e o Estado. De fato, paradoxalmente, Poulantzas convergeem muitos aspectos com Kelsen quando critica o pensamento liberal (ao qual Kelsen é filiado) e quandodefine que o Estado de Direito seria a antítese dos estados autoritários. Mas, a despeito dessas convergências,as diferenças entre Poulantzas e Kelsen demarcam duas formas distintas no trato teórico e político sobre osconceitos de Direito e Estado. Para Kelsen, o Estado é impermeável, não havendo contradições e fissurasinternas, enquanto, para Poulantzas, o Estado é definido como um campo estratégico de lutas, permeado demicropolíticas e de contradições. O artigo é composto de uma introdução, seguida por duas seções quesistematizam as principais definições de Kelsen e Poulantzas sobre o papel do Estado e do Direito modernos,além de uma conclusão, que demarca os aspectos convergentes e divergentes entre os dois autores.

PALAVRAS-CHAVE: Nicos Poulantzas; Hans Kelsen; Direito; Estado; poder.

I. INTRODUÇÃO

A reflexão teórica sobre os conceitos de Esta-do e de Direito tem sido uma das marcas predo-minantes do pensamento moderno. Isso é percep-tível nas mais distintas correntes de pensamentoda filosofia política moderna a exemplo dojusnaturalismo de Hobbes, Locke, Rousseau eKant, como também no utilitarismo de Bentham eStuart Mill. O mesmo ocorreu na obra dos pre-cursores da Sociologia Política, comoMontesquieu, Tocqueville e Max Weber. O pen-samento marxista também não ficou por menos.A questão do Estado e do Direito estão presentesno jovem Marx em 1843, na sua obra Crítica daFilosofia do Direito de Hegel, como também demodo disperso nos seus escritos tidos como de

sua fase de maturidade (científica, em oposição àfilosófica de sua juventude, como define Althussere a sua escola), a exemplo das obras IdeologiaAlemã, Grundrisse, Crítica ao Programa de Gothae o Capital. Também cabe destacar o interesse deEngels por essa temática em seus livros Anti-Dühring e A Origem da Família, da Propriedadee do Estado.

Essa tradição ainda permaneceu na primeirametade do século XX, por meio de autores mar-xistas como Stuckha, Pasukanis, Reisner,Vyshinsky, Golunskii, Strogovich, Korovin,Krylov, Yudin, além do próprio Gramsci, de mododisperso e assistemático, em seus Cadernos docárcere. Nicos Poulantzas (1936-1979), com efei-to, foi o pensador marxista que mais contribuiu aessa problemática na segunda metade do séculopassado. Suas reflexões sobre o Estado e o Direi-to estiveram presentes em toda a sua obra desde asua fase existencialista sartreana, em A naturezadas coisas e do Direito, passando pela sua aproxi-

1 Trabalho apresentado no Grupo de Trabalho Marxismoe Ciências Sociais, no XXXII Congresso Anual da Associ-ação Nacional de Pós-Graduação em Ciências Sociais, em2008.

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mação do marxismo estruturalista de Althusser atéa sua última obra O Estado, o poder e o socialis-mo. Esse é um ponto crucial que o diferencia dosdemais marxistas ocidentais que se ativeram maisàs questões relacionadas à ideologia, à cultura e àepistemologia, como Lukács, Althusser, Sartre,Della Volpe, Marcuse, Benjamim e Adorno2.

O objetivo deste artigo é recuperar a impor-tante contribuição de Poulantzas à problemáticado Direito e do Estado, tendo em vista osurgimento desse tema no atual contexto marca-do pela chamada “judicialização” da política e dasrelações sociais que, de fato, resgatou o interessede vários cientistas sociais por esse tema3. Con-tudo, apesar do retorno da temática do Direito edo Estado e da relação destes com a sociedade, aobra de Poulantzas raramente tem sido citada di-ante às contribuições de Habermas ou Rawls, quetêm sido mais influentes entre os acadêmicos noBrasil. Para isso, optei em fazer uma análise com-parativa de sua teoria com a de um dos mais im-portantes teóricos do Direito e do Estado do sé-culo XX: Hans Kelsen.

Embora seja um autor pouquíssimo citado porPoulantzas em suas obras (com exceção de suatese de doutorado, A natureza das coisas e do Di-reito), a escolha de Hans Kelsen (1881-1973) paradialogar com a sua teoria do Direito e do Estadonão foi fortuita, tampouco aleatória. O interesseem compará-los iniciou-se por uma provocaçãode David Easton, em seu artigo “O sistema políti-co sitiado pelo Estado”, que em uma passagemassocia a teoria do Estado de Poulantzas à deKelsen4. Além disso, há outros fatores que moti-varam a sua escolha: 1) apesar de sua obra ter se

iniciado na primeira metade do século XX, suateoria do Direito permanece influente no campojurídico dos países que adotam o modelo da civillaw (a exemplo do Brasil, Argentina, Itália e Fran-ça, além de outros países), repercutindo direta-mente na práxis dos operadores do Direito; 2)embora bastante conhecido no meio acadêmicodo Direito, é um autor praticamente desconheci-do no campo da Sociologia e da Ciência Política,não apenas no Brasil, mas também em outras for-mações sociais (MANERO, 1988, p. 11), a des-peito de sua influência sobre autores da área doDireito mais conhecidos no campo das CiênciasSociais, como Norberto Bobbio ou CharlesEisenmann, e de sua oposição sistemática às in-terpretações sociológicas do Direito, como MaxWeber ou Eugen Ehrlich, e aos marxistas em ge-ral, notadamente Pasukanis; 3) a sua teoria sobreo Direito e o Estado tornam-no um liberal atípiconesse contexto em que o liberalismo é associadoà corrente neoliberal de Hayek, Mises, Friedman,além dos liberais políticos pluralistas, como Dahl,já que o Estado ocupa um papel central em suaobra, na medida em que ele tem como funçãoprecípua a regulação dos indivíduos, não somen-te no aspecto político, mas também no econômi-co, isto é, em suas ações no mercado.

No entanto, há uma meia-verdade nas decla-rações de Easton, apesar de ser incorreta a suaafirmação de que haveria alguma aproximação te-órica e metodológica entre Poulantzas e Kelsen:há, com efeito, semelhanças entre ambos os au-tores no que concerne ao papel coativo do Direitonas sociedades modernas, na ilusão da “separa-ção de poderes”, na formação da “vontade geral”do Estado, na associação do direito à ética e àjustiça, no monopólio do uso da força do Estadomoderno etc.

Para demonstrar os meus argumentos, esteartigo divide-se em três partes: na primeira seráapresentada a definição de Kelsen sobre os con-ceitos de Estado, Direito e democracia, demons-trando as suas diferenças em relação às interpre-tações sociológicas do Direito, como a de MaxWeber e do marxismo, e das concepçõesneoliberais, em especial Hayek, que é alvo de suascríticas. Na segunda me deterei na contribuiçãode Poulantzas ao tema e das mudanças em seuenfoque ao longo do conjunto de sua obra, embo-ra venha a me deter a partir do período em que seaproxima do marxismo estruturalista, deixando de

2 Para uma crítica do marxismo ocidental pelo ponto devista do marxismo, ver as obras de Perry Anderson: A criseda crise do marxismo (1984) e Considerações sobre omarxismo ocidental (1989). Do ponto de vista liberal, verJosé Guilherme Merquior, com O marxismo ocidental(1987).3 Cf., no Brasil, os trabalhos de Werneck Vianna, MariaTereza Sadek, Cátia Aída Silva, Andrei Koerner e RogérioArantes.4 A passagem é a seguinte: “O Estado (para Poulantzas)torna-se um conjunto de regras que controlam o comporta-mento, e parece que nestas se esgota toda a questão da lutapelo poder. Ficamos tentados a exclamar: um eco das regrasjurídicas de Hans Kelsen” (EASTON, 1982, p. 136).

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lado a sua fase existencialista sartreana e as apro-ximações que teve com o marxismo historicistade Lukács e Goldmann. Nesta seção mostrarei asdiferenças teóricas e políticas (como também asconvergências) entre Poulantzas e Kelsen. Por fim,a conclusão, que aponta a importância dePoulantzas à temática do Direito e do Estado,como uma alternativa teórica aos modelos teóri-cos ora vigentes que têm predominado sobre essetema.

II. O DIREITO E O ESTADO NORMATIVO DEHANS KELSEN

Embora seja de origem judia, Hans Kelsen5,tal como Karl Marx, não tinha uma profundavinculação com a cultura e a religião judaicas (eraateu) e fez o seu primário numa escola evangélicaem Viena. Apesar desse distanciamento e de nun-ca ter militado politicamente no campo da esquer-da, isso não o impediu de ter sido perseguido peloregime nazista, o que acabou resultando em seuexílio nos Estados Unidos em 1940, numa forma-ção social de base jurídica calcada na commomlaw e adversa ao positivismo jurídico (ou civillaw)6 de Kelsen. Embora tivesse um forte interes-se pelas áreas de Física, Matemática e Filosofia,acabou optando pelo estudo do Direito na Facul-dade de Viena em 1900, uma decisão que foi fun-damental, não apenas profissionalmente, mas tam-bém em sua futura produção intelectual. Em 1908,conseguiu uma bolsa de estudos para estudar emHeidelberg, onde veio a conhecer a obra de seuprofessor de Teoria Geral do Estado, GeorgeJellinek, e onde teve os seus primeiros contatoscom a teoria sociológica de Max Weber (de quemsó veio a conhecer pessoalmente depois da I Guer-ra Mundial). Tanto Jellinek como Weber tornar-se-iam dois dos principais alvos de críticas deKelsen, quando este começou a criar a sua teoria“pura” do Direito.

A teoria “pura” do Direito de Kelsen começouaos poucos a ser elaborada nos anos de 1910,mas só veio a atingir a sua maturidade em 1934,quando publicou Teoria pura do Direito e, poste-riormente, dando continuidade a sua teoria, o li-

vro Teoria geral do Direito e do Estado, em 1945.Sua teoria é definida como “pura” no sentido deque ela não estaria “contaminada” por elementosestranhos ao Direito, como a Filosofia e a Socio-logia. Embora Kelsen tivesse influência doneokantismo em relação ao conflito de valores (naseparação dos juízos de valor dos juízos de fato,tal qual Max Weber), Richard Posner (2001, p. 3)e Bob Jessop (1985, p. 44) observam que a suateoria do Direito estava também sob nítida influ-ência do positivismo lógico do Círculo de Viena,já que tinha como modelo as ciências naturais(SGARBI, 2007, p. 3). A “vericabilidade” das ciên-cias jurídicas dar-se-ia pela efetividade das normas.Para Posner, a pretensão de Kelsen foi a de criaruma ciência do Direito, nos moldes da físicanewtoniana, já que assim como os fenômenos dafísica gravitacional ocorrem em qualquer tempo elugar do planeta, o mesmo ocorreria com o Direitoem qualquer tipo de sociedade, independentementedo tempo e da cultura (POSNER, 2001, p. 4).

Kelsen define que a ciência do Direito é, comefeito, a ciência das normas. A ordem jurídico-estatal nada mais é do que a articulação hierárqui-ca de um conjunto de normas estruturado a partirde uma norma fundamental (Grundnorm). Kelsendefine a norma fundamental como uma norma cujavalidade não pode ser derivada de uma norma su-perior. Todas as normas cuja validade pode tersua origem remontada a uma mesma norma fun-damental formam um sistema de normas, umaordem. Essa norma básica, em sua condição deorigem comum, constitui o vínculo entre todas asdiferentes normas em que consiste uma ordem(KELSEN, 1990, p. 116).

Para Kelsen, portanto, o Direito é um “sistemade regras” marcado por uma positividade lógica,em oposição ao Direito entendido como justiça, oque demarcaria uma posição valorativa no Direi-to. Sua posição é diametralmente oposta à Filoso-fia do Direito, na qual se associa a questão doDireito com a moral e a justiça. A questão da jus-tiça, para Kelsen, estaria inserida no discurso filo-sófico, e não no científico. Assim sendo, o Direi-to não seria restrito a uma forma de governo ide-al, mas a qualquer forma organizacional jurídica.Como diz Kelsen,“do ponto de vista da ciência,livre de quaisquer julgamentos valorativos, mo-rais ou políticos, a democracia e o liberalismo sãoapenas dois princípios possíveis de organizaçãosocial, exatamente como o são a autocracia e osocialismo. Não há nenhuma razão científica pela

5 Os dados biográficos de Kelsen foram extraídos de Bas-tos (2003).6 Sobre as diferenças entre a commom law e a civil law,consultar o livro de John H. Merrymam, The Civil lawTradition (1993).

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qual o conceito de Direito deva ser definido demodo a excluir estes últimos. Tal como emprega-do nestas investigações, o conceito de Direito nãotem quaisquer conotações morais. [...] Direito ejustiça são dois conceitos diferentes. O Direito,considerado como distinto da justiça, é o Direitopositivo. É o conceito de Direito positivo que estáem questão aqui; e uma ciência do Direito positi-vo deve ser claramente distinguida de uma filoso-fia da justiça” (idem, p. 13).

Também sua oposição à Sociologia do Direitode Weber ou à de Ehrlich é clara, já que o Direitonão poderia ser definido a partir das ações sociaisde caráter racional, como quer Weber, e,tampouco, como Ehrlich, de que o Direito origi-na-se, não do Estado, mas da “ordem interna dasorganizações sociais” (EHRLICH, 1986, p. 27),isto é, na própria sociedade. Isso significa paraKelsen que o Estado e o Direito têm de ser vistoscomo uma coisa única, não havendo uma relaçãodual. O Direito, portanto, antecede e forma o Es-tado.

Embora Kelsen reconheça uma grande dificul-dade em definir conceitualmente o termo Estado,devido às diferentes acepções que esse conceitotem recebido pelas mais distintas correntes dopensamento sociopolítico moderno, a seu ver oEstado só poderia ser explicado de modo maispreciso pelo ponto de vista puramente jurídico.Em outras palavras, o Estado teria de ser vistocomo um fenômeno jurídico, uma pessoa jurídi-ca que representasse a comunidade como umaordem jurídica nacional, em contraposição a ou-tras ordens jurídicas de caráter internacional(KELSEN, 1990, p. 188). O Estado como ordemsocial deve ser precisamente idêntico ao Direito,a uma ordem jurídica nacional. Essa identidadeentre ambos os conceitos define a teoria do Direi-to de Kelsen como monista, visto que somentepelo Estado o Direito (a lei) torna-se legítimo.

Desse modo, o Direito positivo estaria em di-reção diametralmente oposta ao Direito natural.Para Kelsen, não haveria direitos a priori ouinalienáveis constituídos antes da formação doEstado. Um exemplo seria o direito de proprieda-de que é central na teoria liberal de John Locke7.Segundo Kelsen, “[...] ao lado de ordens jurídicas

que instituem a propriedade privada, a história exibeoutras que reconhecem a propriedade privada,quando muito, apenas num âmbito bastante res-trito. [...] Declarar a propriedade como um direi-to natural, porque é o único que corresponde ànatureza, é uma tentativa de tornar absoluto umprincípio especial que, historicamente, em certotempo e sob certas condições políticas e econô-micas, tornou-se direito positivo” (idem, p. 18).

Então, pelo seu caráter sancionador, o Direito édefinido por Kelsen como uma ordem coercitiva.Nesse sentido, haveria um aspecto em comum quan-do falamos do Direito dos babilônios antigos e doDireito vigente atualmente nos EUA, como tambémde uma tribo ashanti na África Ocidental e dos suí-ços na Europa, pois todos empregam uma técnicasocial específica (o Direito) que consiste em obter aconduta social desejada dos homens por meio daameaça de uma medida de coerção a ser aplicada emcaso de conduta contrária (idem, p. 26).

A perspectiva de Kelsen rejeita a concepçãoteórica de Weber e de Jellinek, porque ambos ado-tam o que ele denomina de “teoria dualista do Es-tado”, na qual se trata o Direito e o Estado comoobjetos distintos. Jellinek (2000) separa o Estadonum plano sociológico (fático) e num plano jurí-dico (regras normativas). Já Weber (1978) consi-dera o Estado moderno a combinação de um sis-tema jurídico racional com um aparato burocráti-co e, assim, expressa a forma de dominação polí-tica moderna. Para Kelsen, o Estado como comu-nidade jurídica não é algo separado de sua ordemjurídica: “[...] devemos admitir que a comunidadea que chamamos de ‘Estado’ é a ‘sua’ ordem jurí-dica” (KELSEN, 1990, p. 185). Como observaScarbi (2007, p. 118), Kelsen reitera o argumentoda precedência de uma idéia de Direito nas defini-ções sociológicas de Estado. Assim, ataca Weberao duplicar impropriamente o Estado, elaborandoconsiderações de cunho normativo-formal e subs-tancial ou empírico.

O Estado para Kelsen,“não é a uma ação ouquantidade de ações [...]. O Estado é aquela or-dem da conduta humana que chamamos de or-dem jurídica, a ordem à qual se ajustam as açõeshumanas, a idéia a qual os indivíduos adaptam suaconduta. Se a conduta humana adaptada a essaordem forma o objeto da sociologia, então o seuobjeto não é o Estado.. Não existe nenhum con-ceito sociológico de Estado ao lado do conceitojurídico. Tal conceito duplo de Estado é impossí-

7 Ver, por exemplo, o capítulo V de Segundo tratado dogoverno civil, de John Locke.

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vel logicamente, senão por outro motivo, pelomenos pelo fato de não poder existir mais de umconceito do mesmo objeto. Existe apenas um con-ceito jurídico de Estado: o Estado como ordemjurídica, centralizada” (KELSEN, 1990, p. 190).

Apesar de suas divergências teóricas emetodológicas com Max Weber, Kelsen vai ao seuencontro ao concordar que a força derivada doDireito é monopólio do Estado moderno (WEBER,1978, p. 314-315). Segundo Kelsen, o Direito estáem franca oposição à anarquia, esta compreendi-da como uma ordem social baseada exclusiva-mente na obediência voluntária dos indivíduos semo recurso da coerção. Conforme afirma Kelsen, oDireito e a força não devem ser compreendidoscomo absolutamente antagônicos, porque o Di-reito é uma organização da força e vincula certascondições para o uso da força nas relações entreos homens, autorizando o emprego da força ape-nas por certos indivíduos e sob certas circuns-tâncias. O indivíduo que, autorizado pela ordemjurídica, aplica a medida coercitiva atua comoagente dessa ordem ou como um órgão da comu-nidade, constituído por ela. Apenas esse indiví-duo, apenas o órgão da comunidade, está autori-zado a empregar a força. O Estado, portanto, deveser definido como uma organização política porser uma ordem que regula o uso da força, porqueela monopoliza o uso da força. O Estado é umasociedade politicamente organizada porque é umacomunidade constituída por uma ordem coerciti-va, e essa ordem coercitiva é o Direito (KELSEN,1990, p. 27, 191).

Nesse sentido, o conceito de Estado de Direi-to, para Kelsen, destoa em relação à clássica defi-nição liberal, que está presente em Montesquieu,Tocqueville e nos neoliberais, como Hayek. OEstado de Direito, segundo Kelsen, não é sinôni-mo de “liberdade negativa”, isto é, a liberdade en-tendida como ausência de impedimento ou deconstrangimento por parte do poder estatal sobreos indivíduos. O Estado de Direito não é associa-do ao Estado liberal. Para Kelsen – convergindo,assim, com Weber e o próprio Poulantzas (comoveremos a seguir) – qualquer organização estatalmoderna, seja liberal, democrática ou autoritária édefinida como um Estado de Direito. Essa posi-ção de Kelsen o faz um liberal realista (ou hetero-doxo), distinto dos liberais “utópicos” (ou orto-doxos). O Direito, assim, significa o exercício le-gal do uso da força, da coação, e não uma “redoma”

que garanta a liberdade das ações dos indivíduos.Para Kelsen, é o Direito formal que estabelece alinguagem dos atores estatais (em especial o Di-reito Constitucional e Administrativo) já que esta-belece um elo de identidade aos agentes do Esta-do em seus mais diferentes níveis hierárquicos.Um órgão estatal significa, na linguagem conceitualde Kelsen, “um individuo que cumpre uma fun-ção específica. A qualidade de órgão de um indi-víduo é constituída por sua função. Ele é um por-que e na medida em que executa uma função cri-adora ou aplicadora de direito” (idem, p. 194).Nesse sentido, todo funcionário público pode serconsiderado um “órgão” do Estado, já que praticae reproduz a normatividade estatal.

Outro aspecto a ser destacado na Teoria doEstado de Kelsen diz respeito ao tempo e ao espa-ço do Estado moderno. Para Kelsen, o Estadosomente tem validade de acordo com um territó-rio no qual aplica as medidas legais. Nesse aspec-to, Kelsen não avança nada em relação ao queWeber (1978, p. 901-902) já tinha afirmado. Se-gundo Kelsen, o território do Estado é o espaçodentro do qual é permitido que os atos do Estadoe, em especial, os seus atos coercitivos, sejamefetuados. É o espaço dentro do qual o Estado – eisso significa: os seus órgãos –, está autorizadopelo Direito Internacional a executar a ordem ju-rídica nacional. A ordem jurídica internacionaldetermina como a validade das ordens jurídicasnacionais está restrita a certo espaço e quais sãoas fronteiras desse espaço (KELSEN, 1990,p. 208).

Com relação ao tempo, Kelsen enfatiza quedurabilidade de um Estado deve-se a suatemporalidade normativo-jurídica. Para Kelsen,“um Estado existe não apenas no espaço, mas tam-bém no tempo, e, se consideramos o territórioum elemento do Estado, então temos de conside-rar também o período de sua existência como umelemento do Estado. Quando se diz que não podeexistir mais de um Estado no mesmo espaço, ob-viamente, pretende-se dizer que não pode existirmais de um Estado dentro do mesmo espaço aomesmo tempo. [...] Exatamente como o territórioé um elemento do Estado não no sentido de umespaço natural que o Estado preenche como umcorpo físico, mas apenas no sentido da esferaterritorial de validade da ordem jurídica nacional,assim o tempo, o período de existência, é um ele-mento apenas no sentido de que corresponde à

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esfera temporal de validade. Ambas as esferas sãolimitadas. Assim como o Estado não é espacial-mente infinito, ele não é temporalmente eterno”(idem, p. 217).

Apesar de Kelsen definir o Estado como umconjunto de normas das qual a norma fundamen-tal determina as demais que estão vinculadas aela, sua análise sobre a “separação” de poderescomo também sobre a representação e a demo-cracia possuem um grau de realismo que destoada dogmática ingênua que permeia os manuais deDireito. A definição de “separação” de poderes deKelsen antecede as leituras de Charles Einsemanne Louis Althusser sobre o Espírito das leis deMontesquieu, em que refutam a visão distorcidadessa obra que predomina em seus interpretes ju-rídicos. Em outras palavras, os poderes não seri-am independentes e harmônicos entre si, mas siminterdependentes e havendo práticas similares emcada poder (elaboração de leis e medidas, regrasadministrativas, burocracia, força legal etc.).Como afirma Kelsen, “[...] não se pode falar deuma separação entre a legislação e as outras fun-ções do Estado no sentido de que o órgão‘Legislativo’ – excluindo os chamados órgãos‘Executivo’ e ‘Judiciário’ – seria, sozinho, com-petente para exercer essa função” (idem, p. 266).

Indo de encontro à corrente liberal clássica quevê na separação de poderes a “pedra de toque” dademocracia moderna, Kelsen não considera queessa separação seja fundamental à democracia8

ou que um poder controlando outro poder seja oprisma principal dela. Para ele, o princípio de umaseparação de poderes, compreendido literalmenteou interpretado como um princípio de divisão depoderes, não é essencialmente democrático. Aocontrário, correspondente à idéia de democraciaé a noção de que todo o poder deve estar concen-trado no povo e, onde não é possível a democra-cia direta, mas apenas a indireta, que todo o poderdeve ser exercido por um órgão colegiado cujosmembros sejam eleitos pelo povo e juridicamente

responsáveis pelo povo. Se a separação da funçãolegislativa das funções aplicadoras de Direito, ouum controle do órgão legislativo pelos órgãosaplicadores de Direito e, sobretudo, se o controledas funções legislativa e administrativa pelos tri-bunais está previsto pela constituição de uma de-mocracia, isso só pode ser explicado por motivoshistóricos, e não justificados como elementos es-pecificamente democráticos (idem, p. 275).

Kelsen também critica a noção de vontade ge-ral ou vontade única porque, para ele, a repre-sentação do povo na democracia moderna nãopassa de uma ficção. Nenhuma das democraciasexistentes ditas “representativas” seriam de fatorepresentativas (idem, p. 283). Devido à impossi-bilidade técnica do “povo” exercer diretamente suasoberania, recorre-se à ficção da representação,na qual se reproduz a idéia de que o parlamento éapenas um representante do povo, de que o povopode exprimir a sua própria vontade apenas noparlamento e por meio dele (KELSEN, 2000, p.48). Há, portanto, uma tensão entre a ideologiademocrática e a democracia real. Se o ideal de-mocrático implica a ausência de “chefe”, este éum fato que está longe de ocorrer na democraciareal que tem na figura do Presidente ou na do Pri-meiro-Ministro a principal representação políticada República moderna. No entanto, há uma gran-de diferença com o modelo autocrático de gover-no: uma pluralidade de chefes políticos, no interi-or e fora do Estado. De acordo com Kelsen, “acriação desses numerosos chefes torna-se o pro-blema central da democracia real [...] democraciaessa que se distingue da autocracia real não tantopela essência, mas sobretudo pelo grande númerode chefes” (idem, p. 91).

Kelsen demarca, ao longo de seu livro A de-mocracia, a diferença entre a democraciaprocedimental e a autocracia. Para Kelsen, há umadistinção rigorosa entre o sistema autocrático e odemocrático: enquanto o último é dinâmico, o pri-meiro é estático. Segundo suas observações, “naideologia autocrática o governante representa umvalor absoluto. Sendo de origem divina ou dotadode forças sobrenaturais, ele não é considerado umórgão que é, ou pode ser, criado pela comunida-de. [...] Em uma democracia, por outro lado, aquestão de como designar os magistrados é trata-da a luz clara da reflexão racional. O governo re-presenta não uma valor absoluto, mas apenas umvalor relativo. Todos os órgãos da comunidade

8 Como fica claro no seguinte trecho: “Do ponto de vistada ideologia, uma separação dos poderes, atribuição da le-gislação e da execução a órgãos diferentes, não correspondeem absoluto à idéia de que o povo só deva ser governadopor si mesmo. [...] É quase ironia da história que uma repú-blica como a dos EUA aceite fielmente o dogma da separa-ção dos poderes e que o leve a extremos exatamente emnome da democracia” (KELSEN, 2000, p. 89-90).

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são eleitos apenas para um breve período. Atémesmo o chefe do executivo só é ‘líder’ por al-gum tempo e apenas em alguns aspectos, umavez que não só o seu mandato é limitado, mastambém sua competência” (idem, p. 188)9.

A crítica de Kelsen ao autocratismo não é su-ficiente para que seu pensamento político seja iden-tificado aos neoliberais como Hayek que, por si-nal, foi alvo de críticas de Kelsen no tocante àquestão da incompatibilidade da democracia como socialismo ou, em outras palavras, da impossi-bilidade do sistema econômico coletivo com de-mocracia. Esse argumento de Hayek (1990) érefutado por Kelsen numa passagem em que afir-ma: “[...] a democracia seja compatível com osocialismo. Contudo, nego enfaticamente que, pararealizar esse programa, seja necessário redefinir oconceito de democracia. É possível substituir ocapitalismo por uma democracia socialista semque, para tanto, seja preciso mudar o significadode democracia” (KELSEN, 2000, p. 264).

Coletivismo e economia planificada existem emvários graus e, portanto, não podem ser reduzi-das ao conceito de totalitarismo, que seria o cole-tivismo no seu mais alto grau. Ademais, participardo mercado financeiro não faz parte do cotidianode todos, mas apenas de uma minoria. Efetiva-mente, possuir um quantum de capital pode reali-zar certos objetivos que não seriam alcançadossem este. Kelsen nos dá o exemplo de um grupode religiosos que precisa de um capital para a cons-trução de uma igreja. Uma sociedade socialista quecontrola os meios econômicos poderá ou não ce-der esse capital, o que acarreta também um con-trole não-econômico (a criação de uma igreja).No entanto, numa sociedade capitalista, a situa-ção pode também não ser diferente, na medidaem que um banco pode negar esse empréstimopor não visualizar lucro nessa transação. Comoafirma Kelsen, “do ponto de vista dos homens queprecisam de um edifício para seu serviço religio-so, não faz a menor diferença se quem lhes recu-sa os meios econômicos necessários são os ban-cos ou uma autoridade central. Tem-se afirmadoque em um sistema econômico socialista da eco-nomia planificada não pode haver liberdade na

escolha de nosso trabalho. Isso é verdade. Não sepode negar, porém, que, em um sistema econô-mico capitalista, essa liberdade também constituium privilégio de relativamente poucos, mesmo quea constituição democrática proíba qualquer res-trição legislativa, administrativa ou jurídica dessaliberdade” (idem, p. 277).

A relação de Kelsen com o liberalismo ortodo-xo é, com efeito, tensa e problemática. A demo-cracia, para Kelsen, identifica-se com o liberalis-mo político, mas não necessariamente com o eco-nômico. Sua visão sobre o papel do Estado com oliberalismo é realista, haja vista que se o liberalis-mo tolera o Estado é porque a burguesia o vê comoum instrumento eficaz para a defesa da proprie-dade privada, visto que o Estado não representapara Kelsen o interesse geral da sociedade(HERRERA, 1998, p. 204). Hayek, inclusive, clas-sificava Kelsen como socialista e o seu positivismojurídico, como antiliberal (idem, p. 203).

A despeito de suas polêmicas com o liberalis-mo ortodoxo, Kelsen também se apresentou comoum crítico da teoria marxista ao escrever váriosartigos, desde os anos 1920, além do livro Teoriacomunista do Direito, escrito na sua faseestadunidense, em plena Guerra Fria, no ano de1955. Sua crítica ao marxismo é desferida tantonos aspectos teóricos como políticos. Trata omarxismo como uma nova “religião” e o identifi-ca ao cristianismo, pois, assim como este, seudiscurso fala dos despossuídos e, tal qual o cris-tianismo, que quebrou a hegemonia greco-roma-na, aquele se tornou uma alternativa real de poderorganizado no moderno sistema estatal (KELSEN,1988, p. 64).

Sua oposição é, sobretudo, no que concerne àfase de transição socialista e o fim do Estado (e,conseqüentemente, do Direito) na fase comunis-ta. Nesse aspecto, Kelsen associa o marxismo aoanarquismo e considera utópica a afirmação deuma sociedade sem Estado, já que a natureza hu-mana, por ser imutável, não findaria as relaçõesde poder na sociedade: “[...] esta inclinação pri-mitiva do homem de dominar os demais encon-tra-se no fato da exploração econômica ser so-mente uma de suas inumeráveis formas de mani-festar-se, que não é, ademais, a mais importante,seria infinitamente estúpido pensar que com odesaparecimento da exploração econômica desa-parecerá também o fato de que o homem abusede seu poder” (idem, p. 79).

9 Norberto Bobbio inspira-se em Kelsen, ao distinguir odinamismo da democracia em relação ao despotismo, en-tendido como uma forma de governo estático, em seu livroO futuro da democracia (1997).

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O paradoxo contraditório em Kelsen, nessa suacrítica ao marxismo, é de que, embora seja umpositivista lógico e adversário dos jusnaturalistas,apóia-se no conceito de natureza humana pararefutar a possibilidade de uma sociedade sem Es-tado (ou, pelo menos, nos moldes do Estado mo-derno). Como observa Manero, é contraditório aosseus pressupostos “metaéticos” afirmar que nadaque pertença à facticidade pode ser aduzido empró ou contra um valor. Ademais, a crítica ao co-munismo anárquico como ideal irrealizável nosmostra um Kelsen que poderia ser qualificadocomo “jusnaturalismo mínimo”. Ao apelar pelanatureza humana não permitiria justificar nenhumconteúdo normativo determinado, pois a própriaexistência de um ordenamento coativo encontra-ria sua justificação nessa mesma natureza(MANERO, 1988, p. 52).

Sua posição crítica à teoria marxista não pas-sou despercebida por alguns intelectuais marxianosespecializados no tema de Estado e do Direito.Pasukanis dedica boa parte de sua obra A teoriageral do direito e o marxismo para criticar oneokantismo de Kelsen descolado do mundo real.Sua crítica é que “uma tal teoria geral do Direito,que não explica nada, que a priori dá as costas àsrealidades de fato, quer dizer, à vida social, e quese preocupa com as normas, sem se preocuparcom as suas origens (o que é uma questãometajurídica), ou de suas relações com quaisquerinteresses materiais, não pode pretender o títulode teoria” (PASUKANIS, 1989, p. 16).

A teoria formalisto-normativista de Kelsen éidentificada por Pasukanis à teoria econômicaneoclássica, pelo fato de se apoiarem em umformalismo abstrato e em uma interpretação mate-mática das ações econômicas, dissociadas da reali-dade. Como observa Pasukanis, “a relação jurídicaé, para utilizar a expressão marxista, uma relaçãoabstrata unilateral, mas que não aparece nestaunilateralidade como o resultado do trabalhoconceitual de um sujeito pensante, mas como oproduto da evolução social. [...] Para afirmar a exis-tência objetiva do direito não é suficiente conhecero seu conteúdo normativo, mas é necessário saberse este conteúdo normativo é realizado na vida pe-las relações sociais” (idem, p. 37; 57).

As críticas de Kelsen aos clássicos do marxis-mo (Marx, Engels e Lênin), como também aoscontemporâneos de Pasukanis (Stuchka,Vyshisky, entre outros), foram amplamente ex-

pressas em seu livro Teoria comunista do Direito.Só para me deter em Pasukanis (o mais represen-tativo no contexto de Kelsen e o mais analisadonessa obra), ele é criticado por se apoderar dealguns elementos verdadeiramente ideológicos dateoria burguesa, a fim de desacreditar o Direitoburguês, ao qual confunde com uma teoria ideo-lógica desse Direito. Para Kelsen, “Pasukanis imi-ta a interpretação econômica dos fenômenos po-líticos feita por Marx reduzindo em geral os fenô-menos jurídicos, no campo da jurisprudência, afenômenos econômicos que podem existir somentenum sistema capitalista de economia baseado noprincípio de propriedade privada dos meios deprodução” (KELSEN, 1957, p. 132).

Pasukanis é também criticado por Kelsen peloseu reducionismo econômico que enfatiza as re-lações dos possuidores de mercadoria e esqueceoutros aspectos do Direito na sociedade capitalis-ta (no campo privado), como a relação entre ma-rido e mulher, pais e filhos, que podem tambémexistir numa sociedade comunista. O ponto maisfrágil da Teoria do Direito de Pasukanis, paraKelsen, ocorre na sua diluição do Direito Públicono campo privado. Com a finalidade de identificaro Direito com as relações econômicas específi-cas, somente o Direito Privado – como relaçãoentre indivíduos isolados, sujeitos de interessesegoístas – é o Direito verdadeiro no sentido dovocábulo. Pasukanis considera que o Direito Pú-blico, como relação entre o Estado e os indivídu-os, não pode ser Direito em seu verdadeiro senti-do porque o Estado é um fenômeno metajurídicoinconcebível como sujeito de Direito. Kelsen, porseu turno, afirma que, dentro do campo do cha-mado Direito Privado, há não apenas conflitosentre interesses individuais, mas também confli-tos entre interesses coletivos. Se o Estado realizauma ação executiva contra um indivíduo é porqueseu efeito sancionador visa também ao conjuntoda sociedade.

Se Kelsen critica o marxismo pela sua utopiaanárquica antiestatal, a sua crítica ao stalinismo éde outro teor, já que o problema deve-se ao forta-lecimento do aparato estatal que ia de encontroaos pressupostos estabelecidos por Marx, Engelse Lênin. A expressão máxima dessa contradiçãodo regime stalinista foi a elaboração da Constitui-ção de 1936, que, ao mesmo tempo em que afir-mava a inexistência de uma sociedade sem con-tradição entre as classes sociais, fortalecia e legi-

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timava o papel do Estado: “O Estado soviético é,segundo sua própria Constituição, a organizaçãojurídica de sua sociedade sem classes. Parecesupérfluo dizer que essa Constituição – como qual-quer outra constituição – não antecipa dissoluçãoalguma do Estado que constitui; que, como qual-quer outra, sustenta a sua validez por tempo ilimi-tado” (idem, p. 156). Mais adiante, em uma ho-menagem implícita a seu adversário teórico e po-lítico Pasukanis, Kelsen afirma: “Mas ao se fazerevidente que o Estado não era só uma máquinacoercitiva que assegurava o sistema de economiacapitalista, e que demonstrava ser o instrumentonecessário para defender um sistema de econo-mia socialista, não foi possível manter as tendên-cias anárquicas da doutrina marxista. Em conse-qüência, os autores soviéticos que de boa fé havi-am seguido essa direção agora indesejável foramsubmetidos ao ostracismo. Tal foi a sorte dePasukanis, cuja teoria jurídica é só a aplicaçãocoerente da doutrina anarquista de Marx e Engelsao problema do direito” (idem, p. 158).

Vejamos a seguir a contribuição teórica deNicos Poulantzas aos conceitos de Direito e deEstado na sociedade capitalista.

III. O DIREITO E O ESTADO NA PERSPEC-TIVA DO CONFLITO, EM NICOSPOULANTZAS

A relação de Poulantzas com o Direito iniciou-se em seu lar10. Seu pai, Aristides Poulantzas, erauma liderança no campo jurídico grego, exercen-do a carreira de advogado. Poulantzas ingressouna Faculdade de Direito da Universidade de Ate-nas em 1953 e formou-se em 1957, sendo reco-nhecido como um aluno excelente ao receber oseu diploma. Embora tenha sido registrado naAssociação de Advogados de Atenas, nunca exer-ceu a profissão. Em vez disso, optou por conti-nuar estudando o Direito em nível de pós-gradua-ção na Alemanha. Residiu durante um tempo emMunique no ano de 1960. Contudo, devido às in-fluências do nazismo, que ainda perduravam naAlemanha, mudou-se para Paris, onde lecionouFilosofia do Direito na Universidade Pantheón-Sorbonne. Durante esse período, ele preparou asua tese de pós-graduação, O renascimento doDireito natural na Alemanha após a Segunda

Guerra Mundial, e, em seguida, a sua tese dedoutorado, A natureza das coisas e do Direito:um ensaio sobre a dialética do fato e do valor.Nesse período, Poulantzas esteve plenamente en-volvido no círculo intelectual ligado à revista LesTemps Modernes, de Jean-Paul Sartre, no qual sedestacavam Maurice Merleau-Ponty e Simone deBeauvoir. As influências do marxismoexistencialista de Sartre, além das concepçõeshistoricistas de Lukács e Goldmann, foram evi-dentes nesse seu período inicial.

Essa influência é nítida em seu artigo publica-do na Les Temps Modernes em agosto-setembrode 1964: A teoria marxista do Estado e do Direitoe o problema da “alternativa”. Entretanto, nessepequeno artigo pode-se encontrar elementos so-bre o Estado e o Direito que serão desenvolvidosem obras posteriores, como Poder político e clas-ses sociais e O Estado, o poder, o socialismo.Poulantzas, no início desse artigo, estabelece umalinha de demarcação de sua posição em relação àsperspectivas voluntaristas sobre o Direito e o Es-tado nos trabalhos de Reisner e Vishiski, que con-sideram o Direito como um conjunto de normasemitidas pelo Estado que referendam a explora-ção das classes oprimidas pela classe dominante,sendo o Estado constituindo a vontade-poder. Aoutra, de tendência economicista, representada porStuchka e Pasukanis, considera o Direito comosistema e ordem de relações sociais ratificada peloEstado e que corresponde, para Stuchka, aos in-teresses da classe dominante e, para Pasukanis,mais particularmente às relações entre possuido-res de mercadorias. Para Poulantzas, tanto umacomo outra dessas tendências não parecem terconseguido captar o sentido exato da pertinênciado nível jurídico e estatal da superestrutura(POULANTZAS, 1969, p. 12)11. A discussão so-bre esse tema, para Poulantzas, tem uma finalida-de não somente teórica, mas, sobretudo, política,no que concerne à transição ao socialismo nassociedades industrializadas ocidentais e seus efei-tos em uma estratégia e tática revolucionárias. Daía necessidade de uma análise específica da supe-restrutura jurídica e estatal (idem, p. 11, 34).

10 Os dados biográficos de Nicos Poulantzas foram obti-dos no livro de Bob Jessop (1985).

11 A crítica às perspectivas voluntaristas, como aeconomicista, será retomada em seus últimos textos, quan-do critica as concepções do Estado-sujeito e do Estado-coisa (ou instrumento).

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A alternativa teórica a esses modelosvoluntarista e economicista encontra-se no méto-do dialético interno-externo já desenvolvido emsua tese A natureza das coisas e do Direito. ParaPoulantzas, é necessário considerar não apenas alógica interna dos quatro princípios do Direitomoderno (abstração, generalidade, formalismo eregulamentação, que foram desenvolvidos pelopositivismo jurídico de Hans Kelsen), mas tam-bém examinar as determinações externas dessesistema. Internamente, é necessário investigarcomo o sistema jurídico revela uma específicaaxiomatização, hierarquização de poderes e coe-rência lógica – tal como a validade das normassuperiores sobre as normas inferiores (outro ecoda teoria de Kelsen). Externamente, é precisomostrar como esse sistema está relacionado àexploração das classes oprimidas por meio dopoder repressivo do Estado. Complementandoesse argumento, Poulantzas afirma que toda nor-ma ou instituição particular gerada a partir dosdados concretos da base (ponto de vista externo)será integrada ali adotando as características es-pecíficas desse universo e inserindo-se em seufuncionamento próprio (ponto de vista interno)(idem, p. 27).

O trabalho seguinte de Poulantzas sobre a pro-blemática do Direito e do Estado foi em 1967, noartigo Sobre a teoria marxista do Direito, publica-do na revista Archives de Philosophie du Droit.Nesse trabalho, já se percebe a guinada teórica dePoulantzas, que abandona a concepção existenci-al-historicista de cunho humanista da sua primei-ra fase e começa adotar o léxico althusserianodesenvolvido nas obras A favor de Marx e Ler oCapital, como os conceitos de formação social,estrutura com dominante, autonomia relativa dasestruturas, sujeito suporte, além da crítica ao con-ceito de alienação do jovem Marx (que estava pre-sente nos trabalhos anteriores) e a elaboração doconceito de individualização. Boa parte dessas re-flexões sobre o Estado e o Direito será retomadae sistematizada na sua primeira grande obra, Po-der político e classes sociais.

Nesse artigo, Poulantzas retoma a sua críticaàs correntes voluntaristas e economicistas domarxismo, embora não ofereça como “alternati-va” o método dialético externo-interno sobre oDireito e o Estado. A questão aqui é definir o Di-reito como uma instância específica do modo deprodução (especialmente a capitalista) e as suasvariáveis nas distintas formações sociais: “A his-

tória do direito não consiste em uma investigaçãode nenhum desenvolvimento linear do ‘jurídico’cujo presente nos diz as chaves de compreensãode seu passado, cuja atualidade fosse o desdobra-mento ou a desagregação de sua essência. Trata-se de construir conceitos de direito segundo osdiversos modos de produção no interior dos quaisestá previamente localizado. [...] Dado que umaformação real se caracteriza por uma coexistên-cia histórica de vários modos de produção defini-dos em sua pureza teórica, o nível jurídico de umaformação consiste em uma coexistência concretade vários ‘direitos’ pertencentes teoricamente aosdiversos modos de produção coexistentes. Semembargo, o que predomina por regra geral no ní-vel jurídico, é o direito pertencente ao modo deprodução nesta formação” (POULANTZAS, 1974,p. 38-39).

Interessa a Poulantzas assinalar a importânciadas autonomias das estruturas e a implicância quehá entre elas. De acordo com Poulantzas, os efei-tos de uma estrutura (a econômica) sobre outra(a jurídica) manifestam-se como limites que re-gem as variações dessas estruturas, mas tambémo modo de intervenção de uma estrutura sobreoutra. A intervenção do econômico no jurídicoexerce-se por meio das estruturas próprias do ju-rídico, originadas a partir dos limites estabeleci-dos pelo econômico e o conjunto da estrutura dessemodo. Por outra parte, Poulantzas percebe queessa relação de limites e de variações não é denenhum modo unívoca: o jurídico serve tambémpara determinar os limites do econômico no inte-rior de uma estrutura de conjunto da qual o eco-nômico só em última instância manifesta-se comodominante. Dentro desses limites que o jurídicofixa ao econômico, tem lugar a intervenção dojurídico no econômico (idem, p. 45-46).

Para Poulantzas, “o direito modernocorresponde à exploração de classe e à domina-ção política de classe. [...] O desvendamento darelação constitutiva do direito e da luta de classessó pode ser cientificamente estabelecida por sualocalização previa no conjunto complexo das es-truturas de um modo de produção e de uma for-mação. Precisamente esta localização é a que nosdá as chaves para a investigação de sua relaçãocom o campo da luta de classes” (idem, p. 49).

Contudo, como observa James Martin,Poulantzas gradualmente foi abandonando o Di-reito como seu tema principal, substituindo-o pelo

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Estado e o seu significado teórico no modo deprodução capitalista (MARTIN, 2008, p. 6). Acontribuição original de Poulantzas, a partir dePoder político e classes sociais, é romper com avelha tradição da teoria do Estado marxista queconcebe o Estado como um instrumento sob con-trole total das classes dominantes. Poulantzas rom-pe com essa perspectiva ao introduzir a questãoda autonomia relativa das instâncias no modo deprodução capitalista, que vinha sendo desenvolvi-da por Althusser e sua escola, em relação à políti-ca e ao Estado. Como destacou Décio Saes(1998), essa problemática é tratada por Poulantzasde modo distinto, ora abordando como uma ins-tância de um modo de produção, ora tratando daespecificidade da autonomia relativa do econômi-co e do político no modo de produção capitalista(MPC), ora analisando a autonomia do aparelhoestatal capitalista em relação às classes dominan-tes (ou bloco no poder). De qualquer forma, énesse último enfoque que a teoria do Estado dePoulantzas demarcou a sua contribuição no cam-po da Ciência Política.

Poulantzas define que a autonomia relativa doEstado capitalista diz respeito não diretamente àrelação das suas estruturas com as relações deprodução, mas à relação do Estado com o campoda luta de classes, em particular a sua autonomiarelativa em relação às classes ou frações do blocono poder e, por extensão, aos seus aliados ou su-portes. Assim, essa autonomia relativa do Estadodeve ser examinada na sua relação com o campoda luta de classes, particularmente, da luta políti-ca de classes. Essa relação reflete de fato a rela-ção entre as instâncias, pois dela é o efeito, e arelação do Estado com a luta política de classeconcentra em si a relação entre os níveis das es-truturas e o campo das práticas de classe. Ou seja:o caráter de unidade do poder de Estado, relacio-nado ao seu papel na luta de classe, é o reflexo doseu papel de unidade em relação às instâncias; asua autonomia relativa diante das classes ou fra-ções politicamente dominantes é o reflexo da au-tonomia relativa das instâncias de uma formaçãocapitalista (POULANTZAS, 1977, p. 252-253).

Essa autonomia relativa do Estado – seja nosde exceção, como o fascista ou o bonapartista,seja nos de corte liberal – permite-lhe precisamenteintervir, não somente com vista a realizar com-promissos em relação às classes dominadas, que,a longo prazo, mostram-se úteis para os própriosinteresses econômicos das classes e frações do-

minantes, mas também intervir, de acordo com aconjuntura concreta, contra os interesses a longoprazo desta ou daquela fração da classe domi-nante: compromissos e sacrifícios por vezes ne-cessários para a realização do seu interesse políti-co de classe. Pode-se citar como exemplo as po-lítica sociais dos estados capitalistas que tiveram(e ainda têm) uma importância significativa desdeo século XX (idem, p. 281).

Nessa sua primeira grande obra de repercus-são internacional, ele retoma a problemática doDireito ao longo do livro, sobretudo no capítuloIII, “Traços fundamentais do Estado capitalista”,e no IV, “Unidade do poder e a autonomia relativado Estado capitalista”, dando-lhe um novo signi-ficado. Em Poder político e classes sociais, o Di-reito (ou ideologia jurídico-política) é analisadoenquanto uma região do nível ideológico, ao ladode outras regiões da ideologia (moral, religiosa,econômica, estética etc.), mas assumindo no MPCe nas formações sociais capitalistas o papel domi-nante (idem, p. 204-205). Segundo Poulantzas,as noções de liberdade, igualdade, direitos, deve-res, reino da lei, Estado de Direito, nação, indiví-duos-pessoas, vontade geral, em suma, as pala-vras de ordem sob as quais a exploração burgue-sa de classe entrou e reinou na história, foramdiretamente importadas do sentido jurídico-políti-co e tendo como papel decisivo a formação deuma casta de “juristas especializados” na elabora-ção desse discurso ideológico. Assim sendo, a ide-ologia jurídico-política assume o mesmo papeldominante no MPC tal como foi a ideologia morale filosófica no modo de produção antigo e a ideo-logia religiosa no modo de produção feudal (idem,p. 206). O maior efeito dessa ideologia, paraPoulantzas, é o efeito de isolamento, porque se“o sagrado e a religião ligam, a ideologia jurídico-política, em primeiro momento, separa e desligano sentido em que Marx nos diz que ela ‘liberta’os agentes dos laços ‘naturais’” (idem, p. 208).

Ao isolar os indivíduos, a ideologia jurídico-política somente os unifica no nível do discurso,por meio da concepção do Estado-nação que re-presenta o “interesse geral” da sociedade dianteos indivíduos privados. Estes, criados pela ideo-logia dominante, são apresentados como unifica-dos por meio de uma “igual” e “livre” participaçãona comunidade “nacional”, sob a égide das clas-ses dominantes (ou o bloco no poder), que sãoconsideradas como encarnando a “vontade popu-lar”. Desse modo, Poulantzas considera que a

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dominância da região jurídico-política na ideolo-gia dominante burguesa corresponde precisamentea essa dissimulação particular da dominação declasse. O impacto dessa região sobre as outrasregiões do ideológico e, além disso, o papel políti-co da ideologia burguesa dominante, consiste,assim, não somente em justificar os interesseseconômicos diretos das classes dominantes, masprincipalmente em pressupor, compor ou impor arepresentação de uma “igualdade” entre “indiví-duos privados”, “idênticos”, “diferentes” e “iso-lados”, unificados na universalidade política doEstado-nação (idem, p. 209-210). E é nesse cará-ter unificador do Estado-Nação que a tida liberda-de do indivíduo privado dissipa-se perante a auto-ridade do Estado, que encarna a vontade geral.Para a ideologia política burguesa, não pode exis-tir nenhum limite de direito e de princípio à ativi-dade e às invasões do Estado na chamada esferado individual-privado. Isso significa paraPoulantzas que o individualismo da ideologia polí-tica burguesa, apesar de se opor ao fenômeno “to-talitário”, o tem como seu par, caminhando lado alado (idem, p. 213-214).

Os órgãos de administração representam aunidade do poder de Estado, o que constitui umadas características da burocracia moderna, e quefunciona como hierarquia de competências pordelegação do poder central. A própria relação dospoderes institucionais do Estado – relação conce-bida como uma “separação” dos três poderes, nãoé de fato fixada no Estado capitalista, senão comouma distribuição do poder, a partir da unidadeindivisa da soberania estatal. Assim, paraPoulantzas, a unidade do Estado encontra-se “nosistema jurídico moderno em sentido estrito esseconjunto normativo específico, constituído a partirdos ‘sujeitos do Direito’ decalcados sobre a ima-gem dos cidadãos, apresenta, no mais alto grau,uma unidade sistemática na medida em que regu-lamenta, por meio da lei, a unidade destes ‘sujei-tos’” (idem, p. 274-275).

O fato é que para Poulantzas a ideologia jurídi-co-política burguesa não comporta, na sua pró-pria estrutura, limites de princípio e de direito àsintervenções da instância política no econômicoou no ideológico. Contudo, se essa ideologia pe-netra e invade todas as atividades sociais, inclusi-ve a atividade econômica, ao contrário do queapregoam os representantes do neo-liberalismo(Hayek e Friedmann), Poulantzas não considera

que isso seja específico a essa ideologia. Para ele,isso é válido para toda a região dominante de umaideologia dominante. Desse modo, a atividade eco-nômica das sociedades pré-capitalistas tambémseria invadida pelo discurso ideológico dominantedaquele modo de produção (antigo, feudal, asiáti-co). Se Poulantzas – partindo de Althusser – com-preende que o modo de produção é um todo com-plexo articulado com dominante, isso significa quetodos os níveis implicam-se mutuamente, não sen-do redutíveis ao nível econômico que determinaem última instância (idem, p. 215).

O conceito de Direito só voltou a ser tratadode modo sistemático por Poulantzas dez anos apósPoder político e classes sociais, quando publicouO Estado, o poder, o socialismo, que marcou umavirada no seu pensamento, embora muito dos pre-ceitos teóricos constituídos desde Poder Políticoainda se mantivessem. Nesse livro, o conceito deEstado capitalista é ampliado, pois não somentefaz parte das relações de classe na produção, aoseparar politicamente os trabalhadores em indiví-duos (efeito de isolamento). Agora o Estado capi-talista é ao mesmo tempo produto e modeladordas relações objetivas de classe. Assim, se o Esta-do capitalista surgiu da luta de classes, ele tam-bém é moldado por essa luta. O Estado não é umsujeito com vontade autônoma, nem tampouco uminstrumento de classes, mas sim uma condensaçãomaterial das relações de forças, isto é, um campode batalhas estratégico (POULANTZAS, 1978, p.152). Além da ruptura com a estratégia leninista(HALL, 2000, p. xii; THOMAS, 2002, p. 76;CODATO, 2008, p. 82), da adoção de RosaLuxemburgo e de Pietro Ingrao na estratégia dosocialismo democrático (POULANTZAS, 1978,p. 277-295; CARNOY, 1994, p. 213-215) e desua aproximação crítica ao conceito de poder emFoucault (JESSOP, 1985, p. 18; 320; BANDEI-RA, 2000, p. 238; HALL, 2000, p. xi; xvi;), esselivro tem um caráter premonitório, como observaPaul Thomas (2002, p. 76-77), em relação à criseda esquerda e à ascensão do autoritarismo estatalde Reagan e Thatcher nos anos 1980.

A questão do Direito e de sua relação com oEstado capitalista é abordada na primeira parte dolivro A materialidade institucional do Estado e,de modo menos sistemático, na quarta parte, emque trata do estatismo autoritário e da ascensãoda administração estatal. O Direito (a lei) é defini-do como um dos quatro elementos que formam a

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materialidade institucional do Estado, ao lado dadivisão de conhecimento e poder, daindividualização e da nação. Poulantzas, ao co-locar o Estado em relação com as relações de pro-dução e a divisão social do trabalho, “nada mais éque primeiro momento certamente diferenciado,de um único e mesmo processo: o de relacionar oEstado com o conjunto do campo de lutas”(POULANTZAS, 1978, p. 54).

Poulantzas concorda com Kelsen na definiçãode que o Estado de Direito não pode ser definidocomo o limite ao autoritarismo estatal, pois foipor intermédio do Estado moderno que as açõesrepressoras dos aparelhos de Estado obtiverammaior precisão e eficácia devido a sua ação racio-nal ser instituída em lei. A definição liberal do Es-tado de Direito nada mais é que um efeito ilusóriodo discurso político-jurídico. Toda forma estatal,mesmo a mais totalitária, como o nazismo ale-mão, edificou-se por intermédio da lei e daracionalidade jurídica.

Logo, essa suposta cisão entre lei e violência éfalsa, segundo Poulantzas, principalmente no Es-tado moderno. Retomando Weber e argumentosjá iniciados em Poder político e classes sociais(1977, p. 211-212), Poulantzas afirma que, dife-rentemente dos Estados pré-capitalistas, é o Esta-do moderno que detém o monopólio legal do usoda violência como também do monopólio da guer-ra. A lei é o código da violência pública organiza-da, ou seja, a lei é parte integrante da ordem re-pressiva e da organização da violência por todo oEstado. Portanto, “o Estado edita a regra, pro-nuncia a lei, e por aí instaura um primeiro campode injunções, de interditos, de censura, assim cri-ando o terreno para a aplicação e o objeto da vio-lência” (POULANTZAS, 1978, p. 84).

Poulantzas considera, então, que o Estado e asociedade moderna, longe de serem antagônicosao exercício da força, estão completamente asso-ciados a ela, tanto do ponto de vista material comosimbólico. É o caso de ressaltar que a formaçãodo exército nacional tem a mesma origem da es-cola moderna. Não foi casual que o exército naci-onal foi o modelo organizacional para a formaçãoda burocracia estatal moderna (idem, p. 89).

A violência física monopolizada pelo Estadomoderno tem um lugar determinante, mas isso nãose deve ao fato dela somente ser utilizada em últi-ma instância, quando as instituições (ou apare-lhos ideológicos) que formam a hegemonia das

classes e grupos dirigentes entram em “curto cir-cuito” e não conseguem mais controlar os seto-res subalternos, como entendem Gramsci eAlthusser12. Para Poulantzas, a violência legal as-sume outro papel porque ela “sustenta permanen-temente as técnicas do poder e os mecanismosdo consentimento, está inscrita na trama dos dis-positivos disciplinares e ideológicos, e molda amaterialidade do corpo social sobre o qual age adominação, mesmo quando a violência não se exer-ce diretamente” (idem, p. 88) Assim sendo, a vio-lência física organizada torna-se na sociedade ca-pitalista a condição de existência e a garantia dareprodução. À medida que a sociedade civildesmilitariza-se e desarma-se, o conflito entre ossetores dominados e dominantes desloca-se paraoutros campos de lutas, como as organizaçõespolíticas e sindicais. Portanto, de um estado deguerra civil permanente, de conflitos armados, osnovos tipos de organização dissimulam essa guerraabertamente física para o campo da legalidade.Essa monopolização da força pelo Estado capita-lista somente é legítima devido ao fato de que aregulamentação jurídica e a estrutura legal permi-tem a todos os setores organizados legalmente oacesso ao poder (pelo menos no sentido formaldas leis).

A lei, cabe destacar, não assume um papel pu-ramente negativo da ordem física: ela também éum conglomerado de interditos e censura. A leiimpõe o silêncio ou deixa dizer (a prestar jura-mento, a denunciar etc.). Segundo Poulantzas, éfalsa a separação entre leis positivas e negativas,pois a lei organiza o campo repressivo como re-pressão daquilo que se faz quando a lei proíbe etambém como repressão daquilo que não se fazquando a lei obriga que se faça. Destarte, a re-pressão jamais é pura negatividade: não se esgotanem no exercício efetivo da violência física, nemem sua interiorização. Há na repressão outra coi-sa, a qual raramente se analisa: os mecanismos domedo. Isso significa que, no plano imaginário, aviolência estatal sempre está presente quando a leié acionada sobre os sujeitos.

Outro aspecto destacado por Poulantzas so-bre a lei é que esta também é igualmente eficaznos dispositivos de criação do consentimento.Poulantzas faz uma crítica ao conceito de “poder

12 Ver Gramsci, Maquiavel, a política e o estado moderno(1980), e Althusser, Positions (1976).

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simbólico”, de Bourdieu, na medida em que esteestaria desprezando a violência física e apenas sepreocuparia em relação ao consentimento. Apesarde suas diferenças, pode-se encontrar uma con-vergência entre Poulantzas e Bourdieu a respeitodessa questão. Para Bourdieu, o universo jurídicoé relativamente independente e o Estado modernoé definido como o detentor do monopólio da vio-lência simbólica legítima, que pode ser combina-da com o uso da força física. O Direito racionalmoderno possui uma eficácia simbólica por serreconhecido como legítimo e ignorado como ar-bitrário (BOURDIEU, 1989, p. 225). Poulantzasnão se distancia muito de Bourdieu quando afirmaque a lei tem um papel-chave na criação de con-sentimento, não se atendo apenas à repressão fí-sica, como fica claro nesse parágrafo: “A lei- re-gra, por meio de sua discursividade e textura,oculta as realidades político-econômicas, compor-ta lacunas e vazios estruturais, transpõe essas re-alidades para a cena política por meio de um me-canismo próprio de ocultação- inversão. Traduzassim a representação imaginária da sociedade edo poder da classe dominante. A lei é, sob esseaspecto, e paralelamente a seu lugar no dispositi-vo repressivo, um dos fatores importantes da or-ganização do consentimento das classes domina-das, embora a legitimidade (o consentimento) nãose identifique nem se limite à legalidade”(POULANTZAS, 1978, p. 92).

Retomando o argumento de Poder político eclasses sociais sobre o Estado de Direito liberalconviver com as ações arbitrárias (quando nãototalitárias), isso se explicaria pelo fato de que aação do Estado em muito ultrapassa a lei ou a re-gulamentação jurídica. Significa que o Estado agetambém transgredindo a lei-regra que edita, o quevem a se denominar de razão de Estado. Isso querdizer que a legalidade traz no seu bojo “apêndi-ces” de ilegalidade, e que a ilegalidade do Estadoestá sempre inscrita na legalidade que o institui.Assim sendo, a ilegalidade é freqüentemente parteda lei e, mesmo quando ilegalidade e legalidadesão distintas, não englobariam duas organizaçõesseparadas, espécie de Estado paralelo (ilegalida-de) e de Estado de Direito (legalidade). Ilegalidadee legalidade fazem parte de uma única e mesmaestrutura institucional. Como afirma Poulantzas,“a ação do Estado sempre ultrapassa a lei pois oEstado pode, dentro de certos limites, modificarsua própria lei. O Estado não é a simples figura de

alguma lei eterna, seja ela originária de um interdi-to universal ou de uma lei natural” (idem, p. 94).

A lei moderna, para Poulantzas, portanto, ocupaum papel central na organização da reproduçãodas relações de poder da sociedade. A legitimida-de do poder desloca-se em direção à legalidade, oque a distingue da legalidade organizada com baseno sagrado. A lei torna-se a categoria fundamentalda soberania do Estado: a ideologia jurídico-polí-tica suplanta a ideologia religiosa. A função de le-gitimidade desloca-se em direção à lei, instânciaimpessoal e abstrata. A lei torna-se a “encarnaçãoda Razão: é nas formas do Direito e da ideologiajurídica que se conduz a luta contra a Religião, enas categorias jurídicas é que pensam as ciênciasfísicas da Idade da Luz. A lei abstrata, formal,universal, é a verdade dos sujeitos, é o saber queconstitui os sujeitos jurídicos-políticos e que ins-taura a diferença entre o privado e o público”(idem, p. 98).

A lei torna-se o discurso oficial do Estadomoderno e, ao mesmo tempo, é esse discurso queorganiza a materialidade institucional desse Esta-do, sobretudo por intermédio do Direito Adminis-trativo, que por ser um sistema de normas gerais,abstratas, formais e axiomatizadas, tem a funçãode organizar e regular as relações entre os esca-lões e aparelhos impessoais de exercício de po-der. Todo agente do Estado (parlamentares, juízes,fiscais, diplomatas, defensores públicos, promo-tores, advogados, policiais, assistentes sociais,assessores etc.) é um intelectual (na acepçãogramsciana), visto que é um homem da lei, queconhece as leis e as regras porque as aplica e asmaterializa. O tratamento que esses agentes doEstado dão à população demarca uma forma depoder-saber, pois sempre cobram do cidadão oconhecimento das leis e das regras jurídicas: “Nin-guém é ignorante da lei”. Essa máxima destacadapor Poulantzas exprime a dependência-subordi-nação da população que ignora seus direitos dian-te dos funcionários públicos que detém esse co-nhecimento. A lei moderna torna-se, então, umsegredo de Estado.

Esse conhecimento jurídico por parte dosagentes de Estado não é casual, mas faz parte damaterialidade institucional do Estado capitalista.O conhecimento do Direito não é exclusivo aosoperadores do Direito, mas a qualquer agente es-tatal, na medida em que está sujeitado às normas

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do Direito Administrativo (outra ressonância deKelsen). Ademais, o Estado capitalista coopta ou-tras formas de saber para além do conhecimentojurídico. Com efeito, como afirma Poulantzas, oEstado capitalista demarca uma rigorosa distin-ção com as formas de poder precedentes, peloseu caráter impessoal, anônimo, formal e especi-alizado, isto é, em outras palavras, o Estado ca-racteriza-se por um conjunto de práticas que re-produzem um domínio de saber no qual grandeparcela da população está excluída.

Poulantzas, de fato, converge com Kelsen nacrítica da impossibilidade da vontade geralrousseauniana no Estado moderno, como já vistoem Poder político e classes sociais. Porém, em OEstado, o poder, o socialismo, Poulantzas acen-tua essa questão ao realçar as contradições do blocodo poder e a forma como elas atravessam os di-versos ramos e aparelhos de Estado, a burocra-cia. Muito mais do que um corpo de funcionáriose de pessoal de Estado unitário e cimentado emtorno de uma vontade política unívoca, lida-se comfeudos, clãs, diferentes facções, em suma, comuma multidão de micropolíticas diversificadas. Apolítica de Estado é “certamente decifrável comocálculo estratégico embora mais como resultantede uma coordenação conflitual de micropolíticase táticas explícitas e divergentes, do que comoformulação racional de um projeto global e coe-rente” (idem, p. 149).

Poulantzas também ressalta que as contradi-ções e os conflitos sociais inscrevem-se no seiodo Estado por meio também das divisões internasno seio do pessoal de Estado em amplo sentido(administração, judiciário, militares, policiais etc.),o que o diferencia da concepção de Estado homo-gêneo e sem fissuras de Kelsen. Mesmo se essepessoal constitui uma categoria social detentorade uma unidade própria, efeito da organização doEstado e de sua autonomia relativa, ele não deixade ter um lugar no conflito social e é, então, divi-dido. Se as contradições dos setores dominantesrefletem-se nos agentes de Estado, as pressõesdos setores populares, e suas contradições, tam-bém os atingem já que se encontram presentes naossatura do Estado capitalista. Decerto que o Es-tado reproduz e inculca uma ideologia de neutrali-dade, de representar uma vontade e interessesgerais, de árbitro dos conflitos sociais. É a formaque reveste a ideologia dominante no seio das ins-tituições estatais: mas esta ideologia não domina

inteiramente, pois os subconjuntos ideológicos dossetores dominados estão também cristalizados soba dominância dessa ideologia, nas instituições doEstado.

Contudo, isso não significa que os agentes doEstado identificados com as demandas das clas-ses populares adotem uma postura radical nas suaspráticas no interior do Estado. Para Poulantzas,os agentes de Estado que pendem para as massaspopulares vivem comumente suas revoltas nostermos da ideologia dominante, tal como ela secorporifica na ossatura do Estado. O que quasesempre os coloca contra os setores dominantes eas esferas superiores do Estado é que a domina-ção de grandes interesses econômicos sobre oEstado põe em questão seu papel de garantia da“ordem” e da “eficácia” socioeconômica, destróia “autoridade” estatal e o sentido das tradicionaishierarquias no seio do Estado. Eles interpretam oaspecto, por exemplo, de uma democratização doEstado não como uma intervenção popular nosnegócios públicos, mas como uma restauração deseu próprio papel de árbitros acima dos conflitossociais. Eles reivindicam uma “descolonização” doEstado em relação aos grandes interesses econô-micos, o que significa que o Estado assuma seupróprio papel político. Assim, mesmo os agentesestatais que se inclinam para as massas popularesnão apenas não colocam em questão a reprodu-ção da divisão social do trabalho no interior doEstado – a burocratização hierarquizada –, mas,além disso, geralmente não dão importância à di-visão política dirigentes-dirigidos enraizada nasinstituições estatais (idem, p. 170-174).

Outro aspecto teórico sobre o Estado moder-no que distingue Poulantzas de Kelsen é a respeitodos conceitos de tempo e espaço, visto que dis-tintamente do modelo kelseniano, que generaliza aaplicação desses conceitos a qualquer tipo de Es-tado, sem delimitá-lo historicamente, Poulantzasdemarca uma descontinuidade do Estado capita-lista em relação aos Estados precedentes. ParaPoulantzas, não obstante houvesse diferenças en-tre as matrizes espaciais das sociedades antigas efeudais, ambas possuíam traços em comum quan-do comparadas à matriz espacial capitalista. Elasapresentavam um espaço contínuo, homogêneo,simétrico, reversível e aberto. Por sua vez, a ma-triz espacial moderna é um espaço serial,fracionado, descontínuo, parcelário, celular eirreversível, que é específico da divisão taylorista

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do trabalho em cadeia na fábrica. Esse espaçomatricial, portanto, é feito de distâncias, de bre-chas, de fracionamentos em série, de paliçadas efronteiras, mas não tem fim; o processo de tra-balho capitalista é tendencialmente globalizável(cooperação ampliada). Esse processo inscreve-se num espaço novo que, precisamente, implicaas segmentações seriais e balizamentos. Logo, oespaço moderno é um espaço no qual se deslocainfinitamente atravessando as separações, ondecada lugar define-se pelo seu isolamento dos ou-tros, espaço sobre o qual se expande, assimilan-do novos segmentos que ele homogeneíza, des-locando as fronteiras. Como observa Poulantzas,“o que é importante, não é esse deslocamento defronteiras, mas o aparecimento de fronteiras nosentido moderno do termo, i. e., de limitesdeslocáveis sob uma trama serial e descontínuaque fixa em todo lugar o dentro e o fora” (idem,p. 115).

Destarte, a matriz espacial moderna é o prin-cípio da constituição do território nacional sob aforma do Estado-nação. O território nacional nãopode ser definido apenas pela extensão do solonacional, mas, sobretudo, pela materialização doEstado moderno em seus aparelhos (exército, es-cola, burocracia centralizada, prisões). Poulantzaschama atenção à questão de que os campos deconcentração são frutos do Estado moderno noexercício do seu poder. A modernidade dos cam-pos de concentração deve-se ao fato de que ma-terializam a mesma matriz espacial de poder que oterritório nacional. Esses campos são a forma dereclusão dos excluídos da nação, “antinacionais”,“estrangeiros”, no interior do próprio territórionacional, isto é, são constituídas fronteiras den-tro do Estado-nação. Daí a noção moderna de “ini-migo interno”.

Outro elemento fundamental na constituiçãodo Estado moderno diz respeito à matriz temporale à noção de historicidade. Apesar das distinçõesentre as matrizes temporais antiga e feudal, ambasapresentavam traços comuns devido à sua repro-dução simples, e não ampliada como nas socieda-des capitalistas. Suas matrizes temporais eram detempos plurais e singulares; porém cada um des-ses tempos era contínuo, homogêneo, reversívele repetitivo. Não existia nem sucessão, nem co-nexões, nem acontecimentos. É o tempo presen-te que atribui seu sentido ao antes e ao depois. Jáa matriz temporal moderna marca uma

descontinuidade em relação às matrizes preceden-tes, haja vista que ela possui novas relações deprodução e uma divisão social do trabalho maiscomplexa. A tecnologia, a indústria, o trabalho emsérie implicam um tempo segmentado, serial e di-vidido em momentos iguais, cumulativo eirreversível porque “é direcionado para o produtoe, por meio dele, para a reprodução ampliada, aacumulação de capital; em outras palavras, umprocesso de produção e de reprodução que temum objetivo e uma finalidade, mas não possui fim.Um tempo mensurável e estritamente controlávelpelos relógios, cronômetros dos contra-mestres,pelos relógios de ponto e calendários precisos”(idem, p. 121).

IV. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como vimos no decorrer desse texto, há defato pontos convergentes entre Poulantzas e Kelsenno tocante ao significado de determinados con-ceitos do campo político e jurídico constituídosna modernidade, como “soberania popular”, “von-tade geral”, “separação de poderes”, a linguagemjurídica dos agentes estatais, a desvinculação doconceito de Estado de Direito da sua acepção li-beral clássica e do conceito filosófico de justiça ede sua identificação como força repressiva no as-pecto normativo. Entretanto, as semelhanças ter-minam quando Poulantzas afirma que a constitui-ção das normas está relacionada à região ideológi-ca jurídico-política da superestrutura do modo deprodução capitalista, ou quando trata o Estado nãocomo um conceito homogêneo, impermeável àscontradições e aos conflitos da sociedade, massim como algo heterogêneo, permeado de fissurase de contradições, constituído pela divisão socialdo trabalho e atravessado pela lutas de classes.Em suma, uma arena de conflitos e de batalhasestratégicas. E esses aspectos parecem ser igno-rados por David Easton em sua afirmação com-parativa. De fato, como observa Jessop (1985, p.45-46), a influência de temas kelsenianos na teo-ria do Estado e do Direito na fase sartreana dePoulantzas sobreviveram na sua fase posterior sobinfluência de Althusser, como em Poder políticoe classes sociais, quando afirma que a unidade doEstado capitalista deriva da ordem legal soberana.Embora essa influência também esteja presenteem O Estado, o poder, o socialismo, Poulantzasdemarca uma profunda distinção com Kelsen, poisenquanto para este o Direito é igual ao Estado e écompletamente autônomo da sociedade,

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Poulantzas afirma que o Estado como objeto te-órico é uma instância política com autonomiarelativa em relação às outras instâncias que com-põem o modo de produção capitalista, comotambém em sua última fase intelectual, quandodefine o Estado como um espaço de lutas depoder entre as classes sociais, além do Direitoser definido como um dos elementos que com-põem o Estado capitalista. Ademais, o Estadocapitalista é percebido como uma unidade con-traditória da legalidade e ilegalidade, e que elemesmo infringe a sua própria legalidade, algoque não seria cabível na dogmática racionalistado Direito (e, conseqüentemente, do Estado) deKelsen.

O desenho do Estado moderno que Poulantzassugere em O Estado, o poder, o socialismo vai deencontro à pirâmide normativa formulada porKelsen. Enquanto para Kelsen o Estado configu-ra-se como um triângulo no qual demarca o po-der das normas, do topo sobre a base, o desenhoesboçado por Poulantzas assemelha-se mais a umretângulo pontilhado por núcleos e focos de po-der real situados em lugares estratégicos dos di-versos aparelhos de Estado, e entre os quais sedeslocam. Contudo, uma convergência que nãose pode negar em ambos os autores é o fato detratarem o Estado como um conceito central emsuas obras, ao contrário de diferentes perspecti-vas teóricas que insistiram em negá-lo, oudesprezá-lo, como fez Easton no passado recente

e os neoliberais, ou neolibertários, como MichaelHardt e Antonio Negri em seu livro Império, nosdias de hoje.

É paradoxal o fato de que as análises dePoulantzas sobre a relação entre o Direito e o Es-tado moderno tenham sido pouco discutidas nomeio acadêmico diante de outros autores, comofoi o caso de Foucault nos anos 1980 e deHabermas e Rawls a partir dos anos 1990, levan-do em conta que a nossa matriz jurídica da civillaw foi o alvo principal da análise de Poulantzas.Por outro lado, sua teoria é de grande valia quan-do tratamos hoje da chamada “judicialização” dapolítica e das relações sociais e de seus atoresinstitucionais como o Ministério Público, aDefensoria Pública, a Magistratura, entre outros,pois Poulantzas fornece-nos meios teóricos decompreensão das lutas internas entre os aparatosestatais (poderes Executivo, Judiciário, Legislativo)como também dos conflitos internos em cadaaparato estatal.

A teoria do Estado e do Direito de Poulantzas,portanto, ainda está na ordem do dia e ainda re-presenta uma significativa importância para tra-tarmos dos conflitos cada vez mais complexosentre o Estado e a sociedade e, sobretudo, dentrodo Estado. E cabe principalmente aos cientistassociais identificados com a sua teoria desenvol-verem-na para refletir e analisar os conflitos vi-gentes hoje e os de amanhã.

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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA V. 18, Nº 37: 295-300 OUT. 2010ABSTRACTS

LAW, STATE AND POWER: POULANTZAS AND HIS CONFRONTATION WITH KELSEN

Luiz Eduardo Motta

The Theory of the State, in the field of Political Science, has undergone moments of crisis, particularlyin the passage from the 1980s to the 1990s, when exponents of certain intellectual currents argued thatthe Nation-State and state institutions were losing their central position as objects of analysis. Thepresent article counters this argument and attempts a comparative analysis of two of the most systematicauthors who dealt with the concept of the modern State and its relationship with modern Law: HansKelsen and Nicos Poulantzas. Our point of departure is the analogy was established between the twoby David Easton, in his article, “The Political System under State Siege”, in which he identifiesPoulantzas’ Marxist work with Kelsen’s systemic and normative work on Law and the State. In fact,paradoxically, Poulantzas may be seen as in agreement with many aspects of Kelsen’s critique ofliberal thought (a school to which the latter is in fact affiliated) as well as with his definition of the Stateof Law as the antithesis of authoritarian States.. Yet despite this convergence, the differences betweenPoulantzas and Kelsen are representative of two distinct forms of political and theoretical treatment ofthe concepts of Law and the State. For Kelsen, the State is impermeable, not riven by internalcontradictions or fissures, while for Poulantzas, the State is defined as a strategic field of struggles,permeated by micro-policies and contradictions. The present article consists of an introduction, whichis then followed by two sections that present a synthesis of Kelsen’s and Poulantzas’ positions on therole of the modern State and the Law, and providing a concluding section in which the major points ofagreement and disagreement in the work of these authors are pointed out.

KEYWORDS: Nicos Poulantzas; Hans Kelsen; Law; the State; Power.

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SCHUMPERIAN MINIMALISM, ECONOMIC THEORY OF DEMOCRACY ANDRATIONAL CHOICE

Ricardo Borges Gama Neto

Democracy is one of the most widely-discussed themes in Political Science. There is unanimousagreement regarding the legitimacy of the democratic regime in the face of those that oppose it.Nonetheless, if there is consensus on the defense of democracy, there is no analogous consensusregarding what the concept really means. Debate on the theme re-emerges as a consequence ofthe crisis of political representation in countries where democracy has been consolidated, of the fallof authoritarian regimes in eastern Europe, Asia and Latin America and the incertainties surroundingconsolidation of democratic regimes. This article analyzes some of the inflections that are present indemocratic theory, particularly on issues that involve the relationship between democracy, the logicof collective action, political representation, interest and accountability. We begin by presentingMax Weber’s influence on Joseph Schumpeter’s theory of democracy, followed by the bases of hisminimalism, his influence on Robert Dahl’s pluralism, the paradoxes of the logic of collective actionand of economic theory of democracy. We then go on to particular aspects of concepts of politicalrepresentation, responsibility, interest, forming of preferences and general will. We find that themeaning of political representation has become increasingly complex, particularly because its practicehas not been consonant with the “ideal of popular representation in politics” that is characteristic ofdemocratic utopia. There is a clear hiatus between the demand for more representation and how infact the latter materializes within society. Nonetheless, we argue that, notwithstanding all the criticismsit has received, democracy as a system of government survives under different social and historicalconditions and this happens because all democratic regimes share one common feature: representativeinstitutions. Without them, democracy is a mere fiction.

KEYWORDS: Democracy; Minimalism; Political Representation; Accountability.

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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA V. 18, Nº 37: 303-309 OUT. 2010RESUMES

DROIT, ETAT ET POUVOIR: POULANTZAS ET LES CONFRONTATIONS AVEC KELSEN

Luiz Eduardo Motta

La Théorie de l’Etat, dans le domaine de la Science Politique, a vécu de moments de crise, enparticulier entre les années 1980 et 1990, quand certains courants intellectuels indiquaient que l’Etat-nation et les institutions de l’Etat cesseraient d’occuper un rôle central comme objet d’analyse. Cetarticle va à l’encontre de cette position et vise établir une analyse comparative de deux des auteursles plus systématiques qui ont abordé le concept d’Etat moderne et de la relation de celui-ci avec leDroit moderne: Hans Kelsen et Nicos Poulantzas. Le point de départ est l’analogie établie entretous les deux par David Easton, dans son article “Le système politique assiégé par l’Etat”, quiidentifie l’œuvre marxiste de Poulantzas avec la théorie systémique et normative de Kelsen sur leDroit et l’Etat. En effet, paradoxalement, Poulantzas converge en beaucoup d’aspects avec Kelsenquand il critique la pensée libérale (dont Kelsen est un affilié) et quand il définit que l’Etat de Droitserait l’antithèse des Etats autoritaires. Mais, malgré ces convergences, les différences entrePoulantzas et Kelsen délimitent deux formes distinguées dans l’approche théorique et politique surles concepts de Droit et Etat. Pour Kelsen, l’Etat est imperméable, sans contradictions ni fissuresinternes, alors que pour Poulantzas, l’Etat est défini comme un domaine stratégique de luttes, imprégnéde micro-politiques et de contradictions. L’article est composé par une introduction, suivie de deuxsections qui systématisent les principales définitions de Kelsen et Poulantzas sur le rôle de l’Etatmoderne et du Droit moderne; et encore une conclusion, qui délimite les aspects convergents etdivergents entre les deux auteurs.

MOTS-CLES: Nicos Poulantzas; Hans Kelsen; Droit; Etat; pouvoir.

LE MINIMALISME DE SCHUMPETER, THEORIE ECONOMIQUE DE LA DEMOCRATIEET DU CHOIX RATIONNEL

Ricardo Borges Gama Neto

La démocratie est l’un des thèmes les plus discutés dans la Science Politique. Il existe une unanimitéautour de la legitimité du régime démocratique vis-à-vis ses opposants. Toutefois, si la défense de ladémocratie est consensuelle, la même concordance sur son significat n'existe pas. Le débat sur lethème resurgit comme une conséquence de la crise de la représentation politique dans les pays dedémocratie consolidée, de la faillite des régimes autoritaires dans les pays de l’Est Européen, Asieet Amérique Latine et des incertitudes par rapport à la consolidation des régimes démocratiques.L'article analyse certains points d'inflexion existants dans la théorie démocratique, particulièrementles questions concernant la relation entre la démocratie, la logique de l’action collective, lareprésentation politique, l’intérêt et la reddition de comptes. Il commence par présenter l’influencede Max Weber sur la théorie de la démocratie de Joseph Schumpeter; après, il présente les fondementsdu minimalisme, son influence sur le pluralisme de Robert Dahl, les paradoxes de la logique del'action collective et la théorie économique de la démocratie, en citant aussi certains aspects desconcepts de la représentation politique, la responsabilisation, l’intérêt, la formation de préférenceset la volonté générale. On affirme que le sens de la représentation politique devient de plus en pluscomplexe, spécialement parce que sa pratique ne s'allie pas avec “l'idéal de la représentation populairedans la politique”, caractéristique de l’utopie démocratique. Il y a une lacune entre l’exigence pourplus de représentation et comment elle existe en effet dans la société. Toutefois, l'article défendque, malgré toutes les critiques qu’elle reçoit, la démocratie tant que système de gouvernementsurvit sous diverses conditions sociales et historiques différentes, et cela se produit parce que il y aquelque chose de commun dans tous les régimes démocratiques : des institutions représentatives.Sans ces institutions, l’existence des démocraties ne serait pas possible.

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