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    Decisionismo e Hermenutica Negativa: CarlSchmitt, Hans Kelsen e a afirmao do poder noato interpretativo do direito1

    Decisionism and Negative Hermeneutics: Carl Schmitt, Hans Kelsen and the

    affirmation of power in the legal interpretative act

    Andityas Soares de Moura Costa Matos

    Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte MG, Brasil

    Diego Antonio Perini MiloUniversidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte MG, Brasil

    Resumo: O presente artigo pretende refle-tir sobre as teorias da interpretao jurdicanas obras de Carl Schmitt e Hans Kelsen,demonstrando que, muito embora assumamdiferentes sentidos do decisionismo, essasteorias acabam por gerar uma hermenuti-ca negativa. Para tanto, analisa-se a obra deSchmitt nos anos de 1910, perodo ainda mar-cado por um enfoque neokantiano; nos anosde 1920, no contexto da crise de Weimar; e

    nos anos de 1930, quando Schmitt adere aonacional-socialismo. No que diz respeito aKelsen, privilegia-se as duas edies da Teo-ria Pura do Direito (1934 e 1960). Comoconcluso, percebe-se a insuficincia da her-menutica negativa.

    Palavras-chave: Interpretao Jurdica. HansKelsen. Carl Schmitt. Aplicao do Direito. Poder.

    Abstract: This paper intends to reflect uponthe legal interpretation theories presented byHans Kelsen and Carl Schmitt. It demonstra-tes that, however assuming different senses ofdecisionism, they end up generating a negati-ve hermeneutics. For that, the theories madeby Schmitt are analised in the 1910 years, pe-riod still characterized by a neokantian focus;in the 1920s, in the crisis of Weimar; and inthe 1930s, when Schmitt had accepted the

    national-socialism. About Kelsen, the paperdiscusses the two editions of Pure Theory of

    Law (1934 and 1960). As a conclusion, it ispossible to affirm the insuficiency of the ne-gative hermeneutics.

    Keywords: Legal Interpretation. Hans Kelsen.Carl Schmitt. Laws Application. Power.

    1Recebido em: 12/07/2013Revisado em: 29/10/2013Aprovado em: 1/11/2013

    Doi: http://dx.doi.org/10.5007/2177-7055.2013v34n67p111

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    1 Introduo

    As recentes decises do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre apossibilidade de unio estvel homoafetiva (ADI n. 4277 e ADPF n. 132)e, tambm, acerca do aborto de fetos anencfalos (ADPF n. 54) deramainda mais relevo s discusses acadmicas relativas ao eterno dilema daTeoria Geral do Direito, convertido em problema autnomo da Herme-nutica Jurdica, e que diz respeito aos limites da deciso judicial se que existem diante do ordenamento jurdico positivo, repercutindo noapenas no campo hermenutico, mas, sobretudo, no da validade e apli-

    cao do direito. Apesar das atuais anlises sobre o tema, na maioria dasvezes, partir de um enfoque ps-positivista ou jusmoralista, baseando-sena teoria da argumentao de Robert Alexy e na ideia do direito comointegridade de Ronald Dworkin,2no ser a abordagem especfica do pre-sente trabalho.

    Ao que parece, a discusso interpretativa pode ser dirigida para oque Carl Schmitt chamou de os trs tipos de pensamento jurdico, a sa-

    ber: normativismo, decisionismo e ordem concreta, conforme exposto em

    seu influente artigo de 1934, ber die Drei Arten des Rechts-wissenschaf-tlichen Denkens(SCHMITT, 2001b). Assim, pretende-se realizar um es-tudo da deciso judicial a partir das obras de Hans Kelsen e de Carl Sch-mitt, contrapondo em cada autor e entre eles uma teoria da validadedo direito a uma teoria da aplicao/interpretao jurdica, sublinhandoinclusive as possveis continuidades e descontinuidades no dilogo entreambos os pensadores. A escolha desses dois autores em detrimento de ou-tros tidos como mais atuais se deve no apenas ao fato de eles serem

    clssicos, mas deriva fundamentalmente da percepo que ambos tinhamde sua poca, que, em muitos sentidos, se assemelha nossa, na qual oPoder Judicirio chamado a pr peias ou a se unir, como ocorreu

    2 Apesar de nosso posicionamento, preciso observar que h divergncia em classicaro pensamento desses autores, sobretudo de Dworkin, como ps-positivista. Assim, porexemplo, Luis Prieto Sanchs classica Dworkin como jusnaturalista (SANCHS, 2009,

    p. 423-425), enquanto Alfonso Garca Figueroa prefere ver nele apenas um antipositivista,sem lig-lo especicamente ao ps-positivismo. (FIGUROA, 2009, p. 216)

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    durante o III Reich ao Poder xecutivo, buscando assim vencer (Kel-sen) ou aprofundar (Schmitt) a exceo.

    Tanto Hans Kelsen como Carl Schmitt desenvolvem seus pensa-mentos pautados na distino entre direito e poder, ou seja, ambos reali-zam um imenso esforo terico para no identificar o direito com a leida selva, pretendendo no reduzir a validade do ordenamento jurdico vontade do mais forte. Desse modo, o mestre da scola deiena e o juris-ta da exceo colocam-se contra o positivismo imperativista dominanteno sculo XIX de autores como Bentham e Austin.

    Para tal corrente positivista, o direito derivaria do mero fato de

    quem tem mais fora para impor sua vontade, fazendo cumprir seus co-mandos a partir da aplicao de um castigo. Dessa forma, o poder seriaanterior ao direito e esse estaria reduzido a atos de simples violncia.Diante do exposto, as posteriores ideias de decisionismo em Carl Schmitte de norma hipottica fundamental em Hans Kelsen tero funes seme-lhantes, ao menos quanto ao fim a que se destinam: demonstrar que o di-reito algo diverso do poder, tornando possvel apreender e visualizar emseparado tais realidades. Todavia, devido complexidade do tema relati-vo identidade ou no entre direito (Recht), poder (Macht) e violn-cia (Gewalt), esta abordagem se limita apresentao crtica das doutri-nas hermenuticas de Schmitt e Kelsen, apresentando suas vrias verses,fraturas e acertos, entendendo que surgem com o objetivo alcanado ouno, o que no nos importa neste artigo de impedir a identificao purae simples entre normatividade e facticidade.

    Desse modo, nas duas primeiras sees deste artigo sero analisa-

    das, respectivamente, as teorias da interpretao de Carl Schmitt emseus trs momentos, quais sejam, em Weimar nos anos de 1910 e 1920 e,

    j no contexto doIII Reich, nos anos de 1930 e de Hans Kelsen tendoem vista as duas edies da Teoria Pura do Direito, em 1934 e 1960 ,concluindo-se o texto com a resposta questo que lhe d ttulo, quandose procurar demonstrar o sentido, as semelhanas e as diferenas entreo decisionismo absolutista da exceo caracterstico do pensamento deSchmitt e o decisionismo relativista judicial que deflui da viso de mundo

    de Hans Kelsen.

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    2 As Teorias da Interpretao Jurdica em Carl Schmitt

    Nesta seo, a obra de Schmitt sobre a aplicao do direito ser ana-lisada em trs momentos: nos anos de 1910, perodo ainda marcado porum enfoque neokantiano; nos anos de 1920, no contexto da crise de Wei-mar; e nos anos de 1930, quando Schmitt adere ao nacional-socialismo.

    2.1 Consideraes Gerais

    em meio a anlises no propriamente sobre a aplicao do direito,mas sobre a criao, a validade e a essncia do ordenamento jurdico, que

    surge a contenda sobre a correta deciso judicial, que ter lugar na obraschmittiana de 1912, Gesetz und Urteil: eine Untersuchung zum Problemder Rechtspraxis (Lei e Juzo: Uma Investigao Sobre o Problema da

    Prtica Jurdica). Deve-se ressaltar que, em Gesetz und Urteil, o temada deciso, em um sentido amplo, ainda tratado por Schmitt no campo

    prtico, ou seja, tendo em vista a aplicao do direito por uma autoridadejudicial, permitindo assim a abordagem de uma verdadeira teoria da inter-pretao jurisdicional. Porm, nas obras posteriores do jurista o tema da

    deciso se desloca do campo da interpretao para o da validade e criaodo direito, constituindo seu fundamento e adquirindo um especfico signi-ficado conceitual. J em Hans Kelsen, a deciso sempre abordada como

    parte integrante de uma teoria da aplicao/interpretao, sendo ela consi-derada elemento poltico e no jurdico.

    Apesar desse dualismo entre teoria da validade e teoria da aplica-o/interpretao, ver-se- at que medida, em cada um dos dois autores,

    os postulados de um campo influenciam nos pressupostos metodolgicosdo outro, bem como as consequncias de tal comunicao ou ausnciade comunicao para a coerncia interna de tais teorias.

    2.2 Teses Sobre a Interpretao no Perodo do Estado de Direito

    Carl Schmitt, ao contrrio do posicionamento defendido em suafase de maturidade expressa nas obras Politische Theologie (Teolo-

    gia Poltica,1922) eDer Begriff des Politischen (O Conceito do Poltico,

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    1927; 1932) , em Gesetz und Urteil (1912)3, orienta o seu raciocnio combase na ideia de que todo stado constitu-se como stado de Direito,algo bastante similar ao que far Kelsen durante toda sua obra. Porm,o jurista alemo j demonstra estar tocado, ainda que de forma muito di-versa e superficial, com aquilo que ser o grande mote de todo seu pensa-mento: a exceo.

    Para Schmitt, o normativismo kelseniano a ideia de uma autono-mia cientfica mxima do direito, em que uma norma somente encontra-ria sua origem a partir de outra norma e nunca em um fato levaria aoconsequente entendimento, para manter a coerncia da citada teoria da

    validade, de que uma deciso judicial s pode ser entendida como corretaquando estiver em conformidade com a lei.4Assim, Schmitt entende que

    [...] numasituao excepcional, num caso para cuja resoluo no possvel apontar uma disposio normativa normalmente aplicadapelo juiz, a deciso manifesta-se imediatamente como irredutvel lei, no podendo o momento fctico do juzo, o momento prprioda prtica jurdica, ser nela subsumido. (FRANCO DS, 2006, p.74, grifos do autor)

    3 Uma vez que esse livro de Schmitt no est traduzido para o portugus, utilizar-se-nesta seo do artigo a traduo de alguns de seus principais trechos contidos na obra deFranco de S (2006), que , alis, a mais completa introduo em lngua portuguesa ao

    pensamento integral de Schmitt, da juventude velhice.4 Quando que uma deciso judicial correcta? Na maior parte das vezes, ela tidacomo correcta se for conforme lei, se corresponder ao direito positivo vigente. Aoerguer a conformidade lei de uma deciso como critrio da sua correco, toma-secomo ponto de partida o vnculo do juiz lei. A resposta pergunta pela correco deuma deciso dar-se-ia assim, para o jurista, o mais facilmente possvel quando a lei

    prescreve inequivocamente ao juiz julgar um muito determinado estado de coisas deum determinado modo. Se houvesse uma prescrio legal positiva que ordenasse ao juizmanter-se rigorosamente na literalidade da lei e no uso da linguagem da vida diria, e nodecidir nenhum caso que no fosse indubitavelmente regulado atravs de uma lei, entoestaria fundada a maior probabilidade de que todas as decises judiciais fossem correctas.Mas uma tal lei conteria a sua prpria refutao, ao acabar autenticamente por ordenar ao

    juiz decidir apenas quando estiver seguro de decidir correctamente, recusando em casode dvida a deciso. Com aquele ideal de uma prtica conforme lei no seria muita

    coisa ganha, porque, como evidente, so precisamente os casos de dvida que so tantode interesse cientco como prtico. (SCHMITT apudFRANCO DS, 2006, p. 73)

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    Diante do problema da interpretao, Carl Schmitt j em respostaa Hans Kelsen e pretenso de pureza da cincia do direito defendida nasua tese de livre-docnciaHauptprobleme der Staatsrechtslehre(Proble-mas Capitais da Teoria Jurdica do Estado, 1911) inicia sua obra Ge-

    setz und Urteil: eine Untersuchung zum Problem der Rechtspraxis(1912)com a seguinte proclamao:

    O presente tratado coloca-se a questo de saber quando uma de-ciso resultante da prtica jurdica correcta, e responde-lhe indi-cando que a prpria prtica jurdica que decide sobre isso. (SCH-MITT apudFRANCO DS, 2006, p. 72)

    O tema da aplicao do direito, especificamente em uma decisojudicial, , na referida obra, tratado por Schmitt no como um assuntopropriamente de interesse central, mas muito mais como um argumento--chave para a tese de que o direito, apesar de no se identificar com oftico o que configuraria uma viso reducionista no independe demodo completo dessa esfera. Nesse sentido, como salienta Franco de S,Schmitt ope-se a Kelsen porque ele leva ao extremo a separao kan-

    tiana entre ser e dever-ser, o que inspira Schmitt a questionar a purezada cincia do direito frente prtica jurdica, uma vez que no entende aconformidade da lei como critrio para a correta deciso judicial. (FRAN-CO DS, 2006, p. 72-75)

    Porm, a recusa do jurista germnico em caracterizar a correta deci-so judicial como uma simples operao de conformao lei no identi-fica a teoria da interpretao schmittiana de 1912 com o realismo jurdico

    norte-americano, pautado por um forte sentido subjetivo do juiz. O queCarl Schmitt partilha com o realismo , na verdade, uma aguda percepoque identifica o problema da interpretao legalista na desconsideraodo carter geral sob o qual as normas jurdicas so formuladas, abrangen-do somente a normalidade dos casos em um processo lgico-dedutivo decariz matemtico e mecanicista.

    Todavia, diante da irredutibilidade do direito ao ftico, Schmitt noidentifica por completo sua teoria da validade com sua teoria da aplica-o, ou seja, no admite que somente a deciso do juiz seja o que pe

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    o direito. Desse modo, Schmitt se diferencia dos realistas na medida emque no promove uma exclusiva valorizao do campo prtico como fun-damento do Direito, no tendo a inteno de justificar uma arbitrariedade,Schmitt no abre mo de um padro objetivo. Apesar de a teoria da in-terpretao schmittiana de 1912 no antecipar a tese central do realismonorte-americano, possivel identificar, no contexto da problemtica docarter genrico da lei e de casos concretos excepcionais que necessitamde uma deciso judicial, o grmen da discusso hermenutica entabuladaentre Herbert Hart e Ronald Dworkin sobre os hard cases. Uma vez ne-gada a arbitrariedade, a discusso interpretativa volta-se agora para a dis-cricionariedade e seus limites, inclusive tico-morais. A abertura prtica

    para a deciso judicial dos hard cases ou, na terminologia schmittianade 1912, dos casos excepcionais promovida por Schmitt poderia seresolver, a exemplo do que fez Hart, em uma discusso sobre o poderdiscricionrio do juiz ou, por outro lado, poderia trazer luz uma ques-to tica, devendo o juiz observar certos pressupostos para a correta deci-so, com o que Schmitt teria antecipado certos elementos do raciocnio deDworkin.

    Para o jurista alemo,

    [...] uma deciso judicial hoje correcta quando se deve assumirque um outro juiz teria decidido do mesmo modo. Um outro juizsignifica aqui o tipo emprico do jurista moderno erudito em direi-to. (SCHMITT apudFRANCO DS, 2006, p. 76)

    De acordo com Franco de S, Schmitt pretende tornar possvel a

    construo de um juiz referncia, de um outro juiz (typus) que servircomo padro de conduta para o juiz que efetivamente aplica o direito emum caso concreto, guiando-o, assim, para uma correta deciso. (FRAN-CO DS, 2006, p. 76)

    A base do raciocnio de Dworkin muito semelhante quela utiliza-da por Carl Schmitt na sua teoria da interpretao de 1912, principalmen-te no que diz respeito criao de uma norma interpretativa diferenciadada norma positiva, quer dizer, no caso schmittiano, na exigncia da deci-so judicial estar de acordo com a interpretao do chamado juiz-tipo,

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    que de alguma maneira pode ser remetido ideia dworkiniana de inte-gridade do direito e pressuposio de um juiz Hrcules. No entanto,ao contrrio de Dworkin, Carl Schmitt no utiliza elementos externos, talcomo uma ideia definida de justia, para criar as normas de interpretao,o que, nesse ponto, distanciaria as ideias de Schmitt das de Dworkin aomesmo tempo em que as aproximaria do institucionalismo: o outro juiz(ou o juiz-tipo) de Schmitt, como norma de interpretao, est longe derepresentar a atitude interpretativa de uma comunidade que expressa e re-aliza a justia, mas, por outro lado, no deixa de caracterizar o direito, decerta forma, sob o vis de uma viso institucionalista. m concluso: CarlSchmitt, j em 1912, retira dos juzes o papel de criao do direito: [...] o

    juiz no nenhum legislador. [...] le no cria nenhum direito, mas reme-te-se ao direito. (SCHMITT apudFRANCO DS, 2006, p. 0)

    Na teoria do primeiro Schmitt, a instituio representaria o papelfuncional que a integridade tem no pensamento de Dworkin. O institu-cionalismo costuma ser vinculado a uma terceira fase da obra schmittiana

    desenvolvida nos anos de 1930, poca em que o autor aderiu ao partidonacional-socialista alemo principalmente porque serviu de inspirao

    para o pensamento da ordem concreta. importante esclarecer, portanto,que, ao identificar um carter institucionalista no pensamento schmittianode 1912, isso no se refere especificamente ordem concreta, mas sim aelementos gerais do institucionalismo. Observa-se que a teoria da inter-

    pretao judicial de Schmitt retratada em Gesetz und Urteillevar, no aodesenvolvimento do pensamento jurdico da ordem concreta, mas sim teoria jurdica caracterstica do decisionismo. Dessa forma, em 1914, notrabalho Der Wert des Staates und die Bedeutung des Einzelnen (O Va-

    lor do Estado e a Importncia do Indivduo), o tema da deciso passa dombito da aplicao do direito para o da sua criao e validade/legitimi-dade, muito embora o pressuposto de que todo stado necessariamentestado de Direito seja ainda mantido. Schmitt continua defendendo a tesede uma no identificao total entre fato e direito. O foco deixa ento deser a figura do juiz e passa a ser a figura do legislador que, por meio dadeciso ou melhor, de um decisionismo faz a mediao nos moldes

    platnicos com um direito natural sem naturalismo que, em outras

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    palavras, d contedo (histrico) forma jurdica (ideal),como sintetizaFranco de S.

    De certo modo, diante da ausncia do papel criador do juiz, no pri-meiro Schmitt h uma deciso judicial sem decisionismo, pois tal termodiz respeito capacidade de pr o direito mediante uma deciso, ou seja,relaciona-se ao campo da validade e no ao da aplicao. Diante dostrs tipos de pensamento jurdico que Schmitt reconhece, tal conclusos refora o nosso entendimento de um vis institucionalista j presentede maneira embrionria na teoria da interpretao judicial schmittiana de1912.

    2.3 Teses sobre a Interpretao no Perodo da Exceo

    A discusso schmittiana entre direito e poder no se restringe ape-nas aos textos dos anos de 1910, continuando ao longo de toda a sua obra.Porm, em 1921, com o livroDie Diktatur(A Ditadura), surgem os pri-meiros indcios de uma significativa mudana de entendimento sobre arelao entre esses dois objetos de estudo. A distino entre ditadura so-

    berana e ditadura comissria contida nessa obra remete discusso sobrea possibilidade de uma previso legal, ou melhor, de uma previso consti-tucional do estado de exceo, a exemplo do que acontece no artigo 4daConstituio de Weimar.

    Para Schmitt, apenas a ditadura comissria comportaria uma previ-so legal, j que tem intuito reformista, pretendendo garantir e preservara ordem jurdica vigente por meio de sua suspenso, ao contrrio da di-tadura soberana, de vis revolucionrio, que objetiva construir uma nova

    ordem. Neste ltimo caso, uma previso constitucional da ditadura sobe-rana seria algo ilgico, j que prever tambm, ao menos teoricamente,limitar. Desse modo, Schmitt afirma que o estado de stio e outros insti-tutos semelhantes do Direito Constitucional no passam de formas pro-cedimentais falidas que pretendem delimitar a exceo e obscurecer suareal dramaticidade, pois na situao excepcional o direito confrontadocom sua origem violenta, no normatizada e inormatizvel, muito embo-ra sua misso seja, paradoxalmente, normalizar conflitos sociais. Schmitt

    demonstra assim que, por planejar normalizar todos os aspectos do real,

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    o stado Liberal inclusive tentou conferir contextura normativa ao estadode exceo (SCHMITT, 2009a, p. 221-263). Ora, por sua prpria naturezaa exceo imune normatizao prvia, tratando-se antes de uma situa-o anmala que se pe entre o fato bruto e a norma jurdica.

    O intuito limitador da previso constitucional da ditadura comiss-ria, retratada pela possibilidade de um estado de exceo, no encontracorrespondncia com a prtica, sendo ineficaz. Com efeito, aquele quefoi dotado de competncia legal para executar o estado de exceo detmampla margem interpretativa, tratando-se nesse caso no de uma meraaplicao lgico-dedutiva de dispositivos constitucionais, mas sim de um

    verdadeiro decisionismo. Diante disso, Schmitt iniciar sua famosa obrade 1922,Politische Theologie, dizendo que [...]soberano es quien deci-de sobre el estado de excepcin (SCHMITT, 2009b, p. 13, grifos do au-tor). A verdadeira caracterizao do poder soberano se d na situao deemergncia, dado que [] quien domine al estado de excepcin, dominacon ello al stado, porque decide cundo debe existir este estado y qu eslo que la situacin de las cosas exige. (SCHMITT, 2009b, p. 49)

    O problema da interpretao que, em 1914, havia sido remetido dombito judicial para o campo legislativo, agora, em 1922, transferido

    para o mbito do estado de exceo. Porm, o tema da exceo, no picede sua formulao schmittiana, acarretar a primazia do poltico sobre o

    jurdico, ou melhor, embasar a anterioridade do poder em relao ao di-reito. Com isso e diante da afirmao schmittiana de que [...] todos losconceptos centrales de la moderna teora del stado son conceptos teol-gicos secularizados [...] (SCHMITT, 2009b, p. 17), o decisionismo sobre

    o estado de exceo, ao mesmo tempo em que elimina o dualismo plat-nico que fundamentava o direito na obra de 1914, estabelece um novo du-alismo no pensamento de Carl Schmitt: a separao entre direito e stado.Apesar de, nos seus primeiros escritos neokantianos, Schmitt ter defendi-do a prioridade do direito em relao ao stado, ele muda radicalmentede posio a partir dePolitische Theologie, eis que o stado antecederiao direito, visto que somente nele se poderia tomar a deciso sobre a exce-o, fundadora da ordem jurdica.

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    Nos anos de 1920, Schmitt no aceita mais que todo stado s-tado de Direito justamente devido possibilidade de uma situao de ex-ceo que objetiva suspender o ordenamento jurdico, enquanto o stado

    permanece, at mesmo para realizar o futuro direito. O decisionismo as-sim estabelecido traz s claras uma teoria dualista do stado e do direito,invertendo o anterior raciocnio de Schmitt sobre a relao entre direito e

    poder, com o que ele admite que o primeiro deriva-se do segundo, inau-gurando a primazia do poltico. No entanto, essa apenas uma das manei-ras de compreender o pensamento de Schmitt nesse momento, existindoentendimento contrrio no sentido de que o autor, nos anos de 1920, teriamantido a mesma fundamentao dualista dos anos de 1910. Para essacorrente, a deciso, por exercer um papel mediador, apenas estabelece-ria o contedo de uma forma j existente, e assim o direito permaneceriaindependente do poder. Alexandre Franco de S um dos adeptos dessaideia, defendendo tal postura por meio da filosofia das fices de aihin-ger, que Schmitt teria utilizado ao longo de sua obra. De qualquer manei-ra, esteja correta a primeira ou a segunda corrente, o certo que no Sch-mitt dos anos de 1920 h pouco destaque para uma teoria da interpretao

    judicial, eis que todo seu interesse foi desviado para a discusso sobre aexceo, fenmeno que se radica majoritariamente no campo do Poderxecutivo.

    Muito embora a crtica ao normativismo permanea presente nos es-critos da segunda dcada do sculo XX, o que se constata nesse momento a reduo qui a total negao da capacidade interpretativa do juiz,uma vez que Schmitt, entendendo que o juiz apoltico, considera que aaplicao do direito por ele realizada constitui-se apenas como uma deri-

    vao lgico-dedutiva da norma posta. Assim privado de vontade, o juizschmittiano volta a ser, semelhana do que ocorria na scola da xege-se francesa, apenas a boca da lei. Na prxima seo deste artigo ser

    possvel ver como tal posio de Schmitt sofre uma contundente crticade Kelsen, dirigida ao que ele chamou de jurisprudncia tradicional.

    Na verdade, esse posicionamento surpreendentemente simplrio deSchmitt reflexo da dimenso que o decisionismo tomou em sua obra.

    Ao correlacionar intimamente os conceitos de deciso, soberania e estadode exceo com vistas construo de uma teoria democrtica plebisci-

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    tria e antiparlamentar, Schmitt valoriza sobremaneira o Poder xecuti-vo. Assim, para manter a coerncia dessa nova tese, Schmitt restringe asfunes do Poder Judicirio, eis que dar margem a um juiz para o exer-ccio do controle de constitucionalidade significaria limitar o poder dosoberano de decidir sobre o estado de exceo. De fato, o controle deconstitucionalidade poderia recair sobre a deciso do Presidente do Rei-ch, ameaando-a em sua autonomia. Assim, para a teoria schmittiana nose tornar incoerente, a guarda da constituio precisa ser concedida aomesmo Poder capaz de decidir sobre a exceo. Diante da necessidade decircunscrever a deciso na esfera poltica do Presidente do Reich que,

    para Schmitt, seria neutro, visto que eleito diretamente pelo povo, inde-pendentemente do jogo mesquinho dos partidos , as funes dos demaispoderes passam a ser minadas por Schmitt, impedindo a concorrncia noato da deciso.

    A diferena relativa aos limites da interpretao judicial entre asobras da dcada de 1910 e as da dcada de 1920 fica ainda mais clara naseguinte afirmao de Schmitt: [] es improcedente atribuir a la Jus-ticia ciertas funciones que rebasan el mbito de una subsuncin real, es

    decir, que traspasan las fronteras establecidas por la sujecin a normas decontenido preciso (SCHMITT, 199, p. 97). Mais uma vez, a teoria dainterpretao de Carl Schmitt no pensada de maneira autnoma, massim em funo de um conceito de direito, ou seja, em funo de uma te-oria da validade.Schmitt constri os limites da deciso judicial a partirdo postulado central de sua teoria da democracia plebiscitria, que se re-laciona ao decisionismo e possibilidade sempre presente do estado deexceo. (SCHMITT, 199, p. 113)

    Dessa maneira, a capacidade interpretativa do juiz limitada porSchmitt, dado que no h nenhum vnculo entre a categoria ontolgicado povo homogneo e o mero funcionalismo mecanicista do Poder Judi-cirio, ao contrrio do que acontece com o Poder xecutivo, que exerce-ria uma verdadeira presentificao do povo. ssa representao no seconfunde com aquela liberal, de cariz contratual e privado, caractersticado Parlamento. Schmitt rejeita a representao parlamentar em nome da

    do Presidente, a nica autoridade verdadeiramente representativa. O Pre-sidente doReich, escolhido por meio da aclamao, o legtimo detentor

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    do poder de decidir. Tal tese radicalizada por Schmitt nos anos de 1930,quando passa ento a apresentar no mais o Presidente doReich, mas simoFhrer5como o verdadeiro guardio e protetor do direito. Assim, a pre-visvel reduo do Poder Judicirio ao xecutivo se completa na obra deSchmitt, sendo oFhrervisto como juiz supremo (oberster Gerichtsherr)da nao alem, detentor da verdadeira judicatura. Por isso, o Fhrerno se sujeita Justia, sendo capaz de aplicar o direito sem mediaesdiante da emergncia permanente que se tornou a regra na Alemanha a

    partir de 1933. Nas palavras de Schmitt. No panfletoDer Fhrer Schutzdas Recht (O Fhrer Protege o Direito), Schmitt chega a dizer que o

    Fhrer, lanando mo de seu poder judicante, se autorizou a realizar umajusta vingana diante da [...] peculiar deslealdade dos sublderes do mo-vimento [...], superando, em nome do bom direito alemo, a [...] tc-nica puramente jurdica de conformidade ou no-conformidade legal [...]que os inimigos do povo germnico tenderiam a identificar com o nico

    procedimento correspondente ao stado de Direito. (SCHMITT, 2001a,p. 224-225)

    Dessa maneira, o resultado final da hermenutica schmittiana

    consiste em negar todo poder de deciso aos juzes, vistos como seresapolticos que apenas devem cumprir a vontade do povo, presentificadae garantida primeiro pelo Presidente do Reich e, ao final, pelo Fhrer,o supremo juiz da Alemanha. Isso equivale, por bvio, a negar qualquer

    possibilidade hermenutica, bem como a dispensar o juiz do fardo ticorelativo deciso. Para ser jurdica, basta que a deciso judicial se limitea revelar a vontade democrtica do povo uno e homogneo, no exi-gindo maior fundamentao, seno aquela j indicada de antemo pelo

    soberano.

    5 O ttulo de Fhrer era ento totalmente inconstitucional na Alemanha. Na verdade,com a morte de Hindenburg, Presidente do Reich, em 2 de agosto de 1934, Hitler, queat ento era Chanceler, declarou que ambos os cargos deveriam ser combinados, dando

    origem a uma autoridade suprema que controlava tanto as foras armadas quanto ostado. (BNDRSK, 2000, p. 114)

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    3 As Teorias da Interpretao em Hans Kelsen

    Nesta seo so discutidas as teses sobre interpretao jurdicapresentes nas duas edies da Teoria Pura do Direitode Kelsen (1934 e1960), por meio das quais se constri e se destri, com um mesmo gesto,a clebre teoria da moldura.

    3.1 Consideraes Gerais

    O primeiro pressuposto que se deve ter em mente na anlise da te-oria da interpretao de Hans Kelsen que o normativismo kelseniano

    enquadra-se ideologicamente na verso do positivismo tico moderado,distinguindo-se da verso extremada, uma vez que para a primeira [...]a norma jurdica no tem validade sacramental, absoluta ou indiscut-vel, sendo apenas um meio para se resguardar a ordem social (MATOS,2005, p. 29). Assim, apesar de ser um erro frequente entre os autores maissuperficiais, o normativismo kelseniano no pode ser reduzido a um merolegalismo em que impera a literalidade indiscutvel da lei. exatamentea teoria da interpretao de Kelsen que ir deixar clara tal opo metodo-

    lgica, colocando-se contra a ideologia iluminista da subsuno que v nojuiz um mero operador lgico, personificado, nos termos de Montesquieue Schmitt, como a boca da lei.

    Para Hans Kelsen, no h separao entre aplicao e criao dodireito, muito embora ele desenvolva sua teoria da validade jurdicadistinguindo-a de uma teoria da interpretao, a qual abrange aplicaoe criao. nquanto a teoria da validade pertence ao campo cientfico, a

    teoria da aplicao/interpretao se refere ao campo poltico, em que seinsere a deciso que cria/aplica a norma. Tal se refere tanto deciso dolegislador quanto deciso do juiz, pois para o mestre da scola de ienaa aplicao do direito comporta dois momentos: um primeiro, de naturezacognitiva, e outro de carter volitivo, desenvolvidos ambos com base emum esquema hermenutico de molduras, como se ver adiante.

    Desse modo, diferentemente da anlise schmittiana sobre o nor-mativismo, a teoria da interpretao de Kelsen no est pautada em umamera anlise lgico-dedutiva. Ao contrrio, Hans Kelsen combate a s-

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    cola da xegese, bem como qualquer outra que defenda o primado da leisobre o juiz. No entanto, muitos crticos questionam se a natureza polticada deciso judicial contaminaria a pretenso de pureza da teoria da vali-dade kelseniana, uma vez que a criao/aplicao do direito pelo juiz pro-moveria o contato entre o campo da cincia autnoma do direito (dever--ser) e o campo da poltica, contato marcado pelo fato de poder ser, com oque seria desobservada a separao neokantiana entre ser e o dever-seradotada por Kelsen.

    A teoria da interpretao em Hans Kelsen pode ser dividida demodo sistemtico em duas fases: a inicial, referente primeira edio da

    Reine Rechtslehre(Teoria Pura do Direito) de 1934, e a final, relativa segunda, e definitiva, edio da referida obra, datada de 1960. a partirdessa diviso que o presente trabalho se orienta.

    3.2 A Interpretao como Conhecimento e Vontade em 1934

    Hans Kelsen, semelhana de Carl Schmitt, reconhece que o nor-mativismo gera certo grau de indeterminao na aplicao do direito po-

    sitivado, dando margem liberdade interpretativa do juiz. Porm, Kel-sen afirma que isso no motivo para se negar a possibilidade de umaformulao cientfica do direito com base na separao entre as esferasdo ser e do dever-ser, ou seja, a discricionariedade judicial no basta

    para comprovar que o fundamento ltimo do direito residiria, no em umanorma, mas em um fato.

    Nesse sentido, afastando-se do entendimento de Schmitt expostoem 1912, Kelsen no v um vnculo necessrio entre o normativismo, en-

    tendido como teoria da validade do direito, e a interpretao lgico-dedu-tiva (subsuno), entendida como teoria da aplicao do direito. Ao con-trrio, a indeterminao na aplicao do direito abordada e solucionada

    pelo normativismo, que admite que o juiz exerce uma funo de criaode normas jurdicas, agindo com o fito de complementar a ao criadorado legislador. Ao considerar o papel criador do juiz devido indetermi-nao prpria do carter geral das normas, Kelsen admite a discriciona-riedade da deciso judicial; ao mesmo tempo, no exclui o normativismo

    como teoria da validade do direito, razo que o levar, na primeira edio

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    da Teoria Pura do Direito de 1934, a elaborar sua teoria da aplicao/interpretao do direito por meio de dois momentos, um cognitivo e outrovolitivo, dado que [...] indeterminao implica escolhas, as quais deman-dam atos de vontade que criam direito. (SANTOS NTO, 2012, p. 37)

    O primeiro momento cognitivo o que se liga diretamente aonormativismo. A norma a ser aplicada configura-se assim como umamoldura que delimitar a vontade do juiz, tornando o ato discricionrioe no arbitrrio. Nesse primeiro momento necessrio conhecer todas as

    possibilidades de interpretao permitidas pela indeterminao da nor-ma (KLSN, 2009, p. 76-79). O segundo momento volitivo liga-se

    diretamente discricionariedade. O aplicador do direito deve escolher, apartir de sua vontade, uma dentre as vrias interpretaes possveis iden-tificadas no momento cognitivo, ou seja, dentre aquelas possibilidadescompreendidas pela moldura normativa.(KLSN, 2009, p. 1-2)

    A escolha entre as interpretaes compreendidas dentro da molduraest baseada pura e simplesmente na vontade particular do juiz, no sendoorientada por nenhuma norma interpretativa ou padro de justia externoao direito, a exemplo de princpios vinculativos (Dworkin) ou da conside-rao de um juiz-tipo (Schmitt). Assim, o poder discricionrio do juiz intensificado na teoria da interpretao kelseniana, pois a escolha que em-

    basa a deciso est pautada em valores particulares do aplicador do direi-to, no havendo uma moral institucionalizada ou pertencente ao direitoque possa limit-lo, ao contrrio do que propem ps-positivistas comoAlexy. Segundo Kelsen, a considerao de elementos morais e valorati-vos prprios de cada julgador no compromete a Teoria Pura do Direito,

    j que tais elementos pertencem ao campo da aplicao, comportando umteor poltico que em nada influi na anlise da validade das normas, quese d mediante processos cientficos desenvolvidos graas ideia de de-rivao normativa dinmica, a qual se liga forma e no ao contedo dodireito. m Kelsen, validade no se confunde com criao/aplicao dasnormas jurdicas, ao contrrio das posteriores correntes ps-positivistasque insistem em uma identificao entre esses dois elementos.

    ssa posio inicial, defendida na primeira edio da Teoria Pura

    do Direitode 1934 (KLSN, 2006, p. 115 et seq.), pode levar a um de-

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    cisionismo moderado, j que o rgo aplicador do direito no encontralimites para sua atuao, a no ser o quadro traado pelo cientista do di-reito. Mas mesmo essa frgil barreira cai por terra em 1960, na segundae definitiva edio da Teoria Pura do Direito, na qual Kelsen reconheceque o juiz pode, mediante um autntico ato interpretativo, decidir fora damoldura proposta pela cincia do direito.

    3.3 A Interpretao como Vontade em 1960

    Como visto no final da subseo anterior, a grande mudana da te-oria da interpretao kelseniana de 1960 com relao de 1934 foi a ad-

    misso da possibilidade de o juiz decidir tambm fora da moldura(KL-SN, 199, p. 369-370).Desse modo, o papel criador do juiz no mais selimita a uma complementao da norma estabelecida pelo legislador, pas-sando a ser dotado tambm de uma capacidade criadora inicial. No hmais qualquer distino qualitativa entre a liberdade do legislador e a li-

    berdade do juiz. Agora ambos esto sujeitos ao mesmo grau de vinculaonormativa material, ou melhor, total ausncia de vinculao material.

    Com isso, na edio de 1960 da Teoria Pura do Direito, o momentocognitivo da interpretao sobrepujado pelo momento volitivo. Segun-do Arnaldo Bastos Santos Neto (2012, p. 397),

    Kelsen desenvolve uma concepo meramente voluntarista da in-terpretao, admitindo a escolha, por parte do aplicador do direito,de uma opo que se encontre fora da moldura. Alm disso, recaiem uma teoria ctica da interpretao.

    Parece significativo que o motivo pelo qual Kelsen reformula suateoria da moldura resida em uma situao na qual a fora e a violnciadeterminaram, no contexto de uma deciso do Conselho de Seguranada Organizao das Naes Unidas, uma interpretao que antes Kelsen

    julgara, na qualidade de cientista do direito, cientificamente imposs-vel, quer dizer, localizada fora da moldura das interpretaes possveis(PAULSON, 1990, p. 147). A radicalizao do Kelsen de 1960 no sig-nifica que a moldura deixou de existir, mas sim que ela pode ser continu-amente ampliada por atos de vontade daqueles a quem a ordem jurdica

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    confiou o poder de decidir. m sentido prtico, isso equivale a uma auto-rizao para que qualquer deciso tomada pelo rgo competente seja v-lida. No limite, mesmo decises flagrantemente contrrias ao ordenamen-to jurdico em questo podem ser efetivadas, caso no sejam utilizados osmeios tcnicos que o prprio sistema oferece para invalid-las recursos,ao rescisria, reviso criminal etc. e elas venham a transitar em julga-do. Kelsen admite ento que uma deciso contrria ao ordenamento podetornar-se juridicamente vlida.

    Parece que a abertura da moldura normativa realizada por Kelsenatende s bases metodolgicas de seu pensamento, ou seja, est em con-

    sonncia com o positivismo tico moderado e com a filosofia relativista,opondo-se a uma filosofia absoluta que se coloca contra a mutabilidadeda ordem vigente. Alis, justamente por desconsiderar a existncia dequalquer verdade absoluta ou, ao menos, ter em vista a impossibilidadede seu conhecimento que Hans Kelsen adotar, sob a ptica da cinciado direito, uma derivao normativa dinmica para sua teoria da validade,estando mais uma vez de acordo com a mutabilidade da ordem social,entendimento calcado no relativismo filosfico tpico do pensamento kel-

    seniano. (KLSN, 199, p. 219)Dessa maneira, o princpio dinmico est relacionado diretamente

    forma, opondo-se ao princpio esttico, que diz respeito ao contedo.Porm, apesar desse nosso argumento, muito se critica a abertura kelse-niana da moldura interpretativa, quando confrontada com os pressupos-tos da Teoria Pura do Direito. Para alguns crticos, a admisso de umainterpretao judicial fora da moldura colocaria em xeque a coerncia da

    teoria da validade kelseniana, ou seja, a real sustentao do normativismocomo fundamento cientfico do direito.6Apesar de Kelsen considerar a

    6 Nesse sentido, citem-se as posies de Jos Antonio Sanz Moreno e Marcelo AndradeCattoni de Oliveira. O primeiro defende que na teoria da interpretao kelseniana [...]todo acto jurdico es actuacin poltica, que toda norma es ejercicio del poder. Cuandose termina armando que todo hecho productor de una norma jurdica es fruto de unadecisin volitiva, la pretendida autonoma del derecho y de su ciencia es difcil demantener (MORNO, 2002, p. 176). J o segundo arma que [...] aceitar como sendo

    interpretao do direito, sob o ponto de vista de uma teoria do direito de uma cinciaque descreve normas jurdicas e a dinmica dessas normas jurdicas , a possibilidade de

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    deciso que aplica e cria o direito como algo pertencente ao campo pol-tico, estando assim separada da seara jurdico-cientfica qual a anliseda validade do ordenamento pertence , a aplicao do direito sem qual-quer limite interpretativo acarreta o questionamento sobre a efetividadeda distino neokantiana entre ser e dever-ser.

    Tal leitura, muito prxima daquela que levou Carl Schmitt a desen-volver sua teoria da interpretao j em 1912, orienta-se, ao que nos pa-rece, em torno de uma questo central: a teoria da interpretao de 1960tornaria a teoria da validade de Hans Kelsen no um normativismo, massim um decisionismo nos moldes do realismo jurdico norte-americano?

    Se a fundamentao do direito, diante da ruptura com a coerncia mate-rial do ordenamento jurdico provocada pela deciso fora da moldura ,encontra sua origem no mero ato de vontade daquele que detm o poder,tal no deixaria de dar lugar, na verdade, a uma teoria imperativista dodireito. Tal viso ganha ainda mais fora se considerar o fato que levouKelsen a mudar de opinio, qual seja, a vontade das potncias que com-

    punham o Conselho de Segurana da ONU na poca da Guerra da Coreia.Nesse caso especfico, a teoria do realismo jurdico encontraria ntima

    correspondncia na teoria realista das relaes internacionais, que con-sidera a impossibilidade de um Leviat no plano internacional ou, o que o mesmo, a inexistncia de um ordenamento jurdico global, dado que

    prevalece no cenrio internacional a vontade do mais forte, ou melhor, avontade que consegue se impor.

    m primeiro lugar, no que concerne teoria da interpretao, evi-dente que a abertura kelseniana da moldura se identifica com um realismo

    jurdico (SANTOS N

    TO, 2012, p. 399). No entanto, o realismo jurdi-co puro identifica validade e aplicao/interpretao do direito, o que,ao que nos parece, no ocorre em Kelsen justamente porque a vontadedo criador/aplicador do direito, apesar de no reconhecer qualquer limitematerial, sobre uma regulao formal que somente o normativismo jur-dico pode descrever de modo adequado. Com efeito, Kelsen costumava

    produo de uma norma de escalo inferior ou a realizao de um ato coercitivo que seprocessem fora do quadro das interpretaes possveis de uma norma superior aplicanda ,

    no mnimo, romper com o postulado metodolgico de separao entre teoria e sociologiado direito, entre cincia normativa e cincia causal. (OLIIRA, 2012, p. 416)

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    ironizar o realismo jurdico norte-americano corrente que lhe pareciapor demais nave argumentando que o juiz s pode dizer o que direitoporque antes foi classificado por esse mesmo direito como juiz; ou seja,para existir, o decisionismo judicial precisa de uma norma vlida anteriorque o constitua como tal, eis que somente aqueles autorizados pelo direito

    podem agir como seus rgos de aplicao/criao. Desse modo, admite--se o carter realista da teoria da interpretao kelseniana, mas nega-seum desdobramento puramente imperativista no conceito cientfico de di-reito desenvolvido por Kelsen.

    Como j foi dito, a vontade do aplicador/criador do direito sofre

    uma regulao formal. m outras palavras, h certos requisitos para queuma deciso seja expresso de uma interpretao jurdica autntica. Umdeles, por bvio, a constituio formal, feita pelo ordenamento jurdi-co, da autoridade judicial. Nesse sentido, a Teoria Pura do Direito buscaidentificar as autoridades existentes no ordenamento, tentando inclusiveindicar a primeira autoridade histrica, assim como explicitar a maneira

    pela qual se confere autoridade aos demais escales da pirmide norma-tiva. Trata-se, portanto, de uma anlise formal da validade das normas,

    quer dizer, uma derivao normativa dinmica que despreza o contedo ese resolve no problema da norma fundamental (Grundnorm), cujo desen-volvimento, contudo, escapa ao mbito deste trabalho.

    Segundo Kelsen, para ser vista como uma norma vlida, certa von-tade deve conter no apenas um sentido subjetivo de dever-ser (umquerer), mas tambm um sentido objetivo de dever-ser (uma autori-zao). A ideia de dever-ser objetivo surge no pensamento kelseniano

    para combater a teoria imperativista, dado que sem essa construo nadadistinguiria um comando jurdico de uma ordem advinda de um bandode salteadores de estrada, conforme a clebre imagem proposta por SantoAgostinho e desenvolvida criticamente no captulo I da segunda edioda Teoria Pura do Direito.

    Assim, a teoria da validade de Kelsen permanece pura, uma vezque, diante do relativismo axiolgico que orienta o pensamento cientfico,a validade tratada em mbito formal. Por isso, entende-se que as crti-

    cas que insistem sobre uma suposta incoerncia entre a teoria da inter-

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    pretao e a teoria da validade de Kelsen devem ser ao menos atenuadas.Com efeito, enquanto a primeira teoria se desenvolve no campo material,a segunda abarca exclusivamente o campo formal. Ademais, mesmo nes-se primeiro campo qual seja, o da interpretao h importantes consi-deraes de natureza formal, eis que, como se viu, a autoridade criadora/aplicadora precisa ser constituda segundo os ditames do ordenamento

    jurdico. Considerando que a atividade de criar/interpretar o direito liga--se majoritariamente mas no exclusivamente ao contedo e no forma, possvel dizer dizer que a teoria da interpretao de Hans Kelsenexposta em 1960 comporta um decisionismo de vis realistaque tem porcondio uma teoria da validade normativista, a qual no sofre influnciada prtica jurdica.

    m segundo lugar, h de se reconhecer que o pluralismo e a aber-tura interpretativa de que hoje se abusa so totalmente conciliveis com ahermenutica kelseniana. Nela qualquer interpretao jurdica parece pos-svel, bastando que seja posta pelo rgo competente para tanto. Isso sig-nifica que, ainda aqui, Kelsen no mascara o carter violento do direito.Inexistindo valores necessrios que limitem sua interpretao, o direito

    pode ser qualquer coisa que o poder queira. Mesmo que os diversos me-canismos tcnico-formais caractersticos da ordem jurdica possam mas-carar sua estrutura originalmente violenta, tal violncia sempre ressurge,ainda que mediatizada, no momento da interpretao autntica realizada

    pelos rgos de aplicao/criao do direito que, pela prpria natureza daexperincia jurdica, precisam em certo momento proferir uma decisoltima, a qual se fundar unicamente no poder final de deciso conferidoa tais rgos. Ora, tal poder garantido pelo monoplio da violncia de

    que goza a ordem jurdica.Dessa maneira, o decisionismo hermenutico de Kelsen no uma

    limitao capaz de demonstrar a insuficincia de uma cincia pura do di-reito, mas sim um elemento que refora o pano de fundo do qual o autor

    parte e ao qual retorna ao construir aquilo que se pode chamar de umateoria negativa da interpretao: o direito violncia organizada e mo-nopolizada, o que fica claro no apenas quando se considera sua origem

    (norma fundamental), mas tambm quando se visualiza sua contnua atu-alizao hermenutica mediante decises que, ao fim e ao cabo, se fun-

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    dem apenas na fora imanente daqueles a quem o ordenamento concedeuo poder-dever de decidir de modo definitivo.

    Para muitos crticos, o ponto de chegada radicalmente no herme-nutico da Teoria Pura do Direito demonstraria seu malogro. Todavia, so-mente pode pensar dessa maneira quem acredita que o direito deve teralgum contedo ou valor necessrio, imponvel ao intrprete no prprioato interpretativo, limitando-o e proporcionando-lhe balizas. Todas as atu-ais teorias da argumentao jurdica, de Dworkin a Alexy, partem de tal

    premissa, postulando a existncia de contedos jurdicos mnimos capa-zes de guiar a atividade interpretativa. Tal posio insustentvel para

    Kelsen, de modo que, ao invs de ser um fracasso, sua teoria da interpre-tao jurdica constitui o resultado lgico e necessrio de todo o caminhopercorrido pela Teoria Pura do Direito.

    Postular uma interpretao aberta e sem qualquer controle materialprvio significa, ao que parece, aceitar o carter irracional ou pelo me-nos no totalmente racionalizvel do direito. Ao dizer que o juiz podeestender a moldura hermenutica antes traada pela cincia jurdica, tor-nando-a intil, Kelsen admite que o elemento fundamental do direito no sua finalidade ou seu contedo suas verdades , mas a fora queo aparelha: auctoritas, non veritas, facit legem. No por acaso, esseclebre dizer de Thomas Hobbes era um dos motes preferidos de CarlSchmitt, que aqui se aproxima de Kelsen, muito embora o decisionismoschmittiano se oriente primordialmente em relao ao Poder xecutivo,enquanto Kelsen prefira localiz-lo na esfera de ao do Poder Judicirio,que quem majoritariamente mas no exclusivamente diz o direito.

    Ser direito aquilo que os rgos de aplicao de determinado ordena-mento jurdico disserem que . Trata-se de uma viso bem pouco simpti-ca, mas inegavelmente realista.

    4 Concluso

    Comparando as teorias da interpretao schmittianas com as teo-rias da interpretao kelsenianas, possvel chegar a interessantes e at

    mesmo irnicas constataes. A primeira a de que tanto Carl Schmitt

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    como Hans Kelsen partem de um projeto semelhante, consistente na se-parao entre direito e poder. Como foi dito na introduo, no foi nossoobjetivo analisar neste artigo o sucesso ou o insucesso desses respectivos

    projetos. Cabe apenas acrescentar que, embora Schmitt e Kelsen tenhampartido de uma preocupao comum relativamente separao entre di-reito e poder, ambos enveredaram por searas muito diferentes e mesmoopostas que, inclusive, muito cedo entraram em choque. Com efeito, en-quanto o conhecimento do direito em Schmitt se d por meio da decisoexcepcional, Kelsen entende que a cognio jurdica se realiza normativa-mente, em ltima instncia graas ao concurso da norma hipottica fun-damental. Desse modo, no que compete a uma teoria do direito, tem-seum decisionismo em Carl Schmitt e um normativismo em Hans Kelsen.

    No entanto, o mesmo no ocorre em suas teorias da interpretao.Na hermenutica schmittiana de 1912, ao mesmo tempo em que se nega ateoria interpretativa lgico-dedutiva da subsuno, h tambm uma recu-sa do puro decisionismo, bem como uma tentativa de limitao da discri-cionariedade judicial, criando-se para tanto um padro hermenutico radi-cado na figura do juiz-tipo, o qual representaria a funo de uma norma

    interpretativa diversa da norma positivada, postura que antecipa em Sch-mitt uma teoria da validade jurdica de vis institucionalista. J nas obrasdos anos de 1920, Schmitt entende que o juiz, como rgo no poltico,deve se limitar a aplicar o direito por meio de simples subsunes, sendoque o papel criativo que Kelsen sempre confiou tambm ao juiz transferido para a esfera do Poder xecutivo, radicando-se primeiro noPresidente doReiche, nas obras dos anos de 1930, noFhrer, que assu-me ento o papel de juiz-supremo da Alemanha. m qualquer uma dessas

    leituras, Schmitt nega de maneira veemente o decisionismo judicial: sejaporque existe um juiz-tipo a guiar a interpretao judicial (anos 1910),seja porque o juiz deve decidir mecanicamente como apoltica boca dalei (incio dos anos de 1920), seja porque, finalmente, a efetiva decisocabe ao chefe do xecutivo, em suas duas verses: Presidente do Reich(Weimar, final dos anos de 1920) ou Fhrer (III Reich, anos de 1930).Desse modo, em Schmitt h uma deciso judicial sem decisionismo.

    Hans Kelsen defende praticamente o inverso. Na teoria da interpre-tao de 1934, na qual o juiz precisa decidir dentro da moldura, Kelsen

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    nega qualquer padro moral, principiolgico, ideal ou jurisprudencialpara orientar a escolha de uma dentre as vrias interpretaes juridica-mente possveis. Tal escolha resolve-se como deciso pessoal e discricio-nria do julgador, no encontrando qualquer embasamento necessrio nodireito positivo ou na moral social vigente. Tem-se, portanto, o que cha-mamos de decisionismo judicial moderado. Todavia, em 1960, apesar deser a ordem jurdica formal que habilita o juiz a decidir, Kelsen implodede vez qualquer pretenso hermenutica, aduzindo que a deciso se d demaneira incontrolada, j que o juiz pode decidir fora da moldura, ou seja,

    para alm das opes cientificamente possveis. Assim, em Kelsen huma deciso judicial com decisionismo.

    Ademais, alm da peculiar aproximao que se verifica entre Kel-sen e Hart e, de outro lado, entre Schmitt e Dworkin, a anlise ora em-

    preendida refora nosso entendimento quanto presena de um vis ins-titucionalista na teoria da deciso judicial schmittiana de 1912. Tendo emvista que a discricionariedade no deixa de ser vontade, negar a existnciade uma norma interpretativa fundada na instituio (expressa pelo juiz--tipo) equivaleria a admitir a livre criao do direito pelo juiz, fato nega-

    do por Schmitt na obra de 1912.H, por fim, outra constatao mais interessante e ainda mais irni-

    ca, dado que o decisionismo judicial do Kelsen de 1960 exerce a mesmafuno do protodecisionismo schmittiano de 1914: conferir contedo forma. Porm, enquanto no pensamento de Kelsen o decisionismo apli-ca-se apenas teoria da interpretao, eis que d contedo ao direito aocri-lo/aplic-lo de modo poltico, para Schmitt o decisionismo relacio-

    na-se diretamente teoria da validade do direito, eis que cabe decisoexcepcional atribuir contedo ordem jurdica a ser restaurada (ditadu-ra comissria) ou a ser posta (ditadura soberana). Assim, segundo HansKelsen, o direito como forma obtido normativamente; j Carl Schmitt

    postula uma origem metajurdica para o direito, o que o leva, ao menosnas obras dos anos de 1910, a aderir a um dualismo de vis platnico que

    postula uma paradoxal categoria ontolgica da forma um direito natu-ral sem naturalismo , na qual o direito como deciso deve se encaixar.

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    Andityas Soares de Moura Costa Matos Graduado em Direito; Mestre emFilosoa do Direito; e Doutor em Direito e Justia pela Faculdade de Direito daUniversidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Professor Adjunto de Filosoa

    do Direito e disciplinas ans na Faculdade de Direito da UFMG. Membro doCorpo Permanente do Programa de Ps-Graduao em Direito da Faculdade deDireito da UFMG. Diretor da Revista Brasileira de Estudos Polticos. E-mail:[email protected] prossional: Av. Joo Pinheiro, 100, 11 andar, Centro, Belo Horizonte,MG. CP: 30130-10.

    Diego Antonio Perini Milo Graduado em Direito pela Universidade stadual

    Paulista Jlio de Mesquita Filho (UNSP); Mestrando do Programa de Ps-Graduao em Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG),orientado pelo Professor Doutor Andityas Soares de Moura Costa Matos. Bolsistado Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientco e Tecnolgico (CNPq)..

    E-mail:[email protected] prossional: Rua Antnio Bento de Oliveira, n. 24, Centro, Nhandeara,

    SP. CP: 15.190-000.