direito constitucional - paulo otero - aulas

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AULA N. 2 Captulo I Evoluo histrico-poltica da tutela da pessoa humana

1. - A Pessoa Humana no Pensamento Poltico Pr-Liberal a. Perspectivas acerca do fenmeno constitucional Podemos encontrar fenmeno constitucional: 1. Concepes estaduais 2. Concepes normativas ou positivistas 3. Concepes ideolgicas Todas elas tm aplicabilidade face ao quadro terico, ainda que, na prtica todas elas no consigam apresentar uma verdade global. Analisemos cada uma em particular. 1. Concepes estaduais Esta concepo considera que o direito constitucional em geral e a constituio em particular esto intimamente ligados ao Estado. So produtos deste, identificando-se a constituio com a anlise da responsabilidade do Estado, expressando aquele a vontade deste. A constituio expressa a organizao e o relacionamento do Estado com os cidados. a. Critica i. Nem sempre a Constituio um produto intencional da vontade dos Estados. Pelo contrrio, pode ser vontade de uma comunidade que nem sempre identificvel com o Estado. Ex. As constituies costumeiras (Britnica). ii. Os Estados tm vindo na actualidade, a ser vulgarmente marcados pela transferncia de matrias que eram tradicionalmente da sua competncia para a competncia de entidades supranacionais. o que podemos chamar de Reduo do Domnio Reservado dos Estados. Ex. Direitos Humanos. iii. O fenmeno comunitrio tem vindo a evidenciar uma alterao fundamental do ponto de vista da integrao e da aplicao das normas jurdicas. Efectivamente, as normas constitucionais tm de conformar-se com as normas de direito comunitrio. Um no essencial, trs perspectivas fundamentais acerca do

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exemplo evidente o da constituio econmica (art.85 da CRP) que no expressa a real situao econmica do pas, pois esta est obrigada pelos normativos comunitrios. Com efeito, face ao direito comunitrio, so alteradas as disposies constitucionais que brigam com as constituies dos Estados Membros. o que se designa por Inverso do Estatuto da Constituio, uma vez que as normas constitucionais tm de estar em conformidade com as normas comunitrias. O Prof. Jorge Miranda tem, quanto a este ponto uma posio contrria, defendendo que, pelo simples facto da obrigatoriedade da reviso constitucional para a integrao das normas comunitrias confere a predominncia Constituio perante o Direito Comunitrio. Todavia, ainda que se faam estas crticas, no deixa de ser verdade que o fenmeno constitucional, ainda eminentemente estadual. 2. Concepes normativas ou positivistas O fenmeno constitucional na sua essncia um fenmeno normativo. A Constituio uma Lei, sendo o seu aspecto normativo a questo importante. Resulta daqui a Fora Normativa da Constituio, ou seja, a Constituio segundo este ponto de vista uma norma prevalecente. Esta situao est certa formalmente, uma vez que este o princpio que norteia a Constituio. a. Critica i) O pressuposto desta concepo o de a Constituio resultado de um conjunto de normas escritas. Mas, nem sempre isto verdade. As Constituies costumeiras, so um exemplo bem evidente de que no assim. Deste modo, a Constituio tem fora normativa, apenas enquanto os destinatrios das suas normas assim o entenderem. O Direito no visa apenas a sua validade, mas tambm a sua efectividade. Podemos ento questionar, se o costume contrrio Constituio inconstitucional ou gera inaplicabilidade da constituio? A resposta vai no sentido de que a Constituio existe, quando existe Constituio oficial, ou seja, aquela que efectivamente vivida. Ex. A Constituio de 1976 falava na transio para o socialismo, na sociedade sem classes, apontando uma matriz claramente marxista, todavia, a prtica constitucional ia em sentido contrrio, pretendendo a transio para o sistema econmico capitalista tradicional da sociedade ocidental, sendo exemplo maior o pedido de adeso CEE, logo em 1977. Por outro lado, a Constituio refere que as eleies legislativas, pretendem a escolha dos deputados resultando desta escolha a nomeao do Primeiro-Ministro. Na prtica as

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eleies legislativas, destinam-se primariamente escolha do Primeiro-Ministro e secundariamente, escolha dos deputados. Fica claro que, a Constituio no oficial tambm traduz a existncia de um poder constituinte no formal, tendo por via disso, um peso significativo do ponto de vista constitucional. ii) A fora normativa da Constituio assenta em dois posicionamentos principais: - Fora absoluta - Mera folha levada pelo vento Por este ltimo aspecto, tem-se em conta que so as Revolues que fazem as constituies, como fica patente no caso portugus. Das seis Constituies (1822, 1826, 1838, 1911, 1933, 1976), apenas a carta Constitucional de 1826, no foi devida a ruptura revolucionria, ainda que, em grande parte, se tenha ficado a dever a alteraes polticas mais ou menos complicadas. Efectivamente, as Constituies no conseguem segurar a fora dos factos. 3. Concepes ideolgicas Cada Constituio sempre expresso de uma dada ideologia. a imposio de uma ideia poltica para a comunidade que visa obrigar, de que se trata. Para os marxistas, as constituies ocidentais, visam a imposio da ideologia capitalista, enquanto para o mundo ocidental, a constituio sovitica era a imposio ideolgica do marxismo. Mas, as Constituies expressam efectivamente uma ideologia? i) Todas as normas expressam uma ideologia, ainda que nem todas as normas constitucionais expressem uma ideologia. ii) No expressar ideologias, pode, no entanto expressar efectivamente mais do que uma ideologia. a Pluralidade ideologia. Uma Constituio deve permitir a pluralidade dos campos ideolgicos, pelo que, assim sendo, no existe uma imposio ideolgica.

b. A Concepo adoptada i) O Personalismo Constitucional O que o fenmeno constitucional? A tnica da resposta deve ser colocada na PESSOA HUMANA, porque: a. O Ser Humano a razo de ser do Estado;

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O Estado existe em funo das pessoas e no o inverso. Resulta na ilegitimidade do exerccio do poder do Estado, quando este trata a pessoa humana como uma coisa. b. O Ser Humano a razo de ser do Direito A Pessoa Humana tem o Direito ao seu servio. Quando uma norma jurdica impe comportamentos contra a dignidade da pessoa no gera a obedincia. o Direito injusto. Implica algumas vezes a prpria desobedincia. c. O Ser Humano a razo do Direito Constitucional A Constituio deve estar ao servio da Pessoa Humana. Ela serve para limitar o poder e garantir o direito das pessoas, impondo uma tenso constante entre a Autoridade e os destinatrios do Poder. Esta a essncia do fenmeno constitucional.

1. 1. O pensamento greco-romano As consideraes acerca do homem e do valor da pessoa humana no novo. Ele reporta-se Grcia Antiga, e a Protgoras, para quem o Homem era a medida de todas as coisas, sendo que o objecto se apresenta em funo do sujeito, donde resulta a liberdade de participao, como elemento fundamental do cidado. A liberdade, apresenta-se para os gregos como uma liberdade de participao dos cidados e no como liberdade de pensamento, o mesmo dizer, apenas se aplica aos cidados na plenitude dos seus direitos, com excluso dos escravos. i) Scrates, entende a existncia de normas de conduta social de valor universal e permanente que todos podem descobrir, sendo o homem absorvido pela vontade do poder. ii) Plato (427-347), foi primeiro terico do totalitarismo, entende o Estado como uma razo de ser do individuo, no estando o poder limitado. Do conjunto das suas obras, podem destacar-se como mais importantes, trs delas: a Repblica, o Poltico e as Leis. Forte adversrio da democracia, procura acima de tudo criar um modelo ideal de Estado. Parte assim da anlise da alma do homem, no sentido de estabelecer entre ela e a cidade um paralelo. A justia asseguraria que cada classe preenchesse apenas a funo correspondente sua natureza. A cidade surge da incapacidade dos indivduos satisfazerem as suas necessidades, pelo que o cidado est inteiramente dependente da colectividade, numa subordinao idntica da parte ao todo.

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iii) Aristteles, o primeiro teorizador da ideia de Estado de Direito, no sentido em que o Estado limitado pelo Direito, ainda que o principal dever dos cidados seja o de contribuir para o bem do Estado. Para Aristteles, o homem um animal poltico, distinguindo-se, por conseguinte dos outros animais por se encontrar integrado numa polis, que sendo o fruto da civilizao, o termo de um desenvolvimento de associaes humanas cujas fases foram: famlia, tribo, aldeia, cidade. Entende que a constituio a cidade. Se aquela mudar, a cidade tem de forosamente ser diferente. O Homem e a Sociedade, so vistos do mesmo modo, pelo que os homens

distinguem-se dos outros seres porque caminham para os fins que lhe so prprios com conscincia e liberdade, e no de modo fatal e necessrio. O seu fim supremo o bem. A perfeio consistir em o atingir. Para conseguir atingir este objectivo, o homem ter de praticar as virtudes, que so distinguveis em duas categorias: as intelectuais, passveis de atingir pela educao e as ticas ou morais, que se adquirem pelo exerccio e da vontade. Destas ltimas, a que tem mais importncia para a vida social a justia que corresponde ao exerccio conjunto de todas as virtudes na vida de relao. Uma das suas caractersticas a igualdade, que se assume como fundamento da coeso e harmonia da vida social. Esta pode, entender-se de dois modos diferentes, correspondentes a duas modalidades de justia: a distributiva e a correctiva. Para Aristteles, o Estado a universalidade dos cidados. Que significa ento para ele o cidado? Trata-se essencialmente de um homem livre que tem para com o Estado um conjunto de deveres e recebe daquele um conjunto de direitos. O principal dever do cidado para com o Estado contribuir para o seu bem. Assim caracterizado o cidado, fcil de ver que nem todos na cidade so considerados cidados, pelo que importa, segundo ele distinguir entre cidados e habitantes. Os estrangeiros e os escravos so apenas habitantes. Tambm aqueles que pela sua idade, ainda no podem, ou j no podem participar activamente na vida pblica, no so cidados. Uns seriam cidados em esperana, os outros, cidados aposentados. 1.3. O pensamento medieval O pensamento medieval vem trazer uma nova forma de entender o homem, especialmente pela mo de dois ilustres representantes da Igreja catlica: Santo Agostinho e S. Toms de Aquino. i) Santo Agostinho limita o poder em relao a um fim a justia. onde no justia no h Estado. A cidade de Deus a comunidade de todos os que vivem segundo o

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esprito e buscam a justia, e Abel o seu fundador, onde os cristos participam no ideal divino; a cidade terrena, a comunidade dos que vivem segundo a carne e a satisfao dos seus interesses. ii) S. Toms de Aquino, retomando a ideia de Aristteles de que o homem um animal social, sendo cada pessoa uma individualidade prpria. O homem no pode viver isolado porque, s por si, no pode dar satisfao nem s tendncias mais elevadas da sua natureza espiritual, nem s necessidades mais elementares. Tudo o que o homem sabe adquirido na convivncia com os seus semelhantes. O dom superior do homem em relao aos outros animais a razo, mas este s pode exercer-se plenamente no convvio. Defende o direito de resistncia e desobedincia contra o Estado quando este atenta contra a pessoa humana, desde que aqueles direitos no sejam superiores aco do Estado. A pedra angular da sua obra a considerao de que o homem, alm de animal poltico um animal social. Assim sendo, a sua perspectiva sobre a origem do Estado, parte do pressuposto de que ele um produto da natureza social, racional e livre do homem que exige uma autoridade encarregada de procurar o bem comum e, portanto, que os homens esclarecidos e ilustres pelas suas virtudes e saber ponham a sua inteligncia e a sua vontade ao servio dos seus semelhantes, dirigindo-os. O homem est deste modo orientado para o grupo de que faz parte, pelo que cada indivduo est para o todo, ficando a este subordinado. A sociedade e o Estado, sendo um produto da natureza, ou melhor, da inclinao natural do homem, correspondem a um agir que consequncia dos impulsos profundos e essenciais dos seres humanos. O Estado aparece tcito assim dos revelado num Aquele acto acto de cooperao, assente satisfao num das

consentimento

indivduos.

destina-se

necessidades humanas, nomeadamente as mais elevadas, que so o resultado da natureza eminentemente social do homem. O Estado vem representar o modo pelo qual o indivduo realiza as suas necessidades, de modo que apresente um fim essencial que o bem comum. 1.4. Humanismo e autoritarismo: a contradio da Idade Moderna A Idade Moderna traz a contradio entre humanismo e autoritarismo. Pito Della Mirandola, um dos principais teorizadores da dignidade humana. O Homem fonte de referncia de toda a dignidade, que um valor inalienvel, natural e incondicionado. i) Maquiavel

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com este autor que o autoritarismo adquire uma forte identidade, teorizando no sentido de que os fins justificam os meios, podendo o Prncipe recorrer guerra, ao mal ou mentira desde que isso seja justificado no quadro do Estado. E embora sejam manifestas as vozes discordantes em relao obra de Maquiavel, o certo que ele, no Prncipe obriga a olhar o poder como um facto, despido de consideraes ticas ao mesmo tempo que o trata como o mais importante dos valores. Por isso explica porque que o tirano mente e esconde a sua natureza sob a capa de uma completa honestidade, e como sabe estabelecer um pacto com o Diabo, no recuando na utilizao dos meios para alcanar, manter e exercer o poder. Procura determinar, quais as condies de que depende a ordem e de como possvel estabelecerem um Estado estvel, pelo que se preocupa em determinar quais devem ser as qualidades do prncipe e sob que critrios, tais requisitos so passveis de implementao. Quer-lhe parecer desde logo, que o critrio primeiro radica no interesse, e que o prncipe se deve aliar aos burgueses contra os senhores feudais e contra o papa. O ideal do prncipe definido ento no Captulo XV, quando refere "Resta agora ver quais devem ser os modos e disposies governativas que um prncipe deve ter para com os sbditos e para com os amigos. (...) necessrio a um prncipe, se se quiser manter, estar preparado para poder no ser bom, e para usar ou no a bondade conforme a necessidade"1 pelo que ele se deve preocupar mais com o que e menos com o que deve ser. assim que na poltica interna ou externa, o prncipe deve usar o poder, bem como servir-se da fraude, da violao contratual, da mentira, da traio, da hipocrisia, da intriga e do assassnio como meios polticos. O poder nesta ptica, contraponto ao direito. Em poltica os resultados que contam, pelo que todos os meios que permitam alcan-los so bons. esta obra, contraditria e complexa, que termina de algum modo, com o pensamento medieval, obrigando a questionar a problemtica do poder num sentido diferente do que at a havia sido feito. No fundamental, o maquiavelismo vai, pelo menos, fazer baixar o nvel dos fins da sociedade, reduzindo-os aos objectivos de facto existentes em qualquer sociedade real: ausncia de dominao exterior, estabilidade, domnio da lei, prosperidade, glria, imprio.

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Cfr. MAQUIAVEL, O Prncipe, Lisboa,

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1.5. A colonizao do Novo Mundo e a questo dos ndios das Amricas As descobertas portuguesas e espanholas, criam no mundo ocidental uma nova situao, que a do confronto com outras culturas, etnias e religies, facto que conduziria a um conjunto de teorias que colocavam em situao de preponderncia daquela em relao a esta agravado com o facto da considerao de que os naturais daquelas paragens serem considerados como seres inferiores e em alguns casos como desprovidos de alma. Por outro lado, este fenmeno conduziria a um conjunto de reaces por um conjunto de jurisconsultos e filsofos que procuraram a refutao de tais teses, pretendendo responder a questes fundamentais como, a de se saber se os indgenas tinham ou no direitos fundamentais e em que medida era possvel impor a vontade do colonizador ao colonizado. O conjunto de autores considerados pertence substancialmente Escola Espanhola de Direito Internacional, destacando-se Frei Bartolomeu de las Casas, Francisco Vitria e Francisco Suarez. e Escola Portuguesa, pela mo do Padre Antnio Vieira. Frei Bartolomeu de las Casas ope-se obrigatoriedade de professar a religio catlica imposta aos ndios. Entende que o poder do Estado deve ser limitado e assente no reconhecimento da pessoa humana. Em virtude disto, no entende razes que justifiquem a perda de liberdade de um povo por razes civilizacionais. Francisco Vitria Para este jurisconsulto, os espanhis tambm no tinha o direito de impor a civilizao crist, uma vez que os ndios tinham direitos naturais. Reforando a tese tomista de que a comunidade poltica concebida como uma instituio de direito natural, que cabe nos fins temporais do homem, considera que o poder poltico reside na comunidade, a qual por sua vez o atribui aos governantes, que alm de estarem submetidos lei divina e lei natural, sujeitam-se tambm ao direito positivo. Considera ainda que, qualquer povo, por direito natural, pode constituir-se em Estado, mas considera tambm que todos os povos, organizados em estados, se encontram unidos pelo vnculo comum da natureza humana, destacando a existncia de um direito de livre comunicao entre todos eles, independentemente da religio professada. por este facto um dos primeiros tericos da comunidade internacional e do novo direito das gentes, sendo que a primeira era o resultado da sociabilidade natural do homem que exigia autodeterminao de cada povo assim como o ius gentium, em nome da universalidade do gnero humano. Francisco Suarez Aponta o direito natural como impregnado de princpios imutveis, sendo um deles a liberdade. Retomando Aristteles e So Toms, considera

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que o poder poltico um produto da natureza racional do homem e no do pecado da revelao. Assim o poder poltico visto como algo de direito humano, como instituio dos homens e doao do Estado, algo que surge pela vontade de todos. Tambm a sociedade civil perspectivada como uma sociedade perfeita, dotada de poder poltico, em contraste com as sociedades imperfeitas, como a famlia. Deste modo, o poder no pertence aos homens a ttulo particular, mas sim aos homens tomados colectivamente, resultando ento, da integrao, da existncia de uma ordem moral, de uma comunidade mstica, distinguindo assim o corpo poltico da sociedade. Por outro lado, o poder poltico indispensvel para a emergncia de um corpo poltico, ao mesmo tempo que considerava o poder poltico emanando do povo e atribudo a um prncipe, pelo consentimento da comunidade ainda que, sendo o prncipe superior ao povo, estava contudo sujeito lei eterna e ao prprio pacto estabelecido com a comunidade, a qual conservaria sempre o direito de resistncia. Padre Antnio Vieira Constatao da brutalidade das aces dos portugueses nos territrios descobertos, mormente o genocdio dos ndios e a injustia cometida. O que pretende a existncia de um Imprio, ( o Quinto) de Cristo, no sujeito s mudanas e inconstncias do tempo e que tambm no recebe a grandeza e majestade da pompa e aparato.2 1.6. Iluminismo: Antecedentes do liberalismo O perodo do pensamento europeu caracterizado pela nfase colocada na experincia e na razo, pela desconfiana em relao religio e s autoridades tradicionais e pela emergncia gradual do ideal das sociedades liberais, seculares e democrticas. Tambm designado como o Sculo das Luzes o movimento que antecede a Revoluo Francesa. Foi empregado pelos prprios escritores do perodo, convencidos de que emergiam de sculos de obscurantismo e ignorncia para uma nova era, iluminada pela razo, a cincia e o respeito humanidade. As novas descobertas da cincia, a teoria da gravitao universal de Isaac Newton e o esprito de relativismo cultural fomentado pela explorao do mundo ainda no conhecido foram tambm uma base importante. Entre os precursores do sculo XVII, destacam-se os grandes racionalistas, como Ren Descartes e Baruch Spinoza, e os filsofos polticos Thomas Hobbes e John Locke. igualmente marcante na poca a permanente f no poder da razo humana. Chegou-se a declarar que, mediante o uso judicioso da razo, seria possvel um progresso sem limites. Porm, mais que um conjunto de ideias estabelecidas, o2

Cfr. PADRE ANTNIO VIEIRA, Histria do Futuro, edio de Maria Leonor Carvalho Buescu, Lisboa,

IN/CM, 2. Edio, 1992

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Iluminismo representava uma atitude, uma maneira de pensar. De acordo com Immanuel Kant, o lema deveria ser "atrever-se a conhecer". Surge o desejo de reexaminar e pr em questo as ideias e os valores recebidos, com enfoques bem diferentes, da as incoerncias e contradies entre os escritos de seus pensadores. A doutrina da Igreja foi duramente atacada, embora a maioria dos pensadores no renunciassem totalmente a ela. A Frana teve destacado desenvolvimento em tais idias e, entre os seus pensadores mais importantes, figuram Voltaire, Charles de Montesquieu, Denis Diderot e Jean-Jacques Rousseau. Outros expoentes do movimento foram: Kant, na Alemanha; David Hume, na Esccia; Cesare Beccaria, na Itlia; e Benjamin Franklin e Thomas Jefferson, nas colnias britnicas. A experimentao cientfica e os escritos filosficos entraram em moda nos crculos aristocrticos, surgindo assim o chamado despotismo ilustrado. Entre seus representantes mais clebres, encontram-se os reis Frederico II da Prssia, Catarina II a Grande da Rssia, Jos II da ustria e Carlos III da Espanha. O Sculo das Luzes terminou com a Revoluo Francesa de 1789, pois, quando esta veio a incorporar inmeras ideias dos iluministas em suas etapas mais difceis, elas ficaram desacreditadas aos olhos de muitos europeus contemporneos. O Iluminismo marcou um momento decisivo para o declnio da Igreja e o crescimento do secularismo actual, assim como serviu de modelo para o liberalismo poltico e econmico e para a reforma humanista do mundo ocidental no sculo XIX. Um dos autores fundamentais do iluminismo , como se referiu, Imamanuel Kant, tendo como pressupostos a revoluo francesa, adoptando uma perspectiva polticofilosfica assente no entendimento de que o homem no uma coisa, antes um fim em si mesmo e sujeito de todos os fins, dotado de uma dignidade que exclui qualquer preo. Encontra ainda na autonomia da vontade, enquanto expresso de liberdade humana, o princpio supremo da moralidade. Partindo da centralidade no mbito da sociedade civil dos princpios da liberdade de cada membro da sociedade, da igualdade entre os respectivos e da independncia de cada um deles, encontra nestes trs princpios o estatuto jurdico nuclear dos cidados relativamente ao Estado e deste modo as bases fundadoras de uma constituio republicana, enquanto instrumento tendente a alcanar a paz perptua.

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AULA N. 3 2. A pessoa humana e o contributo poltico liberal 2.1. A herana ideolgica do liberalismo a. Os contratualistas Elemento essencial da estrutura da doutrina contratualista o estado de natureza, que seria justamente aquela condio da qual o homem teria sado, ao associar-se, mediante um pacto, com os homens. Normalmente apresentado como hiptese lgica negativa sobre como seria o homem fora do contexto social e poltico, para poder assentar as premissas do fundamento racional do poder. Trata-se, portanto, de contrapor, como dois momentos distintos ou como dois modelos antitticos de representao das relaes humanas, o conceito de estado natural e o conceito de estado civil. Quanto ao segundo problema, se o estado de natureza pacfico ou hostil, os autores diverge quanto avaliao da situao do homem antes da instaurao do estado civil. Podemos basicamente indicar trs abordagens: i) Hostil, em guerra efetiva, segundo Hobbes, para quem a vida do homem no estado de natureza ''(...) solitria, msera, repugnante, brutal, breve"., dado que nesse estado "o domnio das paixes, a guerra, o medo, a pobreza, a desdia, o isolamento, a barbrie , a ignorncia e a bestialidade" . so os elementos que governam a relao entre os indivduos (O homem o lobo do homem); De Bodin, toma a caracterizao do poder soberano como absoluto. Mas, vai mais longe. Diz de imediato, que se no fosse absoluto no seria soberano. Soberania e carcter absoluto so unum et idem. Efectivamente, no reconhece desde logo, qualquer limite ao poder soberano, nem segue as leis naturais ou divinas. Entende deste modo, que estas no sendo como as leis positivas porque no so aplicadas com a fora de um poder comum, no so externamente obrigatrias, mas antes, o so ao nvel da conscincia. Toda a sua teoria, assenta numa concepo prpria do homem, que se prende no entanto, com a evoluo que se verifica na poca. Esta assim caracterizada pela introduo da quantificao como metodologia de anlise, pelo desenvolvimento das cincias naturais, pela simplificao das frmulas, e exactido das leis. Em face disto, Hobbes, vai entender o homem como um simples egosta, movido apenas pelo seu intuito de conservao individual, pelo que o Estado primitivo, no havia sido, como o afirmaram os autores clssicos fruto da harmonia, mas antes, da luta de todos contra todos. com o decorrer do tempo, que os homens concluem, que a cooperao social

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tambm melhor para os indivduos do que a anarquia individual. Impuseram-se assim, leis e governo. No desenvolvimento da sua teorizao acerca do homem, entende-o como ser antisocial, pelo que a sociedade no mais do que do que uma fico, e que apenas existem os indivduos. Devido sua natureza anti-social e egosmo, s por meio da fora que se mantm juntos. Deste modo, o Estado forma-se como resultado de um pacto, estabelecido entre o homem, uma conveno social, assegurada pelo poder, e baseada numa alienao de direitos subjectivos. O poder s garante o status quo, atravs da aquisio de mais poder, s permanecendo estvel se ampliado constantemente atravs da acumulao. Resulta daqui, que dadas as caractersticas individuais, o poder governamental tem de ser absoluto, pois que, de outro modo, no lhe seria possvel reprimir tais egosmos individuais. Assim, se os homens se submetem a um chefe, confiam-lhe todos os seus direitos polticos. Surge o "grande leviato, o Deus mortal, que tudo domina, porque de outro modo, no pode garantir a paz e a segurana".(3) Resulta assim, que o povo incapaz de se governar, pelo que o Estado encarna no soberano, este ento o Estado. Assim, a soberania consiste no facto de cada um dos cidados transferir todas as suas foras e poder para aquele indivduo ou aquela assembleia. uma transmisso que no significa mais do que a renncia ao direito prprio de opor resistncia. Deste modo, o Estado hobbesiano, tem uma perspectiva de existncia, mais no sentido de regular o egosmo humano, do que no sentido da sua dominao. um monstro para a paz, para a estabilidade. Nasce dos indivduos para conter os excessos dos indivduos. Nasce da guerra, do bellum omnium contra omnes e do homo hominis lupum, para estabelecer a paz e a segurana. Este modelo, vai servir tanto a Cromwell no seu absolutismo republicano, como a Carlos II e ao seu absolutismo monrquico, o que demonstra bem a sua adaptabilidade aos totalitarismos, pese embora o facto, de estes serem de cariz diferente dos totalitarismos contemporneos, ao exercerem apenas uma opresso externa, deixando intacta a vida interior, a propriedade e a vida humana, reconhecidamente dois direitos inalienveis do ser humano. ii) Pacfico, mas em guerra potencial, para Locke, que considera que em princpio o estado de natureza pode ser pacfico, mas que nele os direitos dos homens so sempre precrios e a harmonia tende a perder-se, se nenhum poder superior assistir e regulamentar esses direitos;

(3 ) Theimer, Walther; ob. cit. p. 67

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Locke parte da perspectiva inicial da considerao de existncia de um Estado de Natureza, onde o homem seria inicialmente bom. Este Estado de Natureza, caracterizarse-ia por trs elementos fundamentais, a saber: elemento racional, natural e um estdio pr-legal. Assim, o elemento racional era determinado pela liberdade e pela igualdade, o elemento natural, determinado pela existncia de um quadro de direitos derivados da lei natural (propriedade, liberdade e direito vida) e por fim, a existncia de um estdio pr legal, onde a justia privada, consubstanciada no direito de punir se faz sentir. em face disto que o estado de natureza seria um "estado de perfeita liberdade para ordenar as suas aces e dispor dos seus bens e pessoas como querem, nos limites da lei da Natureza, sem pedir autorizao a ningum nem depender da vontade de nenhum outro homem".4 Isto significa ento que para ele o estado de natureza seria um estado de paz e cooperao sob o signo da razo. Contudo, embora o estado de natureza, seja, a contrrio do que pensava Hobbes, caracterizado pela plena igualdade e liberdade, faltava-lhe no entanto a possibilidade de determinao de leis iguais para todos, pois que, em face da existncia de um direito de usufruir da justia privada, cada um seria juiz em causa prpria o que poderia, como evidente, levar a que por fraqueza ou por interesses prprios, a preponderar os interesses em relao justia. Deste modo, os homens teriam abandonado o estado de natureza, de modo a permitir que se criassem condies para a existncia de juizes capazes de regular os conflitos. Criaria assim a sociedade civil, atravs de um contrato originrio, mas de modo livre e de mtuo consenso. A sociedade civil criada por uma deciso livre de homens livres. O governo absoluto nunca pode, pois, ser legitimo. Esta criao da sociedade civil, vai originar um Estado de Direito. No fundamental, tal contrato baseia-se na liberdade, pelo que o homem ao abandonar o estado de natureza, no pretende entregar-se totalmente ao Estado, pois que se tal se verificasse, seria pior o estado social do que o estado de natureza. A aceitao de que no estado de natureza, teriam existido um conjunto de direitos naturais, que seriam inalienveis no Estado, dos quais se destacam o direito vida, liberdade, ao castigo das ofensas e o direito propriedade leva-o a formular uma teoria da diviso de poderes. Com efeito, entende que no estado natural o homem teria dois poderes, de que se havia despojado para a criao do Estado: o primeiro, que lhe permitia fazer tudo o que entendesse por necessrio para a sua conservao e para a conservao dos outros, e o segundo que lhe permitia punir os crimes cometidos contra a lei natural. O primeiro passa para a sociedade onde regulado pelas suas leis, enquanto o segundo, outorgado no sentido de apoiar e fortalecer o poder executivo da sociedade civil. Assim, o Estado, entendido como o herdeiro dos4

LOCKE, Two Treatises on civil government, London, Cambridge University Press, Student Edition, 1988, p. 118

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homens livres do Estado de Natureza, adquire dois poderes: o legislativo e o executivo. O primeiro regularia o modo como deveriam ser reguladas as foras do Estado para a conservao da sociedade, pelo que seria o poder supremo, enquanto o segundo asseguraria a execuo das leis no plano interno, sendo assim, um poder subordinado. No que respeita ao plano externo, deveria funcionar um terceiro poder, que designa de poder confederativo. A passagem deste estado natural, para o estado social, feito atravs da introduo de uma sano eficaz para a manuteno dos direitos naturais, pelo que entende que o poder poltico, apenas uma delegao de poderes parcial dos indivduos em certos homens Finalmente, torna-se necessrio verificar, se os poderes assim desenhados, se mantm nos limites a que devem subordinar-se. E tal verificao deve competir ao povo, de quem resultam, e de quem foram conferidos. Admite, deste modo o direito de insurreio, a que ele chama o direito de apelar para o Cu. iii) Pacfico, segundo Rousseau, para quem o estado de natureza um estado pacfico e harmnico, onde no existe conflito ou escassez, sendo o homem bom por natureza (mito do bom selvagem). Resulta daqui, a considerao de que o homem, originariamente teria nascido livre, pelo que seria "bom" por natureza. Tal pressuposto, permitiria a criao do mito do "bom selvagem", que contrariava a tese hobbesiana do "homem lobo do homem". Com efeito, a partir do momento em que por fora da vida de relao, o homem ascende sociedade civil, perde parte dessa liberdade, passando a viver no regime artificial de desigualdades, onde os homens estariam submetidos a uma mtua dependncia. Este novo Estado, por conseguinte, contrrio ao Estado Natural. Tal como refere "o homem nasceu livre e em toda a parte vive aprisionado".5 Entende que a mais antiga e mais natural associao humana, a famlia, que determinada por uma liberdade comum, que nasce a partir do momento em que cessam os vnculos de obedincia dos pais para os filhos e vice-versa. Tal liberdade, sendo consequncia da natureza do homem, a nica a ser verdadeira. assim, que descreve o estado pr-social da humanidade, como um estado de liberdade e felicidade, em que o homem alm de livre e feliz, era inocente e puro. Mas, sendo assim, o seu estado de natureza, porque motivos a teria abandonado, trocando-o pela vida em sociedade? Por uma evoluo desastrosa, desencadeada por um acaso funesto: "os homens descobriram a metalurgia e a agricultura. Estas duas artes5

JEAN JACQUES ROUSSEAU, O Contrato Social, Lisboa, Pub. Europa Amrica, 19745, p. 11

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originaram a guerra entre eles porque deram lugar propriedade, a desigualdade entre ricos e pobres e as correspondentes paixes, rivalidades e lutas. Para escapar destruio total os homens tiveram de associar-se em vez de se combaterem".6 Daqui decorre a necessidade de preservar a sua liberdade, existente no estado de natureza. E para tanto, e uma vez que no possvel o retorno ao estado natural, prope como recurso obteno da liberdade, a constituio de um contrato social a partir do qual seria possvel no ser destruda a liberdade de cada um. assim que, o problema se resolve com o contrato social. Deste modo o fundamento do Estado seria o contrato social.7 por conseguinte neste momento que nasce a sociedade poltica. O essencial do contrato , deste modo, a formao da vontade geral, a quem fica a pertencer a autoridade sobre todos os participantes do contrato, ou seja, para todos os indivduos quem abandonando o estado de natureza, tenham ingressado na sociedade. Contudo, esta vontade geral, no a vontade de todos. Efectivamente, Rousseau distingue-as claramente. A vontade geral "no olha a outra coisa que no seja o bem comum", enquanto a vontade de todos "olha ao interesse privado e no mais do que uma soma de vontades particulares".8 O Estado assim, um ser abstracto e colectivo que actua pelas leis de outro modo. Quanto ao terceiro problema, os contratualistas, concordam em considerar que no h uma tendncia natural para a vida em sociedade, mas to-somente a necessidade dessa vida, decorrente da impossibilidade de cada um atender sozinho aos seus prprios interesses, razo pela qual a vida em comum nas suas mltiplas associaes se d em torno do indivduo e no da colectividade. Os contratualistas querem legitimar o Estado de sociedade (a civilizao) ou modific-lo com base nos princpios racionais onde o poder no assenta no consenso, opondo-se s vises regressivas de uma idade de ouro baseada na harmonia e na abundncia que seria anterior ao surgimento da famlia, da propriedade privada e do6 9

e no sabe agir

id. ibidem

(7 ) O contrato reduzir-se-ia aos seguintes termos " cada um de ns pe em comum a sua pessoa e todo o seu poder sobre a suprema direco da vontade geral; e recebemos colectivamente cada membro como parte indivisvel do todo. JEAN JACQUES ROUSSEAU, Contrato..., cit..., p. 22 (8 ) JEAN JACQUES ROUSSEAU op. cit. p. 33 (9 ) A lei por ele entendida como uma declarao pblica e solene da vontade geral sobre um objecto de interesse comum, sendo geral, tal como a vontade de onde provm. Cfr, Rousseau, J. J.; op. cit. pp. 40 e ss

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Estado, dado que vem no contrato a nica forma de progresso: mesmo Rousseau, que tende a considerar como degenerativa a sociedade de seu tempo em relao felicidade inicial do Estado de natureza, considera que o pacto social inevitavelmente necessrio aps ter surgido a linguagem, a famlia e a propriedade privada De uma forma geral, o Estado justifica-se em nome da tutela das pessoas, da propriedade, da liberdade e defesa e segurana dos povos. So, alis, estes os princpios dogmticos da Revoluo Francesa e constitutivos da herana ideolgica liberal (liberdade, propriedade e segurana). Por seu lado, o Estado garante estes mesmos valores, atravs da separao dos poderes a qual ao mesmo tempo um mecanismo de limitao dos poderes do estado. A separao de poderes conduz por seu lado a trs grandes correntes: i) Diviso em trs funes tpicas (legislativo, executivo e judicial) que se encontram em p de igualdade, havendo entre eles mltiplas interferncias (sistema de pesos e contrapesos), cujo principal terico Montesquieu e est ligado ao constitucionalismo norte-americano e ingls. Esta a corrente moderada. Charles-Louis de Secondant, Baro de Brde e Montesquieu, nasceu no solar de Brde, perto de Bordus, tem na sua obra o esprito das leis, o seu ttulo principal e de maior importncia para a filosofia e cincia poltica, embora, as causas da grandeza e decadncia de Roma, tenha grande importncia, mas apenas um dos captulos publicados, da primeira obra citada. A sua obra considerada por Raymond Aron, como a grande precursora da sociologia, sendo que para ele, ser ainda mais, um doutrinador da sociologia10. No campo das ideias polticas, a sua descrio sobre o Estado parte tanto de uma especial concepo de liberdade poltica como de uma viso no especulativa de leis. Distingue assim, a liberdade poltica, da liberdade filosfica, entendendo pela primeira o poder fazer-se o que se deve querer, o que significa que num estado onde existem leis e liberdade, no pode consistir seno num poder natural de se fazer ou no se fazer o que se quer que tenha em mente, sendo que a segunda, consistiria no exerccio da vontade. Contudo, preciso saber-se o que a independncia e a liberdade, para se poder precisar a primeira das distines, pelo que esta ser, o direito de fazer tudo o que as leis permitem. (10) Como refere, " ele geralmente considerado um precursor da sociologia. (...) Mas se o socilogo se define por uma inteno especfica, conhecer cientificamente o social enquanto tal, Montesquieu ento, um dos doutrinadores da sociologia". Aron, Raymond; As etapas do pensamento sociolgico, Lisboa, Public. D. Quixote, 1991, p. 31

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assim que define as leis como, relaes necessrias que derivam da natureza das coisas, mas no apenas de um modo redutor, antes atravs de uma natureza histrica, ligada aos costumes, religio, aos valores, ou seja, as leis seriam snteses da vida histrica de um povo, e por conseguinte, elementos que ligam o social. Partindo da anlise da Constituio inglesa, Montesquieu, procura estabelecer uma diviso de poderes, a partir da qual os governos poderiam e deveriam governar. O seu princpio o de que os poderes na sociedade deveriam ser presididos por uma ideia de equilbrio e por uma ideia de separao. A presuno ser a de que, como refere Aron, o "Estado livre quando o poder trava o poder".11 Deste modo, distingue assim dois poderes: o executivo e o legislativo. O primeiro exigindo rapidez de aco e de deciso, deve ser exercido apenas por um, exercendo ao mesmo tempo, direito de veto sobre as aces do poder legislativo. O segundo, deve semelhana do que constata na Inglaterra, ser exercido por duas assembleias, a Cmara dos Lordes, representativa da Nobreza, e a Cmara dos Comuns, representando o povo. Existe em seu entender, um terceiro poder: o de julgar. Este poder judicial, deveria ter por funo principal ser o intrprete das leis, ou seja, deve promover a execuo das leis, mas a sua iniciativa e personalidade deve ser o mais reduzida possvel, no sentido de evitar eventuais abusos. As relaes entre os poderes so tambm definidas por Montesquieu. Assim, o poder legislativo deve verificar a medida em que houve uma correcta aplicao das leis. O voto do oramento deve ser anual, por permitir uma condio de liberdade. em funo de tudo isto, que, para Montesquieu a ideia, no como em Locke, travar decisivamente o poder, sempre que ele exorbita as suas competncias, mas antes, equilibr-lo pela condio da liberdade poltica, traduzida num equilbrio de foras sociais. Desta diviso de poderes, constri, uma teoria da governao, a partir da considerao que os regimes podem ser classificados quanto natureza e quanto ao princpio de governo. A "natureza do governo o que o faz ser o que . O princpio do governo o sentimento que deve animar os homens no interior de um tipo de governo, para que este funcione harmoniosamente".12 Distingue trs formas de governo, em funo daqueles princpios. A Republica, a Monarquia e o Despotismo. A Republica divide-se, por sua vez, em Democracia e Aristocracia. Os governos republicanos seriam orientados pelo princpio da Virtude, entendida como o respeito pelas leis e pela dedicao dos indivduos colectividade, os

(11) Aron, Raymond; As etapas do pensamento..., cit..., p. 43 (12) id. p. 35

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monrquicos pelo da Honra, caracterizada como o respeito que cada um deve sua categoria, e os despticos pelo Medo, que seria o sentimento elementar, como que infrapoltico. Quanto natureza do governo ela determinada pelo nmero dos que exercem o poder. Assim, a Repblica seria o governo em que todo o povo ou parte do povo exerce o poder; A Monarquia, aquele em que apenas um governa, mas por meio de leis fixas e estveis; O Despotismo, um s exerce o poder, mas sem lei e sem regra, apenas ao sabor dos seus caprichos. A totalidade do povo ou parte do povo, como caracterizadora dos governos republicanos, tem como fim permitir a distino das suas duas formas de governo: a democracia e a aristocracia. Esta classificao das formas de governo bastante diversa das definies clssicas, mormente da aristotlica, desde logo, por considerar, que tanto a democracia como a aristocracia provm de um mesmo tipo base de regime, o republicano, distinguindo este da monarquia. ii) No reconhecimento da igualdade entre todos os poderes, destacando-se em grau de superioridade o poder legislativo, estando integrados nesta teoria ainda que com concepes tericas diferentes, Locke e Rousseau. a corrente designada de democrata radical e a que subjacente R. Francesa; iii) Na sequncia da perspectiva de Kant e defendida por Hegel, reconhece apenas um poder como fonte de legitimidade de todos os outros poderes o poder do monarca (tese da legitimidade monrquica). A existncia da constituio depende de um acto de graa do prprio rei. Deu azo Constituio alem do sculo XIX, constituio austraca e a francesa do mesmo sculo (nesta destaca-se como terico Benjamin Constant, tendo este mesmo autor influenciado a constituio portuguesa a Carta Constitucional de 1826). Exprime a herana pr-liberal e o princpio da legitimidade monrquica. Immanuel Kant o filsofo do Iluminismo e da Revoluo Francesa. Em seu entender o Homem deve ser considerado como um fim em si mesmo e sujeito de todos os fins dotado de dignidade sem preo. Apresenta a autonomia da vontade como expresso da liberdade humana e o princpio supremo da moralidade. A sociedade civil assentaria em trs princpios basilares Liberdade, Igualdade e Independncia, as quais so a base de uma Constituio Republicana para alcanar a paz perptua. Esta Constituio Republicana implicaria o princpio poltico da separao entre o poder legislativo e executivo impedindo-se que a execuo das leis seja feita por quem as fez. Defende a existncia de trs poderes no interior de cada Estado, entendidos como uma trindade:

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1. Poder soberano Legislador e manifestado atravs da lei (superior); 2. Poder executivo Governante e funcionalmente dependente do poder legislativo (inferior); 3. Poder Judicial Pessoa do juiz e expresso do Direito (extraco de concluso). A separao de poderes garante que o Estado se configura dentro das leis da liberdade. Influenciado directamente por Rousseau, considera o poder legislativo como a verdadeira expresso de soberania vontade colectiva do povo. Como se apura a vontade colectiva do povo? a vontade concordante e unida de todos. No entanto, no a regra da unanimidade que preconiza pois no possvel esperar a unanimidade de um povo inteiro contentando-se com a vontade expressa pela maioria. na harmonizao dos diversos votos atravs de uma regra da maioria que se apura a vontade colectiva. Por outro lado, a lei surge como expresso da soberania do povo e da soberania da razo e o principio maioritrio surge como pedra estrutural da definio da vontade do poder legislativo, gozando de uma verdadeira autoridade natural para constranger o seu acatamento, sendo proibido algum opor-se vontade do legislador. Condena assim a desobedincia ou resistncia lei considerando-as como o crime mais grave e mais punvel porque arruina o seu prprio fundamento. Esta perspectiva traduz-se na considerao de um Estado Jurdico, revelando a soberania absoluta do poder legislativo e no qual surge investido de uma pura funo formal de estabelecer o Direito, que ao mesmo tempo a sua justificao e limite. Enquanto Rousseau divinizou a vontade geral, Kant diviniza a obedincia lei e radicaliza a supremacia do poder legislativo. O equilbrio interno dos poderes do Estado conduz na lgica kantiana a um modelo de poder executivo subordinado juridicamente e controlado politicamente pelo legislativo. Para alm do princpio da separao de poderes como forma de limitao do poder, tambm a prpria Constituio em sentido formal assume essa funo. Esta o acto elaborado com inteno especfica de definir o ordenamento do Estado e as suas relaes com as pessoas. Dois modelos fundamentais: i) escrita Europa Continental e ii) no escrita ou consuetudinria inglesa. O texto constitucional pode configurar trs hipteses: i) Produto da vontade popular A Constituio impe-se ao monarca ou dispensa o monarca Constituio de 1822 Corrente democrtica.

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ii) Constituio de base monrquica A Constituio elaborada pelo rei e este a fonte de todos os poderes. Carta Constitucional de 1826 iii) Modelo compromissrio Neste caso, juntam-se as duas legitimidades, em que o texto elaborado pelo Parlamento mas s entra em vigor se o rei concordar Constituio de 1838 e reforma constitucional francesa (1831). b. Os contributos do liberalismo A filosofia poltica liberal parte da existncia de um Estado Mnimo, pelo qual a iniciativa econmica deve estar a cargo dos agentes econmicos, enquanto que ao Estado fica acometida a garantia dos direitos dos cidados, a qual ser tanto maior quanto menor a interveno do Estado. Esta interveno baseada essencialmente na Lei, a qual tem relevncia na expresso da vontade geral ideia de contrato social -.O instrumento de garantia da limitao do poder (executivo sobretudo) a lei. uma das grandes influncias do liberalismo. O poder s actua sobre a esfera da sociedade civil se existir uma lei que o permita. O Estado liberal tem ainda duas grandes instituies valorizadoras da pessoa humana: 1. Igualdade perante a lei, pela qual todos os cidados tm o mesmo tratamento em face da lei, qualquer que seja, a sua raa, religio ou status social; 2. O elenco de direitos fundamentais nas constituies Declaraes de Direitos os quais so reconhecidos s pessoas de forma natural e que constituem limites ao poder. 2.2. A crtica ideolgica do liberalismo O modelo liberal sofreu de imediato fortes crticas provenientes de dois sectores distintos: Dos movimentos socialistas (marxismo, anarquismo etc.) e da designada Doutrina Social da Igreja. 1. Marxismo Para esta corrente o Estado liberal era o Estado representante de uma classe. Era um Estado burgus, expressando por via disso a ideologia burguesa e evidenciando apenas a igualdade da classe a que serve. Assim contesta a posio do Estado e da classe dominante do modelo econmico. A crtica serve ento de base para a justificao do modelo econmico alternativo, o dirigismo do Estado, sendo este apenas o representante das classes trabalhadoras. 2. Doutrina Social da Igreja

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A interveno social da Igreja pode, como vimos, ser secularmente considerada, embora s a partir do sculo XIX ela tenha assumido uma maior evidncia, sobretudo pela aco do Papa Leo XIII. Apresentando uma voz crtica em relao ao estado da sociedade do seu tempo, mormente no tocante s desigualdades sociais e aos grandes desnivelamentos que econmica e socialmente se faziam sentir, pugnando pelo regresso ordem antiga, principalmente no que se refere s Corporaes. Efectivamente, a Encclica Rerum Novarum vem pugnar pelo empenhamento da Igreja nos problemas sociais, que considerava de urgente resoluo, sob pena de no mais ser possvel controlar a sociedade, e pela crtica s doutrinas socialistas, que acusa de instigadoras do dio dos pobres contra os ricos, no resolvendo de forma clara a situao. Promovendo uma anlise exaustiva dos factos que haviam dado origem grave situao social, o Papa Leo XIII, coloca o acento tnico no conflito social iniciado pelo incremento da indstria e a evoluo das profisses por novos caminhos, a alterao das relaes entre operrios e patres, a abundncia da riqueza nas mos de um pequeno nmero e a indigncia da multido, a maior confiana dos operrios em si prprios assim como a sua coeso na adversidade, sem falar na corrupo dos costumes, tiveram como efeito a deflagrao dum conflito.13. Todavia, este conflito no fcil de resolver, dados os contornos de que se reveste, alm de que na sociedade existem homens truculentos e astuciosos (que) procuram desvirtuar-lhe o sentido e aproveitam-na para excitar as multides e fomentar desordens.14. Esta crtica implcita aos revolucionrios, nomeadamente aos socialistas e marxistas, vem delimitar a sua esfera de aco no campo da sua interveno. Significa que o Papa no estava disposto a calar durante mais tempo as injustias de que a maioria da populao europeia, principalmente, alvo, mas tambm no aceita que o problema se resolva pela via revolucionria, que alm do mais ia de encontro s concepes religiosas. Da que faa um apelo para a implantao da organizao que julga permitir resolver se no na totalidade, pelo menos grande parte dos problemas sociais: as Corporaes. Assim, refere que o sculo passado destruiu, sem as substituir por coisa alguma, as Corporaes antigas, que eram para elas (classes inferiores) uma proteco; os princpios e o sentimento religioso desapareceram das leis e das instituies pblicas e assim, pouco a pouco, os trabalhadores isolados e sem defesa tm-se visto, com o decorrer do tempo, entregues merc de senhores desumanos e cobia de uma concorrncia desenfreada.15

O capitalismo resultante da

teorizao liberal no , por conseguinte, esquecido nas crticas do Sumo Pontfice.

13 Rerum 14

Novarum, n.1

Id. Ibidem Id. Ibidem

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Declarando o direito natural como inerente pessoa humana, julga que a soluo socialista de supresso da propriedade privada no exequvel, porque o homem anterior ao Estado. Antes que ele pudesse formar-se j o homem tinha recebido da natureza o direito de viver e proteger a sua existncia (...) de modo que a propriedade particular plenamente conforme natureza.16

No mesmo sentido de Santo Toms de Aquino e da corrente crist de um modo geral, o direito natural desde logo consubstanciado na famlia a sociedade domstica, sociedade muito pequena certamente, mas real e anterior a toda a sociedade civil, qual desde logo ser forosamente necessrio atribuir certos direitos e certos deveres absolutamente independentes do Estado.17 Leo XIII procura perspectivar os factos, de modo global, propondo as suas solues para resoluo do problema social. Entendendo a impossibilidade da igualdade de facto na sociedade civil, no sentido tomista, uma vez que julga ser o contrrio, aquilo que resulta da condio humana, uma vez que entre os homens existem diferenas to grandes e profundas, ao nvel da inteligncia, do talento ou da habilidade, que no a permitem. Alm de que a desigualdade que pode ser aproveitada em beneficio de todos e no o contrrio. Defendendo um certo organicismo social, entende assim que a vida social requer um organismo muito variado e funes muito diversas, e o que leva os homens a partilharem estas funes , principalmente, a diferena de suas respectivas condies.18 Como resolver o problema social? Ento que direitos e deveres devem estabelecer-se na sociedade e no indivduo no sentido da soluo do conflito social? A Encclica Rerum Novarum preconiza que todos aqueles a quem a questo diz respeito, devem visar o mesmo fim e trabalhar de harmonia, cada um na sua esfera. 19 O Estado deve de imediato servir o interesse comum. Tal como S. Toms de Aquino, em funo daquele interesse que se obriga a prover justia distributiva que mais no do que procurar cuidar, de forma igual, todas as classes de cidados. Mais, entendendo que o bem comum essencialmente um bem moral, o Estado deve preocupar-se, como prioridade, em estabelecer a equidade, de modo que tem de atentar nos trabalhadores, distribuindo-lhes uma parte dos bens que eles proporcionam sociedade.

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Id., n. 6-7 Id., n. 9 Id. n. 13 Id., n. 22

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Por outro lado, de importncia crucial a manuteno da propriedade privada, preservar os direitos da comunidade e dos seus membros e evitar as greves, entendidas como desordens graves e atentatrias do interesse comum, promovendo a remoo das suas causas. Finalmente, os patres e os operrios devem contribuir de modo significativo para a resoluo do conflito. Tal contributo passa pela constituio das Corporaes. No entender de Leo XIII, a associao como fruto da propenso natural do homem, leva o Estado a aceitar esse pressuposto, no impedindo a associao do povo que o constitui, limitando-as, todavia, quelas cujos interesses no ponham em causa a prpria sociedade, uma vez que muitas delas so governadas por chefes ocultos e obedecem a uma orientao e que, depois de terem controlado todo o sector do trabalho, se h operrios que se recusam a entrar em seu seio, lhes fazem expiar a sua recusa pela misria.20 As organizaes associativas apresentariam assim um cariz de agrupamentos naturais, no sentido de que se conformam com as normas de direito natural e respondendo necessria e devida perfeio do homem. Assim sendo, as Corporaes deveriam ser destinadas a enquadrar a actividade individual e a torn-la mais feliz. A concepo social da Igreja vai, face a este conjunto de pressupostos, tornar-se num dos principais plos a partir dos quais a concepo corporativa se ir estabelecer e criar todo o seu corpo terico-prtico. A Encclica Rerum Novarum, em conjunto com a Quadragesimo Anno, vai, neste contexto, servir de baluarte Constituio de 1933 e a todos os seus princpios econmicos, sociais e polticos, como veremos adiante. Dando origem ao cristianismo social, a Rerum Novarum reconhece a legitimidade da propriedade privada e as vantagens econmicas da iniciativa individual21 afirmando, para tanto, que ambas devem ser realizadas tendo em vista os fins morais do homem, nomeadamente os deveres de caridade que cada um tem para com o seu semelhante (...) condena os abusos do individualismo (...) e as violncias das escolas socialista e anarquista, sindical reclamando um certo22

nmero

de

reformas

que

considera

mnimos

indispensveis de justia social.

Ainda vem reconhecer a necessidade da organizao

dos trabalhadores como forma de evitar os problemas decorrentes da

concorrncia assim como uma organizao de empresrios que, em negociao com aqueles, possam estabelecer as regras relativas ao trabalho e ao salrio.

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Id., n. 37 Costa Leite (Lumbrales), Joo Pinto da, Noes elementares de Economia Poltica..., op. cit., p. 193 Id. Ibidem

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Assim, a interveno do Estado justificar-se-ia apenas com uma natureza supletiva e apenas quando as organizaes privadas no tivessem condies de assegurar um mnimo de justia social. A pessoa humana no estava garantida, sendo que a ponte entre a sua dignidade no realizada pela mentalidade do Estado e das restantes entidades econmicas. Critica o formalismo do Estado liberal, ou seja, no basta que a lei afirme o princpio de que todos so iguais perante ela quando efectivamente o no so. Surge assim a questo da igualdade real por oposio igualdade formal. 2.3. O crepsculo totalitrio O Estado liberal evolui assim para o Estado Social de Direito e para o Totalitarismo quelas duas perspectivas O totalitarismo levanta desde logo um problema para a pessoa humana porquanto nega a centralidade da pessoa, instrumentalizando o indivduo em prol do Estado. A pessoa existe em funo dos objectivos que o Estado define, criando a desqualificao da pessoa humana. Que antecedentes do Totalitarismo? Podemos apontar quatro autores fundamentais: i) Plato Um dos primeiros autores a pensar o totalitarismo foi Plato. Na sua obra A Republica traa j as caractersticas do modelo totalitrio, concebendo um modelo de Estado assente nas seguintes ideias: a. O Estado tem a sua origem na satisfao das necessidades do homem, determinando que o seu governo seja confiado ao filsofo, enquanto detentor da sabedoria e da virtude; b. A autoridade de um chefe decorre da necessidade sentida pela comunidade, pelo que a autoridade suprema do Estado traduz um chamamento da colectividade; c. A prpria lei, nunca dever existir para garantir a liberdade dos cidados em

fazerem o que lhes agrada, mas para os levar a participar na fortificao do lao do Estado. d. A ideia de prevalncia do interesse da cidade ou do bem dos governados, enquanto pura realidade abstracta, pode mesmo justificar que aos governantes seja reconhecida, ao contrrio de todos os outros cidados, a possibilidade de mentir; e. Partindo da discriminao entre indivduos superiores e indivduos inferiores, confere ao Estado a faculdade de seleccionar os cidados;

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f. Instituio de um sistema de controlo estadual do nmero de casamentos e da prpria seleco dos nubentes, sujeitando a procriao a um regime de autorizao, alm de estipular que a mulher tem os filhos para a cidade ou para o Estado; g. O modelo de Estado idealizado por Plato assenta numa base racista: os filhos dos indivduos inferiores, tal como as crianas que tenham alguma deformidade, devam ser escondidas em lugar proibido e secreto; h. Ao Estado compete, promover a educao e a instruo da infncia e da juventude no sentido de se tornarem homens esclarecidos, sem prejuzo de, aos filhos dos indivduos inferiores no ser preciso dar educao. Em sntese a obra de Plato totalitarista e anti-humanista. ii) Nietzsche A obra de Nietzsche no mnimo polmica. Defensor de uma concepo poltica extremista, elogiando a crueldade e condenando a piedade, encerrando reflexes de cariz racista, cujos contributos para o totalitarismo so, entre outros: a. Filosofia anti-crist do ponto de vista dos valores: i. Cristianismo como o triunfo da moral dos escravos e dos fracos sobre a moral dos fortes ii. Acusa a religio crist de tomar o partido, daquilo que fraco iii. O cristianismo a favor dos casos falhados b. Crtica profunda ao papel histrico e social dos judeus c. Proclama a existncia de diferentes tipos de homem considerando a ideia de igualdade subjacente ao cristianismo e democracia. As concluses principais ao seu pensamento so as seguintes: i. Valorizao da guerra em detrimento da paz dando proteco ao forte e propondo o aniquilamento do fraco. ii. Modelo de sociedade sem qualquer referncia dignidade de todos os homens, assente na supremacia de uns em relao aos outros, encontrando na predestinao e na raa de uns o fundamento ltimo da legitimao dos governantes; iii. estabelece as premissas de um modelo de estado totalmente desvinculado de modelos morais de actuao, defendendo um poder forte, exercido pelos mais fortes. iii) Hegel

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Coube a Hegel a formulao de uma concepo transpersonalista dos fins do Estado que se ope ao personalismo ou humanismo. Em seu entender, o Estado procura preservar a universalidade, elevando-se acima dos interesses corporativos e da sociedade civil e integrando em si os interesses particulares e os interesses colectivos. Por outro lado, partindo do entendimento do Estado como expresso da ntima unidade entre o universal e o individual, afirma que o indivduo apenas pode realizar a sua liberdade como membro do Estado, sendo a que a liberdade obtm o seu valor supremo. O Estado representa a plena realizao da liberdade dos indivduos. Mais: apenas como membro do Estado que o indivduo tem objectividade, verdade e moralidade. Hegel elevando o estado a valor supremo, procede sua divinizao. Podem assim encontrar-se trs ideias nucleares subjacentes formulao conceptual da ideia de Estado totalitrio: i. O Estado uma instituio forte, absoluta, vocacionada para a prossecuo da universalidade de fins; ii. A liberdade apenas se compreende no mbito do Estado, surgindo este como a nica expresso da vontade pblica; iii. Existncia de uma clara subordinao do indivduo ao Estado, assumindo-se este como senhor dos destinos e dos direitos daquele numa clara viso transpersonalista. iv) Hobbes Pode ser considerado como uma das principais fontes do totalitarismo do sculo XIX, patindo de uma viso pessimista sobre a natureza humana, encontrando no Estado, a soluo para a paz e o bem comum de uma colectividade que vivendo no seu estado de natureza, se destruiria. O Estado seria assim a nica salvaguarda do indivduo. A transferncia de todo o poder e toda a fora de cada homem para o soberano por via do pacto ou contrato que determina que este passe a representar todos os demais significa que a vontade destes se submete vontade daqueles, passando a existir, uma unidade de todos e de cada homem numa nica entidade: o Estado. O Estado de Hobbes encontra no terror ou no medo que inspira a aplicao aos sbditos do castigo decorrente de qualquer violao do pacto a principal fonte da sua autoridade, determinando a conformao da vontade de todos eles em obedecer: a desobedincia dos sbditos o maior inconveniente que se pode colocar a um governo. So quatro os principais totalitarismo: elementos reveladores da influncia de Hobbes no

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i. So razes de segurana que justificam o Estado, sendo o terror e o temor que aliceram uma obedincia ilimitada por parte dos sbditos; ii. O Estado ilimitado no seu poder, seja por recusar qualquer ideia de separao de poderes no interior do prprio Estado, seja por se revelar interventor na vida dos sbditos e da sociedade, transformando-se num monstro administrativo; iii. O Estado detm o monoplio do exerccio do poder legislativo e fazendo da vontade do soberano legislador o nico critrio de justia das leis civis; iv. A amplitude intervencionista do Estado exige uma total rendio do indivduo ao Estado, criando-lhe mesmo o dever de no impedir a aco do soberano. Todavia, ainda que contenha muitos dos principais elementos do totalitarismo, Hobbes no pode ser considerado o fundador do totalitarismo, porquanto a sua teorizao ara alm do mais, contraditria, afirmando tambm alguns limites ao Estado, nomeadamente, face a Deus, face capacidade de proteco do soberano e a existncia de certos direitos alienveis do indivduo. Este conjunto de teorias conduziram a que no incio do sculo XX se desenvolvesse um forte movimento de contestao ao liberalismo, assente nos seguintes pressupostos: 1. Combate ao Parlamento e ao modelo de democracia representativa 2. Combate neutralidade ou absteno do Estado dirigismo do Estado. 3. Marginalizao e desvalorizao da pessoa humana perante o Estado. A pessoa humana passa a considerar-se como um instrumento do Estado. Este movimento de contestao ao modelo liberal, vir-se-ia a expressar atravs de quatro modelos poltico-ideolgicos fundamentais, a saber: 1. Sovietismo 2. Fascismo 3. Nazismo 4. Maoismo Estas experincias levantam uma interrogao fundamental. Ser que a evoluo da histria feita de modo progressivo na valorizao da pessoa humana? Ou feita de avanos e recuos? Nada est garantido. Casos h em que so evidentes os retrocessos, como exemplo a Revoluo Islmica. 3. Pessoa humana e Estado social de Direito 3.1. Centralidade dos discursos constitucionais e internacionais

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No perodo subsequente h II Guerra Mundial evidencia-se um movimento de aprofundamento das instituies liberais, atravs do desenvolvimento do designado Estado Social de Direito. Neste existe a ideia de que centralidade est nas pessoas, mas no faz esquecer o papel do Estado que tem ao mesmo tempo de garantir os direitos de matriz liberal e de promover a criao de um novo conjunto de direitos, os direitos sociais. Estes concretizam-se nas prestaes solicitadas ao Estado e que ele obrigado a prestar. So exemplo, o direito educao, o direito sade, o direito ao trabalho, segurana social. um Estado com preocupaes e que defende a igualdade real de todas as pessoas, discriminando-as se necessrio, positivamente. O modelo econmico o de uma economia social de mercado o caso da Constituio Portuguesa de 1976. No essencial, a ideia central do Estado Social de Direito, a de que a dignidade humana exige qualidade de vida. Este modelo social surge com a Constituio de Weimar (1919) ainda que dois anos antes, na Constituio Mexicana j tenha tido uma primeira expresso. Em Portugal, a Constituio de 1822 j aflora a questo com a introduo do que pode designar-se de pr-histria dos direitos sociais (direito de assistncia e instruo pblica). 3.2. Paradoxos da modernidade: sculo XX a idade dos direitos ou dos contradireitos O sculo XX caracterizado pela grande amplitude de declaraes de direitos nacionais e internacionais e pelas expresses constitucionais de direitos fundamentais. Todavia, tambm foi o sculo XX quem assistiu s grandes violaes de direitos (Holocausto, Revoluo sovitica, genocdios, etc.

O sculo XX foi o sculo dos direitos ou dos contra-direitos?

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4. AULA O Estado de Direito por definio um Estado de direitos fundamentais, baseado no respeito pela dignidade da pessoa humana e ao servio da inviolabilidade dessa mesma dignidade inerente a cada pessoa individual e concreta. Esta situao pode encontrar-se no Artigo 2. da Constituio da Repblica Portuguesa A Repblica Portuguesa um Estado de direito democrtico, baseado na soberania popular, no pluralismo de expresso e organizao poltica democrticas, no respeito e na garantia de efectivao dos direitos e liberdades fundamentais e na separao e interdependncia de poderes, visando a realizao da democracia econmica, social e cultural e o aprofundamento da democracia participativa. Resulta, daqui a caracterstica da Constituio portuguesa consagrar um Estado empenhado na garantia dos direitos fundamentais. Todavia, esta perspectiva nos tempos que vo correndo, tem evidenciando uma proliferao de direitos de direitos chamados fundamentais e ao mesmo tempo dando azo sua internacionalizao, que levanta algumas questes nomeadamente a de saber at que ponto o Estado de direitos fundamentais uma realidade adquirida e irreversvel nos regimes democrticos? A resposta a esta questo deve analisar-se em funo de trs questes: 3.3. Esvaziamento do Estado de direitos fundamentais Verifica-se hoje o culminar de um progressivo alargamento da noo

fundamentalidade dos direitos, pois ao lado dos direitos inerentes pessoa humana, comeam a surgir direitos fundamentais de certas categorias particulares de indivduos (direito dos trabalhadores, direitos dos estudantes, etc), ampliando-se assim a titularidade dos direitos fundamentais s pessoas colectivas e, dentro destas ltimas, s prprias entidades pblicas. Todavia, se por um lado, os direitos fundamentais so determinantes para a pessoa humana, por outro lado, o crescimento do nmero destes direitos conduz a um esvaziamento da importncia daqueles que so efectivamente mais importantes. Efectivamente, um tal alargamento do conceito de direito fundamental acaba por comportar uma verdadeira debilitao ou adulterao da fundamentalidade do prprio conceito de direito fundamental. Assim o aumento do nmero de direitos considerados fundamentais acontece por trs factores principais: i. Debilitao do que verdadeiramente direito fundamental

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Esta debilitao surge mais reforada quanto se assiste despersonalizao de certos direitos fundamentais dotados de uma natureza de verdadeiros interesses difusos ou colectivos. Ex. O Direito vida um dos direitos fundamentais, mas o direito de antena dos partidos polticos e associaes por exemplo, tambm o . Neste contexto, este ltimo tende a esvaziar a importncia do primeiro. Deste modo, o essencial ceder perante o acessrio, convertendo-se este em fundamental e aquele em secundrio. Para alm disso no est fora de hiptese a procura de reivindicao e qualificao como expresso de direitos fundamentais certos comportamentos que por aco ou omisso se possam considerar como ilcitos criminais ou actos atentatrios da dignidade humana, expressando a violao de direitos fundamentais at ento dotados de uma integral proteco jurdico-criminal. Ex: Reivindicao da existncia de um direito ao aborto como direito de cada mulher a dispor do seu prprio corpo e de um direito a se prostituir nos mesmo moldes. ii. Desenvolvimento de uma cultura de morte. Esta questo conduz-nos ao desenvolvimento de uma certa cultura de morte por contraponto de uma cultura de vida, de que so exemplo a legalizao do aborto, na eutansia e na possibilidade de utilizao de determinada prticas que desvalorizam a vida dos mais fracos. preocupante o resvalar de garantia do direito da vida, tanto mais que a preocupao por termo vida quando mais se precisa da vida (aborto e casos terminais). Com efeito, um verdadeiro Estado de direitos fundamentais, assenta num projecto de sociedade mais justa e solidria, expresso atravs de um modelo de Estado humano,23 mas, um pouco por toda a parte se vai permitindo uma progressiva restrio do direito vida, entendendo que a inviolabilidade da vida humana se circunscreve vida extra-uterina, se no mesmo vida nascida e saudvel. Esta situao conduz a trs fenmenos: a. Convocao de referendos ou a pura aprovao de leis despenalizando a interrupo voluntria da gravidez; b. Ausncia de norma s jurdicas reprimindo criminalmente a utilizao indevida de embries humanos com o cientficas; c. A aprovao de leis permitindo a eutansia em pacientes terminais ou em grande sofrimento, enquanto expresso de um alegado direito de cada um dispor da sua prpria vida. intuito exclusivo de investigao ou experimentao

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JOO PAULO II, Evangelium Viate, n. 101

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Isto quer significar que a vida nascente e a vida terminal se tornaram violveis ou disponveis, expressando uma paradoxal debilitao das formas mais dbeis ou frgeis da vida humana. iii. Pelo desenvolvimento da hipertrofia do Estado de bem-estar. A concretizao do Estado de bem-estar gerou trs principais efeitos: a. Um considervel intervencionismo pblico sobre a esfera da sociedade civil; b. Alargamento das tarefas materiais confiadas Administrao Pblica, acompanhado de um crescimento da estrutura orgnica dessa mesma Administrao; c. As exigncias de uma satisfao contnua e interveno reguladora e prestacional do Estado, originaram uma progressiva desvalorizao do papel decisrio do parlamento, mediante um protagonismo reforado do executivo. Resulta assim a ideia de Estado que tem de garantir tudo o que os indivduos pretendem o que pode conduzir a um Estado de mau estar. Ex. O Sistema Nacional de Sade se impe aos seus utentes a obrigatoriedade de ser consultado por um mdico determinado, retirando ao indivduo a possibilidade de manifestar a sua liberdade de escolha. O uso obrigatrio do cinto de segurana, resulta da imposio do Estado de um princpio de segurana (contra a vontade das pessoas). assim que o hiperintervencionismo do Estado no sentido de conformar a sociedade acabou por conduzir a uma desprivatizao do Direito Privado, obscurecendo a prpria dicotomia entre Direito Pblico e Direito Privado, esbatendo por via disso a esfera de liberdade do indivduo. 3.4. Uma democracia sem valores A Constituio da Repblica Portuguesa, no seu Artigo 24 n. 1 promove o enquadramento da questo, A vida humana inviolvel. Deve acrescentar-se, alis no prprio contexto da Constituio que a vida humana no se inicia com o nascimento, mas muito antes. Tambm a dignidade da pessoas humana fundamental assumindo o primado sobre o principio democrtico, como resulta do Artigo 1. da CRP Portugal uma Repblica soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e ..., pelo que a dignidade da pessoa humana quem delimita a democracia e no o inverso. Uma democracia sem valores coloca a tnica na simples aco da maioria, pelo contrrio, uma democracia com valores assenta na dignidade da pessoa humana, sendo que a dignidade pode ser vertical, quando o Estado tem o dever de respeitar os direitos dos indivduos, horizontal, quando existe vinculao ao respeito pela dignidade da

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pessoa humana e auto-dignidade, que se traduz na dignidade que temos por ns prprios (irrenunciabilidade aos nossos direitos). 3.5. Degenerao do progresso tcnico-cientfico No decurso dos anos 60, comeou a surgir a conscincia de que a tcnica e a cincia se transformariam na fonte legitimadora das instituies e opes polticas, havendo mesmo quem as tomasse como uma nova ideologia.24 Na poca actual, a cincia e a tcnica entendidos no domnio do progresso cientfico assume uma dupla funo nas modernas sociedades: fora produtiva e ideologia. Esta evidncia conduzindo a uma interdependncia entre cincia e tecnologia, impe ao indivduo uma determinada forma de vida, integrada numa sociedade tecnocrtica que envolvendo uma autocoisificao dos homens, sob as categorias da aco racional dirigida a fins e do comportamento adaptativo, revela, uma subtil forma de exerccio de coaces manipulatrias. Cincia e a tcnica, assim entendidas perdem o critrio, o fim do seu objecto, quando deixam de estar ao servio do homem e o deixam de considerar como um fim, instrumentalizando-o e transformando-o num meio. Esta questo coloca-se em trs aspectos fundamentais: i. A cegueira tica no mbito da biomedicina e da gentica O progresso cientfico e tcnico veio mostrar que quase tudo o que se tem como fico no mundo da gentica se pode tornar realidade, trazendo por conseguinte, o problema dos limites da prpria investigao. Por outro lado, preciso ter presente que a pessoa a razo de ser da cincia ou da tcnica e no a cincia ou a tcnica que est ao servio da pessoa e no a pessoa que se encontra ao servio da cincia ou da tcnica. Esta situao verifica-se quando se perde a noo de que a cincia est ao servio do homem e no o inverso. As manipulaes genticas, a clonagem, a inseminao artificial ps-mortem, congelao de material gentico. Estas novas aces do homem conduzem a muitas questes e a um sem nmero de problemas jurdicos relativos pessoa humana. Exige-se ento que o Estado tenha de substituir a sua tradicional tica negativa por uma tica positiva. ii. Escravizao do homem O problema coloca-se face aos transplantes de rgos e outras manipulaes, centrando-se na questo da disponibilidade do corpo humano em liberdade total pelo indivduo ou pelo Estado ou pelo contrrio se deve ser proibida tal utilizao. Ser que poder o Estado intervir no processo de disposio do corpo humano ou de partes autnomas do mesmo, designadamente aps a morte, transformando o cadver em verdadeira propriedade pblica?

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A liberdade de cada um sobre o seu prprio corpo acabar por redundar num verdadeiro poder absoluto de vida ou de morte de uns sobre outros: a liberdade converter-se- em fonte de escravido. Trata-se no essencial da utilizao do corpo humano para experincias de ndole cientfica. Destas distinguem-se: 1. A disponibilidade em vida principio da autonomia da vontade das pessoas e a gratuitidade da sua utilizao; 2. Disponibilidade do corpo aps a morte. Esta questo evidencia-se essencialmente no facto de que a dignidade humana no se extingue com a morte. A utilizao do corpo humano aps a morte est abrangida pela dignidade da pessoa humana. No possvel a disposio do cadver para certos actos atentatrios da dignidade do homem. Todavia, o Estado tem vindo, fundado num principio de solidariedade entre os membros da sociedade, a substituir-se declarao expressa de cada pessoa, criando um consentimento tcito ou uma vontade presumida de todos se configurarem como dadores de rgos e tecidos por morte, sem embargo de aceitar uma declarao expressa em sentido contrrio. A liberdade de que goza o estado transforma-se assim em escravido para o homem. iii. o modelo orwelliano de sociedade A exploso do progresso tecnolgico no campo audiovisual, permitindo a captao de imagens e de sons e a sua subsequente transmisso e reproduo, possibilitou que se materializasse e conservasse tais imagens e sons, dotando-os de um estatuto de perenidade. O progresso tecnolgico provoca uma restrio do espao de liberdade de cada um, gerando conflitos entre a garantia de todos contra a invaso da sua privacidade pela simples captao ou utilizao por terceiros da respectiva imagem ou de informaes pessoais sem sua informao. Assenta para alm disso na ideia de uma sociedade onde no existe privacidade, na qual o Estado tudo controla, sem intimidade. a utilizao dos conceitos de televiso onde o controle das pessoas feito a cada momento (bancos, metro, lojas, restaurantes, etc). Tem no entanto uma funo positiva (segurana das pessoas) e uma funo perversa (presuno de cada um no inocente), sendo o modelo de Estado de Segurana, o prioritrio.

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Cfr. HERBERT MARCUSE e JURGEN HABERMAS

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Existe o direito a cada um de ns saber quando entra em algum local, saber que est a ser filmado e tem o direito de recusar que a sua imagem seja captada. iv. O imprio das redes de comunicao. Verifica-se na actualidade de que as novas tecnologias no domnio da comunicao envolvem multiplicidade de informao e rapidez de acesso a toda uma diversidade de destinatrios, o que traduz, por um lado, no reforo do pluralismo e um considervel desenvolvimento cultural e por outro, uma zona desregulamentada, envolvendo elevados interesses privados que, mostra alguma resistncia interveno normativa reguladora. A sociedade da informao, rene todos os requisitos para se tornar a base de um verdadeiro imprio Relaciona-se com os meios de comunicao de massas os quais podem em mltiplas circunstncias atentar contra a dignidade da pessoa humana, ao gerar um conflito entre a liberdade de informar e a privacidade de cada um. Quais os limites que se impem comunicao social, o que importa saber, mormente quando se expe a pessoa humana a um modo atentatrio da sua privacidade.

CAPITULO II Coordenadas dogmticas da tutela jurdica da pessoa humana 4. Concepo personalista da pessoa humana Trs elementos caracterizadores da perspectiva personalista da pessoa humana: i. Centralidade da dignidade da pessoa humana O homem tem de ser entendido como um fim e no como um meio; ii. Existem direitos inalienveis da pessoa humana que o so perante o Estado, perante os outros e perante ns prprios; iii. O ser humano como razo de ser do Estado, do Direito, da Constituio e como sujeito da histria 5. Dimenso poltica da pessoa humana Apontam-se quatro vertentes a ter em considerao: 5.1. Pessoa e democracia. O cidado Ideia de cidado. Quem ? Supe-se a existncia de um vnculo jurdico de uma pessoa e de um Estado. Se no existir vnculo, estamos perante um aptrida. A cidadania

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exige este vnculo assim como pressupe a representao poltica, dependendo esta fundamentalmente daquela, sendo considerados direitos desta natureza a possibilidade que o indivduo tem de eleger os seus representantes e ser eleito. Por outro lado, a cidadania no se manifesta apenas ao nvel da possibilidade de representao do cidado, mas tambm ao nvel da participao poltica, pela possibilidade de interveno nas decises pblicas. 5.2. Pessoa e Estado: o povo No se esgota no vnculo de cidados ou fora dela (os estrangeiros tambm tm direitos) a relao da pessoa humana. Na sua relao com o Estado a pessoa humana assume a posio de povo, sendo este o substrato humano do Estado, pois este no existe sem aquele, sendo assim necessrio para a sua afirmao, de que so evidentes os exemplos histricos (judeus, palestininianos, o processo de descolonizao, etc). A pessoa relaciona-se com o Estado atravs do povo. 5.3. Pessoa e Nao: a comunidade A nao uma comunidade de pessoas ligadas por um vnculo cultural, exprimindo assim uma noo cultural que liga as pessoas ao Estado, e apelando para a ideia de comunidade (entendida como) e para a existncia como traos fundamentais da unidade cultural, a lngua, a histria comum e a partilha de ideais religiosos. Assenta aqui tambm o Principio das nacionalidades, pelo qual cada Nao deve corresponder a um Estado (condutora da unificao alem e italiana do sculo XIX e da autodeterminao dos povos, mas tambm do terrorismo). 5.4. Pessoa e humanidade: o legado internacional Conduz ao designado legado internacional. A pessoa encontra-se integrada num espao global, que a prpria humanidade no podendo dispor de certas matrias livremente, como por exemplo, o ambiente, o legado geracional, ou os recursos marinhos. A pessoa na sua relao com a humanidade conduz ao patrimnio da humanidade, enquanto dimenso cultural no presente e no futuro. Ex. O solo e o subsolo do alto mar, no apropriveis individualmente, o mesmo acontecendo com a lua, ou o genoma humano, no sendo sobre eles permitido a criao de direitos de natureza comercial.

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5. AULA

TTULO 2. PODER POLTICO Captulo I Noes preliminares 6. Conceito e tipologia do poder 6.1. Conceito de poder O poder poltico parte do poder se entendido este de forma geral. Quando se fala de poder necessrio ter em conta duas realidades: i. Autoridade Delimitada em funo do sujeito e respectivos destinatrios, ou seja, condicionada por quem a exerce, face aos destinatrios e face matria; ii. Obedincia Os destinatrios da autoridade tm de aceitar as ordens de quem tem autoridade. Quando no existe obedincia o poder est em causa. importante salientar que o poder no se esgota no Estado nem este tem o seu monoplio. 6.2. Tipos de poder Existem diversos tipos de poder i. Poder poltico ii. Poder econmico iii. Poder religioso iv. Poder informativo Este pode subdividir-se: - na deteno da informao dentro da Administrao - Meios de comunicao social v. Poder inter-privados Autoridade entre particulares famlia, contrato individual de trabalho 6.3. Delimitao do estudo: o poder poltico

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a. Tipos de poder poltico i. Poder poltico formal Este traduz-se no poder expresso pelos rgos identificados formalmente pela Constituio perspectiva normativista ou formal. ii. Poder poltico informal Traduz-se naquele que expressa o exerccio de uma autoridade, mas que no resultado directo de uma Constituio. Ex: o exerccio do poder pelos militares; Constituio de 1933 (acordo tcito de que o PR deveria ser militar), Constituio de 1976 (grande parte desta constituio resulta de um compromisso entre a legitimidade militar e a legitimidade partidria Criao do Conselho da Revoluo). Este tipo de poder escapa ao contexto normativo e jurdico. 7.1. Problemas histricos do poder poltico Um dos principais problemas que se coloca no mbito do poder poltico o da satisfao das necessidades da colectividade. Esta satisfao evidencia as trs questes que se colocam do ponto de vista histrico: i. Limitao do poder O poder ou no absoluto? Deve ser limitado ou no? As respostas tm sido variadas. Para Plato, o governante, sendo sbio no precisa de limites. Aristteles, entende por seu lado, que o governo justo o governo das leis, pelo que so elas que se assumem como a centralidade ao invs do homem. Radica nele a gnese do Estado de Direito (poder limitado pela lei); Por outro lado, o poder deve ou no ser limitado pela lei? Esta questo coloca dois problemas: Autolimitao do poder o poder deve estar limitado pelos actos que faz. Neste entendimento, o poder poltico no susceptvel de outra limitao jurdica seno a proveniente das suas prprias leis s quais, uma vez impostas aos cidados, voluntariamente se submetem tambm. Esta corrente foi desenvolvida por Jellinek, para quem o Estado fica eficazmente obrigado, por vontade prpria, s leis que elabora, sobre trs princpios fundamentais: a necessidade da confiana social, a suficincia da vinculao jurdica por declarao unilateral da vontade e o carcter jurdico do poder poltico e da soberania. Para alm disto, Marcello Caetano entende que o Poder poltico est obrigado a respeitar os limites naturalmente decorrentes da sua finalidade especfica, o que implica

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a subtraco ao seu imprio da zona prpria das funes e fins das sociedades primrias e da pessoa humana. Quanto autolimitao, particularmente importante no que respeita funo executiva, por sua natureza subordinada ao Direito vigente; mas os rgos superiores que superintendem nos rgos ou agentes dessa funo devem tambm respeitar as leis existentes e as aplicaes concretas que delas sejam feitas.25 Heterolimitao Poder est limitado por actos que no dependem dele prprio. O rei est limitado por Deus e pela justia. Hoje, o poder est limitado por aces que transcendem o prprio poder, resultando daqui a diferena entre: Estado de direito formal O poder limitado pelo prprio poder. A lei feita e vigora semelhana da vontade do poder. Todos os autoritarismos e totalitarismos se encontram neste caso. Neste sentido, deve entender-se como todo o Estado que realize os seus fins por meios ou processos jurdicos. Os fins do Estado so variveis consoante a direco poltica adoptada. As regras de Direito so formuladas por via geral e impessoal: praticamente est na generalidade das leis na impossibilidade jurdica de o Poder exigir de certa e determinada pessoa qualquer prestao ou comportamento sejam exigveis e todas as pessoas nas mesmas condies, previamente definidas a garantia fundamental dos cidados. O Estado deve submeter-se legalidade: o cidado ao seu dispor o recurso aos tribunais para se defender dos actos do Poder ofensivos da lei e dos seus direitos, mas os direitos individuais so, apenas, os que a lei positiva conceder. O Direito est na lei do Estado. Se a lei negar os direitos individuais, no h nada a fazer seno acat-la. Estado de direito material O poder est limitado por regras, valores e leis que no se encontram integradas no prprio poder. O poder no pode modificar as orientaes que lhe so externas. Neste caso, o Estado de direito aquele em que o poder poltico aparece como simples meio de realizao e garantia dos direitos individuais naturais, fonte de toda a Ordem jurdica. O valor supremo da sociedade poltica a liberdade, consistindo a autoridade num sistema de restries s admissvel n medida estritamente indispensvel coexistncia das liberdades individuais. Todos os rgos do Poder poltico ficam sob o domnio do Direito, formando no s pelas leis positivas votadas pela colectividade ou em seu nome, mas sobretudo pelas leis25

MARCELLO CAETANO, Manual de Cincia Poltica e Direito Constitucional, Coimbra, Almedina, Reimpresso,

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naturais decorrentes do dogma da liberdade individual originria. Esta perspectiva foi a prosseguida no decurso do sculo XIX na tentativa de alcanar um ideal. Ainda deve relevar-se a questo da articulao entre o Direito e os factos, ou seja a convivncia entre o mundo do Direito e o mundo dos factos. Casos existem em que este ltimo pode estabelecer uma ponte para o mundo do Direito. Ex: costume. O mundo do Direito pode no entanto, nunca passar para o mundo dos factos. Ex: Direito sem efectividade e que se torna num no-direito, ou seja, Direito inaplicvel (A disposio constitucional da transio para o socialismo e da implementao de uma sociedade sem classes). Existem assim poderes que o so de facto e condicionam o prprio poder poltico formal, mas tambm existem limites de facto que condicionam o poder poltico (medidas impopulares tomadas pelos governos em proximidade eleitoral) ii. Fundamentos do poder Trata-se da razo justificativa do poder. Porque existe o poder poltico? Qual o fim que alicera o poder poltico? A razo justificativa comeou por ser a Segurana o fundamento do poder: a instituio do poder poltico um instrumento de defesa externa e de paz interna. A segurana no apenas a organizao da fora colocada ao servio de interesses vitais, mas tambm, a garantia da estabilidade dos bens e da durao das normas e irrevogabilidade das decises do Poder que importam justos interesses a respeitar. Atravs da segurana, pretendia-se alcanar a Justia, ou seja, alcanar relaes de mtuo respeito e de equidade. Efectivamente a sociedade poltica existe para substituir, nas relaes entre os homens ao arbtrio da violncia individual certas regras ditadas pela Razo que satisfaam o instinto natural de Justia. Assim, nas permutas deve haver equivalncia dos valores permutados (justia comutativa). E cada um deve receber a remunerao adequada sua contribuio para o todo (justia distributiva). Na justia comutativa a regra a da desigualdade para remunerar cada qual segundo os seus mritos: a servios desiguais, retribuio desigual. Finalmente, ainda que se entenda o carcter relativo da justia ela no deixa de ser a realizao constante do supremo valor jurdico. No conjunto de ambas o Bem-estar, send