direito à não autoincriminação. limites, conteúdo e ... rached... · o direito à não...

185
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Márcio Rached Millani Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e aplicação. Uma visão jurisprudencial MESTRADO EM DIREITO SÃO PAULO 2015

Upload: duongkhue

Post on 08-Jan-2019

216 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Márcio Rached Millani

Direito à não autoincriminação.

Limites, conteúdo e aplicação. Uma visão jurisprudencial

MESTRADO EM DIREITO

SÃO PAULO

2015

Page 2: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Márcio Rached Millani

Direito à não autoincriminação.

Limites, conteúdo e aplicação. Uma visão jurisprudencial

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Direito, sob a orientação do Professor Doutor Thiago Lopes Matsushita.

SÃO PAULO

2015

Page 3: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

BANCA EXAMINADORA

__________________________________________

Prof. Dr. André Ramos Tavares

PUC-SP

__________________________________________

Prof. Dr. Marco Aurélio Florêncio Filho

Universidade Prebisteriana Mackenzie

__________________________________________

Prof. Dr. Thiago Lopes Matsushita

Orientador – PUC-SP

Page 4: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

Aos meus amores Flávia, Felipe e Mariana

Page 5: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

RESUMO

MILLANI, Márcio Rached. Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e aplicação. Uma visão jurisprudencial. 2015. 185 p. Dissertação (Mestrado em

Direito) Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2015. Vários países adotam em suas Constituições ou em suas leis

infraconstitucionais o direito à não autoincriminação. Tal direito é também garantido

por vários tratados internacionais que se incorporaram às legislações internas dos

vários países, entre eles o Brasil. Pode-se observar que as redações adotadas pelos

países são similares e abrangem, de modo geral, o direito de o investigado ou o réu

permanecerem em silêncio, vale dizer, o direito de não deporem contra si mesmos

em investigação ou processo penal instaurados para a apuração de determinado

delito. Em suma, não são os investigados ou réus compelidos a auxiliar na produção

da prova em processos contra eles instaurados. Conquanto as redações dos

dispositivos legais que consagram o direito à não autoincriminação sejam similares e

em alguns casos quase idênticas, observa-se que a nossa jurisprudência conferiu ao

referido direito uma abrangência muito maior do que a observada no direito

comparado, sendo que em algumas hipóteses tal ampliação acabou por tornar sem

efeito dispositivos legais em vigor, como ocorreu com a recente vedação da

utilização de determinados testes de alcoolemia para comprovação da embriaguez.

Várias hipóteses podem ser levantadas para tentar explicar a razão de o direito à

não autoincriminação ter se tornado um direito quase absoluto, entre elas: uma

errônea interpretação de seu conteúdo; a não ponderação dos valores em conflito no

caso concreto; a noção de que o corpo do indivíduo não pode, em hipótese

nenhuma, ser utilizado como objeto de prova; a exagerada importância conferida

aos direitos individuais; e a confusão entre autoridade e autoritarismo que ocorreu

na nossa sociedade após o término do regime ditatorial.

Palavras-chaves: Princípios constitucionais − Direito à não autoincriminação −

Intervenções corporais.

Page 6: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

ABSTRACT

MILLANI, Márcio Rached. Right to not self-incrimination. Limits, content and application. A jurisprudential vision. 2015. 185 p. Dissertation (Master Degree in Law)

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2015. Several countries adopted in their Constitutions or in their infra-laws the right

to not self-incrimination. This right is also guaranteed by several international treaties

which were incorporated to the internal laws of several countries, including Brazil. It

can be observed that the texts adopted by the countries are similar and include, in

general, the right of the investigation or the accused remain silent, that is, the right

not to testify against themselves in criminal investigation or proceeding instituted for

the determination of a particular offense. In short, investigated or defendants are not

compelled to assist in the production of evidence in cases filed against them. While

texts of legal provisions that enshrine the right to self-incrimination are similar and in

some cases almost identical, it is observed that our jurisprudence conferred much

greater extension to the right than that observed in comparative law coverage, and in

some cases this expansion eventually become ineffective legal provisions in force, as

happened with the recent sealing of the use of certain alcohol tests for evidence of

intoxication. Several arguments can be raised to try to explain why the right to not

self-incrimination have become an almost absolute right, among them: an erroneous

interpretation of its contents; not weighting of conflicting values in the case concert;

the notion that the individual’s body cannot, under any circumstances, be used as a

test object; the exaggerated importance given to individual rights; and the confusion

between authority and authoritarianism that took place in our society after the end of

the dictatorial regime.

Keywords: Constitutional principles − The right to not self-incrimination − Evidence

made in the person's body.

Page 7: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 9

2 DIREITO À NÃO AUTOINCRIMINAÇÃO. ORIGENS E EVOLUÇÃO ..................... 11

2.1 Notas históricas ................................................................................................... 11

2.2 Incorporação do direito à não autoincriminação aos tratados internacionais

de direitos humanos ............................................................................................ 21

2.3 Direito à não autoincriminação. Elementos caracterizadores .............................. 27

2.4 O direito à não autoincriminação na jurisprudência do

Supremo Tribunal Federal ................................................................................... 29

2.5 Natureza jurídica ................................................................................................. 31

3 PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS RELACIONADOS AO DIREITO À

NÃO AUTOINCRIMINAÇÃO .................................................................................. 37

3.1 O direito à não autoincriminação e presunção de inocência ............................... 37

3.2 O direito à não autoincriminação e o devido processo legal ............................... 39

3.3 O direito à não autoincriminação e a ampla defesa ............................................ 41

3.4 O direito à não autoincriminação e o contraditório .............................................. 43

3.5 O direito à não autoincriminação e a dignidade da pessoa humana ................... 44

3.6 O direito à não autoincriminação e o direito à intimidade, integridade física

e liberdade ........................................................................................................... 46

4 INTERPRETAÇÃO DOS TRIBUNAIS SOBRE O DIREITO À

NÃO AUTOINCRIMINAÇÃO .................................................................................. 48

4.1 Necessidade do consentimento do réu para a realização da prova .................... 51

4.2 O direito à não autoincriminação aplicado a posturas passivas do indivíduo ...... 55

4.2.1 Direito ao silêncio ............................................................................................. 55

4.2.2 Direito à mentira ............................................................................................... 58

4.2.3 Direito de não participar na reconstituição do crime ......................................... 69

4.2.4 Direito de não fornecer padrôes gráficos e de voz ........................................... 69

4.2.5 Necessidade de comparecimento à audiência ................................................. 71

4.3 O direito à não autoincriminação aplicado a posturas ativas do indivíduo .......... 73

Page 8: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

4.3.1 Direito à não autoincriminação como justificativa para o cometimento de

delitos. Fraudes praticadas durante o processo ............................................... 73

4.3.2 Imputação falsa de crime a outrem .................................................................. 75

4.3.3 Fuga do infrator do local do delito .................................................................... 77

5 CORPO COMO OBJETO DE PROVA ................................................................... 85

5.1 Intervencões corporais. Definição ....................................................................... 85

5.2 Intervenções corporais no direito estrangeiro ...................................................... 87

5.3 Intervenções corporais no direito brasileiro ......................................................... 97

5.4 Utilização do corpo como objeto de prova. Possibilidade.................................... 99

6 INTERVENÇÕES CORPORAIS. PONDERAÇÃO DOS DIREITOS

FUNDAMENTAIS EM CONFLITO ........................................................................ 106

6.1 Proporcionalidade e ponderação dos interesses contrapostos ......................... 106

6.2 Direito à não autoincriminação. Critérios para a ponderação ............................ 108

6.3 Ponderação entre o direito à intimidade e as intervenções corporais ............... 113

6.4 Ponderação entre o direito à integridade física e as intervenções corporais..... 117

6.5 Ponderação entre o direito à liberdade e as intervenções corporais ................. 120

6.6 Ponderação entre o direito à dignidade e as intervenções corporais ................ 122

6.7 Ponderação entre o direito à não autoincriminação e as interveções corporais 125

6.8 Testes de alcoolemia ........................................................................................ 135

7 DESEQUILÍBRIO NA BALANÇA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS .................. 146

7.1 Autoridade e autoritarismo ................................................................................ 146

7.2 Absolutização de direitos fundamentais ............................................................ 149

7.3 Individualismo exagerado .................................................................................. 159

CONCLUSÕES ....................................................................................................... 172

REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 179

Page 9: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

9

1 INTRODUÇÃO

O direito à não autoincriminação, conquanto amplamente abordado pela

doutrina e pela jurisprudência, ainda não tem os seus contornos totalmente

delimitados. As incertezas vão desde a nomenclatura até as hipóteses de aplicação,

sendo ora equiparado ao direito ao silêncio, ora interpretado de maneira mais ampla,

abrangendo situações que não guardam qualquer relação com o texto legal que o

estabelece.

O direito à não autoincriminação tem previsão em várias Constituições e

legislações infraconstitucionais, além de também estar consagrado nos principais

tratados internacionais, como, por exemplo, a Convenção Americana sobre Direitos

Humanos, a Convenção Europeia dos Direitos do Homem e o Pacto Internacional

sobre Direitos Civis e Políticos.

O referido direito é considerado um direito fundamental e costuma estar

associado a outros direitos fundamentais, como os direitos à intimidade, à

integridade corporal, à dignidade e à liberdade, entre outros.

São dois os principais objetivos do presente estudo. O primeiro consiste em

verificar qual o tratamento dado ao direito à não autoincriminação pela jurisprudência

pátria, especialmente a exarada pelo Supremo Tribunal Federal.

Embora não seja o objeto central uma análise mais aprofundada da doutrina,

evidentemente várias posições doutrinárias serão trazidas, mesmo porque muitas

vezes elas são utilizadas para fundamentar os julgados.

O segundo objetivo diz respeito à comparação da jurisprudência pátria com a

jurisprudência estrangeira. Os julgados nacionais estão em consonância com o

decidido nos tribunais estrangeiros? É possível realizar tal comparação tendo vista

as legislações desses países?

Page 10: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

10

Tendo por fundamento as divergências jurisprudenciais constatadas, serão

identificadas as possíveis razões para o tratamento dissonante, entre elas: uma

errônea interpretação do conteúdo do direito à não autoincriminação; a não

ponderação dos valores em conflito no caso concreto; a noção de que o corpo do

indivíduo não pode, em hipótese nenhuma, ser utilizado como objeto de prova; a

exagerada importância conferida aos direitos individuais e a confusão entre

autoridade e autoritarismo, que ocorreu na nossa sociedade após o término do

regime ditatorial.

Page 11: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

11

2 DIREITO À NÃO AUTOINCRIMINAÇÃO. ORIGENS E EVOLUÇÃO

2.1 Notas históricas

O direito ao silêncio já era noticiado em algumas passagens do Talmude1. A

tradição judaica dizia que as confissões feitas pelo réu nunca deveriam ser

admitidas, mesmo que tivessem sido dadas voluntariamente. Assim, a proibição

voltava-se não contra a coerção, mas contra a autoincriminação, veto que teria

origens na Bíblia, que exigia duas testemunhas para o fato, desqualificando o

próprio réu como testemunha. É possível vislumbrar, em vários casos relatados no

Talmude, o esboço do direito à não autoincriminação, como descrito por Simcha

Mandelbaum, citado por Alan Dershowitz2: uma pessoa foi acusada de colocar fogo

em uma propriedade de seu vizinho. O fato teria ocorrido no sábado, dia sagrado

para os judeus. A vítima solicitou ressarcimento por danos materiais e a punição por

infração às regras que regulam os deveres atinentes ao sábado. O réu ofereceu a

sua confissão como evidência. Foi decidido que o seu testemunho somente deveria

ser admitido como prova no processo cível e não para fins criminais. Solução similar

foi oferecida por uma corte judaica em outro caso, no qual a mulher buscava a

permissão da Corte para casar-se novamente. Ela alegou que seu ex-marido, que

desaparecera de casa, estava morto. Para confirmar a morte do marido ela chamou

uma testemunha que confessou tê-lo matado. A corte deferiu o pedido, sob o

argumento de que, conquanto o testemunho fosse autoincriminatório, ele poderia ser

aceito na parte que estabelecia a morte do marido, mas que não poderia ser aceito

para a condenação do autor por homicídio.

A fonte da cláusula do direito à não autoincriminação foi a máxima nemo

tenetur se ipsum accusare3. A máxima é apenas um aspecto de dois sistemas

diferentes de aplicação da lei que vigoravam no sistema inglês, o acusatório, que

1 O Talmude é o livro sagrado dos judeus, um registro das discussões que pertencem à lei, ética, costumes e história do judaísmo.

2 DERSHOWITZ, Alan M. Is there a right to remain silent?: coercive interrogation and the Fifth Amendment after 9/11. Kindle Edition. Oxford; New York: Oxford University Press, 2008. pos. 669 de 2.222.

3 Ninguém é obrigado a acusar a si mesmo.

Page 12: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

12

antecedeu o reinado de Henrique II, e o inquisitório, que se desenvolveu nos

tribunais eclesiásticos.

No início da história da Igreja Católica, a confissão dos pecados tornou-se

uma obrigação de fé. Assim, nenhum privilégio existia para pessoas acusadas de

um crime na Idade Média e os tribunais inquisitoriais na Europa continental e a Star

Chamber na Inglaterra, em meados do século XVII, exigiam amplas confissões dos

acusados.

O julgamento de John Lilburn 4 , ocorrido no ano de 1653, retrata o

procedimento adotado no período. Lilburn argumentou que o Estado não poderia

obrigá-lo a responder a questões incriminadoras, pois isso violaria a lei de Deus,

uma vez que ela traz a determinação de que nenhum homem pode se acusar.

Leonard W. Levy5 afirma que a raiz histórica do direito à não autoincriminação

encontra-se, de fato, nas disputas religiosas e políticas dos dissidentes ingleses.

Entende que o direito nasceu da reação a perseguições sofridas por esses

dissidentes e particularmente relacionadas ao chamado juramento ex officio,

ferramenta importante no sistema inquisitorial. Os dissidentes juravam dizer a

verdade, mesmo antes de saberem as acusações contra eles formuladas. Tratava-

se de um juramento aberto que permitia aos interrogadores a elaboração de

questionamentos genéricos, inclusive versando sobre os mais íntimos pensamentos

dos interrogados. Leonard W. Levy afirma que a origem do direito remonta ao século

XIII e foi primeiramente utilizado em 1246, quando o bispo Robert Grosseteste

conduziu inquisições sobre desvios de conduta e atos imorais de membros de sua

diocese. Para descobrir todos os culpados, instituiu o oath de veritate dicenda, uma

4 “Em 1653, Lilburn publicou A justa defesa, na qual escreveu: 'Outro direito fundamental que eu defendo é o de que nenhuma consciência do homem deve ser abalada por juramentos impostos para responder a perguntas a respeito de si mesmo em matéria penal’.”. No original: “In 1653, Lilburn published The Just Defence in which he wrote: 'Another fundamental right I then contended for was that no mans conscience ought to be racked by oaths imposed, to answer to questions concerning himself in matters criminal, or pretended to be so'.” (Disponível em: <http://www.law.cornell.edu/supct/search/display.html?terms=constitutional%20or%20unconstitutional&url=/supct/html/historics/USSC_CR_0350_0422_ZD.html>. Acesso em: 10 ago. 2013. Nossa tradução).

5 LEVY, Leonard Williams. Origins of the Fifth Amendment: the right against self-incrimination. Chicago, Illinois: Ivan R. Dee, 1999. p. 44.

Page 13: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

13

inovação nunca antes utilizada, que lhe permitia a realização de todas as perguntas

necessárias para atingir o seu objetivo.

Os juramentos ex officio continuaram a ser utilizados6 não somente por cortes

eclesiásticas, mas também por cortes seculares, como a Star Chamber. O

procedimento possibilitava as mais variadas perseguições religiosas e se utilizava da

técnica conhecida como open-ended fishing-expedition, um procedimento no qual o

investigador não pergunta sobre um fato específico, mas procura descobrir

eventuais ilegalidades praticadas pelo interrogado. Muitas vezes o único crime

imputado era uma divergência teológica entre o investigado e a Coroa.

Insurgindo-se contra o juramento, a arma principal utilizada era o silêncio, que

buscava fundamento em uma antiga máxima do direito canônico, nemo tenetur se

ipsum prodere (nenhum homem é obrigado a se acusar). O rei Henry III acabou por

emitir mandados de proibição contra o procedimento adotado por Robert

Grosseteste em 1246 e 1252, determinando que leigos não poderiam ser inquiridos

sob o referido juramento nas cortes eclesiásticas, à exceção de causas que

envolvessem matrimônio e testamentos. Leonard W. Levy, ao contrário de outros

historiadores, não credita à Magna Carta de 1215 a paternidade do direito à não

autoincriminação, embora reconheça que o espírito do documento estimulou a sua

invocação como parte das garantias por ele asseguradas.7

Em suma, de acordo com Leonard W. Levy, o direito à não autoincriminação

não pode ser totalmente compreendido se não for considerada a situação religiosa e

política da época. A reivindicação ao direito, assevera o autor, nasceu das

inquirições inicialmente conduzidas pela Igreja e posteriormente pelo Estado, tendo

exercido papel relevante o contexto das lutas políticas que buscavam limitar

6 AMAR, Akhil Reed; LERNER, Ren . -incrimination clause. Michigan Law Review, v. 93, n. 857, p. 896, 1995. Também disponível em: <http://www.law.yale.edu/documents/pdf/1995Fifth.pdf>. p. 20. Acesso em: 03 nov. 2014.

7 A Magna Carta u b v gu “Nenhum homem livre será preso, aprisionado ou privado de uma propriedade, ou tornado fora da lei, ou exilado, ou de maneira alguma destruído, nem agiremos contra ele ou mandaremos alguém contra ele, a não ser por julgamento legal dos seus pares, ou pela lei da terra.”. N g “No Freeman shall be taken or imprisoned, or be disseised of his Freehold, or Liberties, or free Customs, or be outlawed, or exiled, or any other wise destroyed; nor will We not pass upon him, nor condemn him, but by lawful judgment of his Peers, or by the Law of the Land.” (Nossa tradução).

Page 14: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

14

prerrogativas arbitrárias e assegurar liberdades individuais e um governo mais

representativo. O direito também emergiu no contexto de procedimentos criminais

que procuravam assegurar um julgamento justo para o acusado, harmonizando-se

com os princípios de que ele era inocente até que fosse provada a sua culpa, de que

o ônus da prova cabia à acusação e com o sentimento de que a tortura ou qualquer

outro método cruel para obrigar alguém a revelar a sua culpa era injusto e ilegal.

Acima de tudo, afirma que o direito estava intimamente relacionado com a liberdade

de religião e expressão. Leonard W. Levy conclui então, à vista da análise histórica

realizada, que, à época do surgimento do Bill of Rights, o direito à não

autoincriminação já havia se estabelecido. Assegura que, conquanto o direito tenha

sido estruturado com o objetivo de banir a tortura e proporcionar mais segurança

para os acusados em processos criminais, não eram essas as suas únicas funções.

Finaliza o referido autor argumentando que os constituintes entenderam que

sem processos justos e regulares para a proteção dos criminalmente acusados,

poderia não haver liberdade. Sabiam que, desde tempos imemoriais, o primeiro

passo dos tiranos era usar a lei criminal para esmagar os seus opositores. A Quinta

Emenda foi concebida justamente para assegurar esses procedimentos, que foram

considerados cruciais para a sobrevivência dos mais preciosos direitos. Acima de

tudo, ela refletiu esse pensamento, a ideia de que, em uma sociedade livre, baseada

no respeito pelo indivíduo, a determinação da culpa ou inocência deve ser feita por

procedimentos justos, nos quais o acusado não deve contribuir, contra a sua

vontade, para a sua condenação, sendo tal objetivo mais importante do que a

simples punição do culpado.

A tese de Leonard W. Levy é refutada por John H. Langbein 8 . O autor

assevera que a verdadeira origem do direito à não autoincriminação não deve ser

buscada nas lutas políticas da revolução inglesa, mas no aprimoramento do

procedimento criminal adversarial ocorrido no final do século XVIII. O direito, desta

feita, foi o resultado do intenso trabalho realizado pelos advogados de defesa. John

H. Langbein pesquisou os julgamentos ocorridos no período compreendido entre os

8 LANGBEIN, John H. The privilege and common law criminal procedure: the sixteenth to the eighteenth centuries. In: HELMHOLZ, R. H. et al. The privilege against self-incrimination: its origins and development. Chicago: University of Chicago Press, 1997. p. 82.

Page 15: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

15

anos de 1670 a 1780, não tendo encontrado casos em que o réu, alegando o seu

direito ao silêncio, tenha se recusado a falar. O autor não encontrou uma menção

sequer, em tais julgamentos, ao referido direito, concluindo que ele, na prática, não

existia.

Esclarece ele que, de meados do século XVI, época em que as primeiras

publicações tornaram possível um melhor conhecimento acerca dos incipientes

julgamentos criminais, até o final do século XVIII, a principal garantia para o acusado

no procedimento criminal não era o direito de permanecer em silêncio, mas sim a

possibilidade de falar. O propósito essencial do julgamento criminal era fornecer ao

acusado a oportunidade de refutar pessoalmente as acusações a ele imputadas.

Uma das características mais marcantes desse procedimento era a regra que proibia

a participação de um advogado de defesa, proibição que apenas começou a ser

relaxada em 1696, para os crimes de traição. Entendia-se que se o réu fosse

inocente, era desnecessária a presença de um advogado, porque a verdade falaria

por si só.

No final do século XVIII, continua John H. Langbein, uma diferença radical

passou a ser notada no que diz respeito ao objetivo do procedimento criminal, que

começou a ser visto como uma oportunidade para a defesa, agora já amplamente

permitida, verificar a consistência do caso levado a julgamento. O sistema então se

modificou, passando de um modelo em que o acusado falava, para um modelo em

que a defesa procurava testar a consistência da acusação, modelo que foi

aperfeiçoado e culminou por desobrigar o testemunho do réu.

A luta travada pelos dissidentes ingleses foi transportada para as colônias

americanas. Nessas, assim como ocorria na Inglaterra, as invocações do privilégio

contra a autoincriminação invariavelmente coincidiram com o movimento dos

administradores para reprimir a dissidência política. Leonard W. Levy9 observa que

como as colônias aplicavam o direito comum inglês, este acabou se tornando pouco

a pouco a lei americana, tendo havido, por consequência, a incorporação do direito à

não autoincriminação.

9 LEVY, Leonard Williams, Origins of the Fifth Amendment: the right against self-incrimination, cit., p. 368.

Page 16: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

16

Variações sobre o direito à não autoincriminação foram incluídas nas

Constituições dos estados revolucionários. Posteriormente o direito alcançou status

constitucional, tendo sido incorporado pela Quinta Emenda.

O direito à não autoincriminação consagrado na Constituição americana,

todavia, não tinha o mesmo conteúdo do utilizado pelas cortes inglesas. O direito

introduzido pela Quinta Emenda referia-se não apenas aos procedimentos criminais

iniciais, como ocorria no sistema inglês, mas persistia durante todo o processo.10

Os revolucionários americanos incorporaram o direito à não autoincriminação

na Constituição para preservar os atributos essenciais do processo penal contra a

influência corrosiva dos procedimentos inquisitoriais, impedindo eventuais restrições

em detrimento da liberdade política e religiosa. O direito foi concebido como uma

limitação das técnicas de investigação das autoridades. Sentenças proferidas nos

primórdios da revolução americana dispunham que o privilégio contra a

autoincriminação deveria garantir a proteção do indivíduo, mesmo que isso pudesse

limitar a evidência probatória disponível para as autoridades.

A primeira sentença digna de nota ocorreu no julgamento Marbury v. Madison,

decisão que foi proferida apenas dez anos após a ratificação do Bill of Rights. A

questão colocada em julgamento era saber se o secretário de Estado, Levi Lincoln,

poderia ser obrigado a responder a uma determinada pergunta. O secretário

recusou-se a responder à pergunta, sob o fundamento que ele não poderia ser

compelido a responder sobre algo que pudesse incriminá-lo, posição ratificada pela

Suprema Corte.11

Em 1807, no julgamento de traição de Aaron Burr12 (United States v. Burr), as

autoridades procuraram obrigar o depoimento de uma testemunha − Mr. Willie,

secretário de Burr − que invocou o privilégio. O Tribunal Federal sediado na Virginia,

10

ALSCHULER, Albert W. A peculiar privilege in historical perspective. In: HELMHOLZ, R. H. et al. The privilege against self-incrimination: its origins and development. Chicago: University of Chicago Press, 1997. p. 190.

11 LEVY, Leonard Williams. Seasoned judgments: the American Constitution, rights, and history. New Brunswick, NJ: Transaction Publishers, 1997. p. 245.

12 N -incrimination clause, cit., p. 912, nota 234.

Page 17: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

17

presidido pelo chefe da Suprema Corte, Justice Marshall, consignou que a máxima

de que nenhum homem é obrigado a se autoincriminar constitui exceção à regra de

que todas as pessoas são obrigadas a servir de testemunha em um julgamento.

Em Nova York, os magistrados começaram rotineiramente a advertir os réus

acerca do direito contra a autoincriminação, a partir de 1835. O número de arguidos

que se recusaram a se submeter a interrogatório aumentou depois disso13. Em 1864,

o Estado do Maine tornou-se o primeiro a permitir que os réus oferecessem

testemunhos juramentados em casos criminais, experiência posteriormente adotada

por outros estados.

O direito à não autoincriminação, todavia, raramente era invocado porque, tão

logo foi garantido, tornou-se irrelevante para o acusado, devido ao desenvolvimento

da disqualification for interest. A disqualification for interest, que perdurou até o início

do século XIX, era uma regra existente em processos cíveis e criminais, e aplicável a

todas as partes diretamente interessadas no processo, com a finalidade de prevenir

o falso testemunho14. A regra impedia o testemunho do réu no próprio processo –

quer o testemunho fosse juramentado ou não – em razão de haver um claro

interesse dele na obtenção de um julgamento favorável. Evidentemente, impedindo-

se o réu de testemunhar, por consequência também se impedia a autoincriminação.

Ocorre que, impedindo-se de maneira absoluta o testemunho dos réus, injustiças

poderiam ser cometidas, haja vista que havia fatos que eram conhecidos apenas por

eles.

As regras de desqualificação foram lentamente abandonadas nos Estados

Unidos, possibilitando que o direito à não autoincriminação se tornasse mais

debatido na jurisprudência. Até o final do século XIX, o estado da Georgia era o

único estado americano a manter a lei que permitia a desqualificação do réu −

apenas em 1962 permitiu-se que réus oferecessem testemunho sob juramento.

13

ALSCHULER, Albert W., A peculiar privilege in historical perspective, in The privilege against self-incrimination: its origins and development, cit., p. 198.

14 SMITH, Henry E. The modern privilege: its nineteenth-century origins. In: HELMHOLZ, R. H. et al. The privilege against self-incrimination: its origins and development. Chicago: University of Chicago Press, 1997. p. 149.

Page 18: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

18

Os estatutos que acabaram com a desqualificação de depoimento de réus

eram controversos, sendo a controvérsia centrada em questões constitucionais.

Sustentava-se que os réus deveriam ter o mesmo direito que as testemunhas para

depor sob juramento e que a desqualificação substituía uma presunção de perjúrio

pela presunção de inocência. Os opositores argumentavam, no entanto, que os

estatutos ameaçavam o privilégio contra a autoincriminação. Eles argumentavam

que os jurados iriam ver a recusa do réu em depor como uma confissão de culpa e

iriam considerar esse fato independentemente das instruções que receberiam para

não fazê-lo.

Na prática, os réus seriam pressionados a fazer o juramento e, assim,

estariam sujeitos à compulsão que as Constituições estadual e federal condenavam.

Muitos réus, além disso, responderiam falsamente às perguntas e acabariam

cometendo perjúrio.

A partir do ano de 1960, várias questões acerca do direito à não

autoincriminação foram levados à Suprema Corte. Em Murphy v. Waterfront

Comission of New York Harbor (1964)15, a Corte Suprema decidiu que o direito à

não autoincriminação poderia ser invocado para impedir o governo federal de usar

uma informação obtida por procuradores estaduais. A questão principal colocada

perante a Corte era saber se um estado, tendo dado imunidade a determinada

testemunha, poderia compeli-la a responder a determinadas questões que poderiam

incriminá-la perante uma corte federal. Tendo estabelecido que os estados estão

vinculados pela cláusula de não autoincriminação da Quinta Emenda, o tribunal

dispôs que testemunhos autoincriminatórios dados sob coação de um governo

(estadual) não podem ser usados por outro (federal). Dessa forma, procuradores

federais estão proibidos de utilizar testemunhos obtidos de modo forçado pelo

estado.

15

Disponível em: <https://supreme.justia.com/cases/federal/us/378/52/case.html>. Acesso em: 03 out. 2014.

Page 19: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

19

Em 1965, no julgamento de Griffin v. California16, a Corte Suprema deixou

assente que considerações do juiz ou do Ministério Público sobre a recusa de um

réu em depor violavam a Quinta Emenda. Griffin (réu) foi condenado por assassinato

em primeiro grau. Ele não testemunhou em seu julgamento. Durante as alegações

finais, a acusação se referiu repetidamente à recusa de Griffin em depor, o que

indicaria a sua culpa. O juiz instruiu o júri no sentido de que Griffin tinha o direito

constitucional de não testemunhar. No entanto, de acordo com a lei da Califórnia, o

juiz instruiu o júri no sentido de que ele poderia inferir como verdadeiro qualquer

evidência ou fato que Griffin poderia ter esclarecido e se recusara a fazê-lo. A

Suprema Corte entendeu que tal procedimento não era constitucional, proibindo que

qualquer prejuízo pudesse advir do silêncio do réu.

Um ano depois de Griffin, o tribunal estendeu o direito de permanecer em

silêncio para suspeitos sob custódia que prestassem declarações não juramentadas,

no julgamento Miranda v. Arizona. A presença ou a ausência de um juramento era

relevante à época, pois uma declaração não juramentada feita em resposta a um

interrogatório policial poderia ser utilizada contra o suspeito em um tribunal, sendo

equivalente, portanto, ao seu testemunho em juízo. O julgamento Miranda v. Arizona

constituiu um marco no direito à não autoincriminação, sendo a decisão do tribunal

repetida até hoje nos interrogatórios realizados pela polícia:

Você tem o direito de permanecer em silêncio. Tudo o que disser pode e será usado contra você em um tribunal. Você tem o direito a um advogado. Se você não puder pagar um advogado, um lhe será fornecido. Você entende os direitos que acabei de ler para você? Com esses direitos em mente, você gostaria de falar comigo?

17

No Brasil, o direito à não autoincriminação foi incorporado à Constituição

apenas em 1988, muito embora já se pudesse inferi-lo de textos anteriores, uma vez

que está evidentemente abrangido pelo direito de defesa. O direito à não

autoincriminação consta ainda de importantes tratados incorporados pelo direito

brasileiro.

16

Disponível em: <https://supreme.justia.com/cases/federal/us/380/609/case.html>. Acesso em: 03 out. 2014.

17 N g “You have the right to remain silent. Anything you say can and will be used against you in a court of law. You have the right to an attorney. If you cannot afford an attorney, one will be provided for you. Do you understand the rights I have just read to you? With these rights in mind, do you wish to sp ?” (Nossa tradução).

Page 20: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

20

Com efeito, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e a

Convenção Americana sobre Direitos Humanos, ambos os documentos

incorporados ao direito brasileiro em 1992, contêm disposição acerca do direito à

não autoincriminação. O Brasil ainda ratificou, em 2002, o Estatuto de Roma do

Tribunal Penal Internacional, diploma que também contém menção expressa ao

direito à não autoincriminação.

O Código de Processo Penal, editado em 1941 no governo de Getúlio Vargas,

muito embora tivesse assegurado ao réu, em seu artigo 186, o direito de não

responder às perguntas que lhe fossem feitas, permitia que o silêncio pudesse ser

interpretado em seu desfavor. A redação do dispositivo não se coadunava com o

texto constitucional, tendo a contrariedade sido corrigida pela Lei n. 10.792/2003,

que lhe conferiu nova redação:

Art. 186. Depois de devidamente qualificado e cientificado do inteiro teor da acusação, o acusado será informado pelo juiz, antes de iniciar o interrogatório, do seu direito de permanecer calado e de não responder perguntas que lhe forem formuladas. Parágrafo único. O silêncio, que não importará em confissão, não poderá ser interpretado em prejuízo da defesa.

Relembre-se, por fim, que a positivação constitucional do direito à não

autoincriminação ocorreu no Brasil após um longo período de exceção, como uma

reação ao abuso das inquirições coercitivas. Também em decorrência desse abuso

ocorrido no regime militar, foi dada ao direito à não autoincriminação uma

interpretação muito extensiva, passando a abranger hipóteses que não encontram

paralelo no direito comparado, como bem observado por Marcelo Schirmer

Albuquerque:18

A pressa em desenvolver um processo penal com ênfase na proteção da liberdade individual levou a doutrina a ignorar algumas de suas funções e a sugerir, com relação à garantia de não autoincriminação, interpretações que carecem de sentido, porque não embasadas em sua finalidade protetiva, e nem sempre encontram respaldo na lógica e na coerência interna do sistema.

18

ALBUQUERQUE, Marcelo Schirmer. A garantia de não auto-incriminação: extensão e limites. Belo Horizonte: Del Rey, 2008. p. 33.

Page 21: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

21

A função do direito à não autoincriminação, entretanto, conquanto

fundamental ao direito de defesa e ao processo penal moderno, não tem a finalidade

de impossibilitar a persecução penal ou de consagrar uma imunidade corporal

descomprometida de qualquer fundamentação racional coerente.19

2.2 Incorporação do direito à não autoincriminação aos tratados

internacionais de direitos humanos

Muitas pessoas, quando se deparam com questões relativas a julgamentos

morais, enfrentam duas espécies de indagação20. Uma refere-se à ideia de que há

ações e comportamentos que são corretos e outros que são errados universalmente

− há a intuição de que há respostas corretas para as questões morais. A outra diz

respeito ao responsável pelo julgamento das outras culturas: quem somos nós para

julgar outras culturas? Quem somos nós para aplicarmos os nossos modelos às

outras culturas?

Tais questões remetem ao tema do relativismo cultural. O relativismo cultural

consiste na ideia de que os sistemas ético-morais, que são encontrados nas

diversas culturas, são todos igualmente válidos. Defendem os relativistas a tese de

que nenhuma cultura é efetivamente melhor ou pior do que qualquer outra.

Há duas formas de relativismo: o relativismo moral subjetivo e o relativismo

moral cultural. O relativismo subjetivo parte do pressuposto de que não há verdades

morais universais e que a verdade dos juízos morais variará conforme as opiniões e

preferencias individuais.

O relativismo subjetivo sustenta que as verdades morais são preferências

muito semelhantes com os nossos gostos pessoais. Ensina que quando se trata de

escolhas ético-morais, ou seja, do que se pode considerar certo ou errado, as

pessoas devem fazer aquilo que entendam ser o certo sob a sua ótica pessoal. Fácil

perceber que tal modalidade de relativismo não obriga a um determinado modelo de

19

ALBUQUERQUE, Marcelo Schirmer, A garantia de não auto-incriminação: extensão e limites, cit., p. 33.

20 LUKES, Steven. Moral relativism. New York: Picador, 2008. Preface.

Page 22: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

22

conduta para todos os indivíduos em situações semelhantes. Quando confrontadas

situações éticas idênticas, uma pessoa poderá escolher um caminho, ao passo que

outra poderá escolher o caminho oposto. Em suma, não há regras universais de

comportamento que sejam aplicadas a todas as pessoas.

A crítica que pode ser feita contra a ética relativista é que tudo pode ser

considerado correto. Gustav Radbruch21 observa que

A filosofia do direito relativista é incapaz de determinar, para o indivíduo, a escolha entre as concepções jurídicas de pressupostos últimos e contrários. Ela se limita a apresentar-lhe, de modo exaustivo, as possibilidades de tomada de posição, mas abandona a própria tomada de posição à sua decisão criada nas profundezas da personalidade — portanto, não do seu arbítrio, mas, antes, da sua consciência.

Os relativistas morais culturais também defendem a ideia de que não há

verdades morais absolutas, universais. Todavia, aqui a relatividade não está

subordinada à vontade individual. A verdade dos juízos morais diz respeito às

crenças compartilhadas pelos integrantes de uma determinada cultura. Destarte, o

que se entende por moralmente correto irá depender das crenças estabelecidas no

seio de uma determinada sociedade.

Os relativistas morais culturais entendem que não existe um padrão definitivo

do bem ou do mal e que cada decisão sobre o que é certo e sobre o que é errado

será um produto da sociedade, vale dizer, qualquer opinião sobre a moralidade ou

ética está subordinada à perspectiva de cada cultura.

O relativismo cultural é uma corrente muito difundida no mundo moderno e

normalmente costuma ser associado a temas como pluralismo e tolerância. A sua

adoção possibilita a justificação de quase todas as condutas, uma vez que a

verdade é relativa, vale dizer, não existe uma posição ética absoluta.

Não há que se confundir relativismo cultural com mera diversidade cultural. A

diversidade cultural aponta a existência de diversas culturas, com diferentes códigos

21

RADBRUCH, Gustaf. Filosofia do direito. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010, p. 19.

Page 23: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

23

de comportamento. O relativismo moral, a seu turno, é a corrente que defende que

as ações são certas ou erradas de forma relativa e não absoluta.

Opor-se ao relativismo cultural não implica o reconhecimento de que todos os

valores são absolutos, mas apenas o entendimento de que há alguns valores que

são dotados dessa característica, ou seja, nem todos os valores são relativos à

cultura. O que caracteriza, portanto, o relativista quanto à verdade, é que ele

considera que essa verdade é sempre relativa, ao passo que os que defendem tese

contrária entendem que isso nem sempre acontece.

Não há como negar, entretanto, não obstante as objeções dos relativistas,

que há valores que são compartilhados pelos diversos povos do planeta. Marcel

Conche22 demonstrou que a moral é universal − não se baseia nem na religião e

tampouco na metafísica −, desde que entendamos por moral a teoria das obrigações

incondicionais do homem em relação ao próprio homem, na medida que todos os

homens nascem livres e iguais em direito. Para reforçar o seu argumento, pondera

que algumas condutas – assassinar, torturar, caluniar − não são permitidas em

nenhum lugar do planeta. Vale a pena transcrever a sua preciosa lição:

Se eu fundamentar minha moral em minha religião, vocês contestarão minha religião em nome de uma outra religião ou da irreligião (se forem agnósticos ou ateus), e minha moral não passará de uma moral como as outras, de uma moral entre outras, uma moral particular. Só poderei dizer: esta é minha moral, vocês têm a sua, e eu a minha. Se eu fundamentar minha moral em minha filosofia, vocês contestarão minha filosofia em nome de uma outra filosofia ou da não-filosofia, e minha moral não passará de uma moral entre outras, sem nenhum direito de se impor. Se vocês contestarem a necessidade de fundamentar a moral, porque todos já dispõem de uma, acreditarei decerto que minha moral é a melhor, mas vocês acharão o mesmo da moral de vocês. Todas as morais terão igual direito de julgar o que é bom e o que não é. Então os assassinos de Buchenwald, Dachau, Auschwitz, etc. estarão com a faca e o queijo na mão. Terem sido vencidos por uma força superior, mas da qual não será possível dizer que estava, mais do que qualquer outra, a serviço da verdade moral, terem sido vencidos, repito, será seu único erro. Caso contrário, deve-se, em primeiro lugar, fundamentar a moral; em seguida, deve-se fundamentá-la não no particular – e uma religião ou uma filosofia sempre são particulares, porque existem outras –, mas no universal. O universal é o que deixa de lado todas as particularidades. Deixar de lado o que nos separa ou nos distingue é o que é feito no diálogo, quando se escuta. Eu falo, você escuta; você fala, eu escuto. Operamos ambos a redução dialógica, colocando de lado nossas crenças, nossas

22

CONCHE, Marcel. O fundamento da moral. Tradução de Marina Appenzeller; revisão da tradução de Márcia Valéria Martinez de Aguiar. São Paulo: Martins Fontes, 2006. Prefácio. p. IX e X.

Page 24: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

24

opiniões, nossas tradições, nossas particularidades de todos os tipos para estarmos exclusivamente atentos ao verdadeiro e ao falso. Realizamos o universal vivo por nossa operação recíproca. O que acontece então? Cada qual pressupõe que o outro pode apreender a verdade que é a sua verdade, mesmo que para cada um deles esta seja apenas a do outro. Ou: cada qual, simplesmente para poder dirigir-se ao outro, falar-lhe, pressupõe o outro como capaz de verdade. Por esse motivo, cada qual pressupõe o outro como seu igual. A partir do momento em que os desiguais dos regimes baseados em privilégios se dirigissem um ao outro de uma maneira que não fosse para julgar, louvar ou criticar, ou comandar sem réplica, colocariam em perigo, pelo simples fato de serem dois seres humanos falando um com o outro apenas para dizer o verdadeiro e o falso, o próprio sistema que os estabelecia como desiguais. É por esse motivo que privilegiados e não privilegiados não dialogavam e muitas vezes não se falavam. Ora, dessa igualdade de todos os homens, implicada no simples fato de se poder travar uma conversa de fato, extrai-se toda a moral – aquela que, diferentemente das morais coletivas particulares, é a mesma para todos e contém todos os direitos e deveres universais do homem. A moral baseia-se não nesta ou naquela crença, religião ou sistema, mas neste absoluto que é a relação do homem com o homem no diálogo.

Esses ideais compartilhados no diálogo foram traduzidos no reconhecimento

dos direitos constantes na Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada

pelas Nações Unidas em 194823. Redigida sob o impacto das atrocidades cometidas

durante a 2ª Guerra Mundial, foi aprovada por unanimidade, embora com a

abstenção de países comunistas, Arábia Saudita e África do Sul, o que comprova a

aceitação dos valores consignados no referido documento. De fato, a assinatura da

Declaração importa no reconhecimento de diversos valores, entre eles os valores

supremos da igualdade, da liberdade e da fraternidade entre os homens, como ficou

expresso em seu artigo 1.

O relativismo cultural, como visto, é incompatível com a noção de direitos

humanos universais. O relativista moral deve ponderar que tais tratados não

exprimem princípios éticos universais e que a violação dos direitos neles constantes

é possível, desde que assim determine uma cultura específica. Vale dizer, se

determinada cultura considera correta a discriminação dos indivíduos com base em

critérios referentes ao sexo, o relativista deve aceitar que nessa cultura é acertada

tal discriminação, sendo que a Declaração apenas se limita a expressar uma

posição diferente.

23

Disponível em: <http://unesdoc.unesco.org/images/0013/001394/139423por.pdf>. Acesso em: 12 dez. 2014.

Page 25: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

25

Todavia há que se considerar que, com o processo de globalização e a

consequente criação de vínculos e espaços sociais transnacionais, houve a

aproximação das diversas culturas e a adoção de padrões universais. A

globalização, que foi instrumentalizada por meio da criação de organismos

supraestatais e pela assinatura de múltiplos tratados, entre eles os já citados

tratados de direitos humanos, teve o efeito de compartilhar os mesmos valores entre

todos os povos. A aproximação das culturas que decorreu desse processo trouxe

como consequência uma uniformidade do modo de vida e de pensar dos mais

variados povos, uniformidade essa que acabou por reduzir a força dos argumentos

relativistas, pois não há que se falar em diversidade de conduta relativamente ao

mesmo grupo cultural.

Assim, não obstante as objeções dos relativistas, não há como desprezar a

universalidade dos valores consagrados na Declaração Universal dos Direitos

Humanos, uma vez que tais valores foram incorporados pelas mais variadas

culturas.

André Ramos Tavares aduz que a tese dos direitos humanos universais

poderia denotar a tentativa de imposição dos valores culturais do Ocidente em

detrimento de uma concepção oriental, fato que muito dificultou a sua ampla

adoção24. Não se trata, todavia, da imposição dos valores culturais de determinados

países, mas de uma aceitação espontânea e fundamentada na racionalidade e

soberania, processo que culmina com a elaboração de leis inspiradas nos

mencionados direitos.25

Vale a pena relembrar que os tratados de direitos humanos necessitam ser

internalizados para que produzam os efeitos previstos em seus textos.

24

TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional. 9. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 520.

25 Apontando a diferença conceitual existente, Thiago Matsushita indaga acerca da dignidade da pessoa humana a ser implementada de forma universal, aquela reconhecida no Ocidente como a garantidora dos direitos humanos, aqueles direitos humanos reconhecidos e aplicados pelos países detentores do capital econômico mundial, ou os direitos humanos reconhecidos e preservados pela ONU (MATSUSHITA, Thiago Lopes. O jus-humanismo normativo: expressão do princípio absoluto . 2012. T (D u D ) − P í U v C ó Sã Paulo, São Paulo, 2012. p. 115).

Page 26: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

26

Anteriormente ao advento da Emenda Constitucional n. 45/2004, havia duas

correntes no que diz respeito à hierarquia dos tratados internacionais incorporados

ao direito nacional. Alguns doutrinadores26 entendiam que os tratados internacionais

possuíam hierarquia superior à das leis ordinárias internas. Flávia Piovesan 27

defendia tese ainda mais radical, asseverando que os direitos previstos em tratados

internacionais, relativos a direitos humanos, ratificados pelo Brasil, tinham hierarquia

de norma constitucional e deviam ser aplicados imediatamente, não estando

sujeitos, por conseguinte, ao procedimento rotineiro de incorporação dos tratados

internacionais.

O Supremo Tribunal Federal28, todavia, entendia que o tratado internacional,

quando de sua incorporação, tinha a mesma hierarquia da lei ordinária, podendo,

inclusive, ser por ela revogado, se promulgada em momento posterior.

Com o advento da Emenda Constitucional n. 45/2004, tentou-se sedimentar a

disputa entre essas correntes, como preleciona André Ramos Tavares29. E assim o

fez ao dispor que os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos

que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por

três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas

constitucionais.

Embora não tenha a Emenda deixado expressamente consignada a

hierarquia constitucional automática dos tratados, mostrou o caminho a ser

percorrido para tanto.

Por fim, e na esteira das lições de Amartya Sen30, deve-se ponderar que os

direitos humanos não têm apenas a função de servir de base para novas

legislações:

26

Hildebrando Accioly e Haroldo Valladão, entre outros. 27

PIOVESAN, Flávia. Temas de direitos humanos. São Paulo: Max Limonad, 1998. p. 36-37. 28

ST − . 80.004/S . . X v buqu qu . 29

TAVARES, André Ramos, Curso de direito constitucional, cit., p. 560. 30

SEN, Amartya. A ideia de justiça. Tradução de Denise Bottmann e Ricardo Doninelli Mendes. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. p. 399-400.

Page 27: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

27

As vias e maneiras de defender a ética dos direitos humanos não precisam se restringir à elaboração de novas leis (embora muitas vezes a legislação possa se mostrar o caminho correto para se proceder); por exemplo, o monitoramento social e outras formas de apoio ativista oferecidas por organizações como o Human Rights Watch, a Anistia Internacional, a OXFAM, os Médicos sem Fronteiras, Save the Children, a Cruz Vermelha e a Action Aid (citando tipos muito variados de ONGS), podem contribuir para ampliar o alcance dos direitos humanos reconhecidos.

Em determinados contextos, assim, pode não haver nenhum envolvimento da

legislação31, mesmo porque não se mostra adequado, em todas as hipóteses, a

incorporação do direito.32

2.3 Direito à não autoincriminação. Elementos caracterizadores

O direito à não autoincriminação, objeto do nosso estudo, é um desses

valores compartilhados pelos diversos povos, direito expresso em vários tratados de

direitos humanos e em várias Constituições modernas.

A Constituição brasileira, em seu artigo 5º, inciso LXIII, afirma o direito à não

incriminação nos seguintes termos: “o preso será informado de seus direitos, entre

os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e

de advogado.”

Eugênio Pacelli de Oliveira33 afirma que o direito à não autoincriminação foi o

responsável pela destruição de um dos antigos pilares do processo penal antigo, o

dogma da verdade real, e permite que o acusado permaneça em silêncio durante

todo processo, além de impedir que seja compelido a produzir ou a contribuir com a

prova contrária ao seu interesse. Esclarece ainda que a participação do réu somente

poderá ocorrer em casos excepcionais, expressamente previstos em lei e desde que

não haja risco de afetação dos seus direitos fundamentais.

31

Thiago Matsushita, com pensamento semelhante, anota que que não é necessário que haja a sua positivação para que eles sejam exercíveis (MATSUSHITA, Thiago Lopes, O jus-humanismo normativo: expressão do princípio absoluto da proporcionalidade, cit., p. 120).

32 Amartya Sen dá o seguinte exemplo: pode ser muito grande a importância ética do direito dos gagos de não serem ridicularizados ou menosprezados em reuniões públicas, direito esse que exige proteção, mas é improvável que seja um bom objeto para leis punitivas, e assim seria melhor buscar a proteção a esse direito em outras fontes, como por meio da educação, debate público etc. (SEN, Amartya, A ideia de justiça, cit., p. 400).

33 OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de processo penal. 16. ed. São Paulo: Atlas, 2012. p. 41.

Page 28: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

28

O direito à não autoincriminação, esclarece Maria Elizabeth Queijo34, tem a

finalidade de proteger o indivíduo contra os excessos cometidos pelo Estado na

persecução penal, incluindo-se o resguardo contra coação e violência física e moral

utilizadas para constrangê-lo a cooperar na instrução probatória.

Carlos Henrique Borlido Haddad 35 aduz que o direito contra a

autoincriminação “protege a liberdade de decisão e o resultado desse decidir, que se

traduz na opção em realizar ou não uma conduta ativa de cunho probatório, sem que

a inércia do acusado importe em assunção de culpa”, ou seja, configura um direito

de não colaboração do acusado com as autoridades perseguidoras. É possível,

assim, “agrupar as ações sob duas perspectivas: o acusado possui liberdade em

suas declarações e dele não se pode exigir a colaboração na produção de prova de

caráter incriminatório”.

Pode-se ainda encontrar os elementos definidores do direito em diversos

tratados internacionais. A Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em seu

artigo 8, 2, “g”, ao regular as garantias judiciais, assevera que toda a pessoa

acusada tem o direito de não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a

confessar-se culpada.

O Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos 36 , de forma similar

prevê, em seu artigo 14, 3, “g”, que toda pessoa acusada de um delito terá direito,

em plena igualdade, de não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a confessar-

se culpada.

34

QUEIJO, Maria Elizabeth. O direito de não produzir prova contra si mesmo: o princípio nemo tenetur se detegere e suas decorrências no processo. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 77.

35 HADDAD, Carlos Henrique Borlido. Conteúdo e contornos do princípio contra a auto-incriminação. T (D u D ) − u D U v G B Horizonte, 2003. p. 299-300.

36 BRASIL. Decreto nº 592, de 6 de Julho de 1992. Atos Internacionais. Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos. Promulgação. Diário Oficial da União, Seção 1, Brasília, de 07 jul.1992. p. 8.716. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/D0592.htm>. Acesso em: 12 dez. 2014.

Page 29: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

29

A Constituição norte-americana, a seu turno, estatui em sua Quinta Emenda37

que ninguém poderá ser obrigado em qualquer processo criminal a servir de

testemunha contra si mesmo.

A Convenção Europeia dos Direitos do Homem 38 não contém disposição

expressa consagrando o direito à não autoincriminação. Todavia, apesar de não

expressamente mencionado no seu artigo 6º, há a previsão de um julgamento justo

e equitativo, tendo a Corte Europeia de Direitos Humanos incorporado ao conceito

de julgamento equitativo o direito de que um indivíduo não deve ser obrigado a

produzir prova contra si mesmo.

Do exposto, podemos apontar as principais características do direito à não

autoincriminação: 1) permitir que o acusado permaneça em silêncio durante todo o

processo; 2) impedir que o indivíduo seja compelido a produzir prova contrária ao

seu interesse; 3) resguardar o indivíduo contra coação e violência física ou moral

para constrangê-lo a cooperar na instrução probatória; 4) impedir que a sua inação

seja de qualquer forma utilizada em seu desfavor; e 5) transferir à acusação o ônus

da prova.

2.4 O direito à não autoincriminação na jurisprudência do Supremo

Tribunal Federal

O direito à não autoincriminação é, nos termos da jurisprudência do Supremo

Tribunal Federal, um direito público subjetivo39, garantido pelo artigo 5º, inciso LXIII,

da Constituição Federal40 e pelo Pacto de São José da Costa Rica41, que pode ser

37

“Emenda V - Ninguém será detido para responder por crime capital, ou outro crime infamante, salvo por denúncia ou acusação perante um Grande Júri, exceto em se tratando de casos que, em tempo de guerra ou de perigo público, ocorram nas forças de terra ou mar, ou na milícia, durante serviço ativo; ninguém poderá pelo mesmo crime ser duas vezes ameaçado em sua vida ou saúde; nem ser obrigado em qualquer processo criminal a servir de testemunha contra si mesmo; nem ser privado da vida, liberdade, ou bens, sem processo legal; nem a propriedade privada poderá ser expropriada para uso público, sem justa indenização.” (Disponível em: <http://www.braziliantranslated.com/euacon01.html>. Acesso em: 16 set. 2014).

38 Disponível em: <http://www.echr.coe.int/Documents/Convention_POR.pdf>. Acesso em: 12 dez. 2014.

39 ST − HC . 79.812/SP . . C ST − HC . 79.589/D . Min. Octavio Gallotti; ST − HC . 68.929/SP . . C ST − HC . 73.035/D . . C V lloso.

40 ST − HC . 102.556/DF, rel. . u ST − HC . 79.244/D . Min. Sepúlveda Pertence.

41 ST − HC . 101.909/MG, rel. Min. Ayres Britto.

Page 30: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

30

invocado não apenas pelos presos, conforme consta do artigo 5º da Constituição

Federal, mas também pelos acusados, investigados, indiciados e suspeitos42 − as

testemunhas, inclusive as convocadas para depor em Comissões Parlamentares de

Inquérito, podem invocá-lo, desde que as perguntas que lhes forem formuladas

tenham possibilidade de incriminá-las, caso contrário prevalece a obrigação legal de

colaborar com a Justiça43. Alguns julgados estendem a qualquer pessoa a proteção

do direito à não autoincriminação, nos termos, diga-se, do que consta do texto do

Pacto de São José da Costa Rica44. É um direito que deve ser invocado pela própria

pessoa que sofreu a violação45, geralmente não aproveitando a terceiros, oponível a

todos os agentes estatais, independentemente do procedimento adotado (penal ou

administrativo)46 e a qualquer momento (fase inquisitorial e processual), não sendo

necessário qualquer provimento judicial para tanto.47

O direito à não incriminação é gênero do qual o direito ao silêncio é uma de

suas manifestações. Ele não se restringe, assim, à faculdade de o investigado

manter-se em silêncio, mas abrange várias outras hipóteses que têm como objetivo

transferir às autoridades policiais e judiciárias a responsabilidade de comprovar os

fatos delituosos, vale dizer, estes devem ser comprovados independentemente da

colaboração do investigado ou réu. Em outros termos, o investigado ou réu têm o

direito de permanecer inertes, não apenas no que se refere ao silêncio, mas também

no que diz respeito à produção de quaisquer outras espécies de provas; a

comprovação de sua culpabilidade deve ser feita sem a sua ativa participação, ou

seja, eles não podem ser forçados a produzir provas contra si mesmos.

42

ST − HC . 93.916/PA, rel. Min. Cármen Lúcia; ST − HC . 69.026/DF, rel. Min. Celso de Mello; ST − HC . 77.135/SP, rel. Min. Ilmar Galvão; ST − HC . 102.019/PB, rel. Min. Ricardo Lewandowski.

43 ST − HC . 73.035/DF, rel. . C V ST − HC . 94.016/SP . . C ST − g . 435.266/SP . . S ú v P tence; ST − HC . 100.200/DF, rel. Min. Joaquim Barbosa.

44 Pacto de San José da Costa Rica: “ rtigo 8 - Garantias judiciais [...] 2. [...] Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas: [...] g) direito de não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a confessar-se culpada ” (Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/anexo/and678-92.pdf>. Acesso em: 12 dez. 2014); ST − HC n. 94.016/SP, rel. Min. Celso de Mello.

45 ST − HC . 80.949/RJ, rel. Min. Sepúlveda Pertence.

46 ST − HC . 94.016/SP . . C ST − HC . 79.812/SP . Min. Celso de Mello; ST − HC n. 80.584/PA, rel. Min. Néri da Silveira.

47 ST − HC . 100.200/D . Min. Joaquim Barbosa; ST − HC n. 82.354/PR, rel. Min. Sepúlveda Pertence.

Page 31: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

31

A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal endossou o mencionado

entendimento. De fato, decidiu a Corte Suprema que:

O direito constitucional de conservar-se em silêncio é consectário lógico do princípio da não autoincriminação, o qual outorga ao preso e ao acusado em geral o direito de não realizar prova contra si mesmo

48 e que as

garantias constitucionais contra a autoincriminação têm sua manifestação mais eloquente no direito ao silêncio dos acusados.

49

2.5 Natureza jurídica

A Constituição Federal de 1988 regulou os direitos e garantias fundamentais

em cinco capítulos diferentes − artigos 5º a 17 − com a finalidade de viabilizar a sua

plena inserção no nosso ordenamento jurídico máximo. Os referidos direitos foram

organizados em direitos e garantias individuais (Capítulo I), direitos sociais (Capítulo

II), direitos de nacionalidade (Capítulo III), direitos políticos (Capítulo IV) e direitos

dos partidos políticos (Capítulo V).

Costuma-se diferenciar os direitos das garantias fundamentais. As garantias

consistem no direito dos cidadãos de exigirem dos poderes públicos a proteção de

seus direitos, é dizer, as garantias fundamentais são estabelecidas na Constituição

da República para funcionarem como um eficaz manto protetivo dos direitos

fundamentais. Jorge Miranda, acerca dessa diferença, leciona:

Os direitos representam só por si certos bens, as garantias destinam-se a assegurar a fruição desses bens, os direitos são principais, as garantias são acessórias e, muitas delas, adjectivas (ainda que possam ser objecto de um regime constitucional substantivo); os direitos permitem a realização das pessoas e inserem-se directa e imediatamente, por isso, nas respectivas esferas jurídicas, as garantias só nelas se projectam pelo nexo que possuem com os direitos; na acepção jusracionalista inicial, os direitos declaram-se, as garantias estabelecem-se.

50

Dito de outro modo, os direitos fundamentais têm caráter declaratório,

enquanto as garantias são instrumentos assecuratórios. De certo modo, podemos

afirmar que as garantias são especificações, detalhamentos dos direitos declarados

48

ST − HC . 99.558/ S . Min. Gilmar Mendes. 49

ST − HC . 79.244/D . Min. Sepúlveda Pertence. 50

MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional: direitos fundamentais. Coimbra: Coimbra Editora, 2000. v. 4, p. 95.

Page 32: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

32

e lhes conferem aspectos práticos de aplicação. Em resumo, os direitos representam

por si só certos bens, sendo que as garantias destinam-se a assegurar o gozo de

tais bens; os direitos são principais, ao passo que as garantias acessórias.

José Afonso da Silva 51 entende que não são nítidas as diferenças entre

direitos e garantias. O autor assevera que não é decisivo em face da Constituição

“afirmar que os direitos são declaratórios e as garantias assecuratórias, pois as

garantias são em certa medida declaradas e, às vezes, se declaram direitos usando

forma assecuratória”.

André Ramos Tavares52 nos dá o seguinte exemplo, acerca da ação popular,

para corroborar a posição de José Afonso da Silva:

Para tanto, tome-se como paradigma o instituto da ação popular. Como se sabe, tradicionalmente é ele encarado como remédio constitucional, e, nesse sentido, trata-se de uma garantia, de uma posição eminentemente assecuratória. Mas não se pode negar que o exercício da ação popular é, considerado em si mesmo, o exercício de um direito de índole política. Assim, neste último sentido, o Texto Constitucional consagra um direito de participação política, declarando-o exercitável através da ação popular. E, mais ainda, os direitos que a ação popular tutela vêm consagrados no mesmo dispositivo que a prevê como ação assecuratória.

De qualquer sorte, com as ressalvas acima apontadas, entendem alguns

autores que o direito à não autoincriminação consistiria em uma garantia

fundamental. Nesse sentido, Marcelo Schirmer Albuquerque53 aduz que não há uma

valoração positiva nos atos de se omitir e se calar, mas apenas tais ações são

asseguradas, pois revelam-se aptas para a proteção a direitos. Prossegue afirmando

que “Nascida para resguardar o sujeito contra violações à sua incolumidade física e

moral ou às suas liberdade e dignidade, evidente que a garantia de não

autoincriminação não existe a não ser para a proteção dos direitos fundamentais, ou

seja, em função deles.”

51

SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 16. ed. São Paulo: Malheiros, 1999. p. 189.

52 TAVARES, André Ramos, Curso de direito constitucional, cit., p. 898.

53 ALBUQUERQUE, Marcelo Schirmer, A garantia de não auto-incriminação: extensão e limites, cit., p. 36.

Page 33: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

33

Não obstante os bons argumentos apresentados no sentido de se considerar

a cláusula nemo tenetur se detegere como garantia e não como direito fundamental,

entendemos que ela não possui um caráter meramente instrumental e pode ser

invocada isoladamente, mesmo na ausência de qualquer processo que teria a

função de garantir.

Com pensamento semelhante, Carlos Henrique Borlido Haddad54 assevera

que ao:

[...] permanecer em silêncio, faz o acusado uso de um direito, que não se confunde com sua garantia. O silêncio é mero mecanismo de manifestação do princípio contra a autoincriminação e, não, a proteção criada para propiciar o respeito ao princípio. O papel de garantia é desempenhado pelo habeas corpus, como se viu no capítulo anterior, pois o writ é manejável quando aquele que invoca o silêncio fica impedido de exercitá-lo. Servirá o habeas corpus para assegurar ao réu, perante as autoridades encarregadas da persecução penal, o direito de permanecer calado.

A controvérsia acerca da natureza do referido direito também foi observada

recentemente nos Estados Unidos. Após os incidentes ocorridos no dia 11 de

setembro, além da diminuição que se verificou em alguns dos direitos dos cidadãos

e consequente aumento dos poderes do Estado, houve também uma mudança no

foco da investigação criminal. O objetivo do Estado passou a ser impedir o mal antes

que ele ocorra. O Estado não mais deve se satisfazer com a punição dos

responsáveis pelos crimes, mas deve buscar primordialmente impedi-los, haja vista

as irreparáveis perdas advindas de determinados atos criminosos.

Na esteira dessa linha de pensamento, chamou a atenção da comunidade

jurídica americana a decisão da Suprema Corte no julgamento Chavez v. Martinez

(27.05.2003). Conquanto não se tratasse de um processo criminal, mas cível, a

decisão possibilitou um maior entendimento acerca do pensamento dos membros

daquela corte a respeito do significado e extensão do direito à não autoincriminação.

Martinez foi submetido a um interrogatório que, se não pode ser considerado

como obtido mediante métodos de tortura, permaneceu em seus limites. Os fatos do

54

HADDAD, Carlos Henrique Borlido, Conteúdo e contornos do princípio contra a auto-incriminação, cit., p. 31.

Page 34: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

34

caso são incontroversos, pois os momentos relevantes do interrogatório foram

gravados. Martinez foi baleado por um policial após ter entrado em luta corporal com

ele e tomado a sua arma. Ao chegar ao hospital, Martinez foi interrogado por outro

policial, de nome Chavez. A gravidade das lesões sugeria que Martinez não iria

sobreviver. Não foram lidos os denominados Miranda’s rights. Além disso, Chavez

deu a entender a Martinez que só permitiria o seu atendimento médico se

respondesse às suas perguntas. Diante desse quadro, Martinez acabou

respondendo aos questionamentos de Chavez, muito embora tenha repetidamente

afirmado que não sabia de nada e que não falaria mais uma palavra, até ser tratado.

Antes de prosseguirmos, uma explicação se faz necessária. Não obstante

Martinez tenha admitido em seu interrogatório ter brigado com um policial, tomado a

sua arma e a apontado para ele, as suas declarações nunca foram levadas a juízo,

ou seja, ele não foi acusado por crime algum. Vale dizer, as suas declarações

autoincriminatórias não foram usadas contra ele em um processo criminal.

Martinez acabou processando o policial Chavez, em virtude de o

interrogatório ter sido conduzido sem a observância dos ditames legais. Impende

ressaltar que a lei garante aos policias uma relativa imunidade, a não ser que suas

condutas violem direitos constitucionais.

As cortes inferiores deram razão a Martinez, asseverando que o interrogatório

levado a efeito pelo policial Chavez violava os seus direitos constitucionais. A

Suprema Corte, todavia, reformando as decisões das cortes inferiores, entendeu que

o interrogatório feito mediante coerção sem o uso subsequente das informações

obtidas em um processo criminal não violaria a Quinta Emenda. Embora os votos

não tenham sido uniformes, a maioria concluiu que o privilégio de Martinez contra a

autoincriminação não foi violado pelos policiais que o coagiram a prestar as

declarações, pois elas nunca foram utilizadas contra ele em um processo criminal.

Page 35: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

35

Três membros da Suprema Corte55 entenderam que o privilégio teria sido

violado pelo uso da tortura ou método equivalente, muito embora os frutos do

interrogatório não tenham sido utilizados contra Martinez.

Alan M. Dershowitz56 observa que nenhum dos membros da Suprema Corte

aceitou o ponto de vista de que o mero uso da coação já constituiria, por si só,

violação do privilégio contra a autoincriminação.

Entendeu assim a Suprema Corte que o privilégio contra a autoincriminação

não protege o indivíduo contra a realização de interrogatórios forçados, mas tão

somente impede que suas declarações sejam utilizadas como evidência em um

processo criminal contra ele instaurado. Ausente tal utilização em juízo, não haveria

a violação do privilégio, não importa o grau de coerção.

O caso foi remetido à instância inferior, para se determinar se o pedido de

perdas e danos feito por Martinez, conquanto não fosse uma violação ao privilégio

da autoincriminação, poderia constituir ofensa ao princípio do devido processo legal.

Dito de outro modo, ao que parece, a Suprema Corte dos Estados Unidos

asseverou que, tendo por fundamento o privilégio à não autoincriminação, não existe

efetivamente um direito ao silêncio, há apenas o direito processual de que as

declarações obtidas não sejam utilizadas contra o declarante em um processo

criminal.

É evidente que os agentes que fizerem uso de métodos de tortura ou

abusarem do direito que lhes foi conferido pela legislação devem responder por seus

atos. Ocorre que, independentemente dessas punições, entendemos que o próprio

direito à não autoincriminação é garantido por nossa Constituição de forma

autônoma, e não somente como instrumento para a garantia de outros direitos

fundamentais, ou seja, ele é assegurado, mesmo que nenhuma informação seja

eventualmente utilizada em futuro processo penal. Em suma, mesmo na ausência de

eventual procedimento que em tese seria garantido, o direito existe e pode ser

invocado.

55

Justices Stevens, Kennedy e Ginsburg. 56

DERSHOWITZ, Alan M., Is there a right to remain silent?: coercive interrogation and the Fifth Amendment after 9/11, cit., pos. 184 de 2.222.

Page 36: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

36

Embora, entre nós, ainda se tenha notícia da utilização de métodos ilegais

para a obtenção de informações, na verdade o que ocorre com mais frequência é a

utilização de formas mais sutis de atuação, nas quais os agentes não torturam ou

impõem castigos físicos, mas se utilizam de sua posição de superioridade para

extrair as informações necessárias.

Em vários depoimentos é possível constatar-se os policiais dizerem que o réu

teria admitido esta ou aquela conduta ou que o réu teria franqueado a entrada em

sua residência, quando o bom senso indica que em situações normais isso nunca

ocorreria. Não raramente são utilizadas formas de manipulação psicológica para

extrair a confissão do acusado. Nessas hipóteses, embora não se possa provar o

uso de métodos de tortura, resta evidente que o direito à não autoincriminação foi

violado, ainda que a informação não seja utilizada, e mesmo que o agente não seja

responsabilizado.

Além da utilização dos termos garantia e direito à não autoincriminação, é

possível encontrarmos outras designações, como princípio da não autoincriminação,

privilégio contra a autoincriminação, prerrogativa contra a autoincriminação, além, é

claro, das consagradas expressões latinas nemo tenetur se detegere e nemo tenetur

se ipsum accusare. Conquanto parte da doutrina e jurisprudência prefira a

designação princípio da não autoincriminação ou princípio do nemo tenetur se

detegere57, entendemos mais adequada a utilização da expressão direito à não

autoincriminação, pois algumas das prerrogativas que são por ele abrangidas, como

o direito ao silêncio, têm a natureza de regra – sempre aplicável – e não de princípio,

que pode ser objeto de ponderação e não ser aplicado em determinado caso

concreto. A expressão direito não estaria assim denotando, de antemão, tratar-se a

hipótese de regra ou princípio, ou seja, abrangeria ambas.58

57

Entre os doutrinadores podemos citar Carlos Henrique Borlido Haddad e Maria Elizabeth Queijo, e, ju u ê ST − HC n. 101.909/MG, rel. Min. Ayres Britto; e ST − HC n. 83.960/RS, rel. Min. Sepúlveda Pertence.

58 Robert Alexy entende que os princípios são mandados de otimização caracterizados por poderem ser satisfeitos em graus variados e pelo fato de que a medida devida de sua satisfação não depende somente das possibilidades fáticas, mas também das possibilidades jurídicas. Já as regras são normas que são sempre ou satisfeitas ou não satisfeitas, ou seja, se uma regra vale, então, deve se fazer exatamente aquilo que ela exige. Regras contêm, portanto, determinações no âmbito daquilo que é fática e juridicamente possível (ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2012. p. 90-91).

Page 37: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

37

3 PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS RELACIONADOS AO DIREITO À

NÃO AUTOINCRIMINAÇÃO

Antônio Scarance Fernandes59 assevera que se pode vislumbrar a evolução

da doutrina pátria no sentido de extrair da cláusula da ampla defesa e de outros

preceitos constitucionais, como o da presunção de inocência, o direito à não

autoincriminação.

Outros autores entendem derivar o direito à não incriminação do princípio da

dignidade da pessoa humana.60

Vejamos os principais direitos fundamentais que se conectam ao direito à não

autoincriminação.

3.1 O direito à não autoincriminação e presunção de inocência

O princípio da presunção de inocência encontra-se previsto no artigo 5º,

inciso LVII, da Constituição Federal, e afirma que ninguém será considerado culpado

até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.

Guilherme de Souza Nucci aduz que o princípio tem por objeto garantir que o

ônus da prova caiba à acusação “Todas as pessoas nascem inocentes, sendo esse

o seu estado natural, razão pela qual, para quebrar tal regra, torna-se indispensável

que o Estado-acusação evidencie, com provas suficientes, ao Estado-juiz a culpa do

réu.”61

59

FERNANDES, Antônio Scarance. Processo penal constitucional. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 278.

60 Nesse sentido: SOUZA, Sérgio Ricardo. Manual da prova penal constitucional: pós-reforma de 2008. Curitiba: Juruá, 2008. p. 156.

61 NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de processo penal e execução penal. 2. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 78.

Page 38: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

38

Luigi Ferrajoli62, no mesmo sentido, assevera que se a lei presume que o

indivíduo é inocente, não cabe a ele provar essa condição – ser inocente −, mas à

acusação a prova de sua culpa.

Eugênio Pacelli de Oliveira 63 ensina que o princípio da presunção de

inocência impõe ao Poder Público a observância de duas regras específicas em

relação ao acusado, uma de tratamento e uma de caráter probatório. Em virtude da

primeira, o réu, durante o processo, não pode sofrer restrições pessoais com esteio,

unicamente, na possibilidade de condenação. A segunda diz respeito ao ônus da

prova e estabelece que a prova da existência do fato e de sua autoria incumbem

exclusivamente à acusação.

Antônio Magalhães Gomes Filho 64 afirma que decorre do princípio da

presunção de inocência a impossibilidade de se obrigar o réu a cooperar na

investigação dos fatos.

O direito à não autoincriminação, em sua definição mais ampla, como visto,

estabelece que o indivíduo não é obrigado a colaborar ativamente com a acusação,

ou seja, o investigado ou réu têm o direito permanecer inertes, não apenas no que

se refere ao silêncio, mas também no que tange à produção de quaisquer outras

espécies de prova, uma vez que a comprovação de sua culpabilidade deve ser feita

pela acusação.

É evidente assim a relação entre os dois direitos fundamentais, fato que levou

Eugênio Pacelli de Oliveira65 a afirmar que o direito ao silêncio, do ponto de vista

processual, estrutura-se sobre o princípio da presunção de inocência, no ponto em

que este tem por consequência direta a transferência do ônus probatório à

acusação.

62

FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer et al. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 589.

63 OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de, Curso de processo penal, cit., p. 48.

64 GOMES FILHO, Antônio Magalhães. Presunção de inocência e prisão cautelar. São Paulo: Saraiva. 1991. p. 40.

65 OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Processo e hermenêutica na tutela penal dos direitos fundamentais. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. p. 208.

Page 39: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

39

Embora os dois direitos guardem uma estreita relação, não se confundem,

pois não são exatamente os mesmos os seus escopos. O princípio da presunção de

inocência tem a função de distribuição do ônus da prova, vale dizer, estabelece de

quem é a responsabilidade de comprovação do fato típico e autoria. Não obstante o

direito à não autoincriminação assegurar ao réu o direito permanecer inerte, e nesse

aspecto se assemelhar ao princípio da presunção de inocência, ele também irá

determinar em que circunstâncias poderá o réu ser obrigado a participar, ainda que

passivamente, da produção da prova. Assim, o fato de a acusação ser obrigada a

comprovar a responsabilidade do réu não o desonera do dever de colaboração em

determinadas hipóteses, que serão posteriormente analisadas.

3.2 O direito à não autoincriminação e o devido processo legal

A garantia do devido processo legal tem como antecedente a Magna Carta,

outorgada em 1215 por João Sem-Terra aos seus súditos. O documento acabou por

limitar o poder da monarquia na Inglaterra e dispôs, em seu artigo 39, que nenhum

homem livre seria preso, aprisionado ou privado de uma propriedade, ou tornado

fora da lei, ou exilado, ou de maneira alguma destruído, a não ser por julgamento

legal dos seus pares, ou pela lei da terra.

O princípio consta também da Declaração Universal dos Direitos Humanos

em seu artigo 11, 1, que tem a seguinte redação: “Todo ser humano acusado de um

ato delituoso tem o direito de ser presumido inocente até que a sua culpabilidade

tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham

sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa.”

A nossa Constituição incorporou o princípio do devido processo legal no artigo

5º, inciso LIV, que afirma que ninguém será privado da liberdade ou de seus bens

sem o devido processo legal.

Page 40: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

40

O devido processo legal assegura ao indivíduo dupla proteção, atuando tanto

no âmbito material, como no formal. Antônio Scarance Fernandes66 assevera, nesse

sentido, que o princípio não mais está circunscrito ao âmbito estritamente

processual, mas também possui uma feição substancial, exigindo-se um processo

legislativo previamente definido, a necessidade de que as leis sejam anteriores à

sua aplicação ao caso concreto, bem como que os dispositivos legais sejam

razoáveis e justos.

Não obstante o seu aspecto substancial, é no âmbito do processo que o

princípio assume uma amplitude inigualável, como postulado que traduz uma série

de garantias devidamente especificadas, tais como direito ao juiz natural, direito a

não ser processado com base em prova ilícita, direito a não ser preso senão pela

autoridade competente, entre outras.67

O devido processo legal é ainda um tipo de garantia com caráter subsidiário e

geral em relação às demais garantias, tanto que em várias ocasiões os tribunais

têm-se limitado a se referir diretamente ao devido processo legal, ao invés de às

garantias específicas ou decorrentes.68

A sua relação com o direito à não autoincriminação é visível. Carlos Henrique

Borlido Haddad69 assevera que mesmo que não houvesse a previsão constitucional

do direito ao silêncio e, na ausência de regulamentação em sentido oposto, o direito

contra a autoincriminação se dessumiria do espírito do dispositivo que assegura o

devido processo legal.

O devido processo legal será desrespeitado quando as medidas levadas a

efeito não forem previstas em lei ou, ainda que previstas, não se mostrarem

necessárias e indispensáveis na hipótese concreta, como, por exemplo, em uma

interceptação telefônica utilizada para a investigação de delitos de menor gravidade.

66

FERNANDES, Antônio Scarance, Processo penal constitucional, cit., p. 43. 67

MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 5. ed., rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 745.

68 Ibidem, p. 745.

69 HADDAD, Carlos Henrique Borlido, Conteúdo e contornos do princípio contra a auto-incriminação, cit., p. 34.

Page 41: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

41

3.3 O direito à não autoincriminação e a ampla defesa

O direito à ampla defesa está expressamente consignado no artigo 5º, inciso

LV, da Constituição Federal, nos seguintes termos: “aos litigantes, em processo

judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório

e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”. Ele confere ao indivíduo

a liberdade de, em defesa de seus interesses, alegar fatos e propor provas.

Guilherme de Souza Nucci afirma que o réu é considerado no processo parte

hipossuficiente, haja vista o Estado sempre atuar por intermédio de órgãos

constituídos e preparados, valendo-se de informações e dados de todas as fontes às

quais tem acesso. Por essa razão, “merece o réu um tratamento diferenciado e

justo, razão pela qual a ampla possibilidade de defesa se lhe afigura a compensação

devida pela força estatal”.70

O direito à ampla defesa consagra os seguintes direitos: a) direito de

informação, que obriga o órgão julgador a informar à parte contrária os atos

praticados no processo; b) direito de manifestação, que assegura ao réu o direito de

manifestar-se sobre os elementos do processo; e, c) direito de ver os seus

argumentos considerados, que obriga o julgador a contemplar as razões

apresentadas.71

Vicente Greco Filho72 entende estarem abrangidos pela ampla defesa: a) o

conhecimento claro da imputação; b) a faculdade de apresentar alegações contra a

acusação; c) a possibilidade de acompanhar a prova produzida, bem como a

realização da contraprova; d) a representação por advogado; e) a possibilidade de

recorrer da decisão desfavorável.

O princípio exige uma defesa efetiva, rechaçando preocupações meramente

formais. Corroborando o afirmado, já decidiu o Supremo Tribunal Federal que a

70

NUCCI, Guilherme de Souza, Manual de processo penal e execução penal, cit., p. 79. 71

MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet, Curso de direito constitucional, cit., p. 646.

72 GRECO FILHO, Vicente. Tutela constitucional das liberdades. São Paulo: Saraiva, 1989. p. 62.

Page 42: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

42

“presença formal de um defensor dativo, sem que a ela corresponda a existência de

defesa substancial nada significa no plano do processo penal e no domínio tutelar

das liberdades públicas”73. Em outro julgado, deixou assente a Suprema Corte que

“exsurgindo dos autos que o defensor designado teve desempenho simplesmente

formal, em verdadeira postura contemplativa, forçoso é concluir que o réu estava

indefeso”.74

A ampla defesa importa na configuração de alguns direitos exclusivos do réu,

como, por exemplo, a revisão criminal, vedada à acusação, e realiza-se, no

processo penal, por meio da defesa técnica, da autodefesa, da defesa efetiva e por

qualquer meio de prova hábil a demonstrar a inocência do acusado.75

A autodefesa é aquela exercida pelo próprio acusado em determinados

momentos processuais e se manifesta de diversas formas: direito de audiência,

direito de presença e direito a postular pessoalmente 76 . O direito de audiência

consiste na faculdade que tem o acusado de apresentar ao juiz do processo a sua

defesa, a sua versão dos fatos.

O réu pode exercer o seu direito à ampla defesa da maneira que lhe aprouver,

inclusive pelo silêncio – renunciando, por conseguinte, à autodefesa. Também pode

exercer o seu direito de defesa recusando-se a colaborar com as autoridades para a

produção da prova, como lhe faculta o direito à não autoincriminação. Observe-se,

todavia, que se tal inação lhe trouxer prejuízos, poderá o Judiciário interferir no

processo e determinar a providência necessária para resguardar o seu direito de

defesa. Assim, por exemplo, o réu pode optar por não interpor apelação. Ocorre que

se tal renúncia for manifestada sem a assistência do defensor, o tribunal poderá

conhecer a apelação.77

73

ST − HC . 68.926/ G . Min. Celso de Mello. 74

ST − HC . 71.961-9/SC, rel. Min. Marco Aurélio. 75

OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de, Curso de processo penal, cit., p. 47. 76

FERNANDES, Antônio Scarance, Processo penal constitucional, cit., p. 280. 77

Súmula n. 705 do STF: A renúncia do réu ao direito de apelação, manifestada sem a assistência do defensor, não impede o conhecimento da apelação por este interposta.

Page 43: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

43

3.4 O direito à não autoincriminação e o contraditório

O princípio do contraditório é assegurado pelo artigo 5º, inciso LV, da

Constituição Federal e costuma ser definido pela expressão latina audiatur et altera

pars.78

O direito ao contraditório abrange qualquer tipo de processo ou procedimento,

judicial, extrajudicial ou administrativo. Em sua visão clássica, considerava-se

regular o procedimento, ainda que o princípio fosse cumprido somente em seu

aspecto formal, que pressupõe conceder à parte a oportunidade de se manifestar no

processo. Ocorre que a simples manifestação da parte no processo pode não se

mostrar suficiente para a consecução de sua finalidade, que é influenciar o julgador

em sua decisão. Destarte, surge o elemento substancial do princípio do

contraditório, que confere à parte uma participação efetiva no processo. O

contraditório caminha assim no sentido de uma nova formulação, para nele incluir

também o princípio da par conditio ou da paridade de armas, na busca de uma

efetiva igualdade processual 79 , fazendo-se necessário para isso expurgar toda

limitação que prejudique as partes no processo.

Fernando da Costa Tourinho Filho80 argumenta:

Tal princípio consubstancia-se na velha parêmia audiatur et altera pars – a parte contrária deve ser ouvida. Assim, a defesa não pode sofrer restrições, mesmo porque o princípio supõe completa igualdade entre acusação e defesa. Ambas estão situadas no mesmo plano, em igualdade de condições, e, acima delas, o órgão jurisdicional, como órgão “superpartes”, para, depois de ouvir as alegações das partes e de apreciar as provas, “dar a cada um o que é seu” [...].

Para poder influenciar de fato o julgador, mister que haja a possibilidade de as

partes – ambas as partes − trazerem aos autos todas as provas necessárias para

tanto. Com efeito, conforme observa Luiz Francisco Torquato Avolio81, se o objetivo

do processo é de dar às partes a oportunidade de interferir no julgamento, mostra-se

78

Deve a parte contrária ser também ouvida. 79

OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de, Curso de processo penal, cit., p. 43. 80

TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo penal. 25. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2005. v. 1, p. 45.

81 AVOLIO, Luiz Francisco Torquato. Provas ilícitas: interceptações telefônicas, ambientais e

gravações clandestinas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 30.

Page 44: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

44

“evidente que o exercício desse direito seja essencialmente subordinado à efetiva

possibilidade de servir-se dos instrumentos apropriados, as provas, com as quais se

procura verificar aquele determinado evento”.

Marcelo Schirmer Albuquerque82 assevera que:

[...] se ao invés de assegurar os direitos fundamentais do acusado, preexistentes à prática do delito, o objetivo da garantia de não autoincriminação fosse simplesmente permitir que ele se recusasse a qualquer contribuição na produção de provas que lhe possam ser desfavoráveis, buscando-se esquivar-se da ação da justiça e dificultar a persecutio, estar-se-ia aceitando uma verdadeira autossabotagem do Estado, em prejuízo da sociedade que o constitui. Seria uma irônica e incompreensível contradição que o Estado, no exercício de seu mister de combate ao crime, criasse e aparelhasse órgãos de persecução, para depois reconhecer entraves intransponíveis ao seu trabalho, sem que houvesse por trás de tais empecilhos, uma justificativa plausível, materializada num verdadeiro direito fundamental a ser defendido.

Assim, mostra-se contrária ao princípio do contraditório a proibição de

produção de determinadas provas, se tal vedação não estiver fundamentada no

dever de respeito aos direitos fundamentais, uma vez que nessa hipótese não

estaria sendo atingida a finalidade do princípio.

3.5 O direito à não autoincriminação e a dignidade da pessoa

humana

Sérgio Ricardo de Souza83 assevera que contraria a dignidade da pessoa

humana qualquer norma que imponha, ao investigado pela prática de determinada

infração penal, a obrigação de contribuir com o fornecimento de informações que

facilitem o Estado a fazer prova contra ele.

A noção de dignidade da pessoa humana tem origem na filosofia ocidental,

possuindo íntima ligação com o pensamento cristão, segundo o qual o homem seria

concebido à imagem e semelhança de Deus.

82

ALBUQUERQUE, Marcelo Schirmer, A garantia de não auto-incriminação: extensão e limites, cit., p. 51.

83 SOUZA, Sérgio Ricardo, Manual da prova penal constitucional: pós-reforma de 2008, cit., p. 156.

Page 45: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

45

A positivação do princípio da dignidade da pessoa humana ocorreu em um

momento histórico − após a 2ª Guerra Mundial − em que era necessária a busca de

mecanismos de proteção do homem contra o Estado. Conquanto a Declaração

Universal dos Direitos Humanos de 1948 tivesse um caráter de simples

recomendação, é considerada um importante marco da afirmação da dignidade

humana do indivíduo.

Adverte Thiago Matsushita84 que o princípio deve abranger necessariamente

o pleno desenvolvimento do ser humano, seja no aspecto econômico, seja nos

aspectos social, cultural e político.

Ingo Wolfgang Sarlet85 define a dignidade da pessoa humana como:

[...] a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e corresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos mediante o devido respeito aos demais seres que integram a rede da vida.

A dignidade da pessoa humana foi reconhecida pela Constituição de 1988

como princípio fundamental. Todavia, mais do que um mero um princípio, ela é um

dos valores fundantes da República, o que implica na irradiação de seu significado

por todo o sistema legal.

Os valores constitucionais, ensina Flademir Martins:86

[...] constituem o contexto axiológico fundamentador ou básico de interpretação de todo o ordenamento jurídico; o postulado guia para orientar a hermenêutica teleológica e evolutiva da Constituição; o critério para medir a legitimidade das diversas manifestações do sistema de legalidade. Os valores traduzem-se, assim, em ideias diretivas gerais que fundamentam, orientam e limitam criticamente a interpretação e aplicação das demais

84

MATSUSHITA, Thiago Lopes, O jus-humanismo normativo: expressão do princípio absoluto da proporcionalidade, cit., p. 91.

85 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 8. ed. rev., atual. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010. p. 70.

86 MARTINS, Flademir Jerônimo Belinati. Dignidade da pessoa humana: princípio constitucional fundamental. Curitiba: Juruá, 2003. p. 58-59.

Page 46: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

46

normas do ordenamento jurídico, sem, contudo, especificar os supostos em que devem ser aplicados nem as consequências jurídica que lhe devem seguir.

A dignidade da pessoa humana deve ser entendida dessa forma como um

dos principais parâmetros de controle da legitimidade substancial do poder estatal,

como critério para aferição da legalidade da aplicação das demais normas. Ela é o

princípio unificador da Constituição brasileira e o que lhe confere unidade axiológica.

O Supremo Tribunal Federal deixou assente a relação entre a dignidade da

pessoa humana e o nemo tenetur se detegere, ao afirmar que o direito à não

autoincriminação, que assegura a não produção de prova contra si mesmo, “constitui

pedra angular do sistema de proteção dos direitos individuais e materializa uma das

expressões do princípio da dignidade da pessoa humana”87. Sob esse argumento, o

Supremo Tribunal Federal determinou a soltura de um réu que estava preso

unicamente para a obtenção de seu depoimento. Consignou o ministro Gilmar

Mendes que:

[...] na sua acepção originária conferida por nossa prática institucional, este princípio proíbe a utilização ou transformação do homem em objeto dos processos e ações estatais. O Estado está vinculado ao dever de respeito e proteção do indivíduo contra exposição a ofensas ou humilhações.

Não obstante o princípio da dignidade da pessoa humana servir como

fundamento para inúmeras decisões, dada a sua amplitude e contornos imprecisos,

não se pode negar que ele está intimamente ligado ao direito à não

autoincriminação, principalmente no que se refere à possibilidade ou não de

realização de determinadas perícias sem o consentimento do indivíduo, como ocorre

nas intervenções corporais.

3.6 O direito à não autoincriminação e o direito à intimidade,

integridade física e liberdade

Há outros direitos relacionados ao direito à não autoincriminação, como os

direitos à intimidade à integridade física e à liberdade, que em tese também podem

ser afetados quando da realização de determinados exames ou perícias.

87

ST − MC HC n. 91.514-1/BA, rel. Min. Gilmar Mendes.

Page 47: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

47

Dessa forma, ao se realizar uma busca pessoal em um indivíduo, algumas

cautelas devem ser tomadas para não violar a sua intimidade como, por exemplo, a

atribuição da medida a pessoas do mesmo sexo. Revistas mais íntimas, como as

realizada nas cavidades anais e vaginais, também devem ser procedidas com

cautela. Exames de sangue, a seu turno, podem atingir a integridade física do

indivíduo, bem como podem, mesmo que de maneira momentânea, privá-lo de sua

liberdade, estudo que será adiante aprofundado.

Page 48: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

48

4 INTERPRETAÇÃO DOS TRIBUNAIS SOBRE O DIREITO À NÃO

AUTOINCRIMINAÇÃO

Todas as construções e interpretações acerca do direito à não

autoincriminação são extraídas, via de regra, de um simples artigo da Constituição

Federal88, que afirma que o preso será informado de seus direitos, entre os quais o

de permanecer calado.

Vários países possuem em suas Constituições ou em suas leis ordinárias

dispositivos consagrando o direito ao silêncio. O Código de Processo Penal

português89, por exemplo, dispõe em seus artigos 343º, 1, e 61º, 1, “d”, que, após a

identificação, o presidente do tribunal informará o arguido de que tem o direito de

prestar declarações, referentes ao processo, em qualquer momento da audiência, e

de que não é obrigado a prestá-las, nem o seu silêncio poderá prejudicá-lo. Já o

Código italiano dispõe em seu artigo 64, 3, “b” 90 que, antes de iniciar o

interrogatório, a pessoa deve ser advertida de que poderá optar por não responder a

qualquer pergunta que lhe seja feita, muito embora isso não vá interromper o curso

do processo.

A Quinta Emenda do direito norte-americano, como visto, tem texto

semelhante ao nosso artigo 5º, inciso LXIII, da Constituição. Reza o citado

dispositivo que ninguém poderá ser obrigado em qualquer processo criminal a servir

de testemunha contra si mesmo. A Suprema Corte americana enfrentou por diversas

vezes a extensão desse direito, sendo célebre o julgamento do processo Schmerber

v. California. Nesse julgamento ficou estabelecido que o direito alcança as

comunicações dos acusados, qualquer que seja a forma que assumirem, assim

como abrange as respostas que também podem ser consideradas comunicações,

como, por exemplo, intimações para entrega de documentos próprios. Por outro

lado, tanto as cortes federais como as estaduais têm decidido que não há a proteção

88

Artigo 5º, inciso LXIII, da Constituição Federal. 89

Disponível em: <http://www.legix.pt/docs/CPP-30_Ago_2010.pdf>. Acesso em: 05 jul. 2014. 90

“Art. 64 - [...] 3. Prima che abbia inizio l’interrogatorio, la persona deve essere avvertita che: a) le sue dichiarazioni potranno sempre essere utilizzate nei suoi confronti; [...] b) salvo quanto disposto dall’articolo 66, comma 1, ha facoltà di non rispondere ad alcuna domanda, ma comunque il procedimento seguirà il suo corso.” (Disponível em: <http://www.brocardi.it/codice-di-procedura-penale/libro-primo/titolo-iv/art64.html>. Acesso em: 15 ago. 2014).

Page 49: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

49

contra a obrigação de submeter-se a exames de impressões digitais, fotografias ou

medições, escrever ou falar para fins de identificação, comparecer à corte,

permanecer em determinada postura, andar ou fazer um gesto característico. A

distinção que foi traçada é no sentido de que o privilégio é uma barreira contra a

obrigação relativa às comunicações e testemunhos; a obrigação que torna o

suspeito ou o acusado fonte real ou física da evidência não viola o direito.

O direito à não autoincriminação, segundo a legislação alemã, repousa na

combinação de dois artigos da Constituição, 1 (1) e 2 (1)91. É composto de duas

vertentes, a liberdade de permanecer em silêncio e a liberdade de não cooperar.

Enquanto a primeira liberdade está relacionada com o testemunho do suspeito e,

consequentemente, à confissão, o segundo diz respeito a todas as ações do

acusado que não guardam qualquer relação com as suas declarações. Assim, além

do direito de permanecer calado, o direito à não autoincriminação também faculta ao

acusado não ser compelido a participar ativamente de sua incriminação. Todavia, se

a evidência puder ser obtida sem a sua ação voluntária, ela deve ser aceita. A

legislação alemã autoriza, inclusive, uma série de medidas a serem realizadas no

próprio corpo do indivíduo, como, por exemplo, a extração forçada de amostras de

sangue. De fato, diz a lei alemã que o exame físico do acusado pode ser ordenado

para a finalidade de comprovação de fatos relevantes para os procedimentos. Para

esse fim, a colheita de amostras de sangue e outras intrusões físicas em seu corpo

são permitidas e devem ser feitas por médicos, mesmo sem o consentimento do

acusado, de acordo com as regras da ciência médica, contanto que não causem

nenhum risco à saúde.

Os exemplos são inúmeros e têm em comum uma semelhante redação que,

em suma, assevera que o investigado não está obrigado a responder às perguntas

que lhe forem formuladas, ou seja, ele não será impelido a servir de testemunha

contra si mesmo.

91

“ g 1 (1) - A dignidade da pessoa humana é intangível. Respeitá-la e protegê-la é obrigação de todo o poder público. Artigo 2 (1) - Todos tem direito ao livre desenvolvimento de sua personalidade, qu ã v u ã u u .” (BAUSH, Stefanie M. Body search and physical examination of the accused, the privilege against self-incrimination and the consequences of illegally obtained evidence in German criminal law. Munich, Germany: GRIN Publishing, 2004. p. 5).

Page 50: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

50

Ocorre que, não obstante as redações quase idênticas dos referidos

dispositivos, a jurisprudência brasileira tem dado uma extensão inimaginável ao

referido direito. Há algumas hipóteses que não geram maiores controvérsias, como

aquelas que se referem diretamente a questões envolvendo o silêncio propriamente

dito. Todavia, além das questões relacionadas diretamente à faculdade de o

investigado não ser obrigado a colaborar com a acusação e de permanecer calado92,

a nossa jurisprudência houve por bem aplicar o direito à não autoincriminação a

situações absolutamente diversas e que não encontram paralelo, sob a ótica do

direito comparado.

Com efeito, admite a jurisprudência a possibilidade de o indivíduo negar

falsamente a acusação (ST − HC n. 68.742-3/DF93), a possibilidade de imputar

falsamente a autoria do crime a terceiros, desde que em relação a eles a

punibilidade esteja extinta (ST − HC n. 80.616-3/SP 94 ), a possibilidade de

considerar falsa assinatura legítima existente em documento (ST − HC n. 75.257-

8/RJ95), a possibilidade de utilizar fraude no fornecimento de material para exame

grafotécnico para iludir a perícia (ST − HC . 83.960/RS96) e a possibilidade de o

causador do acidente evadir-se do local em que este ocorreu, para não ser

responsabilizado penal e civilmente (TJSP − HC n. 2062378-07.2013.8.26.0000).

Não há razões para essa anacrônica interpretação, uma vez subjacentes os

mesmos princípios orientadores. A universalidade do direito natural materializada

pelos direitos humanos consiste não no fato de o direito positivo ser idêntico em

todos os locais, mas no fato de em todas as formas de direito positivo,

independentemente da diversidade das circunstâncias materiais, estar subjacente o

mesmo princípio ideal.

92

A jurisprudência brasileira tem reconhecido que o direito à não incriminação abrange, além do direito ao silêncio, outras formas de inércia ou inatividade, como a recusa em oferecer material para exame grafotécnico (ST − HC n. 77.135-8/SP), recusa em participar da reconstituição do crime (ST − HC n. 69.026-2/DF) e recusa em fornecer padrões de voz (ST − HC n. 83.096-0/RJ).

93 Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=71200>.

Acesso em: 27 out. 2014. 94

Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=78460>. Acesso em: 27 out. 2014.

95 Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=75851>.

Acesso em: 27 out. 2014. 96

Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=384853>. Acesso em: 27 out. 2014.

Page 51: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

51

Os direitos estabelecidos nos tratados são direitos mínimos que podem e

devem ser incrementados pelos Estados. Assim, tal ampliação do direito à não

incriminação realizada pela jurisprudência pátria poderia parecer à primeira vista

desejável. Sucede que ela ocorreu em detrimento de outros direitos igualmente

fundamentais para a nossa sociedade, chegando até mesmo a inviabilizar a

persecução penal relativamente a algumas modalidades de delitos.

Vejamos as principais manifestações do direito à não autoincriminação

reconhecidas pela jurisprudência pátria. Antes, porém, devemos verificar qual o

papel desempenhado pelo consentimento na produção da prova.

4.1 Necessidade do consentimento do réu para a realização da

prova

No julgamento do Recurso Especial n. 1.111.56697, o Superior Tribunal de

Justiça houve por bem firmar a tese de que só o teste do bafômetro ou o exame de

sangue para verificação de dosagem alcoólica seriam aptos para a comprovação do

crime de embriaguez ao volante. No referido julgamento, várias teses foram

apresentadas, referentes ao direito à não autoincriminação, sendo que várias delas

ressaltaram a impossibilidade de se produzir uma prova contra o consentimento do

réu. Argumentou-se que a realização da prova em desfavor do paciente em

desacordo com sua vontade violaria um direito que lhe é fundamental98 e que o

direito à não autoincriminação vedaria a demonstração do estado de alcoolemia

pelos meios de prova que dependessem da anuência do acusado.99

97

STJ − REsp n. 1.111.566/DF, rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, rel. para o acórdão Des. Adilson Vieira Macabu, j. 28.03.2012.

98 Nesse sentido o voto do desembargador Adilson Vieira Macabu, relator do voto vencedor, que asseverou ser inaceitável a tentativa de restringir a liberdade do cidadão, mediante violação de direitos inerentes à personalidade, que constitui um bem constitucionalmente tutelado. Daí a inadmissibilidade de produção de prova em desfavor do paciente, em desacordo com sua vontade, sob pena de violação de um direito que lhe é fundamental.

99 O ministro Gilson Dipp, mesmo divergindo do relator vencedor, afirmou que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, assim como a dos tribunais de modo geral, garante ao acusado o direito de não ser compelido a produzir prova contra si mesmo. A expressão nemo tenetur se detegere, que consagra o princípio, justificaria assim a vedação da demonstração do estado de alcoolemia pelos meios de prova que dependam da anuência do acusado.

Page 52: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

52

A leitura dos votos subordina a realização da prova ao consentimento do réu.

Consequentemente, a prova que estivesse em desacordo com a sua vontade

afrontaria o direito à não autoincriminação. Assim, no processo penal, as provas

admissíveis seriam apenas aquelas que contassem com a anuência do acusado.

Será que, de fato, uma prova para ser válida necessita, efetivamente, da

anuência do réu? Provas introduzidas no processo penal contra a sua vontade

devem ser admitidas?

Não nos parece que tal consentimento seja necessário para a validade da

prova. Como ressaltado, o consentimento do acusado somente se mostra

necessário quando as provas não puderem ser produzidas de outro modo. Vejamos

alguns exemplos.

Documentos introduzidos nos autos em razão de mandado de busca e

apreensão na residência do acusado, diligência esta realizada contra a sua vontade,

são aptos para fundamentar eventual condenação? E o que dizer de uma medida de

interceptação telefônica que o réu sequer tem ciência de sua existência?

Tomemos outro exemplo, o auto de reconhecimento previsto no artigo 226 do

Código de Processo Penal. O artigo determina que quando houver necessidade de

se fazer o reconhecimento de pessoa, ela será colocada, se possível, ao lado de

outras que com ele tiverem qualquer semelhança. Pode o investigado recuar de

participar de tal diligência, sob o pretexto da proibição de autoincriminação? Pode

ele cobrir com as mãos o seu rosto para não ser reconhecido? Pode a autoridade

obrigá-lo, inclusive com o uso da força necessária, a descobrir o seu rosto para que

seja possível o reconhecimento?

Evidentemente, a resposta é afirmativa. Medidas tomadas

independentemente da anuência do réu, e mesmo as efetivadas contra a sua

expressa vontade, são perfeitamente válidas no processo penal.

Page 53: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

53

Buscas pessoais também são realizadas mesmo contra a vontade do

acusado, não havendo dúvida de que pode ser apresentado em juízo o resultado

dessas buscas, como, por exemplo, armas e drogas encontradas etc.

Buscas pessoais e exames do suspeito, diga-se, não se relacionam às

declarações verbais, mas à faculdade do réu em não cooperar com a investigação.

Via de regra, o direito à não autoincriminação não é violado pelas autoridades

nessas hipóteses, pois elas são capazes de realizar tais buscas sem o auxílio dos

acusados, vale dizer, eles permanecem passivos e apenas são obrigados a permiti-

las.

Nesse sentido, a jurisprudência alemã 100 entende que o direito à não

autoincriminação não abrange apenas as declarações verbais, mas também outros

atos que requerem a sua participação e se destinam a providenciar provas para a

acusação. Por exemplo, ninguém pode ser compelido a produzir documentos

contendo informações autoincriminatórias, a participar de experimentos psicológicos

ou entrevistas psiquiátricas, a providenciar padrões de voz ou escrita, ou mesmo

amostras de sangue. De acordo com o ponto de vista majoritário, até mesmo o mero

sopro é considerado uma ação voluntária, o que significa que ninguém pode ser

forçado a se submeter ao teste do bafômetro.

As eventuais semelhanças de entendimento entre a jurisprudência alemã e a

nacional param por aí, pois são admitidas pelos alemães formas de coleta de

evidências consideradas passivas, nas quais o indivíduo é obrigado a suportar

determinados procedimentos, pouco importando estar ele de acordo ou não. Assim,

o suspeito pode ser compulsoriamente forçado a fornecer amostras de sangue; se

não houver o seu consentimento ou a sua anuência, pode a autoridade conduzi-lo a

um local apropriado e retirar a amostra à força.

Não vamos, neste momento, tratar detalhadamente das provas invasivas, já

que serão analisadas em tópico específico. O que deve ficar assente, todavia, é que

100

WEIGEND, Thomas; GHANAYIM, Khalid. Human dignity in criminal procedure: a comparative overview of Israeli and German law. Israel Law Review, v. 44, n. 1-2, p. 207, 2011. Disponível em: <http://law.huji.ac.il/upload/ILR44GhanayimWeigendCRC.pdf> Acesso em: 14 fev. 2014.

Page 54: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

54

o consentimento será apenas necessário quando a prova não puder ser realizada de

outra forma, mesmo que isso implique em ter o réu que suportar passivamente

determinados procedimentos, como buscas pessoais, tomada de impressões

digitais, fotografia e coleta de fluidos corporais. Com entendimento semelhante,

pode ser apontada a decisão da Corte Europeia de Direitos Humanos no julgamento

Tirado Ortiz and Lozano Martín v. Spain, de 22 de junho de 1999.101

Não obstante a delimitação do direito à não autoincriminação exposta, mais

abrangente no direito europeu, quando comparada ao norte-americano, o que temos

observado nos julgados pátrios é a invocação do direito à não autoincriminação para

a justificação de condutas que, a nosso ver, não guardam com ele qualquer relação.

O direito à não autoincriminação é assim um mantra que é constantemente repetido

em inúmeras ocasiões, nem sempre muito bem relacionadas entre si, o que acaba

por alargar em demasia o referido direito, tornando-o incerto e, por vezes,

dificultando ou mesmo impossibilitando a persecução penal.

O radical auto, de origem grega, tem o significado de por si mesmo, próprio, e

é nesse sentido que deve ser entendida a vedação à autoincriminação. Repise-se,

só são capazes de violar o princípio as provas que exijam uma participação ativa do

réu, provas que só possam ser realizadas por ele próprio, que dependam de sua

ativa colaboração. Adverte Eugênio Pacelli de Oliveira 102 que o que deve ser

protegida, em qualquer situação, é a integridade física e mental do acusado, a sua

capacidade de autodeterminação, daí porque são inadmissíveis o soro da verdade e

a ingestão de qualquer substância química para tal finalidade.

Segue que se o réu não quiser falar, ninguém pode obrigá-lo, a não ser por

meios ilícitos, como o mencionado soro da verdade ou mediante atos de tortura.

Eugênio Pacelli de Oliveira continua, asseverando que deve ser protegida a

dignidade da pessoa humana, a vedar qualquer tratamento vexaminoso ou ofensivo

à honra do acusado, todavia entende que não haveria ofensa ao princípio com a

101

MCBRIDE, Jeremy. Human rights and criminal procedure: the case law of the European Court of Human Rights. Strasbourg: Council of Europe Publishing, 2009. p.188.

102 OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de, Curso de processo penal, cit., p. 384.

Page 55: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

55

exigência de fornecimento de padrões gráficos. Ocorre que não há como obrigar-se

o réu a escrever se ele assim não o desejar, parecendo-nos, destarte, estar

abrangida pelo princípio essa recusa.

Por outro lado, todas as provas que puderem ser realizadas

independentemente da colaboração do acusado não estão necessariamente

amparadas pelo princípio, sendo irrelevante, nessas hipóteses, a sua anuência, vale

dizer, a prova poderá ser realizada contra a sua vontade e com a utilização da força

necessária. O mero fato de o réu participar passivamente da produção da prova não

ofende o direito à não autoincriminação.

4.2 O direito à não autoincriminação aplicado a posturas passivas

do indivíduo

4.2.1 Direito ao silêncio

A jurisprudência brasileira reconheceu o direito ao silêncio em diversos

julgados:

A Constituição Federal assegura aos presos o direito ao silêncio (inciso LXIII do art. 5º). Nessa mesma linha de orientação, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (Pacto de São José da Costa Rica) u z í “ ã -auto- çã ” (nemo tenetur se detegere). Esse direito subjetivo de não se auto-incriminar constitui uma das mais eminentes formas de densificação da garantia do devido processo penal e do direito à presunção de não-culpabilidade (inciso LVII do art. 5º da Constituição Federal).

103

Como visto, o direito ao silêncio desenvolveu-se e ganhou corpo no sistema

anglo-saxão. Podemos identificar várias formas de interpretação do referido direito,

algumas mais amplas, outras não tão abrangentes. Vamos a algumas delas. A

primeira é a que pode ser extraída diretamente do texto e diz respeito ao direito que

tem o réu ou investigado de permanecer em silêncio, a não ser que opte por falar,

sendo que desse silêncio nenhuma consequência pode ser inferida, ou seja, o mero

103

ST − HC . 101.909/MG, rel. Min. Ayres Brito, j. 28.02.2012. No mesmo sentido: ST − HC n. 114.095/MS; ST − HC n. 109.978/DF, entre outros.

Page 56: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

56

fato de permanecer calado não poderá, em nenhuma hipótese, prejudicá-lo, pois a

prova dos fatos delituosos cabe à acusação.

O direito ao silêncio protege o indivíduo da exposição de fatos de sua esfera

privada, fatos íntimos de sua vida que ele pode não ter interesse em revelar. Ao

permanecer em silêncio, garante-se a ele o direto de não ser compelido a expor a

sua própria culpa. Em outras palavras, o silêncio não implica em assunção de culpa

ou reconhecimento dos fatos a ele imputados, mas constitui mero exercício de

direito previsto constitucionalmente.

Como decorrência do direito ao silêncio, não pode ser o indivíduo coagido

pela polícia a fazer declarações involuntárias para se autoincriminar. Somente

declarações realizadas de forma voluntária podem ser utilizadas no processo penal,

sob pena de infração à cláusula do devido processo legal. Não basta, todavia, que

as declarações sejam feitas de forma voluntária, mas é necessário que elas tenham

sido realizadas após o indivíduo ter sido informado, expressamente, acerca de seu

direito de permanecer em silêncio.

Também tem o indivíduo o direito de não testemunhar em processo penal

contra si instaurado. Vale dizer, não tem a obrigação de colaborar com a acusação

para a elucidação dos fatos, uma vez que tal ônus recai, exclusivamente, à parte

que os aduz, elemento essencial do sistema adversarial. Mas o direito de não

testemunhar não emerge somente nos processos penais instaurados contra si, mas

em quaisquer outros, desde que desse testemunho possa ocorrer a sua

autoincriminação.

As declarações firmadas pelos indivíduos sem a observância de tais

requisitos, obtidas sob tortura ou qualquer outra forma de coação, sujeitam os

responsáveis às penalidades penais e cíveis previstas na legislação. Além disto, tais

declarações, e todas as outras que dela foram decorrentes (frutos da árvore

envenenada), devem ser excluídas do processo penal, ou seja, não podem tais

provas servir como fundamento para a eventual edição de decreto condenatório.

Page 57: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

57

No direito norte-americano, o direito ao silêncio ainda previne o indivíduo de

sujeitar-se a um cruel dilema. As testemunhas têm o dever de dizer a verdade em

juízo e, ao contrário do réu, não podem silenciar, sob pena do cometimento de uma

infração denominada contempt of court. Se o réu fosse obrigado a testemunhar em

processo penal contra si instaurado, se veria na seguinte dúvida: dizer a verdade e

com isso autoincriminar-se, mentir e cometer o crime de perjúrio ou silenciar e

cometer o contempt of court.

Cabe à acusação envidar todos os esforços possíveis para a apuração dos

fatos, não se exigindo do réu qualquer atitude ativa. Se a acusação não se

desincumbir de seu ônus, a consequência será a absolvição, facultando-se ao réu

uma atividade meramente passiva no decorrer de todo o curso do processo penal.

O direito ao silêncio, entretanto, da forma que foi construído e idealizado no

direito anglo-saxão, jamais teve o intuito de permitir que o réu mentisse em seu

interrogatório. Essa era uma hipótese que não estava albergada no rol de

interpretações possíveis do instituto. Tanto isso é verdade que no direito norte-

americano, berço do instituto, o réu, conquanto não seja obrigado a depor, se o fizer

deverá dizer a verdade, sob pena de cometer o crime de perjúrio.

É certo que os institutos, quando transpostos do direito de um país para outro,

podem adquirir contornos diferentes, ou mesmo sofrer adaptações com o passar dos

tempos, entretanto uma interpretação histórica do direito ao silêncio não autoriza

afirmar que ele assegura ao réu o direito de mentir sem quaisquer consequências,

sem que tal mentira possa ser de alguma forma penalizada.

Não há dúvida que várias atrocidades foram cometidas contra os réus pelo

Estado investigador, atrocidades que já eram noticiadas nas jurisdições eclesiásticas

e continuam sendo cometidas na atualidade pelos responsáveis pelas investigações

criminais.

Page 58: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

58

Cesare Beccaria 104 era francamente contrário ao juramento do réu,

ponderando que uma contradição entre as leis e os sentimentos naturais do homem

nasce dos juramentos que se exigem do réu, para que seja um homem veraz,

quando seu maior interesse é mentir.

A objeção de Cesare Beccaria era, de fato, pertinente, mormente em virtude

de os sistemas processuais penais então vigentes exigirem o depoimento do réu e,

ainda, que ele se desse sob a promessa de dizer a verdade. Também nos sistemas

em que, mesmo sem o compromisso de dizer a verdade, o acusado é obrigado a

depor, ou ainda naqueles em que, não obstante a não obrigatoriedade, o seu

silêncio é tomado em seu desfavor105, a objeção continua procedente.

Nessas hipóteses o acusado não possuía alternativa, a não ser mentir.

A situação atual, todavia, é um pouco diferente. O depoimento do acusado

não mais se mostra necessário, constituindo uma faculdade que lhe outorgou o

moderno processo penal. O réu apenas prestará o seu depoimento se assim o

desejar. A lei ainda é expressa ao consignar que nenhuma ilação poderá ser inferida

desse silêncio, pois cabe à acusação a comprovação de todos os fatos descritos na

inicial acusatória. Dessa forma, dado o panorama atual, podemos sustentar haver

um direito à mentira?106

4.2.2 Direito à mentira

Aqueles que admitem o recurso à mentira como inerente ao direito ao silêncio

argumentam que não há no nosso Código de Processo Penal um único artigo

sequer que chancele a obrigação de o réu de cooperar com o aparelho repressivo,

mormente quando o depoimento for utilizado contra si mesmo.

104

BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. p. 61. Disponível em: <http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/delitosB.pdf>. Acesso em: 18 out. 2013.

105 Nesse sentido, a antiga redação do Código de Processo Penal: “ rtigo 186 - Antes de iniciar o

interrogatório, o juiz observará ao réu que, embora não esteja obrigado a responder às perguntas que lhe forem formuladas, o seu silêncio poderá ser interpretado em prejuízo da própria defesa.”

106 Embora na mentira o comportamento do réu seja ativo e não omissivo, o direito à mentira será

tratado nesta sequência, em razão de sua estreita ligação com o direito ao silêncio.

Page 59: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

59

Nos Estados Unidos, conforme acima exposto, o réu não é obrigado a depor

em processo penal contra si instaurado. Todavia, se decidir expor a sua versão dos

fatos aos jurados, deverá prestar o compromisso de dizer a verdade. Uma vez

quebrado tal compromisso e comprovada a mentira, poderá ser condenado pelo

crime de perjúrio, com penalidades que podem atingir 15 anos de reclusão.

Não há, todavia, no ordenamento jurídico pátrio, tal dispositivo. Conquanto

haja diferenças nos procedimentos adotados lá e cá, uma vez que no Brasil o réu

sempre é intimado a depor, ao passo que nos Estados Unidos ele tem o direito de

escolha, a verdade é que, ao cabo, os dois sistemas se assemelham, pois embora

no Brasil ele seja intimado para prestar as suas declarações, pode optar por manter-

se calado, havendo o mesmo efeito prático, que é o de não colaborar com a

acusação.

As testemunhas são advertidas, nos termos do artigo 203 do Código de

Processo Penal, de que deverão, sob palavra de honra, dizer a verdade do que

souberem e lhes for perguntado. A consequência para o descumprimento da

promessa está prevista no artigo 342 do Código Penal: reclusão de 1 a 3 anos e

multa.

O réu, entretanto, não faz a mesma promessa. O artigo 186 do Código de

Processo Penal dispõe que depois de devidamente qualificado e cientificado do teor

da acusação, o acusado será informado pelo juiz, antes de iniciar o interrogatório, de

seu direito de permanecer calado e de não responder às perguntas que lhe forem

formuladas.

O artigo 342 do Código Penal, ao enumerar os sujeitos ativos do delito de

falso testemunho (testemunha, perito, contador, tradutor ou intérprete), excluiu do

seu rol o acusado, deixando claro, por essa exclusão, que o réu não comete o citado

delito se não disser a verdade em seu interrogatório.

Page 60: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

60

Vários doutrinadores entendem, por conseguinte, que o réu pode mentir em

seu interrogatório. Nesse sentido, Magalhães Noronha107 admite que o acusado

pode mentir e negar a verdade, uma vez que não está obrigado a depor contra si.

Negando a imputação, será ele instado a indicar as provas da verdade de suas

declarações.

Guilherme de Souza Nucci 108 aduz que como ninguém é obrigado a se

autoacusar; para evitar a admissão de culpa, há de afirmar algo que sabe ser

contrário à verdade. Assevera, ainda, que “o direito constitucional à ampla defesa

não poderia excluir a possibilidade de narrar inverdades, no intuito cristalino de fugir

à incriminação. Aliás, o que não é vedado pelo ordenamento é permitido. E se é

permitido, torna-se direito”.

Hélio Tornaghi109, a seu turno, entende, da mesma forma, que o réu pode

mentir. Pondera, entretanto, que não se trata de um direito de mentir, nem há que

falar em direito subjetivo nessa hipótese. O que ocorre é que a mentira do réu não

constitui crime, não é ilícito, ou seja, o réu é livre para mentir porque, se o fizer, não

sofrerá nenhuma consequência. Adverte, por fim, que ele é livre para mentir para se

defender, e não para se acusar.

Guilherme de Souza Nucci argumenta tratar-se de eufemismo a afirmação de

que a mentira narrada pelo acusado é uma mera irrelevância jurídica110, a ponto de

não lhe trazer nenhuma consequência negativa, pois:

O fato atípico também é para o Direito Penal, uma irrelevância jurídica, porém de suma importância, uma vez que sinaliza não ser o ato praticado um crime. Logo parece-nos relevante aquilatar quais condutas são típicas e as que não o são. No campo processual penal, quando o réu, para se defender, narra mentiras ao magistrado sem incriminar ninguém, constitui seu direito de refutar a imputação.

111

107

NORONHA, Edgard. Magalhães. Curso de direito processual penal. 23. ed. atualizada por Adalberto Jose Q. T. de Camargo Aranha. São Paulo: Saraiva, 1995. p. 108.

108 NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal comentado. 11. ed. rev., atual. e ampl., 2.

tiragem. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. p. 442. 109

TORNAGHI, Hélio Bastos. Instituições de processo penal. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 1978. p. 20.

110 Nesse sentido: BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Direito processual penal. Rio de Janeiro: Elsevier,

2008. v. 1, p. 233. 111

NUCCI, Guilherme de Souza, Código de Processo Penal comentado, cit., p. 443.

Page 61: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

61

O Supremo Tribunal Federal112 já admitiu que o réu ou o investigado tem o

direito de mentir em suas declarações:

Habeas corpus. Falsidade ideológica. - No caso, a hipótese não diz respeito, propriamente, à falsidade quanto à identidade do réu, mas, sim, ao fato de o então indiciado ter faltado com a verdade quando negou, em inquérito policial em que figurava como indiciado, que tivesse assinado termo de declarações anteriores que, assim, não seriam suas. Ora, tendo o indiciado o direito de permanecer calado e até mesmo o de mentir para não auto-incriminar-se com as declarações prestadas, não tinha ele o dever de dizer a verdade, não se enquadrando, pois, sua conduta no tipo previsto no artigo 299 do Código Penal. Habeas corpus deferido, para anular a ação penal por falta de justa causa.

Todavia, o fato de não haver imposição de pena para o réu que mentir em seu

interrogatório autoriza a afirmação de que há o direito à mentira?

Argumenta-se que o artigo 342 do Código de Processo Penal não criminaliza

o falso testemunho quando praticado pelo réu e que apenas as testemunhas, e não

o réu, são advertidas do dever de dizerem a verdade.

De fato, o réu, conforme dispõe o artigo 186 do Código de Processo Penal,

depois de devidamente qualificado e cientificado do teor da acusação, será

informado pelo juiz, antes de iniciar o interrogatório, de seu direito de permanecer

calado e de não responder às perguntas que lhe forem formuladas. Nenhuma

menção há ao seu dever de dizer a verdade.

O fato de a lei não cominar pena privativa de liberdade ao acusado que mentir

em seu depoimento autoriza que concluamos em sentido contrário, ou seja, que ele

tem o direito de mentir?

A tese parte, a nosso ver, de uma premissa equivocada, a de que a legislação

não estabelece ao réu mendaz nenhuma sanção. Se tomarmos a sanção

exclusivamente como a imposição inaugural de uma pena privativa de liberdade e

considerarmos que não há norma sem sanção, seremos forçados a concluir que há

112

ST − HC . 75.257/RJ, rel. Min. Moreira Alves.

Page 62: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

62

o direito de o réu mentir em seu interrogatório113. De fato, como o crime de falso

testemunho não inclui o réu no rol dos sujeitos ativos do delito e, segundo a clássica

noção de liberdade − podemos fazer tudo o que a lei não proíbe − certo é que o

direito de mentir, por não ser proibido, é permitido.

Todavia, não se deve entender por sanção apenas a aplicação de uma pena,

uma vez que o seu significado é bem mais abrangente. Na verdade, quando se fala

em norma com sanção, o que se está querendo dizer é norma acompanhada de

uma consequência jurídica, seja ela qual for.

Admite-se que114 o réu em certas circunstâncias pode ser condenado por

mentir. Desta sorte, pode ele ser punido quando praticar o delito de autoacusação

falsa, pois há a tipificação da conduta de quem se acusa de crime inexistente ou

praticado por terceiro (art. 341 do CP), quando praticar o crime de denunciação

caluniosa, descrito no artigo 339, ou quando cometer o crime de calúnia, imputando

falsamente a outrem o cometimento de um crime (art. 138 do CP).

Nesse sentido decidiu o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Recurso

Extraordinário n. 640.139/DF115, que a apresentação de identidade falsa perante

autoridade policial com o objetivo de ocultar maus antecedentes é crime previsto no

Código Penal (art. 307) e a conduta não está protegida pelo princípio constitucional

da autodefesa (art. 5º, inc. LXIII, da CF/88). Essas considerações já implicariam na

conclusão de que se há o direito à mentira, ele, ao menos, é limitado, não

abrangendo todas as mentiras do réu. Com efeito, quando houver tipificação para a

conduta, como na apresentação de identidade falsa, ou quando o réu imputar

falsamente o crime a terceiros (calúnia), a mentira proferida no interrogatório será

sancionada.

113

Hans Kelsen diferenciava a norma primária da norma secundária. Para ele, a sanção estava contida na norma primária, enquanto a secundária estabelecia a conduta. A norma secundária destinava-se a enunciar de forma explícita o que foi estabelecido implicitamente pela norma primária. O autor entendia que a sanção está contida na ideia de direito: “É, por isso, de rejeitar uma definição do Direito que o não determine como uma ordem de coação, especialmente porque só através da assunção do elemento coação no conceito de Direito este pode ser distintamente separado de toda e qualquer outra ordem social [...].” (KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução de João Baptista Machado. 8. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009. p. 60).

114 QUEIJO, Maria Elizabeth, O direito de não produzir prova contra si mesmo, cit., p. 280.

115 ST − G RE n. 640.139/DF, rel Min. Dias Toffoli.

Page 63: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

63

E se o réu mentir fora das hipóteses acima enumeradas, ou seja, se não

ocorrer a implicação de terceiros ou o fato não constituir crime autônomo?

Entendemos que, mesmo nessas hipóteses, isto é, quando a mentira for utilizada

como exclusivo meio de defesa, como, por exemplo, quando se inventa um álibi,

poderá o juiz extrair dessas respostas falsas consequências penais. Há, ao menos,

três espécies de consequências previstas.

Cumpre ressaltar, de início, que nem todas as consequências penais

previstas constam dos tipos penais específicos. Há consequências, como as

descritas no artigo 62 do Código Penal, que não constam dos mencionados tipos

incriminadores, mas, todavia, agravam as penas e se aplicam a todos os delitos. Da

mesma forma, as atenuantes contidas no artigo 65 do Código Penal aplicam-se a

todos os crimes e têm a função de reduzir a pena imposta. Dentre essas atenuantes

interessa-nos a prevista no inciso III, “d”, do artigo 65 do Código Penal: ter o agente

confessado espontaneamente, perante a autoridade, a autoria do crime.

Determina a lei penal que se o agente disser a verdade e confessar o delito, a

sua pena será diminuída. Se o réu mentir (ou calar), a consequência consistirá na

não redução de sua pena, na não aplicação da atenuante a que faria jus se tivesse

dito a verdade. Assim, conquanto não exista especificamente um tipo penal

criminalizando a conduta do réu mendaz, é inegável a existência de uma

consequência penal, caso seja constatada a mentira. Temos assim a hipótese da

norma, que estabelece a conduta: dizer a verdade e confessar o crime. E a

consequência: redução da pena cominada. Observe-se que a consequência – não

aplicação da atenuante − será a mesma se o réu se mantiver em silêncio. Dessa

forma, pode-se dizer que o ordenamento busca a obtenção da verdade, tanto é que

concede um benefício ao réu colaborador.

Advirta-se que quando se diz que o silêncio do réu não poderá ser utilizado

em seu desfavor, isso significa que ele não tem o dever de colaborar com o Estado

para a apuração dos fatos e que eventual condenação só poderá advir das provas

trazidas aos autos pela acusação, nunca do mero silêncio. O silêncio não equivale a

uma assunção de culpa, nem tampouco implica no reconhecimento dos fatos a ele

imputados. Além disso, a pena não pode ser agravada em virtude do silêncio ou da

Page 64: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

64

mentira do réu. Isso não impede, contudo, que a lei estabeleça uma determinada

consequência (favorável) para o réu que disser a verdade e cooperar com o

processo (e, por conseguinte, a não aplicação da consequência em caso contrário).

Uma segunda consequência pode decorrer da mentira do réu. Nos termos do

artigo 131 do Código de Processo Civil, aplicado subsidiariamente ao Código de

Processo Penal, o juiz apreciará livremente a prova, atendendo aos fatos e

circunstâncias constantes dos autos, ainda que não alegados pelas partes, mas

deverá indicar na sentença os motivos que o convenceram.

O dispositivo consagra o princípio do livre convencimento motivado do juiz,

que permite a ele atribuir às provas produzidas ao longo do processo o valor que

entender como o mais lógico e correto, desde que corresponda às provas dos autos

e sua decisão seja devidamente fundamentada.

Julio Fabbrini Mirabete116, a respeito do tema, ressaltando a inexistência de

sanção ao réu mendaz, pondera que “não há um verdadeiro direito de mentir, tanto

que as eventuais contradições em seu depoimento podem ser apontadas para retirar

qualquer credibilidade das suas respostas”.

Eugênio Pacelli de Oliveira anota que, não obstante o silêncio do acusado

não possa ser valorado em prejuízo da defesa, não há uma obrigação legal à

aceitação da veracidade do seu depoimento, pois o juiz poderá livremente

desconsiderar a versão defensiva que se encontre desconectada de sentido ou de

lógica argumentativa. Adverte que nessa hipótese não se cuida de valoração do

silêncio, mas de reconhecimento da inconsistência do conjunto da autodefesa.117

Em suma, a mentira do réu poderá resultar em um julgamento desfavorável à

tese defensiva.

116

MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo penal. 7. ed. rev. e atual. São Paulo: Atlas, 1997. p. 279. 117

OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de, Curso de processo penal, cit., p. 380.

Page 65: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

65

Uma terceira consequência pode ser apontada. O Supremo Tribunal Federal,

no julgamento do Habeas Corpus n. 86.055/SP118, assentou o entendimento de que

a mentira do réu no interrogatório, no que concerne aos seus dados qualificativos,

implica a perda do seu direito de ser intimado pessoalmente de sentença

condenatória.

Tratava-se de hipótese de réu que estava preso na data da publicação do

edital de intimação, ou seja, de réu que não fora intimado pessoalmente da sentença

condenatória. Ocorre que o réu, no momento de sua prisão em flagrante pelo crime

de roubo qualificado, declinou falsa identidade.

Ao ser interrogado, já no curso da ação penal instaurada, persistiu na mentira,

que somente foi descoberta posteriormente, quando então promoveu o Ministério

Público o aditamento da denúncia. O relator para o acórdão entendeu que o réu deu

causa à nulidade identificando-se falsamente e, por isso, o Estado não estava

obrigado a conhecer o seu paradeiro.

Vimos, pois, que não se pode dizer que a mentira não produz consequências

no processo penal. Aprofundemos agora um pouco o argumento de que a lei permite

aquilo que não proíbe.

Vejamos um exemplo para aclarar o exposto. A lei penal tipifica o tráfico de

drogas, assim como a conduta daquele que é flagrado com drogas para consumo

próprio. A lei não traz qualquer punição, todavia, ao indivíduo que já consumiu a

droga.

Ora, o fato de não haver punição para o indivíduo que consumiu a droga não

autoriza a afirmação de que há o direito de consumir drogas, ou seja, que o

ordenamento, ao não impor sanção para tal conduta, a autoriza.

118

“Habeas Corpus. Penal. Processo Penal. Citação por edital de réu preso. Nulidade a que o próprio paciente deu causa. Inocorrência. Ad impossibilita nemo tenetur. Ordem denegada. I - O paciente apresentou, no momento de seu encarceramento, identidade falsa, fato a obstar sua localização no momento da citação. II - Nulidade a que deu causa o paciente. III - Inexistência do dever do Estado de saber sua verdadeira identidade. Ad impossibilia nemo tenetur. IV - Ordem denegada.” (ST − HC n. 86.055/SP, 1ª Turma, rel. Min. Cármen Lúcia, rel. p/ acórdão Min. Ricardo Lewandowski, j. 15.08.2006).

Page 66: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

66

A intenção do legislador deve ser buscada não apenas no texto isoladamente

considerado, mas nos vários textos que disciplinam a matéria. A interpretação

conjunta dos dispositivos permitirá concluir que o legislador nunca teve a intenção

de autorizar o consumo de drogas, mas apenas tratou o consumidor de uma

maneira mais complacente, entendendo desnecessária a sanção nessa hipótese,

em razão de sua situação particular.

O mesmo caminho deve ser trilhado para verificar se o réu tem o direito de

mentir. Comecemos pela análise do Código Penal. A leitura desse diploma legal

evidencia que a mentira é sancionada em vários de seus artigos. No artigo 307, é

tipificada a conduta do agente que atribuir-se ou atribuir a terceiro falsa identidade

para obter vantagem, em proveito próprio ou alheio; no artigo 341, a conduta do

agente que acusar-se, perante a autoridade, de crime inexistente ou praticado por

outrem; no artigo 342, a conduta de fazer afirmação falsa, ou negar ou calar a

verdade como testemunha, perito, contador, tradutor ou intérprete em processo

judicial, ou administrativo, inquérito policial, ou em juízo arbitral; e, no artigo 138, a

conduta do agente que caluniar alguém, imputando-lhe falsamente fato definido

como crime. Em diversos outros artigos, o Código Penal tipifica crimes de fraude,

que são uma forma específica de mentira. Assim, não há dúvida de que a mentira

não é tolerada pela legislação penal.

O artigo 203 do Código de Processo Penal, a seu turno, dispõe que a

testemunha fará, sob palavra de honra, a promessa de dizer a verdade do que

souber e lhe for perguntado. Não somente esse artigo objetiva alcançar a verdade,

mas pode-se dizer que todos os artigos do referido diploma legal encadeiam-se em

um procedimento que tem como finalidades últimas a busca da verdade e a punição

dos responsáveis. De fato, perícias, acareações, buscas e apreensões, testemunhos

etc. nada mais são do que instrumentos para a busca da verdade.

O Código de Processo Civil, da mesma forma, em vários artigos, assevera o

dever de as partes dizerem a verdade. O artigo 14, por exemplo, dispõe que as

partes devem expor os fatos em juízo conforme a verdade, assim como devem

proceder com lealdade e boa-fé. O artigo 16 do mesmo diploma legal determina que

Page 67: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

67

responderá por perdas e danos aquele que pleitear de má-fé, entendida esta como a

alteração da verdade dos fatos.

O Superior Tribunal de Justiça119 já decidiu que a boa-fé constitui um princípio

geral de direito e está intimamente relacionado ao comportamento ético e leal do

agente.

Os exemplos mencionados são suficientes para demonstrar que o nosso

ordenamento conferiu grande importância à verdade, à lealdade e à boa-fé, tanto

que erigiu como objetivo da República Federativa do Brasil a construção de uma

sociedade justa, justiça que não se revela possível sem a verdade.

Grande parte dos textos contidos nos diplomas legais citados, como visto,

trazem uma sanção específica para as hipóteses de o réu ou a parte descumprirem

o seu dever de dizer a verdade. Essa é a lógica do ordenamento, o seu fio condutor.

Ocorre que, em uma situação excepcional – interrogatório do réu −, o legislador

entendeu por bem não dar o mesmo tratamento à mentira que houvera dado em

outras situações. O legislador pátrio poderia, como fez o legislador estadunidense,

tipificar como crime autônomo o falso testemunho levado a cabo pelo réu, contudo

preferiu não fazê-lo. Isso não significa porém que deixou o caminho livre para a

falsidade, pois, conforme ressaltado, não está o autor da mentira livre de todas as

consequências penais, apenas não há um tipo específico para a sua conduta.

Carlos Henrique Borlido Haddad120 assevera que:

[...] os que argumentam ser um direito mentir, por não consistir em conduta tipificada penalmente, obram em erro. A tentativa de suicídio não é punível, nem por isso tem alguém o direito de se suicidar, pois a vida é um bem indisponível. A atipicidade desta e de outras condutas decorre de opções de Política Criminal − prenhe em conotação moral − a fim de duplamente atender aos interesses da defesa e do Estado na persecução penal.

Vejamos outro exemplo, o homicídio tipificado no artigo 121 do Código Penal.

Sucede que, em algumas hipóteses, o seu autor, conquanto responsável pelo crime,

119

STJ − g . 1.263.480/C (2011/0152105-8), rel. Min. Humberto Martins. 120

HADDAD, Carlos Henrique Borlido, Conteúdo e contornos do princípio contra a auto-incriminação, cit., p. 141.

Page 68: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

68

não será punido, pois o parágrafo 5º do referido artigo dispõe que, na hipótese de

homicídio culposo, o juiz poderá deixar de aplicar a pena, se as consequências da

infração atingirem o próprio agente de forma tão grave que a sanção penal se torne

desnecessária.

Evidentemente a falta de sanção não permitirá a conclusão de que há o

direito ao homicídio. O mesmo ocorre nas hipóteses em que, não obstante o agente

tenha praticado um fato ilícito, não lhe seria exigível, diante da situação concreta, ter

agido de modo diferente.

Em síntese, o legislador, conquanto não tenha outorgado um direito à mentira,

entendeu que não seria razoável imputar ao réu mendaz o crime de falso

testemunho, reservando a este outras consequências, como a disposta no artigo 65,

inciso III, “d”, do Código Penal.

Vale a pena transcrever, a propósito do tema, o pensamento sempre atual de

Cesare Beccaria:121

Outra contradição entre as leis e os sentimentos naturais é exigir de um acusado o juramento de dizer a verdade, quando ele tem o maior interesse em calá-la. Como se o homem pudesse jurar de boa fé que vai contribuir para sua própria destruição! Como se, o mais das vezes, a voz do interesse não abafasse no coração humano a da religião! [...] Consulte-se a experiência e se reconhecerá que os juramentos são inúteis, pois não há juiz que não convenha que jamais o juramento faz o acusado dizer a verdade. A razão faz ver que assim deve ser, porque todas as leis opostas aos sentimentos naturais do homem são vãs e conseguintemente funestas.

Em conclusão, não se pode afirmar, de maneira peremptória, que o réu tenha

o direito de mentir ou que essa mentira não produza quaisquer consequências no

processo penal. O princípio contra a autoincriminação destina-se à proteção do

acusado e não pode ser utilizado para tutelar atividades criminosas ou ilícitas que

gerem danos a terceiros.122

121

BECCARIA, Cesare, Dos delitos e das penas, cit., p. 60-61. 122

HADDAD, Carlos Henrique Borlido, Conteúdo e contornos do princípio contra a auto-incriminação, cit., p. 143.

Page 69: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

69

4.2.3 Direito de não participar na reconstituição do crime

O Supremo Tribunal Federal decidiu, no julgamento do Habeas Corpus n.

69.026-2/DF, no que diz respeito à presença do réu na reconstituição do crime, que

ele não pode ser compelido, sob pena de caracterização de injusto constrangimento,

a participar da reprodução simulada do fato. O ministro Celso de Mello, relator do

acórdão, asseverou que o “magistério doutrinário, atento ao princípio que concede a

qualquer indiciado ou réu o privilégio contra a autoincriminação, ressalta a

circunstância de que é essencialmente voluntária a participação do imputado no

ato”. Citando as lições de Bento de Faria123, afirma que a “autoridade não pode

obrigar o indiciado a figurar no quadro, pois tal importaria em violência e não valem

os adminículos de prova obtidos por esse meio”.

De fato, não há como obrigar o réu, sem o seu consentimento, a participar da

reconstituição do crime sem atingir o seu direito à não autoincriminação, uma vez

que ele, nessa hipótese, terá que realizar condutas ativas durante o ato, condutas

que, repise-se, devem ser voluntárias, para não macular o referido direito.

4.2.4 Direito de não fornecer padrôes gráficos e de voz

O Código de Processo Penal dispõe, no inciso IV do artigo 174, que no

exame para o reconhecimento de escritos, quando não houver elementos para a

comparação, ou forem insuficientes os exibidos, a autoridade mandará que a pessoa

escreva o que Ihe for ditado.

No julgamento do Habeas Corpus n. 77.135-8/SP, o ministro Ilmar Galvão

aduziu que em face do

[...] princípio nemo tenetur se detegere, é fora de dúvida que o dispositivo do inciso IV do art. 174 do Código de Processo Penal há de ser interpretado no sentido de não poder ser o indiciado compelido a fornecer padrões gráficos do próprio punho, para os exames periciais, cabendo apenas ser intimado para fazê-lo a seu alvedrio.

123

FARIA, Antonio Bento de. Código de Processo Penal. 2. ed. atual. Rio de Janeiro: Record, 1960. v. 1, p. 98.

Page 70: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

70

Entendeu o ministro que a comparação gráfica constitui ato de caráter

essencialmente probatório, não se podendo, em face do privilégio de que desfruta o

indiciado contra a autoincriminação, obrigar o suposto autor do delito a fornecer

prova capaz de levar à caracterização de sua culpa.

No julgamento do Habeas Corpus n. 83.096/RJ, a ministra Ellen Gracie

entendeu que o privilégio contra a autoincriminação permite que paciente exerça o

direito de silêncio, “não estando, por essa razão, obrigado a fornecer os padrões

vocais necessários a subsidiar prova pericial que entende lhe ser desfavorável”.

Guilherme de Souza Nucci124 assevera que:

Ninguém é obrigado, segundo emana do sistema constitucional e é reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal, a produzir prova contra si mesmo. Portanto, se o investigado é o suspeito ou indiciado, conforme orientação de sua defesa, pode preferir não fornecer o material para o exame ser realizado.

Todas as decisões acima têm um ponto em comum. Não há como obrigar o

réu a adotar a medida pretendida, vale dizer, a sua colaboração é necessária para a

prática do ato. Em outras palavras, a prova não pode ser realizada sem a sua

colaboração. O Estado, assim, não tem meios para suprir o consentimento e a

vontade do réu e realizar a prova. Evidentemente estamos falando de meios lícitos

para a sua sujeição.

É claro que em algumas hipóteses a prova poderá ser realizada com a

utilização de procedimentos alternativos. Por exemplo, se o acusado não quiser

fornecer padrões gráficos, poderá a autoridade requisitar de órgãos públicos ou

particulares documentos que contenham a sua assinatura para fins de comparação,

ou proceder a exame no próprio lugar onde se encontram tais documentos, bem

como solicitar a busca e apreensão deles. Todavia não poderá, à exceção de

hipóteses semelhantes a essas, realizar a prova sem a colaboração voluntária do

réu.

124

NUCCI, Guilherme de Souza, Código de Processo Penal comentado, cit., p. 412.

Page 71: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

71

4.2.5 Necessidade de comparecimento à audiência

O Supremo Tribunal Federal. No julgamento do Habeas Corpus n.

114.095/MS125, reafirmou o seu entendimento no sentido de que “a possibilidade de

o réu não comparecer à audiência é uma expressão do direito constitucional ao

silêncio (art. 5º, inc. LXIII, da CF/88), pois nemo tenetur se deterege”.

A decisão, infelizmente, não analisa a questão sob todos os aspectos, uma

vez que as prerrogativas do réu, embora importantes, constituem apenas uma das

facetas do processo penal, não sendo sequer a sua mais importante, posição

ocupada pelas funções de pacificação social e realização da justiça. Ademais, o

mero comparecimento do réu à audiência, desde que não seja obrigado a dizer o

que não queira, é incapaz de ferir, ainda que de maneira tênue, o direito à não

autoincriminação.

O julgado parece ainda desconsiderar que o interrogatório é apenas uma das

funções desempenhadas pelo réu no processo penal, mas não a única. Com efeito,

o réu, além de prestar ou não o seu depoimento, deve se submeter, por exemplo, ao

reconhecimento por parte da vítima, mesmo porque a jurisprudência tem reafirmado

que as provas produzidas no inquérito devem ser reproduzidas judicialmente, pois o

procedimento administrativo não é realizado sob o manto do contraditório.

Observe-se que ao decidir sobre a obrigatoriedade ou não de uma pessoa

comparecer à Comissão Parlamentar de Inquérito para prestar depoimentos, o

Supremo Tribunal Federal126 não desconsiderou todas as funções que ela poderia

desempenhar, assentando a compulsoriedade de comparecimento nos seguintes

termos:

Impõe-se destacar, por necessário, que a pessoa convocada por uma CPI para depor tem o tríplice dever: a) de comparecer, b) de responder às indagações e c) de dizer a verdade. Embora comparecendo, tais pessoas não poderão ser constrangidas a responder a todas as perguntas que lhes sejam dirigidas, se, por alguma razão, estiverem sujeitas ao dever de sigilo profissional ou funcional (CPP, art. 207) ou, se, de algum modo, a resposta que lhes for exigida puder acarretar-lhes grave dano (CPC, art. 406, I, c/c CPP, art. 3º).

125

ST − HC . 114.095/MS, rel Min. Luiz Fux. 126

ST − HC . 73.035/DF, rel. Min. Carlos Velloso.

Page 72: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

72

Já no julgamento do Habeas Corpus n. 79.244/DF, o ministro Sepúlveda

Pertence asseverou que “não assiste direito aos impetrantes de se recusarem a

responder a todas as perguntas que lhes forem feitas, ou mesmo, negarem-se a

comparecer, quando intimados, para prestar depoimento”.

É evidente que se a testemunha fosse depor exclusivamente sobre fatos que

pudessem incriminá-la, ela não teria a obrigação de comparecer à Comissão

Parlamentar de Inquérito, conforme decidido pelo Supremo Tribunal Federal. Como

o seu depoimento pode não se restringir a tais fatos autoincriminadores, mas se

referir a condutas de terceiros, houve por bem a Suprema Corte determinar o seu

comparecimento, com a ressalva de não responder a perguntas que entendesse

prejudiciais.

Registre-se, ainda, que o interrogatório possui duas fases distintas, sendo que

o direito à não autoincriminação aplica-se apenas às perguntas sobre o mérito, ou

seja, sobre o fato delituoso, autoria etc., não tendo aplicação no que concerne à

qualificação do réu. De fato, não se vislumbra qualquer ofensa ao direito à não

autoincriminação o mero oferecimento de dados pessoais, haja vista não guardarem

tais dados qualquer relação com o mérito da questão. Tanto isso é verdade que, nos

termos da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, constitui crime atribuir-se

falsa identidade perante a autoridade policial:127

O princípio constitucional da autodefesa (art. 5º, inciso LXIII, da CF/88) não alcança aquele que atribui falsa identidade perante autoridade policial com o intento de ocultar maus antecedentes, sendo, portanto, típica a conduta praticada pelo agente (art. 307 do CP).

Assim, à semelhança do decidido em hipóteses de convocação para

depoimentos em Comissões Parlamentares de Inquérito, entendemos que o réu

deve ser obrigado a comparecer à audiência e suportar todos os procedimentos

determinados na legislação penal, só não sendo possível exigir-se que responda às

perguntas de mérito que lhe forem feitas ou forneça padrões gráficos e de voz.

Cumpre ainda ressaltar que o não comparecimento do acusado às audiências pode

acarretar a quebra da fiança e a revogação da liberdade provisória vinculada.

127

ST − RG RE n. 640.139/DF, rel. Min. Dias Toffoli.

Page 73: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

73

4.3 O direito à não autoincriminação aplicado a posturas ativas do

indivíduo

Em todas as hipóteses vistas até agora, o direito à não autoincriminação dizia

respeito a situações em que o acusado recusava-se a praticar alguma ação: não

depor, não fornecer padrões de voz, não comparecer128. Alguns julgados, entretanto,

estendem o direito a comportamentos ativos realizados pelo réu.

4.3.1 Direito à não autoincriminação como justificativa para o

cometimento de delitos. Fraudes praticadas durante o processo

Vejamos um exemplo. O Tribunal Regional Federal da 4ª Região aumentou a

pena base de um crime de estelionato em razão de o acusado ter fornecido padrões

falsificados para a perícia grafotécnica. Entendeu o Tribunal que tal fato denotava

malícia em sua atividade e consequentemente uma personalidade desviada, e que a

alegação de que a fraude não pode pesar contra o réu no apenamento, porquanto

posterior aos fatos narrados na denúncia, não aproveita ao réu, pois o que está em

questão é a personalidade do agente. A decisão foi confirmada pelo Superior

Tribunal de Justiça, mas reformada pelo Supremo Tribunal Federal 129 , sob o

argumento de que o comportamento do réu durante o processo, na tentativa de

defender-se, não se presta a agravar-lhe a pena:

Assente a jurisprudência do Tribunal em que o comportamento do réu durante o processo, na tentativa de defender-se, não se presta a agravar-lhe a pena (cf. HC 72.815, 5.9.95, Moreira Alves, DJ 6.10.95): é garantia que decorre da Constituição Federal, ao consagrar o princípio do nemo tenetur se detegere (CF/88, art. 5º, LXIII).

Não se pode concordar com o teor do julgado. Nem todos os meios devem

ser aceitos para livrar o acusado da condenação, mesmo porque o processo não é

128

Muito embora o direito à não autoincriminação seja predominantemente observado nas condutas omissivas, isso não implica na possibilidade de sua invocação em todo comportamento omissivo. O não comparecimento à audiência é um exemplo. Assim, poderá o réu ser conduzido à audiência para o reconhecimento previsto no artigo 226 do Código de Processo Penal. Também poderá ser determinada a realização de determinada perícia, não obstante a inércia do indivíduo ou mesmo contra a sua vontade, sem que seja configurada ofensa à autoincriminação, como, por exemplo, no exame de raios X para detectar presença de drogas no interior do corpo.

129 ST − HC . 83.960/RS, rel. Min. Sepúlveda Pertence.

Page 74: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

74

um jogo de espertezas, mas é um instrumento ético para a efetivação dos direitos130.

O réu poderia simplesmente recusar-se ao fornecimento dos padrões gráficos sem

que essa recusa fosse capaz de lhe trazer qualquer tipo de prejuízo. Contudo, ao

tentar fraudar a perícia, ele não mais adota uma postura passiva, mas procura

ativamente interferir na prova, tentando modificar o seu resultado, conduta que não

pode ser admitida como abrangida pelo direito à não autoincriminação. O direito à

não autoincriminação exterioriza-se por meio de condutas omissivas, uma vez que a

sua finalidade é obrigar o Estado a, sem a colaboração ativa do réu (ou seja, não

obstante a sua omissão), descobrir todos os elementos do delito por seus próprios

meios. Ao tentar interferir na produção da prova, o réu infringe a finalidade do direito,

bem como ultrapassa todos os seus limites, abrindo caminho para outras condutas

igualmente fraudulentas. De fato, se o réu pode fornecer padrões gráficos falsos, ou

seja, cometer um crime de acordo com a legislação penal, pois tem o direito de não

se autoincriminar, porque não poderia praticar, em nome de sua autodefesa, outras

condutas delituosas no decorrer do processo?

Não se pode assim, em nome do direito à não autoincriminação aceitar-se

que novo delito seja perpetrado para o encobrimento do primeiro. O exercício da

ampla defesa não admite,

[...] em princípio, a ocultação de crimes através de outros delitos. A se conceber como valor primordial uma defesa incondicional que tenha por salvaguarda a liberdade do acusado, deverá aceitar-se o dificultar da visualização da verdade, o produzir no processo provas ilícitas que não se prestarão ao esclarecimento dos fatos e o impedir ilegalmente a apresentação de elementos probatórios legitimamente colacionados, com o que não se pode concordar.

131

Endossando o entendimento que o direito à não autoincriminação não isenta

o autor do delito de fraude processual de ser responsabilizado por sua conduta, o

130

“Processo Civil. Intimação pela imprensa. Ausência do nome do novo patrono da parte. Quatro intimações posteriormente endereçadas ao recorrido. Constância nessas publicações dos nomes corretos de ambas as partes e de seus patronos. Suscitação da nulidade pela recorrente apenas quando publicada intimação comum às duas partes. Preclusão. Art. 245, CPC. Peculiaridades do caso concreto. Processo como instrumento ético. Recurso desacolhido. O processo não é um jogo de espertezas, mas instrumento ético da jurisprudência para a efetivação dos direitos da cidadania [...].” (STJ − REsp n. 65.906/DF(1995/0023303-7), rel. Min. Paulo Gallotti).

131 HADDAD, Carlos Henrique Borlido, Conteúdo e contornos do princípio contra a auto-incriminação,

cit., p. 147.

Page 75: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

75

Superior Tribunal de Justiça denegou habeas corpus impetrado pela defesa de

Alexandre Nardoni. Entendeu o Tribunal que:

O direito à não auto-incriminação não abrange a possibilidade de os acusados alterarem a cena do crime, inovando o estado de lugar, de coisa ou de pessoa, para, criando artificiosamente outra realidade, levar peritos ou o próprio Juiz a erro de avaliação relevante.

Embora parte da doutrina admita que o réu possa, com a finalidade de se

defender, inovar artificiosamente o estado de lugar, coisa ou pessoa, com o fim de

induzir a erro o juiz ou perito, pois essa conduta estaria abrangida pelo seu direito à

autodefesa132, entendo que tal conduta não pode ser amparada pelo direito à não

autoincriminação. Alterar a cena do crime, conduta ativa, portanto, realizada pelo

indivíduo, não guarda qualquer relação com a faculdade do indivíduo de silenciar ou

não colaborar com a investigação.

4.3.2 Imputação falsa de crime a outrem

Outro exemplo de fraude e conduta comissiva do réu diz respeito à

possibilidade de imputação falsa de crime a terceiros. O Supremo Tribunal Federal,

no julgamento do Habeas Corpus n. 80.616-3/SP133, admitiu a possibilidade de, em

nome do direito à não autoincriminação, imputar-se falsamente a autoria do crime a

terceiros, desde que em relação a eles a punibilidade esteja extinta.

Tratava o processo de um homicídio decorrente de um acidente de trânsito

que causou a morte do passageiro. O Tribunal de Alçada Criminal havia impedido o

cumprimento da pena em regime aberto, em função da personalidade do motorista

causador do acidente. Entre os fundamentos utilizados, estava o de que o réu havia

prestado falso depoimento, atribuindo ao passageiro do veículo a responsabilidade

pelo delito:

Outrossim, ainda considerando as circunstâncias judiciais desfavoráveis, não se mostra aconselhável nem admissível a substituição da pena privativa de liberdade por restritivas de direito. Basta considerar que o réu estava em rota de fuga por crime gravíssimo, praticado naquele mesmo dia,

132

Nesse sentido: GRECO, Rogério. Código Penal comentado. Niterói: Impetus, 2008. p. 1.400. 133

ST − HC . 80.616-3/SP, rel. Min. Marco Aurélio.

Page 76: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

76

continuando sua temerária e irresponsável conduta com o capotamento do veículo na mais grosseira imprudência, resultando na morte de seu fiel e inocente empregado. De resto não teve a dignidade de assumir as consequências da verdadeira tragédia que sua irresponsabilidade levou-o a consumar, já que não satisfeito em causar a morte de seu fiel servidor, ainda o injuriou da forma mais covarde e abjeta, atribuindo à infeliz vítima, já então no silêncio dos mortos, de onde não mais poderia defender-se, a própria autoria do acidente automobilístico que a infelicitou.

O ministro Marco Aurélio asseverou que “o simples fato de alguém não se

mostrar confesso sobre um certo crime, atribuindo-o, como no caso dos autos, a

outrem, não é de molde a excluir a substituição”. Mais adiante em seu voto, afirma

que a avaliação que apontara que o réu teria personalidade distorcida, porque não

assumira imediatamente a culpa pelo acidente, teria exigido uma conduta que

discrepa de um direito natural, que é o de autodefesa, o direito de negar a

procedência de uma imputação.

O voto não diz expressamente que o réu, ao imputar a terceiros a autoria de

um delito, não cometera crime algum, pois estaria protegido pelo direito à não

autoincriminação, mas apenas que a atribuição de crime a outrem não exclui a

possibilidade de substituição da pena. O voto, todavia, ante a conduta do réu, que

não apenas negou a autoria do crime, mas foi além, atribuindo a outrem a sua

autoria, afirmou que não se poderia exigir dele outra conduta, em razão da proteção

que lhe teria sido garantida pelo direito à não autoincriminação. Tal afirmação

permite inferir que o direito à não autoincriminação abrange não apenas a faculdade

de o réu negar falsamente o ato criminoso, mas também a de atribuí-lo a terceiro

morto, que justamente por essa condição não poderia ser responsabilizado pelo fato.

Não há como chancelar a conduta do réu em imputar a terceiro a autoria de

um crime, mesmo que em relação a este a punibilidade esteja extinta. A finalidade

do direito à não autoincriminação nunca foi a de permitir a utilização de falsidades

impunemente, mas apenas impedir que o réu fosse obrigado a fornecer, contra a

sua vontade, provas para a elucidação de determinado crime, pois essa tarefa cabe

à acusação. E é tendo em mente essa finalidade que devem ser aferidas as

condutas para verificar se estão ou não protegidas. Toda vez que a conduta não se

mostrar estritamente necessária para a consecução da finalidade, ela não estará

protegida pelo direito. Na situação posta, bastaria ao réu negar a autoria do crime,

Page 77: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

77

para transferir o ônus da prova à acusação. Todavia, não satisfeito com a faculdade

que lhe outorgava o direito, o réu foi além, imputando a autoria do crime a outrem,

conduta evidentemente desnecessária para atingir a finalidade do instituto. Na

verdade, o réu com a sua conduta procurou não apenas não se autoincriminar, mas

sim obter uma vantagem indevida, desviando o foco da investigação, conduta que

não está abrangida pelo direito. Reforce-se que o direito à não autoincriminação se

materializa mediante condutas omissivas – não depor, não entregar materiais para

perícia, não permitir a realização de determinados exames etc. Ora, ao imputar a

autoria do crime a terceiros, o réu adota uma postura ativa, procura por intermédio

de uma falsidade obter uma posição favorável, condutas que não podem ser

justificadas pela invocação do direito à não autoincriminação.

4.3.3 Fuga do infrator do local do delito

David Santos Sousa pedalava pela ciclovia da Avenida Paulista, em direção

ao trabalho, quando foi atingido pelo carro de Alex Siwec, de 22 anos, que havia

ingerido bebida alcoólica. As testemunhas ouvidas relataram que antes de atropelar

o jovem, o motorista dirigia em zigue-zague e havia derrubado alguns cones que

delimitavam a ciclovia. O motorista fugiu do local do acidente sem prestar socorro,

levando preso ao veículo o braço arrancado de Sousa. Posteriormente, ele teria

jogado o membro no córrego da Rua Ricardo Jafet, na Zona Sul da cidade, o que

impediu que o braço da vítima fosse reimplantado.

O crime de omissão de socorro, previsto no artigo 135 do Código Penal,

tipifica a conduta do agente que deixar de prestar assistência, quando possível fazê-

lo sem risco pessoal, à criança abandonada ou extraviada, ou à pessoa inválida ou

ferida, ao desamparo ou em grave e iminente perigo; ou não pedir, nesses casos, o

socorro da autoridade pública.

Trata-se de crime comum, no que concerne ao sujeito ativo, o que significa

que qualquer pessoa pode praticá-lo, desde que, ciente da necessidade de socorro,

e podendo agir sem risco pessoal, deixa de prestar assistência ou de pedir o socorro

da autoridade pública.

Page 78: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

78

O intuito da lei é claro. Ela quer obrigar os indivíduos que vivem em sociedade

ao dever de prestarem assistência a quem necessite, exortando-os a adotarem o

princípio da solidariedade, tão importante para a nossa vida social. Nesse sentido é

a lição de Magalhães de Noronha, para quem o artigo 135 do Código Penal traduz

uma norma de solidariedade humana, sob o imperativo legal. Já não se trata de

simples dever moral, mas de uma imposição da lei.134

O artigo 304 do Código de Trânsito Brasileiro traz norma especial no que diz

respeito à omissão de socorro, quando praticada pelo condutor de veículo

automotor, nos seguintes termos: “Deixar o condutor do veículo, na ocasião do

acidente, de prestar imediato socorro à vítima, ou, não podendo fazê-lo diretamente,

por justa causa, deixar de solicitar auxílio da autoridade pública”. Por sua vez, o

artigo 302 do mesmo Código aumenta de um terço à metade a pena do agente que

pratica homicídio culposo na direção de veiculo automotor, quando deixa de prestar

socorro, quando possível fazê-lo, sem risco pessoal, à vítima do acidente.

A jurisprudência de modo geral tem reconhecido a aplicabilidade de tais

artigos às condenações dos agentes por crimes de trânsito 135 , vale dizer, tem

134

NORONHA, Edgard. Magalhães. Direito penal: dos crimes contra a pessoa, dos crimes contra o patrimônio. 21. ed. São Paulo: Saraiva, 1986. v. 2. p. 93.

135 “Habeas corpus. Homicídio culposo no trânsito anterior à vigência do CBT. Velocidade

incompatível com a via. Inobservância de regra técnica de profissão. Aumento da pena-base pouco acima do mínimo legal (1 ano, 6 meses e 15 dias de detenção). Pena total fixada em 2 anos, 8 meses e 26 dias de detenção em razão do concurso formal (4 vítimas fatais). Circunstâncias judiciais desfavoráveis. Graves consequências do crime. Alto grau de culpabilidade do agente. Decisão fundamentada. Socorro às vítimas. Dever legal do agente causador do delito. Omissão. Causa de aumento de pena. Inadmissibilidade da incidência da atenuante genérica do art. 65, III, b do CPB. Inexistência de constrangimento ilegal. Ordem denegada. 1. O Juiz de primeiro grau, ao fixar a pena-base pouco acima do mínimo legal, teceu considerações pormenorizadas à respeito de todas as circunstâncias judiciais do art. 59 do CPB, esclarecendo que, em especial, essas circunstâncias e as consequências do crime e o alto grau de culpabilidade do agente indicavam a necessidade do referido aumento. 2. No homicídio culposo, a ausência de imediato socorro à vítima é causa de aumento da pena (art. 121, § 4º do CPB), descabendo cogitar da atenuante genérica da alínea b do inciso III do art. 65 do referido Código, quando esse socorro foi efetivamente prestado, eis que traduz dever legal do agente causador do delito, não sendo causa de diminuição da sanção. 3. Parecer do MPF pela denegação da ordem. 4. Habeas Corpus denegado.” (STJ − HC 65.971/PR (2006/0195303-3), rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho); “ pelação criminal. Homicídio culposo. Acidente de trânsito. Artigo 302, parágrafo único, III, do Código de Trânsito Brasileiro. Pretensão absolutória. Autoria e materialidade comprovadas. Motociclista que realiza ultrapassagem e, na contramão de direção, atropela a vítima menor de idade que atravessava a via para pegar o ônibus que se encontrava parado no ponto. Causa de aumento. Omissão de socorro. Pretensão de afastamento. Impossibilidade. Fuga do local sem a prestação de socorro. Morte instantânea da vítima que não afasta a majorante. Ademais, alegação de ameaça a sua integridade física não comprovada. Condenação mantida. ‘I - É inviável a desconsideração do aumento de pena pela omissão de socorro, se verificado que o réu estava apto a acudir a vítima, não existindo nenhuma

Page 79: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

79

sustentado o dever que tem o causador do acidente de prestar socorro à vítima.

Asseveraram os julgados que no homicídio culposo, a ausência de imediato socorro

à vítima é causa de aumento da pena e que a prestação de socorro é dever do

agressor, não cabendo a ele levantar suposições acerca das condições físicas da

vítima.

É certo, portanto, que o causador do acidente tem o dever de prestar socorro

à vítima. Para isso, evidentemente deve permanecer no local e, na medida do

possível, tomar todas as providências necessárias para a preservação da

integridade física da vítima, verificando o seu estado físico, prestando os primeiros

cuidados, sinalizando o local, bem como acionando o serviço médico especializado,

entre outras ações.

O legislador, na tipificação dos delitos do Código de Trânsito Brasileiro,

sabedor da importância de um pronto atendimento para aumentar as chances de

sobrevivência das vítimas, entendeu por bem penalizar duplamente a conduta do

agente que foge do local, imputando-lhe, além do crime de omissão de socorro, o

crime descrito no artigo 305, que responsabiliza o condutor do veículo que se afasta

do local do acidente, para fugir à responsabilidade penal ou civil que lhe possa ser

atribuída. Cumpre ressaltar que, nos termos do parágrafo único, é irrelevante o fato

de a sua omissão ter sido suprida por terceiros ou que se trate de vítima com morte

instantânea ou com ferimentos leves. Com efeito, a alegação de que houve a morte

imediata da vítima não exclui o delito, visto que ao causador não cabe, no momento

do acidente, presumir as condições físicas da vítima ou medir a gravidade das

lesões, visto que isso é responsabilidade do especialista médico.136

O Tribunal de Justiça de São Paulo, não obstante a previsão legal, decidiu

que como nenhum cidadão é obrigado a produzir prova contra si mesmo, não é

constitucional o artigo 305 do Código de Trânsito Brasileiro, que tipifica a conduta de

ameaça a sua vida nem a sua integridade física. II - A prestação de socorro é dever do agressor, não cabendo ao mesmo levantar suposições acerca das condições físicas da vítima, medindo a gravidade das lesões que causou e as consequências de sua conduta, sendo que a determinação do momento e causa da morte compete, em tais circunstâncias, ao especialista legalmente habilitado’ (STJ, REsp. 277.403/MG, rel. Min. Gilson Dipp, Quinta Turma, j. 4-6-2002).” (TJSC − ACR n. 445.690/SC (2010.044569-0), rel. Jorge Schaefer Martins).

136 Precedentes: REsp n. 161.399/SP, DJ, de 15.03.1999; REsp n. 207.148/MG, DJ, de 04.09.2000.

Page 80: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

80

deixar o local do acidente para fugir da responsabilidade penal ou civil. A

inconstitucionalidade foi declarada pelo Órgão Especial do Tribunal de Justiça de

São Paulo no incidente de inconstitucionalidade instaurado durante o julgamento do

habeas corpus apresentado pela defesa de Alex Kozloff Siwek.

Guilherme de Souza Nucci137, ao tratar do citado artigo 305, afirma que ele

contraria o princípio de que ninguém é obrigado a produzir prova contra si mesmo −

nemo tenetur se detegere. Prossegue afirmando que não existe razão plausível para

obrigar alguém a se autoacusar, permanecendo no lugar do crime, para sofrer as

consequências penais e civis do ato que provocou. Finaliza asseverando que

qualquer agente criminoso pode fugir à responsabilidade, exceto o autor de delito de

trânsito, motivo pelo qual entende inaplicável o artigo.

Luiz Flávio Gomes 138 , com entendimento semelhante, aduz que não há

dúvida de que todos temos a obrigação moral de ficar no local do acidente que

provocamos. O autor questiona, contudo, se uma mera obrigação moral pode

converter-se em obrigação penal. À semelhança de Nucci, pergunta por que, sendo

legítima a exigência de ficar no local, impõe-se tal obrigação apenas em relação aos

delitos de trânsito, uma vez que o homicida doloso, o estuprador etc. não contam

com obrigação semelhante.

Afirma ainda que ninguém é obrigado a fazer prova contra si mesmo, a

declarar contra si mesmo, ou seja, a autoincriminar-se, garantia constante da

Convenção Americana sobre Direitos Humanos em seu artigo 8, sendo que o

referido artigo resulta numa espécie de autoincriminação. Finaliza esclarecendo que

ninguém está sujeito a prisão por obrigações civis, fora das exceções previstas,

sendo certo que o artigo 305 contempla uma hipótese de prisão (em abstrato) por

causa de uma responsabilidade civil.

Os argumentos não convencem. No que diz respeito à afirmação de que não

existe razão plausível para obrigar alguém a se autoacusar, permanecendo no lugar

137

NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais penais comentadas. 7. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. v. 2. p. 713.

138 GOMES, Luiz Flávio. Estudos de direito penal e processo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais,

1999. p. 46-47.

Page 81: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

81

do crime, para sofrer as consequências penais e civis do ato que provocou,

lembramos que tal obrigação – permanecer no local − está implícita no crime de

omissão de socorro, afinal, como alguém vai prestar o devido socorro deixando o

local do acidente? No que concerne a não existir exigência semelhante para os

outros delitos – homicídio e estupro, nos exemplos de Luís Flávio Gomes – a razão

salta aos olhos: em tais crimes o agente buscou o resultado, ao contrário dos delitos

de trânsito, geralmente cometidos em razão de imprudência, imperícia ou

negligência. O argumento de que não pode haver prisão por causa de

responsabilidade civil também causa estranheza, haja vista que há no Código Penal

vá u “ b v ”

por exemplo, o crime tipificado no artigo 133, que criminaliza a conduta do pai que

abandona o seu filho, incapaz de defender-se dos riscos do abandono, ou o crime

do artigo 246, que responsabiliza o pai que deixar, sem justa causa, de prover a

instrução primária de filho em idade escolar. O que a Constituição proíbe, na

verdade, é a prisão por dívidas, que não guarda relação com prisão decorrente de

descumprimento de responsabilidades civis.

Deixamos para o fim o último argumento, a possibilidade de uma obrigação

moral converter-se em obrigação penal.

A moral pode ser entendida como o conjunto de normas que regulam o

comportamento do homem em sociedade, tendo essas normas sido adquiridas pela

educação, pela tradição e pelos costumes; dito de outro modo, é um conjunto de

normas, aceitas livre e conscientemente, que regulam o comportamento individual e

social dos homens.139

Não há como questionar a relação entre a moral e o direito, mormente após o

nazismo, quando se buscou vincular o direito a algo externo ao ordenamento

jurídico. De fato, uma ordem constitucional, seja qual for o modelo de que se

originou, não poderá produzir qualquer norma independente de seu conteúdo140. O

139

SÁNCHEZ VÁZQUEZ, Adolfo. Ética. Tradução de Joao Dell’Anna. 20. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. p. 63.

140 Thiago Matsushita assevera que não se pode esquecer o horror causado pela aplicação desse

positivismo restrito e absoluto, principalmente no Estado nazista (MATSUSHITA, Thiago Lopes, O jus-humanismo normativo: expressão do princípio absoluto da proporcionalidade, cit., p. 154).

Page 82: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

82

legislador não possui, destarte, poderes ilimitados para estabelecer as regras que

bem entender.141

Pelo exposto, é evidente a relação entre a moral e o direito, sendo que a

maioria dos artigos do Código Penal não faz outra coisa senão criminalizar condutas

moralmente condenáveis, como, por exemplo, furtar, abandonar o filho, enganar

(estelionato) e assim por diante. Então, evidentemente, pode o legislador converter

uma obrigação moral em obrigação penal.

Mais uma vez, a conduta réu, na hipótese estudada, não fica restrita aos

limites que permitiriam a invocação do direito à não autoincriminação. Se a conduta

do causador do acidente que foge do local e não presta socorro à vítima é típica e

não fere o direito à não autoincriminação, porque feriria o direito a conduta do que

foge para não ser responsabilizado penal e civilmente? Evidentemente o causador

do acidente que presta socorro à vítima será, com grande probabilidade, identificado

pelas autoridades e posteriormente processado, uma vez que terá permanecido no

local por um grande período, o que proporcionará a chegada não só do socorro,

como também da polícia. Utilizando o mesmo raciocínio, porque se exigir que o

causador do acidente permaneça no local e preste socorro se com essa conduta ele

estaria se autoincriminando ou aumentando grandemente as chances de que isso

viesse a ocorrer? Se a fuga para não ser responsabilizado penalmente é amparada

pelo princípio da não autoincriminação, porque a fuga para a não prestação do

devido socorro não o seria? Dito de outro modo, a lei exige que o indivíduo não

abandone o local para prestar socorro à vítima e seja responsabilizado penalmente.

Se exigir-se a presença do causador do acidente no local para ser responsabilizado

penalmente fere o direito à não autoincriminação, então qualquer fuga deve ser

permitida, visto que a permanência do causador do acidente no local aumenta as

chances de responsabilização.

Sem entrar no mérito da aparente irrelevância da norma – já se pune a

omissão do agente que foge do local, o que bastaria para proibir a conduta que a lei

considera indesejada − o que entendemos deva ficar patente é que os argumentos

141

RIGAUX, François. A lei dos juízes. Tradução de Edmir Missio. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 122.

Page 83: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

83

utilizados para se considerar inconstitucional o artigo em comento não podem

prevalecer, do contrário todas as fugas estariam autorizadas pelo direito à não

autoincriminação. Não se pode dizer que a tipificação de uma conduta – fugir do

local do acidente − que não guarda qualquer relação com as declarações verbais ou

possível recusa do réu em colaborar com a investigação (não entregar padrões

gráficos ou de voz), que constituem a essência do direito à não autoincriminação,

possa de alguma forma contrariar o referido direito, pois, reforce-se, o que se obriga

é a permanência do indivíduo no local, e não o seu depoimento ou realização de

qualquer outra prova.

O Superior Tribunal de Justiça enfrentou a questão no julgamento do Habeas

Corpus n. 137.340/SC 142 e entendeu não haver qualquer traço de

inconstitucionalidade no artigo 305, pois o legislador, por intermédio da referida

norma, não buscou a autoincriminação do condutor que permanece no local do

acidente, haja vista que ele não está obrigado a produzir prova contra si, mas

apenas impõe-se a sua colaboração com a administração da Justiça, não sendo

impelido a qualquer manifestação, podendo permanecer em silêncio, se assim o

quiser. Prossegue, asseverando que:

A tipificação da conduta do motorista que foge do local do acidente, para se furtar à responsabilidade penal ou civil que lhe possa ser atribuída não viola a garantia da não autoincriminação, que assegura que ninguém pode ser obrigado por meio de fraude ou coação, física e moral, a produzir prova contra si mesmo. O cerne do princípio do nemo tenetur se detegere reside em assegurar ao réu a possibilidade de permanecer em silêncio, de não falar a verdade, confessar ou participar da produção de uma prova incriminatória ou apresentar prova contra ele, o que não se confunde com a penalização do condutor que se afasta do local do acidente.

Em conclusão, o direito à não autoincriminação pode ser invocado quando há

uma omissão por parte do indivíduo, pois nessas hipóteses ele estará deixando de

contribuir para a produção da prova e, por consequência, evitando a sua

incriminação. Condutas ativas não estão amparadas pelo direito.

142

STJ − HC . 137.340/SC . Min. Laurita Vaz.

Page 84: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

84

Argumenta-se que a conduta do agente que mente, ou inova o estado, lugar,

coisa ou pessoa para iludir a perícia ou o juiz, o faz em razão do seu instinto natural

de defesa143. Ocorre que realizar uma conduta por um natural instinto de defesa não

isenta o indivíduo de ser responsabilizado pelo fato. O autor de um delito de roubo a

banco, quando surpreendido pelos policiais, pode neles atirar para tentar evadir-se

do local; o ladrão de carros surpreendido pode atropelar alguém, ao tentar fugir da

polícia; o foragido da Justiça, quando parado pela autoridade policial, pode atribuir-

se falsa identidade para não ser preso. Todas essas condutas, embora possam ser

consideradas instintivas, inerentes à defesa do agente, não devem ser tidas como

permitidas pelo ordenamento, ao abrigo do direito à não autoincriminação, pois além

de constituírem condutas ativas, não respeitam a finalidade para a qual o direito foi

idealizado.

143

SANTOS, Marcus Renan Palácio de Morais Claro dos. O princípio nemo tenetur se detegere: seus limites e extensão. In: PEDROSO, Fernando Gentil Gizzi de Almeida; RIBEIRO, Roberto Victor Pereira (Orgs.). Questões relevantes do direito penal e processual penal. Porto Alegre: Lex Magister, 2012. p. 265.

Page 85: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

85

5 CORPO COMO OBJETO DE PROVA

5.1 Intervencões corporais. Definição

Sob uma mesma denominação, intervenções corporais, podem ser

identificadas diversas diligências com distinto alcance, finalidade e natureza,

diligências que podem estar relacionadas a algum tipo de investigação criminal, a

medidas de saúde pública, obtenção de meios de prova etc., mas que têm uma

característica comum, a atuação dos poderes públicos sobre o corpo de uma pessoa

viva.

María Ángeles Pérez Marín 144 ressalta que a expressão diligências de

intervenção corporal compreende duas espécies de atuação com alcance distinto.

Por um lado, a mera inspeção ou registro sobre o corpo que, assim como as buscas

sobre os seus contornos, tem lugar sobre as roupas, sem afetar diretamente

nenhuma área específica; por outro lado a intervenção direta sobre o próprio corpo

ou alguma de suas partes, cuja finalidade é a obtenção de elementos ou

substâncias, internos ou externos, tais como unhas, cabelos, sangue ou amostras de

pele para posterior análise.

Angel Gil Hernández 145 define intervenção corporal como a medida que

realiza atos de investigação ou obtenção de provas no corpo do próprio acusado.

Nicolas Gonzalez-Cuellar, a seu turno146, define as intervenções corporais

como as medidas de investigação que se realizam sobre o corpo dos indivíduos,

sem a necessidade de seu consentimento e por meio de coação direta, se for

necessário, com a finalidade de descobrir circunstâncias fáticas que sejam

importantes para o processo, em relação às suas condições físicas ou psíquicas, ou

objetos nele escondidos.

144

PÉREZ MARÍN, María Ángeles. Inspecciones, registros e intervenciones corporales: las pruebas de ADN y otros métodos de investigación en el proceso penal. Valencia: Tirant lo Blanch, 2008. p. 42-43.

145 GIL HERNÁNDEZ, Ángel. Intervenciones corporales y derechos fundamentales. Madrid: Colex,

1995. p. 37. 146

GONZÁLEZ-CUELLAR SERRANO, Nicolás. Proporcionalidad y derechos fundamentales en el proceso penal. Madrid: Colex, 1990. p. 290.

Page 86: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

86

Assencio Mellado147 conceitua a intervenção corporal como a utilização do

corpo do acusado, mediante atos de intervenção, para efeitos de investigação e

comprovação dos delitos.

Teresa Armenta Deu148 entende que as intervenções corporais consistem na

extração do corpo do indivíduo de elementos internos ou externos com a finalidade

de serem submetidos a posterior exame pericial, inclusive exposições radiológicas.

Dessa forma, abrangem todos os exames com a finalidade de constatar

determinadas circunstâncias relativas ao fato criminoso e que de alguma forma

implicam em lesão ou menoscabo do corpo.

Maria Elisabeth Queijo149 divide as intervenções corporais em dois grandes

grupos. O primeiro grupo refere-se às intervenções invasivas, que implicam a

penetração no organismo humano, por instrumentos ou substâncias, em cavidades

naturais ou não. São exemplos de provas invasivas, para a autora, os exames de

sangue, o exame ginecológico, a identificação dentária, a endoscopia e o exame do

reto. Já as intervenções não invasivas são aquelas nas quais não há penetração no

corpo humano, como os exames de materiais fecais, os exames de DNA realizados

a partir de fios de cabelo, a impressão datiloscópica, radiografia etc. Entende a

autora que as provas realizadas mediante a intervenção corporal não invasiva teriam

o efeito de conciliar os interesses buscados pela persecução criminal com o respeito

aos direitos fundamentais.

Vemos, das definições apresentadas, que não há uniformidade no que se

deva entender por intervenção corporal. Alguns, como Nicolas Gonzalez-Cuellar,

admitem que a medida seja realizada não apenas no corpo do acusado, mas

também no corpo dos demais integrantes do processo, como, por exemplo, vítimas e

testemunhas; o conceito de Teresa Armenta Deu restringe as intervenções corporais

às medidas que de alguma forma venham a causar algum tipo de lesão a ele, ainda

147

ASSENCIO MELLADO, J. M. Prueba prohibida y prueba preconstituida. Madrid: Trivium, 1989. p. 137.

148 ARMENTA DEU, Teresa. Lecciones de derecho procesal penal. 5. ed. Madrid: Marcial Pons, 2010.

p. 151. 149

QUEIJO, Maria Elizabeth, O direito de não produzir prova contra si mesmo, cit., p. 290-295.

Page 87: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

87

que mínima e não aparente, como ocorre com a exposição aos raios X150, enquanto

o conceito de Ángel Gil Hernández e Maria Elisabeth Queijo estende as medidas de

intervenção a procedimentos não invasivos, como as impressões datiloscópicas e

buscas pessoais. Para parte dos doutrinadores, as inspeções nas cavidades do

corpo, como boca, ânus e vagina constituem modalidades de inspeção ou registro

corporal151, mas para outros, por consistirem tais medidas em formas de menoscabo

ao corpo, constituem verdadeiras modalidades de intervenção.152

O que podemos notar, na verdade, é que as medidas são realizadas no corpo

do indivíduo vivo e vão de forma progressiva atingindo alguns direitos

constitucionalmente protegidos, como o direito à privacidade, liberdade e integridade

corporal, entre outros. De fato, de uma simples inspeção corporal a uma extração

forçada de sangue, há uma progressão dos direitos atingidos.

Conquanto todas as medidas, como dito, sejam realizadas no corpo humano,

razão pela qual podem ser classificadas como diligências de intervenção corporal, é

possível esboçar um conceito mais restrito de intervenção corporal limitado àquelas

medidas que em algum grau afetam ou tenham potencial para afetar a integridade

física do indivíduo, como os exames de raios X, inspeções vaginais ou anais e

extração de sangue. Evidentemente o interesse do estudo de tais medidas restringe-

se àquelas tomadas contra o consentimento do indivíduo, uma vez que a anuência

dele afasta a eventual restrição ao direito.

Vejamos como os diversos ordenamentos tratam do tema.

5.2 Intervenções corporais no direito estrangeiro

O Tribunal Constitucional espanhol153 identifica duas espécies de medidas, as

de inspeção, que englobam qualquer forma de mero reconhecimento do corpo

150

Muito embora Maria Elizabeth Queijo considere o exame de raios X uma intervenção não invasiva (QUEIJO, Maria Elizabeth, O direito de não produzir prova contra si mesmo, cit., p. 290).

151 Nesse sentido: GIL HERNÁNDEZ, Ángel. Protección de la intimidad corporal: aspectos penales y

procesales. Revista General de Derecho, RGD, n. 622-623, p. 7.960, 1996. 152

Nesse sentido: PÉREZ MARÍN, María Ángeles, Inspecciones, registros e intervenciones corporales: las pruebas de ADN y otros métodos de investigación en el proceso penal, cit., p. 16.

153 STC 207/1996 (Disponível em: <http://hj.tribunalconstitucional.es>. Acesso em: 17 maio 2014).

Page 88: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

88

humano e que podem atingir o direito à intimidade protegido pela Constituição em

seu artigo 18.1154, e as medidas de intervenção corporal, consistentes na extração

de uma parte de material biológico que será posteriormente objeto de algum tipo de

análise pericial. Também são consideradas intervenções corporais as realizadas

sobre regiões internas do corpo, regiões que não podem ser visualizadas em um

simples exame superficial. Nessas intervenções, além do direito à intimidade, pode

restar atingido o direito à integridade física, protegido pelo artigo 15 da Constituição,

uma vez que para a sua execução evidentemente haverá alguma forma de lesão ao

corpo, ainda que mínima. O Tribunal pondera, ainda, que nessas medidas também

há que se ter em consideração a possibilidade de ofensa ao direito à dignidade −

limite para a validade de sua execução – e que em nenhuma hipótese serão

admitidas se puderem resultar em risco à saúde e integridade do indivíduo.

As primeiras medidas – denominadas inspeções e registros corporais − são

assim todas as que são realizadas sobre o corpo do indivíduo que não resultem em

uma violação do direito à sua integridade física, uma vez que para a sua consecução

não há a causação de qualquer lesão ao corpo. Não obstante não causarem lesão

ao indivíduo, tais práticas podem afetar o direito à intimidade e à privacidade. Entre

tais diligências, podemos citar as destinadas a qualquer espécie de reconhecimento,

exames dactiloscópicos, inspeções anais e vaginais, ou seja, medidas que tenham

por objetivo a determinação do indivíduo, o descobrimento dos eventuais objetos do

delito e a investigação de circunstâncias relativas aos fatos, tudo para possibilitar

uma mais adequada instrução processual.

As demais medidas, denominadas intervenções corporais, atingem

principalmente o direito à integridade física do indivíduo, pois via de regra exigem

para a sua realização a retirada de amostras biológicas, retirada essa que provoca

lesão, ainda que mínima, em seu corpo. Cumpre ressaltar que se não realizada a

intervenção corporal, não há como efetuar a posterior análise pericial, fundamental

para a elucidação de várias espécies de delitos. Entre as intervenções corporais,

podemos citar as extrações sanguíneas, realização de exames radiológicos etc.

154

O artigo garante o direito à honra, intimidade pessoal e familiar e à própria imagem.

Page 89: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

89

Atendendo à natureza das intervenções e suas consequências, pode-se

classificá-las em intervenções leves e graves, de acordo com a possibilidade de

causarem maior ou menor perigo à saúde ou ocasionarem sofrimentos

desproporcionais aos indivíduos. Serão leves as intervenções que não tiverem

potencial para colocar em risco a integridade física do indivíduo nem lhe impinjam

demasiado sofrimento, como a extração de sangue, coleta de unhas, saliva e

cabelos. Serão consideradas graves aquelas intervenções que, para a sua

realização, exijam uma especial atenção, quer no que diga respeito ao procedimento

utilizado para a retirada do material, quer quanto aos cuidados posteriores ao

exame, como, por exemplo, a extração de medula óssea.

O que se deve ter sempre presente é a necessidade de evitar que os direitos

em jogo sejam afetados mais do que o estritamente necessário para o atingimento

da finalidade da medida. Observe-se que a ingerência na intimidade do indivíduo é

permitida pela Convenção de Roma, desde que cumpridos os requisitos

determinados pelo seu artigo 8º, 2 155 , ou seja, que a medida seja necessária,

prevista em lei e destinada à prevenção de delitos. No mesmo sentido, o Pacto

Internacional sobre Direitos Civis e Políticos156, que apenas proíbe as ingerências

arbitrárias ou ilegais.

Quatro foram os requisitos estabelecidos pelos tribunais para a validade das

medidas, segundo esclarece María Ángeles Pérez Marín157: 1) a medida deve ser

ordenada pela autoridade judicial competente mediante um auto que explicite, de

forma clara, a forma de praticar a medida, pois só assim se pode garantir o direito à

intimidade da pessoa; 2) o juiz é obrigado a analisar as circunstâncias que

circundam o caso concreto para verificar a necessidade da medida, ponderando a

necessidade com o sacrifício do direito, a situação que se encontra a pessoa a que

155

“ rtigo 8º [...] 2. Não pode haver ingerência da autoridade pública no exercício deste direito senão quando esta ingerência estiver prevista na lei e constituir uma providência que, numa sociedade democrática, seja necessária para a segurança nacional, para a segurança pública, para o bem - estar económico do país, a defesa da ordem e a prevenção das infracções penais, a protecção da saúde ou da moral, ou a protecção dos direitos e das liberdades de terceiros.”

156 “ rtigo 17 - 1. Ninguém poderá ser objeto de ingerências arbitrárias ou ilegais em sua vida privada,

em sua família, em seu domicílio ou em sua correspondência, nem de ofensas ilegais às suas honra e reputação.”

157 PÉREZ MARÍN, María Ángeles, Inspecciones, registros e intervenciones corporales: las pruebas

de ADN y otros métodos de investigación en el proceso penal, cit., p. 42-43.

Page 90: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

90

se impõe a diligência e os demais interesses em jogo, tanto de terceiros como da

sociedade em geral. Ditos critérios de necessidade justificam o uso de uma medida

agressiva contra qualquer direito fundamental relativo, quando essa seja a única

forma de obter resultados necessários e imprescindíveis para a resolução do

processo. É fundamental, ainda, constatar previamente a impossibilidade de

obtenção do resultado pretendido por meio de outras diligências menos restritivas ao

direito fundamental atingido; 3) é proibida qualquer forma de força física ou

compulsão pessoal direta para obrigar o afetado a submeter-se, contra a sua

vontade, à prática da diligência, toda vez que no ordenamento não estiver prevista

essa possibilidade; e 4) é imprescindível haver previsão legal que propicie a adoção

de medidas de intervenção corporal, proporcionando assim segurança, tanto para as

partes afetadas, como para o órgão judicial que as ordena.

Considerar-se, dessa forma, o indivíduo como sujeito de direitos, como faz a

Constituição espanhola, não impede a realização de determinadas diligências, nem

que para isso o seu corpo, desde que cumpridos os citados requisitos, funcione

como objeto da prova. A falta de uma regulamentação mais específica impede,

todavia, nos termos do entendimento da Suprema Corte espanhola, que algumas

medidas sejam efetivadas sem o consentimento do afetado. Isso não acontece na

Alemanha, diante da expressa previsão legal acerca da possibilidade da utilização

de provas invasivas.

Permite a lei alemã que o indivíduo seja submetido a um procedimento de

identificação quando da ocorrência de algum delito, sendo facultado à autoridade

tirar fotografias, impressões digitais, impressões palmares e fazer anotações sobre

algumas características especiais, tais como, por exemplo, tatuagens. O

procedimento de identificação pode ter lugar por iniciativa dos tribunais, do Ministério

Público ou da polícia, mas normalmente a diligência é realizada pela polícia. Cumpre

ressaltar que independe da vontade do investigado a realização ou não do

procedimento de investigação, isto é, pode ser realizado sob coação, podendo as

autoridades policiais, se necessário, imobilizar e esticar os braços e dedos para tirar

impressões digitais, por exemplo. A legislação alemã admite revistas pessoais para

a determinação de fatos relevantes para o processo. Nas revistas simples

conduzidas pela polícia, o objetivo consiste em determinar se existem corpos

Page 91: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

91

estranhos nos seus orifícios naturais. Caso se sinta constrangido, o indivíduo pode

solicitar que a revista seja realizada por uma pessoa do mesmo sexo ou por um

médico, mas ele é obrigado a submeter-se a ela, muito embora ninguém pode forçá-

lo a uma participação ativa. A lei alemã ainda admite que sejam colhidas,

independentemente da vontade do indivíduo, amostras de sangue e de outras

substâncias orgânicas, para determinar, por exemplo, a taxa de álcool no sangue ou

para comparar o seu DNA com vestígios de DNA encontrados no local do crime.

Essas amostras, ressalte-se, devem ser colhidas por um médico − não pela polícia −

e quando não mais forem necessárias para o processo penal, devem ser destruídas.

No entanto, o padrão de DNA pode ficar em arquivo se existirem motivos para

acreditar que, no futuro, poderá vir a ser utilizado num processo relacionado com a

prática de um crime grave. Caso o indivíduo se oponha à revista ou ao teste de

DNA, a sua realização terá que ser ordenada por um tribunal. Em caso de risco

iminente, ou seja, se o assunto for urgente, o Ministério Público e a polícia estão

autorizados a realizar tais diligências. Os testes também podem ser realizados sob

coação, tudo nos termos do disposto nos artigos 81a, b, d, e, f, g, do Código de

Processo Penal (StPO).158

Não se considera haver, nessa extração forçada de material, qualquer ofensa

à dignidade da pessoa nem ao direito de não produzir prova contra si mesmo.

Partindo da distinção entre colaboração ativa e colaboração passiva, a lei não

admite, todavia, que o indivíduo seja obrigado a participar de maneira ativa de

determinados procedimentos, como andar de determinada forma ou fazer o teste do

bafômetro.

158

“Section 81a. [Physical Examination; Blood Test] (1) A physical examination of the accused may be ordered for the establishment of facts which are of importance for the proceedings. For this purpose, the taking of blood samples and other bodily intrusions which are effected by a physician in accordance with the rules of medical science for the purpose of examination shall be admissible without the accused's consent, provided no detriment to his health is to be expected. (2) The authority to give such order shall be vested in the judge and, if delay were to endanger the success of the examination, also in the public prosecution office including officials assisting it (Section 152 of

the Courts Constitution Act). (3) Blood samples or other body cells taken from the accused may be

used only for the purposes of the criminal proceedings for which they are taken or in other criminal proceedings pending; they shall be destroyed without delay as soon as they are no longer required for those uses. Section 81b. [Photographs and Fingerprints] Photographs and fingerprints of the accused may be taken, even against his will, and measurements may be made of him and other similar measures taken with regard to him insofar as is required for the purposes of conducting the criminal proceedings or of the police records department.” (Disponível em: <http://www.gesetze-im-internet.de/englisch_stpo/englisch_stpo.html>. Acesso em: 18 mar. 2014).

Page 92: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

92

A jurisprudência norte-americana há muito tempo permite a extração de

sangue ou DNA de indivíduos para a realização de exames periciais, como mostra o

julgamento Schmerber v. California.159

Tratava o processo de um acusado que fora hospitalizado após envolver-se

em um acidente de carro. O condutor estava aparentemente embriagado. O policial,

sentindo o seu hálito e verificando, no local do acidente e no hospital, outros sinais

que confirmavam o estado de embriaguez, efetuou a sua prisão, bem como o

informou sobre o seu direito de constituir um advogado. Posteriormente, e por

determinação do policial, um médico coletou amostras de seu sangue, não obstante

a sua recusa em fornecê-las. O laudo que confirmou a dosagem elevada de álcool

foi admitido como prova, mesmo tendo havido objeção do réu. Ele foi condenado e a

sentença foi confirmada pela 2ª instância, que rejeitou a tese de que teria havido

ofensa ao devido processo legal e ao privilégio contra a autoincriminação.

Não se pode negar, afirmou a corte, que o Estado, ao exigir que o indivíduo

se submetesse à retirada e análise de seu sangue, o obrigou a participar de um

procedimento para descoberta de evidências que poderiam ser usadas contra ele no

processo. A questão que se coloca é se ele foi obrigado a ser testemunha contra ele

mesmo. Se o escopo do privilégio coincidir com o complexo de valores que ajuda a

proteger, seremos obrigados a concluir que o privilégio foi violado. Em Miranda v.

Arizona, a corte afirmou, acerca dos interesses protegidos, que todas as políticas

apontavam para uma ideia crucial: o fundamento constitucional que alinhava o

privilégio é o respeito que o governo deve conferir à integridade e dignidade dos

seus cidadãos. Para manter uma situação justa e equilibrada no que diz respeito à

inviolabilidade da pessoa humana, o sistema acusatório exige que o governo

interessado em punir o indivíduo produza as provas contra ele por seus próprios

meios, não se permitindo o simples e cruel expediente de obrigá-lo a fazer tal

produção por sua própria boca.

A retirada de sangue necessariamente envolve a perfuração da pele para a

coleta e posterior determinação do percentual de álcool pela análise química,

159

Disponível em: <http://supreme.justia.com/us/384/757/case.html>. Acesso em: 18 mar. 2014.

Page 93: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

93

constituindo prova que pode levar à condenação do réu. Obrigar o réu a submeter-

se a esse exame contraria um aspecto do respeito à inviolabilidade da personalidade

humana. Além disso, como isso possibilita que o Estado produza evidências

forçadas contra o acusado, essa compulsão viola pelo menos um dos significados

exigidos no sentido de que o Estado deve procurar provas contra o acusado por

seus próprios e independentes meios. Todavia, como o julgamento de Miranda

implicitamente reconheceu, não tem sido dado ao privilégio o mais completo e amplo

escopo que os valores que ele ajuda a proteger sugerem. As cortes inferiores têm

constantemente limitado a proteção a situações em que o Estado procura contrariar

aqueles valores, obtendo a evidência contra o acusado por intermédio do simples e

cruel expediente de obrigá-lo por meio de sua própria boca a confessar. Em suma, o

privilégio é satisfeito apenas quando é garantido à pessoa o direito de permanecer

em silêncio, a não ser que ele opte por falar no irrestrito exercício de sua própria

vontade.

O primeiro caso da corte foi Holt v. United States. Lá, a questão era saber se

a evidência era admissível em uma hipótese em que o acusado, antes do

julgamento e sob o seu protesto, foi obrigado a usar determinado tipo de blusa. Foi

alegado que obrigar o acusado a ir a julgamento com aquele modelo de blusa

violaria o privilégio. Justice Holmes, falando pela corte, rejeitou o argumento,

afirmando que a proibição de obrigar-se alguém, em um processo criminal, a ser

testemunha contra ele mesmo consiste em uma proibição do uso de força física ou

moral para forçá-lo a dizer algo – extrair informações –, não uma exclusão de seu

corpo como evidência. Não fosse assim, a objeção, em tese, proibiria um júri de

olhar para um prisioneiro e comparar suas características com uma fotografia.

Está claro que a proteção do privilégio alcança as comunicações dos

acusados, qualquer que seja a forma que assumirem, assim como abrange as

respostas que também podem ser consideradas comunicações, como, por exemplo,

intimação para entrega de documentos próprios (Boyd v. United States). Por outro

lado, tanto as cortes federais como as estaduais têm decidido que não há a proteção

contra a obrigação de submeter-se a exames de impressões digitais, fotografias ou

medições, escrever ou falar para fins de identificação, comparecer à corte,

permanecer em determinada postura, andar ou fazer um gesto característico. A

Page 94: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

94

distinção que foi traçada é no sentido de que o privilégio é uma barreira contra a

obrigação relativa às comunicações e testemunhos; a obrigação que torna o

suspeito ou o acusado fonte real ou física da evidência não viola o direito.

Embora concordemos, prossegue a corte, que essa distinção seja útil para

análise dos casos, não podemos concordar com todos os posicionamentos adotados

anteriormente. Haverá hipóteses em que a distinção não será prontamente

delineada. Alguns testes que aparentemente são realizados para obtenção de

evidência física, por exemplo detectores de mentira que medem mudanças na

função corporal durante o interrogatório, podem, na verdade, trazer à tona respostas

que são essencialmente testemunhais. Compelir uma pessoa a submeter-se a um

teste cujo esforço será utilizado para determinar sua culpa ou inocência com

fundamento nas reações fisiológicas, não importando se desejadas ou não, é evocar

o espírito e história da Quinta Emenda. Tais situações nos lembram que o princípio

que determina a proteção do privilégio é tão amplo quanto o dano contra o qual ele

procura resguardar.

No presente caso, todavia, não foram observados tais problemas. Não houve

nem mesmo uma sombra de dúvida no sentido de que o acusado tenha sido

obrigado a testemunhar ou forçado a dar qualquer informação na coleta do sangue e

sua análise. A capacidade de testemunhar do réu não foi afetada, na verdade sua

participação, exceto como doador, foi irrelevante para os resultados do teste. Como

o exame de sangue, embora resultado de uma coleta obrigatória, não está

relacionado com o testemunho do réu nem com qualquer tipo de ato comunicativo

ou escrito, não é admitida a proteção do privilégio.

Tem-se, assim, que a jurisprudência norte-americana considera a extração de

sangue e DNA como uma espécie de busca e apreensão que pode ser feita

coercitivamente, não dependendo da vontade ou consentimento do indivíduo, sendo

que tal procedimento não tem aptidão para violar o direito à não autoincriminação.

Page 95: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

95

Na Dinamarca160 pode ser colhida uma amostra de sangue se o consumo de

álcool e de droga for um elemento do crime de que o indivíduo é suspeito. Na

Finlândia, se o indivíduo for considerado suspeito da prática de um crime, a polícia

tem o direito de recolher as suas impressões digitais. A polícia também tem o direito

de o revistar – ou seja, verificar o que se encontra na sua roupa ou na sua pessoa –

se for considerado suspeito da prática de um crime punível com uma pena máxima

de, pelo menos, seis meses de prisão. Também pode ser extraída uma amostra de

sangue se o consumo de álcool e de droga for um elemento do crime de que é

suspeito.

Na República Checa, se for necessário para determinar a identidade do

indivíduo ou verificar se há vestígios do crime no seu corpo, ou se for necessário

para efeitos de prova, podem ser recolhidas as suas impressões digitais, amostras

de DNA, sangue, material biológico, as medidas do seu corpo ou este pode ser

objeto de revista ou de procedimento semelhante. Qualquer atitude de resistência

física da sua parte pode ser ultrapassada com o consentimento do magistrado do

Ministério Público.

Na Suécia, desde que haja um mandado do Ministério Público, a polícia tem o

direito de realizar buscas na casa do indivíduo, local de trabalho, no carro ou em

qualquer outro lugar de relevância para a investigação. Isso só se aplica se ele é

suspeito de um crime que pode levar a uma pena de prisão. Também pode haver

ordens para a realização de revistas corporais, exames físicos e colheita de

amostras de DNA.

O Código de Processo Penal português dispõe, em seu artigo 171º161, que por

meio de exame das pessoas, lugares e coisas podem ser inspecionados os vestígios

160

Os dados referentes à Dinamarca, Finlândia, Suécia e República Checa estão disponíveis em: <https://e-justice.europa.eu>. Acesso em: 19 mar. 2014.

161 "Artigo 171º - Pressupostos 1 - Por meio de exames das pessoas, dos lugares e das coisas,

inspeccionam-se os vestígios que possa ter deixado o crime e todos os indícios relativos ao modo como e ao lugar onde foi praticado, às pessoas que o cometeram ou sobre as quais foi cometido. 2 - Logo que houver notícia da prática de crime, providencia-se para evitar, quando possível, que os seus vestígios se apaguem ou alterem antes de serem examinados, proibindo-se, se necessário, a entrada ou o trânsito de pessoas estranhas no local do crime ou quaisquer outros actos que possam prejudicar a descoberta da verdade. 3 - Se os vestígios deixados pelo crime se encontrarem alterados ou tiverem desaparecido, descreve-se o estado em que se encontram as pessoas, os lugares e as coisas em que possam ter existido, procurando-se, quanto possível, reconstituí-los e

Page 96: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

96

que possa ter deixado o crime e todos os indícios relativos ao modo e ao lugar onde

foi praticado, sendo que esses procedimentos podem ser realizados sobre aqueles

que cometeram o crime, bem como também sobre a vítima.

Já o artigo 172º162 regula as hipóteses nas quais o acusado pode vir a ser

obrigado, de modo compulsório, a realizar os exames. Esse artigo foi objeto de

controle de constitucionalidade pelo Tribunal Constitucional português, por

intermédio do Acórdão n. 155 de 2007. Na hipótese levada a exame, o autor fora

forçado, deixando consignado nos autos a sua recusa, a comparecer ao instituto

médico legal para a realização de uma perícia consistente na extração de saliva,

para, após a identificação do DNA, compará-la com amostra obtida na cena de um

crime. O Tribunal, após realizar uma série de ponderações – entre elas a

razoabilidade e proporcionalidade da medida − que serão adiante vistas, julgou

constitucional o artigo, desde que a medida seja autorizada pelo juiz competente.

O rol de países que permitem o uso do corpo como objeto de prova em

determinadas hipóteses é extenso, mas entendemos que os exemplos trazidos são

suficientes para demonstrar que a posição do Brasil é, talvez, única.

Por fim, e para espancar qualquer dúvida que porventura ainda pudesse

permanecer, lembramos que a Corte Europeia de Direitos Humanos, no julgamento

Saunders v. United Kingdom163, ocorrido em 1996, asseverou que o direito à não

autoincriminação não impede a colheita compulsória de material do indivíduo.

descrevendo-se o modo, o tempo e as causas da alteração ou do desaparecimento. 4 - Enquanto não estiver presente no local a autoridade judiciária ou o órgão de polícia criminal competentes, cabe a qualquer agente da autoridade tomar provisoriamente as providências referidas no n. 2, se de outro modo houver perigo iminente para obtenção da prova.”

162 “Artigo 172º Sujeição a exame 1 - Se alguém pretender eximir-se ou obstar a qualquer exame

devido ou a facultar coisa que deva ser examinada, pode ser compelido por decisão da autoridade judiciária competente. 2 - É correspondentemente aplicável o disposto nos ns. 3 do artigo 154º e 6 e 7 do artigo 156º. 3 - Os exames susceptíveis de ofender o pudor das pessoas devem respeitar a dignidade e, na medida do possível, o pudor de quem a eles se submeter. Ao exame só assistem quem a ele proceder e a autoridade judiciária competente, podendo o examinando fazer-se acompanhar de pessoa da sua confiança, se não houver perigo na demora, e devendo ser informado de que possui essa faculdade.”

163 Disponível em: <http://hudoc.echr.coe.int/sites/eng/pages/search.aspx?i=001-58009>. Acesso em:

20 fev. 2014.

Page 97: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

97

Por uma larga maioria (16 a 4), a Corte considerou ter havido uma violação do

artigo 6º da Convenção. Ela rejeitou o argumento do governo britânico de que a

complexidade dos grandes casos de fraude e o interesse público em assegurar uma

convicção justificavam a compulsão. A Corte deixou estabelecido que o interesse

público não pode ser invocado para justificar o uso de respostas que foram obtidas

de forma compulsória, sem respeitar o direito ao silêncio, em uma investigação não

judicial para incriminar o acusado. A acusação nos processos penais deve provar o

seu caso contra o acusado, sem recorrer a provas obtidas por meio de métodos de

coerção ou opressão, em desrespeito à sua vontade. Saunders acabou recebendo

uma indenização no valor de £ 75.000, que foi paga em junho de 1997. Ocorre que,

no mesmo julgamento, a Corte decidiu que o direito à não autoincriminação164 não

impede o uso, em processos penais, de materiais que podem ser diretamente

obtidos do corpo do acusado pelo uso de meios coercitivos, mas que têm uma

existência independente da sua vontade, tais como, entre outros, os documentos

adquiridos ao abrigo de um mandado, respiração (etilômetro), amostras de sangue,

urina e os tecidos corporais para fins de teste de DNA.

5.3 Intervenções corporais no direito brasileiro

A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal165 não aceita a determinação

compulsória ou condução coercitiva para fornecimento de material genético.

164

“69. The right not to incriminate oneself is primarily concerned, however, with respecting the will of an accused person to remain silent. As commonly understood in the legal systems of the Contracting Parties to the Convention and elsewhere, it does not extend to the use in criminal proceedings of material which may be obtained from the accused through the use of compulsory powers but which has an existence independent of the will of the suspect such as, inter alia, documents acquired pursuant to a warrant, breath, blood and urine samples and bodily tissue for the purpose of DNA testing.” (Disponível em: <http://hudoc.echr.coe.int/sites/eng/pages/search.aspx?i=001-58009>. Acesso em: 20 fev. 2014).

165 “ u O á Habeas Corpus. Constitucional. Processual penal. Competência da

segunda seção do Superior Tribunal de Justiça para julgar habeas corpus proveniente de ações de investigação de paternidade. Investigação de paternidade. Produção de prova em comarca diversa. Liberdade de locomoção. Recurso Ordinário em Habeas Corpus provido. 1. Estabelecida, na espécie, relação jurídico-litigiosa em processo de investigação de paternidade, todo e qualquer Habeas Corpus dela proveniente deverá ser julgado pelas Turmas que compõem a Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça. 2. Nos termos do art. 5º, inc. LXVIII, da Constituição da República, conceder-se-á Habeas Corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder, sendo também assegurada a liberdade de não se locomover. 3. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal repudia a determinação compulsória ou condução coercitiva ao fornecimento de material genético. 4. Recurso Ordinário em Habeas Corpus provido.” (ST − RHC n. 95.183/BA, rel. Min. Min. Cármen Lúcia).

Page 98: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

98

Admitiu, todavia, a Corte Suprema, a coleta de placenta de uma grávida que

estava sendo submetida a procedimento de extradição, para a instrução de inquérito

policial que fora instaurado após notícia de eventual abuso que teria sofrido no

cárcere 166 . A coleta do material foi determinada, independentemente do

consentimento da extraditanda, tendo em vista o interesse na elucidação de

eventual crime de estupro que teria sido cometido pelos policiais federais

responsáveis pela carceragem. Observe-se, contudo, que a coleta do material foi

realizada após o parto, quando já estava, portanto, separado do corpo da grávida.

No que se refere ao exame compulsório de sangue para fins criminais, o

Superior Tribunal de Justiça, como visto, não o admitiu, quando do julgamento do

Recurso Especial n. 1.111.566/DF. Dessa forma, os nossos tribunais não aceitam a

coleta compulsória de sangue.

Em 28 de maio de 2012, foi publicada a Lei n. 12.654, que possibilitou a

identificação criminal por meio da coleta de material biológico. Embora a lei não

disponha expressamente acerca da recusa do indivíduo ao fornecimento do material

biológico, pensamos que a autoridade poderá utilizar a força necessária para tanto.

O Supremo Tribunal Federal, contudo, ainda não se manifestou sobre a

constitucionalidade da lei. Lembremos, nesse passo, que não obstante a previsão de

exames de alcoolemia no Código de Trânsito Brasileiro, eles foram subordinados à

concordância do indivíduo.

Enquanto a matéria não é submetida à Corte Suprema, não deixa de ser

alentadora recente decisão proferida pela ministra Rosa Weber no julgamento do

Habeas Corpus n. 115.767/PR que, embora não tenha tratado diretamente do tema,

uma vez que no caso em julgamento a coleta de material para exame pericial tenha

sido feita com a concordância do indivíduo, deixou consignado que o direito à não

autoincriminação não veda tal prática:

Apesar de não serem incomum manifestações vulgares no Brasil de que o direito ao silêncio preveniria a colheita compulsória de material biológico do investigado ou do acusado, concluo que se trata de afirmações acríticas a respeito do instituto e que ignoram a origem histórica, a função atual e a compreensão dele no Direito Comparado.

166

ST − QO Rcl n. 2.040/DF, rel. Min. Néri da Silveira.

Page 99: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

99

5.4 Utilização do corpo como objeto de prova. Possibilidade

A aplicação do nemo tenetur se detegere harmoniza-se com o modelo

processual acusatório que impõe à acusação o ônus probatório “Logo, não pode o

acusado ser compelido a prestar colaboração à formação do material probatório, até

mesmo porque, há muito foi superada a postura de considerá-lo como simples

objeto de prova. É ele verdadeiro sujeito processual.”167

O réu não pode ser, em nenhuma hipótese, considerado objeto de prova?

Imaginemos a seguinte situação: uma jovem é estuprada saindo de seu

trabalho. Ela não pôde ver com clareza o rosto do agressor, mas conseguiu

descrever para a polícia as suas características, como altura, cor da pele, tipo de

cabelo, as roupas que ele estava usando, bem como pôde observar uma

determinada tatuagem localizada na sua virilha. A autoridade policial efetua a prisão

de um indivíduo com as características relatadas pela vítima e solicita a ele que

retire as suas roupas para constatar a presença ou não da tatuagem. Pode o

indivíduo se recusar, sob o argumento que tal prova fere o seu direito à não

autoincriminação?

Em 2009, como visto, foi publicada a Lei n. 12.037, que dispõe sobre a

identificação criminal do civilmente identificado, regulando o artigo 5º, inciso LVIII, da

Constituição Federal168. A nova lei, publicada em substituição à Lei n. 10.054/2000,

que vinha recebendo inúmeras críticas, em virtude de alguns de seus dispositivos,

teve a finalidade de adequar os critérios da identificação criminal ao texto

constitucional, que assegura ao civilmente identificado a desnecessidade de ser

submetido a um constrangimento adicional, que é a identificação criminal nas

modalidades de identificação fotográfica e datiloscópica. Imaginemos agora que haja

dúvidas acerca da identidade de determinado indivíduo. Além disso, foram

encontradas impressões digitais na cena do crime. Pode a autoridade policial

determinar que seja realizado o exame datiloscópico? E se o investigado se recusar,

167

STJ − g . 1.205.216 . Min. Maria Thereza de Assis Moura. 168

“Artigo 5º - A identificação criminal incluirá o processo datiloscópico e o fotográfico, que serão juntados aos autos da comunicação da prisão em flagrante, ou do inquérito policial ou outra forma de investigação.”

Page 100: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

100

pode ser compelido a realizá-lo? Cumpre ressaltar que o artigo 4º da referida Lei

nada dispõe acerca da compulsoriedade, mas apenas afirma que “quando houver

necessidade de identificação criminal, a autoridade encarregada tomará as

providências necessárias para evitar o constrangimento do identificado”.

O mesmo ocorre no que concerne às fotografias. Pode o réu cobrir o rosto

com as mãos e impedir que sejam tiradas as suas fotos?

Voltemos ainda ao exemplo referente ao auto de reconhecimento previsto no

artigo 226 do Código de Processo Penal, que determina que quando houver

necessidade de se fazer o reconhecimento de pessoa, ela será colocada, se

possível, ao lado de outras que com ele tiverem qualquer semelhança. Pode o

investigado se recuar a participar de tal diligência, sob o pretexto da proibição de

autoincriminação?

Todas essas hipóteses têm algo em comum: o corpo do indivíduo está sendo

utilizado como objeto de prova.

Assim, a afirmação de que não pode o acusado ser compelido a prestar

colaboração à formação do material probatório deve ser vista com cautela, pois o

réu – o seu corpo − é obrigado a suportar diversas providências levadas a efeito

pelas autoridades policiais para a elucidação do crime, como, por exemplo, cessão

de impressões digitais, fotografias, inspeções corporais etc. Se essa afirmação for

levada ao extremo, isto é, se não se puder compeli-lo a colaborar passivamente com

a investigação, sequer a obtenção de suas fotos seria permitida.169

169

Nesse sentido, vale a pena transcrever excerto do voto vencido proferido pelo ministro Marco Aurélio Bellizze, no julgamento do Recurso Especial n. 1.111.566/DF: “ evada ao extremo, a garantia de não produzir prova contra si poderia ser oposta à própria identificação criminal (inclusive nas hipóteses previstas pela lei), ao ato de reconhecimento de pessoas (OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal. 11ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 346), à acareação entre o réu e quem quer que seja, às revistas quando houvesse fundada suspeita (pense-se na suspeita de crime de tráfico internacional de drogas e a tradicional revista empreendida nos aeroportos – TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. Vol. 3. 29ª ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 229), e assim por diante, até que a racionalidade do sistema processual penal ou sua própria operacionalidade se vissem totalmente comprometidos. Neste ponto estaria cristalizado um verdadeiro direito a delinquir.”

Page 101: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

101

Tomemos outro exemplo muito corriqueiro nos aeroportos, o do indivíduo que

transporta drogas em cápsulas ocultas no interior do seu corpo. Pode o indivíduo

recusar-se a realizar o exame de raios X que comprovaria a ingestão da droga?

O Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Habeas Corpus n. 149.146,

já se manifestou sobre o tema e decidiu que o direito à não autoincriminação não

veda a realização de exame de raios X em indivíduos que assumiram a ingestão de

droga.170

Carlos Henrique Borlido Haddad171, com entendimento semelhante, assevera

que o direito à não autoincriminação não possui a extensão defendida por Costa

Andrade172, segundo o qual o acusado não pode funcionar como instrumento de sua

condenação:

O princípio nemo tenetur se detegere não evita a produção de todas as provas que dependam da intervenção do acusado, senão somente aquelas que exigem uma participação ativa voluntária. Caso contrário, a interceptação telefônica, realizada sem conhecimento do réu, a busca e apreensão de documentos confeccionados pelo acusado, efetuadas contra sua vontade, e até os elementos probatórios obtidos em decorrência da prisão temporária deveriam ser alijados do processo penal, uma vez que se utilizou o imputado, direta ou indiretamente, como instrumento de sua condenação. Pressupor que nenhuma condenação possa ter o acusado por instrumento é conferir-lhe plena soberania sobre a produção e a utilização das provas, autorizando-o a excluir aquelas que a ele se relacionem.

Podemos concluir do exposto que o direito à não autoincriminação não

impede a utilização do corpo do indivíduo como objeto de prova.

O estudo realizado no direito comparado demonstra que os países, de forma

geral, embora contenham disposições legais semelhantes ao nosso, no que diz

respeito ao direito à não autoincriminação, permitem que amostras biológicas sejam

170

“[...] ademais, é sabido que a ingestão de cápsulas de cocaína causa risco de morte, motivo pelo qual a constatação do transporte da droga no organismo humano, com o posterior procedimento apto a expeli-la, traduz em verdadeira intervenção estatal em favor da integridade física e, mais ainda, da vida, bens jurídicos estes largamente tutelados pelo ordenamento. 4. Mesmo não fossem realizadas as radiografias abdominais, o próprio organismo, se o pior não ocorresse, expeliria naturalmente as cápsulas ingeridas, de forma a permitir a comprovação da ocorrência do crime de tráfico de entorpecentes.” (STJ − HC . 149.146 . . Og ).

171 HADDAD, Carlos Henrique Borlido, Conteúdo e contornos do princípio contra a auto-incriminação,

cit., p. 67. 172

ANDRADE, Manoel da Costa. Sobre as proibições da prova em processo penal. Coimbra: Coimbra Editora, 1992. p. 127.

Page 102: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

102

retiradas dos indivíduos suspeitos ou acusados do cometimento de determinados

crimes. Há, inclusive, autorização para que tais amostras sejam recolhidas

independentemente a vontade do indivíduo, por meio de procedimentos coativos.

Um requisito mostrou-se fundamental na análise: a presença de uma

legislação que discipline o procedimento de forma minuciosa. Margarete Vetis

Zaganelli173 assinala que a regulamentação deve observar, ao menos, os seguintes

requisitos: proteção no maior grau possível da liberdade do acusado; não deve ser

autorizada a medida de intervenção que resultar em perigo à saúde mental ou física

do acusado; não deve ser autorizada a medida de intervenção que atentar contra a

dignidade do acusado; e, por fim, a medida deve ser necessária para a investigação.

O Acórdão n. 155 do Tribunal Constitucional português, ao analisar a

legislação que autorizava a realização coativa de uma intervenção corporal –

conjugação dos preceitos constantes dos artigos 6º da Lei n. 45/2004, de 19 de

agosto, e 172º do Código de Processo Penal – asseverou que não basta a exigência

de lei, mas ela deve ter um grau de densidade normativa tal que possibilite a sua fiel

execução.

Do mesmo modo, a Corte Constitucional da Espanha, na STC 207/1996,

estabeleceu os requisitos das medidas restritivas de direitos fundamentais, entre

eles, o de que estivessem previstas em lei. Além da previsão legal, determinou que

a medida fosse adotada mediante decisão judicial especificamente motivada e que

fosse idônea, necessária e proporcional, em relação a um fim constitucionalmente

legítimo.

A Corte Constitucional italiana, a princípio, com fundamento no artigo 146 do

Código de Processo Penal – autorização genérica para a realização das medidas,

pois não havia limitações aos poderes instrutórios do juiz − entendia que o juiz em

sua atividade jurisdicional poderia determinar a extração coercitiva de amostras

sanguíneas, o que ficou consignado na Sentença n. 54, de 1986. Adotou-se o

173

ZAGANELLI, Margareth Vetis. Intervenções corporais, processo penal e direitos fundamentais. In: LIMA, Marcellus Polastri; SANTIAGO, Nestor Eduardo Araruna (Coords.). A renovação processual penal após a constituição de 1988: estudos em homenagem ao professor José Barcelos de Souza. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 211.

Page 103: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

103

entendimento de que a decisão que possibilita a realização de exames periciais sem

o consentimento do indivíduo teria a natureza de provimento restritivo de liberdade

pessoal174. Posteriormente, todavia, a Corte italiana adotou novo entendimento, que

foi exarado na Sentença n. 238, de 1996. Nesta restou assente a necessidade de

regulamentação legislativa para a realização de medidas de intervenção corporal.

Observe-se que não foi vedada a intervenção corporal coercitiva, apenas definiu-se

a necessidade de lei específica para a sua efetivação. Em 2008, foi alterado o artigo

224 do Código Processual, que passou a prever a realização de medidas de

intervenção corporal coercitivas. O artigo, em resumo, aponta os seguintes

requisitos para a concretização da medida: o crime investigado deve ser doloso; a

medida deve ser informada ao indivíduo e ao seu advogado ao menos com três dias

de antecedência; a medida deve ser imprescindível para a comprovação do fato; o

juiz deve fundamentar a decisão; devem ser escolhidas as técnicas menos

invasivas; e deve ser respeitada a dignidade do indivíduo, entre outros requisitos.

Não há entre nós legislação que autorize as intervenções corporais. A Lei n.

12.654/2012, que possibilita a identificação criminal por meio da coleta de material

biológico, é muito tímida e não abrange todas as situações possíveis, além de não

ter sido submetida ao crivo do Supremo Tribunal Federal.

Os Tribunais Superiores pátrios, dado o atual estágio da jurisprudência, já

sinalizaram que tal legislação, mesmo que existente, seria considerada

inconstitucional, a exemplo do que ocorreu com o exame do etilômetro. Observe-se

que as decisões, ao contrário daquelas proferidas pelos Tribunais Constitucionais

espanhol, italiano e português, não ponderaram acerca da ausência de lei que

possibilitasse a execução da a medida, mas simplesmente entenderam inadmissível,

em quaisquer hipóteses, de maneira absoluta, que alguém seja coativamente

obrigado a realizar qualquer tipo de exame, mesmo que de forma passiva.

O julgamento do Recurso Especial n. 1.111.566/DF, no qual o Superior

Tribunal de Justiça houve por bem firmar a tese de que só o teste do etilômetro ou o

exame de sangue para verificação de dosagem alcoólica seriam aptos para a

comprovação do crime de embriaguez ao volante, bem demonstra a não aceitação

174

QUEIJO, Maria Elizabeth, O direito de não produzir prova contra si mesmo, cit., p. 318.

Page 104: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

104

das medidas de intervenção corporal adotadas na legislação estrangeira. Observe-

se que na hipótese havia lei determinando a medida, embora sem menção ao

procedimento em caso de recusa.

No referido julgamento, várias teses foram apresentadas sobre o princípio da

não autoincriminação, prevalecendo o entendimento que reconhece que o indivíduo

não pode ser compelido a colaborar com o exame de sangue, em respeito ao

princípio do nemo tenetur se detegere.

A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal entende protegidas pelo direito

à não autoincriminação condutas não verbais do acusado que importem em uma

atividade, como, por exemplo, o fornecimento de padrões gráficos, mas ainda não se

manifestou quanto às provas relacionadas ao réu de cuja produção não dependa a

sua participação ativa, mas somente uma conduta passiva (simples tolerar), como

ocorrem nas extrações compulsórias de sangue e DNA.

Embora a nossa corte maior ainda não tenha se manifestado a respeito, como

dito, da validade da prova de DNA obtida coercitivamente em uma investigação

criminal, em processos cíveis (investigação de paternidade), o entendimento da

Corte Constitucional é no sentido de repudiar a realização coativa das intervenções.

Nessas hipóteses, entretanto, a negativa pode ser valorada pelo juiz e poderá

importar no julgamento em desfavor do indivíduo que se negou a realizar o exame,

situação que não tem paralelo no direito penal, em razão da impossibilidade de

adoção de tal espécie de presunção.

Infelizmente, o que se observa da leitura da jurisprudência é uma abordagem

superficial da questão, o que fatalmente acaba por desembocar na constante

repetição da frase de que a medida em análise afronta o direito à não

autoincriminação, sem contudo esclarecer, como faz a jurisprudência estrangeira, os

limites do mencionado direito. Em que grau o direito é afetado? Há necessidade de

lei? A impossibilidade é absoluta? Se o corpo não pode ser objeto de prova, como

justificar as demais modalidades de cooperação passiva, como o reconhecimento de

pessoas e as buscas e inspeções corporais (que são admitidas)?

Page 105: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

105

Enquanto as respostas não são dadas de maneira satisfatória, vemos a

hipertrofia do direito à não autoincriminação levar a um menosprezo dos demais

direitos fundamentais a ele contrapostos. É assente que tanto deve ser proibido o

excesso de proteção como a sua insuficiência, o que impõe o enfrentamento do

tema pelo legislador brasileiro, como ocorreu nos demais sistemas jurídicos

analisados.175

175

MARTELETO FILHO, Wagner. O direito à não autoincriminação no processo penal contemporâneo: investigação genética, interceptações telefônicas e ambientais, agentes infiltrados e outros problemas. Belo Horizonte: Del Rey, 2012. p. 159.

Page 106: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

106

6 INTERVENÇÕES CORPORAIS. PONDERAÇÃO DOS DIREITOS

FUNDAMENTAIS EM CONFLITO

6.1 Proporcionalidade e ponderação dos interesses contrapostos

O princípio da proporcionalidade origina-se, conforme a lição de Gomes

Canotilho176, da necessidade de limitação do Poder Executivo:

O princípio da proporcionalidade dizia primitivamente respeito ao problema da limitação do poder executivo, sendo considerado como medida para as restrições administrativas da liberdade individual. É com esse sentido que a teoria do estado o considera, já no século XVIII, como máxima supra-positiva, e que ele foi introduzido, no século XIX, no direito administrativo como princípio do direito de polícia. Posteriormente, o princípio da proporcionalidade em sentido amplo, também conhecido por princípio da proibição de excesso (Übermassverbot), foi erigido à dignidade de princípio constitucional.

O direito brasileiro não possui disposição expressa acerca da

proporcionalidade. Alguns autores entendem que o seu fundamento jurídico

encontra-se no artigo 5º, parágrafo 2º, da Constituição Federal177. Paulo Bonavides

advoga que o princípio decorre do Estado de Direito. Para o Supremo Tribunal

Federal, no entanto, a proporcionalidade é um postulado constitucional autônomo

que tem a sua sede material na disposição constitucional do devido processo

legal 178 . Já Robert Alexy assevera que a proporcionalidade decorre da própria

natureza dos princípios:

Quando uma norma de direito fundamental com caráter de princípio colide com um princípio antagônico, a possibilidade jurídica para a realização dessa norma depende do princípio antagônico. Para se chegar a uma decisão é necessário um sopesamento, no termos da lei de colisão. Visto que a aplicação de princípios válidos – caso sejam aplicáveis – é obrigatória, e visto que para essa aplicação, nos casos de colisão, é necessário um sopesamento, o caráter principiológico das normas de direito fundamental implica a necessidade de um sopesamento quando elas colidem com princípios antagônicos. Isso significa, por sua vez, que a máxima da proporcionalidade em sentido estrito é deduzível do caráter principiológico das normas de direitos fundamentais.

179

176

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 5. ed. Coimbra: Almedina, 2002. p. 259.

177 TAVARES, André Ramos, Curso de direito constitucional, cit., p. 773.

178 Conclusão a partir da decisão do Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADI n. 855.

179 ALEXY, Robert, Teoria dos direitos fundamentais, cit., p. 117-118.

Page 107: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

107

A maior parte da doutrina trata a proporcionalidade como um princípio180.

Virgilio Afonso da Silva 181 , contudo, prefere a denominação regra da

proporcionalidade. Esclarece que princípio é uma norma que exige que algo seja

realizado na maior medida possível, diante das condições fáticas e jurídicas do caso

concreto, e a proporcionalidade não segue esse modelo, pois impõe um dever

definitivo, no caso de sua aplicação.182

A proporcionalidade exige racionalidade e determina que os atos estatais não

sejam desprovidos de um mínimo de sustentabilidade183. Além de sua função de

salvaguardar direitos fundamentais, a proporcionalidade também possui a

importante tarefa de servir como critério para a solução de conflitos de direitos

fundamentais, por meio de juízos comparativos de ponderação dos interesses

envolvidos no caso concreto, conforme preleciona Paulo Bonavides.184

Uma das aplicações mais proveitosas contidas potencialmente no princípio da proporcionalidade é aquela que o faz instrumento de interpretação toda vez que ocorre antagonismo entre direitos fundamentais e se busca daí solução conciliatória, para a qual o princípio é indubitavelmente apropriado. As cortes constitucionais européias, nomeadamente o Tribunal de Justiça da Comunidade Européia, já fizeram uso freqüente do princípio para diminuir ou eliminar a colisão de tais direitos.

De fato, os princípios podem se contradizer, sem que isso faça qualquer um

deles perder a sua validade jurídica, como explica Willis Santiago Guerra Filho:

É exatamente numa situação em que há conflitos entre princípios, ou entre eles e as regras, que o princípio da proporcionalidade mostra sua grande significação, pois pode ser usado como critério para solucionar da melhor forma tal conflito, otimizando a medida em que se ataca prioritariamente um e desatende o mínimo possível a outro princípio

185.

Virgilio Afonso da Silva ressalta a diferença existente entre recorrer-se ao

sopesamento e aplicar-se a regra da proporcionalidade.

180

MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet, Curso de direito constitucional, cit., p. 401.

181 SILVA, Virgilio Afonso da. Direitos fundamentais. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2011. p. 167.

182 André Ramos Tavares fala em critério da proporcionalidade (Curso de direito constitucional, cit., p.

772). 183

TAVARES, André Ramos, Curso de direito constitucional, cit., p. 772. 184

BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 9. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Malheiros, 2000. p. 386.

185 GUERRA FILHO, Willis Santiago. Processo constitucional e direitos fundamentais. São Paulo:

Celso Bastos, 1999. p. 73.

Page 108: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

108

Na grande maioria dos casos, adverte o autor, a restrição a um direito

fundamental é realizada por meio de uma regra presente em um texto

infraconstitucional. Tal espécie de restrição ocorre quando “o legislador, em

determinada situação, se vê obrigado a fazer um sopesamento entre dois ou mais

princípios, cujo resultado, então, é expresso pela regra infraconstitucional”186. A título

ilustrativo, podemos citar o dispositivo legal que autoriza as interceptações

telefônicas. O legislador, não obstante a Constituição preservar a intimidade e a vida

privada, permitiu que em determinadas hipóteses o sigilo telefônico fosse quebrado,

para descobrir-se a autoria de graves delitos, o que interessa à realização da justiça,

bem que também usufrui da proteção constitucional. O dispositivo legal pode,

evidentemente, ser submetido a controle judicial e, nesse controle, se houver uma

restrição a direito fundamental, deve-se recorrer à regra da proporcionalidade, ou

seja, deve-se indagar se o dispositivo legal é adequado para fomentar seus

objetivos, se não há medida alternativa tão eficiente quanto, mas menos restritiva, e

se há um equilíbrio entre a restrição de um direito e a realização do outro.187

Quando, ao contrário, não houver uma regra infraconstitucional que discipline

a colisão entre dois princípios, vale dizer, hipótese que não tenha sido objeto de

ponderação por parte do legislador, aplica-se o sopesamento entre os princípios

eventualmente aplicáveis ao caso concreto. Se não há medida adotada – não houve

a intervenção do legislador − não há possibilidade alguma de se adotar a regra da

proporcionalidade.

6.2 Direito à não autoincriminação. Critérios para a ponderação

O direito à não autoincriminação é um dos direitos fundamentais previstos na

Constituição Federal, ao lado de vários outros.

A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem afirmado reiteradamente

que os direitos fundamentais não são absolutos. Na atualidade, não “se reconhece a

presença de direitos absolutos, mesmo de estatura de direitos fundamentais

previstos no art. 5º, da Constituição Federal, e em textos de Tratados e Convenções

186

SILVA, Virgilio Afonso da, Direitos fundamentais, cit., p. 178. 187

Ibidem, p. 179.

Page 109: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

109

Internacionais em matéria de direitos humanos” 188 . Asseverou a ministra Ellen

Gracie que “os critérios e métodos da razoabilidade e da proporcionalidade se

afiguram fundamentais neste contexto, de modo a não permitir que haja prevalência

de determinado direito ou interesse sobre outro de igual ou maior estatura jurídico-

valorativa”.

Para se falar, todavia, em sopesamento, há uma condição: o direito

fundamental não deve ser absoluto, pois de outro modo sempre prevaleceria no

eventual confronto com outro direito fundamental.

Conquanto os direitos fundamentais sejam relativos, o ministro Celso de

Mello, no julgamento do Habeas Corpus n. 68.742/DF189, asseverou que o direito ao

silêncio se reveste de valor absoluto e é plenamente oponível ao Estado e aos seus

agentes. Disse ainda que ele atua como poderoso fator de limitação das próprias

atividades penais-persecutórias desenvolvidas pelo Poder Público.

O ministro Sepúlveda Pertence, a seu turno, no julgamento do Habeas

Corpus n. 79.244/DF, afirmou que a garantia contra a autoincriminação não tem

limites espaciais nem procedimentais, estendendo-se a qualquer indagação da

autoridade pública de cuja resposta possam advir subsídios à imputação ao

declarante da prática de crime.

Afinal, o direito à não autoincriminação possui caráter absoluto?

Robert Alexy190 define os princípios como mandamentos de otimização, ou

seja, são normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível,

dentro das possibilidades fáticas e jurídicas existentes. O âmbito das possibilidades

jurídicas é determinado pelos princípios e regras colidentes. Já as regras são

normas que não possuem essa opção de serem satisfeitas em maior ou menor grau,

vale dizer, elas são sempre satisfeitas ou não satisfeitas. O autor em seguida aponta

três objeções que poderiam ser levantadas contra o conceito de princípio. A primeira

188

ST − HC . 93.250/MS, rel. Min. Ellen Gracie. 189

ST − HC . 68.742/DF, rel. Min. Octavio Gallotti. 190

ALEXY, Robert, Teoria dos direitos fundamentais, cit., p. 90.

Page 110: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

110

sustenta que há colisões entre princípios que podem ser solucionadas por meio da

declaração de invalidade de um deles; a segunda refere-se à possibilidade de

existirem princípios absolutos, que assim nunca poderiam ser postos em uma

relação de preferência com outros princípios; e a terceira diz respeito à amplitude do

conceito, que o tornaria inútil, em razão da possibilidade de abranger todo e

qualquer interesse que possa ser introduzido no procedimento de sopesamento.191

No que diz respeito à segunda objeção, e que mais de perto nos interessa, o

autor traz um exemplo concernente ao princípio da dignidade humana. Afirma que

seria possível sustentar que a Constituição alemã estabeleceu ao menos um direito

absoluto: a dignidade humana é inviolável. Aduz que conquanto o artigo 1º,

parágrafo1º, 1, desperte essa impressão – caráter absoluto do direito –, o que ocorre

é que a norma da dignidade humana é tratada em parte como regra e em parte

como princípio. Esclarece que há um amplo grupo de condições de precedência que

conferem grande grau de certeza de que, sob determinadas condições, o princípio

da dignidade humana prevalecerá em face de princípios colidentes. Assim, nas

hipóteses em que a norma da dignidade humana é relevante, a sua natureza de

regra é claramente percebida, e não se verifica se ela prevalece ou não sobre outras

normas, mas somente se foi ou não violada.192

Sucede que, em razão da abertura da norma da dignidade humana, há uma

grande margem de apreciação para dizer, no caso concreto, se houve de fato ou

não a sua violação. Respondendo a uma questão pertinente à interceptação

telefônica, se violava ou não a dignidade humana, o Tribunal Constitucional alemão

decidiu que não se caracteriza a violação se a exclusão da proteção judicial não é

motivada por uma desconsideração ou depreciação da pessoa humana, mas sim por

uma necessidade de manter em segredo as medidas que sirvam de proteção da

ordem democrática e para a própria existência do Estado. O sopesamento também

pode ser observado na decisão acerca da prisão perpétua, tendo o Tribunal

afirmado que a dignidade da pessoa humana não é violada se a execução da pena

for necessária em razão da permanente periculosidade do preso, restando

191

ALEXY, Robert, Teoria dos direitos fundamentais, cit., p. 109. 192

Ibidem, p. 111-112.

Page 111: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

111

delimitado que a proteção da comunidade estatal sob determinadas condições tem

precedência em face do princípio da dignidade da pessoa humana.193

Assim, conclui o autor ser necessário que se pressuponha a existência de

duas normas da dignidade humana, uma regra e um princípio. A relação de

preferência do princípio da dignidade humana em confronto com outros princípios

determina o conteúdo da regra da dignidade humana. O princípio pode realizar-se

em diferentes medidas, e o fato de ele, dadas certas condições, prevalecer com

maior grau de certeza sobre outros princípios, não fundamenta uma natureza

absoluta, mas significa somente que, sob determinadas circunstâncias, há razões

praticamente inafastáveis que determinam a sua precedência.194

Escorado nos ensinamentos de Alexy, Wagner Marteleto Filho195 entende não

haver óbice dogmático no que tange à aceitação de um nível de regra e um de

princípio para o nemo tenetur. Na primeira hipótese, que tem como exemplo o direito

ao silêncio, há uma blindagem do direito contra quaisquer intervenções. Já quando

considerado um princípio – cujo conteúdo pode ser traduzido na possibilidade de

não cooperar com a produção de provas autoincriminatórias –, existe a possibilidade

restrições.

O direito à não autoincriminação, na verdade, é composto por uma série de

direitos, alguns com a natureza de princípio e outros com a natureza de regra. Não é

o direito à não autoincriminação, como um todo, que ora se comporta como regra e

ora como princípio, mas sim as suas várias acepções que ou são consideradas

regras ou são consideradas princípios.

Segue que o direito ao silêncio é uma regra, e assim possui uma natureza

absoluta, como ressaltado pelo ministro Celso de Mello no julgamento do Habeas

Corpus n. 68.742/DF. Tal direito nunca se comportará como princípio, vale dizer, em

193

ALEXY, Robert, Teoria dos direitos fundamentais, cit., p. 113. 194

Ibidem, p. 114. 195

MARTELETO FILHO, Wagner, O direito à não autoincriminação no processo penal contemporâneo: investigação genética, interceptações telefônicas e ambientais, agentes infiltrados e outros problemas, cit., p. 65.

Page 112: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

112

relação a ele nunca se realizará um juízo de proporcionalidade, pois seja qual for o

direito contraposto, ele sempre prevalecerá. Assim como o direito ao silêncio, outras

manifestações do direito à não autoincriminação também possuem caráter absoluto,

como a de não cooperar ativamente com a acusação na produção de provas

autoincriminatórias. Em nenhuma hipótese pode o indivíduo ser compelido a exalar o

ar para a realização do teste do etilômetro, ser obrigado a participar da

reconstituição do crime ou fornecer padrões de voz ou de escrita. Repise-se que

nessas condutas o que se veda é a coação física ou moral do indivíduo para que

pratique determinada ação que possa de algum modo desfavorecê-lo (sem coação

não haveria, em tese, como produzir a prova).

Por outro lado, quando se tratar de mera cooperação passiva, como ocorre

com as intervenções corporais − extração compulsória de amostras de sangue ou

DNA, por exemplo −, há espaço para a realização de um juízo de proporcionalidade,

conforme, diga-se, admite a quase totalidade dos ordenamentos estrangeiros.

Vários direitos fundamentais podem restar em tese atingidos pelas

intervenções corporais, como o direito à intimidade, à liberdade, à integridade física,

à dignidade da pessoa humana e à não autoincriminação. Segue que a medida só

estaria justificada após a realização de um juízo de proporcionalidade, para verificar-

se a sua adequação. Conforme assentado pelo Tribunal Constitucional espanhol196,

a medida limitativa de direito fundamental deve estar prevista em lei, ser adotada

mediante uma decisão judicial suficientemente motivada, ser idônea, necessária e

proporcional em relação a um fim constitucionalmente legítimo.

Feitas essas considerações, vejamos os direitos fundamentais que em tese

são atingidos pelas intervenções corporais e se há a possibilidade de justificá-las,

mediante um juízo de proporcionalidade.

196

STC 207/1996 (Disponível em: <http://hj.tribunalconstitucional.es>. Acesso em: 11 fev. 2014).

Page 113: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

113

6.3 Ponderação entre o direito à intimidade e as intervenções

corporais

O direito à intimidade está garantido por nossa Constituição Federal em seu

artigo 5º, inciso X, que afirma que são invioláveis a intimidade, a vida privada, a

honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano

material ou moral decorrente de sua violação.

Além de previsto em nossa Constituição, o direito à intimidade é amparado

por diversos tratados internacionais, como o Pacto Internacional sobre Direitos Civis

e Políticos, a Convenção de Roma, o Pacto de São José da Costa Rica, a

Declaração Universal dos Direitos Humanos, entre outros.

Podemos definir a intimidade como as manifestações da personalidade cujo

conhecimento estão reservadas ao seu titular, que sobre elas exerce alguma forma

de controle, quando desrespeitadas por terceiros. Em outras palavras, o direito à

intimidade nos preserva do conhecimento alheio.

Há que diferenciar a intimidade da vida privada. Manoel Gonçalves Ferreira

Filho197 esclarece que “os conceitos constitucionais de intimidade e vida privada

apresentam grande interligação, podendo porém ser diferenciados por meio da

menor amplitude do primeiro que se encontra no âmbito de incidência do segundo”.

O conceito de intimidade está mais afeito às relações subjetivas da pessoa,

envolvendo as suas relações familiares e de amizade, ao passo que o conceito de

vida privada envolve todos os relacionamentos da pessoa, inclusive os objetivos, tais

como relações comerciais e de trabalho, entre outras.

Duas vertentes podem ser vislumbradas. A primeira constitui o seu núcleo ou

conteúdo elementar, que poderíamos definir como a mais íntima expressão da

personalidade individual, essência do ser humano, oponível contra todos e garantido

pelo ordenamento jurídico quando transgredido; a outra é o seu limite externo, que

197

FERREIRA FILHO, Manoel. Comentários à Constituição brasileira de 1988. 2. ed. atual. e reformulada. São Paulo: Saraiva, 1997. v. 1, p. 35.

Page 114: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

114

pode ser restringido em ocasiões específicas expressamente previstas em lei, para

defender outros direitos ou interesses de terceiros.198

Angél Gil Hernandéz199, com pensamento semelhante, preleciona que:

O direito à privacidade é projetado em duas formas que nos permite compreender as suas limitações através de uma medida de intervenção do corpo: a liberdade de viver suas próprias vidas cada um de acordo com seus gostos e preferências, sem imposições uniformes do grupo social, mas vivê-la na sociedade, de modo que o exercício desta liberdade não viole os direitos ou interesses de terceiros.

Robert Alexy200 acredita ser possível identificar três esferas, no que se refere

à proteção da liberdade humana, com decrescente intensidade de proteção. A

esfera mais interior, último âmbito da liberdade humana, caracteriza-se por ser o

âmbito mais íntimo, a esfera intangível e, de acordo com a interpretação do Tribunal

Constitucional alemão, o núcleo absolutamente protegido da organização da vida

privada, esfera que compreende os assuntos mais secretos e que não devem

chegar ao conhecimento de terceiros, em virtude de sua natureza reservada. Alexy

entende que mesmo esse núcleo está sujeito à aplicação da lei do sopesamento. A

esfera privada ampliada inclui o âmbito privado que não pertence à esfera mais

interior, incluindo assuntos que o indivíduo leva ao conhecimento de pessoas de sua

confiança, ficando excluído o resto da comunidade. E a terceira é a esfera social,

que engloba tudo o que não for incluído na esfera privada ampla.

A pergunta que deve ser enfrentada é até que ponto o direito individual à

intimidade pode ser limitado, tendo em vista outros interesses também relevantes da

sociedade. Não há dúvida que o direito à intimidade não tem caráter absoluto, como

já decidiu a nossa Corte Suprema em diversas ocasiões, nenhuma, contudo,

relacionada às intervenções corporais.

198

PÉREZ MARÍN, María Ángeles, Inspecciones, registros e intervenciones corporales: las pruebas de ADN y otros métodos de investigación en el proceso penal, cit., p. 72.

199 N g “El derecho a la intimidad se proyecta en una doble vertiente que nos permitirá

entender su limitación por una medida de intervención corporal: la libertad de vivir cada uno su propia vida conforme a sus gustos o preferencias, sin imposiciones uniformadoras del grupo social, pero de vivirla en sociedad, de manera que el goce de esa libertad no vulnere los derechos o intereses de los demás.” (GIL HERNÁNDEZ, Ángel, Intervenciones corporales y derechos fundamentales, cit., p. 45. Nossa tradução).

200 ALEXY, Robert, Teoria dos direitos fundamentais, cit., p. 360-361.

Page 115: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

115

O Tribunal Constitucional espanhol, ao contrário, já pôde enfrentar o tema em

diversos momentos, asseverando que o artigo 18.1 da Constituição espanhola não

tem um caráter absoluto, podendo ser limitado para fins de investigação penal201, no

que se refere às intervenções corporais.

O âmbito de intimidade protegido não abrange todas as partes do corpo,

mesmo porque a intimidade é um conceito cultural e, portanto, relativo. Por essa

razão, temos que entender o que cada sociedade considera íntimo ou recatado em

cada instante de sua história. Dessa forma, as intervenções que recaiam sobre

partes do corpo que não são consideradas íntimas em dada realidade cultural não

estão protegidas pelo direito. Segue que o âmbito da intimidade corporal

constitucionalmente protegido não se identifica plenamente com o corpo humano,

pois o que se visa a resguardar não é a entidade física, mas a cultural, razão pela

qual não se considera que um mero registro bucal ou exame radiológico atentem

contra a intimidade.202

Por outro lado, ainda que as intervenções atinjam o âmbito de proteção da

norma, é certo que poderá haver a relativização em certas hipóteses. Observe-se

que em algumas hipóteses o direito à intimidade é afrontado com a mera realização

do exame, como ocorre, por exemplo, com os exames vaginais; em outras, não é o

exame em si que é capaz de afrontar a intimidade, mas o seu resultado, como

ocorre com a coleta de cabelo para verificar se o indivíduo é ou não dependente de

drogas.

Dessa forma, tanto as menores intervenções, como a coleta de saliva ou de

fios de cabelo, como as maiores e mais invasivas, como ocorre nas buscas vaginais

e exames de sangue, podem constituir restrições à intimidade, fazendo-se

necessário, para a sua realização, um juízo de proporcionalidade. Tal juízo configura

uma garantia para o indivíduo, uma vez que exige a ponderação dos interesses em

jogo, para descobrir até que ponto o sacrifício do direito à intimidade é necessário

para a obtenção das provas imprescindíveis para a investigação penal.

201

STC 207/1996 e 37/1989 (Disponível em: <http://hj.tribunalconstitucional.es>. Acesso em: 11 fev. 2014).

202 STC 28/1993 (Disponível em: <http://hj.tribunalconstitucional.es>. Acesso em: 13 mar. 2014).

Page 116: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

116

Vejamos agora alguns casos concretos.

O Tribunal Supremo espanhol203 entendeu que uma inspeção bucal efetuada

em um indivíduo detido para extrair papelotes de cocaína não violava o seu direito à

intimidade pessoal, uma vez que essa cavidade do corpo humano não constitui um

espaço subjetivamente íntimo. Trata-se de uma medida de intervenção corporal com

finalidade de busca e apreensão de um delito contra a saúde pública que equivale a

uma busca policial normal, não podendo, por isso, alcançar a mesma relevância de

uma busca anal ou vaginal.

Em outra hipótese, decidiu a Corte que a inspeção no interior do corpo

humano mediante exame de raios X não afeta a intimidade do indivíduo,

principalmente considerando-se a forma e frequência com que tal exame se realiza.

Considerando o instrumento utilizado, bem como a espécie de visão que tal

reconhecimento médico permite, não se pode dizer que tenha havido atentado ao

pudor, ao menos dados os conceitos atuais da sociedade, e assim entendeu-se que

a sua utilização pela polícia não requeria sequer autorização judicial.

Por sua vez, decidiu o Tribunal Constitucional espanhol 204 que uma

intervenção corporal consistente na extração de alguns fios de cabelo e de pelos

das axilas não se encontra dentro do âmbito de proteção constitucional do direito à

intimidade.

Em contrapartida, decidiu o mesmo Tribunal 205 que afigurava-se

desproporcional e atentava contra o direito à intimidade a ordem para que um

indivíduo, detido em um centro penitenciário, tirasse a sua roupa e fizesse flexões

logo após ter recebido uma visita íntima, com a finalidade de evitar a introdução de

objetos e substancias perigosas no estabelecimento prisional.

203

FERNÁNDEZ ACEBO, María Dolores. La tutela de los derechos fundamentals a la intimidad e integridad física frente a la actuación de los poderes públicos sobre el cuerpo humano. 2013. Tese (D u ) − U v C uñ D D Púb 2013. D ív : <http://ruc.udc.es/dspace/bitstream/2183/11704/2/Fernandez%20Acebo_Maria%20Dolores_TD_2013.pdf>. Acesso em: 20 fev. 2014.

204 STC 207/1996 (Disponível em: <http://hj.tribunalconstitucional.es>. Acesso em: 20 fev. 2014).

205 STC 57/1994 (Disponível em: <http://hj.tribunalconstitucional.es>. Acesso em: 20 fev. 2014).

Page 117: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

117

Evidentemente os avanços científicos e o desenvolvimento tecnológico em

áreas como a informática, a medicina e a genética possibilitaram que fossem

introduzidas novas técnicas de investigação que naturalmente podem vir a implicar

em invasões da esfera privada do indivíduo e, portanto, devem ser objeto de

proteção por parte do Estado. Por outro lado, tais técnicas mostram-se fundamentais

para a elucidação de vários delitos, não podendo a sociedade atual delas prescindir,

devendo ser encontrado um meio termo para o equilíbrio dos direitos contrapostos.

Ressalte-se, por fim, que medidas mais invasivas – como as interceptações

telefônicas − são admitidas sem maiores questionamentos pela doutrina e

jurisprudência, não sendo razoável que se impeçam as intervenções corporais com

fundamento na proteção à intimidade.

6.4 Ponderação entre o direito à integridade física e as intervenções

corporais

A Constituição Federal, em seu artigo 5º, inciso XLIX, dispõe que aos presos

é assegurado o respeito à integridade física e moral. Evidentemente tal garantia não

se restringe aos presos, como, diga-se, afirma o artigo 5 do Pacto de São José da

Costa Rica, que estabelece que toda pessoa tem direito a que se respeite sua

integridade física, psíquica e moral. A referência à integridade física, bem como à

moral, implica que a proteção abrange a totalidade do indivíduo, ou seja, não são

admitidos ataques físicos, morais ou psicológicos.

Nesse sentido entendeu o Tribunal Constitucional espanhol206, que, com o

reconhecimento do direito fundamental à integridade física e moral, se protege a

inviolabilidade da pessoa, não apenas contra ataques dirigidos a lesões ao seu

corpo e espírito, mas também frente a toda a classe de intervenções nesses bens

que não possuam o consentimento de seu titular.

Não são admitidas, por violar a integridade física, tratamentos e intervenções

cirúrgicas sem o consentimento do paciente, conforme já teve oportunidade de

decidir o Tribunal Europeu de Direitos Humanos no caso Pretty v. Reino Unido. Da

206

STC 207/1996 (Disponível em: <http://hj.tribunalconstitucional.es>. Acesso em: 21 fev. 2014).

Page 118: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

118

mesma forma, entendeu o mesmo Tribunal, no caso Glass v. Reino Unido, que a

decisão de impor-se a um menor, contra a vontade de sua mãe, tratamento não

desejado, implica em desrespeito ao direito à intimidade e à integridade física.

Conquanto o direito à integridade tenha caráter de fundamentalidade, não

podemos dizer que seja absoluto, pois algumas de suas manifestações podem ser

limitadas pelo legislador, quando existir uma causa justificadora. A questão cinge-se

em determinar em que medida as intervenções podem ser justificadas, não obstante

a lesão verificada à integridade.

Obviamente estão excluídas todas as intervenções que possam acarretar

risco de vida ao indivíduo. Essa condição está presente nos acórdãos analisados,

bem como em várias legislações, como, por exemplo, no artigo 81 a, (1), do Código

de Processo Penal alemão, que não obstante autorizar e extração de sangue sem o

consentimento do acusado, condiciona a medida a não haver riscos para a sua

vida.207

Também não deve a medida ser autorizada se houver outra que produza os

mesmos resultados, com menor sacrifício ao direito. A medida deve ainda ser

rejeitada quando o bem jurídico protegido não justificar a sua execução. O Tribunal

Constitucional alemão208, em uma hipótese em que ponderou a necessidade de

extração de líquido cefalorraquiano de um indivíduo para fins de investigação em

processo criminal de um crime de menor potencial ofensivo, rechaçou a medida, nos

seguintes termos:

207

“S çã 81a. [Exame físico; Exame de sangue] (1) O exame físico do acusado pode ser ordenado para o estabelecimento de fatos que são importantes para o processo. Para esse efeito, a coleta de amostras de sangue e outras intrusões corporais que são realizadas por um médico de acordo com as regras da ciência médica para a realização do exame é admissível sem o consentimento do arguido, d qu u juíz u ú ”. N g “Section 81a. [Physical Examination; Blood Test] (1) A physical examination of the accused may be ordered for the establishment of facts which are of importance for the proceedings. For this purpose, the taking of blood samples and other bodily intrusions which are effected by a physician in accordance with the rules of medical science for the purpose of examination shall be admissible without the accused's consent, provided no detriment to his health is to be expected.” (Disponível em: <http://www.gesetze-im-internet.de/englisch_stpo/englisch_stpo.html>. Acesso em: 18 mar. 2014). Nossa tradução).

208 Decisão (Beschluss) do Primeiro Senado de 10 de junho de 1963 – 1 BvR 790/58.

Page 119: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

119

A retirada de líquido cefalorraquiano e medular com uma agulha comprida e oca não é uma intervenção cirúrgica insignificante e uma intervenção na incolumidade física protegida pelo Art. 2 II GG. Ainda que tal intervenção normalmente não traga perigo, se realizada conforme os preceitos da medicina, segundo o parecer do perito podem ocorrer alterações no estado de saúde, como dores e náuseas e, no caso da punção lombar, em até10% dos casos. Em casos especiais, a retirada de líquor pode levar a sérias complicações [...]. [...] Assim, também na decisão sobre a retirada de líquor, como em todas as intervenções estatais na esfera da liberdade, o juiz deve observar o preceito da proporcionalidade entre meio e propósito. Mesmo que o interesse público esclarecimento de crimes esteja ancorado no princípio da legalidade tão caro ao Estado de direito, justificando, em geral, intervenções na liberdade do acusado, tão menos bastará um tal interesse generalizado (à justificação constitucional) quanto mais gravemente se intervier na esfera de liberdade. Para a aferição da proporcionalidade entre medida e (seu) propósito, necessário se faz considerar também que gravidade tem o delito a ser apenado. É o que vale principalmente para aquelas medidas rigorosas adotadas para a constatação da imputabilidade do acusado admitidas pelos §§ 81 e 81a StPO. Aqui uma aplicação da lei que leve em conta os direitos fundamentais requer que a intervenção pretendida esteja em relação adequada com a gravidade do delito, para que as consequências do esclarecimento do delito não onerem o acusado mais do que a pena esperada. O juiz é, por isso, constitucionalmente obrigado a medir, no caso particular, uma medida legalmente em si permitida também com base [no parâmetro da] na proibição de excesso [...]. [...] No presente caso, [...] trata-se de um caso de bagatela, em face do qual poderia ser aventada somente uma pena ínfima, dependendo das circunstâncias até mesmo (somente) um arquivamento do processo por exiguidade da causa. Do outro lado, a retirada do líquor em suas duas formas é uma intervenção física não destituída de importância; não se justifica, por causa de um crime-bagatela, submeter o acusado, contra a sua vontade, a uma tal intervenção.

Em Portugal209, o Código Processual Penal dispõe em seu artigo 126º serem

nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas por meio de tortura, coação ou,

em geral, ofensa à integridade física ou moral das pessoas.

Não obstante a proteção conferida à integridade física, entendeu o Tribunal

Constitucional português que o mero fato de soprar o etilômetro não seria capaz de

ofender a integridade física de alguém210. Em outra decisão211, assentou o Tribunal

que não se trata, com o teste de pesquisa de álcool, de devassar os hábitos da

pessoa do condutor no tocante à ingestão de bebidas alcoólicas, mas apenas de

recolher prova perecível e de prevenir eventual violação de bens jurídicos valiosos

(entre outros a vida e a integridade física) que uma condução sob a influência do

209

Artigo 126º do Código Penal português. 210

Acórdão 156/1988 (Disponível em: <www.tribunalconstitucional.pt>. Acesso em: 01 mar. 2014. 211

Acórdão 319/1996 (Disponível em: <www.tribunalconstitucional.pt>. Acesso em: 01 mar. 2014.

Page 120: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

120

álcool pode causar, o que há de convir-se, tem relevo bastante para justificar,

constitucionalmente a medida.

Observe-se que ao exarar a Sentença n. 238/1996, a Corte italiana

considerou ilegítimo o exame hematológico coativamente realizado, por falta de

previsão legal, e que ele afeta não somente a sua liberdade pessoal, mas também

atinge a sua esfera corporal. Conquanto seja atingida a esfera corporal do indivíduo,

o seu nível é mínimo, não comprometendo a sua integridade física e a sua

dignidade.

O Supremo Tribunal Federal 212 decidiu ser insignificante a lesão corporal

(pequena equimose) decorrente de acidente de trânsito e, em consequência, acabou

por impedir a instauração de ação penal que tramitava. Segue que, adotado tal

entendimento, não é coerente considerar-se haver ofensa à integridade física

consistente na extração de sangue, saliva ou cabelo, por exemplo. Se o princípio da

“insignificância favorece o agente cuja ação, por sua inexpressividade, não chega a

atentar contra os valores tutelados pelo direito penal, não se pode erigir a

insignificante lesão à integridade física como óbice às intervenções corporais”.213

6.5 Ponderação entre o direito à liberdade e as intervenções

corporais

A liberdade não implica apenas a proteção do indivíduo em face de detenções

arbitrárias, mas também abrange o direito de o indivíduo fazer tudo o que não esteja

expressamente proibido pela lei. Existindo modalidades distintas de detenção que

prejudiquem o direito à liberdade, também deve haver garantias para a sua defesa e

o seu livre exercício, de modo que se protejam os indivíduos, nas hipóteses em que

são forçados a fazer algo contra a sua vontade sem justa causa. Do exposto, segue

que a sua principal característica é exatamente o fato de que não é o seu exercício

que é regulamentado, mas os seus limites ou restrições, por isso a limitação de seu

212

ST − HC . 66.869/P . . Passarinho. 213

HADDAD, Carlos Henrique Borlido, Conteúdo e contornos do princípio contra a auto-incriminação, cit., p. 257.

Page 121: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

121

conteúdo deve ser feita de forma negativa, no sentido de que tudo que não é

proibido é permitido.214

A Constituição brasileira garante o direito à liberdade em seu artigo 5º, caput,

e em seu inciso II, corroborando o afirmado, dispõe que ninguém será obrigado a

fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei.

Diz-se que as intervenções corporais afetam o direito à liberdade, pois o

indivíduo, para fornecer o material que será objeto de perícia, permanecerá por um

determinado período – tempo necessário para a realização do exame – impedido de

se locomover.

De fato, no curto período de tempo que o indivíduo fica à disposição das

autoridades para a realização do exame, a sua liberdade restará restringida. Tal fato,

entretanto, por si só não tem aptidão para tornar ilegítimas as intervenções

corporais, uma vez que há uma série de diligências similares previstas pela

legislação que igualmente importam em restrições temporárias da liberdade, e que

são aceitas pela jurisprudência.

A título ilustrativo, observamos que o artigo 411 do Código Processo Penal

dispõe que na audiência de instrução proceder-se-á à tomada de declarações do

ofendido, se possível, à inquirição das testemunhas arroladas pela acusação e pela

defesa, nessa ordem, bem como aos esclarecimentos dos peritos, às acareações e

ao reconhecimento de pessoas e coisas, interrogando-se, em seguida, o acusado e

procedendo-se ao debate. O parágrafo 7º do mesmo artigo assevera que nenhum

ato será adiado, salvo quando imprescindível à prova faltante, determinando o juiz a

condução coercitiva de quem deva comparecer.

É evidente assim que o juiz pode determinar a condução coercitiva de

testemunhas para prestarem o seu depoimento, ou do réu para realizar o

reconhecimento, providências que importam em privação temporária de sua

liberdade, à semelhança do que ocorre com a realização das intervenções corporais.

214

GARCÍA MORILLO, Joaquín. El derecho a la libertad personal: detención, privación y restricción de libertad. Valencia: Tirant lo Blanch; Universitat de València, 1995. p. 42.

Page 122: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

122

De fato, decidiu o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Habeas Corpus n.

79.244/DF215 , que o nemo tenetur não impede o comparecimento para prestar

depoimento:

Se o objeto da CPI é mais amplo do que os fatos em relação aos quais o cidadão intimado a depor tem sido objeto de suspeitas, do direito ao silêncio não decorre o de recusar-se de logo a depor, mas sim o de não responder às perguntas cujas repostas entenda possam vir a incriminá-lo: liminar deferida para que, comparecendo à CPI, nesses termos, possa o paciente exercê-lo, sem novamente ser preso ou ameaçado de prisão, uma vez observada a liminar na volta do paciente à CPI e já encerrados os trabalhos dessa.

É possível, ainda, que seja decretada a prisão cautelar do indivíduo para a

obtenção de prova necessária à instrução processual. Com efeito, nos termos do

artigo 312 do Código Processo Penal, a prisão preventiva pode ser decretada para

conveniência da instrução criminal quando o acusado estiver de alguma forma

embaraçando o regular andamento do processo.

Pelo exposto, e considerando que o direito brasileiro já admite o emprego da

condução coercitiva e da prisão preventiva com finalidade instrutória indireta,

medidas que implicam restrição da liberdade, não vemos como não seria admitida

também a breve privação de liberdade para a realização de exames periciais

determinados pelo juiz.

6.6 Ponderação entre o direito à dignidade e as intervenções

corporais

A dignidade da pessoa humana, como já asseverado, foi reconhecida pela

Constituição de 1988 como princípio fundamental. Todavia, mais do que um mero

um princípio, ela é um dos valores fundantes da República, o que implica na

irradiação de seu significado por todo o sistema legal.

A dignidade da pessoa humana, entretanto, não veda de maneira peremptória

a realização de exames que envolvam intervenções corporais.

215

ST − HC . 79.244/DF, rel. Min. Sepúlveda Pertence.

Page 123: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

123

O Tribunal Constitucional espanhol216 entendeu que a dignidade da pessoa

humana é uma das limitações à realização das referidas medidas, vale dizer, os

exames poderão ser realizados, desde que respeitada a dignidade da pessoa.

Conforme a doutrina do Tribunal, a medida limitativa deve estar prevista em lei, ser

deferida por autoridade competente em decisão motivada, ser idônea, necessária e

proporcional em relação a um fim constitucional legítimo e não deve, em hipótese

alguma, colocar em risco a saúde do indivíduo nem consistir em providência capaz

de ocasionar tratamento desumano nem degradante, ou seja, respeitando-se a

dignidade da pessoa.

A Corte Constitucional italiana217 considerou possível a realização de exame

hematológico, uma vez que tal medida constitui prática médica de ordinária

administração e não lesa a dignidade da pessoa. Não obstante tal decisão tenha

sido revista218 − entendeu-se necessária uma regulamentação específica –, também

a nova decisão consignou que o exame, embora represente invasão na esfera

corporal, não é apto a comprometer a dignidade da pessoa.

Na Alemanha 219 , a lei confere ampla proteção individual contra qualquer

pressão direta ou indireta, no sentido de alguém ser obrigado de forma ativa a

providenciar informações autoincriminatórias. Essa proteção tem amparo no fato de

que atenta contra a dignidade humana forçar-se alguém a ativamente contribuir para

a sua própria condenação.

A dignidade humana é violada, de acordo com a Corte Constitucional alemã,

quando o Estado falha em proporcionar à pessoa o respeito devido ao valor inerente

a qualquer ser humano. A Corte considerou restar violado o princípio da dignidade

humana quando há um elemento de arbitrariedade envolvido. Isso significa que o

indivíduo deve tolerar incursões em sua esfera pessoal, desde que a medida não

216

STC 207/1996 (Disponível em: <http://hj.tribunalconstitucional.es>. Acesso em: 15 fev. 2014). 217

Sentenza 54/86 (Disponível em: <http://cortecostituzionale.it>. Acesso em: 16 fev. 2014). 218

Sentenza 238/96 (Disponível em: <http://cortecostituzionale.it>. Acesso em: 16 fev. 2014). 219

WEIGEND, Thomas; GHANAYIM, Khalid, Human dignity in criminal procedure: a comparative overview of Israeli and German law, cit., p. 201.

Page 124: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

124

seja arbitrária – deve servir a um fim legítimo e executada de forma razoável – e não

afete o núcleo central de sua personalidade.220

Relata Carlos Henrique Borlido Haddad que o Tribunal alemão decidiu ser

garantia da dignidade humana a liberdade de declaração e toda violação à recusa

de falar ou, por extensão, à recusa de fazer ou agir consiste em ofensa à dignidade.

Isso não impediu, todavia, que a jurisprudência entendesse constitucional a

realização das intervenções corporais, principalmente porque nelas não há

desrespeito à recusa de fazer ou agir do acusado. Arremata argumentando que

valer-se da força para empregar métodos invasivos para a colheita de material

probatório não viola a dignidade da pessoa humana, pois do contrário toda e

qualquer expressão do poder coercitivo estatal também a afrontaria, o que implicaria

em deixar o Estado sem ação no exercício do poder punitivo.221

Do exposto, não me parece razoável justificar-se a impossibilidade de serem

efetivadas intervenções corporais em nome do princípio da dignidade da pessoa

humana, quando medidas muito mais drásticas são toleradas, como a pena de

morte, a prisão cautelar e as interceptações telefônicas, entre outras.

Conquanto a entidade corporal seja um bem suficientemente importante para

merecer a proteção constitucional, não constitui um bem isolado, só devendo ser

protegido, portanto, no contexto dos demais. Resulta que as intervenções que sejam

necessárias e não contrariem as práticas normais da vida não podem ser afastadas

sem qualquer consideração de violarem ou não a dignidade humana, em suma, não

há um direito absoluto para negar a utilização do corpo humano como objeto de

prova, a não ser quando, em assim o fazendo, seja violada a dignidade humana.222

220

WEIGEND, Thomas; GHANAYIM, Khalid, Human dignity in criminal procedure: a comparative overview of Israeli and German law, cit., p. 201.

221 HADDAD, Carlos Henrique Borlido, Conteúdo e contornos do princípio contra a auto-incriminação,

cit., p. 261. 222

CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho de. A constituição e as intervenções corporais no processo penal: existirá algo além do corpo? In: KLEVENHUSEN, Renata Braga (Coord.). Temas sobre direitos humanos: em homenagem ao Professor Vicente de Paulo Barreto. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 117.

Page 125: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

125

6.7 Ponderação entre o direito à não autoincriminação e as

interveções corporais

Devemos deixar claro, antes de verificar se as intervenções corporais afetam

ou não o direito à não autoincriminação, alguns conceitos relacionados ao tema, a

começar pela distinção entre suporte fático amplo e suporte fático restrito.

Suporte fático223 pode ser definido como o conjunto de elementos fáticos que

a norma jurídica em abstrato prevê e a ele imputa determinada consequência. O

preenchimento do suporte fático de uma norma é condição para que sua

consequência jurídica ocorra. O suporte fático é composto por dois elementos. O

primeiro diz respeito aos bens que são protegidos, e é chamado de âmbito de

proteção do direito. O segundo elemento refere-se à intervenção estatal. Assim,

compõem o conceito de suporte fático tanto o bem que é protegido (âmbito de

proteção) como aquilo contra o qual é protegido (intervenção estatal).

A definição do âmbito de proteção de um direito fundamental define, dessa

forma, os bens protegidos pela norma que garante o referido direito. Há duas teorias

acerca do suporte fático, a que pressupõe um suporte fático restrito e a que o

considera amplo. Para a primeira, alguns bens não são de antemão abstratamente

subsumidos no âmbito de proteção da norma. Nessa hipótese, não há que se falar

em restrição a direitos fundamentais. Normalmente, para excluir determinadas

condutas do âmbito de proteção de alguns direitos, busca-se pela sua essência. A

principal função dessa teoria é estabelecer o que se inclui e o que não deve ser

incluído no âmbito de proteção dos direitos.

A teoria que considera o suporte fático amplo não tem essa preocupação,

pois os bens são considerados a priori abrangidos pelo âmbito de proteção da

norma. O que ocorre é o deslocamento do foco da argumentação para o momento

da fundamentação da intervenção, isto é, com base em quais condutas, que de

início poderiam ser consideradas como garantidas por algum direito, poderão ser

excluídas dessa garantia.

223

SILVA, Virgilio Afonso da, Direitos fundamentais, cit., p. 68.

Page 126: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

126

Entende Virgílio Afonso da Silva que um modelo que se baseia na redução a

priori do âmbito de proteção de direitos fundamentais proporciona “uma garantia

menos eficaz desses direitos nas atividades legislativa e jurisdicional, por excluir da

exigência de fundamentação uma série de atos que inegavelmente restringem

direitos”.224

Uma última diferenciação ainda merece ser reforçada, a distinção que deve

ser feita entre colaboração ativa e colaboração passiva. Conforme já assinalado,

várias legislações distinguem as hipóteses em que o indivíduo é compelido a

suportar determinadas perícias e exames – colaboração passiva – daquelas em que,

para a produção, é indispensável a sua participação efetiva – colaboração ativa –,

como por exemplo, realizar o teste do etilômetro.

Vistas essas definições, podemos sustentar, com fundamento na teoria do

suporte fático restrito, que as intervenções corporais stricto sensu – medidas que

causam ou tenham potencial de causar lesão ao corpo e realizadas sem o

consentimento do indivíduo − estão fora do âmbito de proteção do direito à não

autoincriminação, pois não obrigam o indivíduo a realizar qualquer tipo de

declaração ou a participar de maneira ativa na produção da prova. As referidas

medidas apenas obrigam o indivíduo a tolerar que algum tipo de exame pericial seja

realizado em seu corpo. Essa foi a conclusão a que chegou a jurisprudência norte-

americana, que assentou que o direito é uma barreira contra a obrigação relativa às

comunicações e testemunhos, não impedindo, todavia, a utilização do corpo do

indivíduo como fonte real ou física da evidência.

Também é o entendimento do direito alemão, que embora não admita que o

indivíduo seja obrigado a colaborar ativamente com a investigação e produção de

provas – não permite, por exemplo, que o teste do etilômetro seja realizado

coercitivamente –, o obriga a tolerar (conduta passiva) medidas realizadas em seu

próprio corpo. De fato, dispõe o Código Processual alemão (Seção 136)225 que o

224

SILVA, Virgilio Afonso da, Direitos fundamentais, cit., p. 125. 225

“A liberdade do acusado para decidir e manifestar sua vontade não deve ser influenciada por maus-tratos, fadiga induzida, interferência física, administração de medicamentos, tortura, engano ou hipnose. A coerção só pode ser utilizada na forma permitida pela lei processual penal. Ameaçar o acusado com medidas não autorizadas ou prometer vantagem não prevista são condutas

Page 127: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

127

direito do acusado para formar a sua convicção e manifestar a sua vontade não

pode ser prejudicado por maus-tratos, indução à fadiga, interferência física,

administração de drogas, tortura, engano ou hipnose. Ressalta, todavia, que a

coerção será admitida, quando prevista em lei processual, autorização prevista na

Seção 81, já reproduzida.

A doutrina do Tribunal Constitucional espanhol é pacífica ao admitir que a

obrigação de submeter-se a determinadas diligências de intervenção corporal não

pressupõe uma verdadeira autoincriminação, uma vez que não se obriga o indivíduo

a emitir uma declaração de culpa, mas apenas que ele tolere que se pratique uma

determinada perícia.226

No mesmo sentido o entendimento do Tribunal Constitucional português:227

Por seu turno, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH), em sentença proferida em 17 de Dezembro de 1996 (caso Sauders versus Reino Unido), concluiu que o citado direito à não auto-incriminação se refere, em primeira linha, ao respeito pela vontade do arguido em não prestar declarações, ao direito ao silêncio, acrescentando que esse direito se não estende ao uso, em processo penal, de elementos obtidos do arguido por meio de poderes coercivos, mas que existam independentemente da vontade do sujeito, por exemplo as colheitas, por expiração, de sangue, de urina, assim como de tecidos corporais com finalidade de análises de ADN. E o Tribunal Constitucional espanhol, nomeadamente a propósito da obrigatoriedade de submissão a testes de alcoolemia, afirmou que a realização dos mesmos não constitui, em si mesmo, uma declaração ou incriminação, para efeitos deste privilégio, uma vez que não se obriga o detectado a emitir uma declaração que exteriorize um conteúdo, admitindo a sua culpa, mas apenas a tolerar que sobre ele recaia uma especial modalidade de perícia (STC 103/1985). E, reiterando tal doutrina, analisou em 1997 (STC 191/1997) depois de citar jurisprudência do TEDH onde se reconhece que o direito ao silêncio e o direito à não auto-incriminação, embora não expressamente mencionados pelo artigo 6º da CEDH, se situam no coração do direito a um processo equitativo e se relacionam estreitamente com o direito à defesa e à presunção da inocência − a questão na perspectiva, que é também a do agora recorrente, da violação do princípio da presunção de inocência. Neste contexto, considerou, então, que as garantias face à auto-incriminação só se referem às contribuições do arguido de conteúdo directamente incriminatório, não tendo o alcance de

pr b ”. N g “The accused’s freedom to make up his mind and to manifest his will shall not be impaired by ill-treatment, induced fatigue, physical interference, administration of drugs, torment, deception or hypnosis. Coercion may be used only as far as this is permitted by criminal procedure law. Threatening the accused with measures not permitted under its provisions or holding out the prospect of an advantage not envisaged by statute shall be prohibited.” (N uçã ).

226 Nesse sentido: STC 102/1995 e STC 252/1994 (Disponível em <http://hj.tribunalconstitucional.es>.

Acesso em: 01 mar. 2014). 227

Acórdão 155/2007 (Disponível em: <www.tribunalconstitucional.pt>. Acesso em: 01 mar. 2014).

Page 128: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

128

integrar no direito à presunção da inocência a faculdade de se poder subtrair a diligências de prevenção, indagação ou de prova. A configuração genérica de um tal direito a não suportar nenhuma diligência deste tipo deixaria desarmados os poderes públicos no desempenho das suas legítimas funções de protecção da liberdade e convivência, lesaria o valor da justiça e as garantias de uma tutela judicial efectiva [...]. No mesmo sentido se pronunciou Gomes Canotilho no parecer que o ora recorrente juntou aos autos, onde, depois de dar conta que “a doutrina dominante e uma boa parte da jurisprudência nacional e internacional de direitos humanos têm entendido que a presunção de inocência do arguido abrange apenas o direito a permanecer calado e a beneficiar da existência de uma dúvida razoável, não impedindo a recolha de material biológico para efeitos de análise de DNA” (p. 8), conclui precisamente que “a presunção de inocência do arguido abrange apenas o direito a permanecer calado e a beneficiar da existência de uma dúvida razoável, não impedindo a recolha de material biológico para efeitos de recolha de DNA” (cf. conclusão 10). Ora, entende o Tribunal, no seguimento da jurisprudência e doutrina acabada de citar, que o direito à não auto-incriminação se refere ao respeito pela vontade do arguido em não prestar declarações, não abrangendo, como igualmente se concluiu na sentença do TEDH supracitada, o uso, em processo penal, de elementos que se tenham obtido do arguido por meio de poderes coercivos, mas que existam independentemente da vontade do sujeito, como é o caso, por exemplo e para o que agora nos importa considerar, da colheita de saliva para efeitos de realização de análises de ADN. Na verdade, essa colheita não constitui nenhuma declaração, pelo que não viola o direito a não declarar contra si mesmo e a não se confessar culpado. Constitui, ao invés, a base para uma mera perícia de resultado incerto, que, independentemente de não requerer apenas um comportamento passivo, não se pode catalogar como obrigação de auto-incriminação. Assim sendo, não se pode sustentar, ao contrário do que pretende o recorrente, que as normas questionadas contendam com o privilégio contra a auto-incriminação.

Os defensores do modelo do suporte fático amplo dizem que, conquanto as

medidas de intervenção não impliquem em qualquer tipo de declaração ou

colaboração ativa do indivíduo, não deixa de ser evidente que, mediante algumas

delas, podem as autoridades descobrir, com alto grau de precisão e confiabilidade,

dados e informações que o indivíduo poderia não querer revelar. Dessa forma, ainda

que não se esteja realizando qualquer espécie de declaração, estão sendo

realizadas provas no corpo do indivíduo cujo resultado será idêntico ao que seria

obtido caso a declaração fosse realizada. Em uma e outra hipótese – declaração

verbal e intervenção corporal – são revelados determinados fatos e circunstâncias

que podem ser incriminadores, não obstante na declaração seja necessária uma

conduta ativa e na intervenção uma postura meramente passiva. Em alguns casos, a

prova pericial é tão contundente que pode até possuir mais força do que a própria

declaração verbal. Dessa forma, a decisão judicial que fundamentasse a

condenação do indivíduo unicamente no laudo pericial estaria, em última análise,

agredindo o núcleo essencial do direito à não autoincriminação.

Page 129: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

129

Assim, a afirmação de que as intervenções corporais não afetam o direito à

não autoincriminação deve ser tomada com cautela, não sendo recomendável

excluí-las de antemão do juízo de proporcionalidade. Assevera Wagner Marteleto

Filho228, com esse entendimento, que tendo em vista o amplo suporte fático do

direito à não autoincriminação, que confere um direito genérico à não cooperação, é

forçoso reconhecer que as medidas de intervenção corporal restringem o direito

fundamental, porquanto reduzem a margem de liberdade e autonomia do indivíduo,

que acaba se vendo coagido a colaborar passivamente para a produção de uma

prova que tem potencial para incriminá-lo.

No que concerne à distinção entre suporte fático restrito e amplo, entendemos

esclarecedor o julgamento do Habeas Corpus n. 103.236/ES realizado Supremo

Tribunal Federal 229 . Nesse processo, os autores defendiam a tese de que as

interceptações telefônicas, mesmo que autorizadas judicialmente, ofendiam o direito

ao silêncio.

O ministro Gilmar Mendes, relator do acórdão, citando as lições de Alexy,

anotou que “os direitos fundamentais atribuídos por normas constitucionais aos

legitimados, e expressos por enunciados normativos constitucionais, ligam-se aos

fatos que regulam por uma relação de precisão ou de referência”. Prossegue

afirmando que o direito de não produzir provas contra si mesmo e o direito ao

silêncio em face de perguntas realizadas pelos agentes públicos não se relacionam

com pressupostos fáticos trazidos pelos impetrantes do habeas corpus, quer seja de

forma imediata (relação de precisão), quer seja de forma mediata (relação de

referência).

É o caso de se dizer que a possibilidade de não ver utilizada contra si prova produzida por escuta telefônica legalmente autorizada não decorre da norma de direito fundamental que atribui a todo cidadão o direito ao silêncio e o direito de não produzir prova contra si mesmo. É o caso manifesto de não incidência, de carência total da pretensão pretendida.

228

MARTELETO FILHO, Wagner, O direito à não autoincriminação no processo penal contemporâneo: investigação genética, interceptações telefônicas e ambientais, agentes infiltrados e outros problemas, cit., p.103.

229 ST − HC . 103.236/ S . Min. Gilmar Mendes.

Page 130: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

130

Mesmo que se entendesse pela incidência da norma atributiva de direito

fundamental à hipótese, ainda assim o pedido seria indeferido. Ocorre que, arremata

o relator:

Os direitos e garantias fundamentais não possuem caráter absoluto na medida em que encontram limites nos demais direitos e garantias igualmente previstos no texto constitucional. Na espécie, ainda que fosse o caso de se entender pela incidência da norma atributiva de direito fundamental na extensão solicitada, seria também o caso de se observar a clara restrição a este direito fundamental decorrente do dever fundamental do Estado de investigar e de garantir a segurança pública.

Colaciono, por fim, um exemplo de decisão em que o juízo de

proporcionalidade foi realizado e que culminou com a ratificação de uma medida de

intervenção corporal. Tratava-se de uma hipótese analisada pela Comissão

Europeia de Direitos Humanos acerca do exame compulsório de sangue.230

A Comissão considerou razoável que as autoridades, em razão de suas

funções, pudessem ser capazes de tomar certas medidas, mesmo que fossem

capazes de afetar os suspeitos de uma ofensa. A Comissão observa que o artigo 5º,

1, “c”, da Convenção permite a prisão preventiva em tais casos. Portanto, a fortiori,

não há motivos para que não sejam toleradas interferências menores, como um

exame de sangue. A Comissão ponderou que várias garantias são fornecidas contra

o uso arbitrário ou inadequado do exame de sangue − o exame só pode ser

ordenado pelo Ministério Público, seu adjunto ou outra autoridade policial autorizada

a fazê-lo. O decreto autorizador também determina que o exame de sangue só pode

ser realizado por um médico, que, todavia, pode se recusar a realizar o teste por

razões excepcionais de caráter médico.

A Comissão considerou, portanto, que a legislação holandesa sobre o tema

foi inspirada no desejo e na necessidade de proteger a sociedade e, mais

particularmente, a segurança rodoviária e a saúde de outras pessoas. Assim,

embora os exames de sangue obrigatórios possam ser vistos como uma violação da

vida privada, nos termos do artigo 8º, 1, também podem ser vistos como necessários

230

X v. the Netherlands, 8239/78, 4 December 1978, DR16, 184 (MCBRIDE, Jeremy, Human rights and criminal procedure, cit., p. 121).

Page 131: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

131

para a proteção dos direitos de terceiros, nos termos do parágrafo 2 do mesmo

artigo.

A decisão resume o que até aqui foi dito. Embora o exame de sangue – uma

das modalidades de intervenção corporal − afete vários direitos consagrados pela

Convenção, ainda assim a sua realização é permitida, após a ponderação realizada

em face dos outros direitos envolvidos.

Até aqui foi analisada a viabilidade das intervenções corporais, após a

ponderação dos valores contrapostos. Não há, consoante já afirmado, como se

realizar um juízo de proporcionalidade em relação a algumas das manifestações do

direito à não autoincriminação, como, por exemplo, os direitos ao silêncio e de não

fornecer padrões gráficos ou de voz, uma vez que tais direitos são absolutos. A

questão que se coloca a seguir é: além das intervenções corporais, há alguma outra

manifestação do direito à não autoincriminação suscetível de ponderação ou todos

os demais são absolutos?

Vimos que o Supremo Tribunal Federal entendeu as interceptações

telefônicas estavam fora do âmbito de proteção da norma. Há um outro julgamento

em que a Corte Constitucional231 analisou a possível colisão entre o direito à não

autoincriminação e os demais direitos garantidos constitucionalmente.

Tratava-se de um caso em que o prefeito de uma cidade da Bahia fora

condenado em uma ação de exibição de documentos proposta pelo Ministério

Público. O Parquet havia requisitado que o dirigente apresentasse determinados

documentos e ele se recusou. Em virtude da negativa, houve o ajuizamento de uma

231

“Processual Penal. Ação cautelar de admissão de documentos. Legitimidade para o seu ajuizamento pelo Ministério Público. Múnus constitucional cometido ao Parquet. Prefeito. Alegação de que não é obrigado a produzir prova contra si mesmo. Inadmissibilidade. Documentos públicos que se encontram sob a guarda do chefe da administração municipal. I - O Ministério Público, a quem incumbe instaurar inquérito civil e promover ação civil pública, além de ajuizar a ação penal (art. 129, inc. I e III da CF), tem legitimidade para ajuizar ação de exibição de documentos. II - Tal legitimidade nada tem a ver com o poder investigatório do Parquet, dizendo respeito, apenas, ao seu direito de acionar o Poder Judiciário, no exercício de suas funções institucionais. III - Prefeito que não se pode negar à exibição de documentos públicos, sob a alegação de ser-lhe facultado omitir-se na produção de provas contra si mesmo, visto que é, em última análise, o chefe máximo da administração pública local. IV - Writ conhecido, a que se nega provimento.” (STF − HC n. 93.829/BA, rel. Min. Ricardo Lewandowski).

Page 132: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

132

cautelar de exibição de documentos, julgada parcialmente procedente pelo Superior

Tribunal de Justiça. Veja-se que a questão restringiu-se apenas a aspectos relativos

à obrigatoriedade da apresentação ou não dos documentos, matéria eminentemente

cível, embora pudesse ter repercussões penais, dependendo do teor deles.

Argumentou a sua defesa que tal condenação – obrigação de apresentar os

documentos solicitados – feria o princípio da não produção de provas contra si

mesmo. Argumentou ainda que por se tratar de documentos públicos, poderiam ser

requisitados diretamente à Administração.

Decidiu unanimemente o Supremo Tribunal Federal que o prefeito não pode

se negar à exibição de documentos públicos, sob a alegação de ser-lhe facultado

omitir-se na produção de provas contra si mesmo, visto que é, em última análise, o

chefe máximo da Administração pública local.

Embora pareça ter a referida decisão ponderado os direitos em jogo e

priorizado o dever de exibição dos documentos necessários à investigação

promovida pelo Ministério Público, deve ser respondida a seguinte questão: e se

persistir a recusa na apresentação dos documentos?

A ação de exibição de documentos tem previsão nos artigos 355 e seguintes

do Código Processo Civil. É, portanto, uma ação cível. Ora, nas ações cíveis há uma

cominação para a não apresentação dos documentos: o juiz admitirá como

verdadeiros os fatos que, por meio do documento ou da coisa, a parte pretendia

provar 232 . Se o documento estiver em poder de terceiro e este se recusar a

apresentá-lo, o juiz expedirá mandado de apreensão. Não há, assim, que se falar

em ofensa ao direito à não autoincriminação em processos cíveis, dada a sua

própria natureza. Observe-se que o terceiro que detém o documento e não o entrega

pode ser responsabilizado pelo crime de desobediência. Tal cominação não é feita

quando à própria parte é atribuída a entrega, mesmo porque para essas hipóteses já

se sofrerá a pior consequência possível, a procedência do pedido.

232

“Artigo 359 - Ao decidir o pedido, o juiz admitirá como verdadeiros os fatos que, por meio do documento ou da coisa, a parte pretendia provar: I - se o requerido não efetuar a exibição, nem fizer qualquer declaração no prazo do art. 357;”

Page 133: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

133

Ocorre que os documentos que porventura devam ser entregues podem

também ensejar a instauração de ação penal. Nessa hipótese, entendemos ser

legítima a recusa, uma vez que ninguém é obrigado a colaborar ativamente com a

acusação na produção de provas. No processo penal, a recusa à apresentação dos

documentos não enseja a presunção de veracidade dos fatos, ao contrário do que

ocorre na esfera cível, e, dessa forma, os fatos devem ser provados e não

presumidos. Segue que se o indivíduo não apresentar os documentos solicitados,

não haverá meios legais para obrigá-lo, hipótese em tudo semelhante à recusa no

fornecimento de padrões de voz e escrita, razão pela qual a conduta, a nosso ver,

está amparada pelo direito à não autoincriminação.

Há ainda, entretanto, um aspecto a se considerar. O artigo 10 da Lei n.

7.347/85 dispõe que constitui crime, punido com pena de reclusão de um a três

anos, a recusa, o retardamento ou a omissão de dados técnicos indispensáveis à

propositura da ação civil, quando requisitados pelo Ministério Público. Essa é,

entendemos, a questão fundamental para se poder afirmar que a recusa do prefeito

à apresentação do documento não está amparada pelo direito à não

autoincriminação: eventual condenação pelo crime afasta, de fato, o direito.

Não basta que certa conduta seja inexequível legalmente para se configurar a

proteção do direito. Vale dizer, o direito à não autoincriminação não protege

determinada conduta do indivíduo pelo mero fato de que sem a sua colaboração

ativa não existiria outro modo de se realizar a prova. Não há como obrigar o

indivíduo a falar nem há como obrigá-lo a participar da reconstituição do crime,

todavia isso não é suficiente para a proteção do direito. É necessário que o

ordenamento não comine nenhuma penalidade para tais condutas.

Com esse entendimento, assevera Carlos Henrique Borlido Haddad233 que:

A impossibilidade material de substituir-se o acusado e desempenhar o ato que somente ele poderia realizar não se identifica completamente com o princípio contra a autoincriminação. Apesar de não ser possível deslocar o acusado de sua inércia através de força exógena, é perfeitamente viável punir, ameaçar com sanções ou impor ônus em virtude da omissão. Quando

233

HADDAD, Carlos Henrique Borlido, Conteúdo e contornos do princípio contra a auto-incriminação, cit., p. 61.

Page 134: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

134

o direito renuncia a prever consequências pelo comportamento omissivo, independentemente se materialmente possível ou não compelir à prática do ato, alberga o princípio contra a autoincriminação.

De fato, de nada adiantaria garantir-se o direito ao silêncio se houvesse

previsão de que tal silêncio implicasse na veracidade dos fatos objeto da prova. Pela

leitura do voto do relator, não há como se ter certeza de que a sanção penal seria

aplicável, pois o que se discutiu nos autos foi tão somente a obrigatoriedade de

apresentação dos documentos. Sem dúvida, se fosse determinada a aplicação da

pena cominada no artigo, poder-se-ia dizer que nessa hipótese – agente público

obrigado a apresentar documentos relativos à Administração − houve a ponderação

dos direitos envolvidos, com a prevalência do direito da sociedade na apuração dos

fatos.

Aury Lopes Junior234 afirma, acerca da proporcionalidade, que a questão não

está limitada pela relação entre a prova obtida e o sofrimento ou constrangimento

afligido ao sujeito passivo, mas sim na impossibilidade de restringir-se a garantia de

não fazer prova contra si mesmo, em nenhum caso. Os julgados mostram, todavia,

que o interesse do indivíduo suspeito ou acusado da prática de algum delito, embora

deva ser levado em consideração, não é único, devendo ser restringido quando a

aplicação de um juízo de proporcionalidade assim o determinar.

Por essa razão, também não se pode concordar com o entendimento de

Maria Elizabeth Queijo sobre o tema. A autora, mesmo admitindo a aplicação da

proporcionalidade, adverte que em nenhuma hipótese a medida deverá ser realizada

sem o consentimento do indivíduo, ao menos no que se refere às provas produzidas

mediante intervenção corporal invasiva. Ressalta a autora que a autorização judicial

não supre o consentimento do indivíduo.235

Ocorre que admitir o juízo de proporcionalidade apenas nessas hipóteses

equivale a não admiti-lo, mesmo porque, salvo melhor juízo, se houver o

consentimento do indivíduo, não se precisará realizar a ponderação. O indivíduo não

234

LOPES JUNIOR, Aury; GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Investigação preliminar no processo penal. 5. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 496.

235 QUEIJO, Maria Elizabeth, O direito de não produzir prova contra si mesmo, cit., p. 411.

Page 135: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

135

é obrigado a soprar o bafômetro ou a entregar amostras de sangue, mas se quiser

fazê-lo, a pedido da autoridade, nenhuma irregularidade haverá.

A autora assevera que a realização da intervenção corporal invasiva sem o

consentimento do indivíduo implicaria na violação de diversos direitos fundamentais,

entre os quais o direito à inviolabilidade corporal, intimidade e dignidade da pessoa

humana. Ocorre que entre tais provas invasivas, insuscetíveis de realização sem o

consentimento, a autora inclui, por exemplo, o exame de DNA de saliva colhida no

interior da cavidade bucal236. Não se imagina, todavia, como a coleta de saliva possa

atingir a dignidade da pessoa humana, a sua inviolabilidade corporal ou a sua

intimidade. Há medidas, como a revista íntima, por exemplo, que afetam de maneira

muito mais marcante a intimidade, e nem por isso são consideradas ilegais.

6.8 Testes de alcoolemia

As divergências havidas em torno dos testes de alcoolemia bem resumem o

até aqui exposto e demonstram a diferença de entendimento entre a jurisprudência

estrangeira e a nossa, no que concerne ao direito à não autoincriminação. Embora a

solução da controvérsia já tenha sido estabelecida por nossos tribunais, ela não é, a

meu sentir, capaz de realizar a devida justiça, haja vista dificultar – quando não

impedir de maneira absoluta − a produção das provas necessárias para a

responsabilização dos infratores.

A antiga redação do artigo 306237 do Código de Trânsito Brasileiro, ao definir

os crimes de trânsito, exigia para a tipificação do delito que o motorista estivesse

sob a influência do álcool, sem indicar a concentração específica de substância no

corpo do indivíduo. Por conseguinte, o exame clínico e a prova testemunhal

atendiam à exigência legal.

236

QUEIJO, Maria Elizabeth, O direito de não produzir prova contra si mesmo, cit., p. 411-412. 237

Conduzir veículo automotor, na via pública, sob a influência de álcool ou substância de efeitos análogos, expondo a dano potencial a incolumidade de outrem: Penas - detenção, de seis meses a três anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.

Page 136: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

136

Com o advento da Lei n. 11.705/2008, a prova da embriaguez passou a exigir

a constatação de um certo percentual de álcool no sangue. Com efeito, dispunha o

artigo que constitui crime “conduzir veículo automotor, na via pública, estando com

concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 decigramas, ou sob

a influência de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência”.

O parágrafo único do artigo remeteu ao Executivo a fixação da equivalência

entre os testes de alcoolemia. Em cumprimento ao requisito legal, foi editado o

Decreto n. 6.488, de 19.06.2008, com a seguinte redação:

Art. 2º - Para os fins criminais de que trata o art. 306 da Lei nº 9.503, de 1997 - Código de Trânsito Brasileiro, a equivalência entre os distintos testes de alcoolemia é a seguinte: I - exame de sangue: concentração igual ou superior a seis decigramas de álcool por litro de sangue; ou II - teste em aparelho de ar alveolar pulmonar (etilômetro): concentração de álcool igual ou superior a três décimos de miligrama por litro de ar expelido dos pulmões.

A Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça238, em razão da nova redação

do artigo, vinha manifestando o entendimento de que seria indispensável o teste de

alcoolemia, ainda que esse estado pudesse ser aferido por outros elementos de

prova.

Já a jurisprudência da Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça 239 era no

sentido de ser dispensável o teste de alcoolemia para configurar o crime de

238

“Habeas Corpus. Trancamento da Ação Penal. Embriaguez ao volante. Ausência de exame de alcoolemia. Aferição da dosagem que deve ser superior a 6 (seis) decigramas. Necessidade. Elementar do tipo. 1. çã º 11.705⁄08 b v gu çã embriaguez ao volante, que o agente, sob a influência de álcool, expusesse a dano potencial a incolumidade de outrem. 2. Entretanto, com o advento da referida Lei, inseriu-se a quantidade mínima exigível e excluiu-se a necessidade de exposição de dano potencial, delimitando-se o meio de prova admissível, ou seja, a figura típica só se perfaz com a quantificação objetiva da concentração de álcool no sangue o que não se pode presumir. A dosagem etílica, portanto, passou a integrar o tipo penal que exige seja comprovadamente superior a 6 (seis) decigramas. 3. Essa comprovação, conforme o Decreto nº 6.488 de 19.6.08 pode ser feita por duas maneiras: exame de sangue ou teste em aparelho de ar alveolar pulmonar (etilômetro), este último também conhecido como bafômetro. 4. Cometeu-se um equívoco na edição da Lei. Isso não pode, por certo, ensejar do magistrado a correção das falhas estruturais com o objetivo de conferir-lhe efetividade. O Direito Penal rege-se, antes de tudo, pela estrita legalidade e tipicidade. 5. Assim, para comprovar a embriaguez, objetivamente delimitada pelo art. 306 do Código de Trânsito Brasileiro, é indispensável a prova técnica consubstanciada no teste do bafômetro ou no exame de sangue. 6. Ordem concedida.” (STJ − HC n. 166.377/SP, rel. Min. Og Fernandes).

239 Disponível em: <http://www.stj.jus.br/portal_stj/publicacao/engine.wsp ?tmp.area=398&tmp.texto=

102049>. Acesso em: 10 mar. 2014.

Page 137: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

137

embriaguez ao volante. A prova da embriaguez devia ser feita, preferencialmente,

por meio de perícia, mas ela poderia ser suprida pelo exame clínico e mesmo pela

prova testemunhal, em casos excepcionais. As exceções estão caracterizadas

quando o estado etílico é evidente e a própria conduta na direção do veículo

demonstra o perigo potencial à incolumidade pública.

O entendimento que prevaleceu foi o da Sexta Turma. De fato, decidiu a

Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça240 que a comprovação do estado de

embriaguez só poderia ser realizada pelos meios técnicos previstos no decreto

regulamentador.

Processual Penal. Provas. Averiguação do índice de alcoolemia em condutores de veículos. Vedação à autoincriminação. Determinação de elemento objetivo do tipo penal. Exame pericial. Prova que só pode ser realizada por meios técnicos adequados. Decreto regulamentador que prevê expressamente a metodologia de apuração do índice de concentração de álcool no sangue. Princípio da legalidade. 1. O entendimento adotado pelo Excelso Pretório, e encampado pela doutrina, reconhece que o indivíduo não pode ser compelido a colaborar com os referidos testes do “bafômetro” ou do exame de sangue, em respeito ao princípio segundo o qual ninguém é obrigado a se autoincriminar (nemo tenetur se detegere). Em todas essas situações prevaleceu, para o STF, o direito fundamental sobre a necessidade da persecução estatal. 2. Em nome de adequar-se a lei a outros fins ou propósitos não se pode cometer o equívoco de ferir os direitos fundamentais do cidadão, transformando-o em réu, em processo crime, impondo-lhe, desde logo, um constrangimento ilegal, em decorrência de uma inaceitável exigência não prevista em lei. 3. O tipo penal do art. 306 do Código de Trânsito Brasileiro é formado, entre outros, por um elemento objetivo, de natureza exata, que não permite a aplicação de critérios subjetivos de interpretação, qual seja, o índice de 6 decigramas de álcool por litro de sangue. 4. O grau de embriaguez é elementar objetiva do tipo, não configurando a conduta típica o exercício da atividade em qualquer outra concentração inferior àquela determinada pela lei, emanada do Congresso Nacional. 5. O decreto regulamentador, podendo elencar quaisquer meios de prova que considerasse hábeis à tipicidade da conduta, tratou especificamente de 2 (dois) exames por métodos técnicos e científicos que poderiam ser realizados em aparelhos homologados pelo CONTRAN, quais sejam, o exame de sangue e o etilômetro. 6. Não se pode perder de vista que numa democracia é vedado ao judiciário modificar o conteúdo e o sentido emprestados pelo legislador, ao elaborar a norma jurídica. Aliás, não é demais lembrar que não se inclui entre as tarefas do juiz, a de legislar. 7. Falece ao aplicador da norma jurídica o poder de fragilizar os alicerces jurídicos da sociedade, em absoluta desconformidade com o garantismo penal, que exerce missão essencial no estado democrático. Não é papel do intérprete-magistrado substituir a função do legislador, buscando, por meio

240

STJ − REsp n. 1.111.566/DF, 3ª Seção.

Page 138: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

138

da jurisdição, dar validade à norma que se mostra de pouca aplicação em razão da construção legislativa deficiente. 8. Os tribunais devem exercer o controle da legalidade e da constitucionalidade das leis, deixando ao legislativo a tarefa de legislar e de adequar as normas jurídicas às exigências da sociedade. Interpretações elásticas do preceito legal incriminador, efetivadas pelos juízes, ampliando-lhes o alcance, induvidosamente, violam o princípio da reserva legal, inscrito no art. 5º, inciso II, da Constituição de 1988: "ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei". 9. Recurso especial a que se nega provimento.

Ressalte-se que o Código de Trânsito Brasileiro previa, em seu artigo 277241,

que o condutor suspeito de dirigir sob influência de álcool seria submetido a testes

de alcoolemia para certificar o seu estado.

O Superior Tribunal de Justiça, todavia, entendeu que, não obstante a lei, o

indivíduo não poderia ser obrigado a se submeter aos testes de alcoolemia. Alguns

autores242 entendiam que o artigo 277, por estar inserido dentro do Capítulo XVII do

Código de Trânsito Brasileiro, que trata das medidas administrativas, somente

poderia ser aplicado para as infrações administrativas, mas não para os crimes de

trânsito.

A decisão do Superior Tribunal de Justiça proporcionou uma inusitada

situação: o condutor não pode ser submetido, contra a sua vontade, à realização do

exame de sangue ou ao teste do bafômetro; por outro lado, tal exame, indicando

com precisão a concentração sanguínea de álcool, é indispensável para a

configuração do delito.

Em virtude da decisão do Superior Tribunal de Justiça, foi dada nova redação

ao artigo 306 do Código de Trânsito Brasileiro, dada pela Lei n. 12.760/2012:

conduzir veículo automotor com capacidade psicomotora alterada em razão da

influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência. O

parágrafo 2º dispõe que a embriaguez poderá ser verificada mediante teste de

241

“Artigo 277 - Todo condutor de veículo automotor, envolvido em acidente de trânsito ou que for alvo de fiscalização de trânsito, sob suspeita de dirigir sob a influência de álcool será submetido a testes de alcoolemia, exames clínicos, perícia ou outro exame que, por meios técnicos ou científicos, em aparelhos homologados pelo CONTRAN, permitam certificar seu estado (redação dada pela Lei 11.275/2006).”

242 ZAGANELLI, Margareth Vetis; ALMEIDA, Robledo Moraes Peres de. Meios de prova de

embriaguez alcoólica do condutor de veículo automotor. Revista Jurídica da Presidência, Brasília, v. 14, n. 104, p. 798, out. 2012/jan. 2013.

Page 139: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

139

alcoolemia, exame clínico, perícia, vídeo, prova testemunhal ou outros meios de

prova em direito admitidos.

A solução adotada, a meu ver, foi a pior possível e está na contramão do

direito adotado nos demais países do mundo. Quatro modelos estão disponíveis

para resolver o problema da submissão aos testes de alcoolemia.

O primeiro é adotado em países como Estados Unidos e Alemanha e obriga o

condutor a realizar o exame. Na Alemanha, o condutor não é obrigado a realizar o

exame do bafômetro, pois nessa hipótese colaboraria ativamente com a acusação

para a realização da prova, o que é vedado pelo direito à não autoincriminação, mas

é obrigado a suportar de modo passivo que lhe seja retirada uma amostra de

sangue. Nos Estados Unidos, o direito à não autoincriminação restringe-se às

declarações verbais, o que não desonera o individuo de se submeter a quaisquer

testes que não envolvam essa modalidade de prova.

Há outros países, como a Espanha, que embora admitam em certas

hipóteses as intervenções corporais para a realização da prova, as subordinam ao

consentimento do indivíduo. Ocorre que, ao contrário do que ocorre no Brasil, há

previsão de sanção penal para o descumprimento da obrigação legal imposta.

O Código Penal espanhol impõe, em seu artigo 379.2243, a pena de prisão de

três a seis meses para o condutor que dirigir sob a influência de álcool acima de

determinados limites. A jurisprudência espanhola não admite, todavia, que o

condutor seja obrigado a realizar os testes de alcoolemia contra a sua vontade, uma

vez que não consta tal obrigatoriedade em lei. De fato, como leciona María Ángeles

243

“Artículo 379. 1. El que condujere un vehículo de motor o un ciclomotor a velocidad superior en sesenta kilómetros por hora en vía urbana o en ochenta kilómetros por hora en vía interurbana a la permitida reglamentariamente, será castigado con la pena de prisión de tres a seis meses o con la de multa de seis a doce meses o con la de trabajos en beneficio de la comunidad de treinta y uno a noventa días, y, en cualquier caso, con la de privación del derecho a conducir vehículos a motor y ciclomotores por tiempo superior a uno y hasta cuatro años. 2. Con las mismas penas será castigado el que condujere un vehículo de motor o ciclomotor bajo la influencia de drogas tóxicas, estupefacientes, sustancias psicotrópicas o de bebidas alcohólicas. En todo caso será condenado con dichas penas el que condujere con una tasa de alcohol en aire espirado superior a 0,60 miligramos por litro o con una tasa de alcohol en sangre superior a 1,2 gramos por litro.”

Page 140: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

140

Pérez Marín 244 , está totalmente proibida qualquer forma de força física ou

compulsória pessoal direta para obrigar o afetado a submeter-se, contra a sua

vontade, à prática de uma diligência de intervenção corporal, toda vez que no

ordenamento não haja previsão expressa nesse sentido.

Para não deixar impune o condutor, o artigo 383245 do Código Penal tipifica a

conduta do indivíduo que se recusa a se submeter aos testes de alcoolemia com

uma penalidade superior àquela prevista no artigo 379 – seis meses a um ano.

Temos então a seguinte situação: se alguém for flagrado dirigindo sob a influência

de determinada quantidade de álcool, será condenado a uma pena de prisão que

poderá variar de três a seis meses; caso o indivíduo se recuse a realizar o teste,

será condenado a uma penalidade que variará de seis meses a um ano246. Não

alberga assim o direito espanhol, nessa hipótese, o direito à não autoincriminação,

pois, como já esclarecido, não basta que certa conduta seja inexequível legalmente

para se configurar a proteção do direito, mas é necessário que o ordenamento não

comine nenhuma penalidade para tais condutas, o que não se observa no referido

ordenamento.

Semelhante procedimento foi sugerido, de lege ferenda, por Margareth Vetis

Zaganelli247. A autora aponta os problemas para a segurança do trânsito no Brasil

com a recusa dos condutores embriagados em realizar os testes de alcoolemia, sob

a alegação do seu direito individual de não produzir prova contra si.

Tal comportamento, entende, viola o Código de Trânsito Brasileiro de forma

expressa, pois o seu artigo 1º, parágrafo 2º, estabeleceu a segurança no trânsito

como um princípio e como um direito de toda a sociedade. Também haveria violação

244

PÉREZ MARÍN, María Ángeles, Inspecciones, registros e intervenciones corporales: las pruebas de ADN y otros métodos de investigación en el proceso penal, cit., p. 43.

245 “Artículo 383 - El conductor que, requerido por un agente de la autoridad, se negare a someterse a

las pruebas legalmente establecidas para la comprobación de las tasas de alcoholemia y la presencia de las drogas tóxicas, estupefacientes y sustancias psicotrópicas a que se refieren los artículos anteriores, será castigado con la pena de prisión de seis meses a un año y privación del derecho a conducir vehículos a motor y ciclomotores por tiempo superior a uno y hasta cuatro años.”

246 Ressalte-se que a STC 161/1997 entendeu ser constitucional o artigo 383 do Código Penal e, por

conseguinte, não afronta o direito de não se autoincriminar. 247

ZAGANELLI, Margareth Vetis; ALMEIDA, Robledo Moraes Peres de, Meios de prova de embriaguez alcoólica do condutor de veículo automotor, cit., p. 800-803.

Page 141: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

141

da Carta Magna, que consagrou no caput do artigo 5º a segurança como um direito

fundamental inviolável. Assim, assevera que:

O interesse público deve prevalecer sobre o direito individual. Em tese, a defesa do direito individual de não produzir prova contra si afrontaria o interesse público, quando o motorista embriagado se nega a realizar o exame do etilômetro. Isso porque essa conduta negativa irá contra o interesse público de punição e de repressão dos motoristas embriagados, os quais expõem a risco a incolumidade física e a saúde de outrem, prejudicando o direito de todos a um trânsito seguro. Dessa forma, na ponderação de qual bem jurídico deve predominar, conclui-se que o interesse público deverá prevalecer frente ao direito individual.

Em razão do exposto, sugere a inclusão de um parágrafo ao artigo 306 do

Código de Trânsito Brasileiro, estabelecendo que a recusa em realizar o teste do

etilômetro configuraria o crime de desobediência previsto no artigo 330 do Código

Penal. Finaliza argumentando que, embora a mudança possa ser questionada no

Supremo Tribunal Federal, o Brasil já possui precedente afirmando que o direito de

não produzir prova contra si não foi considerado absoluto, diante da edição da

Súmula 301 pelo Superior Tribunal de Justiça, dispondo que em “ação investigatória,

a recusa do suposto pai a submeter-se ao exame de DNA induz presunção juris

tantum de paternidade”.

O terceiro modelo é o adotado pela Itália. Dirigir embriagado na Itália sujeita o

condutor a três espécies de penalidade, dependendo da quantidade de álcool

ingerida. Comumente, as espécies de embriaguez são denominadas leve (taxa

superior a 0,5 g/l e inferior a 0,8 g/l); média (maior do que 0,8 g/l e menor do que 1,5

g/l); e grave (maior do que 1,5 g/l). As sanções previstas para as várias hipóteses

mencionadas são diferentes, em razão da gravidade da violação. O artigo 186 do

Codice della Strada, após o preceito geral contido no primeiro parágrafo − é ilegal

dirigir embriagado − identifica as sanções a serem aplicadas de acordo com o nível

alcoólico. A embriaguez grave, prevista na alínea “c” comina ao infrator pena de

prisão de seis meses a um ano. O parágrafo 7º248 dispõe acerca da recusa do

248

“7. Salvo che il fatto costituisca più grave reato, in caso di rifiuto dell’accertamento di cui ai commi 3, 4 o 5, il conducente è punito con le pene di cui al comma 2, lettera c). La condanna per il reato di cui al periodo che precede comporta la sanzione amministrativa accessoria della sospensione della patente di guida per un periodo da sei mesi a due anni e della confisca del veicolo con le stesse modalità e procedure previste dal comma 2, lettera c), salvo che il veicolo appartenga a persona estranea alla violazione. Con l’ordinanza con la quale è disposta la sospensione della patente, il prefetto ordina che il conducente si sottoponga a visita medica secondo le disposizioni del comma 8. Se il fatto è commesso da soggetto già condannato nei due anni precedenti per il medesimo reato, è sempre disposta la sanzione.”

Page 142: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

142

condutor em submeter-se aos testes de alcoolemia. Reza o dispositivo que caso o

condutor se recuse a fazer os exames referidos nos parágrafos 3, 4 ou 5, ser-lhe-á

aplicada a penalidade prevista na alínea “c”, ou seja, prisão de seis meses a um

ano. Dessa forma, ao condutor abrem-se duas possibilidades: ou ele realiza o teste

e o nível de álcool é obtido com exatidão, ou se recusa, sendo que nessa hipótese o

nível a ele atribuído será o máximo, sujeitando o infrator à mais grave consequência.

Dito de outro modo, a recusa em submeter-se à inspeção é punível por si só,

independentemente de o motorista apresentar, ou não, resultados positivos ao teste,

o que desestimula o descumprimento da obrigação.

O quarto modelo deixa ao arbítrio do julgador valorar a negativa de

cooperação. Ao contrário de se considerar, de maneira automática, determinado fato

como provado, deixa a cargo do juiz a sua valoração. O artigo 335 do Código de

Processo Civil dispõe que na “falta de normas jurídicas particulares, o juiz aplicará

as regras de experiência comum subministradas pela observação do que

ordinariamente acontece e ainda as regras da experiência técnica, ressalvado,

quanto a esta, o exame pericial”. Ora, é difícil imaginar uma razão, além da

embriaguez, para alguém se recusar a se submeter ao teste do etilômetro. Não é

crível que alguém, podendo provar que não está sob a influência do álcool, não

realize o exame por uma questão de princípios. Evidentemente a valoração da

negativa será considerada em conjunto com outros elementos comprobatórios,

como, por exemplo, os depoimentos colhidos etc., para a motivação da sentença.

O Supremo Tribunal Federal, todavia, não aceita que qualquer inferência

possa ser realizada pela simples não participação do indivíduo em determinado

exame. Com efeito, no julgamento do Habeas Corpus n. 93.916-3, a Ministra

Carmen Lúcia asseverou que não se pode presumir que o paciente estaria

alcoolizado pela mera recusa de submissão ao exame de dosagem alcoólica.

Argumenta que a Constituição da República “impede que se extraia qualquer

conclusão desfavorável àquele que, suspeito ou acusado de praticar alguma

infração penal, exerce o direito de não produzir prova contra si mesmo”.

Page 143: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

143

Poder-se-ia argumentar que não se está meramente presumindo a

embriaguez, uma vez que foi colocado à disposição do paciente um meio para

comprovar o nível alcoólico. Imagine-se a hipótese, muito frequente vale frisar, do

condutor que é parado pela autoridade em aparente estado de embriaguez. A

autoridade conclui, pelas circunstâncias fáticas – modo de dirigir, falar, andar, etc. −,

que o condutor está embriagado e solicita que ele realize o teste do etilômetro. Não

se está invertendo o ônus da prova para exigir que o indivíduo prove a sua

inocência, mas apenas permitindo que ele afaste a conclusão da autoridade nesse

sentido.

O Tribunal Constitucional da Espanha e a Corte Constitucional italiana, ao

analisarem hipóteses de intervenção corporal, indicaram em seus acórdãos a

necessidade de previsão legal para legitimá-las. Assim, não obstante em seus

julgados tenham afastado a legalidade, no caso concreto, da prova obtida mediante

procedimento de intervenção corporal, sinalizaram a sua constitucionalidade, desde

que a medida seja prevista em lei. De fato, a Corte italiana 249 decidiu que as

medidas de intervenção corporal realizadas coativamente devem ser previstas pelo

legislador, que deverá estabelecer os pressupostos e limites para a sua adoção, não

sendo possível deixá-las a cargo da discricionariedade do juiz. A decisão, contudo,

deixou claro que o procedimento de intervenção corporal – a hipótese referia-se à

coleta de sangue – não comprometia a integridade física ou a dignidade do

indivíduo.

A decisão do Superior Tribunal de Justiça, ao contrário, considerou

inconstitucional o teste do bafômetro ou exame de sangue, uma vez que nessas

situações deveria prevalecer o direito fundamental sobre a necessidade de

persecução estatal, não abrindo espaço para qualquer regulamentação legal sobre a

matéria, vale dizer, as medidas são inconstitucionais de maneira absoluta,

independentemente de serem ou não previstas em lei.

249

Sentenza 238/96 (Disponível em: <http://cortecostituzionale.it>. Acesso em: 16 fev. 2014).

Page 144: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

144

Destarte, de todas as soluções possíveis, a nossa jurisprudência,

infelizmente, ao contrário do observado na legislação dos demais países, vários

deles de muito maior tradição democrática e respeito aos direitos fundamentais do

que a nossa, adotou aquela que, além de ser incapaz de prevenir os delitos, é a

tecnicamente mais deficiente.

Com a nova redação do artigo 306 do Código de Trânsito Brasileiro, a

constatação da embriaguez poderá ser realizada mediante sinais que indiquem, na

forma disciplinada pelo Contran, alteração da capacidade psicomotora. Entre os

meios para a aferição constam o teste de alcoolemia, exame clínico, perícia, vídeo,

prova testemunhal ou outros meios de prova em direito admitidos, observado o

direito à contraprova.

Ocorre que em face da jurisprudência são proibidos o exame de sangue, o

bafômetro e quaisquer outros testes que dependam da colaboração ativa do

indivíduo. Assim, sequer o exame clínico poderá ser realizado em sua integralidade,

uma vez que dependerá da colaboração do paciente, de forma que o estado de

embriaguez será comprovado basicamente por provas testemunhais que, como é

cediço, são extremamente subjetivas e imprecisas, além de serem imprestáveis para

aferir estados alcoólicos leves e moderados.

Um outro aspecto que merece ser ressaltado é o risco de serem tratadas de

maneira idêntica situações que deveriam ter tratamento distinto. Ao vedar o teste do

bafômetro e o exame de sangue, torna-se impossível graduar a maior ou menor

severidade da conduta, uma vez que evidentemente estados leves de embriaguez

não podem ser penalizados como os mais graves. Melhor solução, de lege ferenda,

seria a adotada pela legislação italiana, que além de estabelecer três níveis de

alcoolismo, oferece meios para a sua aferição, ou seja, para conferir efetividade à

lei.

Não entendemos, pelo exposto, ter havido falha legislativa na antiga redação

do artigo 306 do Código de Trânsito Brasileiro. A inovação foi muito bem-vinda e,

Page 145: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

145

reforce-se, teve o intuito de tentar eliminar o exame clínico, procedimento precário e

impreciso para a aferição do estado de embriaguez. A revogada legislação não mais

fazia depender a comprovação do delito do relato de testemunhas, cujas opiniões

não passam de um mero achar – o motorista parecia alcoolizado −, mas ter-se-ia a

certeza do nível de embriaguez e, por conseguinte, do grau de culpabilidade do

indivíduo.

Page 146: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

146

7 DESEQUILÍBRIO NA BALANÇA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

7.1 Autoridade e autoritarismo

Hanna Arendt250 afirma haver uma crise de autoridade no mundo moderno.

Embora a crise seja política em sua origem e natureza, ela se espalhou em outras

áreas, como a criação dos filhos e a educação, na qual a autoridade sempre foi

aceita como uma necessidade natural. Esclarece a autora que a autoridade

comumente é confundida com alguma forma de poder ou violência, uma vez que

sempre exige obediência, contudo, quando a força necessita ser usada, a autoridade

já teria fracassado. Também a autoridade não se confunde com a persuasão, que

pressupõe igualdade e utiliza um processo de argumentação. A autoridade, ao

contrário, é sempre hierárquica:

A relação autoritária entre o que manda e o que obedece não se assenta nem na razão comum nem no poder do que manda; o que eles possuem em comum é a própria hierarquia, cujo direito e legitimidade ambos reconhecem e na qual ambos têm seu lugar estável predeterminado.

A autora critica o pensamento liberal, por menosprezar a diferença de

princípio entre a restrição da liberdade em regimes autoritários e a abolição da

liberdade política em tiranias e ditaduras251. Observa que o pensamento liberal dá

pouca importância a essa distinção devido à sua convicção de que todo poder

corrompe e de que a constância do progresso requer permanente perda de poder,

não importa qual possa ser sua origem. Arremata com a constatação de que tal

pensamento liberal tende a igualar o totalitarismo com o autoritarismo e a identificar

tendências totalitárias em toda e qualquer limitação autoritária.

250

ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. Tradução de Mauro W. Barbosa de Almeida. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 1992. p. 129.

251 Aqui uma explicação se faz necessária. Hanna Arendt estabelece, a princípio, a diferença entre

totalitarismo, tirania e autoritarismo. Essa diferenciação é importante, pois os termos não são unívocos e hoje em dia normalmente costumamos associar o governo autoritário àquele que é mantido pela força e no qual as liberdades são suprimidas ou severamente diminuídas. Para a autora, o que diferencia a tirania do governo autoritário é o fato de que “o tirano governa de acordo com seu próprio arbítrio e interesse, ao passo que mesmo o mais draconiano governo autoritário é limitado por leis”. Em contraposição, tanto aos regimes tirânicos como aos autoritários, os governos totalitários possuem um líder e o que quer que ele faça − integre ele o organismo político como em uma hierarquia autoritária, ou oprima seus súditos como um tirano −, ele o faz de dentro do sistema, e não de fora ou de cima (ARENDT, Hannah, op. cit., p. 134).

Page 147: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

147

Essa é a meu ver uma das razões para a exacerbação de alguns direitos

fundamentais no processo penal. Qualquer limitação é vista como uma volta ao

passado e ninguém quer estar associado ao regime ditatorial que vigorou por um

longo período.

Em 1983, o país mobilizou-se exigindo eleições diretas – diretas já – sem

contudo alcançar o objetivo almejado, tendo em visa a rejeição da denominada

emenda Dante de Oliveira. Embora o objetivo não tenha sido atingido, tal movimento

teve grande importância na redemocratização nacional.

O esforço de reconstrução da democracia no Brasil ganhou impulso após o

fim da ditadura militar em 1985. A sociedade, desarticulada pelo regime militar,

começou lentamente a reorganizar-se após um período de 21 anos que foi

caracterizado pela ausência quase que total de direitos.

O processo culminou com a aprovação de uma nova Constituição, a

Constituição cidadã, e com a realização de eleições diretas para presidente da

República em 1989. O Brasil atravessava um período de estagnação econômica,

com altos índices de inflação e desemprego. Também caracterizava o período uma

grande influência dos movimentos sociais, que reivindicavam uma maior

participação na vida politica.

Nesse cenário, foi promulgada a Constituição de 1988 que, evidentemente,

tentou romper com as práticas de violência que caracterizaram o regime antecessor.

Ulysses Guimarães fez questão de assinalar que a Constituição era um marco de

repúdio e ruptura à ditadura que então se encerrava. Entre as suas prioridades, além

do fortalecimento da democracia e redução das desigualdades sociais, estava, sem

sombra de dúvida, a criação de mecanismos para garantir-se a liberdade dos

indivíduos que fora tão menosprezada no regime ditatorial.

A localização dos direitos fundamentais, logo após os princípios fundamentais

e antes das normas que dispõem sobre a organização do Estado, já denota a

extrema importância que lhes foi conferida pelo constituinte.

Page 148: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

148

Destarte, é inegável a importância dos direitos e garantias previstos na Carta

Magna, pois constituem limites jurídicos ao poder do Estado. Assim, se em um

primeiro momento era necessário a sua afirmação, para consolidar os avanços que

foram objeto de tão árdua luta, forçoso reconhecer que a situação atual do país é

outra, com a consolidação das instituições e da democracia.

Marcelo Schirmer Albuquerque252 anota que parecem incorrer em equívoco os

que partem da premissa metodológica de que o moderno processo penal é ainda

essencialmente idealizado como meio de proteção do cidadão frente a um Estado

opressor. Evidentemente, em algum momento da história, havia o arbítrio punitivo de

um direito penal, entretanto, ao menos da perspectiva do direito penal, isso é

passado. O direito penal, na ordem vigente, prossegue, “não deve ser visto como o

grande inimigo da liberdade, mas como responsável pela missão ímpar de proteger

bens jurídicos mais importantes contra as agressões mais intensas, em que pesem

as desvirtuações práticas”.

Por isso, a afirmação253 de que “as garantias constitucionais, a blindar o

indivíduo diante do Estado, asseguram ao Brasil uma condição mínima de

respeitabilidade nos sistemas regional e global de proteção dos direitos humanos”

deve ser entendida em seus devidos termos.

Alexandre de Moraes254 destaca que os direitos e garantias fundamentais não

podem ser utilizados como um verdadeiro escudo protetivo da prática de atividades

ilícitas, nem tampouco como argumento para o afastamento ou diminuição da

responsabilidade civil ou penal por atos criminosos.

No mesmo sentido, o Supremo Tribunal asseverou que um direito individual

não pode constituir-se em salvaguarda de condutas ilícitas.255

252

ALBUQUERQUE, Marcelo Schirmer, A garantia de não auto-incriminação: extensão e limites, cit., p. 7.

253 MAHMOUD, Mohamad Ale Hasan; MOURA, Maria Thereza Rocha de Assis. A Lei 12.654/2012 e

os direitos humanos. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 20, n. 98, p. 339, set./out. 2012. 254

MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 19. ed. atual. até a EC n. 48/2005. São Paulo: Atlas, 2006. p. 27.

255 ST − HC n. 82.424/RS, rel. para o acórdão Min. Maurício Corrêa.

Page 149: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

149

7.2 Absolutização de direitos fundamentais

Segue que, embora as garantias constitucionais destinem-se a proteger o

indivíduo contra as arbitrariedades cometidas pelo Estado, não chegam ao extremo

de blindá-lo, mesmo porque tais liberdades foram idealizadas para proporcionar-lhe

dignidade em sua vida, dignidade que não será atingida sem justiça, dignidade que

não será alcançada se aqueles que porventura cometerem atos criminosos

permanecerem impunes, ou seja, a proteção do Estado deve ser efetiva.

De fato, conforme preleciona Ingo Sarlet: 256

O Estado − também na esfera penal − poderá frustrar o seu dever de proteção atuando de modo insuficiente (isto é, ficando aquém dos níveis mínimos de proteção constitucionalmente exigidos) ou mesmo deixando de atuar, hipótese por sua vez, vinculada (pelo menos em boa parte) à problemática das omissões inconstitucionais. É nesse sentido que – como contraponto à assim designada proibição de excesso – expressiva doutrina e inclusive jurisprudência têm admitido a existência daquilo que se convencionou batizar de proibição de insuficiência (no sentido de insuficiente implementação dos deveres de proteção do Estado e como tradução livre do alemão Untermassverbot).

O Estado de Direito não protege apenas

[...] o indivíduo de uma repressão desmesurada do Estado, mas protege igualmente a sociedade e os seus membros dos abusos do indivíduo. Estes são os dois componentes do direito penal: a) o correspondente ao Estado de Direito e protetor da liberdade individual; b) e o correspondente ao Estado Social e preservador do interesse social mesmo à custa da liberdade do indivíduo.

257

As liberdades públicas não podem, dessa forma, ser entendidas em sentido

absoluto, em face da natural restrição resultante do princípio de convivência das

liberdades, pelo qual nenhuma delas pode ser exercida de modo danoso à ordem

pública e às liberdades alheias.258

256

SARLET, Ingo Wolfgang. Constituição e proporcionalidade: o direito penal e os direitos fundamentais entre proibição de excesso e de insuficiência. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, Revista dos Tribunais; Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim), v. 12, n. 47, p. 103-104, mar./abr. 2004.

257 STRECK, Lenio Luiz. O dever de proteção do Estado (Schutzpflicht). Jus Navigandi, Teresina, ano

13, n. 1.840, 15 jul. 2008. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/11493/o-dever-de-protecao-do-estado-schutzpflicht>. Acesso em: 12 jul. 2014.

258 GRINOVER, Ada Pellegrini. Liberdades públicas e processo penal: as interceptações telefônicas.

2. ed. atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1982. p. 251.

Page 150: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

150

O processo deve sempre cumprir as finalidades institucionais para as quais foi

instituído e que encontram a sua maior expressão na exigência de fazer justiça. “E

fazer justiça por meio do processo não significa apenas absolver quem deve ser

absolvido, mas também condenar quem deve ser condenado” 259 , o que não

ocorrerá, ou ao menos não na proporção desejada, se o indivíduo estiver blindado

pelo sistema.

As garantias processuais não devem ser vistas, por conseguinte, como meros

instrumentos colocados a serviço do investigado ou réu, mas possuem a missão de

propiciar o correto exercício da jurisdição.260

Isso não significa uma perda da importância do direito à não

autoincriminação, mas apenas uma adequação do discurso aos novos tempos.

Muitos dos direitos fundamentais previstos na Constituição são contrapostos e a

maior aplicação de um importa na diminuição do outro que lhe faz oposição. Não há

como negar que liberdade e a igualdade são dois direitos essenciais em nosso

Estado democrático. Conquanto estejam unidos em perfeita lógica, não sendo

imaginável o Estado sem a presença de ambos, não se pode negar a contradição

entre eles. De fato, a liberdade implica, em um primeiro momento, a ausência de

restrições ao indivíduo para o seu mais completo desenvolvimento. Ocorre que uma

liberdade sem limites não interessa ao Estado preocupado em promover a

igualdade, por exemplo, tributando os mais ricos – restrição da liberdade – e

transferindo a renda assim obtida aos mais necessitados. Destarte, de acordo com o

estágio de desenvolvimento da sociedade, um dos direitos receberá maior atenção,

em detrimento do outro. Em sociedades mais desenvolvidas261 poderá haver uma

prevalência da liberdade, ao passo que em sociedades em desenvolvimento, maior

atenção será dispensada à igualdade. O mesmo ocorre com o direito à não

autoincriminação, vale dizer, a exacerbação do seu conteúdo importa na diminuição

dos meios de prova colocados à disposição das autoridades para a solução dos

delitos.

259

COUCEIRO, João Cláudio. A garantia constitucional do direito ao silêncio. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 365.

260 CHOUKE, Fauzi Hassan. Garantias constitucionais na investigação criminal. São Paulo: Revista

dos Tribunais, 1995. p. 31. 261

John Rawls, por exemplo, fiel à tradição liberal, considerava o princípio da liberdade superior e anterior ao da igualdade (RAWLS, John. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

Page 151: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

151

No julgamento do Recurso Especial n. 1.111.566262, o ministro Marco Aurélio

Bellizze, relator vencido, observou que o apanhado da doutrina e jurisprudência

indica que o direito à não autoincriminação alcançou, no Brasil, dimensão, extensão

e prestígio jamais verificados nos sistemas judiciais com tradição de respeito à

dignidade da pessoa humana e ao devido processo legal. Em suma, concluiu que o

que nos países que dispõem de avançados sistemas jurídicos é relativo, aqui é

absoluto.

Essa absolutização dos direitos em matérias atinentes ao processo penal não

se restringe apenas ao direito à não autoincriminação. Em todas as hipóteses de

hipertrofia dos direitos, prevalece a mesma aparente lógica, proteger o indivíduo

contra um Estado opressor. Difunde-se a noção que autoridade e liberdade são

conceitos de impossível convivência e não se leva em consideração que a tutela

penal dos direitos fundamentais também constitui um direito fundamental –

autônomo − que confere aos cidadãos o direito de exigir que o Estado faça atuar o

direito penal para combater os crimes. Nesse sentido, afirma Eugênio Pacelli de

Oliveira263 que a:

[...] constituição realinha o Estado brasileiro para a proteção dos direitos fundamentais, exatamente porque positivados constitucionalmente; ao lado deles estabelece inúmeras garantias processuais e procedimentais, todas destinadas à efetivação judicial (quando necessária) daqueles direitos. E uma dessas garantias é a tutela penal dos direitos fundamentais, consoante se deve extrair da norma prevista no artigo 5º, LIX, da Constituição Federal.

Não mais se deseja a volta do regime ditatorial que tantos males causou à

nação, tendo entre as suas vítimas a própria presidente de nossa República. Sucede

que não pode o Estado, com receio de tal retrocesso, deixar impunes graves

violações aos direitos que ocorrem diariamente em nosso meio. Há uma crise de

autoridade que é facilmente perceptível nas depredações recentes de agências

bancárias, concessionárias de veículo, ônibus etc., que ocorreram durante as

manifestações iniciadas pelo movimento do passe livre, na relutância para o

cumprimento de ordens judiciais, entre tantos outros exemplos.264

262

STJ − REsp n. 1.111.566, rel. Min. Marco Aurélio Bellizze. 263

OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Regimes constitucionais da liberdade provisória. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p. 12.

264Disponível em: <http://oglobo.globo.com/brasil/ministro-diz-ter-cometido-equivoco-ao-dizer-que-

dilma-criticou-cumprimento-de-ordem-judicial-8594050>. Acesso em: 15 maio 2014.

Page 152: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

152

Nessa lógica de superproteção do indivíduo em face do Estado, é relegado a

um segundo plano um de seus objetivos fundamentais, a construção de uma

sociedade justa (art. 3º, inc. I, da CF).

Esse fenômeno de absolutização não ocorreu, como afirmado, apenas no que

tange ao direito à não autoincriminação. Dois exemplos demonstram o alegado.

O primeiro diz respeito ao princípio da presunção de inocência ou de não

culpabilidade. No Brasil não se mostra suficiente para afastar tal presunção a

confissão do acusado seguida por condenação pelo Tribunal do Júri, condenação

confirmada pelo Tribunal de Justiça e ratificada pelo Superior Tribunal de Justiça.

No dia 20 de agosto de 2000, Pimenta Neves matou com dois tiros Sandra

Gomide em Ibiúna. Pimenta Neves confessou o crime e foi condenado, em 2006, a

19 anos de reclusão (pena reduzida para 18 anos e depois para 15 anos). O caso

tramitou lentamente, levando seis anos para ser julgado, tendo a defesa de Pimenta

Neves ingressado, entre outros, com cinco embargos de declaração, recurso contra

a sentença de pronúncia, recurso especial no Superior Tribunal de Justiça e recurso

extraordinário no Supremo Tribunal Federal (contra a decisão que confirmou a

pronúncia), os quais não foram admitidos pelo Tribunal paulista, o que resultou em

mais dois agravos de instrumento. Em 13 de dezembro de 2006, o Tribunal de

Justiça de São Paulo confirmou a condenação e determinou a prisão do jornalista,

até que, no dia 16 de dezembro, a ministra Maria Thereza de Assis Moura, do

Superior Tribunal de Justiça, concedeu-lhe novo habeas corpus, com fundamento na

presunção da inocência. Um habeas corpus já lhe havia sido concedido em 23 de

março de 2001 pelo ministro Celso de Mello. Após a confirmação da condenação

pelo Tribunal de Justiça, o processo entrou em novo cipoal de recursos, especial,

extraordinário, embargos, agravos regimentais, agravos de instrumentos, enfim, todo

o arsenal que a legislação processual brasileira oferece para retardar o trânsito em

julgado e consequente cumprimento da sentença. Não dá aqui para enumerar todos

os recursos ajuizados, mas apenas citaremos um, para demonstrar a situação: em

2009, estava pendente de julgamento no Supremo Tribunal Federal o recurso EDCL

no AGRG nos ERESP − embargos declaratórios no agravo regimental nos embargos

do recurso especial.

Page 153: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

153

Em 24 de maio de 2011, os ministros da 2ª Turma do Supremo Tribunal

Federal finalmente determinaram o início de cumprimento da pena anteriormente

imposta.

Fácil perceber, pois, que no Brasil, o princípio da presunção de inocência, da

forma como interpretado pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do Habeas

Corpus n. 84.078, impede o início do cumprimento da pena antes de se esgotarem

todas as instância recursais, situação não observada na legislação dos demais

países.

Argumenta-se que a interpretação do princípio da presunção de inocência e

do direito à não autoincriminação, do modo como realizada pelo Supremo Tribunal

Federal, estaria respaldada pelo Pacto de São José da Costa Rica265. Ocorre que o

referido diploma legal não confere tal extensão a nenhum dos direitos em análise.

Vejamos os artigos invocados para sustentar a alegado.

No que se refere ao direito à não autoincriminação, o artigo invocado é o

artigo 8, 2, “g”, que afirma que toda a pessoa tem o direito de não ser obrigada a

depor contra si mesma, nem a confessar-se culpada. Fácil perceber que não há

qualquer menção, por exemplo, ao etilômetro ou qualquer outro tipo de perícia ou

teste invasivo, o que demonstra que a alusão ao Pacto de São José da Costa Rica

não passa de mera figura retórica. Nesse sentido, José Barcelos de Souza assevera

que a proteção conferida pelo Pacto de São José da Costa Rica refere-se

primordialmente às declarações verbais.266

Tanto é verdade que vários países signatários do Pacto de São José da

Costa Rica aprovaram leis impondo a obrigatoriedade de o indivíduo sujeitar-se a

determinados testes e perícias, que no Brasil não são permitidos, por serem

supostamente contrários ao referido Pacto. Na Argentina, o réu, embora sujeito de

direitos, e não mero objeto de processo, deve se submeter a determinadas

265

GOMES FILHO, Antônio Magalhães. O princípio da presunção de inocência na Constituição de 1988 e na Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica). Revista do Advogado, n. 42, p. 30, abr. 1994.

266 SOUZA, José Barcelos de. Bafômetro, intervenções corporais e direitos fundamentais. In: SOUZA,

José Barcelos. Recursos, artigos e outros escritos: doutrina e prática civil e criminal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. p. 148.

Page 154: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

154

ingerências corporais com finalidades probatórias, como determina o artigo 218 do

Código de Processo Penal, permitindo ainda a lei que o indivíduo recalcitrante seja

conduzido coercitivamente para a sua realização:

Art. 218 - Quando for necessário, o juiz poderá proceder ao exame físico e mental do acusado, garantindo, sempre que possível, que o seu pudor seja respeitado. Idêntica medida pode ser realizada sobre outra pessoa, com a mesma limitação, em casos de suspeita séria e razoável ou necessidade absoluta. Se necessário, a inspeção pode ser realizada com a ajuda de especialistas. Do evento só poderá participar a defesa ou uma pessoa de sua confiança, que deve ser informado do direito. Art. 218 bis. O juiz pode ordenar a produção de ácido desoxirribonucleico (DNA), do réu ou de outra pessoa, sempre que necessário, para identificação ou para a verificação das circunstâncias relevantes para a investigação. A medida deve ser realizada por ordem expressa e fundamentada, na qual, sob pena de nulidade, constarão as razões para a sua necessidade, razoabilidade e proporcionalidade. Para a realização dos testes serão admissíveis mínimas extrações de sangue, saliva, pele, cabelo ou outras amostras biológicas, a serem realizadas sob as regras do conhecimento médico, quando não houver perigo à integridade física da pessoa. A perícia deve ser realizada da forma menos prejudicial para a pessoa e sem afetar a sua intimidade, especialmente levando-se em consideração seu gênero e outras circunstâncias especiais. O uso de poderes coercitivos sobre o afetado pela medida, em caso algum, pode exceder o estritamente necessário para a sua realização. Se o juiz julgar conveniente, e sempre que possível, poderá ordenar a produção de ácido desoxirribonucleico (DNA) por meios diferentes da inspeção corporal, tais como sequestro de objetos que contenham células já destacado o corpo, o que pode ser feito por meio de medidas como a busca domiciliar ou pessoal. Além disso, quando em um delito de ação pública deva ser obtido o DNA da suposta vítima do delito, a medida ordenada será feita considerando tal condição, a fim de evitar a revitimização e proteger dos seus direitos específicos Para esse fim, se a vítima se opuser à execução das medidas referidas no segundo parágrafo, o juiz procederá conforme indicado no quarto parágrafo.

267

267

N g “Art. 218 - Cuando lo juzgue necesario, el juez podrá proceder a la inspección corporal y mental del imputado, cuidando que en lo posible se respete su pudor. Podrá disponer igual medida respecto de otra persona, con la misma limitación, en los casos de grave y fundada sospecha o de absoluta necesidad. En caso necesario, la inspección podrá practicarse con el auxilio de peritos. Al acto sólo podrá asistir el defensor o una persona de confianza del examinado, quien será advertido previamente de tal derecho. Art. 218 bis - Obtención de ácido desoxirribonucleico (ADN). El juez podrá ordenar la obtención de ácido desoxirribonucleico (ADN), del imputado o de otra persona, cuando ello fuere necesario para su identificación o para la constatación de circunstancias de importancia para la investigación. La medida deberá ser dictada por auto fundado donde se expresen, bajo pena de nulidad, los motivos que justifiquen su necesidad, razonabilidad y proporcionalidad en el caso concreto. Para tales fines, serán admisibles mínimas extracciones de sangre, saliva, piel, cabello u otras muestras biológicas, a efectuarse según las reglas del saber médico, cuando no fuere de temer perjuicio alguno para la integridad física de la persona sobre la que deba efectuarse la medida, según la experiencia común y la opinión del experto a cargo de la intervención. La misma será practicada del modo menos lesivo para la persona y sin afectar su pudor, teniendo especialmente en consideración su género y otras circunstancias particulares. El uso de las facultades coercitivas sobre el afectado por la medida en ningún caso podrá exceder el estrictamente necesario para su realización. Si el juez lo estimare conveniente, y siempre que sea

Page 155: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

155

No Chile, o artigo 197268 do Código de Processo Penal admite a realização de

exames corporais relevantes para a investigação, não podendo o indivíduo recusar-

se, desde que autorizados judicialmente.

Observe-se que se, de fato, tais exames contrariassem o Pacto de São José

da Costa Rica, por certo haveria pronunciamento da Corte Interamericana de

Direitos Humanos nesse sentido, o que não ocorreu.

No que diz respeito ao princípio da presunção de inocência, o artigo 8, 2, do

Pacto de São José da Costa Rica dispõe que toda pessoa acusada de um delito tem

direito a que se presuma sua inocência, enquanto não for legalmente comprovada

u u . í “ ” qu trata do direito de recorrer, dispõe que toda pessoa tem

o direito de recorrer da sentença a juiz ou tribunal superior. Não diz, entretanto, que

necessariamente deva recorrer em liberdade.

No julgamento do Recurso em Habeas Corpus n. 75.917/RS, o ministro

Maurício Corrêa asseverou que a ordem de prisão decretada antes do trânsito em

julgado não ofende o Pacto de São José da Costa Rica:

Recurso de Habeas Corpus. Falsidade ideológica (art. 299, parágrafo único, do CP). Sentença condenatória não transitada em julgado. Liberdade provisória. Fiança. Condenação anterior por crime culposo. Sursis. 1. A ordem de prisão decorrente de decisão condenatória proferida por juiz competente não configura constrangimento ilegal ou abuso de poder. Consoante reiterado entendimento do Supremo Tribunal Federal, a

posible alcanzar igual certeza con el resultado de la medida, podrá ordenar la obtención de ácido desoxirribonucleico (ADN) por medios distintos a la inspección corporal, como el secuestro de objetos que contengan células ya desprendidas del cuerpo, para lo cual podrán ordenarse medidas como el registro domiciliario o la requisa personal. Asimismo, cuando en un delito de acción pública se deba obtener ácido desoxirribonucleico (ADN) de la presunta víctima del delito, la medida ordenada se practicará teniendo en cuenta tal condición, a fin de evitar su revictimización y resguardar los derechos específicos que tiene. A tal efecto, si la víctima se opusiera a la realización de las medidas indicadas en el segundo párrafo, el juez procederá del modo indicado en el cuarto párrafo.” (Nossa tradução).

268 “Art. 197 - Exámenes corporales. Si fuere necesario para constatar circunstancias relevantes para

la investigación, podrán efectuarse exámenes corporales del imputado o del ofendido por el hecho punible, tales como pruebas de carácter biológico, extracciones de sangre u otros análogos, siempre que no fuere de temer menoscabo para la salud o dignidad del interesado. Si la persona que ha de ser objeto del examen, apercibida de sus derechos, consintiere en hacerlo, el fiscal o la policía ordenará que se practique sin más trámite. En caso de negarse, se solicitará la correspondiente autorización judicial, exponiéndose al juez las razones del rechazo. El juez de garantía autorizará la práctica de la diligencia siempre que se cumplieren las condiciones señaladas en el inciso primero.”

Page 156: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

156

determinação para expedição de mandado de prisão não conflita com o princípio constitucional da presunção de inocência (art. 5º, LVII) nem com a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica).

É certo que esse entendimento do Supremo Tribunal Federal foi superado no

julgamento do Habeas Corpus n. 84.078/MG. Por sete votos a quatro, o Plenário do

Supremo Tribunal Federal concedeu, no dia 05.02.2009, o referido habeas corpus,

para permitir que um réu já condenado à pena de sete anos e seis meses de

reclusão, em regime inicialmente fechado, recorresse dessa condenação, aos

tribunais superiores, em liberdade.

Observe-se que a decisão foi tomada por maioria, e não por unanimidade. A

ministra Ellen Gracie, vencida, entendeu ser:

[...] equivocado afirmar que o inciso LVII do art. 5º da Constituição Federal exige o esgotamento de toda a extensa gama recursal, para que só então, se dê consequência a sentença condenatória. [...] Mesmo em países em que a legislação não é tão generosa em permitir a recorribilidade procrastinatória como acontece no Brasil, mas cuja tradição democrática é reconhecida (Reino Unido), a regra é de que o réu se recolha à prisão a partir da sentença condenatória de primeira instância. Aguardar, como se pretende, que a prisão só ocorra após o trânsito em julgado é algo inconcebível.

Pelo exposto, é evidente que o início do cumprimento da pena antes do

trânsito em julgado não afronta, nem de maneira remota, o Pacto de São José da

Costa Rica. A mudança de entendimento do Supremo deve ser fundamentada

exclusivamente na nossa Constituição, muito embora quatro ministros tenham

entendido que esse cumprimento antecipado nem a nossa própria Constituição

afrontava. Entender que o Pacto de São José da Costa Rica exige que todas as

instâncias sejam percorridas antes do início do cumprimento da pena é jogar na

ilegalidade os demais países signatários do Pacto, haja vista que nenhum deles

confere tal amplitude ao direito.

O segundo exemplo refere-se à possibilidade de acesso irrestrito aos autos

de inquéritos policiais em andamento. A matéria foi objeto de Súmula Vinculante, a

de número 14, que tem a seguinte redação:

Page 157: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

157

É direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa.

Considerando que todos os z qu ã “ u ”,

o intimado para prestar algum esclarecimento e o investigado, que sequer indiciado

foi, terão o direito de conhecer a linha investigativa adotada pela polícia, os fatos já

descobertos etc., o que em última análise irá prejudicar a investigação que está

sendo levada a efeito. Não se estaria, postergando-se a vista dos autos do inquérito,

obstaculizando a ampla defesa, pois ela será exercida em sua plenitude na fase

processual, uma vez que não há que se falar em contraditório no inquérito policial.

Observe-se que o investigado que não tem acesso imediato aos autos do inquérito

pode permanecer calado – não haveria assim um prejuízo irremediável −, ao passo

que dar ciência a todas as pessoas do rumo da investigação provavelmente a

inviabilizará.

Mais uma vez os direitos dos investigados são colocados em patamar

superior aos defendidos pelo Estado, como se este não fosse o responsável pela

defesa de toda a sociedade. A súmula é tão ampla que sequer usa as palavras

investigado, indiciado ou réu, corriqueiras no processo penal, mas a palavra

representado que, em tese, pode abarcar qualquer indivíduo, mesmo as

testemunhas. Observe-se que em todas as situações mencionadas, distancia-se do

ponto de equilíbrio desejável, ponto no qual a balança permanece em repouso e no

qual coabitam o respeito aos direitos fundamentais e as necessidades de proteção

do corpo social.

A legislação alemã, a título ilustrativo, admite o acesso aos autos do inquérito,

desde que isso não coloque em risco a investigação nem viole os direitos de

terceiros. Uma vez terminada a investigação, o acesso será total, antes disso

apenas se não colocar em risco a finalidade da investigação.269

269

“S çã 147 (1) O advogado de defesa terá autoridade para inspecionar os arquivos que estão disponíveis para o tribunal ou que a ele serão remetidos, se a acusação for apresentada, bem como para inspecionar as evidências. (2) Se as investigações ainda não foram concluídas, o acesso do advogado de defesa aos arquivos pode ser restringido, bem como podem ser proibidos o exame do processo ou de partes individuais dos arquivos e a inspeção de evidências oficialmente apreendidas, na medida que tais providências possam prejudicar a finalidade da investigação. Se os pré-requisitos da sentença inicial foram cumpridos e se o acusado estiver em prisão preventiva ou

Page 158: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

158

A história mostra que durante longos períodos de tempo poucas mudanças

parecem ocorrer. Então, graves erros humanos, como o holocausto, por exemplo, de

repente acontecem. Os Estados reconhecem o erro e respondem com o

florescimento de direitos, como ocorreu após a Segunda Guerra Mundial, época na

qual os direitos humanos internacionais deram um grande passo. Às vezes, o erro

não é repentino, mas de longa duração, como a escravidão. É o reconhecimento do

erro − ou a derrota após um conflito − que serve como um estímulo para o

desenvolvimento dos direitos. Nos Estados Unidos, as emendas constitucionais pós-

Guerra Civil rapidamente eliminaram a escravidão, assim como no Brasil a

Constituição de 1988 procurou superar os erros havidos durante o regime militar.

Também houve exemplos históricos de direitos rapidamente afastados no

rescaldo de erros que, segundo acreditava-se, eram causados por direitos

excessivos. Os Estados Unidos enfrentam tal contração, em resposta aos ataques

terroristas ocorridos nos últimos anos.270

Não obstante os direitos fundamentais assegurados pela Constituição de

1988 tenham sido extremamente importantes para impedir as confissões obtidas

mediante tortura e para possibilitar o amplo acesso dos investigados e réus às

acusações contra eles formuladas, banindo os processos sigilosos, é preciso

reconhecer que as instituições avançaram e a consequência inevitável de um

excesso de um direito fundamental implica na restrição de outro, igualmente

fundamental, sendo necessário buscar-se o equilíbrio, para que os prejuízos sejam

minimizados.

se, no caso de detenção provisória, esta tenha sido requerida, informações relevantes para a apreciação da legalidade de tal privação de liberdade devem ser disponibilizadas para o advogado de defesa de forma adequada; nessa medida, como regra, será concedido o exame do processo.” No original: “Section 147 (1) Defence counsel shall have authority to inspect those files which are available to the court or which will have to be submitted to the court if charges are preferred, as well as to inspect officially impounded pieces of evidence. (2) If investigations have not yet been designated as concluded on the file, defence counsel may be refused inspection of the files or of individual parts of the files, as well as inspection of officially impounded pieces of evidence, insofar as this may endanger the purpose of the investigation. If the prerequisites of the first sentence have been fulfilled, and if the accused is in remand detention or if, in the case of provisional arrest, this has been requested, information of relevance for the assessment of the lawfulness of such deprivation of liberty shall be made available to defence counsel in suitable form; to this extent, as a rule, inspection of the files shall be granted.” (Disponível em: <http://www.gesetze-im-internet.de/englisch_stpo/englisch_stpo.html>. Acesso em: 12 dez. 2014. Nossa tradução).

270 DERSHOWITZ, Alan M., Is there a right to remain silent?: coercive interrogation and the Fifth

Amendment after 9/11, cit., pos. 1.026 de 2.222.

Page 159: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

159

A quem interessa uma blindagem do indivíduo, a ponto de tornar impossível a

persecução penal? A quem interessa que um direito fundamental seja estendido a

tal ponto que torne impossível a comprovação de determinado crime? Não devemos

nos esquecer que a comprovação dos delitos é essencial para a aplicação da pena e

esta é fundamental para evitar-se a ocorrência de novos delitos.

Com efeito, além de possuir uma função punitiva, a lei penal possui a função

– a mais importante, pensamos − de prevenir futuros comportamentos semelhantes.

Assim, a punição do infrator tem a importante missão de impedir que delitos iguais

sejam cometidos no futuro. Ao não punir os infratores, passa-se uma clara

mensagem de impunidade, o que acaba por desestimular a adoção das condutas

desejadas e previstas na legislação. A constatação do afirmado pode ser vista com

frequência nos jornais, que todos os dias noticiam acidentes de trânsito cometidos

em circunstâncias bizarras, como trafegar a de 150 quilômetros por hora em uma

das ruas do bairro paulistano do Itaim271, entre inúmeros outros que poderíamos

citar.

Na verdade, se temos uma sociedade fraca, conivente, sem autoridade e

incapaz de produzir temor naqueles que pretendem auferir vantagens de situações

eticamente condenáveis, acabamos, de certa maneira, estimulando comportamentos

indesejados.272

7.3 Individualismo exagerado

Clóvis de Barros Filho273, ao explicar a lógica do desejo na falta, do buscar o

que não se tem, exemplifica com a sua própria evolução escolar. Afirma que quando

estudava no primário ouvia os alunos dizerem que o objetivo do primário era passar

para o ginásio, e assim grande parte do tempo e do esforço eram voltados para o

exame de admissão. Chegando no ginásio, dizia-se que o que interessava mesmo

271

Porsche a 150 km/h bate e mata mulher. Jornal da Tarde, 9 jul. 2011. Disponível em: <http://blogs.estadao.com.br/jt-cidades/porsche-a-150-kmh-bate-e-mata-mulher/>. Acesso em 20 mar. 2014.

272 CORTELLA, Mário Sérgio; BARROS FILHO, Clóvis de. Ética e vergonha na cara. Campinas.

Papirus 7 Marés, 2014. p. 12. 273

Ibidem, p. 21-23.

Page 160: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

160

era ingressar no colegial, pois ali não mais se obrigava o uso do uniforme. E se

passava o ginásio esperando o colegial. No colegial, o objetivo era ingressar na

faculdade. Ao chegar na faculdade, poderia se pensar que a vida chegou, todavia se

começava a pensar em estágios para se ter acesso ao mercado de trabalho. No

estágio, o problema era ser efetivado e, quando finalmente se era efetivado e

poderia haver a fruição do que está acontecendo, descobria-se que a empresa tinha

quinze níveis hierárquicos e era preciso muito esforço para a progressão funcional.

Essa preocupação com o futuro cedeu espaço, na hipermodernidade, à

cultura do aqui e agora, tendo o centro da gravidade temporal se deslocado para o

presente. Gilles Lipovetsky274 afirma que a consagração do presente surgiu com a

revolução do cotidiano e com as sensíveis alterações nas aspirações e modos de

vida observados nos últimos cinquenta anos. Não mais se deseja a renovação dos

modelos do passado, mas se ambiciona a novidade, o princípio-moda deslocou para

o eixo do presente a temporalidade dominante. Não mais se quer esperar pelo

futuro, não mais se quer renunciar a nada, surgindo uma cultura hedonista que

demanda a satisfação imediata das necessidades. O poder do consumismo e da

moda acabou por derrotar os ideais políticos da modernidade. A partir dos anos 80,

recrudesceu a valorização do presente, tendo como panos de fundo a revolução

informática e a globalização, sendo que todas as coisas agora ocorrem em tempo

real, havendo uma sensação de simultaneidade e imediatidade.

O autor afirma que conquanto haja o triunfo do tempo breve da economia e da

mídia, não há como negar, por outro lado, que as sociedades continuam a se

preocupar com o futuro. De fato, as ponderações com o destino do planeta, com os

riscos ambientais etc. ocupam posição preponderante nos debates atuais. Assim,

embora a preocupação com o presente ocupe o centro das atenções, ela não é

absoluta, como se pode provar pela cada vez mais crescente valorização do culto à

saúde e à longevidade, e pela importância conferida à prevenção.275

274

LIPOVETSKY, Gilles; CHARLES, Sébastien. Os tempos hipermodernos. Tradução de Mário Vilela. São Paulo: Barcarolla, 2004.p. 58-61.

275 Ibidem, p. 68-69.

Page 161: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

161

Essa ambiguidade, característica da hipermodernidade, não se restringe

apenas ao aspecto temporal. Não obstante a aceleração dos ritmos, a cultura de

massas, o consumismo exagerado, o enfraquecimento dos vínculos, podemos ver

no homem hipermoderno características opostas, como a afetividade, a

sensibilidade e o desejo por uma vida equilibrada e sentimental. Destarte, os

exageros hipermodernos são em toda parte obstaculizados por exigências relativas

à qualidade de vida, valorização dos sentimentos e da personalidade. Essa união de

contrários expõe dois importantes princípios da modernidade: a conquista da

eficiência e a busca da felicidade.

No campo institucional, a cultura hipermoderna se caracteriza pelo

enfraquecimento do poder regulador das instâncias coletivas e pela autonomização

dos indivíduos em face das imposições do grupo. Os indivíduos se mostram cada

vez mais socialmente independentes, preocupados apenas com a própria felicidade,

retirando-se, como consequência, do ambiente social para o privado, o que revela

uma descrença nas instituições normativas.276

A felicidade sempre esteve no centro das principais preocupações filosóficas

religiosas e psicológicas. Para Aristóteles, a felicidade é o fim a ser atingido e deve

ser procurada sempre por si mesma e nunca com vistas em outra coisa, ao passo

que as outras virtudes são buscadas por si próprias, mas também no interesse da

felicidade.277

Freud afirma que o ser humano, por meio de seu comportamento, revela o

propósito de sua vida: a busca da felicidade. Os indivíduos querem se tornar felizes

e assim permanecer. Entende, entretanto, que aquilo que em seu sentido mais

estrito é chamado de felicidade surge antes da satisfação de necessidades

represadas em alto grau e, segundo sua natureza, torna-se possível apenas como

fenômeno episódico.278

276

LIPOVETSKY, Gilles; CHARLES, Sébastien, Os tempos hipermodernos, cit., p. 83. 277

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Saraiva, 2000. Livro 7. 278

FREUD, Sigmund. O mal estar na cultura. Tradução de Renato Zwick. Porto Alegre, RS: L&PM Pocket, 2010. p. 61-62.

Page 162: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

162

A busca da felicidade não deve ser feita, entretanto, a qualquer custo, mas

sob o patrocínio dos direitos humanos e da democracia, que devem funcionar como

limites às aspirações individuais.

Embora se acentue o consumismo e a importância conferida à eficiência, ao

mercado e ao dinheiro, há valores éticos que ainda permanecem, como pode ser

comprovado pela sempre presente discussão acerca dos direitos humanos. Direitos

humanos e democracia são duas palavras que são utilizadas para uma série de

situações que nem sempre correspondem ao sentido que comumente costumam

possuir.

Conservadores utilizam a expressão direitos humanos para se insurgirem

contra a proteção, no seu entender inadmissível, conferida aos bandidos, proteção

essa que não seria estendida aos homens de bem.279

Na verdade, os direitos humanos devem ser entendidos como limites éticos a

serem respeitados por todos os membros da sociedade. Limites que se impõem

mesmo na ausência de norma expressa, uma vez comprovado com os horrores do

nazismo que a aplicação das leis vigentes nem sempre é capaz de impedir as

atrocidades cometidas.

Em resumo, a hipermodernidade apresenta como características uma atenção

marcante ao indivíduo e uma frouxidão nos controles sociais. O individualismo

exagerado contribui para a redução das obrigações morais, ao passo que a

ausência de referências, em virtude da supressão de mecanismos de controle social,

conduz a um relativismo.

Os direitos fundamentais, todavia, devem ter sua eficácia valorada não

apenas considerando-se o aspecto exclusivamente individualista, “isto é, com base

279

A ponto de o deputado Federal Jair Bolsonaro afirmar em discurso realizado que os direitos humanos são o esterco da vagabundagem. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/internet/sitaqweb/TextoHTML.asp?etapa=3&nuSessao=083.4.52.O&nuQuarto=15&nuOrador=2&nuInsercao=0&dtHorarioQuarto=09:28&sgFaseSessao=BC%20%20%20%20%20%20%20%20&Data=25/05/2006&txApelido=JAIR%20BOLSONARO&txFaseSessao=Breves%20Comunica%C3%A7%C3%B5es%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20&dtHoraQuarto=09:28&txEtapa=Com%20reda%C3%A7%C3%A3o%20final>. Acesso em: 20 mar. 2014.

Page 163: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

163

no ponto de vista da pessoa individual e sua posição perante o Estado, mas também

sob o ponto de vista da sociedade, da comunidade na sua totalidade, já que se

cuidam de valores e fins que esta deve respeitar e concretizar”.280

Não obstante tais características da hipermodernidade, a colocação do tema

direitos humanos no centro dos debates comprova que existe uma gama de valores

compartilhados pelos indivíduos capaz de fazer a contraposição à ideia de que a

razão instrumental é a única a ser considerada, vale dizer, além dos meios também

os fins são valorizados, fins consubstanciados exatamente nesses valores éticos

consagrados pelos direitos humanos.

Sébastien Charles 281 afirma que três situações permitem demonstrar a

persistência ética dos ideais em um contexto individualista, típico da

hipermodernidade: o desaparecimento de uma moral incondicional não teve como

consequência a difusão de comportamentos egoístas; o relativismo não ocasionou

um niilismo moral ante a manutenção de um núcleo duro de valores consensuais; e,

por fim, a perda das referências tradicionais não resultou no caos social.

É inegável que, mormente diante do processo de globalização e com a

adoção de ideias difundidas mundialmente, os direitos humanos passaram a gozar

de uma certa uniformidade e incorporar essa função limitadora do avanço da

vertente individualista da hipermodernidade.

A democracia, assim como os direitos humanos, também tem o papel de

servir como contrapeso aos exageros da hipermodernidade, na medida que as

aspirações individuais devem seguir as regras do jogo democrático. O termo

democracia propicia, à semelhança do que ocorre com a expressão direitos

humanos, uma vasta gama de interpretações. A relação entre democracia e direitos

humanos é evidente, tanto que a própria Declaração Universal dos Direitos

Humanos da ONU, em seu artigo 21, 3, traz os requisitos essenciais da democracia,

afirmando que “a vontade do povo será a base da autoridade do governo; esta

280

SARLET, Ingo Wolfgang, Constituição e proporcionalidade: o direito penal e os direitos fundamentais entre proibição de excesso e de insuficiência, cit., p. 99.

281 LIPOVETSKY, Gilles; CHARLES, Sébastien, Os tempos hipermodernos, cit., p. 39.

Page 164: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

164

vontade será expressa em eleições periódicas e legítimas, por sufrágio universal,

por voto secreto ou processo equivalente que assegure a liberdade de voto”.

Embora se costume afirmar que o ambiente democrático favoreça a proteção

dos indivíduos no que diz respeito aos direitos humanos, não há como negar a

existência de uma certa tensão entre democracia e direitos humanos. Com efeito, os

direitos humanos constituem uma proteção dos indivíduos em face do Estado,

enquanto na democracia há a atribuição pelo povo de poderes ao Estado, poderes

que quando exercidos, acabam sendo limitados pelos direitos humanos. Destarte,

em última análise, direitos individuais, particulares podem obstaculizar a vontade da

maioria.

Acerca dessa oposição entre o direito individual e o coletivo, Freud282 anota

que a convivência humana só se torna possível quando se reúne uma maioria que é

mais forte do que cada indivíduo e que permanece unida contra cada um deles.

Esclarece que na condição de direito, o poder da comunidade se opõe ao do

indivíduo, visto como força bruta. A substituição do poder do indivíduo pelo da

comunidade é o passo cultural decisivo, sendo que a sua essência consiste no fato

de que os membros da comunidade se restringem em suas possibilidades de

satisfação, ao passo que o indivíduo não conhecia tais limitações. E arremata o

autor, argumentando que o passo seguinte é o da justiça, vale dizer, a garantia de

que o ordenamento jurídico não venha a ser violado em favor de um indivíduo.

Ian Shapiro observa que seja qual for a ideologia defendida, em todos as

partes do mundo os regimes tentam se cobrir com o manto da democracia, o que

vem provar que o compromisso com a democracia é um componente indispensável

para a legitimidade política. Observa que se adequadamente interpretada e

institucionalizada, a democracia, não obstante as suas limitações, ainda é a forma

de governo que pode possibilitar que, ao longo do tempo, a verdade prevaleça no

cenário político, os direitos humanos sejam respeitados e se preservem os

elementos das tradições e das culturas.283

282

FREUD, Sigmund, O mal estar na cultura, cit., p.100-101. 283

SHAPIRO, Ian. Os fundamentos morais da política. Tradução de Fernando Santos; revisão da tradução de Evandro Ferreira e Silva. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 245-247.

Page 165: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

165

A democracia pode realizar esse mister fornecendo mecanismos pelos quais

os governantes são chamados a prestar contas. Assim, os desvios podem ser

controlados, por exemplo, por meio do impeachment, bem como pela troca dos

governantes nas futuras eleições. Somente na medida que os representantes do

povo sejam de fato escolhidos e removidos pela escolha livre do povo é que pode

haver uma garantia adequada de que as suas ações estejam em sintonia com os

desejos do povo284. Essa possibilidade de alternância contribui, ademais, para a

estabilidade política, pois exorta aqueles que perderam as disputas eleitorais a

permanecerem comprometidos com as regras, dada a possibilidade de saírem

vencedores na disputa seguinte.

Infelizmente, contudo, temos visto nos dias atuais uma certa descrença, uma

certa desconfiança na democracia para resolução dos conflitos que se multiplicam.

Vejamos o exemplo concernente às manifestações que vêm ocorrendo com

cada vez mais frequência em nossa sociedade. O dia 15 de maio de 2014285 foi

marcado por uma série de manifestações por todo o território brasileiro,

manifestações que tiveram por mote inicial o aumento das passagens de ônibus, em

maio de 2013, mas que agora possuem uma gama enorme de reivindicações. Hoje

manifesta-se mesmo sem saber por quê. Manifesta-se por moda, para seguir a

onda, bem ao gosto da superficialidade e frivolidade que atingem grande parcela da

massa alienada e facilmente manobrada.

No referido dia, alguns poucos manifestantes ligados ao movimento sem terra

paralisaram uma grande rodovia que liga a cidade de São Paulo ao interior; outros

manifestantes paralisaram a Avenida Paulista, sob o fundamento de que uma

empresa privada contratada pela prefeitura não pagara a remuneração acordada;

outros tantos, que protestavam contra a realização da Copa do Mundo, fecharam a

Avenida Consolação.

284

Ibidem, p. 37. 285

Disponível em: <http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2014/05/15/grupos-bloqueiam-vias-durante-manifestacoes-na-grande-sao-paulo.htm>. Acesso em: 20 jul. 2014.

Page 166: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

166

Não se nega o direito que os vários grupos possuem de reivindicar os seus

interesses particulares, individuais, contudo essas reivindicações devem respeitar os

limites impostos pelas regras do jogo democrático.

De fato, manifestações realizadas sem qualquer espécie de regulamentação

inviabilizam o exercício de outros direitos constitucionais, como o direito de ir e vir do

restante da população, como pudemos constatar na tomada da cidade pelos

manifestantes que, desobedecendo as mais elementares regras de convivência,

paralisaram o comércio e a vida de grande parte da população.

As tentativas de regulamentar o referido direito receberam diversas críticas

dos mais variados setores da sociedade. A Ordem dos Advogados do Brasil, por

exemplo, emitiu em junho de 2013 a seguinte nota pública:286

A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) vem a público conclamar as autoridades a respeitar o direito de livre manifestação e impedir uso excessivo de força policial, que põe em risco a integridade física e até mesmo a vida de pessoas que exercitam o direito constitucional de liberdade de expressão. Ao mesmo tempo, solicita empenho dos manifestantes a se conduzirem de modo pacífico, respeitando o patrimônio público e privado e não admitindo atos que possam deslegitimar os protestos. A OAB reitera que as manifestações, realizadas de forma pacífica, expressam o mais alto sentido de liberdade de nossa Constituição, e repudia, de pronto, qualquer iniciativa das autoridades em criminalizá-las.

Evidentemente as autoridades devem respeitar o direito à livre manifestação,

não é isso que está em jogo, nem nunca esteve, mas como evitar os abusos, como

não paralisar a cidade, como respeitar os direitos dos demais indivíduos etc. A nota

é de uma obviedade a toda prova e não passou de um mero jogo de cena, bem ao

gosto da hipermodernidade, que mais se preocupa com a forma do que com o

conteúdo. O que temos observado, diga-se, é que na ânsia de não desagradar a

plateia, as discussões acabam se tornando superficiais e os problemas perpetuados.

Países de tradição democrática muito maior do que a nossa possuem regras

claras para o exercício do direito de manifestação. Em Portugal, por exemplo, o

286

Disponível em: <http://www.oab.org.br/noticia/25770/oab-defende-respeito-a-livre-manifestacao-e-pede-protestos-pacificos>. Acesso em: 12 dez. 2014.

Page 167: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

167

Decreto-Lei n. 406/74287 estabelece uma série de limitações, entre elas o dever de

aviso prévio e com uma antecedência mínima; o dever de indicar o trajeto a seguir; o

dever de não organizar, dirigir ou provocar manifestações violentas; o dever de

obediência às ordens legítima de dispersão.

Tais balizamentos não têm o escopo de inviabilizar o direito à manifestação,

mas apenas procuram harmonizá-lo com os demais direitos constitucionais, eis que

deve ser inserido no contexto da sociedade em que é exercido. As limitações assim

buscam conciliar as suas naturais exigências com aquelas que são próprias da vida

em sociedade, como a ordem pública, a ética, a autoridade e a segurança do

Estado, entre outras. Em suma, as normas limitadoras pretendem organizar e

adaptar à vida real o direito de reunião e manifestação, introduzindo medidas

concretas que, sem desnaturar o direito, previnem o conflito ou proíbem o abuso e a

violação dos demais direitos.

A Constituição italiana também contém regra limitadora ao direito de reunião,

nos seguintes termos288 : as reuniões efetuadas em lugares públicos devem ser

previamente informadas às autoridades, que só as podem proibir por manifestos

motivos de segurança ou de salubridade pública.

287

Decreto-Lei n. 406/74: “Artigo 1º - 1. A todos os cidadãos é garantido o livre exercício do direito de se reunirem pacificamente em lugares públicos, abertos ao público e particulares, independentemente de autorizações, para fins não contrários à lei, à moral, aos direitos das pessoas singulares ou colectivas e à ordem e à tranquilidade públicas. 2. Sem prejuízo do direito à crítica, serão interditas as reuniões que pelo seu objecto ofendam a honra e a consideração devidas aos órgãos de soberania e às Forças Armadas. Artigo 2º - 1. As pessoas ou entidades que pretendam realizar reuniões, comícios, manifestações ou desfiles em lugares públicos ou abertos ao público deverão avisar por escrito e com a antecedência mínima de dois dias úteis o governador civil do distrito ou o presidente da câmara municipal, conforme o local da aglomeração se situe ou não na capital do distrito. 2. O aviso deverá ser assinado por três dos promotores devidamente identificados pelo nome, profissão e morada ou, tratando-se de associações, pelas respectivas direcções. 3. A entidade que receber o aviso passará recibo comprovativo da sua recepção. Artigo 3º - 1. O aviso a que alude o artigo anterior deverá ainda conter a indicação da hora, do local e do objecto da reunião e, quando se trate de manifestações ou desfiles, a indicação do trajecto a seguir. 2. As autoridades competentes só poderão impedir as reuniões cujo objecto ou fim contrarie o disposto no artigo 1º, entendendo-se que não são levantadas quaisquer objecções, nos termos dos artigos 1º, 6º, 9º e 13º, se estas não forem entregues por escrito nas moradas indicadas pelos promotores no prazo de vinte e quatro horas. Artigo 4º - Os cortejos e desfiles só poderão ter lugar aos domingos e feriados, aos sábados, depois das 12 horas, e nos restantes dias, depois das 19 horas e 30 minutos.”

288 “Art. 17 I cittadini hanno diritto di riunirsi pacificamente e senz’armi. Per le riunioni, anche in luogo

aperto al pubblico, non è richiesto preavviso. Delle riunioni in luogo pubblico deve essere dato preavviso alle autorità, che possono vietarle soltanto per comprovati motivi di sicurezza o di incolumità pubblica.”

Page 168: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

168

Na Espanha, a Lei Orgânica do Direito de Reunião, de 15 de julho de 1983,

exige o prévio aviso (arts. 8º e 9º), bem como disciplina a dispersão (art. 5º) e

interdição (art. 10º) das reuniões e manifestações. O artigo 9º, por exemplo, dispõe

que quando a reunião ocorrer em vias públicas, deve ser fornecido por escrito, com

antecedência de dez dias, o itinerário previsto.289

Do mesmo modo, na França se exige uma declaração prévia, conforme

previsão do artigo 3º do Decreto de 23 de outubro de 1935.290

Enquanto isso, no Brasil, os manifestantes ao invés de informarem

previamente as autoridades acerca dos itinerários dos protestos, passaram a

improvisar livremente os seus atos. Restou à polícia tentar descobrir os locais das

reuniões por meio das redes sociais ou à medida que ocorriam. O Executivo, que

inicialmente mostrou-se favorável à regulamentação, acabou recuando, uma vez que

a restrição é controversa e impopular, principalmente em períodos eleitorais.

O equilíbrio entre as pretensões individuais e coletivas por certo não é fácil, o

que levou Freud a afirmar que boa parte da luta da humanidade se concentra

justamente na busca desse equilíbrio, que seria capaz de proporcionar felicidade

entre as exigências individuais e as reivindicações das massas.291

A democracia propicia a convivência de ideias opostas, mas não tolera a

violência para a preponderância de uma delas. O resultado final entre essas tensões

deve ser um direito para o qual todos tenham contribuído com algum tipo de

sacrifício de seus impulsos e que não permita que ninguém se torne vítima da força

bruta.292

289

“Artículo noveno. 1. En el escrito de comunicación se hará constar: a) Nombre, apellidos, domicilio y documento oficial de identificación del organizador u organizadores o de su representante, caso de personas jurídicas, consignando también la denominación, naturaleza y domicilio de éstas. b) Lugar, fecha, hora y duración prevista. c) Objeto de la misma. d) Itinerario proyectado, cuando se prevea la circulación por las vías públicas.e) Medidas de seguridad previstas por los organizadores o que se soliciten de la autoridad gubernativa.”

290 Disponível em: <http://legifrance.gouv.fr/affichTexte.do?cidTexte=JORFTEXT000000294755&

dateTexte=20080410>. Acesso em: 21 jul. 2014. 291

FREUD, Sigmund, O mal estar na cultura, cit., p. 102. 292

FREUD, Sigmund, O mal estar na cultura, cit., p. 101.

Page 169: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

169

Com efeito, a insatisfação decorrente do não atendimento das reivindicações

deve ser externada nas urnas, mesmo porque não há como resolver problemas por

vezes estruturais em um piscar de olhos. Destarte, não se coaduna com a

democracia a tentativa observada de imposição pela força das posições de

determinados grupos.

Além de rechaçar o uso da força, a democracia também não admite que os

direitos dos demais indivíduos sejam desrespeitados além de um limite razoável. Por

consequência, é razoável alguém ter que realizar um caminho alternativo para ir ao

trabalho, mas não se torna razoável impedi-lo de chegar ao trabalho pelo

fechamento de todas as vias.

Um dos constantes óbices à democracia é que ela favoreceria uma tirania da

maioria. Atentas a esse perigo, as modernas Constituições procuraram formular

procedimentos mais rigorosos para a modificação de certos direitos e liberdades,

como, por exemplo, a exigência de quóruns qualificados. Tal como Ulisses293, que

foi amarrado ao mastro do navio para não sucumbir ao canto da sereia, as

Constituições, já prevendo a possibilidade de opressão das minorias, oferecem uma

garantia adicional aos direitos e liberdades, chegando ao ponto de torná-los, em

determinadas hipóteses, imodificáveis, como ocorre em nossa Constituição, no que

concerne aos direitos fundamentais.

Assim, não podemos deixar de relembrar que o mesmo direito constitucional

que assegura aos manifestantes o direito de exporem as suas reivindicações

também assegura o direito de locomoção aos demais indivíduos, o direito ao

trabalho, o direito à propriedade etc.

A busca das aspirações individuais, restritas a determinadas categorias, não

pode, por conseguinte, ser feita a qualquer custo, mas deve ser realizada com

responsabilidade, o que levou Sébastien Charles a afirmar que o futuro da

democracia na hipermodernidade está intimamente relacionado à tomada de

293

Na Odisseia de Homero, conta-se que Circe aconselhou Ulisses a cobrir com cera os ouvidos de seus marinheiros, de modo que não pudessem ouvir o canto, e a amarrar-se a si mesmo no mastro, dando instruções aos seus homens para não libertá-lo, fosse o que fosse que ele dissesse ou fizesse, até terem passado pela Ilha das Sereias.

Page 170: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

170

responsabilidade pelo indivíduo. Assevera que, conquanto a tomada de

responsabilidade deve ser coletiva e exercer-se em todos os domínios do poder e do

saber, também deve ser individual, pois em último recurso cabe a nós assumir a

autonomia que nos foi legada pela modernidade.294

A alternância do poder, traço marcante dos regimes democráticos, pode,

todavia, acarretar um preço à democracia: a transformação de uma oposição leal em

uma oposição desleal, na qual os derrotados não agem com a responsabilidade

necessária e buscam a todo custo desacreditar o governo vigente, mesmo que

tenham para isso que obstaculizar projetos legítimos, uma vez que o único intuito é a

ascensão ao poder. Seguindo essa lógica, medidas que deveriam ser tomadas não

são concretizadas por falta de apoio. Por outro lado, a situação, mesmo sabendo

que medidas devem ser tomadas para sanar determinado problema, não as toma,

por serem impopulares. Dessa forma, a alternância, a princípio salutar para a

democracia, acaba por paralisar as ações necessárias e indispensáveis para um

bom governo. Não por acaso, vemos atualmente que ações (aumento do preço da

gasolina, racionamento de energia e de água, por exemplo) que deveriam ser

tomadas tanto pelo governo federal quando pelo estadual – oposição ao federal –

são adiadas em nome das eleições, eleições que se repetem a cada dois anos e que

paralisam os governos. E assim, esperamos as reformas – tributária e política-

eleitoral, por exemplo –, que provavelmente nunca virão.

Processo semelhante ocorre com o direito processual penal. Não há dúvida

de que reformas drásticas devem ser realizadas, reformas que nem sempre são bem

vistas por todos os setores da sociedade. Sem entrar na discussão acerca do

responsável – o Judiciário, em razão de sua morosidade, ou os advogados, em

virtude da infinidade de recursos interpostos − o fato é que o nosso modelo não está

funcionando a contento. Com efeito, não se pode dizer que um prazo de dez anos

seja razoável para que alguém comece a cumprir a pena imposta pelo cometimento

de um delito. Não se pode dizer que seja razoável a lei impedir a realização de

exames que comprovem a embriaguez de um indivíduo.

294

LIPOVETSKY, Gilles; CHARLES, Sébastien, Os tempos hipermodernos, cit., p. 46-47.

Page 171: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

171

Como reflexo de todo o panorama acima descrito, temos, no que concerne ao

direito à não autoincriminação, que a interpretação majoritária dos tribunais parece

preocupar-se exageradamente com os direitos e garantias individuais, relegando a

um segundo plano o interesse da coletividade. De fato, como expressamente

consignado no Recurso Extraordinário n. 1.111.56, o entendimento adotado pelo

Excelso Pretório, e encampado pela doutrina, reconhece que o indivíduo não pode

ser compelido a colaborar com os referidos testes do bafômetro ou do exame de

sangue, em respeito ao princípio segundo o qual ninguém é obrigado a se

autoincriminar. Em todas essas situações, ponderou o Superior Tribunal de Justiça,

prevaleceu o direto fundamental sobre a necessidade da persecução estatal.

Infelizmente, como visto, não foi realizada a devida ponderação com os outros

direitos também consagrados na Constituição e que, no caso concreto, deveriam

preponderar.

Page 172: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

172

CONCLUSÕES

1. O direito ao silêncio já era noticiado em passagens do Talmude. No início

da história da Igreja Católica, como a confissão dos pecados constituía uma

obrigação de fé, nenhum privilégio existia para pessoas acusadas de um crime.

2. O desenvolvimento do direito ao silêncio deveu-se às disputas religiosas e

políticas dos dissidentes ingleses. Insurgindo-se contra os juramentos ex officio, a

arma principal utilizada por eles era o silêncio, que buscava fundamento em uma

antiga máxima, nemo tenetur se ipsum prodere. O desenvolvimento desse direito

também pode ser buscado no aprimoramento do procedimento criminal adversarial

ocorrido no final do século XVIII.

3. O direito à não autoincriminação foi incorporado por diversos tratados

internacionais de direitos humanos, o que tornou mais acurada a comparação da

jurisprudência nacional com a estrangeira, uma vez que ambas têm por fundamento

textos legais semelhantes.

4. O processo de globalização e a consequente criação de vínculos e espaços

sociais transnacionais acabaram por aproximar as diversas culturas, fato que

também facilitou a comparação entre os julgados de diversos países, dada a

similaridade da situação fática decorrente.

5. As principais características do direito à não autoincriminação são: permitir

que o acusado permaneça em silêncio durante todo processo; impedir que o

indivíduo seja compelido a produzir prova contrária ao seu interesse; resguardar o

indivíduo contra coação e violência física ou moral para constrangê-lo a cooperar na

instrução probatória; impedir que a sua inação seja de qualquer forma utilizada em

seu desfavor; e transferir à acusação o ônus da prova.

6. O direito à não incriminação é gênero do qual o direito ao silêncio é uma de

suas manifestações.

Page 173: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

173

7. O direito à não autoincriminação, nos termos da jurisprudência do Supremo

Tribunal Federal, constitui um direito público subjetivo, garantido pelo artigo 5º,

inciso LXIII, da Constituição Federal e pelo Pacto de São José da Costa Rica, que

pode ser invocado não apenas pelos presos, mas também pelos acusados,

investigados, indiciados e suspeitos, e testemunhas. É um direito que deve ser

invocado pela própria pessoa que sofreu a violação, geralmente não aproveitando a

terceiros, oponível a todos os agentes estatais, independentemente do procedimento

adotado, e que pode ser invocado a qualquer momento, não sendo necessário

qualquer provimento judicial para tanto.

8. É preferível a denominação direito à não autoincriminação, ao invés de

garantia ou princípio. O nemo tenetur se detegere não possui um caráter meramente

instrumental e pode ser invocado isoladamente, mesmo na ausência de qualquer

direito que teria a função de garantir. Ademais, algumas de suas manifestações,

como o direito ao silêncio, têm a natureza de regra – sempre aplicável – e não de

princípio, que pode ser objeto de ponderação e não ser aplicado diante de

determinado caso concreto.

9. O direito à não autoincriminação está relacionado a outros direitos previstos

em nossa Constituição, entre eles presunção de inocência, devido processo legal,

ampla defesa, contraditório, dignidade da pessoa humana, intimidade, integridade

física e liberdade.

10. Os dispositivos legais que consagram o direito à não autoincriminação no

ordenamento brasileiro são semelhantes aos observados nas legislações de vários

países. Não obstante a semelhança existente, a jurisprudência brasileira tem dado

uma extensão ao referido direito que não encontra paralelo no direito comparado.

11. O direito à não autoincriminação é normalmente invocado para a

justificação de posturas passivas do indivíduo: não falar, não fornecer padrões de

escrita ou de voz, não participar da reconstituição do crime.

Page 174: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

174

12. Embora não haja imposição de pena para o réu que mente em seu

interrogatório, não se pode afirmar que exista um direito à mentira.

13. O direito à não autoincriminação não pode ser invocado para justificar

posturas ativas do indivíduo, como, por exemplo, quando inova o estado de lugar,

coisa ou pessoa para iludir a perícia, quando foge do local do delito ou quando

imputa falsamente um crime a outrem.

14. Muito embora o direito à não autoincriminação seja predominantemente

invocado nas condutas omissivas, isso não implica a possibilidade de sua invocação

em todo comportamento omissivo. O não comparecimento à audiência é um

exemplo. Também não poderá ser invocado para justificar a recusa à submissão a

determinadas perícias, quando não há participação ativa do indivíduo no exame,

como ocorre no exame de raios X para detectar a presença de drogas no interior do

corpo.

15. Deve-se fazer a distinção entre colaboração ativa e colaboração passiva.

A lei não admite que o indivíduo seja obrigado a participar de maneira ativa de

determinados procedimentos, como andar de determinada forma, ou fazer o teste do

bafômetro, mas não veda a colaboração passiva (impressões digitais).

16. As intervenções corporais podem ser definidas como a utilização do corpo

do indivíduo, mediante atos de intervenção, para efeitos de investigação e

comprovação dos delitos. São divididas em intervenções invasivas, como o exame

de sangue, e não invasivas, como o exame de digitais.

17. As intervenções corporais são admitidas, de modo geral, no direito

estrangeiro. Alguns requisitos devem, no entanto, ser observados, como a devida

autorização judicial, a necessidade da medida, a não colocação em risco da vida do

indivíduo e a previsão legal.

Page 175: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

175

18. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal não admite a condução

coercitiva para o fornecimento de material genético ou sangue, muito embora não

tenha havido pronunciamento da Corte Suprema, após o advento da Lei n.

12.654/2012.

19. O fato de o indivíduo não ser mais considerado objeto de prova, mas

sujeito do processo, não impede a realização das intervenções corporais, que

podem ser realizadas independentemente de haver ou não consentimento.

20. O direito à não autoincriminação não evita a produção de todas as provas

que dependam da intervenção do acusado, senão somente aquelas que exigem

uma participação ativa voluntária.

21. Para a realização de exames que envolvam intervenções corporais, é

necessário haver uma legislação que discipline o procedimento de forma minuciosa,

posição adotada nas decisões proferidas pelos Tribunais Constitucionais espanhol,

italiano e português.

22. A atual jurisprudência dos Tribunais Superiores parece sinalizar que

eventual legislação (descrevendo as hipóteses de intervenções corporais) seria

considerada inconstitucional, a exemplo do que ocorreu com o exame do etilômetro,

uma vez ser inadmissível, em quaisquer hipóteses, que alguém seja coativamente

obrigado a realizar qualquer tipo de exame, mesmo que de forma passiva.

23. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem afirmado

reiteradamente que os direitos fundamentais não são absolutos. Quando houver

conflitos entre princípios, a regra da proporcionalidade se revela de grande valia,

funcionado como critério para solucioná-los da melhor forma possível.

24. O direito à não autoincriminação é composto por uma série direitos,

alguns com a natureza de princípio e outros com a natureza de regra. As suas

manifestações que têm a natureza de regra (direito ao silêncio, por exemplo) são de

aplicação absoluta. Quando as manifestações são consideradas princípios, podem

ser objeto de ponderação.

Page 176: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

176

25. Assim como o direito ao silêncio, outras manifestações do direito à não

autoincriminação também possuem caráter absoluto, como a de não cooperar

ativamente com a acusação na produção de provas autoincriminatórias. Por outro

lado, quando se tratar de mera cooperação passiva, como ocorre com as

intervenções corporais −- extração compulsória de amostras de sangue ou DNA, por

exemplo − há espaço para a realização de um juízo de proporcionalidade, conforme

admitem os ordenamentos estrangeiros.

26. Vários direitos fundamentais podem ser atingidos pelas intervenções

corporais, como o direito à intimidade, à liberdade, à integridade física, à dignidade

da pessoa humana e à não autoincriminação. Tais direitos podem, todavia, ser

limitados, tendo em vista outros interesses também relevantes da sociedade. A

medida interventiva que delimitar a restrição só estará justificada após a realização

de um juízo de proporcionalidade, para se verificar a sua adequação.

27. É possível sustentar, com fundamento na teoria do suporte fático restrito,

que as intervenções corporais stricto sensu – medidas que causam ou tenham

potencial de causar lesão ao corpo e realizadas sem o consentimento do indivíduo −

estão fora do âmbito de proteção do direito à não autoincriminação, pois não

obrigam o indivíduo a realizar qualquer tipo de declaração ou a participar de maneira

ativa na produção da prova.

28. Com esteio na teoria do suporte fático amplo, pode-se argumentar que,

embora as medidas de intervenção não impliquem qualquer tipo de declaração ou

colaboração ativa do indivíduo, não deixa de ser evidente que mediante algumas

delas podem as autoridades descobrir, com alto grau de precisão e confiabilidade,

dados e informações que o indivíduo poderia não querer revelar, ou seja, ainda que

não se esteja realizando qualquer espécie de declaração, estão sendo realizadas

provas no corpo do indivíduo, cujo resultado será idêntico ao que seria obtido caso a

declaração fosse realizada, dentro, portanto, do âmbito de proteção da norma.

29. Não basta que certa conduta seja inexequível legalmente para se

configurar a proteção do direito. O direito à não autoincriminação não protege

determinada conduta do indivíduo pelo mero fato de que sem a sua colaboração

Page 177: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

177

ativa não existiria outro modo de se realizar a prova. É necessário também que o

ordenamento não comine nenhuma penalidade para a recusa.

30. A autorização da medida interventiva, realizada após um juízo de

proporcionalidade, independe do consentimento do indivíduo.

31. No que diz respeito aos testes de alcoolemia, embora a solução da

controvérsia já tenha sido estabelecida por nossos tribunais, ela não é capaz de

realizar a devida justiça, haja vista dificultar ou mesmo impedir a produção das

provas necessárias para a responsabilização dos infratores.

32. Quatro modelos podem ser adotados pelos ordenamentos jurídicos para

resolver o problema da submissão aos testes de alcoolemia. O primeiro é adotado

em países como Estados Unidos e Alemanha e obriga o condutor a realizar o

exame. O segundo é adotado pela Espanha e comina sanção penal para o

descumprimento da obrigação legal imposta de se submeter ao exame. Na Itália ou

o condutor realiza o teste e o nível de álcool é obtido com exatidão, ou se recusa,

sendo que nessa hipótese o nível a ele atribuído será o máximo, sujeitando-o à mais

grave consequência. O quarto modelo deixa ao arbítrio do julgador valorar a

negativa de cooperação, ao contrário de se considerar, de maneira automática,

determinado fato como provado, deixa a cargo do juiz valorar a recusa.

33. O pensamento liberal tende, por vezes, a igualar o totalitarismo com o

autoritarismo e a identificar tendências totalitárias em toda e qualquer limitação a

direitos fundamentais. Qualquer limitação é assim vista como totalitária, uma volta ao

passado, e ninguém quer estar associado ao regime ditatorial que vigorou por um

longo período, sendo essa uma das possíveis razões para a exacerbação de alguns

direitos fundamentais no processo penal.

34. Observamos na jurisprudência nacional uma tendência de absolutização

de alguns direitos em matérias atinentes ao processo penal, como ocorre com o

direito à não autoincriminação e com a presunção de inocência, entre outros.

Page 178: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

178

35. A cultura hipermoderna se caracteriza pelo enfraquecimento do poder

regulador das instâncias coletivas e pela autonomização dos indivíduos em face das

imposições do grupo, sendo certo que o individualismo exagerado contribui para a

redução das obrigações morais. A busca das aspirações individuais não pode ser

feita a qualquer custo, mas deve ser realizada com responsabilidade, respeitando-se

os direitos dos demais integrantes da sociedade e tendo como limite ético os valores

representados pelos direitos humanos.

Page 179: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

179

REFERÊNCIAS

ADEODATO, João Maurício. Ética e retórica: para uma teoria da dogmática jurídica. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. ALBUQUERQUE, Marcelo Schirmer. A garantia de não auto-incriminação: extensão e limites. Belo Horizonte: Del Rey, 2008. ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2012. ALSCHULER, Albert W. A peculiar privilege in historical perspective. In: HELMHOLZ, R. H. et al. The privilege against self-incrimination: its origins and development. Chicago: University of Chicago Press, 1997. p. 181-204. N . self-incrimination clause. Michigan Law Review, v. 93, n. 857, p. 857-928, 1995. Disponível em: <http://www.law.yale.edu/documents/pdf/1995Fifth.pdf>. Acesso em: 03 nov. 2014. ANDRADE, Manoel da Costa. Sobre as proibições da prova em processo penal. Coimbra: Coimbra Editora, 1992. ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. Tradução de Mauro W. Barbosa de Almeida. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 1992. ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Saraiva, 2000. ARMENTA DEU, Teresa. Lecciones de derecho procesal penal. 5. ed. Madrid: Marcial Pons, 2010. ASSENCIO MELLADO, J. M. Prueba prohibida y prueba preconstituida. Madrid: Trivium, 1989. ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 12. ed. ampl. São Paulo: Malheiros, 2011. AVOLIO, Luiz Francisco Torquato. Provas ilícitas: interceptações telefônicas, ambientais e gravações clandestinas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Direito processual penal. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008. v. 1. BAUSH, Stefanie M. Body search and physical examination of the accused, the privilege against self-incrimination and the consequences of illegally obtained evidence in German criminal law. Munich, Germany: GRIN Publishing, 2004. BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Disponível em: <http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/delitosB.pdf>. Acesso em: 18 out. 2013.

Page 180: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

180

BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de uma filosofia do direito. Compilação de Nello Morra; tradução de Márcio Pugliesi, Edson Bini e Carlos E. Rodrigues. São Paulo: Ícone, 1995. ______. Teoria da norma jurídica. Tradução de Fernando Pavan Baptista e Ariani Bueno Sudatti. 5. ed. rev. São Paulo: Edipro, 2012. ______. Teoria do ordenamento jurídico. Tradução de Ari Marcelo Solon São Paulo: Edipro, 2011. BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 9. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Malheiros, 2000. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 5. ed. Coimbra: Almedina, 2002. CARVALHO, Aurora Tomazini de. Curso de teoria geral do direito: o constructivismo lógico semântico. 2. ed. rev.e ampl. São Paulo: Noeses, 2012. CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho de. A constituição e as intervenções corporais no processo penal: existirá algo além do corpo? In: KLEVENHUSEN, Renata Braga (Coord.). Temas sobre direitos humanos: em homenagem ao Professor Vicente de Paulo Barreto. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 99-124. CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário: linguagem e método. 3. ed. São Paulo: Noeses, 2009. CHOUKE, Fauzi Hassan. Garantias constitucionais na investigação criminal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. CONCHE, Marcel. O fundamento da moral. Tradução de Marina Appenzeller; revisão da tradução de Márcia Valéria Martinez de Aguiar. São Paulo: Martins Fontes, 2006. CORTELLA, Mário Sérgio; BARROS FILHO, Clóvis de. Ética e vergonha na cara. Campinas. Papirus 7 Marés, 2014. COUCEIRO, João Cláudio. A garantia constitucional do direito ao silêncio. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. DE LUCCA, Newton; MEYER-PFLUG, Samantha Ribeiro; NEVES, Mariana Barboza Baeta (Coords.). Direito constitucional contemporâneo: homenagem ao professor Michel Temer. São Paulo: Quartier Latin, 2012. DERSHOWITZ, Alan M. Is there a right to remain silent?: coercive interrogation and the Fifth Amendment after 9/11. Kindle Edition. Oxford; New York: Oxford University Press, 2008.

Page 181: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

181

FARIA, Antonio Bento de. Código de Processo Penal. 2. ed. atual. Rio de Janeiro: Record, 1960. v. 1 - arts. 1 a 250. FERNANDES, Antônio Scarance. Processo penal constitucional. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. FERNÁNDEZ ACEBO, María Dolores. La tutela de los derechos fundamentals a la intimidad e integridad física frente a la actuación de los poderes públicos sobre el cuerpo humano. 2013. T (D u ) − U v C uñ Departamento de Dereito Público, 2013. Disponível em: <http://ruc.udc.es/dspace/bitstream/2183/11704/2/Fernandez%20Acebo_Maria%20Dolores_TD_2013.pdf>. Acesso em: 20 fev. 2014. FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer et al. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. FERRAZ JÚNIOR, Tercio Sampaio. A ciência do direito. 2. ed. 17. reimpr. São Paulo: Atlas, 2010. FERREIRA FILHO, Manoel. Comentários à Constituição Brasileira de 1988. 2. ed. atual. e reformulada. São Paulo: Saraiva, 1997. v. 1. FREUD, Sigmund. O mal estar na cultura. Tradução do alemão de Renato Zwick. Porto Alegre, RS: L&PM Pocket, 2010. GARCÍA MORILLO, Joaquín. El derecho a la libertad personal: detención, privación y restricción de libertad. Valencia: Tirant lo Blanch; Universitat de València, 1995. GIL HERNÁNDEZ, Ángel. Intervenciones corporales y derechos fundamentales. Madrid: Colex, 1995. ______. Protección de la intimidad corporal: aspectos penales y procesales. Revista General de Derecho, RGD, n. 622-623, p. 7.949-8.026, 1996. GOMES FILHO, Antônio Magalhães. Presunção de inocência e prisão cautelar. São Paulo: Saraiva. 1991. ______. O princípio da presunção de inocência na Constituição de 1988 e na Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica). Revista do Advogado, n. 42, p. 30-34, abr. 1994. GOMES, Luiz Flávio. Estudos de direito penal e processo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. GONZÁLEZ-CUELLAR SERRANO, Nicolás. Proporcionalidad y derechos fundamentales en el proceso penal. Madrid: Colex, 1990. GRECO FILHO, Vicente. Tutela constitucional das liberdades. São Paulo: Saraiva, 1989.

Page 182: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

182

GRECO, Rogério. Código Penal comentado. Niterói: Impetus, 2008. GRINOVER, Ada Pellegrini. Liberdades públicas e processo penal: as interceptações telefônicas. 2. ed. atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1982. GUERRA FILHO, Willis Santiago. Processo constitucional e direitos fundamentais. São Paulo: Celso Bastos, 1999. HADDAD, Carlos Henrique Borlido. Conteúdo e contornos do princípio contra a auto-incriminação. Tese (Doutorado em D ) − u D U v Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2003. HELMHOLZ, R. H. et al. The privilege against self-incrimination: its origins and development. Chicago: University of Chicago Press, 1997. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução de João Baptista Machado. 8. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009. LANGBEIN, John H. The privilege and common law criminal procedure: the sixteenth to the eighteenth centuries. In: HELMHOLZ, R. H. et al. The privilege against self-incrimination: its origins and development. Chicago: University of Chicago Press, 1997. p. 82-108. LEVY, Leonard Williams. Origins of the Fifth Amendment: the right against self-incrimination. Chicago, Illinois.: Ivan R. Dee, 1999. ______. Seasoned judgments: the American Constitution, rights, and history. New Brunswick, NJ: Transaction Publishers, 1997. LIPOVETSKY, Gilles; CHARLES, Sébastien. Os tempos hipermodernos. Tradução de Mário Vilela. São Paulo: Barcarolla, 2004. LOPES JUNIOR, Aury; GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Investigação preliminar no processo penal. 5. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2013. LUKES, Steven. Moral relativism. New York: Picador, 2008. Preface. MAHMOUD, Mohamad Ale Hasan; MOURA, Maria Thereza Rocha de Assis. A Lei 12.654/2012 e os direitos humanos. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 20, n. 98, p. 339-358, set./out. 2012. MARTELETO FILHO, Wagner. O direito à não autoincriminação no processo penal contemporâneo: investigação genética, interceptações telefônicas e ambientais, agentes infiltrados e outros problemas. Belo Horizonte: Del Rey, 2012. MARTINS, Flademir Jerônimo Belinati. Dignidade da pessoa humana: princípio constitucional fundamental. Curitiba: Juruá, 2003.

Page 183: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

183

MATSUSHITA, Thiago Lopes. O jus-humanismo normativo: expressão do princípio b u . 2012. T (D u D ) − P í Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2012. MCBRIDE, Jeremy. Human rights and criminal procedure: the case law of the European Court of Human Rights. Strasbourg: Council of Europe Publishing, 2009. MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 5. ed., rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2010. MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo penal. 7. ed. rev. e atual. São Paulo: Atlas, 1997. MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional: direitos fundamentais. 3. ed. rev. e actual. Coimbra: Coimbra Editora, 2000. v. 4. MONTESQUIEU, Charles-Louis de Secondat. O espírito das leis: as formas de governo, a federação, a divisão dos poderes. Introdução, tradução e notas de Pedro Vieira Mota. 9. ed., 2. tiragem. São Paulo: Saraiva, 2010. MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 19. ed. atual. até a EC n. 48/2005. São Paulo: Atlas, 2006. NORONHA, Edgard Magalhães. Curso de direito processual penal. 23. ed. atualizada por Adalberto Jose Q. T. de Camargo Aranha. São Paulo: Saraiva, 1995. ______. Direito penal: dos crimes contra a pessoa, dos crimes contra o patrimônio. 21. ed. São Paulo: Saraiva, 1986. v. 2. NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal comentado. 11. ed. rev., atual. e ampl., 2. tiragem. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. ______. Leis penais e processuais penais comentadas. 7. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. v. 2. ______. Manual de processo penal e execução penal. 2. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de processo penal. 16. ed. São Paulo: Atlas, 2012. ______. Processo e hermenêutica na tutela penal dos direitos fundamentais. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. ______. Regimes constitucionais da liberdade provisória. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. PALOMBELLA, Gianluigi. Filosofia do direito. Tradução de Ivone C. Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

Page 184: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

184

PÉREZ MARÍN, María Ángeles. Inspecciones, registros e intervenciones corporales: las pruebas de ADN y otros métodos de investigación en el proceso penal. Valencia: Tirant lo Blanch, 2008. PIOVESAN, Flávia. Temas de direitos humanos. São Paulo: Max Limonad, 1998. QUEIJO, Maria Elizabeth. O direito de não produzir prova contra si mesmo: o princípio nemo tenetur se detegere e suas decorrências no processo. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. RADBRUCH, Gustaf. Filosofia do direito. 2. ed. Tradução de Marlene Holzhausen; revisão técnica Sérgio Sérvulo da Cunha. São Paulo: Martins Fontes, 2010. RIGAUX, François. A lei dos juízes. Tradução de Edmir Missio. São Paulo: Martins Fontes, 2003. SÁNCHEZ VÁZQUEZ, Adolfo. Ética. T uçã J D ’ . 20. . Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. SANTOS, Marcus Renan Palácio de Morais Claro dos. O princípio nemo tenetur se detegere: seus limites e extensão. In: PEDROSO, Fernando Gentil Gizzi de Almeida; RIBEIRO, Roberto Victor Pereira (Orgs.). Questões relevantes do direito penal e processual penal. Porto Alegre: Lex Magister, 2012. p. 243-283. SARLET, Ingo Wolfgang. Constituição e proporcionalidade: o direito penal e os direitos fundamentais entre proibição de excesso e de insuficiência. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, Revista dos Tribunais; Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim), v. 12, n. 47, p. 60-122, mar./abr. 2004. ______. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 8. ed. rev., atual. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010. SEN, Amartya. A ideia de justiça. Tradução de Denise Bottmann e Ricardo Doninelli Mendes. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. SHAPIRO, Ian. Os fundamentos morais da política. Tradução de Fernando Santos; revisão da tradução de Evandro Ferreira e Silva. São Paulo: Martins Fontes, 2006. SILVA, Virgilio Afonso da. Direitos fundamentais. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2011. SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 16. ed. São Paulo: Malheiros, 1999. SMITH, Henry E. The modern privilege: its nineteenth-century origins. In: HELMHOLZ, R. H. et al. The privilege against self-incrimination: its origins and development. Chicago: University of Chicago Press, 1997. p. 145-180.

Page 185: Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e ... Rached... · O direito à não autoincriminação tem previsão em ... infração às regras que regulam os deveres atinentes

185

SOUZA, José Barcelos de. Bafômetro, intervenções corporais e direitos fundamentais. In: SOUZA, José Barcelos. Recursos, artigos e outros escritos: doutrina e prática civil e criminal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. p. 141-150. SOUZA, Sérgio Ricardo. Manual da prova penal constitucional: pós-reforma de 2008. Curitiba: Juruá, 2008. STRECK, Lenio Luiz. O dever de proteção do Estado (Schutzpflicht). Jus Navigandi, Teresina, ano 13, n. 1.840, 15 jul. 2008. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/11493/o-dever-de-protecao-do-estado-schutzpflicht>. Acesso em: 12 jul. 2014. TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional. 9. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2011. TORNAGHI, Hélio Bastos. Instituições de processo penal. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 1978. TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo penal. 25. ed., rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2005. v. 1. WEIGEND, Thomas; GHANAYIM, Khalid. Human dignity in criminal procedure: a comparative overview of Israeli and German law. Israel Law Review, v. 44, n. 1-2, p. 199-228, 2011. Disponível em: <http://law.huji.ac.il/upload/ILR44GhanayimWeigendCRC.pdf> Acesso em: 14 fev. 2014. ZAGANELLI, Margareth Vetis. Intervenções corporais, processo penal e direitos fundamentais. In: LIMA, Marcellus Polastri; SANTIAGO, Nestor Eduardo Araruna (Coords.). A renovação processual penal após a constituição de 1988: estudos em homenagem ao professor José Barcelos de Souza. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 195-211. ZAGANELLI, Margareth Vetis; ALMEIDA, Robledo Moraes Peres de. Meios de prova de embriaguez alcoólica do condutor de veículo automotor. Revista Jurídica da Presidência, Brasília, v. 14, n. 104, p. 783-807, out. 2012/jan. 2013.