artigos cientÍficos - emerj.tjrj.jus.br · revista de artigos científicos - v. 9, n.1, tomo ii...
TRANSCRIPT
REVISTA DE ARTIGOS CIENTFICOS Rio de Janeiro v. 9 n. 1 - TOMO II (M/Y) p. 597 - 1136 jul. - dez. 2017
VOLTAR AO SUMRIO
Elaborado no 1 Semestre 2017
ISSN 2179-8575
Volume 9 - n 1 - Tomo II (M/Y) - jul.-dez. 2017
Revista de
ARTIGOS CIENTFICOSdos Alunos da EMERJ
Elaborado no 1 Semestre 2017
ISSN 2179-8575
Volume 9 - n1 - Tomo II (M/Y) - jul.-dez. 2017
Revista de
ARTIGOS CIENTFICOSdos Alunos da EMERJ
Revista de artigos cientficos dos alunos da EMERJ/Escola da Magistratura do Estado doRio de Janeiro. v. 1, n. 1, 2009- . Rio de Janeiro: EMERJ, 2009- . - v.
Semestral
ISSN 2179-8575
1. Direito Peridicos. I. RIO DE JANEIRO (Estado). Tribunal de Justia do Estado do Rio de Janeiro. Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro.
CDD 340.05 CDU 34(05)
Os conceitos e opinies expressos nos trabalhos assinados so de responsabilidadeexclusiva de seus autores. permitida a reproduo total ou parcial dos artigos desta
revista, desde que citada a fonte.
Todos os direitos reservados Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro - EMERJ
Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro EMERJRua Dom Manuel 25 - Centro - Telefone: (21) 3133-3400
20.010-090 - Rio de Janeiro - RJwww.emerj.tjrj.jus.br
2018 EMERJEscola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro - EMERJ
REVISTA DE ARTIGOS CIENTFICOS DOS ALUNOS DA EMERJ uma revista doutrinria destinada ao enriquecimento da cultura jurdica do Pas.
EMERJ Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro
Revista de Artigos Cientficos dos alunos da EMERJ1 Semestre de 2017
DIRETOR-GERALDesembargador Ricardo Rodrigues Cardozo
SECRETRIA-GERAL DE ENSINOAna Cristina Sargentelli Porto
Diretor do Departamento de Ensino (DENSE)Jos Renato Teixeira Videira
DENSE/Servio de Monografia
DENSE/DIBIB - Diviso de Biblioteca DETEC - Departamento de Tecnologia de Informao e Comunicao
REVISTA DE ARTIGOS CIENTFICOS Rio de Janeiro v. 9 n. 1 - TOMO II (M/Y) p. 597 - 1136 jul. - dez. 2017
Marcio Ricci BarbosaO PRINCPIO DA NO AUTOINCRIMINAO NOS TESTES DE ALCOOLEMIA EFETUA-DOS NOS CONDUTORES DE VECULOS AUTOMOTORES ...................................... 607
Maria Andra Garcez Castello SiqueiraDA VIABILIDADE DO ACESSO DO CIDADO ECONOMICAMENTE hIPOSSUFICIENTE AOS MEDICAMENTOS NECESSRIOS SUA SADE POR MEIO DO PODER JUDIDRIO ....623
Maria Clara dos Santos e SilvaINVESTIGAO CRIMINAL E BANCO DE DADOS GENTICOS .............................. 638
Maria Luiza Lopes PintoCONCURSO PBLICO - INVESTIGAO SOCIAL - CONTROVRSIAS ....................656
Mariana Boechat da CostaPRESENA DO ADVOGADO NO PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR ......670
Maurcio de Andrade Travassos NetoEqUIPARAO DA SUCESSO DO COMPANhEIRO DO CNJUGE: ANLISE CRTICA DAS TESES DE REPERCUSSO GERAL 498 E 809 ................................................... 686
Nathalia Moreira de Abreu MachadoO CONTROLE JUDICIAL DOS ATOS DE CONSENTIMENTO DE USO DE BEM PBLICO .......699
Nathlia Teixeira LavourasRELEITURA DO ARTIGO 385 DO CDIGO DE PROCESSO PENAL SOB PRISMA DO SIS-TEMA ACUSATRIO ................................................................................................ 715
SUMRIO
Nathassia Lima Ramos Pinho da SilvaO ATIVISMO JUDICIAL E AS IMPLICAES DA FORA VINCULANTE DOS PRECEDEN-TES DO NOVO CDIGO DE PROCESSO CIVIL ......................................................... 731
Nathiele Pereira RibeiroA INCLUSO DA PESSOA COM DEFICINCIA NOS CARGOS PBLICOS ................747
Patrcia Nogueira RodriguesPERDA DE NACIONALIDADE E (IM)POSSIBILIDADE DE ExTRADIO DE BRASILEIRO NATO ....................................................................................................................... 764
Paula Domingues de Almeida - A PROBLEMTICA DA IGUALDADE JURDICA NO RE-CONhECIMENTO DA PRESCRIO INTERCORRENTE NAS ExECUES FISCAIS: PLA-NOS hORIzONTAL E VERTICAL .............................................................................. 781
Pedro Antonio Adorno Bandeira AssumpoA TEORIA DA CEGUEIRA DELIBERADA E A EqUIPARAO AO DOLO EVENTUAL .....798
Pedro da Cal da Costa FerreiraPROVA PENAL: O REFLExO DAS FALSAS MEMRIAS NA PRODUO DAS PROVAS TESTEMUNhAIS NO MBITO DO DIREITO PROCESSUAL PENAL .........................814
Pedro Henrique Lamy BasilioLEI GERAL DA COPA E ESTADO DE ExCEO: A VENDA DE MEIA-ENTRADA E DE BE-BIDAS ALCOLICAS NA COPA DO MUNDO DE 2014 ............................................. 829
Rafael Frias Cabral de Moraes ReisO PAPEL CONTRAMAJORITRIO, REPRESENTATIVO E ILUMINISTA DAS CORTES CONSTITUCIONAIS NAS DEMOCRACIAS CONTEMPORNEAS: CASOS REPRESENTA-TIVOS LUz DA JURISPRUDNCIA DO STF ........................................................... 843
Raianne Galiza Marcolino dos Santos - O INSTITUTO DA DELAO PREMIADA E O PRINCPIO DA OBRIGATORIEDADE DO MINISTRIO PBLICO ............................860
Raphael Alves OldemburgPROCESSUALIDADE PARTICIPATIVA: O DEVIDO PROCESSO LEGAL DEMOCRTICO E A FORMAO DAS DECISES ADMINISTRATIVAS ................................................ 875
REVISTA DE ARTIGOS CIENTFICOS Rio de Janeiro v. 9 n. 1 - TOMO II (M/Y) p. 597 - 1136 jul. - dez. 2017
Renan de Freitas OngarattoLIMITES DE SINDICABILIDADE DA VALORAO ADMINISTRATIVA DE CONCEITOS INDETERMINADOS: A PUBLICIDADE NA LEI DE PREGO ..................................... 888
Renata Maria Nascimento da GamaA DELAO APCRIFA E OS DIREITOS FUNDAMENTAIS: OS LIMITES CONSTITUCIO-NAIS VEDAO AO ANONIMATO ....................................................................... 904
Renata Miranda de Mello SilveiraDA POSSIBILIDADE OU NO DE ExCLUSO DO CONDMINO ANTISSOCIAL PELO USO ANORMAL DA PROPRIEDADE ........................................................................ 922
Ricardo Duarte Ferreira Figueira - APLICAO DAS REGRAS DE COMPLIANCE DA LEI ANTICORRUPO NO MBITO DO SETOR PBLICO ............................................ 936
Samantha Negris de SouzaUM NOVO OLhAR SOBRE O ENRIqUECIMENTO SEM CAUSA COMO FONTE AUT-NOMA DE OBRIGAES NO ORDENAMENTO JURDICO BRASILEIRO .................951
Samara Abro Vieira da SilvaCOMRCIO ELETRNICO: O CONJUNTO PRINCIPIOLGICO qUE NORTEIA O CO-MRCIO ELETRNICO EM COMPRAS COLETIVAS ................................................. 968
Simone Guimares CostaLIMITAO AO DIREITO DE PROPRIEDADE POR MEIO DE APACS INSTITUIDAS POR DECRETO DO ExECUTIVO: UMA DISCUSSO PAUTADA NO DIREITO AO CONTRADI-TRIO E O DEVIDO PROCESSO LEGAL ................................................................... 985
Tatiana Maynarde OliveiraA LEGITIMIDADE DO ATIVISMO JUDICIAL NO MBITO DO SUPREMO TRIBUNAL FE-DERAL EM FACE DA INATIVIDADE PARLAMENTAR ............................................. 1001
Thais Carvalho KronembergerA DESCRIMINALIzAO COMO SOLUO PARA O PROBLEMA DA SUPERLOTAO CARCERRIA BRASILEIRA .................................................................................... 1015
Vanessa Corra Braga de AbreuOS NOVOS CONTORNOS DO PRINCPIO DO LIVRE CONVENCIMENTO MOTIVADO DO JUIz NA APRECIAO DA PROVA APS A RETIRADA DO TERMO LIVREMENTE DO NOVO CDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015 ............................................... 1031
Vanessa Oliveira da SilvaIMPACTOS NA DECISO DO STF NA ADPF 54 NO ABORTO hUMANITRIO ......1045
Verna Lorena Milho GuedesATIVISMO JUDICIAL INTERPRETAO DO DIREITO COMO FORMA DE GARANTIA DO ACESSO AO FORNECIMENTO DE MEDICAMENTO .............................................. 1058
Vinicius Ferreira SantosDIREITO DA INFRAESTRUTURA NO BRASIL: A EVOLUO LEGISLATIVA E AS NOVAS GARANTIAS AOS PARTICIPANTES DO PROCEDIMENTO DE MANIFESTAO DE INTE-RESSE NO BRASIL ................................................................................................. 1072
Vivian Silva de SousaDEz MEDIDAS CONTRA A CORRUPO: ANLISE CRTICA DO DISCURSO POLTICO-IDEOLGICO SUSTENTADO PELO MINISTRIO PBLICO FEDERAL .................. 1087
William Jorge Dobbin MendesOS EFEITOS DA MODULAO NO CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE .....1104
Yan Monteiro ChavesLEI DO MANDADO DE INJUNO: POSSIBILIDADE DE EDIO DE DECISES ADITIVAS E O FUTURO DO ATIVISMO JUDICIAL DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL .......... 1119
607Revista de Artigos Cientficos - V. 9, n.1, Tomo II (M/Y), jul./dez. 2017
VOLTAR AO SUMRIO
2
O PRINCPIO DA NO AUTOINCRIMINAO NOS TESTES DE ALCOOLEMIA EFETUADOS NOS CONDUTORES DE VECULOS AUTOMOTORES
Marcio Ricci Barbosa
Graduado em Direito pela Universidade Estcio de S. Advogado.
Resumo: o princpio nemo tenetur detegere nos testes de alcoolemia descritos no Cdigo de Trnsito Brasileiro, deve ser observado com base na proteo que esse princpio tem no direito ptrio, o princpio est amparado pela Constituio brasileira, por tratados internacionais que foram ratificados pelo Brasil e por legislao infraconstitucional como o Cdigo de Processo Penal. O acusado, nos dias atuais, deve ser tratado como sujeito de direitos e com base nesse entendimento, no deve ser compelido a colaborar com o Estado a produzir provas contra si prprio. O escopo do trabalho analisar a evoluo histrica do princpio, verificar a disposio do princpio na legislao brasileira e por derradeiro a exigncia do teste e o princpio da no autoincriminao. Palavras-chave: Direito Constitucional. Direito Processual Penal. Nemo tenetur se detegere. Alcoolemia. Sumrio: Introduo. 1. Origem histrica do princpio da no autoincriminao em relao s provas no processo penal. 2. O princpio da no autoincriminao no ordenamento jurdico bra-sileiro. 3. A exigncia do teste de alcoolemia e o princpio da no autoincriminao. Concluso. Referncias. INTRODUO
O presente trabalho busca analisar o direito que todo indivduo tem de se manter em
silncio nos crimes de trnsito ligados ingesto de substancias psicoativas usadas por condu-
tores de veculo automotor, o qual amparado pelo princpio nemo tenetur se detegere, em que
ningum obrigado a produzir provas contra si mesmo, assegurado na Constituio Federal,
tratados internacionais ratificados pelo Brasil e por legislao infraconstitucional. O debate tem
como foco a ponderao dos limites entre a proteo do direito do cidado, que visa a tutelar
os direitos individuais garantindo a dignidade da pessoa humana, mas sem abrir mo da tutela
coletiva que feita pelas fiscalizaes que visam a coibir a conduta das pessoas em conduzir
veculos sob os efeitos de substancias psicoativas, quando conjugado com a direo de um au-
tomvel.
Para tanto, sero abordadas posies doutrinrias a respeito do tema, visando compre-
ender os limites nas buscas das provas em uma fiscalizao de transito bem como o posiciona-
mento sobre o tema.
608 Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro
VOLTAR AO SUMRIO3
A Constituio Federal brasileira estabelece o direito do acusado se manter calado e
de no produzir provas contra s mesmo. Essa foi uma importante garantia trazida pelo consti-
tuinte de 1988, haja vista que antes da promulgao de nossa Carta Magna o Brasil passou por
momentos difceis de grandes restries em relaes as liberdades individuais.
O tema em questo controvertido e gera diversas convices a respeito do que seja
justo e adequado na busca de provas para a responsabilizao do condutor. Nesse sentido, faz-
se necessrio abordar quais os dispositivos constitucionais e infraconstitucionais do arcabouo
jurdico brasileiro que esto disposio para a proteo desse princpio garantidor de possveis
arbitrariedades que possam ocorrer por parte do Estado, nas fiscalizaes e nas intervenes
junto aos cidados condutores de veculos automotores.
Para uma melhor compreenso do tema abordado, busca-se apresentar o conceito ori-
ginrio nemo tenetur se detegere ao longo do tempo e que permitiu a Constituio reproduzir
esse princpio de forma expressa e de tutelar a preservao do acusado de um delito, sem abrir
mo da fiscalizao preventiva que necessria para reduzir os danos causados com a prtica
da conduo de um veculo aliado a ingesto de lcool e outras substancias psicoativas.
No primeiro captulo ser abordada a evoluo histrica do princpio nemo tenetur se
detegere e seus desdobramentos, as prticas adotadas pelo Estado para obteno das provas no
Processo Penal ao longo de diversos momentos da humanidade e as transformaes at os dias
atuais.
O segundo captulo tratar da localizao do princpio no ordenamento jurdico brasi-
leiro, iniciando pela Constituio e seus desdobramentos pelo ordenamento infraconstitucional.
O terceiro captulo ir abordar as exigncias do teste de alcoolemia para os condutores
de veculos automotores em relao ao princpio da no autoincriminao.
O objetivo do trabalho demonstrar que importante garantir a tutela da coletividade,
evitando assim mortes, leses e altos custos hospitalares para as vtimas dos acidentes de trn-
sito, mas sem que para isso, ponha-se a perder o que foi conquistado pela sociedade no que
tange a garantias individuais. O direito da acusao prova de um delito deve ter limites, com
fundamentos na dignidade da pessoa humana, principalmente no estgio de desenvolvimento
em que se encontra a sociedade. No h dvidas de que certos procedimentos no intuito de
extrair a verdade, so atentatrios dignidade do indivduo.
No h dvidas de que nos dias atuais, aps tantas arbitrariedades cometidas com o
indivduo em um passado recente na humanidade, preciso de dispositivos positivados para a
609Revista de Artigos Cientficos - V. 9, n.1, Tomo II (M/Y), jul./dez. 2017
VOLTAR AO SUMRIO4
garantia da manuteno da dignidade da pessoa humana, e de fato o princpio nemo tenetur se
detegere um grande avano na busca da proteo dos direitos individuais. O que se deve
ponderar, que nenhuma flexibilidade nessa proteo traga uma maior impunidade e uma sen-
sao de insegurana pela coletividade.
A pesquisa utilizar a metodologia do tipo bibliogrfica, parcialmente exploratria,
qualitativa, e histrica, visando sopesar a viabilidade da proposta em questo.
1. ORIGEM HISTRICA DO PRINCPIO DA NO AUTOINCRIMINAO
EM RELAO S PROVAS NO PROCESSO PENAL
Inicialmente, para um melhor entendimento a respeito do tema abordado, faz-se neces-
srio apresentar um panorama histrico sobre a vedao autoincriminao, que est amparada
pelo princpio nemo tenetur se detegere, e que em sua traduo literal quer dizer: ningum
obrigado a se descobrir. Esse princpio garante, dentro de um estado democrtico de direito ao
acusado, conforme os ensinamentos de Maria Elizabeth Queijo, o respeito dignidade, a inti-
midade, a liberdade moral e a intangibilidade corporal, visando ao alcance das provas de sua
possvel culpabilidade sem a cooperao do prprio indivduo, pois o acusado no est obrigado
a descobrir-se, cabendo ao Estado a produo dessas provas. Esse princpio tambm pode ser
conhecido por outras variaes tais como: nemo tenetur edere contra se, nemo tenetur se accu-
sare, nemo tenetur se ipsum prodere, nemo tenetur detegere turpitundinem suam e nemo testis
contra se ipsume1na atualidade, modernamente no direito anglo-americano conhecido com a
nomenclatura privilegie against self incrimination.
Conforme descrio cronolgica de Maria Elizabeth Queijo acerca do princpio
nemo tenetur se detegere2, essa vai em momentos remotos da histria para buscar com maior
preciso possvel o incio do referido princpio no processo do desenvolvimento civilizatrio.
Dessa forma, a autora inicia a sua busca na antiguidade citando o cdigo de Hamurabi3, que
mesmo no tendo uma previso poca de interrogatrio, o acusado poderia ter colhida a sua
oitiva sob juramento, mas somente quando no houvesse outra prova, de cunho testemunhal ou
documental, ou se o acusado no se encontrasse em flagrante delito.
1QUEIJO, Maria Elizabeth. O direito de no produzir prova contra si mesmo: (o princpio nemo tenetur se dete-gere e suas decorrncias no processo penal), So Paulo: Saraiva, 2012, p. 25-28. 2 QUEIJO, op. cit., p. 25 3 PINHEIRO, Ralph Lopes. Histria Resumida do Direito. 6. ed. Rio de Janeiro: Thex, 1997, p. 41
610 Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro
VOLTAR AO SUMRIO5
Nas leis de Manu4, diferente do procedimento supracitado, no era permitido que o
acusado se quedasse calado ou mentisse. Caso o acusado se comportasse de tal forma seria
considerado culpado. Ele prestava juramento, logo deveria comprometer-se a falar a verdade.
No Egito admitia-se interrogatrio aos tribunais ordinrios, mas era permitido a tortura
com submisso a juramento. No direito hebreu admitia-se o interrogatrio do acusado, sem
juramento como uma regra estabelecida. A confisso era tida como uma aberrao da natureza
ou uma manifestao de um estado de loucura.
Nas civilizaes clssicas, tomando como exemplo a Grcia e Roma, no se aplicava
o princpio nemo tenetur se detegere. Ademais, ressalta-se que a tortura era usada no interroga-
trio como forma de confisso do acusado pelo eventual crime cometido e, se possvel, a dela-
o de cmplices.
Na idade mdia, no havia espao para a aplicao do nemo tenetur se detegere. O
interrogatrio do acusado era utilizado como meio de se obter a confisso para extrao de
provas. Com esse tipo de procedimento adotado, a tendncia era a busca da prova pelo Estado
por meio do acusado ou com a sua cooperao. A verdade, arrancada do acusado, era o ponto
alto no procedimento do Processo Penal poca, sendo a confisso a prova mxima a ser obtida.
Com base nesse sistema aplicado nesse perodo, os brbaros, invasores do Imprio Romano,
que tinham como mtodo o emprego das ordlias, prova judiciria usada para determinar a
culpa ou a inocncia do acusado por meio da participao de elementos da natureza e cujo
resultado interpretado como um juzo divino, no restava ao acusado chances para que fizesse
uso do princpio nemo tenetur se detegere. Para o Estado o interrogatrio era um meio para se
obter a prova pretendida no processo.
O processo inquisitrio da Idade Mdia tinha-se a prvia convico a respeito da culpa
do acusado. A tortura era a forma instrumentalizada para se obter a certeza dessa culpa por meio
da confisso extirpada do acusado. No interrogatrio, era obtido o dever de se dizer a verdade.
Essa sociedade entendia que o interrogatrio seria uma espcie de meio de prova e no meio de
defesa como temos hodiernamente. Por isso, no era permitido o direito ao silncio aplicado na
atualidade.
Com a entrada da Idade Moderna e da Idade Contempornea, mais especificamente no
perodo do movimento Iluminista no sculo XVIII, que o princpio nemo tenetur se detegere
4QUEIJO, op. cit., p. 47.
611Revista de Artigos Cientficos - V. 9, n.1, Tomo II (M/Y), jul./dez. 2017
VOLTAR AO SUMRIO6
ganhou fora, tornando-se associado ao interrogatrio, j que esse momento da histria foi pro-
pcio por ser marcado pelo desenvolvimento e o reconhecimento das garantias penais e proces-
suais penais poca. O princpio nemo tenetur se detegere ganha uma nova dimenso no que
se refere proteo do acusado no interrogatrio, sendo um grande avano histrico, permi-
tindo, nesse perodo da histria, que se inaugurasse o direito do acusado de no ser visto no
procedimento do interrogatrio como um mero objeto de provas na mo do Estado.
Ainda que no perodo do Iluminismo tenha ocorrido um incio da aplicao do princ-
pio do nemo tenetur se detegere, com o combate ao emprego da tortura do juramento imposto
ao acusado, considerando imoral tais artifcios para a obteno da confisso e consequente-
mente a autoincriminao, ainda estava longe de ser esse novo entendimento pacificado.
Como exemplo da contradio em relao aceitao plena do princpio, temos Bec-
caria, em sua obra Dos Delitos e Das Penas, ainda que nesse momento da histria fique eviden-
ciada uma transio em relao ao desenvolvimento do procedimento instrutrio. Por conse-
guinte, observa-se de forma remanescente traos inquisitoriais fortes, pois apesar de refutar
veementemente a tortura e qualquer outro meio incisivo e degradante da dignidade da pessoa
humana, o autor em questo, de uma forma antagnica, defendia a aplicao de penas graves
fixadas em lei.5
Na Inglaterra, mais especificamente nas cortes eclesisticas, teve origem o nemo tene-
tur prodere se ipsum no ius commune no perodo final da Idade Mdia. Nesse momento da
histria, no pairavam dvidas em relao ao reconhecimento da vedao autoincriminao
como uma proteo ao acusado. O entendimento acerca do princpio era de que o ser humano
no poderia ser forado a servir de fonte de dados na persecuo em que ele prprio era sub-
metido. A positivao dessa proteo estava estampada no manual processual do iuscommune,
o Speculum iudiciale, feito por Willian Durantis, em 1926, que tinha a representao pela pre-
missa nemo tenetur detegere turpitundinem suam que queria dizer que ningum poderia servir
de testemunha contra si mesmo, j que a pessoa do acusado no estaria obrigado a desnudar a
sua prpria vergonha. Esse princpio foi albergado pelos manuais de Processo Penal europeus
dos sculos XVI e XVII. Com base nesse entendimento principiolgico, o conceito era de os
homens s deveriam desnudar suas faltas e crimes cometidos somente a Deus e para mais nin-
gum.6
5 BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Traduo de Lcia Guidicini. Alessandro Berti Contessa. Revi-so de Roberto Leal Ferreira. So Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 69-75. 6QUEIJO, op. cit., p. 36.
612 Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro
VOLTAR AO SUMRIO7
Nesse perodo, havia uma dicotomia, pois o princpio nemo tenetur se detegere no
era visto como um direito fundamental, mas sim como uma proteo que o acusado tinha frente
as intromisses que o Estado poderia praticar em sua intimidade, podendo o indivduo fazer uso
de tal princpio, o que no se revelava igual quando se tratava do foro interno, mais especifica-
mente no tocante a esfera espiritual, pois nesse sentido o indivduo tinha uma vnculo direto
com a divindade, tendo a obrigao de desnudar-se revelando as suas faltas cometidas.
Contudo, a aplicao desse princpio dentro desse contexto, s tinha aplicao quando
o crime no era de conhecimento pblico, caso contrrio a aplicao do princpio no era per-
mitida, evitando que os julgadores pudessem lanar mo de investigaes abstratas da vida do
investigado, com isso tinha-se a vedao prtica de fishing expeditions.
A instabilidade do princpio nesse perodo advinha das excees que se aplicava
utilizao desse mecanismo, o que conferia uma limitao como no caso de acusao de crimes
de heresia, j que a gravidade da ofensa dava azo para se exigir perguntas formuladas ao acu-
sado, o que poderia implicar em uma pergunta que eventualmente incriminasse o indivduo. As
perguntas que poderiam incriminar o acusado, tinham o objetivo nico e exclusivo de restaur-
lo espiritualmente, podendo temporariamente o indivduo no ser punido, o que no era regra,
pois em alguns casos a corte tinha poder para prender e punir corporalmente o acusado.
No mesmo perodo na Inglaterra, nas cortes de common law, o autor Helmholz des-
creve as origens do princpio privilege against self-incrimination aps a criao dos advogados
de defesa, j que at ento no perodo do sculo XVI, o acusado no tinha uma defesa consti-
tuda, ou seja, o prprio acusado que fazia sua autodefesa, devendo responder s acusaes
feitas contra ele mesmo. Dessa forma, significa dizer que se o acusado no falasse por si, nin-
gum sairia em sua defesa tcnica, o que automaticamente configuraria uma autoacusao. A
partir de 1696, a proibio em constituir uma defesa tcnica foi perdendo foras, o que foi se
suma importncia para que o acusado tivesse a possibilidade de silenciar-se permitindo a sua
defesa por advogados que traziam para o processo teses defensivas e testemunhas para depor
sobre os fatos. Em 1730, finalmente a citada constituio de defesa tcnica consolidou-se, con-
tribuindo historicamente com a concretizao da aplicao do princpio.
O princpio privilege against self-incrimination7 no foi imediatamente reconhecido
como um direito autnomo, mas sim como parte de um conjunto de garantias, mesmo que o
7 QUEIJO, op. cit., p. 44.
613Revista de Artigos Cientficos - V. 9, n.1, Tomo II (M/Y), jul./dez. 2017
VOLTAR AO SUMRIO8
direito de ser representado por defensores tcnicos ainda no estivesse sendo aplicado nesse
perodo, o princpio j era utilizado nas chamadas autos-defesas.
Na sequncia evolutiva do princpio privilege against self-incrimination, no sculo
XIX na Inglaterra, o princpio tornou-se mais eficaz, permitindo o direito ao silncio de acusa-
dos e testemunhas e ampliou a sua aplicao com a introduo de outros princpios como wit-
ness privilege, confession rule e tambm o desqualification for interest. A partir dessa interao
dos princpios supramencionados, o privilege against self-incrimination se desenvolveu de
forma mais plena, passando a ter a sua aplicao respeitando o direito ao silncio do acusado.
Nos Estados Unidos, o desenvolvimento do princpio ocorreu com a aplicao pela
Suprema Corte, na Pensilvnia em 1881, no leading case8 americano Horstman v. Kaufman,
ficando demonstrada a utilizao de outras garantias como witness privilege e a confession rule.
No sculo XX, nos Estados Unidos, seguindo a evoluo do princpio, em outro lea-
ding case intitulado de Miranda v. Arizona, a Corte Americana, delineou os limites da atuao
do Estado em relao aos mtodos aplicados aos indivduos no processo investigatrio, desta-
cando que o Estado que tem que produzir as provas de forma autnoma, sem impor que o
acusado seja obrigado a contribuir com informaes que que o leve a se autoincrimar.
Na idade contempornea, em 1948, no ps-guerra, a Assembleia Geral das Naes
Unidas ao aprovar a Declarao Universal dos Direitos Humanos9, permitiu que ocorresse uma
regulao dos direitos do homem, principalmente aps graves desrespeitos dignidade da pes-
soa humana ocorridos durante a Segunda grande Guerra Mundial. Com base na promulgao
desse diploma, o ser humano deixou a condio de objeto de direitos passando a sujeito de
direitos, o que propiciou uma grande mudana mundial nesse setor o que ampliou os direitos e
garantias, entre eles, a presuno de inocncia e o afastamento da prtica de tortura. Embora o
princpio nemo tenetur se detegere no tenha sido mencionado nesse artigo, foi um passo im-
portante para a tutela dos direitos do ser humano.
Outro diploma internacional importante na busca dos direitos do homem foi o Pacto
de So Jos da Costa Rica10 de 1969, em que o princpio nemo tenetur se detegere foi positivado
em seu artigo 8, pargrafo 2, alnea g, que determina que ningum obrigado a depor contra
si mesmo e nem a se declarar culpado. O Brasil participou dessa conferncia e se comprometeu
8 QUEIJO, op. cit., p. 49. 9 Ibid. 10 Ibid. p. 50.
614 Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro
VOLTAR AO SUMRIO9
a pr em prtica os direitos nela positivado, ratificando o Tratado e incorporando no direito
ptrio por meio do Decreto-lei 678/92.
No ano de 1976, passou a vigorar o Pacto internacional sobre Direito Civil e Polticos,
que foi abarcado pela Assembleia Geral das Naes Unidas, determinando que todo aquele que
for acusado de um crime no obrigado a depor contra si mesmo e nem de se confessar culpado,
garantia essa descrita no artigo 14, pargrafo 3, alnea g, do diploma mencionado.
Modernamente, o princpio nemo tenetur se detegere atingiu uma posio de garantia
no Processo Penal, resguardando dessa forma a liberdade moral do acusado para que o mesmo
decida se quer cooperar conscientemente com os rgos estatais de investigao ou se prefere
se manter em silncio e deixar a cargo do Estado, o qual tem uma posio de hipersuficincia
sobre o indivduo, buscar por conta prpria as provas que possam incriminar o acusado.
2. O PRINCPIO DA NO AUTOINCRIMINAO NO ORDENAMENTO JURDICO
BRASILEIRO
Inicialmente, cabe salientar que o princpio nemo tenetur se detegere est na seara do
Direito Processual Penal de forma a tutelar o direito que todo acusado tem, pessoa fsica ou
jurdica, de no produzir provas contra si mesmo. Dessa forma, busca-se tutelar o instinto de
preservao que o ser humano possui de salvaguardar a sua liberdade e de rechaar as acusaes
que lhes so imputadas, servindo como garantia de possveis arbitrariedades cometidas por
parte do Estado, cabendo ao acusador o nus de comprovar o dolo ou a culpa do acusado.
A criao e o desenvolvimento do princpio nemo tenetur se detegere, que visa ao
direito do ser humano no se autoincrimar, teve suas origens na Inglaterra e est intimamente
ligado com a oposio entre os sistemas acusatrio e inquisitrio, materializados nos tribunais
da common law, de um lado, e de outro lado, nos tribunais eclesisticos. Enquanto nos primeiros
havia confiana nas provas independentes, aqueles ltimos se firmavam principalmente na con-
fisso, o que acabou gerando as arbitrariedades que a humanidade presenciou.11
11SOUZA, Diego Bruno Cardoso De. O Princpio da no Auto-Incriminao. Disponvel em: . Acesso em:14/04/2017.
615Revista de Artigos Cientficos - V. 9, n.1, Tomo II (M/Y), jul./dez. 2017
VOLTAR AO SUMRIO10
No Brasil, o princpio figurou pela primeira vez com status constitucional, de forma
expressa no texto de nossa Carta Magna de 1988, que em seu art. 5, inciso LXIII12, no tocante
s garantias fundamentais e dispondo da seguinte maneira: o preso ser informado dos seus
direitos, dentre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistncia da famlia
e do advogado.
O pacto de So Jos da Costa Rica13 foi incorporado ao ordenamento jurdico brasileiro
pelo Decreto Lei 678/92, sendo considerado norma supralegal independente de sua ratificao,
pois os direitos tutelados nesse documento versam sobre direitos humanos. Na legislao infra-
constitucional est positivada no artigo 186 do Cdigo de Processo Penal14, trazendo para a
referida lei ordinria a mencionada garantia ao acusado.
Os direitos fundamentais, que funcionam como um sistema de freios e contrapesos,
evidenciam na atualidade um trao principiolgico. Dessa forma, esses direitos no so abso-
lutos, tendo como limites outros direitos abarcados na Carta Magna de 198815.
Conforme o autor Sylvio Motta16, no perodo atual, bem mais que em outros perodos
da histria, tanto na seara jurdica, quanto na seara das conquistas sociais, existe uma maior
preocupao com a formatao dos direitos humanos, principalmente em pases de baixo de-
senvolvimento, em especial o combate misria e marginalizao social.
Com base nesse axioma, existe uma tendncia do surgimento de novas classificaes,
com uma expanso do conceito dos direitos fundamentais, surgindo novas geraes de direitos,
que tentam se firmar como formas de efetivao de garantias constitucionais. Tais garantias
constitucionais tendem a buscar a solidariedade, consolidando dessa forma os ideais da Revo-
luo Francesa: liberdade, direito de primeira gerao, igualdade, direito de segunda gerao e
fraternidade, direito de terceira gerao.
Como no texto supracitado, alm das trs clssicas geraes dos direitos fundamentais,
a doutrina vem trazendo grande contribuio para o debate jurdico, ampliando positivamente
12 BRASIL. Constituio Federal de 1988. Promulgada em 05 de outubro de 1988. Disponvel em:
. Acesso em: 08 jun. 2017. 13 Idem. Decreto n. 678 de 06 de novembro 1992. Disponvel em: . Acesso em: 08 jun. 2017. 14 Idem. Cdigo de Processo Penal. Disponvel em: . Acesso em: 08 jun. 2017. 15 Vide nota 08. 16 MOTTA, Sylvio. Direito constitucional. So Paulo: Mtodo, 2015, p. 166-169.
616 Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro
VOLTAR AO SUMRIO11
a viso clssica, encontrando um caminho evolutivo para a incluso de outras geraes, abar-
cando ainda mais direitos fundamentais para o ser humano.
Os direitos fundamentais de primeira gerao tutelam os direitos individuais que con-
sagram as liberdades individuais, impondo um limite ao poder de legislar do Estado. Os direitos
fundamentais de segunda gerao regem os direitos sociais, culturais e econmicos decorrentes
dos direitos de primeira gerao e exigindo do Estado uma conduta de forma mais ativa, com
fulcro em promover um maior nmero de aes afirmativas. Os direitos fundamentais de ter-
ceira gerao so direitos fundamentais voltados para o destino da humanidade, principalmente
com foco na proteo do meio ambiente, no desenvolvimento econmico e na defesa do con-
sumidor, ligados a um profundo humanismo e ao ideal da promoo de uma sociedade mais
justa e solidria.
Atualmente, parte da doutrina vem acrescentando outros direitos complementando a
viso clssica supracitada, surgindo ento os direitos fundamentais de quarta gerao, que so
direitos fundamentais relativos manipulao gentica, com relao a rea da biotecnologia e
bioengenharia, tratando de discusses sobre a vida e a morte. Derradeiramente, os direitos
fundamentais de quinta gerao so relativos a direitos da seara da realidade virtual, trazendo
uma preocupao referente aos dispositivos constitucionais como protees para abarcar de-
mandas em funo do desenvolvimento da ciberntica.
Dessa forma, o princpio nemo tenetur se detegere se enquadra como um direito fun-
damental subjetivo que tem como fim tutelar aqueles que estejam respondendo a uma confisso
arbitrria, causado por um inqurito no mbito penal, criando uma limitao no ius puniendi
estatal, alm de gerar nus da prova de todas as alegaes feitas por parte do Estado em uma
persecuo contra o acusado. Sendo assim, preserva-se o princpio da igualdade que combinado
com o princpio da no autoincriminao, traz uma equidade relao entre o acusado e o
Estado, j que este possui uma imponncia frente ao acusado, trazendo tambm uma maior
amplitude a outro princpio importante que o da ampla defesa, diminuindo assim cada vez
mais a possibilidade de cometimento de arbitrariedades por parte do Estado em busca de uma
verdade a qualquer custo.
A Carta Poltica de 198817, dispe sobre direitos e garantias fundamentais, descritos
no ttulo II, capitulo I, abarcando direitos e obrigaes tanto individuais quanto coletivos, tute-
lando a todos os indivduos incluindo os estrangeiros que no residam no pas, pela fora do
17 Vide nota 8.
617Revista de Artigos Cientficos - V. 9, n.1, Tomo II (M/Y), jul./dez. 2017
VOLTAR AO SUMRIO12
princpio da isonomia, garantindo assim os direitos ampla defesa, de permanecer calado, que
o escopo do trabalho em anlise, o princpio da presuno de inocncia e o devido processo
legal. Todos esses dispositivos visam a trazer para o indivduo direitos e garantias que formam
uma teia de proteo do indivduo que pretendem garantir um outro princpio importante pre-
visto na Constituio, o princpio da dignidade da pessoa humana.
Conforme descrito por Aury Lopes Junior18, ao assegurar o direito de silenciar sem
qualquer ressalva constitucional e tambm na Conveno Americana de Direitos Humanos, por
interpretao jurdica, o sistema interno no pode atribuir ao seu exerccio nenhum prejuzo ao
acusado. Com base nisso, o artigo 186, do Cdigo de Processo Penal19, ainda que com um
reconhecido atraso, passou a ter a seguinte redao para permitir a adequao do princpio nemo
tenetur se detegere ao ordenamento ordinrio infraconstitucional:
O direito de se manter em silncio por parte do acusado, sujeito passivo na relao
com o Estado acusador, tambm gerou alteraes no comportamento do prprio Estado, tanto
por parte da autoridade policial quanto na judicial, em sua funo ativa de acusar, pois nasce
para esses o dever de informar ao acusado, sujeito passivo e hipossuficiente nessa relao em
que no h a obrigao em responder aos questionamentos. O silncio do acusado constitui um
direito necessrio para informar as dimenses de suas garantias. Dessa maneira, nasce para a
autoridade estatal acusadora a obrigao de informar, sob pena de ter os atos invalidados por
uma nulidade com fulcro em uma mcula de uma garantia constitucional.
O princpio nemo tenetur se detegere vem ao longo do tempo ganhando cada vez mais
fora e se expandindo no ordenamento ptrio, pois o indivduo no pode ser constrangido a
declarar ou a participar de qualquer atividade que venha a lesar a sua defesa, como no caso da
reproduo simulada do crime.
Especificamente no que tange ao exame de alcoolemia, popularmente conhecido como
teste do bafmetro, a Lei n. 11.705/0820, alterada pela Lei n. 12.760/1221, alterou a Lei n. 9.503
de 23 de setembro de 1997, Cdigo de Trnsito Brasileiro22, instituindo a tolerncia zero aos
18 LOPES JUNIOR, Aury. Direito Processual Penal. 11.ed. So Paulo: Saraiva, 2014, p. 655-657. 19 Vide nota 10. 20 BRASIL. Lei n. 11.705 de 19 de junho de 2008. Disponvel em: . Acesso em: 08 jun. 2017. 21 BRASIL. Lei n. 12.760 de 20 de dezembro de 2012. Disponvel em: . Acesso em: 08 jun. 2017. 22 Idem. Lei n. 9.503 de 23 de setembro de 1997. Disponvel em: . Acesso em: 08 jun. 2017.
618 Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro
VOLTAR AO SUMRIO13
condutores de veculo automotor sob a influncia de substncias psicoativas, foi de fundamental
importncia para aumentar a fiscalizao tanto na esfera penal quanto na esfera administrativa.
3. A EXIGNCIA DO TESTE DE ALCOOLEMIA E O PRINCPIO DA NO
AUTOINCRIMINAO
Com o aumento das estatsticas referentes aos acidentes ocorridos por condutores de
veculos automotores sob os efeitos de substncias psicoativas, em especial o lcool, a legisla-
o brasileira foi alterada para aumentar a rigidez na fiscalizao dos condutores que conjugam
a prtica da direo de veculos com ingesto de tais substncias.
Anteriormente criao da legislao denominada Lei Seca, o Cdigo de Trnsito
Brasileiro23 previa penalidades administrativas, bem como formas de comprovao de embria-
guez na direo de veculo automotor.
Se por um lado as alteraes na lei aumentaram a fiscalizao e a diminuio de aci-
dentes, por outro lado trouxe um dilema para a comunidade jurdica: o direito de no se auto-
incriminar um direito absoluto ou se pode ser flexibilizado com vistas a atender demanda
da sociedade para reduzir os danos provocados por um condutor sob os efeitos das substncias
psicoativas.
A Carta Magna brasileira, como pilar do ordenamento jurdico ptrio, traz em seu texto
de forma expressa as garantias e direitos do indivduo que, dentre os direitos assegurados,
garantida a presuno de inocncia e o devido processo legal, ambos da Constituio Federal24.
Dessa forma, uma possvel busca de uma culpabilidade em fiscalizaes de trnsito em que se
utilize o teste de alcoolemia com o etilmetro, dever ser obtida por meios que no se presuma
a culpabilidade do condutor e muito menos que se faa com que o prprio condutor se submeta
ao exame visando a uma auto colaborao em auxiliar o Estado na busca de provas que o incri-
mine. Permitir um procedimento deste, iria de encontro com o princpio nemo tenetur se dete-
gere previsto no ordenamento jurdico brasileiro.
Com base nas protees supracitadas, Maria Elizabeth Queijo25 entende que, por se
tratar de direito fundamental, o princpio nemo tenetur se detegere foi reproduzido em diplomas
23 Vide nota 17. 24 Vide nota 8. 25 QUEIJO. op. cit., p. 79-80.
619Revista de Artigos Cientficos - V. 9, n.1, Tomo II (M/Y), jul./dez. 2017
VOLTAR AO SUMRIO14
que tratam sobre direitos humanos. Assim sendo, esse princpio previsto no artigo 14, n. 3,
alnea g, do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Polticos26 adotado pela Assembleia geral
das Naes Unidas, e tambm a Conveno Americana sobre Direitos Humanos27, aprovada na
Conferncia de So Jos da Costa Rica em seu art. 8, pargrafo 2, alnea g, foram ratificados
pelo Brasil, fortalecendo ainda mais o arcabouo jurdico em torno do princpio da no autoin-
criminao.
Com base nesta dicotomia entre fiscalizar e buscar de forma ativa e persuasiva as pro-
vas a qualquer custo por parte do Estado, inclusive com a contribuio do prprio indivduo
condutor do veculo, dever ser prestigiado o princpio da no autoincriminao em detrimento
de lanar mo da verificao por meios de exames com a coparticipao do condutor, por se
tratar de garantia constitucional amparada tambm por tratados internacionais.
Alm disso, a legislao de trnsito, em seu art. 27728, possuiu outras formas de pena-
lizao para a recusa de se submeter realizao do exame com o etilmetro, e o 2 ainda foi
alterado para que se permita que o condutor que tiver cometido a infrao prevista no artigo
165, CTB29, possa ter a sua embriaguez constatada mediante a imagens, vdeos e por meio de
constatao de sinais que indiquem, na forma disciplinada pelo Conselho Nacional de Trnsito
, o Contran, alterao da capacidade psicomotora ou a produo de quaisquer outras provas em
direito admitidas.
CONCLUSO
No h como negar que o advento da criao da Lei n.11.705/08 que alterou o Cdigo
de Trnsito Brasileiro, trouxe efetivamente uma maior rigidez ao controle das fiscalizaes de
trnsito para quem conjuga direo de veculo automotor com consumo de substncias psicoa-
tivas em especial o lcool.
A legislao inicial alteradora do Cdigo de Trnsito que ficou conhecida popular-
mente por Lei Seca, trouxe para o condutor que no se enquadre nas novas regras, o nus na
seara administrativa, de receber multa, de ter a suspenso do direito de dirigir por 12 (doze)
26 BRASIL. Decreto 592 de 06 de julho de 1992. Disponvel em: . Acesso em: 08 jul. 2017. 27 Vide nota 9. 28 Vide nota 17. 29 ibid.
620 Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro
VOLTAR AO SUMRIO15
meses e ter assentado em seu registros junto ao rgo de trnsito, a insero de uma multa de
categoria gravssima e com o acmulo de sete pontos na carteira de habilitao, caso se negue
a fazer o exame de sangue ou a aferio por meio do etilmetro.
A ratio essendi da criao da Lei Seca tem por finalidade trazer uma maior segurana
ao trnsito, diminuindo as mortes e todas as consequncias que um acidente traz, em decorrn-
cia da utilizao do lcool e as demais substancias psicoativas por condutores de veculos au-
tomotores.
Embora essa lei tenha cunho de natureza pblica e os direitos individuais sejam rela-
tivos e no absolutos, existe a necessidade de sopesar a sua aplicao, pois de um lado temos
os indivduos e suas garantias constitucionais que garantem a preservao do seu direito de no
se autoincriminar e de manter a sua integridade fsica em relao a possveis intervenes cor-
porais por parte do Estado em determinada persecuo, porm, de outro lado temos a coletivi-
dade que busca uma tutela desse mesmo Estado para ver reduzida as condutas atentatrias a
sade, a vida e a segurana dessa coletividade.
Dessa forma, dever a autoridade fiscalizadora manter os direitos do indivduo de no
se autoincriminar, mas lanar mo de outros recursos que a lei lhe confere em uma busca mais
autnoma das evidencias que comprovem a falta de condies daquele indivduo fiscalizado
em conduzir o veculo naquele momento, de forma a instruir o procedimento da melhor ma-
neira, por meio vdeos, fotos, testemunhas, sinais ou qualquer outro tipo de prova admitidas em
direito.
A lei vem alcanando o seu objetivo, pois desde a sua criao vem ocorrendo a dimi-
nuio dos acidentes e tambm com o agravamento na seara da punio administrativa, que tem
consequncias financeiras e outras restries como a suspenso do direito de dirigir. Com isso,
boa parte dos condutores que pretendem fazer uso de lcool vem preferindo fazer uso de outros
meios de transportes, como por exemplo: voltar de carona com quem no tenha ingerido lcool,
de txi ou at mesmo transporte pblico coletivo, o que contribuiu sensivelmente para a dimi-
nuio dos riscos dessa conduta que afeta no s a integridade do prprio condutor, mas tam-
bm de uma coletividade que acaba sendo vtima de um ato margem da lei por parte dos
condutores.
621Revista de Artigos Cientficos - V. 9, n.1, Tomo II (M/Y), jul./dez. 2017
VOLTAR AO SUMRIO 16
REFERNCIAS
BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Traduo de Lcia Guidicini. Alessandro Berti Contessa. Reviso de Roberto Leal Ferreira. So Paulo: Martins Fontes, 1997. BRASIL. Cdigo de Processo Penal. Disponvel em: . Acesso em: 08 jun. 2017. _______. Constituio Federal de 1988. Promulgada em 05 de outubro de 1988. Disponvel em: . Acesso em: 08 jun. 2017. _______. Decreto 592 de 06 de julho de 1992. Disponvel em: . Acesso em: 08 jul. 2017. _______. Decreto n. 678 de 06 de novembro 1992. Disponvel em: . Acesso em: 08 jun. 2017. _______. Lei n. 11.705 de 19 de junho de 2008. Disponvel em: . Acesso em: 08 jun. 2017.
_______. Lei n. 9.503 de 23 de setembro de 1997. Disponvel em: . Acesso em: 08 jun. 2017.
_______. Lei n. 11.705, de 19 de junho de 2008. Disponvel em http://www.planalto.gov.br/cci-vil_03/_ato2007-2010/2008/lei/l11705.htm. Acesso em 07 junho de 2017.
_______. Lei n. 12.760, de 20 de dezembro de 2012, Disponvel em: http://www.pla-nalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12760.htm. Acesso em 07 de junho de 2017.
_______, Lei n. 9.503, de 23 de setembro e 1997. Disponvel em: http://www.pla-nalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9503.htm. Acesso em 07 de junho de 2017.
_______. Lei n. 12.760 de 20 de dezembro de 2012. Disponvel em: . Acesso em: 08 jun. 2017. LOPES JUNIOR, Aury. Direito Processual Penal. 11. ed. So Paulo: Saraiva, 2014.
MOTTA, Sylvio. Direito Constitucional. So Paulo: Mtodo, 2015.
PINHEIRO, Ralph Lopes. Histria Resumida do Direito. 6 ed. Rio de Janeiro: Thex Editora, 1997.
QUEIJO, Maria Elizabeth. O direito de no produzir prova contra si mesmo. O princpio nemo tenetur se detegere e suas decorrncias no processo penal. 2. ed. So Paulo: Saraiva, 2012.
622 Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro
VOLTAR AO SUMRIO
17
SOUZA, Diego Bruno Cardoso de. O Princpio da no Auto-Incriminao. Disponvel em . Acesso em 14/04/2017.
623Revista de Artigos Cientficos - V. 9, n.1, Tomo II (M/Y), jul./dez. 2017
VOLTAR AO SUMRIO 2
DA VIABILIDADE DO ACESSO DO CIDADO ECONOMICAMENTE HIPOSSUFICIENTE AOS MEDICAMENTOS NECESSRIOS SUA SADE POR
MEIO DO PODER JUDICRIO
Maria Andra Garcez Castello Siqueira
Graduada em Direito pela Universidade Cndido Mendes. Advogada. Resumo - a Constituio da Repblica Federativa do Brasil de 1988 consagra a sade como um dos direitos fundamentais sociais garantido a todos os cidados e atribui ao Poder Pblico formular e implementar polticas sociais e econmicas. O Poder Pblico integrou os servios pblicos e constituiu um sistema nico de forma regionalizada e hierarquizada para atender s demandas da sade, que o Sistema nico de Sade (SUS). O presente trabalho aponta que a dificuldade de implementao, pelo Estado, de polticas pblicas ligadas sade contribuiu para o aumento da atuao do Poder Judicirio, com o fim de efetivar essas demandas. Com isso, analisar-se- como essa atuao permite que parcela da sociedade, mormente o economicamente hipossuficiente, tenha suas necessidades bsicas de sade, especficas de cada indivduo, satisfeitas. Palavras-chave - Direito Constitucional. Direitos Sociais. Direito Sade. Polticas Pblicas. Poder Judicirio. Sumrio - Introduo. 1. Direito fundamental sade e a atuao do Poder Judicirio: uma discusso pautada na efetivao da prestao da sade pblica de forma eficiente. 2. O direito sade como corolrio da dignidade da pessoa humana tem a limitao oramentria e a reserva do possvel como bices a esse direito. 3. O Poder Judicirio na implementao de polticas pblicas, com previso constitucional, frente negativa de fornecimento de medicamentos e insumos no contemplados na lista do SUS. Concluso. Referncias. INTRODUO
A presente pesquisa cientfica analisa o chamamento do Poder Judicirio nas
demandas da sade, mormente no tocante viabilidade do acesso do cidado economicamente
hipossuficiente aos medicamentos necessrios sua sade. Considera-se que, na sociedade
contempornea esse chamamento tem se intensificado fortemente, tendo em vista que o
cidado busca a satisfao de seus direitos assegurados constitucionalmente.
Dessa feita, analisa-se a responsabilidade do Estado no tocante ao fornecimento de
medicamentos, conforme a Constituio da Repblica Federativa do Brasil de 1988. Aborda-
se, por conseguinte, os desafios oramentrios e o equilbrio das finanas pblicas, bem como
a reserva do possvel.
A pesquisa ressalta que, no obstante, a Carta Magna de 1988 assegure direitos aos
cidados, muitas demandas sociais no tm sido atendidas. Desse modo, a sociedade hoje
624 Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro
VOLTAR AO SUMRIO3
exige uma nova atuao para satisfazer seus direitos que, no raras as vezes, somente os tem
assegurados por meio do Poder Judicirio.
V-se, portanto, que o Poder Judicirio chamado a tutelar as demandas sociais,
sobretudo da sade, de forma a atuar com a finalidade de tornarem-se concretos esses direitos.
Nesse sentido, faz-se uma exposio sobre a atuao do Poder Judicirio quanto ao
fornecimento de medicamentos pelo Poder Pblico.
A pesquisa traz posies doutrinrias e jurisprudenciais acerca do tema, de modo a
demonstrar a importncia da proteo do direito fundamental sade. Isso porque o direito
sade do cidado, alm de configurar questo de sade pblica, considerado o principal
direito fundamental social, e est ligado ao princpio maior, que o princpio da dignidade da
pessoa humana e ao direito de maior relevncia, que o direito vida.
Sendo assim, o tema de relevante valor social, no tocante vida de cada pessoa e
da coletividade, bem como de extremo valor jurdico, tendo em vista a segurana efetivada
pelo Poder Judicirio nas demandas da sade, direito indisponvel do cidado, indispensvel
preservao da vida e dignidade da pessoa humana. Ressalta-se que o tema controvertido
na doutrina, tendo em vista a atuao do Poder Judicirio nas polticas pblicas.
Inicia-se o primeiro captulo apresentando a previso constitucional do direito
sade como sendo o direito de todo o cidado e um dever do Estado. Analisa-se, ainda, a
controvrsia existente acerca da interveno do Poder Judicirio na seara administrativa,
como guardio da Constituio para que no haja leso ou ameaa ao direito.
No segundo captulo pretende-se demonstrar que a limitao oramentria e a reserva
do possvel so bices efetividade da garantia constitucional sade. Salienta-se, tambm,
a prioridade do direito sade enquanto corolrio da dignidade da pessoa humana.
No terceiro captulo discute-se a possibilidade do Poder Judicirio impor ao ente
federativo o fornecimento de medicamentos no elencados na lista dos padronizados pelo
Sistema nico de Sade (SUS), na hiptese de no haver nela opo de tratamento que seja
eficaz para a enfermidade.
A pesquisa utiliza a metodologia dos tipos qualitativa, pois visa entender e interpretar
a controvrsia existente acerca do chamamento do Poder Judicirio nas demandas da sade,
nas questes de fornecimento de medicamento para cidados economicamente
hipossuficientes; e bibliogrfica, porquanto visa analisar e interpretar informaes, valendo-se
de bibliografia, legislao e jurisprudncia concernentes ao tema. Desenvolve-se quanto ao
objetivo de modo explicativo, com o principal intuito de apurar as causas do crescente
chamamento do Poder Judicirio nas demandas da sade.
625Revista de Artigos Cientficos - V. 9, n.1, Tomo II (M/Y), jul./dez. 2017
VOLTAR AO SUMRIO4
1. DIREITO FUNDAMENTAL SADE E A ATUAO DO PODER JUDICIRIO:
UMA DISCUSSO PAUTADA NA EFETIVAO DA PRESTAO DA SADE
PBLICA DE FORMA EFCIENTE
A sade um direito de todos e dever do Estado consagrado no art. 196 da
Constituio da Repblica Federativa do Brasil de 19881 e foi inserido como um dos direitos
sociais a ser assegurado pelo Poder Pblico, por meio de polticas sociais e econmicas, que
visam a reduo de risco de doena e de outros agravos, bem como a sua recuperao. A
Magna Carta2 prev o acesso universal e igualitrio s aes e servios para que se concretize
a proteo a esse direito.
A Constituio de 19883, nos termos do art. 6, tambm prev expressamente a
sade, como um dos direitos fundamentais sociais. Mister salientar ser esse o principal direito
social e est ligado ao princpio maior do Estado Democrtico de Direito, que o princpio
fundamental da dignidade da pessoa humana, disposto na Constituio4 em seu art. 1, inciso
III. Ademais, a Magna Carta5 em seu art. 5, caput estabelece e garante aos brasileiros e aos
estrangeiros residentes no Pas a inviolabilidade ao maior dentre todos os direitos, que o
direito vida. Assim, o direito sade equivale, em ltima anlise, ao direito vida.
No tocante titularidade do direito vida, Paulo Gustavo Gonet Branco6 anota que:
a vida preservada e encarecida pelo constituinte h de ser toda a vida humana [...]. O autor7
prossegue afirmando que:
trata-se de um direito que resulta da compreenso generalizada, que inspira os ordenamentos jurdicos atuais, de que todo ser humano deve ser tratado com igual respeito sua dignidade, que se expressa, em primeiro lugar, pelo respeito sua existncia mesma.
1BRASIL. Constituio da Repblica Federativa do Brasil. Disponvel em: . Acesso em: 10 out. 2016. 2BRASIL. Constituio da Repblica Federativa do Brasil. Disponvel em: . Acesso em: 10 out. 2016. 3BRASIL. Constituio da Repblica Federativa do Brasil. Disponvel em: . Acesso em: 10 out. 2016. 4BRASIL. Constituio da Repblica Federativa do Brasil. Disponvel em: . Acesso em: 10 out. 2016. 5BRASIL. Constituio da Repblica Federativa do Brasil. Disponvel em: . Acesso em: 10 out. 2016. 6MENDES, Gilmar Ferreira;BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 7. ed. rev., atual. So Paulo: Saraiva, 2012, p.291. 7Ibid.
626 Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro
VOLTAR AO SUMRIO5
O direito vida, assim, no pode ser compreendido de forma discriminatria com relao aos seus titulares. Se todo o ser humano singulariza-se por uma dignidade intrnseca e indisponvel, a todo ser humano deve ser reconhecida a titularidade do direito mais elementar de expresso dessa dignidade nica - o direito a existir.
Em referncia ao direito vida, Francisco Fernandez Segado8 fala que o primeiro
direito, o mais fundamental de todos, o prius de todos os demais.
Nesse sentido, a Constituio de 19889 determina um sistema nico e integrado de
sade, com competncia comum dos entes da federao. Assim, foi criado o Sistema nico
de Sade (SUS) com carter regionalizado e hierarquizado, tendo direo em cada esfera do
governo. A Constituio Federal10 prev que a Unio, os Estados, o Distrito Federal e os
Municpios so responsveis solidrios pela sade.
Advm que se est diante de questo que envolve contedo material de direito social,
isto , do direito prestao de sade do Estado. Essa prestao muitas vezes insuficiente,
como nos casos em que o medicamento solicitado, conforme prescrio mdica, no
disponibilizado pelo Estado, embora existam outros medicamentos dispensados para o
tratamento da doena que acomete o cidado, e que so fornecidos gratuitamente pelo Sistema
nico de Sade.
Ainda assim, a pessoa se sente restringida, pois objetiva o medicamento indicado por
seu mdico que reputa ser o necessrio para o seu tratamento, ou at mesmo porque o que
consta da lista do SUS pode no atender, com a desejada eficcia, o resultado esperado para o
caso concreto. Fato que h de se reconhecer a existncia do direito a este servio. Sendo
assim, o cidado recorre ao Poder Judicirio para ver atendida a sua necessidade.
Ressalte-se que, o fato do frmaco no constar da lista dos padronizados pelo SUS,
no afasta a responsabilidade do ente pblico. Tampouco a existncia de alternativas
teraputicas padronizadas e disponibilizadas na relao oficial de dispensao de
medicamentos elaborada pelo SUS no desonera o ente pblico da obrigao de fornecer o
medicamento prescrito pelo mdico responsvel.
Ora, diante de um cenrio de limitao de recursos, no tocante s aes de tutela da
sade, muitas vezes o ente federativo traz vrias alegaes, como a que se deve privilegiar as
8SEGADO apud MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 7. ed.rev., atual. So Paulo: Saraiva, 2012, p.289. 9BRASIL. Constituio da Repblica Federativa do Brasil. Disponvel em: . Acesso em: 10 out. 2016. 10BRASIL. Constituio da Repblica Federativa do Brasil. Disponvel em: . Acesso em: 10 out. 2016.
627Revista de Artigos Cientficos - V. 9, n.1, Tomo II (M/Y), jul./dez. 2017
VOLTAR AO SUMRIO6
alternativas teraputicas fornecidas pelo SUS, ou a que h de se levar em considerao o
princpio da reserva do possvel, ou o da separao dos poderes.
Saliente-se que o legislador constituinte no se satisfaz com a mera existncia deste
servio, esse deve ser prestado de forma efetiva e eficiente, para isso o Estado deve promover
polticas pblicas para que os seus objetivos fundamentais sejam alcanados.
Nesse sentido Oswaldo Canela Junior11 explica que:
por poltica estatal ou polticas pblicas entende-se o conjunto de atividades do Estado tendentes a seus fins, de acordo com metas a serem atingidas. Trata-se de um conjunto de normas (Poder Legislativo), atos (Poder Executivo) e decises (Poder Judicirio) que visam realizao dos fins primordiais do Estado. Como toda atividade poltica (polticas pblicas) exercida pelo Legislativo e pelo Executivo deve compatibilizar-se com a Constituio, cabe ao Poder Judicirio analisar, em qualquer situao, e desde que provocado, o que se convencionou chamar de atos de governo ou questes polticas, sob o prisma do atendimento aos fins do Estado (art. 3, da CF).
O direito sade, garantia constitucional que , permite ao seu titular, mormente o
hipossuficiente, que no dispe de condies financeiras, postular junto ao Poder Judicirio.
Essa atuao objetiva obter do Estado o fornecimento de medicamentos necessrios ao
restabelecimento da sade, bem como garantir a dignidade humana.
O chamamento do Poder Judicirio nas demandas da sade vem para efetivar esse
direito fundamental. A tutela do direito sade prepondera sobre os princpios da reserva do
possvel e da separao dos poderes, assim como sobre o do equilbrio das finanas pblicas.
Logo, o Poder Judicirio atua na funo de controlar e fazer efetivar a Constituio.
Ainda na ponderao de Canela Junior12:
diante dessa nova ordem, denominada de judicializao da poltica, contando com o juiz como coautor das polticas pblicas, fica claro que sempre que os demais poderes comprometerem a integridade e a eficcia dos fins do Estado incluindo as dos direitos fundamentais, individuais ou coletivos - o Poder Judicirio deve atuar na sua funo de controle.
Fortalecendo, assim, o entendimento da possibilidade da atuao do Poder Judicirio,
com o fim de viabilizar o acesso universal e igualitrio s aes e servios sem ferir o
11CANELA JUNIOR apud GRINOVER, Ada Pellegrini; WATANABE, Kazuo (Coord.). O Controle Jurisdicional de Polticas Pblicas. 2.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2013, p.129. 12 Ibid.
628 Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro
VOLTAR AO SUMRIO7
princpio da separao dos poderes, consagrado no artigo 2 da Constituio Federal13. No
Estado Democrtico de Direito, o Poder Judicirio encontra-se vinculado poltica estatal.
Alm disso, ressalta-se que a obrigao tem carter solidrio, permitindo ao cidado
a exigncia de sua prestao por inteiro de qualquer um dos entes federados, o que afasta a
alegao de ilegitimidade passiva do ente, bem como a responsabilidade subsidiria. Nesse
sentido, o cidado necessitado pode escolher qual dos entes federativos acionar para obter
seu constitucionalmente garantido direito sade.
2. O DIREITO SADE COMO COROLRIO DA DIGNIDADE DA PESSOA
HUMANA TEM A LIMITAO ORAMENTRIA E A RESERVA DO POSSVEL
COMO BICES A ESSE DIREITO
Inicialmente, cumpre destacar que o princpio da dignidade da pessoa humana um
valor moral inerente ao ser humano. Sobre o tema, Luis Roberto Barroso14 aponta que:
o princpio da dignidade da pessoa humana identifica um espao de integridade moral a ser assegurado a todas as pessoas por sua s existncia no mundo. um respeito criao, independentemente da crena que se professe quanto sua origem. A dignidade relaciona-se tanto com a liberdade e valores do esprito como com as condies materiais de subsistncia.
Nesse contexto, o autor15 ainda ressalta que a dignidade da pessoa humana tem
servido de fundamento para decises de diferente alcance dos tribunais superiores, como as de
fornecimento compulsrio de medicamentos por meio do Poder Pblico.
No que tange reserva do possvel, cumpre tecer algumas explicaes. A reserva do
possvel surgiu em um julgamento que aconteceu na Corte alem, em deciso conhecida como
Numerus Clausus, isto , nmero restrito. A demanda judicial foi feita por estudantes que no
conseguiram acesso ao curso de medicina em Hamburgo e Munique, devido falta de vagas e
paridade de certas regras que delimitavam o acesso ao ensino superior.
13BRASIL. Constituio da Repblica Federativa do Brasil. Disponvel em: . Acesso em: 10 out. 2016. 14BARROSO, Lus Roberto. Interpretao e Aplicao da Constituio: fundamentos de uma dogmtica constitucional transformadora. 7. ed. rev. So Paulo: Saraiva, 2009, p.382. 15Ibid., p.383.
629Revista de Artigos Cientficos - V. 9, n.1, Tomo II (M/Y), jul./dez. 2017
VOLTAR AO SUMRIO 8
A deciso do Tribunal Constitucional quela demanda foi que a prestao do Estado
deveria ser de acordo com que o indivduo poderia exigir do mesmo. Posta essa premissa,
no seria procedente impor ao Estado obrigao de acesso ao ensino superior, no curso de
medicina, a todos que assim o desejassem. O aumento do nmero de vagas encontra-se sujeito
reserva do possvel, ou seja, do que se pode esperar de modo racional da sociedade, ainda
que se tenha recursos. No h a obrigao de prestar algo que no esteja nos limites do
razovel.
Do teor da deciso, pontua-se que a reserva do possvel tem relao com a existncia
de prestaes limitadas coerncia, ou seja, dentro de um limite razovel, e no com
limitao de recursos, oramento, como no Brasil.
No tocante limitao oramentria, a disponibilidade de recursos financeiros est
na Lei Oramentria Anual (LOA) que estima as receitas e autoriza as despesas do Governo,
de acordo com a previso de arrecadao; como tambm define as prioridades a serem
alcanadas naquele ano. A LOA visa concretizar os objetivos e metas propostos no Plano
Plurianual (PPA), segundo as diretrizes estabelecidas pela Lei de Diretrizes Oramentrias
(LDO)16.
Assim, tecidas essas breves consideraes sobre a reserva do possvel e a limitao
oramentria, no que concerne Administrao Pblica, tem-se que a concretizao do direito
fundamental social sade exige a elaborao de polticas pblicas e a disponibilidade de
recursos.
Quando a deciso administrativa de limitao ou negao, fundamentada na teoria
da reserva do possvel e na limitao oramentria, cria-se bice ao acesso do servio pblico
de sade. Com isso, pode-se agravar o quadro de sade de um paciente ou mesmo lev-lo
perda da vida, por no ter tratamento adequado ou no ter acesso aos medicamentos e
insumos necessrios.
Muitos cidados portadores de doenas, conforme comprovao por meio de
resultados de exames, laudos, cirurgias submetidas, entre outras provas, com declarao
firmada por profissional mdico da rea clnica que os assiste, com a devida prescrio da
utilizao de determinados medicamentos, no tm suas demandas atendidas pelo Estado lato
sensu com base em alegaes da limitao oramentria e da reserva do possvel. Outros,
16GESTO, Ministrio do Planejamento, Desenvolvimento e. Disponvel em: . Acesso em: 10 out. 2016.
630 Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro
VOLTAR AO SUMRIO9
ainda, encontram obstculos porque alguns desses medicamentos prescritos no esto dentro
da relao dos fornecidos pelo Sistema nico de Sade.
Com o avano da medicina e da tecnologia, recentes e comprovados tipos de
medicamentos e insumos teraputicos, muitas vezes, quando indicados como unicamente
vivel, em face da enfermidade considerada no caso concreto, para que se evite o
agravamento ou encontre a cura da doena da qual o impetrante padece, por no estarem na
lista do SUS, na maioria das vezes encontram obstculos para serem fornecidos.
Insta ressaltar que considerando a complexidade da doena a ser tratada, mesmo
outros medicamentos no to recentes, mas que so tambm indicados, pois, s vezes, um
remdio similar ao da lista, contudo contm um detalhe de uma substncia que no se
encontra nos elencados na relao dos padronizados, e que justamente esse detalhe que faz
toda a diferena para determinado paciente e, por isso, se faz necessria a compra desse
medicamento especfico. Embora, o medicamento possua confirmada eficcia teraputica, e
no obstante a pessoa necessite desse cuidado especfico, o fato do frmaco no estar
encartado na relao do SUS, ou por haver outro similar, que no exatamente o prescrito
pelo mdico responsvel para aquela determinada situao, muitas vezes, sua aquisio
negada pela via administrativa com fundamento na onerosidade, indisponibilidade, limitao
oramentria e reserva do possvel.
Outrossim, em muitos casos a patologia daquelas que exige um acompanhamento
mdico constante, bem como a administrao de medicamento de uso contnuo, fora da
relao do SUS, embora reconhecido pela Agncia Nacional de Vigilncia Sanitria
(ANVISA), visto que h a possibilidade de recidiva da patologia, ou de ser a ltima
alternativa de se evitar agravos da doena. H de se considerar, tambm, poder haver a
necessidade de outros medicamentos, alm dos que foram prescritos anteriormente, que
podem advir com o surgimento de novas frmulas mais eficazes, devido ao avano da
medicina e da tecnologia. Assim, embora existam alternativas teraputicas oferecidas pelo
SUS, isso no desonera o ente pblico da obrigao de disponibilizar medicamentos
receitados pelo mdico responsvel pelo acompanhamento do paciente.
Diante disso, o fato de o medicamento e do insumo no estarem elencados na lista
dos padronizados, no afasta a responsabilidade do ente pblico. nesse sentido o enunciado
n. 180 da Smula do Tribunal de Justia do Estado do Rio de Janeiro17:
17BRASIL. Tribunal de Justia do Estado do Rio de Janeiro. Smula n. 180. Relator: Desembargadora Leila Mariano. Disponvel em:. Acesso em: 17 fev. 2017.
631Revista de Artigos Cientficos - V. 9, n.1, Tomo II (M/Y), jul./dez. 2017
VOLTAR AO SUMRIO
10
a obrigao dos entes pblicos de fornecer medicamentos no padronizados, desde que reconhecidos pela ANVISA e por recomendao mdica, compreende-se no dever de prestao unificada de sade e no afronta o princpio da reserva do possvel.
Assim, o Estado tem a responsabilidade pelo fornecimento da medicao que o autor
da ao necessite, sendo dele a obrigao de adotar meios necessrios ao cumprimento do art.
198, da CRFB/8818, e art. 9 , III, da Lei n. 8.080/9019, prestando assistncia, consoante o art.
6, I, letra d, da Lei n. 8.080/9020, bem como a sua integralidade, de acordo com o art. 7, II,
da Lei n. 8.080/9021.
Dvida inexiste que tais medicamentos so por demais custosos para as modestas
posses do cidado hipossuficiente, que mal dispe de seu salrio ou provento para seu
sustento ou de sua famlia; sendo mesmo a sua compra impossvel, pois mal tem o mnimo
para sobreviver. Ademais, diante da negativa de sua demanda, se v frustrado no que
concerne ao seu direito sade. Os medicamentos e utenslios deveriam ser fornecidos ao
cidado, garantindo-se a sade, que um dos direitos fundamentais sociais, disposto no art. 6
e no art. 5, caput, ambos da CRFB/8822, que garante aos brasileiros e tambm aos
estrangeiros residentes no Pas a inviolabilidade do direito vida. Entretanto, apresentam-se
como obstculos a esse direito fundamental, a limitao oramentria e a reserva do possvel.
A responsabilidade do Estado, quanto ao fornecimento da medicao, est disposta
no art. 6, I, letra d, e art. 7, II, da Lei n. 8080/9023, esta editada conforme o art. 196 da
Constituio Federal24, que atribui ao Estado lato sensu o dever de assegurar coletividade o
direito sade, pois no existe diferenciao quanto s obrigaes impostas aos entes
federativos. A obrigao tem natureza e carter solidrio, assim sendo pode o cidado
escolher sua prestao por inteiro de qualquer um dos entes federativos, no cabendo o 18BRASIL. Constituio da Repblica Federativa do Brasil. Disponvel em: . Acesso em: 17 fev. 2017. 19BRASIL. Lei n. 8.080, de 19 de setembro de 1990. Disponvel em: . Acesso em: 17 fev. 2017. 20BRASIL. Lei n. 8.080, de 19 de setembro de 1990. Disponvel em: . Acesso em: 17 fev. 2017. 21BRASIL. Lei n. 8.080, de 19 de setembro de 1990. Disponvel em: . Acesso em: 17 fev. 2017. 22BRASIL. Constituio da Repblica Federativa do Brasil. Disponvel em: . Acesso em: 17 fev. 2017. 23BRASIL. Lei n. 8.080, de 19 de setembro de 1990. Disponvel em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8080.htm>. Acesso em: 17 fev. 2017. 24BRASIL. Constituio da Repblica Federativa do Brasil. Disponvel em: . Acesso em: 17 fev. 2017.
632 Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro
VOLTAR AO SUMRIO11
argumento da diviso de competncias, de responsabilidade subsidiria e de ilegitimidade
passiva de qualquer dos entes.
De fato, muitas demandas no so atendidas administrativamente, todavia a
Constituio Federal em seu art. 5, XXXV25, que consagra o princpio da inafastabilidade do
controle jurisdicional, prev que a lei no excluir da apreciao do Poder Judicirio leso ou
ameaa a direito. Desse modo, o cidado tem acesso ao Judicirio como um direito para obter
o fornecimento de medicamentos, exames, cirurgia, internao, entre outros tratamentos,
necessrios sade. Tendo, ainda, como fundamento a Carta Magna, que em seu art. 5,
caput26, garante a inviolabilidade do direito vida e, em seu art. 19627, estabelece o direito
sade, de carter universal e igualitrio, a ser assegurado pelo Poder Pblico.
Dessa forma, Ingo Wolfgang Sarlet28 sustenta que devem ser feitos ajustes
necessrios no aperfeioamento da via administrativa, como entre outros aspectos, o de acesso
s informaes, o de desburocratizao e o de tempestividade. Aspectos esses que devem
imperar na esfera dos servios pblicos essenciais para que haja maior eficcia e efetividade
dos direitos fundamentais, no caso o do direito sade, e da garantia de uma vida mais digna.
3. O PODER JUDICIRIO NA IMPLEMENTAO DE POLTICAS PBLICAS, COM
PREVISO CONSTITUCIONAL, FRENTE NEGATIVA DE FORNECIMENTO DE
MEDICAMENTOS E INSUMOS NO CONTEMPLADOS NA LISTA DO SUS
A Constituio Federal29 garante o direito sade e a inviolabilidade do direito
vida que devem ser assegurados pelo Poder Pblico. O Poder Judicirio tem autoridade para
realizar os trabalhos do Estado, na administrao da justia na sociedade, por meio do
25BRASIL. Constituio da Repblica Federativa do Brasil. Disponvel em: . Acesso em: 17 fev. 2017. 26BRASIL. Constituio da Repblica Federativa do Brasil. Disponvel em: . Acesso em: 17 fev. 2017 27BRASIL. Constituio da Repblica Federativa do Brasil. Disponvel em: . Acesso em: 17 fev. 2017 28 SARLET, Ingo Wolfgang. A titularidade simultaneamente individual e transindividual dos direitos sociais. In: NOBRE, Milton Augusto de Brito; SILVA, Ricardo Augusto Dias da Silva (Coord.). O CNJ e os desafios da efetivao do direito sade. 2. ed. Belo Horizonte: Frum, 2013, p. 170. 29BRASIL. Constituio da Repblica Federativa do Brasil. Disponvel em: . Acesso em: 17 mar. 2017.
633Revista de Artigos Cientficos - V. 9, n.1, Tomo II (M/Y), jul./dez. 2017
VOLTAR AO SUMRIO12
cumprimento da Constituio30. Insta ressaltar que o Poder Judicirio no interfere no mrito
administrativo, somente faz um juzo da legalidade do ato.
Sendo assim, o Poder Judicirio pode determinar a implementao de polticas
pblicas com previso constitucional, frente omisso do Poder Pblico, quando alguma de
suas instncias governamentais violar os direitos assegurados pelo ordenamento jurdico. Em
situao como essa, no h que se falar em interveno do Poder Judicirio no mrito
administrativo, pois est restringindo a sua atuao para se concretizar os direitos sociais
garantidos na Carta Magna31, que no foram implementados pelo Poder Pblico, por meio de
inrcia administrativa, ou por alegao da tese defensiva como o da reserva do possvel ou da
limitao oramentria, em detrimento inclusive do mnimo existencial.
Em cumprimento Constituio Federal de 1988 32 que prev que a sade direito
de todos e dever do Estado, em 1990, como forma de efetivar esses mandamentos, foi criado o
Sistema nico de Sade (SUS) que foi regulado pela Lei n. 8080/9033. O SUS abrange desde
o simples atendimento ambulatorial at o transplante de rgos34.
O SUS tem como princpios constitucionais: a universalidade, a integralidade, a
equidade, a descentralizao e a participao social. O acesso universal significa atender a
toda populao, seja por meio de servios estatais prestados pela Unio, Distrito Federal,
Estados e Municpios, ou por meio dos servios privados conveniados ou contratados com o
poder pblico.
Nesse sentido, o SUS foi criado para promover justia social e superar as
desigualdades no tocante sade da populao. O SUS garante acesso integral, universal,
igualitrio e gratuito nas atividades preventivas e na assistncia sade, isto , nas aes e
servios para promoo, proteo, recuperao e reabilitao da sade da populao do Pas.
Tambm cabe ao SUS, alm de outras atribuies, nos termos da lei35, a vigilncia
permanente no que concerne sade nas condies sanitrias e ambiental; a regulao do
30BRASIL. Constituio da Repblica Federativa do Brasil. Disponvel em: . Acesso em: 17 mar. 2017. 31BRASIL. Constituio da Repblica Federativa do Brasil. Disponvel em: . Acesso em: 17 mar. 2017. 32BRASIL. Constituio da Repblica Federativa do Brasil. Disponvel em: . Acesso em: 17 mar. 2017. 33BRASIL. Lei n. 8.080, de 19 de setembro de 1990. Disponvel em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8080.htm>. Acesso em: 17 mar. 2017. 34SADE, Ministrio da. Disponvel em: . Acesso em: 17 mar. 2017. 35BRASIL. Lei n. 8.080, de 19 de setembro de 1990. Disponvel em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8080.htm>. Acesso em: 17 mar. 2017.
634 Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro
VOLTAR AO SUMRIO13
registro de medicamentos, insumos e equipamentos; controle e qualidade dos alimentos e sua
manipulao. Nessa esteira, ainda presta assistncia farmacutica, na qual planeja, adquire,
distribui e faz o controle de qualidade e utilizao de medicamentos voltados para a proteo
e recuperao da sade, como os medicamentos genricos registrados pela Agncia Nacional
de Vigilncia Sanitria.
A responsabilidade pela gesto da Sade do Governo Federal, estadual e municipal,
e do Distrito Federal. A participao e o controle social so garantidos nas conferncias
nacionais de sade e na atuao dos conselhos e das instituies de controle interno e externo.
A Constituio36 prev em seu art. 198, 1. que o SUS ser financiado, com
recursos do oramento da seguridade social, da Unio, dos Estados, do Distrito Federal e dos
Municpios, alm de outras fontes. Assim sendo, h solidariedade entre os entes pblicos
pela realizao das polticas afeitas prestao dos servios de sade populao. Do teor do
enunciado n. 65 da Smula do Tribunal de Justia do Estado do Rio de Janeiro37, deriva-se
dos mandamentos dos artigos 6 e 196 da Constituio Federal de 1988 e da Lei n 8.080/96, a
responsabilidade solidria da Unio, Estados e Municpios garantindo o fundamental direito
sade e consequente antecipao da respectiva tutela.
O fato de num ente pblico demandado faltar algum medicamento ou insumo no
elide a obrigao dos outros entes pelo fornecimento do remdio ou insumo prescritos pelo
mdico que assiste ao cidado. Tampouco, o SUS oferecer gratuitamente alternativas
teraputicas, para o tratamento de determinada doena acometida pelo paciente, no desonera
o ente pblico da obrigao de fornecer os medicamentos receitados especificamente pelo
mdico responsvel.
Reafirma-se, portanto, que o sobre frmaco no compor a lista dos padronizados pelo
SUS, no afasta a responsabilidade do ente pblico. Sendo assim, h a impossibilidade de se
limitar o rol dos medicamentos dos quais poder o paciente necessitar, que faz-se, muitas
vezes, necessrio para o tratamento da enfermidade que acomete o cidado.
Outrossim, inquestionvel a sade ser direito fundamental, assegurado
constitucionalmente a todo cidado, e que os poderes pblicos devem fornecer assistncia
mdica e farmacutica aos que dela necessitarem, cumprindo o que foi imposto pela Carta
36BRASIL. Constituio da Repblica Federativa do Brasil. Disponvel em: . Acesso em: 17 mar. 2017. 37 BRASIL. Tribunal de Justia do Estado do Rio de Janeiro. Smula n. 65. Relator: Desembargadora Marianna Gonalves. Disponvel em:< http://portaltj.tjrj.jus.br/documents/10136/18187/sumulas.pdf?=18>. Acesso em: 17 mar. 2017.
635Revista de Artigos Cientficos - V. 9, n.1, Tomo II (M/Y), jul./dez. 2017
VOLTAR AO SUMRIO14
Magna38, e que no desonera qualquer dos entes pblicos de cumprir obrigao de sade de
cunho constitucional.
Nesse sentido, entendimento do Egrgio Tribunal de Justia do Estado do Rio de
Janeiro39:
DIREITO CONSTITUCIONAL, PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTRIO. DIREITO SADE. Ao proposta por paciente hipossuficiente em face do ESTADO e do MUNICPIO DO RIO DE JANEIRO objetivando a condenao de os rus lhe prestarem os medicamentos descritos na inicial por ser portadora de diabete mellitus tipo II, hipertenso crnica e sintomas de doena coronria obstrutiva. Sentena de procedncia. Apelo do ente estadual. 1. No h que se falar em nulidade da sentena, eis ser assente na jurisprudncia o entendimento segundo o qual, em sendo desnecessria a produo de provas, alm das j apresentadas, autoriza-se o julgamento antecipado da lide, sem que reste configurado o cerceamento de defesa, consoante o disposto no art. 130 do CPC, por incumbir ao juiz, destinatrio da prova, indeferir diligncias inteis ou protelatrias. 2. O fornecimento do medicamento e dos insumos no pode ser restringido por normas infraconstitucionais ou por listas elaboradas pelo Poder Pblico, sob pena de se obstar a efetividade da garantia constitucional do direito sade e vida. 3. No que tange afirmao do apelante de necessidade de observncia da clusula de reserva de plenrio e smula vinculante n. 10, com remessa do presente recurso ao rgo Especial deste tribunal, verifica-se que, uma vez mais, no lhe assiste razo, eis que a observncia de tal clusula somente exigida quando suscitada a declarao de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Pblico, sendo certo que, nos presentes autos, sequer houve qualquer formulao de pedido nesse sentido por quaisquer das partes. 4. Recurso ao qual se nega seguimento, na forma do art. 557, caput, do CPC.
Por fim, imperioso que a Carta Magna40 atribui ao Estado lato sensu o dever de
assegurar coletividade o direito sade, isto , no existe distino ou diferenciao quanto
s obrigaes impostas aos entes federativos. O direito subjetivo plena sade do cidado
abarca, de forma solidria a atuao do Poder Pblico, por meio dos entes estatais, na garantia
do seu acesso universal e integral. Desse modo, deve o Poder Pblico buscar sua efetivao,
de forma a afastar argumentos de diviso de competncias e ausncia de responsabilidade de
qualquer dos entes, assim como tambm a reserva do possvel ou a limitao oramentria,
mormente por se tratar de cidados economicamente necessitados, e nesse sentido fornecer
aquilo de que necessita para sobreviver de forma digna.
38BRASIL. Constituio da Repblica Federativa do Brasil. Disponvel em: . Acesso em: 17 mar. 2017. 39BRASIL. Tribunal de Justia do Estado do Rio de Janeiro. AP n. 0153915-47.2012.8.19.0001. Relator: Desembargador Fernando Foch Lemos. Disponvel em:. Acesso em: 17 mar. 2017. 40BRASIL. Constituio da Repblica Federativa do Brasil. Disponvel em: . Acesso em: 17 mar. 2017.
636 Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro
VOLTAR AO SUMRIO
15
CONCLUSO
A Constituio Federal de 1988 prev que a sade um direito de todos, brasileiros
ou estrangeiros, residentes no territrio brasileiro, e dever do Estado, garantir por meio de
polticas o acesso universal e igualitrio s aes e aos servios ligados sade. atribuio
do Poder Pblico formular e implementar polticas sociais e econmicas, pois trata-se de
respeito vida do ser humano. Com isso, a sade pblica abarca atendimento integral,
inclusive o fornecimento gratuito de medicamentos e insumos ao cidado hipossuficiente.
O direito subjetivo sade um direito fundamental social e est, intrinsecamente,
ligado dignidade da pessoa humana e ao bem maior que a vida. A sade um dos fins
buscados pelo Estado e, nesse sentido, o cumprimento desse dever de responsabilidade
solidria dos entes federativos.
Diante disso, o Sistema nico de Sade (SUS) foi criado para promover a justia
social, assim o acesso universal e igualitrio na assistncia sade da populao, de forma a
atuar na sua promoo, proteo e recuperao. Nessa esteira, visa propiciar o que for mais
adequado e eficaz para oferecer maior dignidade pessoa humana, inclusive fornecer
medicamentos, que no constem na lista dos padronizados do SUS, mas que sejam
reconhecidos pela ANVISA. As aes e servios de sade esto submetidos ao controle do
Estado, e dada relevncia pblica, deve-se zelar pelo cumprimento dos direitos assegurados
pela Constituio Federal, para garantir coletividade o direito sade pblica, por meio do
atendimento pelo SUS. Desse modo, faz-se mister a realizao constante de novas aes que
visem melhorar, reformar e incrementar o SUS.
De um lado, notria a atuao do SUS, haja vista o grande nmero de pessoas
atendidas j na primeira vez que o procuram, como nas campanhas de vacinao no pronto-
atendimento, em casos de acidentes ou mesmo em algum outro atendimento de sade. Diante
disso, o SUS busca a eficincia, a celeridade, maior qualidade, novas e melhores formas de
atuao, e reduo de riscos de doenas e outros agravos da sade.
Por outro lado, o SUS, no raras as vezes, insuficiente para garantir a assistncia
populao do Pas. O direito social sade tem um custo oneroso que somado s limitaes
oramentrias do Estado e a reserva do possvel tornam a sua efetividade aqum do que se
espera. Ficam tambm prejudicadas diversas formas de assistncia, inclusive, no tocante a
medicamentos considerados indispensveis pelo Ministrio da Sade. Assim, no sobejam
dvidas quanto aos danos causados aos que sofrem com a falta de medicamentos do SUS.
637Revista de Artigos Cientficos - V. 9, n.1, Tomo II (M/Y), jul./dez. 2017
VOLTAR AO SUMRIO16
Com deficincias nos servios da sade pblica surgem inmeras demandas no
Judicirio, sobretudo quando se trata de pessoas necessitadas que no dispem de recursos
econmicos, que clamam pelo atendimento de suas necessidades. O Poder Judicirio ao fazer
cumprir a Carta Magna vela pela justia social, voltada para a reduo das desigualdades,
sendo aqui, em especial, no que se refere proteo dos hipossuficientes nas questes da
sade.
Conclui-se que, por meio das prestaes jurdicas, busca-se alcanar as prestaes
materiais dos direitos conferidos populao na Constituio Federal. Diante do exposto, o
Poder Judicirio atua para fazer cumprir as normas constitucionais referentes proteo da
sade, que visam resguardar a dignidade humana e a vida, valores superiores s demais
questes, em qualquer tempo e em qualquer cir