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© Wolters Kluwer Portugal | Coimbra Editora A LEI APLICÁVEL À MODIFICAÇÃO DO REGIME DE BENS. ANOTAÇÃO AO ACÓRDÃO DO STJ DE 12.09.2006. HELENA MOTA (*) “É válida, segundo a lei portuguesa, a venda de um prédio realizada por mulher casada com um cidadão alemão e de acordo com a lei portuguesa, sem o consentimento deste, apesar de o respectivo casamento ter sido celebrado segundo o regime de comunhão, se, posteriormente, mas antes do negócio, o regime de bens foi alterado de acordo com a lei alemã.” SUMÁRIO DO ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE 12.09.2006, PROCESSO N.º 06A2286 (1) No Acórdão do STJ de 12.09.2006 discutiu-se a validade da venda de um imóvel situado em Portugal, realizada por uma cidadã portuguesa — a favor de quem o imóvel estava registado — sem o consentimento do marido, de nacionalidade alemã. Os cônjuges casaram em Portugal no ano de 1969, país onde residiram durante algum tempo, tendo adoptado, ainda nesse ano, residência na Alemanha e aí passado a viver, apesar de terem mantido uma segunda residência em Portugal. O casamento não havia sido precedido de con- venção antenupcial mas, já depois da sua celebração, e ainda no ano de 1969, (*) Professora Auxiliar da Faculdade de Direito da Universidade do Porto. (1) http://www.dgsi.pt/restore/jstjtt.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/f2ca830 d7128eb9d802571ed003a44de?OpenDocument

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direito internacional privado

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    A LEI APLICVEL MODIFICAO DO REGIME DE BENS. ANOTAO AO ACRDO DO STJ DE 12.09.2006.

    HELENA MOTA (*)

    vlida, segundo a lei portuguesa, a venda de um prdio realizada por mulher casada com um cidado alemo e de acordo com a lei portuguesa, sem o consentimento deste, apesar de o respectivo casamento ter sido celebrado segundo o regime de comunho, se, posteriormente, mas antes do negcio, o regime de bens foi alterado de acordo com a lei alem.

    SUMRIO DO ACRDO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIA DE 12.09.2006, PROCESSO N. 06A2286 (1)

    No Acrdo do STJ de 12.09.2006 discutiu-se a validade da venda de um imvel situado em Portugal, realizada por uma cidad portuguesa a favor de quem o imvel estava registado sem o consentimento do marido, de nacionalidade alem.

    Os cnjuges casaram em Portugal no ano de 1969, pas onde residiram durante algum tempo, tendo adoptado, ainda nesse ano, residncia na Alemanha e a passado a viver, apesar de terem mantido uma segunda residncia em Portugal. O casamento no havia sido precedido de con-veno antenupcial mas, j depois da sua celebrao, e ainda no ano de 1969,

    (*) Professora Auxiliar da Faculdade de Direito da Universidade do Porto.(1) http://www.dgsi.pt/restore/jstjtt.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/f2ca830

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    os cnjuges decidiram outorgar uma conveno segundo a qual adoptavam o regime da separao de bens, acordo esse lavrado em Cartrio Notarial, na Alemanha.

    O Autor vem alegar a invalidade da venda por violao do art. 1682.-A, n. 1, al. a), do CC, que, conjugado com o art. 1687. do mesmo diploma, determina a anulabilidade da venda de imveis, prprios ou comuns, por um dos cnjuges sem o consentimento do outro, salvo se estiverem casa-dos em separao de bens; a R mulher contesta alegando que, data da venda, estavam j casados em separao de bens pelo que no lhe fenecia qualquer legitimidade para a realizao da mesma.

    Dada a internacionalidade absoluta desta situao (2), as instncias recorreram, e bem, s regras de conflitos de leis no espao, no caso con-creto ao art. 52. ex vi art. 54. do CC, para determinar a lei aplicvel questo controvertida: a validade da modificao do regime de bens. E, na ausncia de uma nacionalidade comum e no dando como provada a existncia de uma residncia habitual comum (ou duvidando sobre se ela se situava na Alemanha ou em Portugal), tanto o Tribunal de Crculo da Guarda quanto a Relao de Coimbra e o Supremo Tribunal de Justia decidiram aplicar a ltima conexo do art. 52. na verso do Cdigo de 1966 a lei pessoal do marido, a lei alem diploma vigente data dos factos invocados, i.e., da celebrao da conveno de modificao do regime de bens.

    Todas as instncias pugnaram pela constitucionalidade do preceito: a 1. instncia entendendo que a aplicao da lei pessoal do marido resultava de um comando conflitual neutro e naturalmente imune a qualquer juzo de (in)constitucionalidade e a Relao de Coimbra, apesar de admitir o controlo constitucional da regras de conflitos, entendendo que tal avaliao deveria ser feita atravs do cotejo entre a regra de conflitos aplicanda e os valores constitucionais plasmados na Constituio de 1933, vigente data da modificao do regime de bens, momento tido como relevante para a apreciao dos factos e aplicao do dito normativo, posio que viria a ser confirmada pelo STJ no Acrdo agora comentado.

    Uma vez justificada a aplicao da lei alem nos termos do art. 52., n. 2, in fine (redaco de 1966) ex vi art. 54. do CC, os cnjuges pude-ram, ao abrigo do disposto no art. 1408. BGB, alterar materialmente o

    (2) Na formulao conhecida de JITTA. Sobre esta classificao, cfr. A. MARQUES DOS SANTOS, As normas de aplicao imediata, vol. I, p. 8, nota 19, e p. 43, nota 151.

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    A lei aplicvel modificao do regime de bens 305

    regime de bens do seu casamento, passando do regime supletivo da lei portuguesa (comunho de adquiridos) para a separao de bens prevista no mesmo ordenamento. Desta forma, a cnjuge mulher, a favor de quem o imvel vendido estava registado, tinha total legitimidade para realizar a venda sem o consentimento do marido (art. 1735.), no lhe sendo aplic-vel o art. 1682.-A, n. 1, al. a), do CC.

    So, no entanto, vrias as questes omitidas quer pelas instncias quer pelo Supremo Tribunal de Justia na apreciao desta factualidade e que, a serem suscitadas e discutidas, conduziriam, no nosso modo de ver, seno a uma diferente deciso, pelo menos a uma deciso com diversa funda-mentao e que merecem, por isso, a nossa ateno.

    E elas so: a) a determinao da lei aplicvel quer ao regime de bens vigente neste casamento quer prpria validade da venda; b) a aplicao no tempo das regras de conflitos consideradas; c) a inconstitucionalidade na aplicao da lei pessoal do marido; d) a possibilidade da concretiza-o do elemento de conexo residncia habitual comum; e) os eventuais problemas de qualificao que a aplicao do direito alemo quer no que tange modificabilidade do regime de bens quer legitimidade conjugal para a venda de um bem prprio poderiam suscitar. Sobre elas nos dete-remos:

    a) A lei aplicvel ao regime de bens e validade da vendaSegundo o acrdo do STJ aqui analisado, em nenhum momento as

    instncias se pronunciaram sobre a lei aplicvel definio do regime de bens em vigor no casamento sub iudice. Aparentemente, e dado que o problema central se resumia validade de uma venda feita luz de um regime de bens que alegadamente teria sido modificado, a preocupao dos Tribunais recaiu na validade dessa modificao luz da lei que rege tal alterao, isto a lei indicada pelo art. 52. ex vi art. 54. do CC.

    No entanto, necessrio lembrar que em primeiro lugar era mister definir o regime de bens em que os cnjuges casaram o que, dada con-temporaneidade dos elementos de estraneidade ao momento da celebrao do casamento, deveria ser feito luz da lei reguladora desse regime que era a indicada pelo art. 53. do CC.

    Ora, mesmo no havendo dvidas sobre ser a lei portuguesa a defi-nidora desse regime, enquanto lei da residncia habitual comum data do casamento (art. 53., n. 2, 1. parte, mesmo na verso de 1966), por fora da qual, e no tendo os cnjuges celebrado conveno antenupcial, se aplicaria o regime da comunho de adquiridos (arts. 1717. e 1721. e ss.),

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    a questo no era despicienda. que, independentemente da validade do acto de modificao do regime de bens, a lei aplicvel continuava a ser a lei portuguesa j que a sua conexo objectiva e imperativa e a modifi-cao de regime a que o art. 54. do CC se refere tem um sentido exclu-sivamente material. Isto , qualquer que fosse o regime de bens escolhido pelos cnjuges na nova conveno, a lei definidora do regime, no caso a lei portuguesa, permanecia aplicvel, no permitindo, por exemplo, a der-rogao de normas imperativas (por exemplo, as constantes dos arts. 1720., 1699. e 1733.) nem a simples remisso genrica para um regime de bens estrangeiro, nos termos do art. 1718. Do mesmo modo, se fosse outra a lei do estatuto patrimonial do casamento bastava que os cnjuges j residissem na Alemanha nessa data seriam as normas imperativas dessa lei que se aplicariam e a conveno da modificao material do regime poderia ser autorizada qua tale mas poderia no o ser o seu contedo, se no respeitasse preceitos imperativos da lei alem. Mais: neste caso, a prpria alterao do regime de bens poderia nem constituir a questo principal, pois por aplicao da lei alem ao estatuto patrimonial dos cn-juges dependentes do regime de bens ex vi art. 53., a ilegitimidade con-jugal referida, ao no estar considerada na lei alem, daria razo Autora, independentemente de os cnjuges permanecerem casados num regime supletivo (da lei alem) ou de terem aderido ao regime de separao de bens.

    Nada resulta nesse sentido (ou em sentido contrrio) dos factos dados como provados e admite-se, portanto, que os cnjuges acordaram na apli-cao material do regime de separao de bens previsto na lei portuguesa, em perfeita consonncia com a lei aplicvel nos termos do art. 53. Fica no entanto o reparo sobre a necessidade de resolver esta questo com primazia sobre a anlise da (im)possibilidade de alterar o regime de bens escolhido ou determinado supletivamente.

    Por outro lado, tambm nada resulta das decises apreciadas sobre a lei aplicvel validade da venda quando essa , no essencial, a questo controvertida. Isto , as instncias partiram do princpio que estava (s) em causa a aplicao do art. 1682.-A, n. 1, al. a), do CC portugus cuja estatuio estava dependente do facto de os cnjuges estarem (ou no) casados no regime de separao de bens, resposta por sua vez compro-metida pela (in)validade do acto de modificao do regime praticado na Alemanha.

    No entanto, as coisas no eram assim to simples. A lei aplicvel validade da venda era, neste caso, a portuguesa, na medida em que a

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    norma material invocada se subsume ao conceito-quadro do art. 53., j que diz respeito a um efeito patrimonial do casamento que est depen-dente do concreto regime de bens em que os cnjuges esto casados (3) (salvo se entre eles vigorar o regime de separao de bens, art. 1682.-A, n. 1, al. a), in fine) e o art. 53. mandaria aplicar, nesta situao, como j vimos, a lei da residncia habitual data do casamento, ou seja, a por-tuguesa. Mas acaso o imvel vendido fosse a prpria morada de famlia, j a questo seria resolvida pela lei indicada pelo art. 52., a lei alem, que contm regras diferentes das portuguesas; e se, no limite, a lei alem fosse a lei indicada pelo art. 53., como imaginmos supra, enquanto lei da primeira residncia conjugal, sabendo que este ordenamento no prev qualquer tipo de ilegitimidade deste gnero, mesmo nos regimes de comu-nho, quando esto em causa bens prprios dos cnjuges, sendo irrelevante, nessa hiptese, a modificao do regime de bens, quid iuris? A soluo poderia ser materialmente a mesma mas a sua fundamentao era diversa: a venda era vlida no porque os cnjuges estivessem casados na separa-o de bens e nos termos da lei portuguesa, nesse regime, no havia ile-gitimidade conjugal mas porque a lei competente para regular os seus regimes de bens, a lei alem, permitia a venda mesmo que continuassem casados na comunho de adquiridos.

    O tratamento conflitual destas questes era necessrio ainda que, como por mera coincidncia acontece nesta factualidade, o resultado fosse o mesmo. No poderiam ser, sem mais, descartadas pois ao faz-lo estar-se- a viciar a lgica e o mtodo da resoluo do conflito de leis.

    b) A aplicao no tempo das regras de conflitosH, relativamente questo de saber se dever-se-iam aplicar as regras

    de conflitos vigentes data dos factos relevantes ou as regras de conflitos actuais, um silncio estranho por parte das instncias; tal omisso foi parcialmente corrigida pelo STJ que, no entanto, no se referiu polmica sobre a questo, dada a ausncia de disposio expressa do legislador conflitual num ou noutro sentido. Ora, na medida em que as regras de conflitos visadas os arts. 52. ex vi art. 54. e 53. sofreram altera-es na sua redaco com a Reforma de 77, ou seja, j depois da ocor-rncia destes mesmos factos (quer o casamento quer o acto de modificao

    (3) Sobre este critrio de qualificao, cfr., por todos, JOO BAPTISTA MACHADO, Lies de direito internacional privado, Coimbra, Almedina, 3. ed., 1992, p. 409.

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    do regime de bens ocorreram em 1969), era necessrio tomar posio nesta matria em vez de assumir como certa a irretroactividade das regras de conflitos e a aplicao da regra de conflitos antiga.

    Na verdade, no se tendo o legislador conflitual referido expressa-mente quanto aplicao das regras de conflitos no tempo, a doutrina sempre a questionou e se dividiu sobre a mesma. Baptista Machado (4), por exemplo, entende que a regra de conflitos, como regulae decidendi, sempre retroactiva, na medida em que limitando-se a distribuir competn-cias pelas leis em contacto com a situao no visa a constituio, modi-ficao ou extino de relaes jurdicas e, assim, as partes no necessitam de pautar os seus comportamentos pelos seus comandos, no existindo necessidade de considerar aquelas que, j pretritas, (no) tinham impreg-nado os factos. De opinio contrria Magalhes Collao (5), para quem as normas de direito transitrio so aplicveis tambm ao Direito de Con-flitos e, na ausncia de uma indicao concreta dada pelo legislador, aplicar-se- por analogia o art. 12. do CC e o princpio da no retroacti-vidade das lei. Assim, mesmo tendo aderido a esta tese, no deveriam as instncias ter omitido este passo na fundamentao da sua deciso.

    c) A inconstitucionalidade na aplicao da lei pessoal do maridoAo contrrio do que sustentou o Tribunal de Crculo da Guarda, tanto

    a RC como o STJ defenderam a sindicao da constitucionalidade das regras de conflitos e dos elementos de conexo por elas eleitos, posio consentnea com a opinio dominante da doutrina (6) e com a opo tomada pelo prprio legislador quando, em 77, alterou os arts. 52. e 53. do CC, para alm de ter revogado os arts. 58. e 59., por desconformidade, naquele caso, com o princpio da igualdade jurdica dos cnjuges consa-grada no art. 36., n. 1, da CRP de 1976 e neste com o princpio da no discriminao entre filiao legtima e ilegtima, prevista no art. 36., n. 4, da Lei Fundamental.

    (4) Cfr. JOO BAPTISTA MACHADO, Lies de direito internacional privado, pp. 228-9.

    (5) Cfr. MAGALHES COLLAO Direito Internacional Privado. Lies: 1. parte do vol.II (Curso Jurdico 1966-67, e O regime da devoluo no Cdigo Civil de 1966 (Curso Jurdico 1967/68), polic., Lisboa, AAFDL, 1984, pp. 62 e ss).

    (6) Entre ns, cfr., por todos, RUI MOURA RAMOS, Direito Internacional Privado e Constituio Introduo a uma anlise das suas relaes, Coimbra, Coimbra Editora, 3. reimp., 1994, pp. 171 e ss.

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    No entanto, o STJ considerou que, na medida em que estava em causa a utilizao de um elemento de conexo de uma regra de conflitos antiga, tal juzo de constitucionalidade s poderia ser feito luz da Constituio vigente poca em que tal regra de conflitos estava em vigor. Esta confu-so entre os critrios de aplicao da lei no tempo e os de constitucionali-dade no se entende muito bem, especialmente se pensarmos qual seria, ento, a deciso do Tribunal se acaso a Reforma de 77 no tivesse alterado o texto dos citados preceitos. Nesse caso, teria o STJ considerado que a aplicao dos novos valores constitucionais, os da lei Fundamental de 76, j no era retroactiva, na medida em que seriam contemporneos da regra de conflitos? E seria vlido, nesse caso, um juzo de inconstitucionalidade? Suspeitamos que no pois o STJ tambm argumenta que a regra de confli-tos em causa esgotou os seus efeitos no momento da sua aplicao, i.e, no agora quando as partes litigam mas no momento em que ocorreram os fac-tos que determinam a sua pretenso: o da modificao do regime de bens, em 1969. E que, desse ponto de vista s nesse momento, em que se define o regime de bens do casamento, se deve determinar a lei que lhe aplicvel e saber se ela , ou no, inconstitucional.

    No podemos concordar com esta linha de argumentao: a imobili-zao que o legislador (no caso do art. 53.) ou o intrprete (no caso do art. 52.) possa fazer do elemento de conexo, ou melhor, a determinao temporal da relevncia da sua concretizao visa apenas resolver um pro-blema de conflito mvel e nada tem a ver com a aplicao das regras de conflitos no tempo que tem de ser resolvido, como dissemos, em tese geral e muito menos com o problema da aplicao (actual) de regras de conflitos desconformes aos princpios (actuais) constitucionalmente consagrados. De resto, noutros pases onde o problema se tem colocado em termos semelhantes, a declarao de inconstitucionalidade e a substi-tuio das conexes inconstitucionais prtica recorrente e pacfica. (7)

    Donde pensarmos que a melhor soluo no caso em apreo seria o recurso ao elemento de conexo do art. 52., n. 2, na redaco de 77, e aplicar da mesma forma a lei alem mas enquanto lei mais prxima da vida familiar e no porque a lei pessoal do marido.

    (7) Cfr. no direito espanhol que sofreu, nesta questo, uma evoluo semelhante nossa, ALFONSO-LUIS CALVO CARAVACA E JAVIER CARRASCOSA GONZLEZ (DIR.), Derecho Internacional Privado, Granada, Comares, 7. ed., vol. II, 2006, p. 80, e JAVIER CARRASCOSA GONZALEZ, Matrimonio y eleccion de ley, Granada, Comares, 2000, p. 123.

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    d) A possibilidade da concretizao do elemento de conexo resi-dncia habitual comum

    Acresce que o problema s se colocou porque o STJ, tal como as instncias inferiores, entendeu no ser possvel aplicar a lei da residncia habitual comum dos cnjuges apesar de no expor as razes de tal impos-sibilidade. Dos factos dados como provados e transcritos na deciso do STJ, verifica-se que os cnjuges mantiveram duas residncias, uma em Portugal e outra na Alemanha, tendo sido dado como provado que foi nesta ltima que, pelo menos at 1984, o A. e a 1. R. comiam, dormiam, recebiam visitas e correspondncia. Ora, estes factos correspondem queles que tm sido entendidos pela doutrina como os integradores do conceito residncia habitual, na medida em que espelham a existncia de uma base ou centro de vida dotada de estabilidade e efectividade (8). Podem efectivamente existir residncias habituais alternadas mas, nesse caso, necessrio que se mantenham, em relao a cada uma delas, os caracteres apontados, sob pena de se transformarem em residncias oca-sionais (9). No caso dos autos, aquilo que dito pelas instncias no belisca a qualificao da residncia alem como habitual, apenas afirma que existiam, data da outorga da conveno nupcial, duas residncias conjugais, uma na Alemanha e outra em Portugal, no resultando inequ-voco, na expresso das instncias, a concretizao do elemento de cone-xo principal. Tal justificao parece-nos muito curta, na medida em que no explora devidamente os elementos de prova que revelariam o carcter estvel e central da residncia conjugal, parecendo ficar coarctada nesse juzo pelo facto de existirem mais do que uma residncia conjugal.

    Chegados a este ponto, verificamos que apesar da nossa discordncia quanto ao caminho trilhado pelas instncias e pelo Supremo para aplicar a lei alem questo sub iudice, aceitamos que seria esta a lei competente para autorizar a modificao do regime de bens do casamento que passou a ser um regime de separao , sem prejuzo de a lei portuguesa se manter como lei aplicvel ao regime de bens e ilegitimidade conjugal

    (8) Neste sentido, cfr. JOO CASTRO MENDES, Teoria Geral do Direito Civil, Lisboa, AAFDL, 1997, p. 204, LUS CARVALHO FERNANDES, Teoria Geral do Direito Civil, 1. vol, Lisboa, UCP, 3. ed., pp. 380-382, LUS DE LIMA PINHEIRO, Direito Internacional Privado, vol. I, Coimbra, Almedina, 2001, pp. 351-352.

    (9) Assim, INOCNCIO GALVO TELLES,Resoluo do contrato de arrendamento//Residncia permanente, residncias alternadas e residncia ocasional, CJ, XIV (1989) 2, 31-35.

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    arguida. E a aplicao da lei alem seria possvel se, de qualquer modo, descartssemos a hiptese de reenvio. Ou seja, necessrio verificar, de antemo, se nos termos do sistema conflitual alemo, este ordenamento se considera competente para regular a questo jurdica em apreo ou se, de outro modo, aplica lei diversa e esta, do mesmo modo, se considera directa ou indirectamente competente, caso em que, nos termos do art. 17., n. 1, a harmonia internacional de julgados exigiria o reenvio para esta terceira lei. Ora, neste caso em particular, segundo o art. 14. do EGBGB, ser de aplicar a lei da residncia habitual comum ao tempo da modificao do regime de bens, e no parece que a lei alem considerasse outra resi-dncia dos cnjuges seno a existente, poca, na Alemanha. Assim sendo, a lei alem considerar-se-ia competente e no se colocava qualquer problema de reenvio.

    Mas reside um ltimo problema:

    e) A diferente caracterizao feita pela lei alem da norma material do seu ordenamento jurdico que permite a modificao do regime de bens na constncia do matrimnio e as repercusses dessa caracterizao luz do art. 15. do CC.

    A lei alem, de acordo com o art. 1408. do BGB, e ao contrrio do que sucede com a lei portuguesa que, nos termos do art. 1714., consagra imutabilidade dos regimes de bens, permite aos cnjuges no s escolhe-rem o regime de bens do seu casamento, mesmo na sua constncia, como alterar, em qualquer momento, a escolha feita. Tal norma caracterizada, no seio do direito alemo, como regra definidora do estatuto patrimonial do casamento (10) que permite aos cnjuges, a todo o momento, (re)definir o seu contedo, as suas disposies e, naturalmente, os seus efeitos. Tal caracterizao ou classificao tem, ao nvel do direito conflitual alemo, uma consequncia lgica: a modificao dos regimes de bens parte inte-grante do ncleo de matrias previstas no art.15. EGBG, regra de confli-tos que determina a lei competente para definir os regimes matrimoniais.

    Este entendimento da lex causae deveria ter, segundo o modelo de qualificao previsto na lei portuguesa atravs do seu art. 15., necessria ressonncia. lex causae que o intrprete deve ir colher as caracters-ticas das normas aplicandas para saber se elas (ainda) cabem no conceito-

    (10) DIETER HENRICH, Internationales Familienrecht, Francoforte, Verlag fr Stande-samtswesen, 1989, p. 38.

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    -quadro da regra de conflitos que mandou aplicar o ordenamento jurdico a que tais normas pertencem e essa compatibilidade deve ser decidida autonomamente pela lei formal do foro (pela regra de conflitos) atravs de um juzo de convenincia entre o elemento de conexo da regra de conflitos do foro e os fins e objectivos da norma material aplicanda, lidos no seu prprio contexto.

    Ora, parece-nos claro que uma norma como a do 1408. do BGB que no v qualquer obstculo livre modificao dos regimes de bens tambm no convm ao elemento de conexo do art. 52., mas ao ele-mento de conexo do art. 53., na medida em que este est imobilizado no tempo para servir as expectativas das partes em matrias de pendor convencional (11).

    Se, tal como ensina Ferrer Correia (12), o art. 15. no compromete o intrprete com nenhuma qualificao, seria admissvel quer a qualificao da lei alem (art. 53.) que nos remete para a aplicao da lei portuguesa, quer a qualificao da lei portuguesa (o art. 1714. reconduz-se ex vi art. 54. ao art. 52.) que manda aplicar a lei alem, sobrevindo assim um conflito negativo de qualificaes, uma vez que nem o art. 1408. do BGB nem o art. 1714. do CC pertencem aos ordenamentos jurdicos mandados aplicar pelas regras de conflitos s quais se subsumem, respectivamente, a lei portuguesa e a lei alem.

    Argumentar-se-, naturalmente, que o art. 54. resolve em definitivo o problema de qualificao remetendo a questo da modificao dos regi-mes de bens para o conceito-quadro do art. 52., o que implicar a recon-duo da soluo alem previso desta regra de conflitos. No entanto, fica ao intrprete a dvida sobre a correcta articulao entre esta norma e o art. 15. do CC quando, como neste caso, a caracterizao da lei estran-geira nos quadros do ordenamento respectivo chama(ria) outra regra de conflitos.

    esta, alis, a dvida (13) que nos leva a questionar o sentido e alcance do art. 54. do CC.

    (11) Assim, JOO BAPTISTA MACHADO, Lies de direito internacional privado, pp. 409-411.

    (12) Cfr. ANTNIO FERRER CORREIA, Lies de direito internacional privado, p. 214.

    (13) Esta mesma dvida foi exposta por ns, a propsito desta mesma deciso, no texto e, em especial na nota 659, do trabalho com o ttulo Os regimes patrimoniais do casamento em Direito Internacional Privado e, em especial, o regime matrimonial primrio

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    A lei aplicvel modificao do regime de bens 313

    A justificao da soluo do art. 54. reside, tradicionalmente, na tentativa de resolver um problema de qualificao. Mas, no nosso modo de ver, f-lo de forma totalmente incongruente com o mtodo de qualifi-cao previsto no art. 15. porque toma como assente e seguro, para qual-quer soluo material sobre a admisso da modificao dos regimes de bens (positiva, negativa, com nuances e restries variadas), que os valo-res que lhe subjazem so de ndole pessoal por isso, s uma conexo de tipo pessoal e mvel lhe serve. O que est por provar.

    Ora, partindo do mtodo proposto no art. 15., dever-se- indagar da ratio da norma material dentro do sistema em que esta se insere e retirar as devidas concluses, submetendo-a ao art. 52. (ou 53.). Esta dmarche incontornvel e o teor do art. 54. vem neg-la. que, se a lei aplicvel aos regimes de bens (que pode ser deferente da lei indicada pelo art. 52., dada a imobilizao do elemento de conexo no art. 53.) admitir, como neste caso a alem, a modificao desses regimes de bens, isto significa que quer pela soluo apresentada quer pelos objectivos cumpridos no seio do ordenamento a que pertence, apenas pretende regular os regimes de bens do casamento. Esta ser a caracterizao feita lege causae. Ora, apesar de o art. 54. afirmar que a admissibilidade ou no da alterao dos regimes de bens deve ser decidida pela lei indicada no art. 52., parece-nos que isto s pode querer significar que a norma material, potencialmente aplicvel questo por pertencer a uma lei espacialmente conexionada com a situao sub iudice, ao recusar a validade destas modificaes o faz porque comunga de interesses institucionais, de defesa dos interesses dos cnjuges e de terceiros, dum quadro de estabilidade patrimonial familiar

    correspondente dissertao de doutoramento em Cincias Jurdico-Civilsticas apresentada em Julho de 2009 na Faculdade de Direito da Universidade do Porto, sob a orientao do Prof. Doutor Rui Moura Ramos, e discutida em provas pblicas no dia 15.10.2010. Nesse trabalho, defendemos a necessidade de revogao do art. 54., n. 1, do CC no s pelas dificuldades de compatibilizao com o art. 15. do CC quando, como na deciso comen-tada, a lei estrangeira aplicvel permitir a modificao do regime de bens mas tambm pela, no nosso modo de ver, incorrecta soluo de qualificao do art. 1714. do CC, na medida em que esta regra, apesar do seu carcter imperativo e geral ainda uma norma integradora do estatuto estritamente patrimonial dos cnjuges, visando regular o seu regime de bens concreto, uma vez que no indiferente para os cnjuges que decidem sobre o regime de bens do seu casamento se ele , ou no, livremente revogvel ou passvel de modificao, tratando-se, desse ponto de vista, de uma matria no estranha sua vontade. De resto, outros ordenamentos, especialmente em face do princpio da imutabilidade ate-nuado, como o caso do direito francs, seguem o mesmo critrio.

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    Helena Mota 314

    que s bem servido por uma conexo do tipo pessoal porque a questo, para os ordenamentos que apresentam esta soluo, est para alm do regime de bens, dos aspectos puramente materiais do casamento: uma questo de natureza pessoal. Estes valores s podem ser diferentes dos que justificam a soluo contrria: a livre modificao dos regimes legais ou convencionados. Daqui resultar, por exemplo, que se a lei indicada pelo art. 52. e a lei indicada pelo art. 53. estiverem ambas em contacto com a situao e adoptar a primeira o princpio da imutabilidade e a segunda permitir a livre alterao, por vontade das partes, do regime de bens, estaremos perante um conflito positivo de qualificaes e o art. 54., quando bem lido, nada ter resolvido. Ou, como no caso exposto, e uma vez que a lei indicada pelo art. 52., a lei alem, permite a modificao dos regimes de bens e a lei indicada pelo art. 53., a nega, um conflito negativo.

    Porto, 31 de Janeiro de 2011