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UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE PSICOLOGIA DIFICULDADES DE APRENDIZAGEM E PROBLEMÁTICA EMOCIONAL: UTILIZAÇÃO DA PROVA ERA UMA VEZ…” Maria João Valgôde MESTRADO INTEGRADO EM PSICOLOGIA (Secção de Psicologia Clínica e da Saúde / Núcleo de Psicologia Clínica Dinâmica) 2016

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UNIVERSIDADE DE LISBOA

FACULDADE DE PSICOLOGIA

DIFICULDADES DE APRENDIZAGEM E PROBLEMÁTICA

EMOCIONAL: UTILIZAÇÃO DA PROVA “ERA UMA VEZ…”

Maria João Valgôde

MESTRADO INTEGRADO EM PSICOLOGIA

(Secção de Psicologia Clínica e da Saúde / Núcleo de Psicologia Clínica Dinâmica)

2016

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UNIVERSIDADE DE LISBOA

FACULDADE DE PSICOLOGIA

UNIVERSIDADE DE LISBOA

FACULDADE DE PSICOLOGIA

DIFICULDADES DE APRENDIZAGEM E PROBLEMÁTICA

EMOCIONAL: UTILIZAÇÃO DA PROVA “ERA UMA VEZ…”

Maria João Valgôde

Dissertação Orientada pelo Prof. Doutor Bruno Ademar Paisana Gonçalves

e Profª. Doutora Maria Teresa Fagulha

MESTRADO INTEGRADO EM PSICOLOGIA

(Secção de Psicologia Clínica e da Saúde / Núcleo de Psicologia Clínica Dinâmica)

2016

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“Ensinam-nos tanto na escola sobre como funciona o nosso corpo por dentro

e nada sobre como funciona a nossa mente.”

José Valgôde (meu pai)

Nota: esta tese não foi escrita segundo as regras do novo acordo ortográfico.

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Dificuldades de aprendizagem, problemática emocional e a prova “Era Uma Vez…”

Agradecimentos

AGRADECIMENTOS

Aos meus orientadores, professor doutor Bruno Gonçalves e professora doutora Teresa

Fagulha, por todo o apoio e disponibilidade.

Às crianças que participaram neste estudo, aos seus pais, às professoras das turmas

participantes e às direcções das escolas que facilitaram todo o trabalho.

À minha mãe pelo apoio necessário para que eu pudesse regressar à prática da

psicologia.

Aos amigos que ofereceram ajuda e a todos os que me disseram palavras de alento pelo

caminho.

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Dificuldades de aprendizagem, problemática emocional e a prova “Era Uma Vez…”

Resumo

RESUMO

O problema das dificuldades de aprendizagem tem sido estudado com várias abordagens

diferentes. A sua ligação com problemáticas de ordem emocional já foi alvo de estudos

experimentais, que encontraram relações entre os dois fenómenos.

O presente estudo teve como objectivo estudar as diferenças na problemática emocional

entre crianças com (n=14) e sem (n=17) dificuldades de aprendizagem, utilizando a prova

“Era uma vez…”. Comparou-se a utilização das quatro estratégias de elaboração da

ansiedade e as escolhas das categorias de cenas na sequência. Esperava-se que as crianças

com dificuldades de aprendizagem mostrassem mais dificuldades na elaboração da ansiedade

suscitada pelos cartões da prova. A análise os dados recolhidos foi feita através do programa

estatístico IBM SPSS – Statistics 20 (Statistical Package for the Social Sciences). Os

resultados confirmam parcialmente as hipóteses definidas. As crianças com dificuldades de

aprendizagem utilizaram estratégias de elaboração da ansiedade menos adaptativas nos

cartões II (doença), III (ida à praia) e IV (pesadelo). No total da prova utilizaram mais

frequentemente a estratégia Negação. Quanto às escolhas das cenas na sequência, apenas

foram encontradas diferenças entre os dois grupos na escolha de cenas de Aflição na terceira

posição do cartão II, mais frequente no grupo das crianças com dificuldades.

Palavras-chave: dificuldades de aprendizagem, problemática emocional, “Era uma

vez…”, Estratégias de Elaboração da Ansiedade, Negação, Impossibilidade, Estratégia

Adaptativa Operacional, Estratégia com Equilibração Emocional.

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Dificuldades de aprendizagem, problemática emocional e a prova “Era Uma Vez…”

Abstract

ABSTRACT

The problem of learning difficulties has been studied from several different approaches.

Their connection with emotional problems has been the subject of experimental studies that

have found links between the two phenomena.

This investigation aimed to study the differences in emotional problems between children

with (n = 14) and without (n = 17) learning difficulties, using the test "Era uma vez...". We

compared the use of the four anxiety elaboration strategies and the choices of the categories

of scenes in sequence. It was expected that children with learning disabilities showed more

difficulties in the elaboration of anxiety aroused by the test cards. The collected data analysis

was performed using IBM SPSS - Statistics 20 (Statistical Package for Social Sciences). The

results partially confirm the hypothesis set. Children with learning difficulties used less

adaptive strategies in cards II (disease), III (going to the beach) and IV (nightmare). In the

total test they used the denial strategy more often. As for the choice of scenes in the sequence,

differences were only found between the two groups in the choice of Affliction scenes in third

position of card II, more frequent in the group of children with difficulties.

Keywords: learning difficulties, emotional problems, "Era uma vez..." Anxiety Elaboration

Strategies, Denial, Impossibility, Adaptive Operational Strategy, Strategy with Emotional

Balance.

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Dificuldades de aprendizagem, problemática emocional e a prova “Era Uma Vez…”

Índice

5

ÍNDICE

AGRADECIMENTOS ..................................................................................................... 4

RESUMO ......................................................................................................................... 5

ABSTRACT ....................................................................................................................... 6

ÍNDICE ............................................................................................................................ 5

ÍNDICE DE QUADROS .................................................................................................. 7

INTRODUÇÃO................................................................................................................ 8

CAPÍTULO I – ENQUADRAMENTO TEÓRICO ......................................................... 11

I.1. As Necessidades Educativas Especiais e as escolas portuguesas ............................ 11

I.2. Pertinência da psicologia clínica na área das Necessidades Educativas Especiais .. 14

I.3. A psicanálise e o desenvolvimento do pensamento e da cultura ............................. 15

I.3.1. Freud, o período de latência e a cultura ........................................................... 16

I.3.2. Bion e o aparelho de pensar pensamentos ....................................................... 17

I.3.3. Winnicott, imaginação criadora e jogo ............................................................ 18

I.3.4. Bowbly e a vinculação .................................................................................... 20

I.3.5. Articulação conceptual ................................................................................... 21

I.4. A psicanálise e a educação escolar ........................................................................ 22

I.5. Problemas emocionais e dificuldades de aprendizagem: estudos experimentais ..... 26

I.6. Avaliação psicológica em contexto escolar............................................................ 28

I.7. Estudo de aspectos emocionais em crianças de idade escolar: a prova “Era Uma

Vez…” ............................................................................................................................ 31

CAPÍTULO II – OBJECTIVOS E HIPÓTESES ............................................................. 37

II.1. Objectivos ........................................................................................................... 37

II.2. Hipóteses ............................................................................................................. 37

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Dificuldades de aprendizagem, problemática emocional e a prova “Era Uma Vez…”

Índice

6

CAPÍTULO III – METODOLOGIA ............................................................................... 39

III.1. Amostra ............................................................................................................. 39

III.2. Instrumentos ....................................................................................................... 40

III.3. Procedimentos .................................................................................................... 40

III.4. Procedimento estatístico ..................................................................................... 41

CAPÍTULO IV – RESULTADOS .................................................................................. 42

IV.1. Dados estatísticos da prova “Era Uma Vez…” ................................................... 42

CAPÍTULO V – DISCUSSÃO DOS RESULTADOS .................................................... 48

CAPÍTULO VI - CONCLUSÕES .................................................................................. 53

BIBLIOGRAFIA ............................................................................................................ 55

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Dificuldades de aprendizagem, problemática emocional e a prova “Era Uma Vez…”

Índice de Quadros

7

ÍNDICE DE QUADROS

Quadro 1- Comparação das Estratégias de Elaboração da Ansiedade no Cartão I ............ 42

Quadro 2- Comparação das Estratégias de Elaboração da Ansiedade no Cartão II ........... 42

Quadro 3- Comparação das Estratégias de Elaboração da Ansiedade no Cartão III ......... 43

Quadro 4- Comparação das Estratégias de Elaboração da Ansiedade no Cartão IV ......... 44

Quadro 5- Comparação das Estratégias de Elaboração da Ansiedade no Cartão V........... 45

Quadro 6- Comparação das Estratégias de Elaboração da Ansiedade no Cartão VI ......... 45

Quadro 7- Comparação das Estratégias de Elaboração da Ansiedade no Cartão VII ........ 45

Quadro 8- Comparação das Estratégias de Elaboração da Ansiedade no Cartão VIII ....... 46

Quadro 9- Comparação das Estratégias de Elaboração da Ansiedade no Cartão IX ......... 46

Quadro 10- Comparação da utilização total das estratégias ............................................. 47

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Dificuldades de aprendizagem, problemática emocional e a prova “Era Uma Vez…”

Introdução

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INTRODUÇÃO

Durante a sua carreira como psicóloga educacional, a autora deste estudo deparou-se com

um conjunto de situações para o qual parecia não existir resposta – crianças com insucesso

escolar, sem uma deficiência ou patologia identificável. A abordagem da psicologia

educacional é, por definição, ecológica, e tem uma enorme importância no trabalho dentro

das escolas. No entanto, a legislação que enquadra os alunos com insucesso é aplicada caso a

caso, ao indivíduo aluno. Ambas as abordagens da psicologia, a educacional e a clínica,

devem ser complementares na abordagem ao problema das dificuldades de aprendizagem.

Dentro da escola, a psicologia educacional deverá funcionar como preventiva, actuando no

sistema escola – criança – família, com medidas que visem a construção de respostas

educativas de qualidade e adequadas às características de todos, nomeadamente dos que

precisam de mais do que o ensino “regular”. Por outro lado, a psicologia clínica tem uma

actuação mais localizada na criança, na família ou no professor. Avalia em profundidade e,

nomeadamente através da psicoterapia, trabalha para reparar falhas que provocam

dificuldades em vários contextos, não só no escolar.

O enfoque nas capacidades intelectuais e instrumentais tem sido o padrão quando se fala

de crianças com Necessidades Educativas Especiais (NEE). Se falta uma competência

instrumental, há que treiná-la. Se falta capacidade intelectual, há que baixar o nível de

exigência. De facto, existem situações que são explicadas por causas médicas, genéticas, e

outras, que determinam este como o melhor curso de acção. Mas voltemos às crianças sem

deficiência, sem incapacidade intelectual, sem doença, mas que não aprendem. Encontramos

muitas nas chamadas “famílias disfuncionais”. Mas a disfuncionalidade prática (de

cumprimento de horários, organização de vida, acompanhamento escolar) não explica tudo.

Tanto a experiência da prática pedagógica, como a da psicoterapia, como a investigação

científica, nos apontam para outro tipo de problemáticas frequentemente presentes nas

crianças que não aprendem – as emocionais. Os professores identificam com facilidade as

crianças que têm sintomas de exteriorização – as que quebram as regras, desafiam o que a

escola representa, são agressivas com colegas e por vezes também com adultos, parece que

nunca conseguem simplesmente estar e concentrar-se numa tarefa que não tenha como alvo

algum tipo de ataque ou destruição. Alguns professores também conseguem identificar e se

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Dificuldades de aprendizagem, problemática emocional e a prova “Era Uma Vez…”

Introdução

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preocupam com as crianças com sintomas de introversão – as muito caladas, que se

“ausentam” da actividade da turma, ansiosas, inseguras. As categorias não são estanques, e as

crianças no geral podem oscilar um pouco entre estas características. Mas algumas ficam

presas num funcionamento que parece não ter saída possível. São essas as que habitualmente

não aprendem.

Como será, então, que as dificuldades emocionais podem influenciar a capacidade de

aprendizagem? Esta é a pergunta central deste trabalho, a que tentaremos dar resposta

através, por um lado, da revisão bibliográfica das teorias psicanalíticas, das teorias

psicopedagógicas e de estudos experimentais (que apresentaremos no capítulo I), e, por outro,

do estudo realizado e descrito na presente tese. Utilizamos a prova “Era Uma Vez…” para

comparar as respostas entre crianças com e sem dificuldades de aprendizagem, procurando

diferenças na forma como elaboram a emoção (ansiedade e prazer). O capítulo II descreve os

objectivos e hipóteses experimentais, no capítulo III é descrita a metodologia utilizada,

segue-se a apresentação dos resultados no capítulo IV e finaliza-se com a discussão dos

resultados (capítulo V) e conclusões (capítulo VI).

Será que o conhecimento científico nesta área pode ter um impacto na forma como se

trabalha com as crianças com dificuldades de aprendizagem? Se famílias e professores

estiverem mais conscientes da influência que a parte emocional pode ter na aprendizagem,

ambos podem partir de um ponto mais sustentado para definir uma abordagem e um plano de

acção. A insistência na punição e na exigência cega não vai dar os resultados que todos

almejam. Uma mudança de olhar poderá ser o que é necessário para que uma situação se

possa começar a resolver.

No geral, e embora a psicologia tenha na actualidade muito mais projecção que em

qualquer outra época, continua a faltar uma educação para o funcionamento afectivo,

nomeadamente em técnicos que trabalham com populações muitas vezes fragilizadas, como é

o caso dos professores.

Para a psicologia clínica, e dado que muitos dos pedidos que chegam aos psicólogos

partem de dificuldades na escola, é importante que exista um conhecimento sólido sobre a

relação entre aquilo que é o seu terreno e o da educação. A comunicação entre estas duas

áreas ainda é deficitária, a linguagem é diferente, os objectivos de trabalho não são os

mesmos.

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Dificuldades de aprendizagem, problemática emocional e a prova “Era Uma Vez…”

Introdução

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Esperamos que este trabalho possa dar uma contribuição no sentido de que, tanto as

escolas como os psicólogos, possam dar uma resposta de maior qualidade às crianças a quem

falta a estrutura emocional para mobilizar a curiosidade e encaixar os saberes intelectuais.

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Dificuldades de aprendizagem, problemática emocional e a prova “Era Uma Vez…”

Capítulo I – Enquadramento Teórico

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CAPÍTULO I – ENQUADRAMENTO TEÓRICO

Começamos por dar um panorama da legislação sobre Necessidades Educativas Especiais

em Portugal, já que a sua evolução nos traz uma noção de como se foi abordando este

problema ao longo do tempo. Avançamos com uma abordagem à ponte entre a psicologia

clínica e esta problemática, dando continuidade ao que se apresentou na Introdução. Segue-se

uma revisão das principais teorias psicanalíticas e da forma como alguns autores fizeram a

ponte entre psicanálise e educação. Apresentam-se em seguida alguns estudos experimentais

com resultados pertinentes para a presente tese. Depois apresentamos um sub-capítulo sobre a

avaliação psicológica em contexto escolar e, para finalizar o enquadramento teórico, outro

sobre a avaliação de aspectos emocionais em crianças, com destaque para a prova “Era Uma

Vez…”, instrumento central na presente investigação.

I.1. As Necessidades Educativas Especiais e as escolas portuguesas

Em 23 de Agosto de 1991 foi publicado o Decreto-Lei 319/91, que introduziu o conceito

de Necessidades Educativas Especiais (NEEs):

“A substituição da classificação em diferentes categorias, baseada em decisões de foro

médico, pelo conceito de «alunos com necessidades educativas especiais», baseado em

critérios pedagógicos;”

Este foi um avanço importante na forma de abordar as dificuldades de aprendizagem em

crianças sem deficiência, considerando que as medidas a aplicar devem ter como objectivo

que todos possam ter acesso ao currículo, exceptuando os que se enquadrassem da alínea i)

ensino especial, reservada para crianças com deficiência intelectual, e que necessitassem de

“currículos escolares próprios” ou “currículos alternativos”.

A realidade nas escolas continuava, no entanto, difícil, nomeadamente para os casos de

crianças com perturbações emocionais e oriundas de meios sociais e familiares desfavoráveis,

para quem todas as medidas previstas pareciam poucas ou desadequadas.

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Dificuldades de aprendizagem, problemática emocional e a prova “Era Uma Vez…”

Capítulo I – Enquadramento Teórico

12

O número de crianças consideradas com NEEs era grande e isto trazia problemas

acrescidos na gestão das escolas: número de alunos por turma, número necessário de

professores de ensino especial e de apoio, de psicólogos, de apoios de outras áreas, etc.

Em 2008 a legislação foi alterada com a aprovação do Decreto-Lei 3/2008 de 7 de Janeiro,

que vem introduzir o conceito de Necessidades Educativas Especiais de carácter permanente

(NEEcp). Esta legislação parte do princípio de que todos os alunos têm necessidades

educativas e que a escola tem como obrigação gerir esta diversidade, limitando, assim, a

aplicação dos apoios especializados:

“Os apoios especializados visam responder às necessidades educativas especiais dos

alunos com limitações significativas ao nível da actividade e da participação, num ou vários

domínios de vida, decorrentes de alterações funcionais e estruturais, de carácter permanente,

resultando em dificuldades continuadas ao nível da comunicação, da aprendizagem, da

mobilidade, da autonomia, do relacionamento interpessoal e da participação social e dando

lugar à mobilização de serviços especializados para promover o potencial de funcionamento

biopsicosocial.”

Com esta legislação tentou-se dar passos em frente na prática da escola inclusiva,

pretendendo-se que alunos com deficiência tivessem lugar na escola regular, com os apoios

de que necessitassem. Para isso foram criados os Centros de Recursos para a Inclusão (CRIs).

Se com a legislação anterior era difícil encontrar respostas para os alunos com

problemáticas emocionais e/ou sociais e familiares, esta nova legislação fecha o leque para

um conceito de necessidades permanentes, trazendo consigo grandes dificuldades na sua

definição. Para objectivar e uniformizar a linguagem entre técnicos, foi adoptada a CIF -

Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (OMS/DGS, 2004) para

descrever as crianças com NEEcp.

Na CIF, “«Corpo» refere-se ao organismo humano como um todo; por isso, o cérebro e

suas funções, i.e., a mente, estão incluídos. As funções mentais (ou psicológicas) são,

portanto, incluídas nas funções do corpo.”

Então, nas funções do corpo encontram-se as funções mentais, e no âmbito das funções

mentais específicas encontram-se as funções emocionais: adequação da emoção, regulação da

emoção, amplitude da emoção, funções emocionais outras especificadas, funções emocionais

não especificadas.

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Dificuldades de aprendizagem, problemática emocional e a prova “Era Uma Vez…”

Capítulo I – Enquadramento Teórico

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Para além desta descrição, nas funções mentais estão descritas muitas outras funções que

podem ser afectadas por problemáticas de origem emocional.

Do ponto de vista da deficiência, parece fazer sentido falar de funcionalidade. Por

exemplo, se uma criança cega tem a capacidade e a oportunidade de aprender a ler braille,

então ela pode se tornar uma leitora funcional e competente, desde que exista material em

braille acessível, ou seja, desde que o ambiente se adapte ao seu tipo de funcionalidade.

Portanto, as coisas parecem ser mais simples (não mais fáceis) no caso das deficiências

físicas ou sensoriais, já que estas tendem a manter-se ao longo da vida, encaixando-se na

definição de NEEcp. Já na deficiência mental ou intelectual é mais complexo avaliar a

funcionalidade e definir objectivos de trabalho de forma a não exigir nem demais nem de

menos. As situações com diagnósticos claros (como a Trissomia 21, por exemplo) ajudam a

balizar as expectativas e a orientar o trabalho. Mas mesmo nestas, a variabilidade individual é

grande. De referir as perturbações do espectro do autismo que podem incluir desde indivíduos

que não têm comunicação verbal, até indivíduos que podem fazer uma escolaridade normal.

A deficiência mental, historicamente, começou por ser descrita como um défice na

capacidade intelectual, que levaria a que crianças mais velhas ou adultos se comportassem

como crianças mais novas (Houzel, Emmanueli & Moggio, 2004). Só mais tarde a deficiência

mental harmónica foi descrita com outros parâmetros para além do nível intelectual (como

medido pela histórica escala de Binet-Simon), nomeadamente a reduzida capacidade da

função simbólica, enquanto a deficiência mental desarmónica começou a ser vista a par de

mecanismos psicopatológicos.

No prefácio à sua obra, Houzel et al. (2004) afirmam:

“A psicopatologia da criança e do adolescente é um domínio de conhecimento

«complexo» no sentido em que Edgar Morin fala de «pensamento complexo» (…). Nenhum

sintoma, nenhuma síndrome, nenhum sofrimento se pode analisar de um só ponto de vista.”

Portanto, voltando às escolas portuguesas, temos um sistema de classificação de

funcionalidade que deve ser aplicado a todas as situações de necessidades educativas

especiais, nomeadamente às de psicopatologia infantil. Embora, como referido, existam

situações de diagnóstico mais “fechado”, nas restantes situações tanto médicos como

psicólogos têm relutância em aplicar rótulos diagnósticos a crianças, dada a característica de

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Dificuldades de aprendizagem, problemática emocional e a prova “Era Uma Vez…”

Capítulo I – Enquadramento Teórico

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plasticidade do seu aparelho mental. Aquilo que é uma boa medida no trabalho com crianças

e famílias, pode, na escola, tornar-se um problema para a alocação de apoios a quem precisa.

I.2. Pertinência da psicologia clínica na área das Necessidades Educativas

Especiais

A abordagem dinâmica oferece-nos várias teorias e quadros explicativos de como a

estrutura psicológica do indivíduo é formada e mantida (ou não) ao longo da vida. Mais do

que descrições, conta-nos histórias de como tudo pode acontecer. A prática da psicoterapia

psicanalítica e da psicanálise, e a observação directa de bebés e de díades mãe-bebé,

confirmam as teorias postuladas por autores que ficaram na história.

O insucesso escolar é uma realidade importante nas escolas e, principalmente, na vida de

muitas crianças e famílias. O esforço que o país tem feito para evoluir em termos de anos de

escolaridade obrigatória, literacia, combate ao abandono escolar precoce, aumento das

habilitações, não pode deixar de lado uma fatia da população. Assim, as decisões tomadas em

relação a legislação e à forma de a aplicar são de enorme importância e deverão ser baseadas

em informação científica credível e de qualidade. A psicologia clínica dinâmica tem um leque

vasto de conhecimento acumulado que pode contribuir em muito para melhor trabalhar com

as crianças que apresentam insucesso escolar sem uma explicação que passe por diagnóstico

de deficiência ou déficit cognitivo.

João dos Santos (Branco, 2000; Lobo, 2007; Lobo, 2009) afirma que a sua experiência de

observação e trabalho com crianças com dificuldades escolares não derivadas de deficiência e

outras, o levou a concluir que o enquadramento teórico que mais ajuda na sua compreensão é

o psicodinâmico.

Quem tem experiência clínica sabe que muitos dos pedidos de avaliação psicológica e/ou

acompanhamento psicológico para crianças e adolescentes partem da constatação das

dificuldades escolares. Strecht (2001) confirma esta ideia afirmando que “a capacidade de

aprendizagem é uma das primeiras áreas a ficar afectada no seu funcionamento, sempre que

há uma perturbação emocional” (p.244)

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Dificuldades de aprendizagem, problemática emocional e a prova “Era Uma Vez…”

Capítulo I – Enquadramento Teórico

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Indo mais longe, existem perigos objectivos de rotular e aplicar medidas tradicionais de

ensino especial a crianças que não têm deficiência mental, podendo contribuir para instalar as

dificuldades de forma definitiva. Nas palavras de João dos Santos “o chamado ensino

especial, não devidamente aplicado, pode conduzir a uma espécie de debilidade mental

adquirida, ou demenciação, por mecanização das aprendizagens básicas da leitura, escrita e

aritmética.” (Branco, 2000, p. 116)

Nas palavras de Strecht (2001) “na maioria dos casos o que está em causa não são falhas

do ponto de vista cognitivo, mas sim a ausência de um bem-estar emocional que crie

disponibilidade interior para manter vivo um desejo de conhecer e prazer de aprender.”

(p.243). Esta é também a experiência da autora.

I.3. A psicanálise e o desenvolvimento do pensamento e da cultura

Desde a antiguidade que as crianças que eram educadas formalmente iniciavam essa

educação aos sete anos de idade. Na Grécia Antiga, os meninos eram inseridos em

instituições aos sete anos de idade, onde lhes era atribuída uma identidade e uma função. Os

rapazes Espartanos eram retirados das famílias aos sete anos para ingressarem escolas-

ginásios onde recebiam formação militar. A educação ateniense, mais voltada para a

intelectualidade, era também iniciada aos sete anos. Na Roma Antiga a educação da criança

cabia à mãe até aos sete anos e depois exclusivamente ao pai. Na Idade Média os rapazes e as

raparigas nobres ficavam em casa até aos sete anos e depois passavam a viver com um nobre

que lhes dava a educação. Neste período a Igreja tornou-se muito importante na educação: a

formação dos monges iniciava-se aos seis ou sete anos. (Costa e Santa Bárbara, s.d.)

Da antiguidade até à actualidade manteve-se esta idade como a referência para iniciar a

escolaridade formal. Será coincidência que a psicanálise considere também esta a idade do

período de latência?

Começando em Freud, mas passando por vários autores e com vários conceitos que se

complementam, existe esta ideia sólida de que algo acontece até aos sete anos e algo diferente

após esta idade. Podemos inferir que seria necessário aguardar este tempo para que a criança

crie uma mente capaz de aprender conceitos estranhos aos da vida caseira e familiar, que

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Dificuldades de aprendizagem, problemática emocional e a prova “Era Uma Vez…”

Capítulo I – Enquadramento Teórico

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construísse um sistema mental capaz de se submeter às exigências da aprendizagem formal e

a assimilar conceitos novos e cada vez mais complexos, fosse de carácter intelectual, moral,

ou físico. Sendo assim, também podemos inferir que se algo não corre como o esperado antes

dos sete anos, a criança pode não ter sucesso nas aprendizagens formais.

I.3.1. Freud, o período de latência e a cultura

Freud deu um lugar central ao papel da sexualidade no desenvolvimento e funcionamento

mental do ser humano. Introduziu a ideia de sexualidade infantil, como motor da organização

mental, descrevendo as fases oral, anal e fálica que precederiam o complexo de Édipo, cuja

resolução daria início ao período de latência, coincidente com a idade do início da

aprendizagem formal.

A relação entre latência e cultura é realçada por Carlos Amaral Dias (2000):

“Freud demonstra que aquilo que é próprio da cultura humana – vencer a barreira do

instinto e ampliar a relação com o mundo – só pode ter uma contrapartida: a organização

simbólica do sujeito humano e a sua organização pensante.” (p.102)

Portanto, para Freud, a criança passa, desde o seu nascimento, por várias fases de

organização progressivamente mais complexa das pulsões, atingindo por fim a fase genital

em que, através do processo a que deu o nome de Édipo, a criança “castrada” é capaz de

reprimir e sublimar as suas pulsões primárias através do uso do símbolo. A sublimação é,

então, o processo através do qual é construída a cultura.

“Para Freud, é através dos mecanismos que se desenvolvem na latência que o homem se

torna civilizado. Então, a sublimação é uma sublime-acção: é o local onde o homem encontra

a sua ordem cultural.” (Dias, 2000, p.125 e126)

Freud (1905) defende que todo o indivíduo passa por todas estas fases, que as fixações não

são paragens totais no desenvolvimento, mas que perturbam a organização da fase seguinte,

produzindo a patologia. Quanto mais precoce for a fixação, mais grave será a patologia. A

gravidade da patologia determinará a forma como o indivíduo vai ser capaz de se organizar

cognitivamente e relacionalmente.

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Capítulo I – Enquadramento Teórico

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I.3.2. Bion e o aparelho de pensar pensamentos

Bion (em Bléandonu, 1993; Fochesatto, 2013 e Zimerman, 1995) partiu das teorias de

Melanie Klein (1993), Freud e Ferenczi (1991 a 1994) e criou um modelo explicativo da

construção do aparelho psíquico. O modelo de Bion é particularmente interessante para nós

pois integra vários elementos de uma fase da psicanálise posterior a Freud, mais centrada nas

relações de objecto que nas pulsões e na sexualidade – experiências sensoriais, emoções,

identificação projectiva, posição depressiva, satisfação de necessidades e ausência dessa

satisfação, frustração e criação de um aparelho psíquico capaz de transformar, integrar e

formar um eu coeso que possa aceder à actividade simbólica.

Para Bion os pensamentos existem antes de poderem ser pensados, e são eles que

pressionam o sistema psíquico para a criação de um aparelho que os possa pensar. O bebé,

atingido pelas sensações dos órgãos dos sentidos e pelas emoções que estas criam, é forçado a

organizar estes estímulos de uma forma que eles possam ser integrados e vividos. Bion

chamou função alfa a esta que permite que o bebé transforme sensações caóticas (elementos

beta) em elementos alfa – que vão criar os sonhos, a memória e as funções intelectuais. Estes

passam a ser passíveis de serem pensados. É a mãe que auxilia nesta tarefa, servindo ela de

transformadora daquilo que o bebé “produz”, e que projecta nela (identificação projectiva)

através da sua função de rêverie, devolvendo ao bebé os seus conteúdos numa forma

organizada e segura. Se os elementos beta circulam livremente, não há possibilidade de

simbolização, e torna-se necessária a sua descarga imediata que pode tomar a forma de

actividade motora, passagens ao acto ou somatizações - é o protótipo do estado psicótico,

onde não há pensamento.

A experiência da satisfação da necessidade faz juntar o que Bion chamou de pré-

concepção (a ideia inata de seio) com o acontecimento da realidade, ou realização (a acção

de se alimentar no seio real). Esta junção dá origem à formação de uma concepção. É na

ausência da satisfação que se cria o pensamento, ou o conceito, fruto da frustração que é

suportada pelas experiências anteriores de satisfação emocional e pela actividade de rêverie

da mãe.

Com a passagem à posição depressiva, como descrita por Klein, o indivíduo vai ser capaz

de integrar a experiência da falta e aceder à simbolização. São os elementos alfa que

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Capítulo I – Enquadramento Teórico

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constituem o que Bion chamou de barreira de contacto, ou seja, de delimitação do eu, de

pele psíquica, que permite a sensação de integração e unidade.

Portanto, a capacidade de criar o aparelho de pensar os pensamentos depende da

capacidade de suportar a frustração, e esta depende da qualidade das experiências precoces e

da função de rêverie da mãe.

I.3.3. Winnicott, imaginação criadora e jogo

Winnicott é também um autor de maior importância, ao se afastar da teoria dos impulsos e

dar maior relevância, em conjunto com outros autores, às relações objectais primárias e à

constituição do self. É, no entanto inovador, no afastamento também da ideia kleiniana de que

o bebé se relaciona com a mãe, ainda que de forma fragmentada na posição esquizo-

paranoide, mas considerando que a unidade inicial é a díade mãe-bebé, afirmando que o

comportamento da mãe, no início da vida, faz parte do próprio bebé. É a mãe suficientemente

boa e as experiências de adaptação e desadaptação que vão permitir que o bebé comece a

externalizar a mãe, pondo-a fora do seu controlo omnipotente. A mãe, agora repudiada

enquanto objecto subjectivo, resiste à destrutibilidade, e torna-se objecto externo. O bebé, que

foi aprendendo a relacionar-se no plano transitivo, passa a ser capaz agora de estabelecer uma

relação objectiva com a mãe porque ela é agora objecto externo, um não-eu que, por

oposição, permite a construção do eu. E assim se constrói a capacidade de se ser, de se

relacionar com outro e com o mundo externos.

Winnicott considera que são falhas no ambiente em idade muito precoce que provocam

dificuldades no processo de integração dum eu seguro. Para lidar com uma estrutura frágil, o

indivíduo precisa de recorrer a defesas que lhe permitam estabelecer relação com o outro. A

teoria do amadurecimento pessoal postula que, perante um ambiente favorável, o indivíduo

irá constituir-se como um eu seguro, capaz, criativo. Nas palavras de Morais (2008):

“Para Winnicott, a presença de um ambiente inicial adaptado favorece a continuidade de

um senso de ser e existir, proporcionando segurança pessoal básica para um existir criativo e

responsável que, se incorporado ao si-mesmo pessoal, permitirá um pleno uso da

instintualidade no relacionamento com o outro, agora plenamente identificado como separado

dele, pois a pessoa tem clara dimensão de quem é, confia e tem esperança de poder ser si

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mesmo, uma vez que se reconhece capaz de responsabilizar-se por seu sentir, pensar e agir.”

(p.100)

Winnicott segue as ideias de Klein a Anna Freud (1992) quando diz que na latência

existem defesas importantes que ainda não estão em acção antes da passagem pelo complexo

de Édipo. Afirma que o desenvolvimento do instinto cessa e que a criança está mais dada à

reflexão e à intelectualização.

Sobre o pensar, Winnicott descreve-o como um desenvolvimento que se inicia

precocemente, sem determinar exactamente em que idade. Afirma que desde que se consegue

registar algo, esse conteúdo não se perde. Passa pelas funções de catalogação, categorização e

comparação, que ainda não são o pensamento propriamente dito, mas servem de aparelho de

pensamento.

A função de comparação desenvolve-se de forma a permitir predições, e está ao serviço da

manutenção da omnipotência. Acrescentando a esta função as memórias, ela transforma-se

em imaginação criadora, sonho e jogo. Winnicott explica assim a função de comparação,

numa conferência em 1965:

“La función de cotejo se desarrolla con vida propia y permite hacer predicciones. Esto

pasa a estar al servicio de la necesidad de preservar la omnipotencia. En forma paralela, la

elaboración de la función, enriquecida por los recuerdos, se traslada a la imaginación

creadora, el sueño y el juego (también al servicio de la omnipotencia). De esta manera el

pensar se genera como un aspecto de la imaginación creadora. Está al servicio de que

sobreviva la experiencia de omnipotencia. Es un elemento de la integración.”

“(…) el intelecto tiene un funcionamiento propio, que depende de la calidad del aparato

electrónico y también del modo en que va cobrando forma el desarrollo emocional del

individuo.” (p.172-178)

Regressa à ideia de satisfação versus frustração para definir como nasce o pensamento. O

bebé que teve a experiência de satisfação, enquanto espera que a satisfação venha

(frustração), pensa na sua vinda, recorda experiências passadas, prevê o futuro e acalma a

ameaça à sua omnipotência. De outra forma, o bebé pode também criar a sua satisfação de

forma alucinatória, no período em que espera que a satisfação chegue. Esta nova capacidade

do bebé vai permitir mais liberdade para a mãe “falhar”. Winnicott defende que ambas

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Capítulo I – Enquadramento Teórico

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formas de inteligência são importantes e válidas, afirmando mesmo que deve existir

pensamento para além da lógica. Termina a referida conferência afirmando:

“es preciso que seamos capaces de pensar en forma alucinatoria.”

Na fase final da sua obra (Winnicott, 1996) fala sobre o jogo de regras e o brincar ou jogo

simbólico. Define o jogo simbólico como sendo parte do espaço transitivo: espaço que não

fica exclusivamente dentro (subjectividade) nem exclusivamente fora (realidade), que existe

entre mãe e bebé, à medida que o bebé se vai sentindo separado, mantendo este espaço

potencial de união, alimentado pela segurança que a mãe forneceu. É Winnicott que nos traz

a definição de objecto transitivo, e que o define como o primeiro objecto não-eu com que o

bebé se relaciona, manipula, controla, em lugar da mãe. Se o objecto transitivo está em lugar

da mãe, constitui-se como o primeiro símbolo utilizado / criado pelo bebé, e também a

primeira experiência de jogo simbólico.

Winnicott (1975) afirma que é a capacidade de jogar que vai permitir ao indivíduo aceder

a experiências culturais, à arte e à criatividade.

I.3.4. Bowbly e a vinculação

Um conceito importante para algumas teorias explicativas do insucesso escolar é o de

vinculação. Foi Bowbly (1982) que o introduziu, na sequência de observações experimentais

com animais e crianças. A sua inovação foi afirmar que a vinculação se constitui também

como uma necessidade primária, essencial à saudável formação da personalidade. Para que o

bebé se possa efectivamente separar da mãe, e partir à descoberta do mundo real à sua volta,

precisa ter estabelecido uma vinculação segura, que lhe permita a liberdade de ir e voltar.

A vinculação serve uma primeira função de protecção do bebé indefeso por si só, e de

aprendizagem gradual sobre como se proteger e defender; e uma função secundária de

permitir a socialização, deslocando a vinculação da mãe para outros, em círculos cada vez

mais alargados. Para que estas duas funções se cumpram é necessário, por um lado, que a

criança saiba que pode retornar à mãe, e por outro que esta responda adequadamente às suas

necessidades. Embora Bowbly defenda que a angústia de perda do objecto de vinculação faz

parte do desenvolvimento normal do indivíduo, e que o medo é protector, afirma que a falha

nestas duas condições pode fazer instalar aquilo a que chamou de vinculação angustiada. Ou

seja, a patologia pode instalar-se não só quando há efectiva separação do objecto por um

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Capítulo I – Enquadramento Teórico

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tempo maior do que o suportado pela criança, mas também quando o objecto não responde

adequadamente, de forma sistemática, às necessidades, ou quando este rejeita

sistematicamente ou ameaça frequentemente que vai partir.

Perante situações de separação, e conforme a idade e a duração dessas experiências,

Bowbly descreve três fases de reacção da criança:

- desespero – a criança reage em angústia, chora e procura o objecto;

- desânimo – a criança alterna entre a zanga e a tristeza quando percebe o seu insucesso;

- desvinculação – a criança desiste de vez da procura e da ligação ao objecto.

Esta sequência acaba por nos remeter para a noção de defesa. Bowbly afirma que o

processamento e armazenagem de informação pode ser afectado por experiências de

sofrimento que activam a exclusão defensiva ou barragem da informação, tornando

patológicos o pensamento e/ou o comportamento.

I.3.5. Articulação conceptual

Golse (2005) afirma que existem duas formas de conceptualizar a emergência do

pensamento: “como um fenómeno relativamente isolado do resto da personalidade (…) ou

então como um processo intrincado, imbrincado e enredado no desenvolvimento da

afectividade.” (p.277). Esta diferença de concepção é uma das que divide as teorias

psicanalíticas das restantes sobre o desenvolvimento da criança. Ao longo do seu livro, Golse

faz pontes entre as diferentes perspectivas e teorias sobre os desenvolvimentos cognitivo e

afectivo, encontrando vários pontos de encontro nomeadamente em marcos de idade.

Golse integra as teorias de desenvolvimento cognitivo e afectivo, dando conta da sua

riqueza e complementaridade, contrapondo conceitos. Da sua leitura infere-se que o

desenvolvimento infantil pode ser descrito, na sua vertente mais abrangente, de uma forma,

na nossa opinião, universal. E o que é universal em todas as teorias de todos os autores é que

existem “tarefas” de desenvolvimento, que existem estádios / fases / posições, que têm uma

certa sequência temporal, não necessariamente rígida, e que quando existem falhas num dos

passos, os passos seguintes são dados mas ficam marcas. Estas marcas são tão mais graves

quanto mais precoces foram as falhas. A forma como o indivíduo vive com essas falhas pode

organizar-se em mais ou menos saúde, mais ou menos patologia. As novas oportunidades de

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Capítulo I – Enquadramento Teórico

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relação, de experiência significativa, incluindo a terapia, podem servir para minorar os efeitos

negativos dessas experiências.

Diz João dos Santos que “Sem a posse de símbolos não há comunicação e, portanto, não

há nem conhecimento nem educação.” (Branco, 2000, p.284). Este é um ponto comum na

leitura das teorias psicanalíticas – o desenvolvimento do eu psíquico implica a criação e

apropriação de símbolos, algo que representa algo, processo que se começa a dar a partir do

nascimento, e que continua em desenvolvimento ao longo da vida adulta, se considerarmos

uma definição alargada de símbolo. É a capacidade de simbolizar que permite à criança se

afastar em segurança dos objectos primários, ter curiosidade sobre o mundo, explorá-lo, e

começar a formar símbolos sobre essa realidade externa.

Um outro conceito que parece ser aceite por todos os autores é o de latência. A altura em

que se considera que a criança está preparada para iniciar as aprendizagens formais é, não só

aquela em que já é capaz de simbolizar, mas também em que o pensamento se pode libertar

da sua carga pulsional ou erótica e pode se dedicar à descoberta do mundo, do real. Quanto

mais saudáveis tenham sido as experiências precoces, mais liberta, curiosa e criativa estará a

criança que inicia a escolaridade. Estará também pronta para aceitar um sistema de regras

mais rígido, e uma gratificação não imediata, ligada ao prazer de descobrir e de cumprir as

expectativas dos adultos significativos e, mais tarde, de criar as suas próprias expectativas e

objectivos.

I.4. A psicanálise e a educação escolar

A ideia de que inteligência e afecto estão intimamente ligados está presente em toda a obra

de João dos Santos.

“A criança só pode aprender, se primeiro sentir, e o sentir refere-se a tudo o que é

actividade emocional, jogo, pintura ou canto. A emoção está na base de toda a aprendizagem;

a criança aprende quando o seu interesse é suscitado afectivamente ou sentimentalmente

(…)” (Branco, 2000, p.98).

Sobre a questão da curiosidade como motor de base para a aprendizagem da leitura,

Sylverster e Kunst, num artigo apresentado em 1942, argumentam como esta depende

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Capítulo I – Enquadramento Teórico

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directamente da função exploratória. As autoras defendem que a curiosidade necessária para

a aprendizagem abstracta depende da qualidade das experiências precoces de relação. Se

estas experiências precoces encontram dificuldades, a curiosidade pode-se tornar algo

perigoso para a criança. Referem duas formas em que isto pode acontecer: a perturbação da

função exploratória, como um mecanismo de auto-afirmação, pode ser sentida como

agressiva em relação ao adulto que impõe as normas, mas que é, ao mesmo tempo, aquele de

quem a criança depende, ficando assim proximamente ligada a sentimentos de ansiedade; ou

a função exploratória é deixada correr sem limites, deixando a criança assoberbada com

estimulação que não consegue gerir. Segundo as autoras, as dificuldades de aprendizagem

poderão ser explicadas por três factores: falta de capacidades, medo da perda do afecto, medo

da destruição do objecto.

Nas palavras de João dos Santos, “Funcionar mentalmente é autonomizar-se” (Branco,

2000, p.173).

João dos Santos parece ter verificado na prática o que Sylverster e Kunst defenderam anos

atrás:

“(…) encontro, com muita frequência, dificuldades de relação com a mãe, em certas

crianças a quem falta uma espécie de inteligência prática e uma dificuldade em passar à

actividade simbólica, que a escola exige, que é a linguagem escrita (…)” (Branco, 2000,

p.104)

Fundador da Casa da Praia, instituição ainda hoje de referência, o seu objectivo era apoiar

crianças com dificuldades de aprendizagens que não tivessem deficiência mental ou física ou

perturbação da ordem das pré-psicoses ou psicoses. Assim, desde a sua fundação, a Casa da

Praia tem reunido informação sobre este tipo de crianças e as suas famílias. Dez anos corridos

desde a sua abertura em 1975, João dos Santos descreveu as características comuns que

encontrou nas famílias da grande maioria destas crianças: mães habitualmente deprimidas e

pais habitualmente ausentes, fosse esta ausência física ou algum tipo de invalidez. Também

observou que muitas vezes estes pais (homens) eram violentos e dominadores e que as mães

se submetiam a esse domínio.

Esta observação sistemática levou também a concluir que estas crianças eram

frequentemente imaturas e que escondiam a sua verdadeira depressão atrás de vários tipos de

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sintomas. Aliás, o autor define a população de crianças da Casa da Praia, grosso modo, como

2/3 de instáveis e 1/3 de inibidos.

Sylverster e Kunst (1942) descrevem o sentimento destas crianças perante a leitura como o

de um fóbico. Ou ficam agarradas a um ponto com medo de dar o próximo passo para o

desconhecido (a leitura hesitante, gagejante, que exige tanto esforço), ou enfrentam a tarefa

de rompante, correndo como a criança que corre pelo corredor a fugir do escuro.

Portanto: falhas nas relações intra-familiares precoces, imaturidade, ansiedade, função

exploratória diminuída, ansiedade, depressão, comportamento defensivo em relação à

depressão e dificuldades de aprendizagem. São as crianças-problema nas escolas. Aquelas

para as quais a legislação existente muitas vezes falha. Aquelas que exigem mais dos

professores na área em que os professores são pouco treinados – a relação. Na experiência de

trabalho em escolas, a autora deparou-se com muitos bons exemplos de educadores e

professores que, devido às suas excelentes capacidades relacionais, conseguiram trabalhar de

forma eficaz com este tipo de crianças. Aliás, como Sylverster e Kunst (1942) referem, o

apoio pedagógico não é suficiente para estas crianças, e os casos de sucesso deste tipo de

apoio são melhor explicados pela qualidade do professor que, intuitivamente, dá resposta às

necessidades emocionais da criança.

Boimare (2001) faz uma excelente descrição de como o trabalho pedagógico, não sendo

terapia, pode ser terapêutico e permitir a aprendizagem a crianças aparentemente incapazes

de aprender. O autor explica esta incapacidade de aprender como um movimento defensivo

contra o pensamento que se torna ameaçador para algumas crianças que não tiveram a

oportunidade de criar uma estrutura psíquica suficientemente sólida. Para elas, a situação de

aprendizagem torna-se ameaçadora, invadida de todas as angústias primárias. Também esta

visão está de acordo com os autores referidos anteriormente.

Toda a situação de aprendizagem passa por um momento inicial de vulnerabilidade: a

ignorância, a dúvida, a solidão, a dependência do “mestre”. Para uma pessoa saudável, esta

instabilidade evoca a curiosidade e o desejo de aprender, motiva a relação com o “mestre” e

mobiliza o intelecto. Para quem foi deixado desde cedo na permanente insegurança, o vazio

da iniciação torna-se insuportável: “[a criança] não pode começar a procurar, a reflectir, visto

a passagem pelo interior levar a coisas estranhas e inquietantes.” (Boimare, 2001, p.122)

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As formas de controlar as angústias invasoras são aquelas que se interpõem com sucesso à

aprendizagem, evitando-a por um lado, e desvalorizando-a por outro. Para-se o pensamento,

age-se e tenta-se destruir o objecto ameaçador – seja ele o conteúdo a aprender, o professor, a

situação de aprendizagem ou o espaço escola. Diz-se que a escola não presta, que o que lá se

ensina não serve para nada, ataca-se o professor, subvertem-se as regras – as perdas são

óbvias, os ganhos são a mobilização da omnipotência protectora que permite a manutenção

do equilíbrio precário da estrutura psíquica. Para estas crianças, muitas vezes aprender é o

equivalente a se submeter ao outro, a perder uma guerra de poder, a ser invadido.

Boimare (2001) afirma que os dois grandes temas de angústia são os da morte e da

sexualidade, que, ao não terem sido organizados no passado, irrompem agora de forma

violenta. As reacções visíveis são, na sua opinião, em acordo com João dos Santos, formas de

defesa contra a depressão.

Da sua observação, quanto mais os temas propostos para a aprendizagem são neutros, mais

permitem a projecção e o ressurgimento das angústias primárias. O que propõe como forma

de trabalho com estas crianças é algo que podemos considerar no âmbito da zona

transferencial de Winnicott: um local onde os temas que inquietam a criança possam ser

manejados pelo intelecto, sem invadir o pensamento, apoiados por objectos culturais, ou seja,

que possam encontrar símbolos pensáveis. Nas palavras de Boimare (2001) “Se o suporte

deve ser quente, ele não deve ser escaldante senão as consequências serão idênticas.” (p.131).

Para que se possa manejar os temas da morte e da sexualidade, eles devem ser apresentados

como longe no tempo e no espaço (ao exemplo das histórias que se passam há muito tempo

atrás num reino longínquo), e devem ser sempre mantidos nesse enquadramento.

Assim, o autor (Boimare, 2001) considera que o professor que trabalha com este tipo de

crianças tem, em resumo, três missões: ajudá-las a encarar as angústias primárias que as

invadem; a deixar de precisar de defesas omnipotentes; e a “restaurar os caminhos de

passagem entre o interior e o exterior” (p.128).

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Capítulo I – Enquadramento Teórico

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I.5. Problemas emocionais e dificuldades de aprendizagem: estudos experimentais

Vimos até agora como autores importantes das teorias psicanalíticas estabeleceram que o

surgimento do pensamento e a estruturação psíquica estão interligados e de como estes

dependem dos factores emocionais e relacionais nos tempos mais precoces da vida humana.

Vimos também como autores importantes identificaram dificuldades emocionais em crianças

inteligentes e com dificuldades nas aprendizagens escolares, e como existem formas de

abordar essas dificuldades se se tiverem em conta as angústias que as provocam. Mas falta

perceber se existe, na psicologia experimental, dados que suportem a afirmação de que

dificuldades emocionais e dificuldades de aprendizagem estão de alguma forma ligadas.

Salyer, Holmstrom, e Noshpitz estudaram esta questão em 1991. Os autores partem de

estudos anteriores para desafiar a ideia de que as dificuldades emocionais encontradas em

crianças com dificuldades de aprendizagem são consequência destas últimas, ou das

circunstâncias que as provocam (problemas neurológicos ou deficiências genéticas que

provocariam deficits cognitivos). Em estudos anteriores foram encontradas características em

crianças com dificuldades de aprendizagem como: baixa auto-estima, agressividade, baixa

tolerância à frustração, impulsividade, hiperactividade e desatenção. Os autores sublinham

que estas características são utilizadas também para descrever crianças com um tipo de

organização borderline, como esta é definida pelas teorias psicodinâmicas. Poder-se-ia, então,

inferir uma relação entre psicopatologia e dificuldades de aprendizagem.

O grupo experimental consistiu em 24 rapazes dos 7 aos 10 anos de idade, caucasianos, a

frequentar programas de educação especial. O grupo de controlo, com 23 sujeitos a

frequentar o ensino regular, foi formado com correspondência de raça, género, idade e QI. A

maioria das crianças de ambos os grupos era proveniente de um nível socioeconómico médio-

alto.

As variáveis estudadas foram a gravidade de perturbação emocional, função egóica nas

áreas de relação de objecto, eficácia defensiva e teste da realidade (relacionadas com a

perturbação boderline), e o nível de sucesso na aprendizagem. Na primeira variável -

gravidade da perturbação emocional - foram encontradas diferenças significativas entre os

dois grupos, com o grupo das dificuldades de aprendizagem a apresentar maior grau de

perturbação emocional. Na segunda variável - função egóica - foram encontradas diferenças

significativas na mesma direcção na área de teste de realidade e em uma das duas medidas

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Capítulo I – Enquadramento Teórico

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estudadas nas áreas de relação de objecto e eficácia defensiva. Não foi encontrada relação

entre a severidade da psicopatologia e a severidade das dificuldades de aprendizagem, o que

parece ir contra a ideia de que as dificuldades emocionais seriam geradas pela experiência de

insucesso. Em relação à terceira variável – nível de sucesso na aprendizagem - os autores

encontraram crianças com níveis de sucesso escolar acima e abaixo do esperado tanto no

grupo experimental como no de controlo, naturalmente em número diferente. Mas o que

parece diferenciar de facto os dois grupos é a presença de psicopatologia, que é global no

grupo experimental, mesmo nas crianças com sucesso escolar, e surge no grupo de controlo

nas crianças com níveis baixos de sucesso escolar. Parece, portanto, que a decisão de colocar

as crianças nos programas de ensino especial não se baseia apenas no insucesso escolar, mas

principalmente na presença de psicopatologia. Os autores concluem que as perturbações nas

funções do ego relacionadas com a perturbação borderline inibem a motivação e a capacidade

da criança se desenvolver cognitivamente através das aprendizagens escolares. Recomendam

continuar a estudar este tema com populações diferentes e outros meios de recolha de dados,

chamando a atenção também para a qualidade das famílias e dos meios socioeconómicos

como factores de influência nas aprendizagens escolares.

Mais recentemente, Willcutt & Pennington (2000) estudaram a questão das dificuldades de

aprendizagem da leitura em gémeos, e a sua relação com problemas emocionais. Os

resultados mostram um aumento significativo de todos os sintomas de internalização e

externalização nos sujeitos com dificuldades na leitura. Neste grupo foram encontradas mais

características compatíveis com diagnósticos de hiperactividade e défice de atenção,

perturbação de oposição, comportamento disruptivo, perturbação da ansiedade e depressão.

Este é, segundo os autores, o primeiro estudo a apresentar uma ligação entre as dificuldades

na leitura e os sintomas de internalização. Foi também encontrado um maior número de

queixas somáticas neste grupo. Comparando grupos de género, os autores concluem que os

comportamentos disruptivos nos rapazes aparecem apenas quando existe comorbilidade entre

dificuldades de aprendizagem e hiperactividade e défice de atenção. Nas raparigas com

dificuldades na leitura, os sintomas de depressão e as queixas somáticas não dependem de

outras variáveis.

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I.6. Avaliação psicológica em contexto escolar

Começo este capítulo com um episódio que se passou aquando da recolha de dados para a

presente tese. Uma das escolas onde esta foi realizada solicitou que os dados da avaliação

fossem fornecidos à escola, dado os recursos na área da psicologia que têm disponíveis serem

escassos. Esta questão foi introduzida no pedido de autorização aos pais, para que estes

autorizassem essa passagem de informação. Durante uma conversa informal, uma das

professoras verbalizou claramente que apenas precisariam dos resultados das crianças do

grupo com dificuldades de aprendizagem. Portanto, a escola não precisaria da informação

sobre as crianças que aprendem. Num outro episódio, passado há anos atrás, a autora e um

professor de apoio tiveram de insistir com uma professora que queria reter uma menina

gravemente perturbada, com comportamentos agressivos, mas que tinha (espantosamente)

atingido todos os objectivos de aprendizagem. Retomamos também aqui uma das conclusões

de Salyer et al. (1991) de que a decisão de colocar alunos no ensino especial era determinada

mais pela presença de psicopatologia do que pela capacidade cognitiva e de aprendizagem.

O que estes episódios têm em comum é a forma como as dificuldades das crianças/alunos

são encaradas pelo sistema escolar. Ou, pondo de outra forma, as dificuldades que o sistema

escolar sente em relação a algumas crianças/alunos. De uma forma muito simplista:

- se a criança aprende e não perturba, não é necessária mais informação;

- se a criança aprende e perturba muito, deve ser penalizada ou encaminhada para

respostas educativas diferentes das “regulares”;

- se a criança não aprende (perturbando ou não), é necessária mais informação e poderá ser

penalizada ou encaminhada para respostas educativas diferentes das “regulares”.

Não é de estranhar que os professores peçam ajuda para os alunos que lhes põem

problemas e entraves aos seus objectivos profissionais, ou seja, os que não aprendem e os que

têm comportamentos disruptivos. A presença de psicopatologia está muitas vezes na base

destes aspectos mais visíveis, mais do que as dificuldades cognitivas, como vimos

anteriormente. Uma criança com dificuldades na relação vai ser um aluno mais difícil para

qualquer professor. E um aluno com insucesso é o que todos os professores tentam evitar.

Mas será que estas dificuldades relacionais e/ou emocionais têm alguma resposta efectiva?

Como foi dito, alguns professores (ou outros adultos nas escolas) têm uma acção terapêutica

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porque dão uma resposta intuitiva a estas necessidades. Mas a grande maioria não o terá

como objectivo da sua acção profissional.

Embora a intervenção do psicólogo educacional tenha, por definição, uma abordagem

ecológica, em que o enfoque está no sistema (escola, professor, turma, aluno, família, meio

envolvente), a maioria dos pedidos que recebe vai no sentido da avaliação e trabalho com

alunos individualmente. Acresce o facto de que muitas famílias não têm capacidade

financeira para pagar avaliações psicológicas no sector privado e que o sector público tem

uma resposta diminuta e demorada. Assim, acaba por ser o psicólogo escolar quem tem a

incumbência de fazer avaliação psicológica dos alunos sinalizados pelos professores ou, em

menor número, por pedido dos pais ou das próprias crianças. Este pedido tem muitas vezes o

objectivo de decidir se o aluno deve ou não ser integrado do DL 3/2008 e que medidas devem

ser aplicadas, ou se deve ser transferido para uma escola de ensino especial.

Os documentos legais que enformam esta parte importante da acção do psicólogo na

escola, determinam o descrito em seguida.

O Decreto lei 190/91, que cria os Serviços de Psicologia e Orientação, define como uma

das suas atribuições “d) Assegurar, em colaboração com outros serviços competentes,

designadamente os de educação especial, a detecção de alunos com necessidades especiais, a

avaliação da sua situação e o estudo das intervenções adequadas;”.

O Decreto Lei 300/07, que cria a carreira de psicólogo nas escolas, define como parte do

seu conteúdo funcional: “d) Participar nos processos de avaliação multidisciplinar e

interdisciplinar, tendo em vista a elaboração de programas educativos individuais, e

acompanhar a sua concretização;”.

O Decreto-Lei 3/2008, sobre necessidades educativas especiais, fala também da

participação do psicólogo neste processo:

“Artigo 6.º - Processo de avaliação: 1 — Referenciada a criança ou jovem, nos termos do

artigo anterior, compete ao conselho executivo desencadear os procedimentos seguintes:

a) Solicitar ao departamento de educação especial e ao serviço de psicologia um relatório

técnico–pedagógico conjunto, com os contributos dos restantes intervenientes no processo,

onde sejam identificadas, nos casos em que tal se justifique, as razões que determinam as

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Dificuldades de aprendizagem, problemática emocional e a prova “Era Uma Vez…”

Capítulo I – Enquadramento Teórico

30

necessidades educativas especiais do aluno e a sua tipologia, designadamente as condições de

saúde, doença ou incapacidade;”

Então, o que acontece quando é feito um pedido de avaliação psicológica no contexto

escolar?

Dinis, Almeida e Pais (2007) fizeram um estudo sobre a prática da avaliação psicológica

em diferentes contextos profissionais em Portugal. De entre os resultados, estes foram

encontrados para o contexto escolar:

- 100% dos inquiridos realizou tarefas de avaliação psicológica os últimos três anos;

- 96,5% utilizou a entrevista;

- 86% utilizou provas de aptidão e inteligência;

- 57,9% utilizou questionários e inventários;

- 24,6% utilizou provas projectivas;

- 14% utilizou escalas de desenvolvimento;

- 12,3% utilizou grelhas de observação.

Embora não tenhamos dados concretos sobre as práticas de avaliação em contexto escolar,

nomeadamente que dimensões são avaliadas, podemos inferir a partir dos dados acima que os

aspectos cognitivos são os mais frequentemente avaliados. Quanto aos aspectos emocionais,

estes podem ser avaliados através de diferentes técnicas, incluindo as referidas entrevista,

questionários e inventários, provas projectivas e grelhas de observação.

Outra informação que carece de dados é sobre quais os procedimentos que resultam dos

resultados da avaliação psicológica em contexto escolar. Para além da decisão sobre a

aplicação ou não do DL 3/2008, pode haver aconselhamento a professores, a pais, trabalho

directo com o aluno e encaminhamento para outros técnicos dentro ou fora da escola.

O conhecimento científico sobre a influência dos aspectos emocionais nas dificuldades de

aprendizagem deverá ajudar a dar uma melhor resposta a estas crianças e suas famílias.

Deverá também ajudar a que os psicólogos possam melhor trabalhar com os professores que

lidam diariamente com estas crianças.

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Dificuldades de aprendizagem, problemática emocional e a prova “Era Uma Vez…”

Capítulo I – Enquadramento Teórico

31

I.7. Estudo de aspectos emocionais em crianças de idade escolar: a prova “Era

Uma Vez…”

O tipo de provas mais habitualmente utilizado para avaliar aspectos emocionais de

crianças é o projectivo. São provas que permitem uma recolha de informação bastante rica,

mas a fiabilidade das conclusões retiradas dependem muito da experiência e conhecimentos

do psicólogo (Perron-Borelli e Perron, 1970). Habitualmente não têm normas, ou seja,

servem mais para caracterizar aspectos da personalidade do que para afirmar sobre a

existência de patologia. As informações retiradas são, portanto, qualitativas. Este aspecto

dificulta a utilização de dados para estudos experimentais, pois implica a sua categorização, a

transformação da informação em dados passíveis de serem analisados estatisticamente.

Outra forma de avaliar aspectos emocionais é pela entrevista clínica. Todos os aspectos

referidos sobre as provas projectivas se verificam ainda em maior grau nesta técnica.

Os questionários resolvem estes problemas mas levantam outros. Para a infância não

existem muitos, exactamente porque são instrumentos difíceis de aplicar a crianças que ainda

não dominam bem a linguagem, estando dependentes da interpretação que a criança dá às

questões apresentadas.

Para o presente estudo era necessário avaliar aspectos emocionais de crianças em idade

escolar, de forma a obter dados passíveis de análise estatística. Assim, a prova “Era Uma

Vez…” apresenta-se como uma escolha de qualidade para os objectivos propostos.

Teresa Fagulha criou esta prova em 1992 (Fagulha, 1992). É uma prova criada com base

na teoria psicodinâmica do desenvolvimento psico-afectivo infantil. Pretende avaliar a forma

como a criança elabora as emoções em temas que são comuns na infância e que remetem para

marcos organizadores da vivência emocional. A prova pretende criar um momento de

actividade na área transicional como definida por Winnicott, ao apresentar uma situação

lúdica que requer a participação da criança em interacção com o aplicador. Os temas

apresentados à criança pela prova têm como objectivo avaliar como (ou se) esta elabora a

ansiedade e o prazer.

A prova solicita a criação de narrativas (histórias) a partir de um material estruturado. Essa

estruturação permite uma análise padronizada das respostas, o que torna esta prova muito útil

em estudo experimentais como o presente. O material estruturado faz com que a resposta à

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Dificuldades de aprendizagem, problemática emocional e a prova “Era Uma Vez…”

Capítulo I – Enquadramento Teórico

32

prova não esteja totalmente dependente da utilização da linguagem verbal, permitindo a sua

aplicação a crianças de várias idades e com diferentes capacidades linguísticas. Tem também

vantagens pela facilidade de utilização, e por existirem normas para a população portuguesa,

tornando-a numa prova bastante utilizada em Portugal.

A prova datada de 1992 foi mais tarde acrescentada em mais dois cartões e foram alteradas

algumas das cenas existentes (Santos, 2013). Actualmente é constituída por nove cartões

correspondendo a nove temas, mais um de exemplo. O material é duplicado: um conjunto

com uma personagem principal feminina e outro com masculina.

É apresentado à criança o cartão que contém três cenas, em estilo de banda desenhada.

Estas três cenas constituem o início de uma história que o aplicador conta oralmente, e em

seguida solicita à criança que a continue. Para isso apresenta-lhe mais nove cenas, das quais a

criança tem de escolher três para dar continuidade à história. Depois de escolhidas as cenas, o

aplicador conta novamente o início da história apresentada no cartão e pede à criança que

conte o resto da história segundo as cenas que escolheu. No final o aplicador apresenta a cena

número dez, que tem como objectivo terminar a história de uma forma estandardizada e

assim evitar que as opções da criança contaminem as suas opções na história que é

apresentada a seguir. No final dos nove cartões é apresentado um apenas com a personagem

da história, é solicitado à criança que dê um nome à personagem e que conte uma história

sobre ela, à sua vontade. Para finalizar, é perguntado qual foi a história que a criança gostou

mais e a que gostou menos. As escolhas das cenas, o tempo de latência (entre a colocação das

cenas na mesa e a escolha da primeira cena) e todas as verbalizações são registadas.

As nove cenas estão classificadas em três tipos de resposta: Aflição, Realidade e Fantasia.

Existem ainda as sub-categorias de Aflição e Aflição intensa, e de Fantasia viável e Fantasia

mágica. Na análise da prova é levado em conta as escolhas das cenas, a sua classificação, a

sequência das cenas escolhidas e a verbalização da história. Os sinais de desconforto ou

maior ansiedade são também levados em conta.

As nove histórias apresentadas mostram situações comuns na vida de qualquer criança. Na

versão original (Fagulha, 1992), cinco das histórias apresentam situações que provocam

ansiedade e duas que se espera serem agradáveis.

O cartão I, “Passeio com a Mãe”, apresenta uma situação em que a criança se perde da

mãe na rua. Permite aceder ao tema da separação e da possível angústia que esta elicita.

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Dificuldades de aprendizagem, problemática emocional e a prova “Era Uma Vez…”

Capítulo I – Enquadramento Teórico

33

O cartão II, “Doença”, apresenta uma situação em que a criança adoece. Permite aceder ao

tema da integridade corporal, de possíveis fantasmas de morte, de reacção a tratamentos

médicos.

O cartão III, “Ida à Praia”, apresenta uma situação em que a criança vai à praia com os

pais e há lá outros meninos a brincar. O que pode ser uma situação de interacção social

agradável, pode também trazer sentimentos de vergonha, desadequação ou medo de ser

agredido pelos outros.

O cartão IV, “Pesadelo”, apresenta uma situação em que a criança acorda com um

pesadelo. Permite aceder ao tema dos medos, nomeadamente do medo do escuro ou de

dormir sozinho.

O cartão V, “Dia de Aniversário”, apresenta uma situação em que a criança faz anos. É o

segundo cartão que remete para uma situação agradável, mas que pode trazer à tona

sentimentos de frustração por não receber o que se quer / precisa dos outros (amigos ou pais).

O cartão VI, “Briga dos Pais”, apresenta uma situação em que a mãe e o pai da

personagem começam a discutir. Permite aceder ao medo / desejo da criança em separar os

pais, ao possível medo de abandono / fragmentação da família.

O cartão VII, “Escola”, apresenta uma situação em que a criança não consegue efectuar

uma tarefa na escola. Permite aceder ao auto-conceito enquanto aluno e avaliar se a criança

consegue mobilizar estratégias para resolver o problema.

Santos (2013) introduziu dois novos cartões.

O cartão VIII, “Quebra da Jarra”, apresenta uma situação em que a criança transgride uma

norma dada pelos pais. Permite inferir sobre a maturidade do desenvolvimento moral e a

capacidade (ou sua ausência) de reparação.

O cartão IX, “Nascimento de um Irmão”, apresenta uma situação em que a criança acaba

de ter um irmão(ã) mais novo(a). Permite aceder ao tema da rivalidade fraterna e dos recursos

que a criança tem (ou não) para lidar com a mudança de posição na estrutura familiar.

Na sua tese de doutoramento, Santos (2013) faz uma revisão exaustiva de todos os estudos

que foram realizados com a prova “Era Uma Vez…”. Destes, os mais importantes para o

presente estudo foram os que encontraram os tipos de resposta mais frequentes por idade

(estabelecimento de normas para a população portuguesa) e o que definiu uma forma de

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Dificuldades de aprendizagem, problemática emocional e a prova “Era Uma Vez…”

Capítulo I – Enquadramento Teórico

34

classificação das estratégias de elaboração da ansiedade utilizadas na resposta a cada história

(Pires, 2001).

No processo da criação da prova, Fagulha (1992) retirou várias informações da aplicação

da prova a uma amostra de 245 crianças. Para além de dados sobre a fiabilidade da prova e o

seu poder discriminativo, encontrou padrões mais comuns de respostas para cada faixa etário,

em relação às categorias das cenas escolhidas e às posições na sequência de cada história. A

autora alargou estes dados em 1997 (Fagulha, 1997) com uma amostra maior. Em 2012,

Capinha reúne, na sua tese de mestrado, os dados recolhidos num período de dez anos por

vários investigadores, e apresenta as suas conclusões sobre as categorias escolhidas e sua

posição na sequência por idades, e também sobre as Estratégias de Elaboração da Ansiedade

de que se falará mais à frente. As conclusões destes autores são consistentes e vão no sentido

de que as crianças mais velhas apresentam maiores capacidades de elaboração da ansiedade,

o que permite uma maior capacidade de adaptação a situações ansiogénicas. Isto traduz-se no

maior número de escolhas de cenas de Aflição e Realidade nas primeiras posições da

sequência e maior número de escolhas de Realidade e Fantasia no terceiro lugar da sequência.

Para o presente estudo é também de particular importância a investigação longitudinal de

Fagulha e Duarte Silva (1996) que incidiu sobre as respostas ao cartão VII de crianças com e

sem dificuldades de aprendizagem. Os resultados apontam para uma maior ansiedade e

menor recurso à fantasia nas respostas das crianças com dificuldades de aprendizagem, e para

um esbater das diferenças ao longo dos três anos em que foram recolhidos os dados,

revelando mais uma vez a importância da idade no tipo de respostas. É também referido o

possível efeito terapêutico do próprio estudo, que implicou crianças, pais e professores.

Em 2001, Pires estudou a prova com o objectivo de identificar estratégias de elaboração da

ansiedade despertada pela temática dos diversos cartões, através das quais se pudessem

classificar a história que a criança cria através da escolha e colocação de três Cenas em

sequência, e respectiva história verbalizada. O estudo de Pires focou a utilização das diversas

estratégias em crianças com e sem problemática psicológica e a sua evolução em diferentes

idades.

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Dificuldades de aprendizagem, problemática emocional e a prova “Era Uma Vez…”

Capítulo I – Enquadramento Teórico

35

Estas Estratégias de Elaboração da Ansiedade foram utilizadas no presente estudo. São

elas a Negação, a Impossibilidade, a Estratégia Adaptativa Operacional e a Estratégia com

Equilibração Emocional.

Na Negação (NEG) a criança não parece reconhecer a qualidade ansiogénica do material

apresentado. A mobilização defensiva é massiva, de forma a não haver contacto consciente

com a angústia elicitada pelo cartão. Este tipo de resposta inclui habitualmente cenas de

Fantasia, que são utilizadas como forma de evitar o conflito apresentado e, assim, o

sentimento doloroso.

Na Impossibilidade (IMP) a criança reconhece a angústia mas não a consegue resolver,

deixando como que o problema em aberto. É a estratégia do “helplessness” - não há

adaptação possível. A criança pode tentar mobilizar defesas, mas estas não são eficazes.

Na Estratégia Adaptativa Operacional (EAO) a criança reconhece a angústia e tenta dar-

lhe uma resposta adaptativa, através de uma resolução pela acção. A ansiedade é suportável, e

mobilizadora de uma tentativa de solução satisfatória.

Na Estratégia com Equilibração Emocional (EEE) a criança também reconhece a angústia

mas tenta equilibrá-la de forma criativa, através da Fantasia. Desta forma, a ansiedade é

suportável e mobilizadora de uma resposta interna positiva que a transforma numa emoção

agradável.

Consegue-se facilmente identificar as estratégias que revelam maiores dificuldades na

elaboração da ansiedade - a NEG e a IMP, e aquelas que revelam uma maior capacidade

adaptativa – EAO e EEE.

Pires (2001), de acordo com estudos anteriores, encontrou uma maior utilização das EAO

e EEE em crianças mais velhas. A autora identificou também algumas tendências:

- maior utilização da EEE e IMP nos cartões II (doença), III (ida à praia), IV (pesadelo), V

(aniversário) e VI (briga dos pais);

- maior utilização da EAO nos cartões I (passeio com a mãe) e VII (escola)

O estudo de Capinha (2012) também verificou a maior utilização de EEE em crianças

mais velhas (maiores de 8 anos), de IMP em crianças mais novas (até 8 anos) e de NEG em

crianças de 5 anos. A EAO só é utilizada de forma crescente a partir dos 6 anos de idade.

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Dificuldades de aprendizagem, problemática emocional e a prova “Era Uma Vez…”

Capítulo I – Enquadramento Teórico

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Santos (2013), na apresentação e estudo da nova versão da prova, encontra resultados

semelhantes, chegando à mesma conclusão que Pires (2001) e Capinha (2012) de que o

momento de viragem são os 8 anos de idade. Assim, até aos 8 anos predomina a estratégia

IMP, seguida das EEE e NEG, sendo que a EAO é raramente utilizada. A partir dos 8 anos

aumenta a utilização das estratégias EAO e EEE, diminui a IMP e a NEG continua a ser a

menos utilizada.

Utilizando já a nova versão da prova “Era Uma Vez…”, Sousa (2014) comparou grupos

de crianças de diferentes níveis de escolaridade (pré-escolar, 2º e 4º anos) e idades (5 anos e

de 7 a 10 anos), comparando-as também em dois grupos conforme o rendimento escolar se

encontrava acima ou abaixo da média. Esta medida de rendimento escolar foi encontrada

através das médias das avaliações escolares e das respostas dos docentes ao Questionário de

Rutter. De notar que esta variável não é exactamente igual à presença ou ausência de

dificuldades de aprendizagem, mas sim uma divisão por um nível de corte mediano, entre as

crianças que ficaram acima e as que ficaram abaixo desse nível. Neste estudo a autora

comparou a categoria das respostas dadas a cada cartão da prova e o seu lugar na sequência.

Os resultados significativamente estatísticos apontam diferenças entre os grupos de melhor e

pior rendimento escolar nos cartões I (Passeio com a Mãe) e IV (Briga dos Pais), no sentido

em que as crianças com melhor rendimento escolar apresentaram respostas mais adaptativas

emocionalmente e mais voltadas para a resolução da situação ansiogénicas por via da acção.

Santos (2013) também comparou crianças com e sem dificuldades de aprendizagem

(através de informação dos professores). Encontrou diferenças ao analisar as escolhas das

cenas na sequência e os itens da grelha revista de atitudes e de aspectos formais e de

conteúdo. Concluiu que as crianças sem dificuldades são mais capazes de lidar com a

ansiedade suscitada pelos temas da prova, recorrem mais vezes a pedido de ajuda a um

adulto, e referem mais os pares; e que as crianças com dificuldades recorrem mais à

omnipotência. No entanto, em relação à utilização das EEA, Santos não encontrou diferenças

significativas entre os dois grupos.

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Dificuldades de aprendizagem, problemática emocional e a prova “Era Uma Vez…”

Capítulo II – Objectivos e Hipóteses

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CAPÍTULO II – OBJECTIVOS E HIPÓTESES

II.1. Objectivos

O objectivo do presente estudo é comparar as respostas dadas à prova “Era Uma Vez…”

de crianças com e sem dificuldades de aprendizagem. Considerando, como foi descrito no

capítulo I, que existe uma ligação inegável entre desenvolvimento emocional e intelectual,

considerando que é necessário mobilizar capacidades intelectuais e emocionais para a

aprendizagem formal, espera-se que existam diferenças na forma como as crianças com e sem

dificuldades de aprendizagem respondem às situações apresentadas pela prova,

nomeadamente na capacidade de reconhecimento e elaboração da ansiedade.

Assim, este estudo tem como objectivos específicos estudar as diferenças das categorias de

cenas escolhidas, a sua posição na sequência e o tipo de estratégia de elaboração da

ansiedade, como definido por Pires (2001).

II.2. Hipóteses

Põe-se como hipótese que as crianças do grupo com dificuldades de aprendizagem tenham

maiores dificuldades no reconhecimento e elaboração da ansiedade suscitada pelo conteúdo

apresentado na prova. Assim:

Hipótese 1: As crianças com dificuldades de aprendizagem utilizarão mais estratégias de

elaboração da ansiedade do tipo Negação e Impossibilidade e menos do tipo Estratégia

Adaptativa Operacional e Estratégia com Equilibração Emocional, em relação às crianças em

dificuldades de aprendizagem.

Hipótese 2: Relativamente à categoria de cenas escolhidas (aflição, fantasia, realidade) em

função da posição na sequência (1ª, 2ª, 3ª), as crianças com dificuldades de aprendizagem

terão:

a) Uma maior dificuldade em reconhecer a emoção ansiosa, possuindo uma menor escolha

de cenas de Aflição na 1ª posição da sequência;

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Dificuldades de aprendizagem, problemática emocional e a prova “Era Uma Vez…”

Capítulo II – Objectivos e Hipóteses

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b) Uma menor capacidade em resolver a situação geradora de ansiedade, possuindo uma

menor escolha de cenas de Realidade na 3ª posição da sequência.

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Dificuldades de aprendizagem, problemática emocional e a prova “Era Uma Vez…”

Capítulo III - Metodologia

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CAPÍTULO III – METODOLOGIA

III.1. Amostra

A amostra foi constituída por 31 crianças, 21 do sexo feminino e 10 do sexo masculino, a

frequentar o 2º ano de escolaridade pela primeira vez, em escolas da cidade de Lisboa, com

idades entre os 7 e os 8 anos. Das três escolas que colaboraram neste estudo, duas fazem

parte de uma mesma IPSS e uma é pública. A escolaridade dos pais é na maioria o ensino

superior e secundário. Os resultados na prova Matrizes Progressivas Coloridas – forma

paralela apontam para uma maioria de sujeitos nos percentis acima de 50 (25 sujeitos), 6

sujeitos com percentil entre 25 e 50. Da amostra inicial foram retirados 4 sujeitos com

percentis abaixo de 25 nas Matrizes Progressivas Coloridas – forma paralela, que estavam

incluídos, como seria expectável, no grupo Com Dificuldades.

Pretendia-se evitar a influência da idade nos resultados, tentando uniformizar a faixa

etária. Pretendia-se também minimizar o efeito do sucesso / insucesso escolar nos resultados,

dado que o objectivo do presente trabalho é estudar o efeito da problemática emocional no

rendimento escolar e não o contrário. Consideramos que o 2º ano de escolaridade constitui o

momento mais adequado para distinguir claramente alunos com e sem dificuldades de

aprendizagem ainda numa fase inicial (posteriormente elas poderão manter-se e agravar-se se

não forem reconhecidas e apoiadas).

O critério utilizado para a colocação dos alunos no grupo com dificuldades de

aprendizagem (CD) foi a existência de Plano de Acompanhamento Pedagógico ou a

indicação do professor titular de turma para o aluno ter esse plano ou apoio pedagógico, após

avaliações do 1º período. Esta informação foi fornecida pelos próprios professores. Foram

também os professores que escolheram os alunos a integrar o grupo sem dificuldades (SD) e

que enviaram os pedidos de autorização aos pais para a participação no estudo. Não foram

encontradas diferenças significativas nos resultados na prova Matrizes Progressivas Coloridas

entre os grupos CD e SD.

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Dificuldades de aprendizagem, problemática emocional e a prova “Era Uma Vez…”

Capítulo III - Metodologia

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III.2. Instrumentos

Os instrumentos utilizados foram a prova “Era Uma Vez…” e a adaptação portuguesa da

prova Matrizes Progressivas Coloridas – forma paralela (Raven, J., Raven, J. C. & Court, J.

H., 2009).

A prova Matrizes Progressivas Coloridas – forma paralela é uma prova de inteligência

geral (factor G), não dependente de factores culturais e da linguagem verbal. Avalia o

desenvolvimento cognitivo da criança, solicitando que esta faça um raciocínio de dedução de

relações. A versão utilizada está aferida para a população portuguesa. Em cada item, é

apresentada à criança uma imagem e é solicitado que ela escolha, entre seis hipóteses, aquela

que melhor completa a imagem inicial. A prova é constituída por três séries (A, Ab e B) com

12 itens cada. Os resultados são apresentados em percentis. É de fácil e rápida aplicação e

cotação. A prova foi utilizada neste estudo para descrever a amostra em termos de capacidade

cognitiva e para retirar sujeitos que apresentassem um resultado abaixo de 25, por fazerem

parte de uma população com características específicas que, dado os objectivos do presente

estudo, não interessa incluir na amostra.

Aquando do pedido de autorização aos pais, foi também recolhida informação sobre

escolaridade e profissão da mãe e do pai, número de irmãos e posição na fratria.

III.3. Procedimentos

Os dados foram recolhidos pela autora, no espaço físico da escola, durante o tempo

lectivo, em sala à parte. A recolha de dados decorreu entre Março e Junho de 2016.

No início foi explicado à criança porque estava ali, explicando que os pais já tinham dado

autorização para a sua participação, e dando a possibilidade da criança recusar.

Foi proposta uma actividade de quebra gelo, habitualmente um desenho.

Em seguida foi aplicada a prova “Era Uma Vez…” e depois as Matrizes Coloridas de

Raven. No final agradeceu-se à criança a sua participação.

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Dificuldades de aprendizagem, problemática emocional e a prova “Era Uma Vez…”

Capítulo III - Metodologia

41

III.4. Procedimento estatístico

Foi utilizado o programa estatístico IBM SPSS (Statistical Package for the Social

Sciences). As frequências das escolhas das Estratégias de Elaboração da Ansiedade (EEA) e

das categorias das escolhas das cenas na sequência foram analisadas estatisticamente

utilizando o Qui-Quadrado, sempre que foi aplicável. Nas restantes situações foi aplicado o

teste exacto de Fisher.

Para análise comparativa da utilização das EEA em todos os cartões, foi utilizado o teste

de Mann-Whitney.

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Dificuldades de aprendizagem, problemática emocional e a prova “Era Uma Vez…”

Capítulo IV - Resultados

42

CAPÍTULO IV – RESULTADOS

IV.1. Dados estatísticos da prova “Era Uma Vez…”

Optámos por apresentar valores absolutos, já que o número de sujeitos entre os grupos é

muito próximo. O quadro 1 apresenta, então, as frequências absolutas das Estratégias de

Elaboração da Ansiedade (EEA) nos grupos Com Dificuldades de aprendizagem (CD) e Sem

Dificuldades de aprendizagem (SD), para o Cartão 1 (Passeio com a Mãe).

Quadro 1- Comparação das Estratégias de Elaboração da Ansiedade no Cartão I

Negação Impossibilidade EAO EEE

Sem dificuldades 2 5 9 1

Com dificuldades 2 3 7 2

Para comparar as duas amostras no que diz respeito à distribuição global da frequência das

estratégias, e dado que as condições de aplicação do χ2 não se verificam, recorreu-se ao teste

exacto de Fisher. Não foram encontradas diferenças significativas (p=0,897).

O quadro 2 apresenta as frequências absolutas das EEA nos dois grupos, para o Cartão 2

(Doença).

Quadro 2- Comparação das Estratégias de Elaboração da Ansiedade no Cartão II

Negação Impossibilidade EAO EEE

Sem dificuldades 1 0 2 14

Com dificuldades 5 5 0 4

Para comparar as duas amostras no que diz respeito à distribuição global da frequência das

estratégias, e dado que as condições de aplicação do χ2 não se verificam, recorreu-se ao teste

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Dificuldades de aprendizagem, problemática emocional e a prova “Era Uma Vez…”

Capítulo IV - Resultados

43

exacto de Fisher. Encontraram-se diferenças significativas (14,279) com um nível de

significância de p<0,001.

Agrupando as EEA em menos adaptativas (Negação e Impossibilidade) e mais adaptativas

(Estratégia Adaptativa Operacional e Estratégia com Equilibração Emocional), fez-se a

comparação dos dois grupos, através do teste exacto de Fisher, tendo-se encontrado

diferenças significativas (p<0,001). Ou seja, o grupo Sem Dificuldades utiliza estratégias

mais adaptativas do que o grupo Com Dificuldades no cartão que remete para a doença.

Procedeu-se também à comparação dos grupos por utilização de cada estratégia

isoladamente. A única onde foram encontradas diferenças significativas foi a EEE (χ2=9,120;

p=0,004). Ou seja, os resultados indicam que o grupo Sem Dificuldades utiliza mais a

estratégia EEE que o grupo Com Dificuldades no cartão relacionado com a relação com os

pares.

O quadro 3 apresenta as frequências absolutas das EEA nos dois grupos, para o Cartão 3

(Passeio à Praia).

Quadro 3- Comparação das Estratégias de Elaboração da Ansiedade no Cartão III

Negação Impossibilidade EAO EEE

Sem dificuldades 0 8 3 6

Com dificuldades 6 3 0 5

Para comparar as duas amostras no que diz respeito à distribuição global da frequência das

estratégias, e dado que as condições de aplicação do χ2 não se verificam, recorreu-se ao teste

exacto de Fisher. Foram encontradas diferenças significativas (10,730) com um nível de

significância de 0,008.

Agrupando as EEA em menos adaptativas e mais adaptativas (como explicado em cima),

fez-se a comparação dos dois grupos, através do χ2, não se tendo encontrado diferenças

significativas (p=0,473).

A existência de uma diferença global na distribuição não nos dá uma indicação sobre quais

são as estratégias específicas em que os dois grupos se diferenciam. Assim, procedeu-se à

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Capítulo IV - Resultados

44

comparação dos grupos por utilização de cada estratégia isoladamente. A única onde foram

encontradas diferenças significativas foi a Negação (teste exacto de Fisher, p=0,004). Ou

seja, os resultados indicam que o grupo Com Dificuldades utiliza mais a estratégia Negação

que o grupo Sem Dificuldades no cartão relacionado com a relação com os pares.

O quadro 4 apresenta as frequências absolutas das EEA nos dois grupos, para o Cartão 4

(Pesadelo).

Quadro 4- Comparação das Estratégias de Elaboração da Ansiedade no Cartão IV

Negação Impossibilidade EAO EEE

Sem dificuldades 5 4 8 0

Com dificuldades 7 1 2 4

Para comparar as duas amostras no que diz respeito à distribuição global da frequência das

estratégias, e dado que as condições de aplicação do χ2 não se verificam, recorreu-se ao teste

exacto de Fisher. Foram encontradas diferenças significativas (8,935) para um nível de

significância de 0,022.

Agrupando as EEA em menos adaptativas e mais adaptativas (como explicado em cima),

fez-se a comparação dos dois grupos, através do teste exacto de Fisher, não se tendo

encontrado diferenças significativas (p=1).

A existência de uma diferença global na distribuição não nos dá uma indicação sobre quais

são as estratégias específicas em que os dois grupos se diferenciam. Assim, procedeu-se à

comparação dos grupos por utilização de cada estratégia isoladamente. A única onde foram

encontradas diferenças significativas foi a EEE (teste exacto de Fisher, p=0,032). Ou seja, os

resultados indicam que o grupo Com Dificuldades utiliza mais a estratégia EEE que o grupo

Sem Dificuldades no cartão relacionado com os pesadelos.

O quadro 5 apresenta as frequências absolutas das EEA nos dois grupos, para o Cartão 5

(Dia dos Anos).

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Dificuldades de aprendizagem, problemática emocional e a prova “Era Uma Vez…”

Capítulo IV - Resultados

45

Quadro 5- Comparação das Estratégias de Elaboração da Ansiedade no Cartão V

Negação Impossibilidade EAO EEE

Sem dificuldades 0 2 1 14

Com dificuldades 0 2 3 9

Para comparar as duas amostras no que diz respeito à distribuição global da frequência das

estratégias, e dado que as condições de aplicação do χ2 não se verificam, recorreu-se ao teste

exacto de Fisher. Não foram encontradas diferenças significativas (p= 0,518).

O quadro 6 apresenta as frequências absolutas das EEA nos dois grupos, para o Cartão 6

(Briga dos Pais).

Quadro 6- Comparação das Estratégias de Elaboração da Ansiedade no Cartão VI

Negação Impossibilidade EAO EEE

Sem dificuldades 0 9 2 6

Com dificuldades 2 7 1 4

Para comparar as duas amostras no que diz respeito à distribuição global da frequência das

estratégias, e dado que as condições de aplicação do χ2 não se verificam, recorreu-se ao teste

exacto de Fisher. Não foram encontradas diferenças significativas (p= 0,570).

O quadro 7 apresenta as frequências absolutas das EEA nos dois grupos, para o Cartão 7

(Escola).

Quadro 7- Comparação das Estratégias de Elaboração da Ansiedade no Cartão VII

Negação Impossibilidade EAO EEE

Sem dificuldades 0 4 7 6

Com dificuldades 2 3 5 4

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Capítulo IV - Resultados

46

Para comparar as duas amostras no que diz respeito à distribuição global da frequência das

estratégias, e dado que as condições de aplicação do χ2 não se verificam, recorreu-se ao teste

exacto de Fisher. Não foram encontradas diferenças significativas (p= 0,565).

O quadro 8 apresenta as frequências absolutas das EEA nos dois grupos, para o Cartão 8

(Quebra da Jarra).

Quadro 8- Comparação das Estratégias de Elaboração da Ansiedade no Cartão VIII

Negação Impossibilidade EAO EEE

Sem dificuldades 0 2 10 5

Com dificuldades 0 2 12 0

Para comparar as duas amostras no que diz respeito à distribuição global da frequência das

estratégias, e dado que as condições de aplicação do χ2 não se verificam, recorreu-se ao teste

exacto de Fisher. Não foram encontradas diferenças significativas (p=0,112).

O quadro 9 apresenta as frequências absolutas das EEA nos dois grupos, para o Cartão 9

(Nascimento de um Irmão).

Quadro 9- Comparação das Estratégias de Elaboração da Ansiedade no Cartão IX

Negação Impossibilidade EAO EEE

Sem dificuldades 0 1 12 4

Com dificuldades 0 1 5 8

Para comparar as duas amostras no que diz respeito à distribuição global da frequência das

estratégias, e dado que as condições de aplicação do χ2 não se verificam, recorreu-se ao teste

exacto de Fisher. Não foram encontradas diferenças significativas (p=0,124).

A utilização total de cada estratégia, ou seja, em todos os cartões, foi comparada entre os

dois grupos. Foi utilizado o teste de Man-Whitney. O quadro 10 mostra as médias das

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Capítulo IV - Resultados

47

ordenações da utilização de cada estratégia em todos os cartões, o valor de U de Mann-

Whitney e o nível de significância.

Quadro 10- Comparação da utilização total das estratégias

Negação Impossibilidade EAO EEE

Sem dificuldades 12,91 16,35 16,85 17,21

Com dificuldades 19,75 15,57 14,96 14,54

U de Mann-Whitney 66,00 113,00 104,50 98,50

Nível de significância 0,022 0,807 0,555 0,404

Encontram-se diferenças significativas na utilização da estratégia de Negação, sendo que o

grupo Com Dificuldades a utiliza mais que o grupo Sem Dificuldades.

Foi efectuada análise estatística incluindo os 4 sujeitos com resultados nas Matrizes

Progressivas Coloridas – forma paralela abaixo do percentil 25. Os resultados encontrados

são muito semelhantes. As diferenças encontradas foram:

- no Cartão II não se encontraram diferenças na utilização da estratégia EEE;

- no Cartão IV encontraram diferenças na utilização da estratégia EAO, mais frequente no

grupo Sem Dificuldades;

- nos cartões VIII e IX foram encontradas diferenças significativas entre os grupos.

Foi analisada a escolha das cenas na sequência, de acordo com as categorias Aflição,

Fantasia e Realidade. A única diferença significativa encontrada foi na escolha de cenas de

Aflição no terceiro lugar da sequência no Cartão II (teste exacto de Fisher, p=0,012), que é

mais frequente no grupo Com Dificuldades.

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Capítulo V – Discussão dos Resultados

48

CAPÍTULO V – DISCUSSÃO DOS RESULTADOS

Foram encontradas diferenças significativas na utilização das estratégias de elaboração da

ansiedade (EEA) em 3 dos 9 cartões e no total da prova.

Estes resultados são diferentes dos encontrados por Santos (2013), que não encontrou

diferenças na utilização das estratégias em nenhum cartão. Talvez isto seja explicado pela

dispersão de idades da sua amostra, comparativamente com a amostra do presente estudo,

podendo indicar que a idade é um dos factores mais importantes no tipo de estratégias

utilizadas (Pires, 2001).

No Cartão I a nossa amostra não apresenta diferenças nem nas estratégias nem nas

escolhas das cenas na sequência, contrariando os resultados de Santos (2013) e Sousa (2014).

A nossa amostra segue, no entanto, a tendência encontrada por Santos de uma maior

incidência de EAO na faixa etária dos 7 e 8 anos.

No cartão II (doença), as crianças do grupo Com Dificuldades utilizaram mais o conjunto

de estratégias menos adaptativas (Impossibilidade e Negação) do que as crianças do grupo

Sem Dificuldades, que utilizaram mais estratégias mais adaptativas (EAO e EEE). Esta

diferença tem um nível de significância muito elevado, o maior deste estudo (p<0,001). O

grupo Sem Dificuldades também utiliza comparativamente com maior frequência a estratégia

EEE, o que reforça os resultados encontrados sobre a utilização das estratégias (sendo esta a

única diferença encontrada nas escolhas das cenas das sequências em toda a amostra). Este é

um dado a que devemos dar atenção.

O tema da doença remete-nos para a estrutura de funcionamento psicossomático. De

acordo com a teoria psicanalítica, este é um dos tipos de funcionamento mais básicos, no

sentido em que se terá instalado numa altura da vida em que ainda não existe aparelho

mental. Aliás, é exactamente por não existir aparelho mental capaz de suportar as emoções e

tensões, que estas são descarregadas no corpo. É a patologia que consegue ultrapassar a

psicose mas fica aquém da depressão, a que Coimbra de Matos chama de depressão falhada

(2003). A perda é vivida antes de existir um aparelho capaz de se deprimir, de reagir

mentalmente ao não amor. Incapaz de viver a dor psíquica, funciona em acting-in, através do

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Dificuldades de aprendizagem, problemática emocional e a prova “Era Uma Vez…”

Capítulo V – Discussão dos Resultados

49

corpo e dos órgãos, que adoecem. O autor associa este tipo de estrutura psíquica a um

“predomínio do pensamento operatório e a pobreza da fantasia.” (p. 64).

Naturalmente, não podemos inferir que as crianças que utilizam as estratégias

Impossibilidade e Negação no cartão II da prova “Era uma vez…” têm uma estrutura psíquica

psicossomática. Mas demonstram dificuldade em elaborar a ansiedade que este tema suscita.

A literatura aponta para uma relação entre a noção de invólucro corporal e pele psíquica

como definida por Bion, ou, na teoria de Winnicott, a noção de ego corporal e de como é

através do handling que o bebé desenvolve o processo de personalização que permite a

construção progressiva da elaboração mental. Esta é uma área que requer um estudo mais

aprofundado.

No cartão III (ida à praia) o grupo Com Dificuldades utiliza mais a Negação que o grupo

Sem Dificuldades. Sabemos da experiência e da literatura que uma boa parte das crianças

com dificuldades de aprendizagem tem comportamentos que muitas vezes perturbam – são

comportamentos que, muitos deles, se podem classificar de extroversão, que João dos Santos

(Branco, 2000) identifica em 2/3 das crianças que frequentaram a Casa da Praia nos primeiros

10 anos do seu funcionamento. Não temos dados sociométricos ou informações de pais e

professores para fazer aqui uma extrapolação. Mas podemos partir dos dados de Santos

(2013) de que nestas idades é mais frequente a utilização da estratégia EEE neste cartão, para

dar a devida importância a este aumento da estratégia Negação nas crianças com dificuldades

de aprendizagem, quando o tema é a relação com os pares, e num dos dois cartões onde se

espera que a emoção suscitada seja de prazer e não de ansiedade. Santos (2013) encontrou

diferenças no item referente à expressão de aflição somática, mais frequente no grupo de

crianças com dificuldades de aprendizagem. Embora na nossa amostra não tenhamos

encontrado diferenças no cartão VII (escola), os dados de Santos indicam que as crianças sem

dificuldades assinalam mais o item “faz referência a outros meninos” neste cartão. Estes

dados chamam-nos à atenção sobre a importância da questão da relação entre pares nas

escolas.

No cartão IV (pesadelo) o grupo Com Dificuldades utiliza mais a EEE que o grupo Sem

Dificuldades. Santos (2013) encontrou diferenças no recurso ao apoio das figuras adultas – o

grupo das crianças com dificuldades assinala mais frequentemente os itens de desvalorização

dos adultos, e o grupo sem dificuldades o item da personagem apoiada pelo adulto feminino.

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Dificuldades de aprendizagem, problemática emocional e a prova “Era Uma Vez…”

Capítulo V – Discussão dos Resultados

50

Podemos argumentar que a utilização da estratégia EEE tem a ver com a resolução da

ansiedade através de soluções de fantasia que não dependem do apoio dos adultos de

referência. Embora não tenhamos encontrado diferenças no cartão I, que remete para as

questões da vinculação, estes dados do cartão IV, junto com os resultados encontrados por

Santos, podem dar-nos algumas pistas sobre a forma como as crianças com dificuldades de

aprendizagem se sentem (ou não) apoiadas, se podem (ou não) confiar nos adultos

significativos. Como refere Boimare (2001), a situação de aprendizagem implica, pelo menos

no seu início, uma relação de dependência do “mestre”. Se a criança parte de um lugar em

que os adultos não são confiáveis e não oferecem segurança, terá a sua tarefa de

aprendizagem comprometida. Embora na nossa amostra não tenhamos encontrado diferenças

no cartão VII (escola), os dados de Santos indicam que as crianças com dificuldades

assinalam mais o item “personagem rejeitada por adulto feminino” neste cartão.

Como atrás se referiu, da amostra inicial foram retirados 4 sujeitos com percentis abaixo

de 25 nas Matrizes Progressivas Coloridas – forma paralela, que estavam incluídos, como

seria expectável, no grupo Com Dificuldades. A inclusão destes sujeitos na amostra traz

diferenças nos resultados referentes aos cartões IV (pesadelo), VIII (quebra da jarra) e IX

(nascimento de um irmão): no cartão IV aparecem também diferenças na estratégia EAO,

mais utilizada pelo grupo Sem Dificuldades (p=0,007); no cartão VIII há uma maior

utilização da estratégia EEE no grupo Sem Dificuldades (p=0,019); no cartão IX há uma

maior utilização da estratégia EAO no grupo Sem Dificuldades (p=0,018) e da estratégia EEE

no grupo Com Dificuldades (p=0,041).

A relação entre nível de inteligência geral e as respostas na prova “Era Uma Vez…” não

são o objectivo de análise deste estudo. E não sabemos se estas diferenças entre as duas

amostras se devem ao maior número de sujeitos no grupo Com Dificuldades ou ao nível

intelectual dos sujeitos. De qualquer forma, é com a inclusão dos sujeitos com nível

intelectual mais baixo que encontramos uma diferença no mesmo sentido do cartão IV e no

sentido oposto a todas as restantes: a maior utilização duma estratégia considerada mais

adaptativa (EEE) no grupo Com Dificuldades, no cartão IX

Será necessário entender se o recurso à estratégia EEE é sempre um movimento adaptativo

de elaboração da ansiedade ou se se pode constituir como uma defesa de omnipotência face a

uma angústia reconhecida. Esta estratégia, como descrita por Pires e Fagulha (2003/2004)

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Capítulo V – Discussão dos Resultados

51

“traduz um movimento interno de reconhecimento da ansiedade, sendo a fantasia utilizada

para equilibrar, de modo flexível e criativo, a experiência dolorosa” (p. 6 e 7). Podemos

afirmar que esta pode ter este sentido de transformação da dor mental em acto criativo, de

sublimação, de protecção produtiva e positiva. Mas podemos também pensar que, em

algumas situações, a fantasia pode ter um significado de omnipotência, de defesa narcísica

que, muito embora criativa, esconde uma fragilidade imensa que só pode ser adereçada

através de uma resposta igualmente grandiosa. Se assim for, algumas das crianças que

responderam em EEE, poderão estar a proteger um eu ainda frágil, um narcisismo ameaçado,

aproximando-se mais do tipo de resposta da Negação do que do EEE como ele está a ser

actualmente interpretado. Como se as estratégias definidas por Pires (2001) não fossem um

contínuo de adaptabilidade, mas sim um círculo. E que quanto mais longe se vai na utilização

da EEE, mais próximo ficamos da Negação.

No total da prova, o grupo Com Dificuldades utilizou mais vezes a estratégia Negação que

o grupo Sem Dificuldades. Este resultado vai no mesmo sentido dos resultados gerais

encontrados por Fagulha e Duarte Silva (1996), Santos (2013) e Sousa (2014), em que as

crianças com dificuldades de aprendizagem apresentaram maiores dificuldades em gerir a

ansiedade suscitada pelos cartões da prova. A estratégia Negação é definida como a única em

que não há um reconhecimento da ansiedade. Podemos debater se este reconhecimento se dá

internamente, pois apenas podemos avaliar a resposta externa que a criança dá pela sua acção

(na escolha das cenas, na elaboração da história e no seu comportamento visível). Mas, pela

sua definição, na Negação, as defesas são mobilizadas ainda antes da criança poder ter

consciência da angústia. Fica a emoção sem nome, sem elaboração, sem expressão e sem

possibilidade de ser amparada. A criança que não se deixa sentir a angústia, não pede ajuda,

não mobiliza (ou não tem) nem os seus recursos internos nem os externos. Este pode ser um

dado importante na explicação da persistência do insucesso escolar: as crianças com

insucesso podem melhorar, mas muito frequentemente mantêm dificuldades durante todo o

seu percurso escolar e são a maioria das que abandonam precocemente a escola.

Ao juntar este resultado com os do cartão II, podemos pensar numa ligação entre a

utilização da estratégia Negação e a estrutura psicossomática da personalidade: no

psicossomático a angústia não é sentida pelo seu aparelho mental em forma de emoção, ela é

descarregada no corpo, como matéria básica não elaborada, tensão primária que faz o corpo

adoecer enquanto a mente fica apenas em estado dormente.

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Dificuldades de aprendizagem, problemática emocional e a prova “Era Uma Vez…”

Capítulo V – Discussão dos Resultados

52

Olhando agora para as hipóteses definidas, podemos afirmar que a Hipótese 1 – as

crianças com dificuldades de aprendizagem utilizarão mais estratégias de elaboração da

ansiedade do tipo Negação e Impossibilidade e menos do tipo Estratégia Adaptativa

Operacional e Estratégia com Equilibração Emocional, em relação às crianças em

dificuldades de aprendizagem – se confirma parcialmente: as respostas a 3 dos 9 e a

predominância da utilização da estratégia Negação no grupo Com Dificuldades suportam essa

afirmação.

Quanto à Hipótese 2 – relativamente à categoria de cenas escolhidas (aflição, fantasia,

realidade) em função da posição na sequência, as crianças com dificuldades de aprendizagem

terão a) uma maior dificuldade em reconhecer a emoção ansiosa, possuindo uma menor

escolha de cenas de Aflição na 1ª posição da sequência; b) uma menor capacidade em

resolver a situação geradora de ansiedade, possuindo uma menor escolha de cenas de

Realidade na 3ª posição da sequência – esta não se verificou, tendo sido encontradas

diferenças apenas na escolha de cenas de Aflição na 3ª posição no cartão II, mais frequente

no grupo Com Dificuldades.

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Dificuldades de aprendizagem, problemática emocional e a prova “Era Uma Vez…”

Capítulo VI – Conclusões

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CAPÍTULO VI - CONCLUSÕES

O presente estudo teve como principal objectivo investigar a influência de problemáticas

emocionais no insucesso escolar, utilizando para isso a prova “Era Uma Vez…” em dois

grupos de crianças com e sem dificuldades de aprendizagem. Analisaram-se as frequências da

utilização das estratégias de elaboração da ansiedade como definidas por Pires (2001) –

Negação, Impossibilidade, Estratégia Operacional Adaptativa e Estratégia com Equilibração

Emocional. Analisaram-se também as frequências das categorias das cenas escolhidas nas

três posições da sequência.

Os resultados encontrados apontam para uma maior dificuldade no grupo de crianças Com

Dificuldades de aprendizagem em elaborar a ansiedade nos cartões II (doença), III (ida à

praia) e IV (pesadelo), e uma utilização mais frequente da estratégia Negação em toda a

prova. A única diferença encontrada na análise das categorias escolhidas na sequência foi

encontrada no cartão II, onde as crianças Com Dificuldades escolheram mais vezes uma cena

de Aflição na terceira posição.

Estes resultados confirmam parcialmente as hipóteses estabelecidas. São mais consistentes

no tema presente no cartão II (doença), o que nos levou a considerações teóricas sobre a

possível ligação entre problemáticas do campo da organização psicossomática da

personalidade e as dificuldades de aprendizagem.

A maior limitação deste estudo está na dimensão da amostra. Este factor terá contribuído

para as poucas diferenças encontradas entre os dois grupos, e não permite uma extrapolação

dos resultados para a população em geral.

Não foram analisados os dados referentes ao tempo de latência, às atitudes perante a prova

e aos aspectos formais e de conteúdo. Esta opção também se prendeu com a dimensão da

amostra que fez prever dados muito escassos para uma comparação significativa. Estes dados

são, no entanto, essenciais na análise de cada protocolo individual, fornecendo informações

importantes sobre o estado emocional da criança e ajudando a formular uma proposta de

intervenção, seja do ponto de vista clínico e terapêutico, como do ponto de vista de como a

escola pode melhor agir para apoiar a criança.

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Dificuldades de aprendizagem, problemática emocional e a prova “Era Uma Vez…”

Capítulo VI – Conclusões

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O presente estudo acrescenta dados às investigações realizadas anteriormente que

utilizaram a nova versão da prova “Era Uma Vez…” que compararam grupos de crianças

com e sem dificuldades de aprendizagem (Santos, 2013, como parte da caracterização das

respostas à nova versão da prova apresentada neste trabalho) e de crianças com diferentes

níveis de rendimento escolar (Sousa, 2014). Aliás, o presente estudo vai ao encontro das

recomendações de Sousa para investigações posteriores, no sentido de estudar as Estratégias

de Elaboração da Ansiedade e de restringir a amostra por ano de escolaridade. O conjunto

destes dados dá-nos indicação de que a presença de dificuldades de aprendizagem vem

muitas vezes acompanhada de uma forma de elaborar a ansiedade menos adaptativa,

confirmando o que é estipulado na teoria psicodinâmica, quando define o pensamento

intelectual como dependente da maturação saudável do aparelho mental, ou seja da saúde

emocional e das boas experiências relacionais precoces. Este tema carece estudos posteriores,

com amostras de dimensão maior, nomeadamente por escalão etário.

Na discussão de resultados foram apresentados alguns pontos que carecem de estudos

mais aprofundados: a questão referente a uma possível relação das dificuldades de

aprendizagem com uma estrutura de personalidade com características psicossomáticas,

assim como as questões da relação entre pares e da confiança nos adultos significativos em

situação de insucesso escolar.

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Dificuldades de aprendizagem, problemática emocional e a prova “Era Uma Vez…”

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