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Universidade Federal de Pernambuco NEHTE / Programa de Pós-graduação em Letras CCTE / Programa de Pós-graduação em Ciências da Computação - 1 - VERBOS IRREGULARES OU VERBOS COM FORMAS IRREGULARES? REFLEXÃO SUSCITADA PELO PROCESSAMENTO COMPUTACIONAL DO PORTUGUÊS Vera Vasilévski 1 (UFSC) Resumo: A partir de pesquisa para automatizar a morfologia flexional dos verbos do português do Brasil, construiu-se um analisador morfológico, recurso computacional que contém algoritmos com as regras gramaticais do sistema de verbos do português. Constatou-se que todos os verbos são fiéis aos paradigmas conjugacionais regulares, em boa medida, mesmo os mais complexos, que são também os mais usados. Ainda, evidenciou-se que verbos sujeitos à harmonia vocálica são regulares, assim como verbos sujeitos a adaptação ortográfica no radical. Propõe-se que a escola faça distinção entre formas verbais regulares e irregulares, a fim de facilitar o aprendizado e torná-lo mais coerente. Palavras-chave: morfologia flexional verbal, recursos computacionais, ensino. Abstract: As a result of a research to automate the inflectional verb morphology of Brazilian Portuguese, we built a morphological analyzer, that is, a computer resource that contains algorithms with the grammar rules of the Portuguese verb system. The research found that all verbs largely fit the regular conjugation paradigms, even the more complex ones, which are also the most used. Besides, it made overt that verbs subjected to vowel harmony phenomenon are regular, as well as the ones subjected to orthographic adjustment in the radical. We propose that the school makes distinction between regular and irregular verb forms, in order to support learning, and make it more coherent. Keywords: inflectional verb morphology, computational resources, teaching. Introdução Este artigo relata resultados de uma fase de um projeto cujo objetivo é desenvolver um recurso computacional para automatizar o sistema de verbos do português escrito do Brasil, a partir de suas regras morfológicas. Tal ferramenta é

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Universidade Federal de Pernambuco NEHTE / Programa de Pós-graduação em Letras CCTE / Programa de Pós-graduação em Ciências da Computação

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VERBOS IRREGULARES OU VERBOS COM FORMAS

IRREGULARES? REFLEXÃO SUSCITADA PELO

PROCESSAMENTO COMPUTACIONAL DO PORTUGUÊS

Vera Vasilévski1 (UFSC)

Resumo: A partir de pesquisa para automatizar a morfologia flexional dos verbos do português do Brasil, construiu-se um analisador morfológico, recurso computacional que contém algoritmos com as regras gramaticais do sistema de verbos do português. Constatou-se que todos os verbos são fiéis aos paradigmas conjugacionais regulares, em boa medida, mesmo os mais complexos, que são também os mais usados. Ainda, evidenciou-se que verbos sujeitos à harmonia vocálica são regulares, assim como verbos sujeitos a adaptação ortográfica no radical. Propõe-se que a escola faça distinção entre formas verbais regulares e irregulares, a fim de facilitar o aprendizado e torná-lo mais coerente. Palavras-chave: morfologia flexional verbal, recursos computacionais,

ensino. Abstract: As a result of a research to automate the inflectional verb morphology of Brazilian Portuguese, we built a morphological analyzer, that is, a computer resource that contains algorithms with the grammar rules of the Portuguese verb system. The research found that all verbs largely fit the regular conjugation paradigms, even the more complex ones, which are also the most used. Besides, it made overt that verbs subjected to vowel harmony phenomenon are regular, as well as the ones subjected to orthographic adjustment in the radical. We propose that the school makes distinction between regular and irregular verb forms, in order to support learning, and make it more coherent. Keywords: inflectional verb morphology, computational resources, teaching.

Introdução

Este artigo relata resultados de uma fase de um projeto cujo objetivo é

desenvolver um recurso computacional para automatizar o sistema de verbos do

português escrito do Brasil, a partir de suas regras morfológicas. Tal ferramenta é

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um analisador morfológico, que contém algoritmos com as regras flexionais dos

verbos do português. Faz-se cabível discutir os procedimentos gramaticais e

computacionais empregados nessa tarefa, bem como alguns resultados práticos.

O analisador morfológico de verbos mencionado é uma ferramenta

desenvolvida como parte de um projeto maior, chamado Análise morfológica

Automática do Português (SCLIAR-CABRAL, 2009). Seu principal objetivo é

depreender uma gramática automática do português brasileiro, mediante análise

de córpus. Desenvolve-se esse projeto em parceria com o projeto Childes

(MACWHINNEY, 2011). Etapas concluídas relativas à depreensão da morfologia dos

verbos foram documentadas, como regras do comportamento da vogal temática e

dos sufixos modo-temporais e número-pessoais dos verbos regulares (SCLIAR-

CABRAL e VASILÉVSKI, 2011a), a automatização da vogal temática e de seus

alomorfes (VASILÉVSKI, SCLIAR-CABRAL, ARAÚJO, 2012), a automatização dos

morfemas modo-temporais, os casos ambíguos dela decorrentes e sua

desambiguação (VASILÉVSKI e ARAÚJO, 2011). Também se expuseram resultados

pertinentes à aquisição da linguagem (COSTA e SCLIAR-CABRAL, 2011; VASILÉVSKI,

2011b) e ao uso do programa em pesquisa linguística (SCLIAR-CABRAL e VASILÉVSKI,

2011b; VASILÉVSKI 2011a e 2010). Ora se expõe um aspecto do projeto, cujo teor

extrapola a sistematização das regras e adentra o meio escolar, em forma de

sugestão, que, quiçá, auxilie o aprendizado dos alunos, no que se refere ao sistema

de verbos do português.

Antes de iniciar, cabe lembrar a nomenclatura utilizada no programa e,

consequentemente, aqui. Cada um dos tempos verbais do português, em seus

respectivos modos, recebeu um código único, que foi inserido no programa

(VASILÉVSKI, SCLIAR-CABRAL e ARAÚJO, 2012): PI – Presente do Indicativo, PII –

Pretérito Imperfeito do Indicativo, PPI – Pretérito Perfeito do Indicativo, PMI –

Pretérito Mais-que-perfeito do Indicativo, FPI – Futuro do Presente do Indicativo,

FPPI – Futuro do Pretérito do Indicativo, PS – Presente do Subjuntivo, PIS – Pretérito

Imperfeito do Subjuntivo, FS – Futuro do Subjuntivo, IMA – Imperativo Afirmativo,

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IMN – Imperativo Negativo, INF – Infinitivo, GER – Gerúndio, PAR – Particípio. Da

mesma forma, as três pessoas gramaticais do singular e do plural são assim

designadas: 1S, 2S, 3S, 1P, 2P e 3P.

Este artigo está organizado da seguinte maneira: resgata e discute parte do

funcionamento do sistema de verbos do português (regularidade, irregularidade,

harmonia vocálica e irregularidade aparente); relaciona-o ao desenvolvimento do

analisador morfológico; e expõe as considerações finais.

O sistema de verbos do português

Verbo é a criação linguística destinada a expressar a noção predicativa.

Denota ação ou estado e, em muitas línguas, possui sufixos próprios, com que se

distingue a pessoa do discurso e o respectivo número (singular ou plural), o tempo

(atual, vindouro, pretérito) e o modo da ação (real, possível etc.) (SAID ALI, 1964).

Chamam-se formas finitas do verbo todas aquelas que vêm sempre referidas a

uma das três pessoas do discurso e têm a respectiva desinência, ou seja, são as

formas conjugadas. A par delas, gera-se em todos os verbos um pequeno grupo de

formas com aparência e função de substantivo (infinitivo), adjetivo (particípio) e

advérbio (gerúndio). São essas as formas infinitas do verbo, assim chamadas por

constituírem vocábulos sem referência especial a quaisquer pessoas do discurso.

De muitas maneiras se pode imaginar uma ação ou estado, mas as formas

verbais simples de que a língua portuguesa dispõe não permitem considerar mais de

três modos verbais: indicativo para ações reais; subjuntivo para fatos duvidosos,

prováveis, potenciais ou optativos; e o imperativo, por meio do qual se expressa

ordem, pedido, convite, súplica etc. (SAID ALI, 1964), sem se considerar o aspecto.

Certamente, o uso da língua encarrega-se de privilegiar certos tempos e modos,

bem como de empregá-los em condições divergentes das canônicas e ampliar as

possibilidades.

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A exposição sistemática de todas as formas de um verbo, finitas e infinitas

(nominais), constitui a conjugação desse verbo (SAID ALI, 1964). A conjugação dos

verbos portugueses segue o padrão regular ou padrões especiais.

O paradigma regular ou o padrão geral

O sistema de verbos do português compreende três conjugações, que são

assinaladas pela vogal temática (VT). Há três vogais temáticas, conforme a notação

escrita usual: “a” para a primeira conjugação (1.ªC), “e” para a segunda

conjugação (2.ªC) e “i” para a terceira conjugação (3.ªC). Compõem esse sistema

verbos ditos regulares – que seguem o paradigma fixo da conjugação a que

pertencem e são maioria em português – e os ditos irregulares – que se desviam do

paradigma regular. O tema (RAD+VT) do infinitivo é a forma básica do verbo

regular. Assim, dado um verbo regular em sua forma infinitiva, é possível conjugá-

lo com facilidade, nas seis pessoas gramaticais, sobretudo nos tempos do modo

indicativo. Em contrapartida, tomar uma forma verbal conjugada e dela extrair os

morfemas que a compõem, a fim de desvendar tempo, modo, pessoa e número em

que está flexionada, não é tão fácil (VASILÉVSKI e ARAÚJO, 2011).

Em português, há três modos verbais finitos, com seus tempos simples

(indicativo (seis tempos), subjuntivo (três tempos) e imperativo (afirmativo e

negativo)), além do infinitivo pessoal e das formas nominais (infinitivo, gerúndio e

particípio). Cabe destacar que o pretérito mais-que-perfeito é pouco usado no

Brasil. Na fala coloquial, ele restringe-se a frases feitas, e é raramente usado na

língua escrita. No entanto, ele é preservado, sobretudo, na literatura, em músicas,

textos jurídicos e aparece esporadicamente no falar jornalístico, por exemplo, em

editoriais. Assim, o PMI tem seu lugar em gêneros textuais específicos, mas pode

figurar em outros, conforme juízo do usuário da língua. Quanto às formas nominais,

o infinitivo é a forma mais genérica do verbo, que de maneira mais ampla e vaga

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resume sua significação, sem noções de tempo, modo e aspecto. Por isso, ele é

usado para designar o nome do verbo.

As segundas pessoas gramaticais canônicas “tu” e “vós” – e formas delas

derivadas (“teu”, “vossa”) – também passam a ocorrer em gêneros textuais

específicos orais e escritos (como religioso, literário, musical). Isso é

especialmente verdade em relação a “vós”, pois “tu” é usada na fala coloquial –

portanto, em gêneros textuais primários (BAKHTIN, 2006) – em algumas regiões do

Brasil, como em Florianópolis, Santa Catarina, inclusive com as flexões tradicionais

(“tu sabes”, “tu foste”, “se tu fizeres”). Então, não cabe aos professores, muito

menos aos pesquisadores, excluí-las do paradigma verbal, sob risco do usuário da

língua deparar-se com elas ao trocar o canal da televisão, ler uma carta comercial,

ouvir música, pesquisar na rede mundial, conversar com alguém de outra região. As

novas tecnologias impedem que formas clássicas sejam ignoradas pela escola.

A conjugação dos verbos portugueses organiza-se em formas primitivas e

derivadas, em que as segundas, em seu paradigma, seguem as primeiras. Os temas

das formas primitivas do português (1S-PI, PPI e INF) e derivadas (todos os demais

tempos e pessoas) constituem os sistemas de conjugação. Assim, em português, há

o Sistema do Presente, o Sistema do Perfeito e o Sistema do Infinitivo, com suas

regras específicas, que regem os outros tempos verbais.

De acordo com o sistema do presente, de 1S-PI derivam todo o PS, por

consequência, todo o IMN e o IMA, menos 2S e 2P (ver Quadro 1, p.14). Por

exemplo, o verbo “trazer” é “trago” em 1S-PI, portanto, trag- será o radical do PS

(“traga”, “tragas”...), do IMN (não “traga”... não “tragamos”...) e de 3S com valor

de 2S (você), 1P e 3P do IMA (“traga” você, “tragamos” nós, “tragam” vocês). As

demais pessoas, tanto do PI (2S, 3S, 1P, 2P e 3P) como do IMA (2S e 2P clássicas),

derivam do radical do infinitivo (“trazemos”, “traz” etc.). Assim, substituindo-se a

terminação -o de 1S-PI por -e, nos verbos da 1.ªC, e por -a, nos verbos da 2.ªC e

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3.ªC, obtêm-se as pessoas do PS: “amo” (1S-PI), “ame”... (PS); “faço” (1S-PI),

“faça”... (PS); “sumo” (1S-PI), “suma”... (PS).

Segundo o sistema do perfeito, o tema do PPI dá origem ao PMI

(acrescentando-se o morfema -ra) e ao PIS (acrescentando-se o morfema -sse) e FS

(acrescentando-se o morfema -r). Nos paradigmas regulares, o tema do perfeito é

idêntico ao do infinitivo, e toda a derivação é regular (com alterações apenas em

1S e 3S-PPI de alguns verbos), mesmo nos verbos com mais formas irregulares

(SCLIAR-CABRAL, 2003).

Os demais tempos (PII, FPI, FPPI) e pessoas excluídas do sistema do presente e

do perfeito, como dito, derivam do radical do infinitivo do verbo: esse é o sistema

do infinitivo. A esses radicais, então, acrescem-se a vogal temática do verbo (com

suas alomorfias) e as desinências modo-temporais e número-pessoais (ambas com

suas alomorfias) e se obtêm os paradigmas correspondentes da conjugação verbal

do português. O PII é formado mediante acréscimo da desinência –va ao tema dos

verbos da 1.ªC e de -ia ao radical dos verbos da 2.ªC e 3.ªC: “dar”, “dava”;

“caber”, “cabia”; “ir”, “ia”, mas há de se considerar os alomorfes, como se verá.

As línguas românicas ficaram privadas das formas de futuro do indicativo que

tinha o sistema latino. Essa falta supriu-se com a união do presente do verbo

“haver” ao infinitivo, para o futuro do presente: hei + vencer = vencerei, bem

como, analogamente, criou-se o futuro do pretérito com a junção de “havia”

(contraído em hia) do PII ao infinitivo: havia (hia) + vencer = venceria, para todos

os verbos (SAID ALI, 1964).

Aprofundam-se agora questões estruturais. O verbo é, em português, o

vocábulo flexional por excelência, dada a complexidade e a multiplicidade de suas

flexões. As noções gramaticais de tempo e modo e de pessoa e número que a forma

verbal indica correspondem a duas desinências (sufixos flexionais) chamadas de

sufixo modo-temporal (SMT) e sufixo número-pessoal (SNP), que se aglutinam e se

ligam ao tema. O tema constitui-se do radical seguido da vogal temática da

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conjugação correspondente. No padrão geral, o radical é invariável e dá a

significação lexical do verbo. Assim, a fórmula da estrutura do vocábulo verbal

português – na qual RAD indica radical do verbo; VT, vogal temática; e SF, sufixos

flexionais – é (CÂMARA JR., 1986):

TEMA (RAD+VT) + SF (SMT + SNP)

Levando-se em conta a alomorfia de cada um dos sufixos flexionais e a

possibilidade de ser zero (Ø) para um deles ou ambos, essa fórmula dá a regra geral

da constituição morfológica do verbo em português, além de indicar a ordem

obrigatória dos morfemas. A aglutinação em um único morfema das noções de

tempo e modo determina 13 morfemas modo-temporais, nos quais só

esporadicamente ocorre alomorfia, isto é, a variação de um morfema condicionada

pelo contexto onde ele ocorre. A complexidade para a interpretação do morfema

flexional propriamente verbal, em português, ou seja, o modo-temporal, decorre,

em primeiro lugar, justamente da cumulação dessas duas noções, além da noção

suplementar de aspecto, que às vezes se inclui na noção de tempo (CÂMARA JR.,

1986). De maneira muito resumida, pois o assunto é complexo, o tempo verbal

refere-se ao momento de ocorrência do processo, visto do momento da

comunicação; já o modo refere-se a um julgamento implícito do falante a respeito

da natureza, subjetiva ou não, da comunicação que faz. No entanto, é comum em

português, assim como em outras línguas, o emprego modal dos tempos verbais,

que já foi chamado de metafórico. Não obstante, a apreciação do modo em

português tem de se firmar, inicialmente, nas formas modais propriamente ditas,

deixando à margem o emprego metafórico dos tempos (CÂMARA JR., 1986).

Ainda, há seis sufixos número-pessoais, como mencionado, para indicar os

falantes (1.ª pessoa do discurso), os ouvintes (2.ª pessoa do discurso) e as entidades

sobre quem se fala (3.ª pessoa do discurso) (CÂMARA JR., 1986). No português do

Brasil (PB), aliás, não só no do Brasil, a segunda pessoa do discurso vale-se da

terceira pessoa gramatical. As pessoas gramaticais são designadas por 1, 2 e 3 do

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singular (S) e do plural (P), assim, gramaticalmente, tem-se: 1S (eu), 2S (tu), 3S

(ele, ela, você), 1P (nós), 2P (vós) e 3P (eles, elas, vocês). Como visto, no PB,

usam-se conjugadas como 3S e 3P “você” e “vocês”, respectivamente, o que

aumenta o nível de ambiguidade do sistema de verbos, pois, apesar das flexões da

terceira pessoa, essas formas referem-se à segunda pessoa do discurso. Ainda, 1P

(nós) pode ser substituída por “a gente”, quando então assume as flexões de 3S ou,

muito mais raramente, 1P. Os últimos casos são tão potencialmente ambíguos, que

as pessoas gramaticais sempre estão expressas, o que facilita a desambiguação pelo

contexto, seja ele escrito ou oral.

Há também o papel dos sufixos número-pessoais na conjugação verbal. O

desaparecimento de certos sufixos pessoais determinou, em várias línguas

modernas, a necessidade de se antepor ao verbo o pronome pessoal da 1.ª e 2.ª

pessoas, bem como da 3.ª, quando não vem enunciado o sujeito. Em português, o

uso do pronome pessoal é obrigatório na 1.ª e 3.ª pessoas do singular de certas

formas verbais idênticas, quando o exigir a clareza do pensamento (SAID ALI,

1964), assim como nas segundas pessoas e primeira pessoa conjugadas como

terceiras (“você”, “vocês” e “a gente”) (VASILÉVSKI e ARAÚJO, 2011). Nos demais

casos, o pronome serve apenas para reforço enfático (SAID ALI, 1964).

Estudo recente (SCLIAR-CABRAL, 2008) propõe o refinamento da fórmula

anterior para: TEMA (RAD+VT) + SF (SMTA + SNP + SPF), com a inclusão do acento

ou suprafixo (SPF) e da categoria de aspecto (A). Essa inclusão do acento de

intensidade com a função de assinalar diferenças aspectuais tem sido negligenciada

na literatura sobre aquisição da linguagem, o que causa problemas para a

codificação automatizada ainda não tratados, como a queda do morfema -r do

infinitivo na pronúncia. Estima-se abordar essa questão com apoio da fonologia, em

outra fase do projeto, tarefa para a qual se contará com apoio do conversor

automático grafema-fonema Nhenhém (VASILÉVSKI, 2008, 2012b e 2012c).

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Padrões especiais

Os verbos ditos irregulares, embora constituam uma pequena minoria em

relação a todos os verbos existentes na língua, ocorrem em frequência muito alta,

o que lhes dá importância significativa. Os cinco verbos mais utilizados no

português atual, segundo pesquisa baseada em córpus, são, na seguinte ordem:

“ir”, “ser”, “estar”, “ter” e “ver” (WILKENS e VILLAVICENCIO, 2012). Todos eles

têm formas irregulares em seus paradigmas.

Nesse momento, cabe questionar: Afinal, o que define se uma forma é regular

ou irregular? Ora, regras estabelecidas a partir do que é comum e do que é

incomum ou exceção dentro de um sistema. É válido lembrar que, por irregulares,

entendem-se os verbos cujos temas das formas primitivas são distintos entre si –

essa é a principal característica de sua irregularidade. Apesar de as gramáticas

dividirem os verbos em regulares e irregulares, todos os verbos ditos irregulares são

regulares em vários tempos e pessoas gramaticais. Assim, não há verbo que seja

irregular em todos os tempos e pessoas. Nos tempos futuros (do presente e do

pretérito) do modo indicativo, há pouquíssima irregularidade. Nesses tempos,

verbos como “ser”, “estar”, “vir” conjugam-se pelo paradigma regular. A exceção

fica por conta dos verbos “fazer”, “dizer” e “trazer”, cujas formas, nesses tempos,

para serem regulares, deveriam ser, por exemplo, em 3S: “fazerá”, “dizerá”,

“trazerá” e “fazeria”, “dizeria” e “trazeria”, as quais não são consideradas

padrão, no português atual.

Desse modo, é necessário o refinamento de regularidade. No caso dos

infinitivos, a regra é que os verbos do português, nessa forma, terminam com a

respectiva vogal temática – que pode ser “a”, “e” ou “i” – à qual se segue o

morfema de infinitivo verbal, que é sempre “r”. Assim, “pôr” - que já foi “poer” e

vem do latim ponere - é o único verbo cuja forma infinitiva é irregular. Nem os

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verbos com formas irregulares mais complexas para a automatização, que a

pesquisa mostrou serem “ir” e “ser”, são irregulares no infinitivo.

A dificuldade de automatização das conjugações dos verbos com formas

irregulares vai de um nível simples (“trazer”, “dizer” e “fazer” nos futuros do

presente e do pretérito), passando por um nível intermediário e chegando ao

máximo (verbos “vir”, “ir” e “ser”, como dito, em vários tempos e pessoas).

O verbo “ser” ilustra a irregularidade no sistema do presente. Em 1S-PI, ele é

“sou”, enquanto, no PS e no IMA, ele conjuga-se “seja”, portanto, trata-se de

forma irregular, pois o tema deveria ser o mesmo. Assim, além das formas

primitivas distintas, o verbo “ser” apresenta irregularidades nas derivações. Do

mesmo modo, “haver”, “estar”, “querer” e “saber” desviam-se desse sistema:

“hei” (1S-PI), “haja”... (PS), “estou” (1S-PI), “esteja”... (PS), “quero” (1S-PI),

“queira”... (PS), “sei” (1S-PI), “saiba”... (PS); e “ir” e “dar” o obscurecem, por

seu radical ser tão pequeno: “vá”... (PS), “dou” (1S-PI), “dê”... (PS).

Cabe exemplificar a irregularidade no sistema do perfeito. Em relação ao

verbo “estar”, há, respectivamente, do radical estive- (PPI de “estar”): “estivera”,

“estivesse” e “estiver”, bem como do tema coube- (PPI de “caber”) há: “coubera”,

“coubesse” e “couber”. O tema puro que dá lugar a essas derivações aparece

obscurecido na 1S e 3S, mas se revela nas demais formas pessoais: “houveste”,

“houvera”, “houvesse”, “houver”; “tiveste”, “tivera”, “tivesse”, “tiver”; “vieste”,

“viemos”, “viera”, “vier”; “vimos”, “vira”, “visse”, “vir”; “fizemos”, “fizera”,

“fizesse”, “fizer”; etc. (SAID ALI, 1964). Note-se que o PPI de “estar” é modelado

segundo o de certos verbos da 2.ªC (“estive”, “estiveste” – “tive”, “tiveste”), bem

como “dar”, cuja 1S é “dei”, mas as demais pessoas se formam pelo paradigma

regular da 2.ªC (“deste”, “deu” – “temeste”, “temeu”). Nos verbos da 3.ªC, a

primeira vogal dessas terminações torna-se “i”, obedecendo à vogal temática dessa

conjugação: “senti”, “sentiste”... “sentiram”. Excetua-se o verbo “vir”, com

algumas terminações do tipo geral da 2.ªC (“vieste”). O tipo geral de formação do

PPI da 2.ªC é: “bati”, “bateste”, “bateu”... “bateram”. O verbo “vir” faz “vim”

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para 1S-PPI, retendo nasalização antiga. Em português antigo, havia: vẽeste, vẽo,

vẽeron. O verbo teer produziu “teve”, por desnasalização de tẽui. O verbo “estar”

deu “esteve” de ste(t)ui por steti. Para 1S, em português antigo, havia “tive”,

“estive”, e as demais formas eram teveste, teve, tevemos, esteveste, estevemos,

as quais hoje se grafam com “i” (SAID ALI, 1964).

O complexo verbo “ser” faz o PII em “era”, filiado ao radical es- do verbo

latino esse. Do modelo em -ia também se afastam, aparentemente, as formas do

português atual “tinha”, “punha” e “vinha”. Tais formas do PII conservam a nasal

dos radicais latinos ten-, pon- e ven- (tenere, ponere e venere), para as quais se

transplantou o acento tônico próprio da terminação, e se originaram as formas

atuais a partir de tĩia, puía e vĩia (SAID ALI, 1964).

A forma do PPI “fui” de 1S, que tanto serve para o verbo “ser” como para “ir”,

é única, pois as demais pessoas conjugam-se “foste”, “foi”, “fomos”, “fostes”,

“foram”. Há registros em português antigo de foi para 1S e fuste para 2S. O verbo

“ver” constrói o PPI como se fosse da 3.ªC: “vi”, “viste”, “viu”... “viram”. A

formação latina em ui é responsável não somente pela existência do PPI

excepcional desses verbos, mas também pela produção de “houve”, “coube”,

“soube”, “trouxe”, “prouve”. O ditongo “ou” resulta de au, por metátese. Por

exemplo, sapui → sabui → saubi → “soube”; capui → “coube”; “trouxe” proviria

de traucsi por tracsi (SAID ALI, 1964).

O pretérito latino potui deu “pude” para 1S e poud(este) ou pod(este) para as

demais, e hoje se escreve “pud(este)”. As formas verbais posui e posuit deram

puse e pose para 1S, contudo, já no português antigo, manifestou-se a tendência

de reduzir essas formas a “pus”, “pôs”. Desde os quinhentistas, essa vogal terminal

está abolida, da mesma maneira que triunfou a tendência simplificadora de fize

para “fiz”, feze para “fez”, quise para “quis” (SAID ALI, 1964).

Do grupo dos verbos ditos irregulares fazem parte os verbos auxiliares, que

figuram nas conjugações compostas – que são objeto específico de outro trabalho.

Em uma cadeia podem entrar vários verbos auxiliares, sendo o último verbo o verbo

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principal, aquele que carrega a significação externa, sempre em uma forma

nominal. Como verbo, o particípio entra na formação dos tempos compostos com os

auxiliares “ter” e “haver” (quando permanece invariável em gênero e número) e

com o auxiliar “ser”, na construção da voz passiva analítica, além de núcleo do

predicado de orações reduzidas. Já o gerúndio é morfologicamente verbal, assim,

não admite flexão de gênero e número (CÂMARA JR., 1986), e entra na formação

das formas progressivas e também como núcleo do predicado de orações reduzidas.

É o verbo principal quem dita a regência, por isso, o primeiro auxiliar da cadeia se

flexionará em pessoa, número, tempo e modo, conforme tal verbo principal

determinar. Por exemplo: “ia comer”, “pode estar havendo denúncias”, “devem-se

temer retaliações” e “havia feito”.

A irregularidade verbal é determinada pelo uso através do tempo, ou seja, nas

preferências que triunfaram, na grande maioria das vezes, havendo pouquíssima

interferência normativa. No entanto, repete-se, tal irregularidade não afeta todo o

paradigma conjugacional do verbo.

Harmonia vocálica e Mudanças aparentes no radical

Alguns verbos portugueses estão sujeitos ao fenômeno chamado harmonia

vocálica, que se refere à influência que o som de uma vogal, numa palavra, exerce

sobre outros sons, vizinhos ou próximos, e que os torna mais semelhantes e

simétricos (apud VASILÉVSKI, 2008). No sistema de verbos do português, tal

influência ocorre com a vogal temática subjacente de 1S-PI na vogal anterior, ou

seja, a última vogal do radical, se, no infinitivo, tal vogal da raiz for /e/ ou /o/.

Por exemplo, o verbo “levar” pertence à primeira conjugação, então, sua

vogal temática é “a”, baixa, e a última vogal do radical é /e/, média. Em 1S-PI, a

vogal do radical copia o traço baixo da vogal temática: “levar”, “levo” →

/le.ˈvaR/, /ˈlɛ.vu/; “gostar”, “gosto” → /goS.ˈtaR/, /ˈgɔS.tu/. O verbo “sofrer”

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pertence à segunda conjugação, então, sua vogal temática é /e/, isto é, média, e

a última vogal do radical é /o/, também média. Assim, em 1S-PI, a vogal do radical

permanece a mesma, pois não há necessidade de simetrização. O verbo “cobrir”

pertence à terceira conjugação, de modo que sua vogal temática é /i/, alta, e a

última vogal do radical é /o/, ou seja, média. Em 1S-PI, a vogal do radical copia o

traço alto e se transforma em /u/: /ew 'ku.bru/ (eu cubro). Desse modo, todas as

formas derivadas de 1S-PI (PS, IMN e IMA - exceto as segundas pessoas canônicas)

preservam o traço copiado. Tendo em vista que o português escrito não marca a

diferença entre vogais médias, ou seja, /e/ e /o/, e sua contraparte baixa, isto é,

/ɛ/ e /ɔ/, no sistema verbal, sua leitura torna-se ambígua. O Quadro 1 a seguir

ilustra a harmonia vocálica, em negrito, no paradigma do verbo “dormir”, no qual

se podem perceber os tempos primitivos, que dão origem aos tempos derivados.

Há ainda, em português, radicais regulares que sofrem transformações ditadas

pelos valores grafêmicos, ou seja, para adaptar-se ao padrão ortográfico vigente. É

o caso do fonema /g/, quando vem antes de /e/ e /i/, que é escrito “gu”, para

preservar o valor de /g/, como “ligar” → “liguei”, “ligue” - /li.'gaR/ → /li.'gej/,

/'li.gi/. Também isso ocorre com o fonema /k/, antes de /e/ e /i/, que é escrito

“qu”, para preservar o valor de /k/, como “ficar” → “fiquei”, “fique” - /fi.'kaR/

→ /fi.'kej/, /'fi.ki/; e /s/, antes de /a/, /o/ e /u/, que é escrito “ç”, para

preservar o valor de /s/, como “esquecer” → “esqueço”, “esqueça” - /eS.ke.'seR/

→ /eS.'ke.su/, /eS.'ke.sa/. Nesses casos, não há alteração fonológica no radical,

apenas ortográfica.

A partir dessa exposição, sustenta-se que não é adequado considerar

irregulares as formas verbais sujeitas à harmonia vocálica, pois não há realmente

alteração no radical, apenas simetrização. Da mesma maneira, alterações

aparentes no radical, feitas para adequar as formas verbais às convenções

ortográficas, também não configuram irregularidade. Com o emparelhamento entre

morfologia e fonologia, auxiliado pela união entre o analisador morfológico e o

conversor fonológico Nhenhém, esclareceram-se e resolveram-se tais questões.

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Quadro 1: Paradigma conjugacional do verbo “dormir”

INDICATIVO

Presente Pretérito perfeito Pretérito imperfeito

eu durmo dormi dormia

tu dormes dormiste dormias

ele* dorme dormiu dormia

nós dormimos dormimos dormíamos

vós dormis dormistes dormíeis

eles dormem dormiram dormiam

Pret. mais-que-perfeito Futuro do presente Futuro do pretérito

eu dormira dormirei dormiria

tu dormiras dormirás dormirias

ele dormira dormirá dormiria

nós dormíramos dormiremos dormiríamos

vós dormíreis dormiríeis dormiríeis

eles dormiram dormiriam dormiriam

SUBJUNTIVO

Presente Pretérito imperfeito Futuro

que eu durma se eu dormisse quando eu dormir

que tu durmas se tu dormisses quando tu dormires

que ele durma se ele dormisse quando ele dormir

que nós durmamos se nós dormíssemos quando nós dormirmos

que vós durmais se vós dormísseis quando vós dormirdes

que eles durmam se eles dormissem quando eles dormirem

IMPERATIVO INFINITIVO PESSOAL

Afirmativo Negativo

- - para eu dormir

dorme tu não durmas tu para tu dormires

durma você não durma você para ele dormir

durmamos nós não durmamos nós para nós dormirmos

dormi vós não durmais vós para vós dormirdes

durmam vocês não durmam vocês para eles dormirem

INFINITIVO: dormir GERÚNDIO: dormindo PARTICÍPIO: dormido * Nessa posição, entram “você” e “a gente”, pronomes atualmente utilizados para designar 2S e 1P, porém, conjugados como 3S. Da mesma forma, “vocês” encaixa-se em “eles”. Sempre que se indicar “ele” e “eles”, subentenda-se também “ela” e “elas”.

Fonte: Montagem primária, baseada em Aurélio Século XXI (1999).

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Então, o analisador

Levaram-se em conta todas essas considerações e transformaram-se essas

regras – e outras não detalhadas aqui – em algoritmos. Para tanto, fizeram-se

ajustes e complementações que o ambiente computacional exige. Depois, estudou-

se o comportamento do aplicativo, a fim de se observarem ambiguidades geradas e

resolvê-las, bem como para criar um léxico verbal automático para o córpus de

trabalho. A criação do léxico (VASILÉVSKI, SCLIAR-CABRAL e ARAÚJO, 2012)

resolveu as ambiguidades geradas pela alomorfia da vogal temática, nas três

conjugações, e pela harmonia vocálica que ocorre no radical de verbos da 3.ªC, /o/

→ /u/, uma vez que a harmonia vocálica que ocorre no radical de verbos da 1.ªC e

2.ªC não é registrada no sistema escrito, assim, não é relevante para o programa.

Ainda, esse léxico, associado a instruções computacionais, resgata radicais

regulares que sofrem transformações requeridas pelo sistema ortográfico oficial. A

organização interna do analisador já foi exposta (VASILÉVSKI, 2012a).

O sistema de conjugação de verbos do português é considerado, de certa

forma, simples e previsível, mesmo sua parte irregular (CÂMARA Jr., 1986), o que

respalda a criação de uma ferramenta computacional baseada em suas regras. O

analisador morfológico reproduz o sistema verbal escrito, então, leva em conta

apenas os alomorfes desse sistema e não foca, por enquanto, a questão do

acréscimo do suprafixo à formula de Câmara Jr.

Com base nos dados advindos do levantamento teórico prévio à criação do

analisador, exposto nas seções anteriores, bem como dado o comportamento das

regras gramaticais no ambiente computacional, o programa considera que o que há

são formas irregulares (que se desviam do paradigma regular) e formas regulares.

Essa decisão tornou o trabalho mais coerente, facilitou e agilizou a descodificação

automática, bem como fez jus à realidade do sistema de verbos do português. Além

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disso, o programa considera todas as possibilidades de pessoas gramaticais,

inclusive as clássicas, pelos motivos expostos.

Os verbos com padrões especiais foram os mais difíceis de sistematizar, pois

suas regras perderam-se através do tempo, de modo que foram desenvolvidos

algoritmos especiais para dar conta dos desvios em relação ao paradigma regular, e

isso vale para os particípios irregulares – como “escrito”, “visto”. Muitas outras

questões mereceram tratamento diferenciado, mas não são abordadas aqui, por

falta de espaço e por não se referirem diretamente ao tema em questão.

A Figura 1 mostra a tela funcional do analisador, com a análise morfológica

automática da forma “dormiu”, da linha 293 do córpus de trabalho. O analisador

decompõe o verbo em morfemas, depreende seu infinitivo, informa a conjugação à

qual ele pertence, o tempo verbal e a pessoa gramatical em que está conjugado.

Figura 1: Tela principal do analisador morfológico com análise da forma verbal finita “dormiu”

Fonte: Programa Laça-palavras (VASILÉVSKI e ARAÚJO, 2012).

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Considerações finais e trabalho futuro

Por fazer parte de um projeto maior, este artigo pode parecer superficial

algumas vezes, por isso, sugere-se consultar os trabalhos publicados aqui citados,

que detalham as etapas de construção do analisador morfológico, bem como

aprofundam a teoria que o fundamenta. O analisador morfológico baseia-se

totalmente em regras, e não em aprendizado de máquina, desse modo, insere-se

no âmbito da inteligência artificial. Uma ferramenta como essa pode ser usada em

pesquisas linguísticas, na recuperação de dados, em resumos automáticos, bem

como em tradutores automáticos, além de apoiar outras áreas, como o ensino

escolar.

A construção do analisador morfológico mostrou que pode haver equívoco no

ensino do sistema verbal do português na escola, uma vez que verbos são tratados

como regulares e irregulares, sem se considerar que os últimos, na verdade,

possuem formas conjugadas (uns mais outros menos) que se desviam do paradigma

regular. No mínimo, pode-se dizer que não se ensina a realidade da língua, no que

concerne a esse tema. Assim como o tratamento adequado dos verbos valorizou o

paradigma verbal como predominantemente regular que é, e isso simplificou e

agilizou a automatização das regras gramaticais do sistema de verbos, é plausível

defender que essa nova visão, por assim dizer, que emergiu durante a

automatização do sistema de verbos, é válida no ensino, mesmo porque a escola

adota uma maneira pouco prática de ensinar verbos, e o resultado disso não é

animador para o professor, nem para o aluno.

Certamente, o que se expôs aqui é uma sugestão que merece ser verificada.

Em trabalho futuro, é intenção desenvolver metodologia para o ensino do sistema

de verbos, com base nos achados desta pesquisa e a partir de dados extraídos de

situações reais de comunicação (córpus). Neste trabalho, o objetivo era divulgar

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esses achados e abrir caminho para a reflexão por parte dos leitores, bem como

preparar possíveis desdobramentos. Considera-se que esse primeiro passo foi dado.

Referências Bibliográficas

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1 Vera VASILÉVSKI, Dra.

Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Pós-graduação em Linguística, PNPD-CAPES [email protected]. Este trabalho é desenvolvido com o apoio da CAPES.