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Dicionário do Sistema Socioeducativo do Estado do Rio de Janeiro Organizadoras: Janaina de Fátima Silva Abdalla Bianca Ribeiro Veloso Paula Werneck Vargens

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Dicionário doSistema Socioeducativodo Estado do Rio de Janeiro

Organizadoras:Janaina de Fátima Silva Abdalla

Bianca Ribeiro VelosoPaula Werneck Vargens

Janaina de Fátima Silva AbdallaBianca Ribeiro Veloso

Paula Vargens(organizadoras)

DICIONÁRIO DO SISTEMA SOCIOEDUCATIVO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

DEGASE2016

Conselho Editorial: Janaina de Fátima Silva Abdalla Alexandre de Moraes Lessa Christiane Mota ZeitouneComissão Científica: Janaína de Fátima Silva Abdalla Bianca Ribeiro Veloso Paula Werneck Vargens

Direitos desta edição adquiridos pelo DEGASE. Nenhuma parte desta obra pode ser apropriada e estocada em sistema de banco de dados ou processo similar, em qualquer forma ou meio, seja eletrônico, de fotocópia, gravação, etc., sem a permissão da edi-tora e/ou autor.

Arte da Capa: Jovens do Centro de Atendimento Integrado, 2012.Diagramação: Sérgio LyraRevisão: Julia Nunes (coordenação de revisão) Equipe de Revisão: Érika Cristine Ilogti de Sá Fernando Pimentel Henriques Núbia Graciella Mendes Mothé

D545 Dicionário do Sistema Socioeducativo do Estado do Rio de Janeiro.[recurso eletrônico] / Janaina de Fátima Silva Abdalla, Bianca Ribeiro Veloso, Paula Werneck Vargens (orgs.). Rio de Janeiro: Novo DEGASE, 2016.

373p.

Inclui Bibliografia ISBN: 978-85-64174-23-8

1. Rio de Janeiro (Estado). 2. Departamento Geral de Ações Socioeducativas 3. Socioeducação I. Abdalla, Janaina de Fatima Silva II. Veloso, Bianca Ribeiro III. Vargens, Paula Werneck IV. Título

CDD 365.4203

Janaina de Fátima Silva AbdallaBianca Ribeiro Veloso

Paula Vargens(organizadoras)

Escola de Gestão Socioeducativa – ESGSEDiretora:

Janaina de Fátima Silva Abdalla

Equipe Técnica:Ida Cristina Rebello Motta

Maria Beatriz Barra de Avellar PereiraMarizélia Barbosa

Tania Mara Trindade GonçalvesBianca Ribeiro VelosoLívia de Souza Vidal

Paula Werneck Vargens

Apoio Técnico Administrativo:Amanda Taufie Mendonça

Arnaldo Dutton Albuquerque da SilvaLuciana Cássia Costa da Silva SantosMiguel Eduardo de Azevedo Martins

Mirian Maria da Fonseca

DICIONÁRIO DO SISTEMA SOCIOEDUCATIVO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

Luiz Fernando PezãoGovernador do Estado do Rio de Janeiro

Secretário de Estado de Educação

Diretor-Geral Departamento de Ações

Socioeducativas DEGASE

Diretora da Escola de Gestão Socioeducativa Professor Paulo Freire

Wagner Victer

Alexandre Azevedo de Jesus

Janaina de Fátima Silva Abdalla

SUMÁRIO

Apresentação .................................................................................................. 11

AAbuso sexual .................................................................................................... 16Acolhimento às famílias ............................................................................... 22Acolhimento institucional ........................................................................... 26Adolescente autor de ato infracional ...................................................... 30Agente socioeducativo .................................................................................. 34Apreensão do adolescente autor de ato infracional .............................. 39Assistência religiosa ...................................................................................... 45Ato infracional .............................................................................................. 52

CCense gelso de carvalho amaral (gca) ........................................................ 56Centro de referência de assistência social (cras) .................................... 59Centro de referência especializado da assistência social (creas) ......... 64(CRIAAD) (v. Restrição de Liberdade) ..........................................................314Centro de Socioeducação (CENSE) (v. Privação de liberdade) ................ 301Centro de Triagem e Recepção (CTR) (v. Cense GCA) .................................. 56

Conflito ........................................................................................................... 73Coordenadoria de segurança e inteligência do degase (csint) .............. 76Criaad niterói ................................................................................................. 79Criaad são gonçalo ....................................................................................... 84Criaad ricardo de albuquerque ................................................................... 90Criminalização da pobreza ......................................................................... 103Cultura ...........................................................................................................111

DDefensoria pública ........................................................................................117Delegacia de proteção à criança e ao adolescente1 (dpca) ................... 125Departamento geral de ações socioeducativas (degase) ......................... 130Disciplina .......................................................................................................142Diversidade / liberdade religiosa ...............................................................145

EEducação básica na socioeducação.............................................................148Educação popular ......................................................................................... 153Educação profissional na socioeducação ..................................................159Educandario santo expedito ....................................................................... 164Egresso do sistema socioeducativo / amseg ...............................................169Estatuto da criança e do adolescente (eca) ............................................ 171

FFinanciamento da política de atendimento socioeducativo ................. 179

Fluxo de atendimento ................................................................................. 183Formação dos socioeducadores .................................................................. 188

GGênero .............................................................................................................195Guia de execução .......................................................................................... 202

HHumanização ................................................................................................. 208

IIndividualização do atendimento .............................................................211Interdisciplinaridade ...................................................................................214Invisibilidade social ......................................................................................218

JJuventudes ...................................................................................................... 221

MMaioridade penal ......................................................................................... 227Masculinidades ............................................................................................. 236Mecanismo estadual de prevenção e combate à tortura .......................241Mediação ........................................................................................................ 247Medidas socioeducativas ............................................................................. 249Menor ............................................................................................................. 256

NNormativa internacional de proteção dos direitos humanos de

crianças e adolescentes .............................................................................. 263

PParticipação social ....................................................................................... 270Pátio ................................................................................................................ 272Plano individual de atendimento ..............................................................274Plano municipal de atendimento socioeducativo ................................... 279Plano nacional de promoção, proteção e defesa do direito de crianças

e adolescentes à convivência familiar e comunitária (pncfc) ............. 284Plantão interinstitucional (pi) .................................................................. 290Políticas sobre drogas ................................................................................. 293Privação de liberdade .................................................................................. 301

RRaça ................................................................................................................ 309Restrição de liberdade ..................................................................................314

SSaúde mental ..................................................................................................318Sexualidade .................................................................................................... 323Sistema de garantia de direitos ................................................................. 330Sistema único de assistência social (suas) ................................................ 334Sistema único de saúde (sus) ......................................................................... 340Situação de rua ............................................................................................. 342

Socioeducação e educação social .............................................................. 348

TTrabalho infantil ......................................................................................... 352

UUnidade de reinserção social ..................................................................... 359

VViolência ........................................................................................................ 364Violência sexual ........................................................................................... 367

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APRESENTAÇÃO

APRESENTAÇÃO

Janaina da Silva AbdallaBianca Veloso

Paula WerneckVargens

Dentre as ações da Escola de Gestão Socioeducativa (ESGSE) do Departamento Geral de Ações Socioeducativas do Estado do Rio de Janeiro (Novo DEGASE), de formação dos Socioeducadores e de aná-lise e acompanhamento das pesquisas realizadas no departamento, está a de proporcionar nos seus ambientes formativos a construção e disseminação dos conhecimentos afins a Socioeducação.

Neste sentido, a ESGSE vem organizando publicações de cole-tâneas de artigos produzidos por docentes e discentes de cur-sos oferecidos e parceiros externos ligados às Universidades e Instituições articuladas a proteção e promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente.

Contudo, apesar da ampla experiência de anos na organização e coordenação de publicações é pela primeira vez que a ESGSE se propõe a organizar um livro na metodologia de Dicionário. Este fato apresentou-se como um grande desafio, pois este trabalho requer selecionar as terminologias vinculadas a temática da Socioeducação e ao mesmo tempo selecionar a pessoa que melhor assumiria a auto-

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ria da então terminologia, de acordo com a sua experiência e a sua afinidade com a temática.

O enfrentamento com as questões do cotidiano do sistema socio-educativo expõe a necessidade de uma constante reflexão e busca de sentidos para esta prática. A complexidade da realidade nos coloca diante da necessidade de consolidar conceitos e ampliar as discus-sões de temáticas afetas à socioeducação.

A socioeducação vem consolidar uma opção pela Doutrina da Proteção Integral, em oposição à lógica menorista que até então perdurava. Neste sentido, na prática do atendimento ainda pode-mos encontrar rupturas e permanência do sistema antigo, uma vez que não é processo fácil desconstruir lógicas estruturantes do nosso ser e estar no mundo.

A construção da socioeducação se dá de diferentes modos em cada Estado, considerando as peculiaridades e as especificidades locais. No caso do Rio de Janeiro, o Departamento Geral de Ações Socioeducativas (Degase) conta com instituições históricas, como a Escola João Luiz Alves, o antigo Instituto Padre Severino (atual Cense Dom Bosco) e a Escola Santos Dumont (atual Cense Pacgc), ao lado de instituições novas, já construídas sob as determinações do SINASE (como as unidades localizadas em Campos e em Volta Redonda). Em meio a esta diversidade, os saberes se somam desde de diferentes pontos de vistas.

Diante de tais complexidades, surge a demanda pela elaboração deste dicionário, cujo objetivo é trazer algumas reflexões sobre a temática, abrindo o debate para diferentes sujeitos e questões afetas à prática socioeducativa no Estado do Rio de Janeiro e suas articula-ções com o sistema nacional. Este é um material que reúne, portanto, textos escritos tanto por pessoas relacionadas ao campo acadêmico,

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APRESENTAÇÃO

quanto por aqueles que estão na prática do atendimento, o que pro-porciona diferentes tipos de escritas e visões.

Nesta trama, buscamos preservar a escrita de cada autor, respei-tando sua fala e seu olhar. Os textos abordam, assim, terminologias próprias da estrutura do trabalho, conforme apresentado no verbete sobre o “Pátio” das unidades, passando pelas ações e práticas do fazer cotidiano, como no verbete sobre “assistência religiosa”, assim como as abordagens conceituais afins aos saberes técnicos, como apresentado no texto sobre “mediação”, e teóricos, como no texto sobre “criminalização da pobreza”, o qual propõe ao leitor uma reflexão crítica sobre o tema; além de expressões de domínio espe-cífico do conhecimento socioeducativo, conforme exposto a partir dos verbetes “agente socioeducativo” e “egressos do sistema”, por exemplo dentre tantos outros apresentados nesta produção.

A sistemática metodológica de seleção dos verbetes do dicioná-rio contempla os seguintes eixos:

1) Conceitos afetos à temática socioeducativa: Abuso Sexual; Adolescente autor de ato Infracional; Apreensão do adolescente autor de ato infracional; Ato Infracional; Conflito; Criminalização da Pobreza; Cultura; Disciplina; Educação Popular; Gênero; Humanização; Interdisciplinariedade; Invisibilidade Social; Juventudes; Diversidade / Liberdade religiosa; Maioridade Penal; Masculinidades; Mediação; Menor; Participação social; Raça; Saúde Mental; Sexualidade; situação de rua; trabalho infantil; Violência e Violência Sexual.

2) Instituições ligadas à Segurança e à Justiça: Defensoria Pública Estadual e Delegacia de Proteção da Criança e do Adolescente.

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3) Leis e normativas: Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA); Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura (MEPCT); Medida Socioeducativa (MSE); Normativas interna-cionais; Sistema de Garantia de Direitos.

4) Políticas e Programas de promoção dos direitos da criança e do adolescente: Acolhimento Institucional/ Central Carioca; Centro de Referência em Assistência Social (CRAS); Centro de Referência Especializada em Assistência Social (CREAS); Plano Municipal de Atendimento Socioeducativo; Plano Nacional de Convivência Familiar e Comunitária (PNCFC); Política de Drogas; Sistema Único de Assistência Social (SUAS); Sistema Único de Saúde (SUS); Unidade de Reinserção Social.

5) Verbetes de domínio específico do conhecimento socioe-ducativo: Acolhimento às Famílias; Agente Socioeducativo; Assistência religiosa; Educação Básica na Socioeducação; Educação Profissional; Financiamento da política de atendi-mento socioeducativo; Formação dos socioeducadores; Guia de execução; Individualização do Atendimento; Pátio.

6) Verbetes de domínio específico do Degase: CENSE Gelso Carvalho do Amaral (GCA); Educandário Santo Expedito (ESE); CRIAAD São Gonçalo; CRIAAD Niterói; CRIAAD Ricardo de Albuquerque; Coordenadoria de Segurança e Inteligência (CSINT); DEGASE; Egressos do Sistema Socioeducativo / AMSEG; Fluxo de Atendimento; Plantão Interinstitucional (PI); Privação de liberdade; Restrição de Liberdade; Plano Individual de Atendimento (PIA).

Apresentamos então esta costura a várias mãos, que carrega histórias, lutas e conquistas no que tange aos direitos de crianças e

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APRESENTAÇÃO

adolescentes, carregados das contradições e dificuldades de um sis-tema cheio de peculiaridades, que reflete as desigualdades sociais, opções políticas e dinâmicas culturais. Como uma rede que se forma, esta é uma primeira versão de um trabalho que se pretende em permanente construção.

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Este artigo tem como foco o abuso sexual sofrido por crianças e adolescentes, o qual pode ser definido como o contato corporal, gestual e/ou verbal realizado por adulto ou adolescente mais velho, visando a satisfação do desejo sexual do abusador (Batista, 2009, e Furniss, 1993). Este tipo de vio-lência abrange “prática de carícias, manipulação de genitália, mama, ou ânus, exploração sexual, voyeu-rismo, exibicionismo, pornografia, até o ato sexual, com ou sem pene-tração, sendo a violência sempre presumida em menores de 14 anos” (ABRAPIA, 2002).

Existe uma certa controvér-sia a respeito do aumento ou não da ocorrência do abuso sexual no mundo contemporâneo. Enquanto alguns argumentam em favor

do aumento, outros afirmam que não houve crescimento sig-nificativo, mas sim uma maior visibilidade dos casos devido à ação do poder público e da socie-dade, além de maior difusão do problema nos meios de comunica-ção (Batista, 2009).

É relativamente recente uma preocupação em debater coleti-vamente esta questão. Em 1996, foi organizado em Estocolmo o I Congresso Mundial contra a Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes, durante o qual uma série de diretrizes e propostas de ação foram elaboradas para com-bater esse tipo de violência.

O Estatuto da Criança e do Adolescente (Brasil, 1990), pro-mulgado em 1990 para garantir dos direitos das crianças e dos

AABUSO SEXUAL

Erimaldo Nicacio1

1 Psicólogo pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (1990), Mestre em Saúde Coletiva pelo IMS/UERJ - Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (2) e Doutor em Saúde Coletiva, também no IMS/UERJ (3). Professor Associado 4 da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde atua na graduação e no Programa de Pós-graduação em Serviço Social. Coordenador do projeto de pesquisa PSICANÁLISE E SOCIEDADE.

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ABUSO SEXUAL

Aadolescentes, interdita no seu artigo 5 qualquer forma de negli-gência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punindo estes atos ou mesmo a omissão de uma pessoa diante de tais atos. Mais adiante, no artigo 18 do Estatuto declara: “É dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo--os a salvo de qualquer tratamento desumano, viol ento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor”. Isso quer dizer que é dever de todos os cidadãos agir diante de qual-quer ameaça ou violação de que a criança ou o adolescente pos-sam ser objeto.

No ano de 2000, foi elabo-rado, na cidade de Natal, o Plano Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes, reunindo repre-sentantes de diferentes órgãos do poder público (Paixão e Deslandes, 2010). Este plano foi aprovado pelo CONANDA (Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente). Entre 2010 e 2013, ele passou por um processo de revisão no qual foram realizados seminários regionais e nacionais para avaliar as políticas de enfre-tamento da violência contra a criança e o adolescente e incorpo-rar as normativas e debates mais atuais sobre o problema.

Retomando as proposições do ECA, um ponto importante a

ser considerado é a obrigação de se comunicar ao Conselho Tutelar mais próximo os casos de suspeita ou confirmação de maus-tratos contra criança ou adolescente, conforme prega o artigo 13. Os comentadores do ECA, Digiácomo & Digiácomo (2013), afirmam:

A inércia, em tais casos, pode mesmo levar à responsabilização daquele que se omitiu (valendo neste sentido observar o dis-posto no art. 5º, in fine, do ECA), sendo exigível de toda pessoa que toma conhecimento de ameaça ou violação ao direito de uma ou mais crianças e/ou adolescentes, no mínimo, a comunicação do fato (ainda que se trate de mera suspeita), aos órgãos e autorida-des competentes (DIÁCOMO & DIÁCOMO, 2013, p.21).

Note-se que o Estatuto impõe como dever de todos a notifica-ção até mesmo de uma suspeita de abuso sexual (entre outras for-mas de violência). No entanto, duas características destas situa-ções trazem dificuldades para que qualquer pessoa venha a decidir notificar a ocorrência ou suspeita de abuso. A primeira é que o abuso sexual, em geral, envolve pessoas próximas da criança, com quem ela mantém um contato cotidiano e uma relação afetiva. Mais fre-quentemente, tal ato envolve pes-

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soas da família (pai, tio, padrasto) ou amigos e vizinhos.

Em segundo lugar, os atos de abuso sexual são de difícil identi-ficação, pois em geral não deixam marcas físicas, a não ser nos casos extremos de estupro, de intercurso sexual. É claro que a violação deixa marcas psíquicas e isso será reto-mado mais adiante. Em todo caso, decorre desta segunda caracterís-tica que a investigação do abuso dependerá, sobretudo, do relato e da interpretação das pessoas envolvidas. Isso quer dizer que a abordagem das situações de abuso sexual é um trabalho de escuta da palavra dos sujeitos envolvidos.

As dificuldades de notificação decorrem, em grande parte, do fato de que fazer uma denúncia contra uma pessoa que não come-teu o abuso pode gerar diferentes problemas e constrangimentos para a mesma, injustamente. Não raramente, como podem constatar os operadores do sistema judiciá-rio, muitas denúncias são falsas. Atualmente, vem crescendo esse tipo de denúncia no contexto do fenômeno da alienação parental.

A lei 12.318 (Brasil, 2010) traz a seguinte definição no artigo 2º:

Considera-se ato de alienação parental a interferência na for-mação psicológica da criança ou do adolescente promovida ou induzida por um dos genitores,

pelos avós ou pelos que tenham a criança ou adolescente sob a sua autoridade, guarda ou vigi-lância para que repudie genitor ou que cause prejuízo ao estabe-lecimento ou à manutenção de vínculos com este.

Entre as práticas defini-das como alienação parental incluem-se: desqualificar genitor ou dificultar contato de criança ou adolescente com o mesmo. O inciso VI da mesma lei mencio-nada anteriormente acrescenta: “apresentar falsa denúncia contra genitor, contra familiares deste ou contra avós, para obstar ou difi-cultar a convivência deles com a criança ou adolescente”.

Estas considerações mostram algumas dificuldades que os pro-fissionais da saúde, da justiça, da assistência social e do campo socioeducativo têm que enfren-tar ao lidar com uma situação de denúncia de abuso sexual. E as dificuldades existem mesmo nos casos em que é possível confirmar que o abuso realmente aconteceu. Isso por que cada caso deve ser tratado de forma única. Está claro que todo cidadão tem o dever de proteger a criança, e, em algumas situações, a mobilização de fami-liares em torno do acontecimento já propicia esta proteção. No en-tanto, há muitas em que familiares ou profissionais de saúde, de assis-tência social, de educação (ou de

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ABUSO SEXUAL

Aoutras áreas) precisam notificar o Conselho Tutelar local.

O manual do Ministério da Saúde (Brasil, 2002) esclarece que a notificação compulsória é um ato que tem a função de interromper as atitudes ou comportamentos violentos em relação à criança ou ao adolescente. Ela não vale como denúncia policial, mas como a comunicação do conheci-mento ou da suspeita do fato de que uma criança ou adolescente esteja sofrendo algum tipo de violência. E tendo recebido a noti-ficação, cabe ao conselho Tutelar os seguintes procedimentos:

Ao Conselho Tutelar cabe re-ceber a notificação, analisar a procedência de cada caso e cha-mar a família ou qualquer outro agressor para esclarecer, ou ir in loco verificar o ocorrido com a vítima. Os pais ou responsáveis (familiares ou institucionais), a não ser em casos excepcionais em que essa parceria se torne in-conveniente, devem ser convida-dos a pensar juntamente com os conselheiros, a melhor maneira de encaminhar soluções, sempre a favor da criança ou o do ado-lescente. Apenas em casos mais graves que configurem crimes ou iminência de danos maiores à vítima, o Conselho Tutelar de-verá levar a situação ao conheci-mento da autoridade judiciária e ao Ministério Público ou, quando couber, solicitar a abertura de

processo policial. O trabalho do Conselho é especificamente ga-rantir os direitos da criança e do adolescente, realizando os proce-dimentos necessários para isso (BRASIL, 2002, p. 14).

Esta abordagem corresponde à complexidade das situações vividas em cada família. Em cada caso, deve-se avaliar se é necessá-rio recorrer à autoridade judicial ou não, se é necessário afastar o agressor da criança (principal-mente se ele for o pai) ou não, e assim por diante. Não há respos-tas prévias e válidas para todas as situações, portanto deve-se sem-pre avaliar o que é melhor para a proteção e desenvolvimento da criança e do adolescente.

As diversas instituições do Sistema de Garantia dos Direi-tos da Criança e do Adolescente devem atuar de forma articulada no enfrentamento do problema do abuso sexual. Dentre estas ins-tituições destacam-se: os CREAS (Centro de Atendimento Especia-lizado da Assistência Social), os demais serviços da proteção social básica e da especial, conselhos tutelares, vara da infância e da juventude, promotoria da infância e juventude, Delegacia da Criança e Adolescente Vítima, entre outros.

Cabe, ainda, mencionar o ser-viço Disque Direitos Humanos (Disque 100), – o qual recebe de-

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mandas relativas a violações de Direitos Humanos. Este é um serviço de utilidade pública da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH/PR) criado em 2003. Vinculado à Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos, esse ser-viço tem por objetivo atender, especialmente, as populações consideradas de alta vulnerabili-dade, como crianças e adolescen-tes, pessoas idosas, pessoas com deficiência, LGBT, pessoas em si-tuação de rua, quilombolas, ciga-nos, índios e pessoas em privação de liberdade. Este é mais um ca-nal para a denúncia de situações de exploração e abuso sexual.

Para finalizar, cumpre obser-var que o impacto da violência sexual na criança ou no adoles-cente depende não apenas do ato em si, mas principalmente de como a família e o entorno social lidam com a situação. O modo como os adultos que convivem com a criança conduzem a denúncia e seus desdobramentos é decisivo para os efeitos que este aconte-cimento (real ou suposto) pode produzir para a criança. Há casos em que a exposição da criança e o assédio investigativo é tão ou mais danoso que o próprio abuso. Estas atitudes podem, inclusive, confi-gurar outra forma de abuso.

A esse respeito, é interessante levar em consideração as descober-

tas da psicanálise. Ao se dedicar ao tratamento da histeria, Freud (1896), de início, desenvolveu a hipótese de que todos os casos de neurose resultavam de um trauma psíquico decorrente de um ato de sedução ou de abuso sexual por um adulto, muito frequentemente, o pai. Em seguida, ele concluiu que, em muitos casos, embora o abuso tivesse sido traumático não desencadeava uma neurose. No entanto, em muitas das situações, ele identificou a presença de uma fantasia de abuso sexual, mesmo quando ele não tinha ocorrido na realidade. Mesmo assim, aquela fantasia era traumática e era acom-panhada do desenvolvimento de uma neurose. Dessas considera-ções decorre que a subjetividade desempenha um papel importante nos efeitos que um ato de violência produz sobre uma criança ou ado-lescente. Cada sujeito vai vivenciar, a seu modo, o acontecimento.

REFERÊNCIAS

BATISTA, A. P. Abuso sexual infantil intrafamiliar: detec-ção, notificação dos casos pelos serviços de saúde. Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado Interinstitucional em Saúde Coletiva da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: IMS/UERJ, 2009.

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ABUSO SEXUAL

ABRASIL. Lei Federal nº 8.069,

de 13 de julho de 1990. Estatuto da Criança e do Adolescente. Dispõe sobre o estatuto da criança e do ado-lescente e dá outras providências.

BRASIL. Notificação de maus-tratos contra crianças e ado-lescentes pelos profissionais de saúde: um passo a mais na cidada-nia em saúde. Ministério da Saúde, Secretaria de Assistência à Saúde. Brasília: Ministério da Saúde, 2002.

BRASIL, Lei nº 12.318, de 26 de agosto 2010. Dispõe sobre a aliena-ção parental e altera o art. 236 da Lei no 8.069, de 13 de julho de 1990.

DIGIÁCOMO, J. M. e DIGIÁCOMO, I. A. Estatuto da criança e do adolescente anotado e interpretado. Curitiba: Ministério Público do Estado do Paraná, Centro de Apoio Operacional das Promotorias da Criança e do Adolescente, 6ª Edição, 2013.

FREUD, S. Observações adi-cionais sobre as neuropsicoses de defesa. In: FREUD, S. [1896]. Edição Standard Brasileira da Obras Completas de Sigmund Freud. (Trad. Jayme Salomão). Vol. 3. . Rio de Janeiro: Editora Imago, 1972, p 41 – 52.

FURNISS, T. Abuso sexual da criança: uma abordagem multidisciplinar. Porto Alegre: Artes Médicas, 1993.

PAIXÃO, A. C. W. e DESLANDES, S. F. Análise das políticas públicas de enfren-tamento da violência sexual infanto-juvenil. Saúde e Sociedade. São Paulo: Faculdade de Saúde Pública - USP. V. 19, n. 1. P. 114-126. 2010.

BRASIL. Dique 100 - Disque Direitos Humanos. Brasília: Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, 2003. Disponível em http://www.sdh.gov.br/disque-direitos-humanos/disque--direitos-humanos. Acesso em 20 de junho de 2016.

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O trabalho do Acolhimento das Famílias desenvolvido com-preende que é fundamental a participação da família durante o cumprimento da medida socioedu-cativa. Desta maneira, entendemos que o conceito de família, especial-mente aquele que diz respeito ao adolescente em conflito com a lei, não é algo dado naturalmente e sim se transforma de acordo com as mudanças que ocorrem na socie-dade e em suas relações sociais, nas quais não é possível definir apenas um modelo de família que será reconhecido por este traba-lho, sob o risco de generalização e preconceitos sobre os arranjos familiares destes adolescentes

Neste sentido, nos orientamos de forma crítica, a atender as novas configurações nos mosaicos fami-liares, de acordo com a Norma Operacional Básica do Sistema Único de Assistência Social que, ao tratar da importância da matri-cialidade sociofamiliar, entende a família como “núcleo afetivo, vin-culada por laços consanguíneos, de aliança ou afinidade, onde os vín-culos circunscrevem obrigações recíprocas e mútuas, organizadas em torno de relações de geração e de gênero” (BRASIL, 2005, p. 17).

A partir desta perspectiva, o trabalho do Acolhimento das Famílias tem como primeiro fun-damento a orientação a todos os familiares que buscam o serviço a

ACOLHIMENTO ÀS FAMÍLIAS

ACOLHIMENTO DAS FAMÍLIAS NO CENTRO DE SOCIOEDUCAÇÃO GELSO DE CARVALHO DO AMARAL (CENSE GCA)

Marina Juliette Grilo Rezende1

Paula Vargens2

Valéria Cristina Santos3

Vanda Vasconcelos Moreira4

1 Assistente Social no CENSE GCA- NOVO DEGASE-RJ 2 Pedagoga ESGSE– NOVO DEGASE-RJ3 Assistente Social no CENSE GCA – NOVO DEGASE-RJ 4 Psicóloga no CENSE GCA- NOVO DEGASE-RJ

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ACOLHIMENTO ÀS FAMÍLIAS

Arespeito do processo judicial, dos próximos encaminhamentos que devem ocorrer e os direitos que as famílias e os adolescentes em conflito com a lei possuem, mesmo estes estando em privação de liber-dade. Outro trabalho desenvol-vido, que tem ganhado relevância em relação às demandas, em espe-cial quando se trata de uma uni-dade porta de entrada do Sistema Socioeducativo, tem sido a garan-tia às famílias da localização dos adolescentes dentro das unidades do DEGASE, as datas e orientações sobre a visita nas outras unidades, como forma de garantir e viabili-zar o direito das famílias e ado-lescentes de serem acompanhados por seus responsáveis no cumpri-mento da medida socioeducativa, com vistas a fortalecer seus vín-culos familiares e afetivos. Outro aspecto importante a ser ressal-tado é que a família não passa por nenhuma revista corporal para buscar o serviço. Entendemos que a consolidação de um espaço de não criminalização das famílias está na base de um atendimento efetivamente socioeducativo. Assim, garantir informações cor-retas, escutar as demandas e infor-

mar questões relativas ao processo judicial são aspectos de um olhar humanizado, no qual o adoles-cente e sua família são vistos de um modo mais individualizado.

Com estas principais frentes, o trabalho do serviço de Acolhi-mento das Famílias desenvolvido no CENSE GCA5 é composto por uma equipe multidisciplinar, for-mada por profissionais do Ser-viço Social, da Psicologia e da Pedagogia a fim de proporcionar um atendimento de maior quali-dade aos usuários que procuram o serviço. Nesta perspectiva, suas atividades estão voltadas para a garantia das diretrizes do Con-selho Nacional de Assistência Social, de acordo com o Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Fami-liar e Comunitária (BRASIL, 2010), no que diz respeito à centralidade da família nas políticas públicas, assim como o Sistema Nacional de atendimento Socioeducativo (BRASIL, 2012), que norteia e rea-firma a diretriz do Estatuto da Criança e do Adolescente (BRA-SIL, 1990) sobre a natureza peda-gógica da medida socioeducativa.

5 O CENSE GCA é uma unidade que realiza a recepção dos adolescentes que são apreendidos em toda a capital, nos municípios da Baixada Fluminense, na região metropolitana e também na região dos lagos do estado do Rio de Janeiro, e que aguardam a sua transferência para o cumprimento das medidas socioeducativas recebidas em outra unidade. Desta forma, esta unidade se apresenta como a prin-cipal porta de entrada do Sistema Socioeducativo no NOVO DEGASE -RJ.

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O Acolhimento das Famílias ocorre em uma sala na recepção da Unidade, com recursos audio-visuais, banheiro, água, café e ar condicionado. Portanto, as famílias não precisam ficar na rua aguar-dando o atendimento. O trabalho desenvolve-se a partir de palestras que objetivam informar os próxi-mos encaminhamentos e outras dúvidas que os familiares possam ter, bem como a escuta e orientação aos familiares que não são respon-sáveis legais pelo adolescente, mas são os que de fato cuidam destes e mantêm seus vínculos afetivos. A esse respeito, ressaltamos os vín-

culos com as/os avós/avôs, irmãs/irmãos, tias/tios, mães de criação, amigos da Igreja, com vínculos religiosos, entre outros.

Assim, o Acolhimento vem proporcionando um espaço para a reflexão junto à família extensa, que aguarda os outros familiares retornarem do atendimento fami-liar na unidade6, neste momento de fragilidade emocional da família. Neste sentido, ao longo do traba-lho que vem sendo desenvolvido, podemos perceber um progressivo aumento das famílias que com-parecem à unidade buscando o atendimento familiar.

Gráfico 1: Comparativo do Acolhimento das Famílias / CENSE-GCA – DEGASE7

6 O Acolhimento das Famílias é uma etapa anterior ao atendimento familiar, que ocorre dentro da unidade e permite o primeiro encontro da família com o adoles-cente, bem como outras particularidades que sejam colocadas à equipe.7 Gráfico desenvolvido com dados colhidos no registro do trabalho de acolhi-mento às famílias do Cense GCA.

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ACOLHIMENTO ÀS FAMÍLIAS

A De acordo com o gráfico acima

(MOREIRA et al, 2015), observa-mos que 47% dos adolescentes em conflito com a lei tiveram o atendimento familiar na unidade GCA. Cumpre observar que o aumento do atendimento às famí-lias é proporcionalmente maior que o aumento de adolescentes apreendidos, o que pode ser um indicativo de um maior envolvi-mento das famílias no processo de apreensão dos adolescentes.

Neste sentido, o trabalho do Acolhimento das Famílias tem a pretensão de não se esgotar neste atendimento, mas orienta-se pela perspectiva de potencializar e res-significar o lugar da família histo-ricamente na função de proteção, cuidado de seus membros, socia-lização primária na sua dimensão sociocultural, como lugar dos afe-tos, conflitos, promoção, proteção, defesa e construção da identidade social de pessoas e grupos sociais. Com a contribuição na desconstru-ção da invisibilidade social destas famílias perante as políticas pú-blicas e o sistema de garantia de direitos, compreende-se que tanto o adolescente que cumpre medida socioeducativa como seus familia-res são sujeitos de direitos.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Lei 8.069 de 13 de julho de 1990: Estatuto da Criança e do Adolescente. Brasília, 1990.

______. Lei 12.594 de 18 de janeiro de 2012: Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo. Brasília, 2012.

______. Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária. Brasília: CONANDA, 2010.

MOREIRA, Vanda; REZENDE, Marina; SANTOS, Valéria; FIGUEIREDO, Talita. Acolhimento de Famílias no Socioeducativo: Resgatando laços e acessando direitos. Trabalho apresentado no 9º Congresso Norte/Nordeste de Psicologia. Salvador, 2015.

NOB. Norma Operacional Básica da Assistência Social. 2005.

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Nos dicionários, o significado mais comum da palavra abrigo remete-nos a um local de reco-lhimento, confinamento e isola-mento social. Todavia, a discussão a respeito da palavra “abrigo”, na década de 80, juntamente com as demandas do Estatuto da Criança e Adolescente, define que o aban-dono e os maus-tratos passam a ser uma interpelação do Estado, que deve buscar estratégias que supram o isolamento social e fa-miliar e possibilitem meios de proteção e cuidado.

Com o advento da nova Lei de Adoção (Lei Federal nº 12.010/2009), o abrigamento passou a ser denominado “acolhimento institucional”, medida provisória e excepcional, que só deverá ocorrer em situações extremas, em que as medidas anteriores não forem sufi-cientes para garantir a proteção da criança e do adolescente no conví-vio familiar e comunitário.

No Estatuto da Criança e do Adolescente, o “abrigo” é a sétima medida protetiva prevista, apli-

cada quando os direitos da criança e do adolescente são ameaçados ou violados. No cotidiano, contradito-riamente ao previsto em lei, o que deveria ser a última medida passa a ser frequentemente a primeira. Para que tal medida não seja bana-lizada e automática, acreditamos que é de suma importância reali-zarmos uma escuta ativa acerca das histórias e trajetórias de vida dos nossos usuários, bem como articu-lar todas as informações existentes com a rede socioassistencial e com o Sistema de Garantia de Direitos.

Cabe ressaltar que as unida-des de acolhimento institucio-nal precisam garantir um espaço acolhedor para os usuários, que através de alternativas lúdicas e sociopedagógicas objetivem a ressignificação de suas histórias de vida. Nesses espaços, cons-truídos por várias mãos, os usu-ários precisam ser recepcionados e ouvidos, assim como precisam participar de um processo de tra-balho que busque não apenas a celeridade em sua saída, mas que

ACOLHIMENTO INSTITUCIONAL

Jurema Batista1

1 Formada em Serviço Social (UERJ). Bacharelado e licenciatura Letras – Português- Grego (UERJ). Diretora Central de Recepção Adhemar Ferreira de Oliveira (Central Carioca).

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ACOLHIMENTO INSTITUCIONAL

Arespeite sua singularidade, seu desejo e sua autonomia.

Na rede municipal de acolhi-mento da SMDS, a Central Carioca configura-se como um dos equipa-mentos de acolhimento institucio-nal do Município do Rio de Janeiro; um dispositivo que contempla o acolhimento dos adolescentes do sexo masculino, possibilitando o levantamento inicial do histórico de vida dos mesmos e a captação de vaga nas diversas Unidades de Reinserção Social. Funciona não apenas como um dispositivo de regulação de vagas, mas também como uma unidade responsável por avaliar de forma qualificada a inserção destes sujeitos na rede de acolhimento existente.

A Central Carioca é um espaço de alta complexidade que tem como pilar predominante ser um espaço de escuta, de aco-lhimento e de planejamento das ações que serão pactuadas com o adolescente, seus familiares e os devidos órgãos competentes. Para a concretização dessa proposta, é necessário levar em considera-ção o tempo que cada adolescente demandará para uma análise qua-litativa da situação vivenciada. Também foi preciso reordenar o ambiente, acrescentando ao espaço físico elementos que o tornassem mais atrativo, oferecendo alterna-tivas de lazer, como, por exemplo: Sala de TV, Sala de Computadores,

Espaço da Leitura, Oficinas de Jardinagem e Trabalhos Manuais, Oficina Sócio Pedagógica, Festas Temáticas, dentre outras.

Contamos também com a par-ceria do Projeto Circulando da SMDS, que proporciona aos adoles-centes experiências culturais como visitas a Museus, Teatros e outras atividades externas. Acredita-se que esses instrumentos sejam im-prescindíveis para o adolescente iniciar o rompimento com a situ-ação de rua, com o uso de drogas e demais ações prejudiciais ao seu desenvolvimento e para sua adesão à proposta de acolhimento.

Dentre todos os atendi-mentos, em um universo de 300 adolescentes por mês, podemos exemplificar esse trabalho rela-tando algumas histórias de vida de alguns adolescentes:

• X. não apresentava nenhuma perspectiva de estar inclu-ído num espaço social (casa, escola, estágio) exercendo sua autonomia. Com habilidade técnica e, principalmente, res-peitando seu tempo e vontade, ao aproximar-se da maioridade, conseguiu entender a impor-tância de conquistar seu espaço na sociedade e de se aproximar dos seus poucos familiares. Destacamos que foi um desa-fio, pois havia, além do uso de substâncias psicoativas, pouca

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escolaridade e fragilidade dos laços familiares.

• D., adolescente usuário de substâncias psicoativas, prin-cipalmente cocaína, invia-bilizado de ser acolhido em alguns locais, pela sua falta de limite. Vale destacar que o adolescente tinha seus víncu-los familiares rompidos e total ausência da genitora. Também se deixou ser trabalhado tecni-camente, podendo destacar o elemento atenção, do cuidado com o próprio corpo/higiene, compromisso com regras e cumprir as suas tarefas, parti-cipação de atividades lúdicas e laborativas. Atualmente, com 18 anos, está matriculado e frequentando o Ensino Médio. Continua no Programa Jovem Aprendiz e decidiu retornar para o convívio com a irmã.

• O adolescente W., 17 anos, referência familiar em outro município, tinha ausência dos genitores, uso de substâncias psicoativas e rompimento com os laços familiares existentes. Não permaneceu na residên-cia dos responsáveis, pois um destes permanecia nas ruas do Centro e Zona Sul pedindo esmolas. Apesar de todas estas questões, se permitiu refletir sua trajetória de vida, retor-nando aos estudos e se inserido no Projeto Jovem Aprendiz.

• A experiência do trabalho técnico com o olhar singular também ocorreu com o adoles-cente F., de 14 anos. Na ocasião, residia com uma família que cuidava dele e de outros qua-tro irmãos. Tudo corria bem, até que apresentou problemas na comunidade. Assim, a famí-lia não conseguiu proteger o adolescente em casa, alegando que um grupo de observado-res da lei, porém clandestinos, expulsou o adolescente do local da moradia da família. Cabe informar que este estava estudando e não fazia uso de substân cias psicoativas.

• Não podemos deixar de re-gistrar o B., 17 anos, com uso abusivo de substâncias psi-coativas, baixa escolaridade, diagnóstico psiquiátrico, “com pavio curto” – como se usa no vocabulário popular, de difí-cil entendimento e de difícil, quase impossível missão para ser trabalhado. Mas trabalha-mos com ele. Para isso, preci-sou permanecer mais dias além do estabelecido pela Central porque tinha rompido todos os vínculos com a família bioló-gica e também por seu grande envolvimento no poder para-lelo. Por conta desse quadro, B. era inviabilizado em outros espaços para onde era encami-nhado como medida protetiva, principalmente pelo seu uso de substâncias psicoativas, brigas e pelo seu já referido envolvi-

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ACOLHIMENTO INSTITUCIONAL

Amento com o poder paralelo. Vale informar que o adoles-cente tinha também como agra-vante a prescrição de uso de medicação psiquiátrica, a qual ele não tomava e nem compa-recia mensalmente – conforme deveria – ao acompanhamento ambulatorial no espaço de tratamento de saúde mental, CAPSI. Depois de muito inves-timento técnico, ele passou a fazer o tratamento e o uso da medicação, além de começar a ir sozinho para o CAPSI. Antes sem nenhuma interação, passou a executar atividades com ou-tros adolescentes. Atualmente, ele reatou seu vínculo familiar: reside com um familiar que, até então, ele não se permitia acei-tar sequer o convívio.

Neste trabalho contínuo, almejamos chegar ao ideal, pois lidamos com vidas preciosas. Esperamos que todos os profissio-nais possam se incorporar nesse processo, respeitando também suas especificidades, seus limites e suas histórias; discutindo esse pro-cesso na construção de um Plano Político Pedagógico; e incluindo todos os parâmetros legais para nortear as diretrizes estabeleci-das. Esse processo é árduo e a todo momento apresenta dificuldades e desafios, sobre os quais consegui-mos, em grupo, refletir, questionar e alinhar com um objetivo único

de acolher com uma prática cada vez mais humanizada.

Ao longo destes 12 anos de criação, a permanência da Central Carioca, como é conhecida pelas autoridades e pela sociedade, atu-almente consolida um espaço de transformações/possibilidades em busca não de uniformizar, mas de tratar cada adolescente como sujeito de direito.

Em suma, acreditamos que todos os profissionais que atuam direta ou indiretamente com o acolhimento institucional preci-sam considerar a complexidade e os impactos de tal medida nas his-tórias de vida desses adolescentes.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, 1988.

BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente: Lei nº 8.069/90, de 13 de julho de 1990. Brasília: Senado Federal, 1993.

BRASIL. Lei Nacional de Adoção. Lei nº 12.010, de 03 de agosto de 2009. Brasília: Senado Federal, 2009.

RIZZINI, Irene; RIZZINI, Irma. A institucionalização de crian-ças no Brasil: percurso histórico e desafios do presente. Rio de Janeiro: PUC-Rio; São Paulo: Loyola, 2004.

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Quando abordamos a temá-tica do adolescente autor de ato infracional faz-se necessário com-preender do que estamos falando efetivamente. Inicialmente, deve-mos entender a origem de um direito penal específico para essa faixa etária. Observamos, assim, que no Brasil a primeira legislação que irá sistematizar o atendimento ao adolescente é o Código Mello Mattos, em 1927, o qual irá definir a menoridade aos 18 anos e esta-belecer que dos 14 aos 18 anos será o “menor delinquente” submetido a um tratamento penal próprio. Interessante observar que até então não havia essa previsão e a Consolidação das Leis Penais de 1830 comportava a possibilidade de crianças de 07 anos serem sub-metidas ao tratamento penal.

O Código Mello Mattos corres-ponde a uma concepção que vinha ganhando escopo em diversos países do reconhecimento de uma especificidade da infância e da ado-lescência. Nesse sentido, aspectos como a garantia do sigilo e o aten-dimento em unidades próprias são assegurados àqueles, então

entendidos como “menores delin-quentes”. Olhar semelhante será observado no Código de Menores de 1979 que dispõe em seu artigo 1º que o “ (...) Código dispõe sobre assistência, proteção e vigilância a menores: I - até dezoito anos de idade, que se encontrem em situação irregular”. Desta forma, reconhece a necessidade e a espe-cificidade do tratamento penal que deve ser dispensado aos adoles-centes. Neste Código, já aparece a ideia de “autor de ato infracional” que deverá ter sua medida revista a cada dois anos:

Art. 41. O menor com desvio de conduta ou autor de infração penal poderá ser internado em estabe-lecimento adequado, até que a autoridade judiciária, em despa-cho fundamentado, determine o desligamento, podendo, conforme a natureza do caso, requisitar parecer técnico do serviço compe-tente e ouvir o Ministério Público (Código de Menores, 1979).

A compreensão que o ado-lescente comete ato infracional e

ADOLESCENTE AUTOR DE ATO INFRACIONAL

Paula Vargens1

1 Pedagoga Novo Degase. Mestre em Educação.

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ADOLESCENTE AUTOR DE ATO INFRACIONAL

Anão crime está associada à culpa-bilidade que, dentro do conceito de crime adotado no Brasil, é um dos elementos do crime (ato típico, antijurídico e culpável). A culpa-bilidade pode ser entendida como um juízo de reprovação que recai sobre o homem, sendo a imputa-bilidade relacionada à capacidade penal; se o agente era capaz de compreender o caráter ilícito e se autodeterminar, verificando se seria possível agir de outro modo. Ou seja, ao se reconhecer que o adolescente encontra-se em peculiar fase de desenvolvimento, sendo necessário um atendimento diferenciado, que considere suas singularidades, entende-se que ele ainda não é plenamente capaz de se autodeterminar. Assim,

a culpabilidade, é considerada como principal fator diferencial entre o ato infracional e o crime: o menor não possui culpabili-dade. Sob o entendimento de Muñoz Conde (1988, p. 132), a ca-pacidade da culpabilidade inclui “requisitos que se referem à ma-turidade psíquica e à capacidade do sujeito para se motivar (idade, doença, mental, etc.). É evidente que, se não têm as faculdades psíquicas suficientes para poder ser motivado racionalmente, não pode haver culpabilidade.” É o que acontece com os inimputá-veis, descritos no Código Penal, desprovidos da capacidade e cul-pabilidade não lhe sendo impos-

tas as penas descritas no Código Penal. (MARINHO, 2011).

Tal noção irá se fortalecer com o Estatuto da Criança e do Adolescente, que pautado na Doutrina da Proteção Integral, reconhece crianças e adolescentes como sujeitos de direitos. A aposta pela Doutrina da Proteção Integral exigiu, deste modo, uma pro-funda revisão conceitual no que se refere ao tratamento dispensado à criança e ao adolescente. Se até então todos, independente da prá-tica de ilícitos, enquadravam-se na categoria do “menor”, a partir do novo Estatuto buscou-se por ter-minologias que refletissem a ideia do sujeito de direitos.

A compreensão do adolescente como autor de ato infracional, ape-sar de estar presente no texto de lei do Código de Menores, se con-solida somente recentemente, ao vincular-se a uma ideia de que o adolescente cometeu um ato, e que, dentro de uma concepção socioe-ducativa, nele não se reifica.

No entanto, apesar de mudan-ças legais e doutrinárias, o perfil do adolescente autor de ato infracional não se alterou substancialmente ao longo dos anos. A ruptura com o termo menor e a promul-gação do ECA não interromperam com uma prática criminalizante da pobreza e apostas no encar-ceramento como mecanismo de

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controle social. De tal forma que o perfil do adolescente atendido pelo Degase é eminentemente de não brancos, pobres e de baixa escolaridade, reproduzindo o este-reótipo construído desde o Código de Menores. Segundo o Dossiê Criança e Adolescente de 2015, o público atendido está concentrado entre 15 e 17 anos, sendo que,

Entre 2010 e 2014, infrações por envolvimento com drogas foram responsáveis por quase metade (43,3%) das autuações em fla-grante dos adolescentes (...) Já as autuações por ‘crimes con-tra o patrimônio’ triplicaram: de 484 no primeiro semestre de 2010 para 1.418 no segundo semestre de 2014 (CABELLERO e MONTEIRO, 2015, p. 18).

No que tange à escolaridade, em reportagem veiculada pelo site G1, dos adolescentes aten-didos pelo DEGASE, “95% dos jovens não concluíram o Ensino Fundamental e nenhum de-les completou o Ensino Médio. Quase 60% dos menores estavam cursando o ensino fundamental quando entraram para o Degase” (G1.globo.com, 2015). Cumpre ainda observar que grande parte destes adolescentes tem uma trajetória escolar marcada por rupturas e com passagens em pro-gramas de correção idade x série,

o que favorece que muitas vezes o ano de escolaridade não cor-responda ao conteúdo esperado. Assim, não é raro encontrar ado-lescentes que formalmente estão no 5º ano do Ensino Fundamental e apresentam grande dificuldade na leitura e escrita.

A questão racial fica explícita quando observamos os dados rela-tivos à cor e raça dos adolescentes apreendidos. Ainda de acordo com o Dossiê do Instituto de Segurança Pública, “Com relação à cor, entre os autuados, predominam os jovens pardos (49,8%) e negros (31,5%)” (2015, p. 12). A questão de gênero é outro ponto importante indicado pelo Dossiê: do total das apreensões em flagrante de ado-lescentes, de 2010 a 2014, 93,5% correspondia ao sexo masculino.

Os fatores que levam à prática de ato infracional são, contudo, dos mais diversos campos. Não há como se determinar a priori o que leva o jovem a cometer uma infração, porém, não cabe associar a prática de ato infracional com aspectos relacionados à pobreza ou à índole do adolescente exclusiva-mente, fazendo-se necessária uma análise mais complexa. Diversas correntes e teorias existem para explicar a prática infracional, sendo, contudo, reconhecido que o ambiente familiar, o ambiente escolar e o ambiente social como

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ADOLESCENTE AUTOR DE ATO INFRACIONAL

Afatores que contribuem para a prá-tica do ato infracional.

Assim, pensar em adolescen-tes autores de ato infracional é pensar em sujeitos de direitos, que estão em uma condição peculiar de desenvolvimento e que a prática do ato, em grande medida, se rela-ciona com aspectos que envolvem, por um lado, os diversos ambien-tes por onde transitam, e, por outro, apostas das políticas penais de segurança. Entendemos ser importante considerar ainda que o perfil do adolescente apreendido se relaciona diretamente com as opções de uma política penal que vem, historicamente, apostando em modelos de encarceramento como opção prioritária no atendi-mento à infância pobre no Brasil.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Lei Federal nº 6697, de 10 de outubro de 1979. Código de Menores. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/1970-1979/L6697.htm. Acesso em julho de 2016.

CABELLERO, B. e MONTEIRO, J. (org). Dossiê Criança e Adolescente - 2015. Instituto de Segurança Pública (ISP). Rio de Janeiro: Rio Segurança, 2015. Disponível em http://arquivos.pro-derj.rj.gov.br/isp_imagens/Uploads/DossieCriancaAdolescente2015.pdf. Acesso em 12 de julho de 2016.

MARINHO, Herrick. Crime x Ato infracional. Disponível em: http://www.webartigos.com/artigos/crime-x-ato-infracional/67715/#ix-zz4EDNxaG8Q. Acesso em 12 de julho de 2016.

O GLOBO. Menores inter-nados no Degase têm baixa escolaridade, segundo pesquisa In: g1.globo.com, 22/05/2015. Disponível em: http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2015/05/menores-internados-no-degase--tem-baixa-escolaridade-segundo--pesquisa.html. Acesso em 13 de julho de 2016.

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A constituição de 1988 marcou no Brasil o início de nova política social. A partir do que ficou conhe-cida como Constituição Cidadã e com as lutas de movimentos sociais, foi estruturado o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Assim, a visão do aten-dimento aos adolescentes em conflito com a lei saía, em âmbito nacional, da lógica da Doutrina de Situação Irregular para a lógica da Doutrina da Proteção Integral. No Estado do Rio de Janeiro, o Decreto Estadual nº 18.493, de 26/01/93, sob a égide do Governador Leonel de Moura Brizola, marcou a criação do DEGASE - Departamento Geral de Ações Socioeducativas.

O novo departamento inau-gurou no Estado uma nova política de atendimento aos ado-lescentes em conflito com a lei, trazendo em seu bojo a estrutu-ração de cargos/funções daqueles que estariam na “linha de frente”, ou seja, daqueles que acompanha-riam o dia a dia dos adolescentes em diferentes espaços e horários, os “agentes de pátio”.

O cargo, o nome oficial dessa ocupação teve diferentes nomen-claturas ao longo do tempo, mas, as funções, as tarefas e as res-ponsabilidades cotidianas desse servidor eram, na prática, as mes-mas, ainda que o cargo, de nível médio, tivesse outro nome.

Tais servidores não são da área técnica, como os pedagogos, psicólogos etc. e também não são considerados pertencentes à área administrativa. Atuam junto aos adolescentes em diferentes ativida-des, como acordá-los para o início das atividades do dia, acompanhar na ida ao médico, acompanhar na ida às audiências, fazer revista nos adolescentes e em seus alojamentos etc.

Para os agentes de uma uni-dade socioeducativa, o pátio sig-nifica muito mais do que um perímetro. O pátio demarca uma área de atuação, tanto dos adoles-centes quanto dos agentes, onde o fazer diário é fronteira de uma rede de relacionamentos e ações de alta complexidade.

AGENTE SOCIOEDUCATIVO

Marizélia Barbosa1

1 Agente Socioeducativa Feminina, DEGASE, 1999; Pedagoga, UERJ, 2000; Orientadora Educacional, UCAM, 2005;Psicopedagoga, UCAM, 2009

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AGENTE SOCIOEDUCATIVO

ANo primeiro concurso do

Departamento, Edital de 1994, o cargo oferecido para esses profis-sionais foi o de Agente Educacional. Dois anos depois, Edital de 1998, o cargo oferecido foi o de Agente de Disciplina. Já em 2007, o Departamento abriu um Processo Seletivo Temporário para o cargo de Auxiliar de Disciplina, cujas atribuições se assemelham às dos dois cargos anteriores. Vale ressal-tar que os cargos acima citados coe-xistiam, pois, à medida que um era criado, o anterior não era extinto e isso gerou alguns problemas, pois alguns agentes entendiam que determinadas funções não lhes cabiam por terem feito a inscrição em um ou outro cargo. O Edital de 2011 ofereceu o cargo de Agente Socioeducativo, nomenclatura que absorveu oficialmente os demais cargos acima mencionados. Nos diferentes Editais, a diferença dá-se na ênfase, educacional ou de segu-rança, das atribuições dos cargos como podemos abaixo observar.

Nas atribuições do cargo Agente Educativo, elencadas no primeiro edital, destacam-se fun-ções próximas à área educacional, como, por exemplo, “Realizar ati-vidades integradas a setores afins à equipe técnica”; “Participar da organização de festas e even-tos socioculturais junto ao corpo técnico”; “Promover jogos espor-tivos e lúdicos e outras atividades

pedagógicas em articulação com a equipe técnica”; “Participar de reuniões ou programas para estudo em situações comuns ou específicas referentes aos adoles-centes”. Apesar disso, a disciplina dos espaços e dos horários não foi esquecidam como vemos em: “Zelar pelo cumprimento de horá-rios e programações reunindo os adolescentes para entrada e saída da sala de atividades, ofi-cinas, dormitórios, recreação e outros locais afins”.

Por sua vez, no edital de 1998, quando o cargo passou a ser cha-mado de Agente de Disciplina, pode-se perceber a ênfase nas fun-ções ligadas à área da segurança. Assim, das 16 funções apresenta-das, apenas uma não se relaciona diretamente com a área da segu-rança, dando um suporte para uma atuação educacional. Ainda assim, porém, o cargo se apro-xima mais da assistência (14. Dar orientações necessárias aos adoles-centes sob sua guarda).

Atribuições educacionais e disciplinares também são pedi-das aos Auxiliares de Disciplina, cujas atividades são mais voltadas para a educação, apresentando o edital no qual há o maior equilí-brio entre educação e segurança. Temáticas como “Acompanhar, encaminhar e realizar com os adolescentes atividades internas e externas de recreação”; “Observar

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o comportamento dos adolescen-tes, dialogando com os mesmos ou providenciando encaminhamento às áreas especializadas”; “Realizar atividades integradas a setores afins à equipe técnica”; “Participar da organização de festas e even-tos socioculturais junto ao corpo técnico”; e “Participar de reuni-ões ou programas para estudo em situações comuns ou especí-ficas referentes aos adolescentes” podem ser um indicativo de uma valorização da atividade educativa e de uma aproximação do que se tem por ideal do fazer do “agente de pátio”. Além disso, ao lado de tais atribuições mais educativas, tam-bém se podem observar funções mais voltadas para a segurança, como “Auxiliar na contenção nos casos de rebeliões, indisciplinas e evasões”; “Auxiliar no cuidado, planejamento, execução ou melho-ria das medidas de segurança do estabelecimento”; “Participar da ronda noturna nos alojamentos, sistematicamente e sem prévio aviso, zelando pela integridade física dos adolescentes sob seus cuidados”; e “Manter constante observação sobre os adolescen-tes, de forma a prevenir ausências desautorizadas ou evasões das dependências das unidades”.

Perfil semelhante irá aparecer nas funções atribuídas ao cargo de Agente Socioeducativo, pre-sente no edital de 2011, no qual

atividades relacionadas à educa-ção se mesclam às atividades da disciplina, apesar de haver uma ênfase maior na segurança. Desta forma, temos atividades como “Planejar e executar, sob supervi-são, em conformidade com a pro-posta pedagógica do programa, atividades educativas, esportivas e socioculturais em articulação com a equipe técnica”; e “Buscar a atualização constante, visando uma prática mais competente, no estudo dos casos dos adolescen-tes em conflito com a lei”, ao lado de “Realizar serviços de escol-tas e acompanhamento nas tare-fas internas e externas”; “Cuidar, planejar, executar ou melhorar as medidas de segurança do estabele-cimento”; “Encaminhar, acompa-nhar e monitorar os adolescentes nas atividades internas e externas, tais como: transferências para Uni-dades da capital e outras Comarcas e Estados, pronto socorro, hospi-tais, fóruns da capital e do interior e atividades sociais autorizadas, conforme previstas na agenda socioeducacional”; “Realizar efe-tivamente a revista da Unidade e, junto ao(a)s adolescentes, a preven-ção e a contenção do(a)s adolescen-tes internado(a)s, nos movimentos iniciais de rebelião, na tentativa de fuga e evasão, de modo a garantir a segurança e contribuir para o pro-cesso de desenvolvimento socioe-ducativo”. É interessante notar que

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AGENTE SOCIOEDUCATIVO

Aeste é o primeiro edital no qual o porte e uso de equipamento não letal é autorizado, exigindo-se a devida capacitação. Vale observar que neste edital aparecem funções que não se relacionam diretamente com a atividade educacional ou de segurança como, por exem-plo, “Realizar o cadastramento e inclusão de informações dos ado-lescentes internos no DEGASE no Sistema de Identificação de Ado-lescentes (SIIAD) e no prontuário único móvel, zelando pela integri-dade e segurança do sistema”.

Podemos observar nos demais itens dos cargos acima atividades e responsabilidades que transitam fora da área educativa e da área da segurança. Mesmo assim, não fica explicitamente delineado qual o papel do “agente de pátio”. Sua função é educacional, de segu-rança ou algo nebuloso no limiar destas duas funções?

Para a pergunta acima, exis-tem respostas dos que atuam “no pátio”, que transitam nos universos da educação e da segu-rança. Ora privilegiando um, ora outro, ou tentando compor uma atuação ambivalente.

Há uma palavra que permeia o trabalho no pátio: a Disciplina, entendida não como castigo e/ou tolhimento – como muitos pen-sam –, mas como organização do ir e vir e do fazer dos adoles-centes. Sendo assim, tanto a área

educativa quanto a área da segu-rança dialogam com o trabalho do Agente Socioeducativo, já que ambas as áreas pretendem, dentre outras coisas, preparar os ado-lescentes para o retorno a uma sociedade que tem suas normas e regras. A educação, assim como a segurança, no sentido mais amplo dos dois conceitos, também nor-matiza, dá condições para que o ambiente educativo se estabe-leça sem maiores empecilhos. O problema é quando se privilegia uma dessas áreas em detrimento da outra. Quando isso acontece, as tensões ocorrem não apenas entre Equipe Técnica e Agentes Socioeducativos, mas também dentro das próprias Equipes de Agentes Socioeducativos.

Evidencio que, desde 2006, o SINASE (Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo), através da resolução nº 119, de 11 de dezembro, instituído pelo Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA), passou a ser estu-dado no DEGASE. Isso trouxe novas dúvidas sobre a atuação dos “agentes de pátio”, pois o SINASE detalha sobre número mínimo de agentes, que deve estar de acordo com o número de adolescentes, mas não especifica as atribuições inerentes ao cargo.

Um Regimento Interno para o DEGASE, que normatize de forma

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clara e detalhada o dia a dia das unidades socioeducativas, visando a um padrão no atendimento so-cioeducativo como um todo, faz muita falta. O detalhamento do funcionamento e das ações, das e nas unidades, poderá dirimir discrepâncias no fazer diário dos servidores, principalmente entre as equipes de plantão dos Agentes Socioeducativos. Cada plantão tem uma identidade e forma de traba-lhar, o que, por vezes, causa trans-tornos no cotidiano das unidades.

No ano de 2011, através da Lei Estadual nº 5.933/11, de 29 de março, que dispõe sobre a rees-truturação do quadro de pes-soal do Departamento Geral de Ações Socioeducativas, é criado o cargo de Agente Socioeduca-tivo, cargo/função que absorve os cargos acima mencionados, com a peculiaridade de fazer parte da nomenclatura dos demais cargos do Departamento. Desta forma, o cargo dos profissionais “do pátio”, passa a chamar-se Agentes Socioeducativos Femini-nos ou Agentes Socioeducativos Masculinos. Assim como temos o cargo de Agente Socioeducati-vo-Pedagogia, Agente Socioedu-cativo-Assistente Social, Agente Socioeducativo-Psicólogo etc.

O prefixo comum aos diferen-tes cargos não agregou, como talvez se pretendesse, os profissionais da área técnica aos profissionais “do

pátio”. A dificuldade de diálogo entre esses entes, no que tangen-cia suas atribuições de trabalho, tem sido ao longo da história do DEGASE um ponto sensível.

É possível concluir que a nova nomenclatura funcional para o pessoal do pátio não resolveu os problemas de entendimento da função. Mais que isso, não seria exagero afirmar que deixou ainda mais evidente a complexidade da função, pois, na tentativa de expli-carem o que fazem, o que fica clara é a angústia da maior parte des-ses profissionais, visto que o fato de trabalharem no sistema socio-educativo não exemplifica suas atribuições, uma vez que o próprio conceito de socioeducação encon-tra-se em construção.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE). Resolução do CONANDA, nº 119, 2006. Disponível em http://www.conselho-dacrianca.al.gov.br/sala-de-imprensa/publicacoes/sinase.pdf. Acesso em 13 de Junho de 2016.

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APREENSÃO DO ADOLESCENTE AUTOR DE ATO INFRACIONAL

A

A descoberta do Brasil ocor-reu em 22 de abril de 1500, mas a colonização de nossas terras teve início no ano de 1530. Neste período, vigorava em Portugal as “Ordenações Afonsinas”, pro-mulgada por D. Afonso V, a partir de 1446 e implantada no Brasil Colônia, até ser substituída pelas “Ordenações Manuelinas”, promulgada por D. Manuel I, a partir de 1521.

Em 1603 passou a vigorar no Brasil Colônia as “Ordenações Filipinas”, promulgada no rei-nado de Felipe II. As “Ordenações Filipinas” traziam, em seu orde-namento, ampla e genérica criminalização de atos, com seve-ras punições, inclusive a pena de

morte e outras consideradas cruéis: açoite, corte de membros, trabalho forçado em galés2, em que a única diferença punitiva do menor de 17 anos para o maior de idade era não ser condenado a morte.

As “Ordenações Filipinas” perduraram até 16 de dezembro de 1830, quando houve a promul-gação do Código Criminal do Império do Brasil, por D. Pedro I, passando a considerar como não criminosos os menores de 14 anos e adotando o critério biopsico-lógico para os crimes praticados por maiores de 14 anos, casos em que o magistrado avaliava o discernimento do menor no momento da prática delituosa e a punição a ser aplicada, não exce-

APREENSÃO DO ADOLESCENTE AUTOR DE ATO INFRACIONAL

Lelis Paiva1

1 Advogado, Agente socioeducativo, atuou como Vogal de Comissão de Inquérito Administrativo Disciplinar, Representante do DEGASE junto à CEVIJ/RJ, atual-mente, sindicante da Corregedoria/DEGASE. 2 A pena das galés era a punição na qual os condenados cumpriam a pena de tra-balhos forçados. As galés estavam entre as principais embarcações de guerra europeias até o desenvolvimento da navegação, a partir do século XVI. Elas pos-suíam velas que, apesar de serem muito rudimentares, auxiliavam em sua mo-vimentação. Mas, para que ganhassem os mares, era necessário recorrer à força de cerca de 250 homens, recrutados de diversas formas. Eles podiam ser escravos condenados pela Justiça, que trocavam suas penas por trabalhos temporários nas galés, ou voluntários em busca de salário. (grifo nosso).

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dente aos dezessete anos de idade, em Casas de Correção:

Art. 10. Também não se julgarão criminosos:1º Os menores de quatorze anos.(...) Art. 13. Se provar que os meno-res de quatorze anos, que tiverem cometido crimes, obraram com discernimento, deverão ser reco-lhidos às casas de correção, pelo tempo que ao Juiz parecer, com tanto que o recolhimento não exceda á idade de dezessete anos.

Com o surgimento do Código Penal dos Estados Unidos do Brasil, Decreto nº 847 de 11 de outubro de 1890, o País passa a tratar, efe-tivamente, da inimputabilidade plena do menor delinquente de até 09 anos e, aos maiores de 09 e menores de 14, continuou sendo adotado o critério biopsicológico, com a avaliação do magistrado, quanto ao discernimento do menor, no momento da prática do ato delituoso:

Art. 27. Não são criminosos:§ 1º Os menores de 09 anos completos;§ 2º Os maiores de 09 e meno-res de 14, que obrarem sem discernimento;

Em 1923 foi instituído o pri-meiro Juizado Privativo de Menores

da Capital Federal brasileira, no Estado do Rio de Janeiro. No dia 02 de fevereiro de 1924, o pri-meiro Juiz de Menores do Brasil foi nomeado, o jurista nascido em Salvador (BA), José Cândido de Albuquerque Mello Mattos, sendo este, o idealizador do Código de Menores de 1927, apelidado de “Código Mello Mattos”.

O Código de Menores de 1927 foi elaborado, exclusivamente, para o controle da infância aban-donada e delinquente, de ambos os sexos e, aos menores de 18 anos, dando início às normas jurídicas exclusivamente voltadas à apreen-são de adolescentes, ratificada no Código Penal Brasileiro, Decreto-Lei nº2.848 de 7 de dezembro de 1940, em seu art.27.

Apreensão de Adolescentes no Código de Menores

Decreto nº 17.943-A de 12 de outubro de 1927

Art.69. O menor indigitado autor ou cumplice de fato qualificado crime ou contravenção, que con-tar mais de 14 (catorze) e menos de 18 (dezoito) anos, será subme-tido a processo especial, tomando ao mesmo tempo, a autoridade competente as precisas informa-ções, a respeito do estado físico, mental e moral dele, e da situação social, moral e econômica dos

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APREENSÃO DO ADOLESCENTE AUTOR DE ATO INFRACIONAL

Apais, tutor ou pessoa incumbida de sua guarda.§ 1º Se o menor sofrer de qualquer forma de alienação ou deficiência mental, for epilético, surdo-mudo e cego ou por seu estado de saúde precisar de cuidados especiais, a autoridade ordenará seja subme-tido ao tratamento apropriado.§ 2º Se o menor não for aban-donado, nem pervertido, nem estiver em perigo de o ser, nem precisar do tratamento especial, a autoridade o recolherá a uma escola de reforma pelo prazo de 01 (um) a 05 (cinco) anos.

Art.70. A autoridade pode a todo tempo, por proposta do diretor do respectivo estabelecimento, trans-ferir o menor de uma escola de reforma para outra de preservação.

Código Penal BrasileiroDecreto-Lei no 2.848 de 7 de

dezembro de 1940

Art.71. Se for imputado crime, considerado grave pelas cir-cunstâncias do fato e condições pessoais do agente, a um menor que contar mais de 16 (dezesseis) e menos de 18 (dezoito) anos de idade ao tempo da perpetração, e ficar provado que se trata de indi-víduo perigoso pelo seu estado de perversão moral o juiz lhe apli-cará o art.65 do Código Penal, e

o remeterá a um estabelecimento para condenados de menor idade, ou, em falta deste, a uma pri-são comum com separação dos condenados adultos, onde per-manecerá até que se verifique sua regeneração, sem que, todavia, a duração da pena possa exceder o seu máximo legal. (Apreensão de Adolescentes no Código de Menores, Decreto nº 17.943-A de 12 de outubro de 1927)

Art. 27 - Os menores de 18 (dezoito) anos são penalmente inimputáveis, ficando sujeitos às normas estabelecidas na legis-lação especial. (Código Penal BrasileiroDecreto-Lei no 2.848 de 7 de dezembro de 1940)

Apreensão de Adolescentes no Código de Menores

Lei no 6.697 de 10 de outubro de 1979

Art.1º Este Código dispõe sobre assistência e vigilância a menores:I – até 18 (dezoito) anos de idade, que se encontrem em situação irregular;II – entre 18 (dezoito) e 21 (vinte e um) anos, nos casos expressos em lei.Parágrafo Único - As medidas de caráter preventivo aplicam--se a todo menor de 18 (dezoito)

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anos, independentemente de sua situação.(...)

Art.99. O menor de 18 (dezoito) anos, a que se atribua autoria de infração penal, será, desde logo, encaminhado à autoridade judiciária.§ 1º Para efeitos desta Lei, deve ser considerada a idade do menor à data do fato.§ 2º Sendo impossível a apresen-tação imediata, a autoridade poli-cial responsável encaminhará o menor a repartição policial espe-cializada ou a estabelecimento de assistência, que apresentará o menor à autoridade judiciária no prazo de 24 (vinte e quatro) horas.§ 3º Na falta de repartição policial especializada, o menor aguardará a apresentação em dependência separada da destinada a maiores de 18 (dezoito) anos.§ 4º Havendo necessidade de dilatar o prazo para apurar infra-ção penal de natureza grave ou em co-autoria com maior, a auto-ridade policial poderá solicitar à judiciária prazo nunca superior a 05 (cinco) dias para a realiza-ção de diligências e apresentação do menor. Caso defira o prazo, a autoridade judiciária determi-nará prestação de assistência per-manente ao menor.§ 5º Ao apresentar o menor, a autoridade policial encaminhará relatório sobre investigação da ocorrência, bem como o produto e os instrumentos da infração (Apreensão de Adolescentes no

Código de Menores, Lei no 6.697 de 10 de outubro de 1979)

Apreensão de Adolescentes no Estatuto da Criança e do

Adolescente-E.C.A. Lei nº 8.069 de 13 de julho de

1990

Art. 2º Considera-se criança, para os efeitos desta Lei, a pessoa até 12 (doze) anos de idade incomple-tos e adolescente aquela entre 12 (doze) e 18 (dezoito) anos de idade.(...)

Art. 104. São penalmente inim-putáveis os menores de 18 (dezoito) anos, sujeitos às medi-das previstas nesta Lei.(...)

Art. 106. Nenhum adolescente será privado de sua liberdade senão em flagrante de ato infra-cional ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente.Parágrafo único. O adolescente tem direito à identificação dos responsáveis pela sua apreen-são, devendo ser informado acerca de seus direitos.

Art. 107. A apreensão de qual-quer adolescente e o local onde se encontra recolhido serão inconti-nenti comunicados à autoridade

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APREENSÃO DO ADOLESCENTE AUTOR DE ATO INFRACIONAL

Ajudiciária competente e à famí-lia do apreendido ou à pessoa por ele indicada.Parágrafo único. Examinar-se-á, desde logo e sob pena de respon-sabilidade, a possibilidade de liberação imediata.

Art. 108. A internação, antes da sentença, pode ser determinada pelo prazo máximo de 45 (qua-renta e cinco) dias.Parágrafo único. A decisão deverá ser fundamentada e basear-se em indícios suficien-tes de autoria e materialidade, demonstrada a necessidade impe-riosa da medida.

Art. 109. O adolescente civil-mente identificado não será submetido à identificação com-pulsória pelos órgãos policiais, de proteção e judiciais, salvo para efeito de confrontação, havendo dúvida fundada (Apreensão de Adolescentes no Estatuto da Criança e do Adolescente. E.C.A., Lei nº 8.069 de 13 de julho de 1990)

De acordo com o tipificado no ECA, a apreensão de adoles-centes que cometam ato infra-cional análogo a crime se dá em flagrante ou por determina-ção judicial (Mandado de Busca e Apreensão-MBA).

No Rio de Janeiro, as Delegacias de Proteção a Criança e ao Adolescente (DPCA) foram instituídas em 1993 para atuar,

exclusivamente, na apuração de atos infracionais praticados por crianças de até 12 anos incomple-tos e por adolescentes de 12 a 18 anos incompletos, de ambos os sexos, com a remessa dos fatos e provas apuradas em Inquérito às autoridades judiciárias, compostas pelo Ministério Público e Juizado da Infância e Juventude.

Nos casos de apreensão em flagrante ou por determinação judicial (MBA), realizar-se-á a imediata comunicação ao Juizado da Infância e Juventude, ao(s) familiar(es) do menor apreen-dido ou a quem for indicado por ele, com a comunicação do local onde o menor encontra-se reco-lhido, tendo como prioridade o exame da possibilidade da sua liberação imediata, que se dá com a entrega à família, sob pena de responsabilização, com posterior apresentação do adolescente em Juízo, no dia e hora designados.

Quando a apreensão se der em localidade em que não haja DPCA, a autoridade policial procederá com o registro do ato infracional e comunicação, imediata, da apre-ensão às autoridades judiciárias, à família ou a quem for indicado pelo apreendido, com a apresenta-ção da criança ou do adolescente no prazo de 24h, se houver per-noite na Delegacia de Polícia, esta deverá ser em local distinto e pro-tegido dos demais presos.

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Há a possibilidade da Delegacia de Polícia ou espe-cializada (DPCA) conduzir o apreendido às Unidades executo-ras das Medidas Socioeducativas (MSE), função exercida no Rio de Janeiro pelo Departamento Geral de Ações Sócioeducativas (DEGASE), o qual procederá com a apresentação do adolescente às autoridades judiciárias, no prazo de 24h, sendo estes procedimentos que perduram até a presente data.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Código Penal dos Estados Unidos do Brasil. Decreto nº 847 de 1890.

BRASIL. Código de Menores. Decreto nº 17.943-A de 1927.

BRASIL. Código Penal Brasileiro. Decreto-Lei no 2.848 de 7 de dezembro de 1940.

BRASIL. Código de Menores. Lei Federal no 6.697 de 10 de outu-bro de 1979. Brasília, 1979.

BRASIL. Lei 8.069 de 13 de julho de 1990: Estatuto da Criança e do Adolescente. Brasília, 1990.

SALGUEIRO, Augusto. Ordenações Afonsinas. Disponível em http://arrudadosvinhos.wordpress .com/category/ordenacoes-afonsinas. Acesso em 20 de junho de 2016.

VILAR, Manuel Dória. Ordenações Afonsinas. Disponível em http://blogverbalegis.blogspot.com/2010/11/ordenacoes-afonsinas.html. Acesso em 20 de junho de 2016.

Ordenações Afonsinas de 1446

Ordenações Manuelinas de 1521

Código Criminal do Império do Brasil de 1830

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ASSISTÊNCIA RELIGIOSA

A

Pensar a religiosidade no Sistema Socioeducativo nos remete a pensar o resgate da dimensão e dos contornos da formação da espi-ritualidade ao longo da história da humanidade como resposta/expli-cação aos fenômenos de natureza subjetiva e as suas manifesta-ções empíricas. Também nos leva a refletir sobre os formadores do imaginário, da essência da espi-ritualidade do homem e ainda os aspectos relacionados aos compo-nentes históricos da religião e sua presença na construção do Estado e das ideologias, bem como a parti-cipação de segmentos religiosos no trato da infância e da adolescência, impregnada do viés “doutrinário” e “salvacionista”.

No cenário brasileiro, reli-gião e religiosidade expressam

mais que as crenças ou práticas. Exprimem a cultura contempo-rânea, um emaranhado de signi-ficados simbólicos que permite entender o universo das menta-lidades, os ritos do cotidiano, as relações sociais e as instituições políticas; enfim, permite entender a alma do povo brasileiro.

Neste sentido, a análise do período colonial no Brasil alcança as raízes da formação desse sistema de crenças. A miscigenação cultu-ral, durante a constituição colonial, criou no Brasil um conjunto de ele-mentos religiosos polissômicos, comunicando vários sentidos que deixam transparecer o econômico, o social, o lúdico e o étnico. Um sistema cultural que espelha o sin-cretismo e a extrema capacidade adaptativa do povo brasileiro,

ASSISTÊNCIA RELIGIOSA

A RELIGIOSIDADE COMO GARANTIA DE DIREITOS NO SIS-TEMA SOCIOEDUCATIVO

Leila Mayworm Costa1 Talita Aguiar Bittencourt Figueiredo2

Rivane de Oliveira Ribas3

1 Diretora da Divisão de Serviço Social Novo Degase.2 Assistente Social Novo Degase. Divisão de Serviço Social. 3 Assistente Social Novo Degase. Divisão de Serviço Social.

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capaz de absorver características externas e transformá-las.

Em certo sentido, o achamento do Brasil esteve inserido dentro do ideal de cruzada presente em Portugal. Os lusos desbravavam os oceanos em busca de cristãos e especiarias, pretendendo cristiani-zar o mundo e encontrar riquezas que pudessem ser comercializa-das. Portanto, a origem do processo de ocupação territorial da Terra de Santa Cruz serviu, de certa forma, às intenções da Igreja Católica.

Os portugueses que vieram para o Brasil estiveram inseri-dos no universo mental de seu tempo e espaço, adotando o cato-licismo como insígnia do poder da coroa. Diante desta concepção, todo não católico foi considerado um inimigo em potencial. A não aceitação da fé em Cristo foi con-siderada como contestação do poder do rei e afronta direta a todo português, uma motivação que incentivou, dentre outros fatores, o extermínio dos indíge-nas, vistos como pagãos e infiéis.

Dentro desse contexto, a construção de igrejas passou a delimitar a conquista territorial, garantindo a soberania do Estado perante os gentis, criando meca-nismos de conversão forçada dos nativos e aculturação em prol dos valores europeus.

Pelo prisma dos indígenas, a alternativa foi partir rumo ao inte-

rior, entregando-se a movimentos messiânicos como a busca da terra sem mal, abrindo espaço para os rituais que pudessem “maquiar” suas crenças, compondo um sin-cretismo religioso em que os ritos incorporam elementos do sagrado, como forma de sobrevivência social e cultural diante de todo o processo de demonização de suas crenças, de sua relação com a natureza e de suas percepções do meio social.

Também não possuindo outra opção, os africanos escravizados foram obrigados a aceitar oficial-mente os preceitos e os dogmas da Igreja Católica, mas encontraram meios de ocultar seus próprios ritos e credos dentro do sistema simbólico cristão, originando prá-ticas religiosas afro-brasileiras.

Dessa mistura rica de crenças, da qual faz parte até mesmo o pro-testantismo, nasceu a religiosidade brasileira, apegada ao tradiciona-lismo católico e, simultaneamente, aberta e tolerante a novas religi-ões. As representações religiosas encontram-se historicamente nos diversos aspectos da vida social e nos espaços de pobreza e privação de liberdade, como elemento de “alívio ao sofrimento e salvação da alma”. As relações entre Estado e Igreja vão compor a lógica e a ordenação da vida social até 1891, com a Proclamação da República e a promulgação do Código Penal. A religião passa a ter reduzido o

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ASSISTÊNCIA RELIGIOSA

Aseu poder político, contudo vale destacar que sua ação caritativa e filantrópica ocupa extenso espaço na vida social.

Assistência Religiosa no DEGASE

No cenário institucional e em particular no DEGASE, que atua na execução da Política de Atendi-mento a jovens em cumprimento de Medidas Socioeducativas, a proposta de acompanhamento aos jovens e seus familiares está pautada nos preceitos Constitu-cionais (Constituição Federal de 1988), no ECA (lei 8069, de 1990), que preconiza sobre a Proteção Integral, e no Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE) de 2012, que aponta para a construção de novas propostas metodológicas e novos paradigmas no campo do atendimento aos ado-lescentes. O objetivo é humanizar as etapas de acompanhamento, visando a adesão dos adolescen-tes às propostas socioeducativas e sua percepção enquanto sujeitos de direitos, dando visibilidade às ações desenvolvidas e descons-truindo o viés de caráter punitivo, operacionalizando as Medidas Socioeducativas, sem a banalização das questões a elas relacionadas.

Assim, prestar assistência religiosa aos adolescentes inter-

nados nas unidades do Sistema Socioeducativo está plenamente de acordo com o sentido da prática da Assistência Social. A legislação específica para adolescentes em conflito com a lei incorpora os avan-ços registrados na Constituição Federal do Brasil (BRASIL, 1988) no que tange à assistência religiosa. O mesmo ocorre com o que está previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, 1993). Em seu artigo 94, encontra-se: “As entidades que desenvolvem programas de internação têm as seguintes obrigações, entre outras: XII – propiciar assistência religiosa àqueles que desejarem, de acordo com suas crenças”. E, no artigo 124, lê-se: “são direitos do adoles-cente privado de liberdade, entre outros, os seguintes: XIV – receber assistência religiosa, segundo sua crença e desde que assim o deseje”.

Em 2008, o DEGASE, visando o levantamento do perfil da assistência religiosa no sistema socioeducativo do Rio de Janeiro, formaliza convênio com o ISER (Instituto Superior de Estudo da Religião) para a realização de pes-quisa científica sobre a Assistência Religiosa. Assim sendo, obser-vou-se, a partir dos registros documentais de 2012, um movi-mento da Divisão de Serviço Social no caminho da escuta em relação aos citados grupos e outros encaminhamentos.

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Cumpre destacar que, em 2013, ao convidarmos os represen-tantes das instituições religiosas, discorremos sobre a Política de Atendimento Socioeducativo, na perspectiva da Doutrina da Proteção Integral, sem banali-zar as questões que perpassam a historicidade do adolescente, sua responsabilização frente à prá-tica do ato infracional, o papel do Estado no campo da garantia dos direitos preconizados pelo SINASE (2012) e o ECA (1990).

Apontamos, ainda, sobre a importância das atividades religio-sas nos espaços socioeducativos, sua dimensão subjetiva frente à liberdade de crença, numa pers-pectiva de educação em valores humanos, contribuindo no desen-volvimento espiritual, moral, intelectual, físico e vocacional dos adolescentes. A espiritualidade como possibilidade de o adoles-cente refletir sobre sua história, o ato ilícito numa perspectiva de redimensionamento de sua vida, seus projetos, seu potencial trans-formador se vinculado à dimensão educativa e pedagógica com cará-ter marcado pautado em vivências nos espaços de privação de liber-dade, que o permitam desconstruir valores negativos e discutir valo-res universais como o amor, a paz, a solidariedade, a ética .

Como fruto do processo refle-xivo junto aos grupos religiosos,

no período de 2013 a 2016, no caminho da construção de novas práticas, surgiram ricas experiên-cias do trabalho realizado e das propostas elencadas a seguir:

A solicitação de espaços pró-prios nas unidades para a realização das atividades reli-giosas; Implantação de espaços diferenciados como o sugerido ao longo deste documento: CASAS DE MÃE; Feiras Ecumênicas abertas aos diversos segmentos: familiares, adolescentes e profis-sionais; Cadastro das Instituições Religiosas; Criação de Termo de Compromisso dos Assistentes Religiosos com o DEGASE, para o provimento e a visibilidade das atividades religiosas nas unidades; Inserção, na ficha de recepção do adolescente, sobre a sua crença religiosa e o desejo de receber assistência religiosa segundo a sua concepção (já com-templado); Atividades Culturais (Dia das Mães e outras ativida-des); Trabalho com famílias nas unidades; Capacitação dos assis-tentes religiosos (mediação de conflitos, direitos humanos, etc...); Direção das unidades (compro-metimento e participação com o processo religioso); Conhecer as Unidades do DEGASE que estão localizadas no interior do Estado (Campos, Volta Redonda, etc...); Adoção de ações para o atendimento às demandas dos adolescentes e de seus familiares no contexto social em que vivem,

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ASSISTÊNCIA RELIGIOSA

Avisando contribuir no processo de resgate à cidadania, acesso a direitos sociais e etc...; Encontros Trimestrais para avaliação dos trabalhos e novas propostas e encaminhamentos; Elaboração de material sobre a Assistência Religiosa no DEGASE: carti-lhas, folder, etc...; Criação de um Fórum Permanente sobre Assistência Religiosa; Agenda das Atividades Religiosas nas unidades, afixada em local visível; Espaço Multimídia com recursos, tais como: som, projetor TV etc...; Confecção de material educativo/ilustrativo sobre os Fundamentos do Trabalho Religioso: concei-tos éticos, valores, e orientações sobre apoio aos egressos, junto às instâncias de cumprimento das MSEs em meio aberto; A participação dos Assistentes Religiosos nos Fóruns de dis-cussão junto à sociedade civil e política em torno de questões como a redução da maioridade penal. OBS.: Ressaltamos sobre a Agenda Política dos Conselhos de Direitos através das Conferências Municipal, Estadual e Nacional;

Do processo de discussão e das trocas de experiências nos encontros da Divisão de Serviço Social junto aos Assistentes Religiosos, nasceu um movimento do grupo para a construção da carta de princípios da assistência religiosa nas unidades do DEGASE, publicada em 27 de agosto de 2015, no Diário Oficial do Estado do Rio de Janeiro, visando

a Regulamentação da Prestação da Assistência Religiosa no DEGASE.

Carta de Princípos da Assistência Religiosa nas Unidades do DEGASE

Com o objetivo de atender aos preceitos constitucionais e em conformidade com o que passou a chamar-se Sistema Socioeducativo, ocorrido na vigên-cia da Constituição da República de 1988, houve a descentralização político-administrativa. A criação do Novo DEGASE ocorreu a par-tir da interlocução do Governo Estadual com o Centro Brasileiro para Infância e Adolescência (CBIA) – órgão do Governo Federal no período de 1991 a 1994 – em consonância com as diretri-zes políticos-governamentais de promoção, defesa e garantia de direitos de proteção legal. Neste período, houve absorção integral dos adolescentes atendidos pela CBIA, o mesmo não ocorrendo com as instalações físicas, fato que acarretou demandas específicas no atendimento.

Dessa forma, a descentrali-zação física se une à gerencial, envolvendo todos os Sistemas de Garantias de Direitos da Criança e do Adolescente previstos para diminuição do ingresso e da rein-cidência à instituição.

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Deveres do DEGASE

1. Estabelecer, em cada unidade, horário fixo semanal, definido em comum acordo com o grupo que prestará Assistência Religiosa, de modo que todos os adolescentes da unidade possam ter acesso aos encontros, sem in-terferência de outras atividades, com exceção de atividades im-prescindíveis ao desenvolvimento dos adolescentes;

2. Facilitar o acesso de todos os adolescentes que dese-jem comparecer aos encontros da Assistência Religiosa;

3. Prover aos Assistentes Reli-giosos a segurança necessária e um local adequado para desempenha-rem o seu trabalho;

4. Garantir um tempo mínimo de uma hora para cada momento de Assistência Religiosa;

5. Prover apoio para o uso de aparelhos de som e imagem para a realização das ati-vidades de Assistência Religiosa, mediante prévio acerto com a direção da unidade;

6. Manter-se em contato com cada grupo religioso, designando funcionários de referência para esse fim, tanto nas unidades como no nível da Direção Geral;

Deveres dos grupos religiosos

i. Credenciar-se junto à Direção Geral / Divisão de Serviço Social do DEGASE e da unidade em que vai trabalhar;

ii. Fornecer à Divisão de Serviço Social uma relação com o nome completo e dados pessoais dos assistentes religiosos creden-ciados (documento de identidade, residência, telefone e e-mail) e mantê-la atualizada. Em caso de alterações no grupo, informar saí-das e novas adesões.

iii. Dar lugar de relevo, em suas atividades, a tudo que possa contribuir para a educação dos ado-lescentes, favorecendo a formação de pessoas autônomas, cidadãos solidários e profissionais compe-tentes, possibilitando a construção de projetos de vida e convivência familiar e comunitária;

iv. Não criticar ou depreciar doutrinas, ensinamentos ou práticas de outras igrejas ou grupos empe-nhados na assistência religiosa;

v. Participar de ações conjun-tas com o DEGASE e outros grupos religiosos em favor dos adolescen-tes e de suas famílias;

vi. Manter contatos amistosos com os demais grupos religiosos, visando cooperar para a formação dos adolescentes e oferecer apoio a suas famílias;

vii. Informar ao DEGASE atra-vés da Direção da Unidade e/ou

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ASSISTÊNCIA RELIGIOSA

Ada Divisão de Serviço Social qual-quer fato ou situação que interfira negativamente no trabalho de assistência religiosa ou na garantia dos direitos dos adolescentes.

Entidades religiosas participantes

Arquidiocese de São Sebas-tião da Cidade do Rio de Janeiro; Centro Integrado de Evangelismo em Missões; Convenção Batista Carioca; GEID – Grupo de Estu-dos Integrais Demétrios; Junta Batista de Missões Nacionais; Igreja Adventista Pentecostal; Igreja Assembleia de Deus Minis-tério Boa Esperança; Igreja Assembleia de Deus Tabernáculo da Adoração; Igreja Evangélica Bola de Neve; Igreja Ministério a Videira; Igreja Quadrangular / Grupo Etos; Igrejas Assembleia de Deus; Igreja Unidade em Cristo; Igreja Universal do Reino de Deus; Igreja Vivendo em Graça; Pastoral da Juventude da Igreja Metodista do Brasil; Paró-quia Nossa Senhora Aparecida.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, 1988.

__________. Estatuto da Criança e do Adolescente: Lei 8.069/90, de 13 de julho de 1990. Brasília: Senado Federal, 1993.

COSTA, Leila Mayworm. Pensando a Religiosidade como Garantia de Direitos no Sistema Socioeducativo: Contribuições da Assistência Religiosa no Campo Socioeducativo. DEGASE, Setembro/2015.

SIMÕES, Pedro (org.). Comunicações do ISER / Instituto Superior de Estudos da Religião. Ano 1. n. 1 (1982). Rio de Janeiro: ISER, ano 29, n.64, 2010.

Religião e Religiosidade no Brasil. In: Para Entender a História.... Ano 1. Volume ago., Série 29/08, 2010. p. 01-06.

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O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA, Lei 8069/1990) define o ato infracional como uma ação praticada por criança ou adolescente, caracterizada na lei como crime ou contravenção penal (Artigo 103).

Só há ato infracional se aquela conduta corresponder a uma hipótese legal que determine san-ções ao seu autor. Além disso, só se considera o adolescente como autor de ato infracional quando, depois de transitado um processo judicial, se comprova a sua res-ponsabilidade no cometimento do ato. O Estatuto da Criança e do Adolescente, assim como a

Constituição Federal (Direitos e Garantias Fundamentais), prevê que nenhum adolescente será res-ponsabilizado ou privado de sua liberdade sem o devido processo legal. Quanto às idades de respon-sabilização jurídica, a lei brasileira define que Criança é toda pessoa com até 12 anos de idade incomple-tos, e Adolescente aquela pessoa com idade entre 12 e 18 anos de idade (Estatuto da Criança e do Adolescente, Art. 12). Por sua vez, a Convenção sobre os Direitos da Criança (CDC) da ONU, Resolução 44/25 de 20 de novembro de1989, ratificada pelo Brasil por meio do Decreto nº 99.710 de 21 de setem-

ATO INFRACIONAL

Rosimere de Souza1

1 Mestre em Serviço Social pela PUC Rio (1997) e especialista em direitos huma-nos de crianças e adolescentes. Possui experiência em gestão de organizações da sociedade civil, programas e projetos sociais e pesquisas com abordagem quan-titativa e qualitativa em nível nacional, estadual e local, nos temas de assistên-cia social; defesa de direitos de crianças, adolescentes e mulheres. Trabalhou no atendimento social em casos de assistência jurídico social de adolescentes infra-tores e coordenou a pesquisa nacional“Análise da dinâmica dos programas e da execução dos programas e serviços de atendimento aos adolescentes em cumpri-mento de medidas socioeducativas em meio aberto - Liberdade Assistida / LA e Prestação de Serviços à Comunidade / PSC” (IBAM/SDH-PR/CONANDA, 2014). Compõe o quadro de professores da Escola Nacional de Serviços Urbanos do IBAM (ENSUR), além de colaborar com a construção de conteúdos dos cursos de educação à distância, desenvolvidos pela Escola em parceria com a UNIASSELVI, o IBAM/MDS e outros clientes. Desde 2003, coordena o Programa Gestão Pública e Direitos Humanos no IBAM.

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ATO INFRACIONAL

Abro de 1990, define em seu artigo 1º que “Criança é todo ser humano menor de 18 anos, salvo se, nos termos da lei que lhe for aplicável, atingir a maioridade mais cedo”. Vale ressaltar que a legislação bra-sileira adota as disposições dos instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos de crianças e adolescentes.

No que diz respeito à impu-tabilidade e à inimputabilidade penal do adolescente – , ou seja, a avaliação da capacidade que tem a pessoa que praticou certo ato (crime ou contravenção penal) de entender o que está fazendo e de poder determinar se, de acordo com esse entendimento, será ou não legalmente punida.Tanto a Constituição Federal (art. 228), quanto o Estatuto da Criança e do Adolescente (art. 104) e o Código Penal (art. 27) afirmam que o ado-lescente autor de ato infracional é inimputável penalmente, ou seja, não tem responsabilidade penal e, por isso, é submetido a uma res-ponsabilização jurídica especial, no caso a Lei Nº 8069/1990 e a Lei Nº 12.594/ 2012, também conhe-

cida como Lei de Execução das Medidas Socioeducativas2.

Já é aceito por todos os países e todas as sociedades, que uma criança ou adolescente que co-mete uma infração penal requer proteção e tratamento especial. Isto é um fato reconhecido, em ní-vel internacional, pela existência de instrumentos especificamente elaborados para proteger os direi-tos e interesses do infrator juvenil. Este conjunto de instrumentos in-ternacionais integra o Sistema Internacional de Justiça Juvenil.

No Brasil, quando uma Criança comete um ato infracional, aplicam-se as medidas de proteção, definidas no Artigo 101, incisos I a VI do Estatuto da Criança e do Adolescente. Nesse caso, o órgão responsável pelo atendimento é o Conselho Tutelar. Essas medidas poderão ser aplicadas também pelo juiz, ao adolescente que come-teu ato infracional, sendo elas:

• encaminhamento aos pais ou responsável, mediante termo de responsabilidade;

• orientação, apoio e acom-panhamento temporários;

2 A Lei Nº 12.594, de 18 de Janeiro de 2012, institui o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE), regulamenta a execução das medidas socioeducativas destinadas a adolescente que pratique ato infracional; e altera as Leis nos 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente); 7.560, de 19 de dezembro de 1986, 7.998, de 11 de janeiro de 1990, 5.537, de 21 de novembro de 1968, 8.315, de 23 de dezembro de 1991, 8.706, de 14 de setembro de 1993, os Decretos-Leis nos 4.048, de 22 de janeiro de 1942, 8.621, de 10 de janeiro de 1946, e a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), aprovada pelo Decreto-Lei no 5.452, de 1o de maio de 1943.

DICIONÁRIO DO SISTEMA SOCIOEDUCATIVO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

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• matrícula e frequência obri-gatórias em estabelecimento oficial de ensino fundamental;

• inclusão em programa comunitário ou oficial de auxílio à família, à criança e ao adolescente;

• requisição de tratamento médico, psicológico ou psiqui-átrico, em regime hospitalar ou ambulatorial; inclusão em pro-grama oficial ou comunitário de auxílio, orientação e tratamento a alcoólatras e toxicômanos.

Já o ato infracional cometido por Adolescente deve ser apurado pela Delegacia da Criança e do Adolescente, a quem cabe encami-nhar o caso ao Promotor de Justiça e ao Juiz da Vara de Proteção à Criança e ao Adolescente - ou a que possua atribuição nesta matéria -, e poderá ser concedida a remissão (o perdão) ou a aplicação de uma das medidas socioeducativas pre-vistas no Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei 8.069/90.

Tais medidas podem ser:i. advertência;ii. obrigação de reparar o dano;iii. prestação de serviços à

comunidade;iv. liberdade assistida;v. inserção em regime de

semiliberdade;vi. internação em estabeleci-

mento educacional;vii. qualquer uma das previs-

tas no art. 101, incisos I a VI.

As medidas socioeducativas constituem parte do sistema de responsabilização jurídica espe-cial, que apresenta perspectivas diferenciadas do sistema cri-minal adulto fundamentado na ideia de pena, aplicadas aos ado-lescentes sobre os quais se verifi-cou a prática de ato infracional. Nelas estão presentes dois ele-mentos que traduzem a sua finalidade: defesa social e inter-venção educativa. Isto significa dizer que, as medidas socioedu-cativas possuem uma natureza sociopedagógica condicionada à garantia de direitos fundamen-tais e ao desenvolvimento de ações que visem à formação para o exercício da cidadania.

Assim, as medidas socioedu-cativas podem ser consideradas como a resposta dada pelo Estado à prática do ato infracional, cuja finalidade visa favorecer a eman-cipação e o protagonismo do adolescente, pessoa em condi-ção peculiar de desenvolvimento individual e social conforme reza o artigo 6º do ECA.

Isto significa que os agentes envolvidos com o atendimento socioeducativo precisam, portanto, estimular os adolescentes nestas circunstâncias, ou seja, em cumpri-mento de medida socioeducativa, a organizar um projeto de vida, defi-nindo objetivos e metas alcançáveis, tendo em vista a transformação de

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ATO INFRACIONAL

Avalores e atitudes, matéria-prima da prática socioeducativa.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição Federal. Brasília, 1988.

BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei Federal nº. 8.069 de 13 de julho de 1990, lei n.8.242, de 12 de outubro de 1991, e convenção sobre os direi-tos da criança.. Brasília: Câmara dos Deputados, Coordenação de Publicações, 2003.

BRASIL. Lei Federal nº 8.069/1990. Estatuto da Criança e do Adolescente. Brasília, 1990.

BRASIL. Lei Federal nº 12.594/2012. Lei do SINASE.Brasília, 2012.

SOUZA, Rosimere de; LIRA, Vilnia Batista. Caminhos para a municipalização do atendimento socioeducativo em meio aberto: liberdade assistida e prestação de serviços à comunidade. Rio de Janeiro: IBAM/DES; Brasília: SPDCA/SEDH, 2008.

DICIONÁRIO DO SISTEMA SOCIOEDUCATIVO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

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CCENSE GELSO DE CARVALHO AMARAL (GCA)

Miguel Ângelo Vilela de Souza1

O Centro de Socioeducação Professor Gelso de Carvalho Amaral (CENSE GCA), é uma unidade administrativa do Departamento Geral de Ações Socioeducativas do Rio de Janeiro (NOVO DEGASE) e vinculado à Secretaria de Estado da Educação. Sua principal atribuição é de aco-lher todos os adolescentes do sexo masculino que estão em conflito com a lei por motivo de cometi-mento de ato infracional e, por isso, apreendidos, oriundos de todo o estado do Rio Janeiro. Assim aco-lhidos e atendidos pela equipe, os adolescentes são encaminha-dos às unidades de acordo com a determinação judicial, sejam elas medidas protetivas ou medidas socioeducativas, previstas nos artigos 101 e 112 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

A unidade CENSE GCA foi inaugurada em 30 de junho de 2010, configurando atualmente como a principal porta de entrada do sis-tema socioeducativo no estado. Assim, a unidade tem o intuito de substituir o antigo Centro de Recepção e Triagem (CTR) fun-dado em 1997, que tinha como objetivo acolher todos os adoles-centes apreendidos no estado por um período máximo de três dias. Inaugurado em 2002 ao lado do CTR, o Núcleo de Biopsicossocial Anita Heloisa Mantuano aliou-se ao CTR no sentido de desenvol-verem um trabalho voltado para uma efetiva Socioeducação. Dessa forma, em junho de 2010, tem-se um novo conjunto arquitetônico e, com a associação das duas institui-ções, tem-se uma transformação deste espaço de acolhimento do adolescente em conflito com a lei

1 Licenciatura Estatística e processamento de dados. Pós Graduação em Engenharia Economica e organização Industrial (CPUERJ) Diretor Cense GCA.

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CENSE GELSO DE CARVALHO AMARAL (GCA)

Cque vai ao encontro das principais normativas legais para a garan-tia dos direitos da infância e da juventude brasileira (para as quais ressaltamos o ECA e o Sistema Nacional Socioeducativo). Assim, tem-se “uma Unidade efetiva-mente voltada para a socioeduca-ção. Um local onde os profissionais têm condições efetivas de trabalho, o que alavanca em muito o acolhi-mento e o atendimento dos diver-sos adolescente e seus familiares”. (CENSE GCA, 2015, p. 8).

Atualmente, o CENSE GCA está localizado na Ilha do Governador, na capital do estado, e continua a receber a maior parte dos adolescentes apreendidos em todo o estado. Com a inau-guração do CENSE Professora Marlene Henrique Alves, locali-zado em Campos dos Goytacazes, e do CENSE Irmã Assunción de La Gándara Ustará, localizado em Volta Redonda, os adolescen-tes em conflito com a lei apreen-didos na região Norte e Noroeste Fluminense bem como na Costa Verde estão sendo devidamente encaminhados a estas unidades. Assim, ressaltamos que o CENSE GCA recebe e acolhe, além dos adolescentes apreendidos na capi-tal, também aqueles oriundos da Baixada Fluminense, da região Metropolitana, da região Serrana e da região litorânea. Com uma área de abrangência grande,

implica uma diversidade absoluta de idades e de atos infracionais, necessitando de uma equipe mul-tiprofissional e integrada na dire-ção de seu trabalho.

Com o principal objetivo de “promover uma Intervenção Social, através das ações socioe-ducativas [...] contribuindo para a construção de sua identidade, de modo a favorecer a elaboração de um projeto de vida” (CENSE GCA, 2015, p. 13), a unidade conta com duas principais frentes de traba-lho para realiza-lo: o acolhimento e o atendimento do adolescente apreendido e o acolhimento e o atendimento de seus familiares.

Assim, todos os adolescen-tes que chegam ao CENSE GCA devem ser encaminhados para o atendimento individual no núcleo biopsicossocial, que hoje não é um anexo da unidade, mas, sim, faz parte dela, sendo atendidos pela equipe técnica do Serviço Social ou da Psicologia, além dos atendimentos com as equipes de enfermagem, médica, odon-tológica e psiquiátrica, quando necessário. O acolhimento e o atendimento têm se demonstrado muito importante por se tratar do primeiro atendimento do adoles-cente no sistema socioeducativo, sendo um espaço para acolher suas demandas, refletir sobre seus projetos de vida e discutir direções sobre a situação jurídica.

DICIONÁRIO DO SISTEMA SOCIOEDUCATIVO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

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Outro importante trabalho desenvolvido pela unidade está no acolhimento e no atendimento familiar, que é realizado na uni-dade de segunda a sexta-feira e aberto à demanda espontânea, não sendo necessário marcar o atendi-mento com a equipe. Este trabalho visa a reconhecer o adolescente em conflito com a lei como um sujeito de direitos e, assim, garantir que sua família receba todas as orien-tações necessárias sobre a situação jurídica do adolescente e também promover um breve encontro com seus familiares. É pertinente ressaltar que, muitas vezes, é na unidade em que ocorre o primeiro contato da família com o adoles-cente desde a sua apreensão, sendo importante desenvolver um espaço de orientações a respeito dos enca-minhamentos que serão tomados da situação de cada adolescente e a escuta da família para receber as suas demandas. Com uma concep-ção de família pautada no Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária (BRASIL, 2006), o acolhimento familiar é realizado primando pelos reais laços afetivos dos adolescentes. É interessante ressaltar que o aten-dimento familiar também inclui situações de adolescentes liberados ou em medidas socioeducativas em meio aberto, sendo também

um espaço para encaminhamentos dessas famílias e reflexões.

Dessa forma, o CENSE GCA, pautado na Doutrina de Proteção Integral e nas normativas refe-rentes à infância e à juventude brasileira, direciona-se eticamente de forma a garantir a viabilização de sua missão, que é recepcionar e acolher os jovens apreendidos em razão de cometimento de ato infra-cional e suas respectivas famílias, executando, garantindo e intro-duzindo as ações socioeducativas precípuas ao Sistema de Garantia de Direitos, desde o acolhimento até o desligamento do CENSE GCA, através dos múltiplos aten-dimentos em consonância com as legislações pertinentes e com o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE), promo-vendo a inserção/reinserção destes jovens no novo paradigma da Socioeducação e da Doutrina da Proteção Integral, alinhando-se, assim, às concepções, aos objetivos e às metas estabelecidas no Plano de Atendimento Socioeducativo do Estado do Rio de Janeiro (PASE) e com o Projeto Pedagógico Institucional (PPI) do DEGASE – RJ (CENSE GCA, 2015, p. 12).

REFERÊNCIAS

BRASIL. Lei 8.069 de 13 de julho de 1990: Dispõe

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CENTRO DE REFERÊNCIA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL (CRAS)

Csobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências.

______. Lei 12.594 de 18 de janeiro de 2012: Institui o Sistema Nacional de Atendimento Sócioeducativo.

______. Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa

do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária. Brasília: CONANDA, 2006.

CENSE GCA. Projeto Político Pedagógico do Centro de Socioeducação Professor Gelso de Carvalho Amaral. Rio de Janeiro: NOVO DEGASE, 2015.

CENTRO DE REFERÊNCIA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL (CRAS)

Viviane Pereira da Silva1

A maturação da assistência social enquanto política pública alcança somente cinco anos após a promulgação da Constituição Federal de 1988, na Lei Orgânica da Assistência Social – LOAS2 – o ponto mais alto no que se refere a sua regulamentação e orga-nização no marco dos anos 90. As leituras e análises realizadas sobre a temática nos permitem afirmar que a conformação desta política no campo dos direitos

ocorreu de forma tardia, embora grande parte dos autores desta-que que na área “a intervenção do Estado brasileiro institucional-mente organizado data da década de 1940 com a criação da LBA” (BOSCHETTI 2003:42).

Nas últimas décadas, as for-mulações teóricas referentes à política pública de assistência social têm se adensado progres-sivamente. No debate, estão pre-sentes referências fundamentais

1 Doutoranda e Mestre pelo Programa de Estudos de Pós-Graduados em Política Social da Universidade Federal Fluminense – UFF. Especialista em Gestão Pública pela Universidade Cândido Mendes – UCAM. Graduada em Serviço Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. Gerente do Centro de Capacitação da Política de Assistência Social da SMDS/RJ. 2 Lei nº 8.742, de 7 de dezembro de 1993, alterada pela LEi 12.435/11.

DICIONÁRIO DO SISTEMA SOCIOEDUCATIVO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

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e os desafios implicados ao pano-rama vigente, produto de um cenário que ao se democratizar se transforma, desencadeando novos conhecimentos, ressignificando as práticas profissionais. A assistên-cia social passou por um processo de “metamorfose”, ainda incon-cluso, marcado pela mudança de diferentes paradigmas.

Nesta moldura, o Sistema Único de Assistência Social (SUAS), instituído pela Resolução nº 130 de 15 de julho de 2005 do Conse-lho Nacional de Assistência Social (CNAS), é um sistema descentrali-zado e participativo que disciplina a gestão da política de assistência social no território brasileiro, de-finindo os parâmetros para a pro-teção social não contributiva por intermédio da gestão comparti-lhada e cooperação técnica entre os entes federativos. As ações do Sis-tema estão estruturadas em duas modalidades: Proteção Social Bá-sica e Proteção Social Especial de Média e Alta complexidade. Nessa perspectiva, a implementação do SUAS é operacionalizada mediante a instalação de unidades que atuam de forma territorial corporificando a presença do Estado no território.

Nesse cenário, uma nova nomenclatura assume centralidade no âmbito da política de assistên-cia social o – CRAS – que se traduz numa base física de sustentação do SUAS, “unidade pública que concretiza o direito socioassisten-cial quanto à garantia de acessos a serviços de proteção social básica com matricialidade sociofamiliar e ênfase no território de referência” (BRASIL, 2006:11). Nos últimos anos, houve uma significativa ampliação do número de CRAS, inaugurando uma nova identidade para a assistência social brasileira, a partir da lógica preventiva. Os dados do Censo SUAS3 2015 sinali-zam que em 2007 havia 4195 CRAS no território brasileiro, ao passo que em 2015 o quantitativo passou para 8155. Este aumento considerá-vel nos remete ao entendimento de que a implantação dos serviços de proteção social básica vem adqui-rindo novos contornos. De acordo com o levantamento supracitado, 49,1% dos CRAS estão localizadas nos municípios de Pequeno I4. A região sudeste concentra o maior quantitativo de unidades, aproxi-madamente, 34,4%. Minas Gerais é o estado que possui o maior

3 Monitoramento, realizado desde 2007, consiste na unificação de duas impor-tantes ferramentas do processo de Monitoramento do SUAS, os Censos CRAS e CREAS, possibilitando a produção de dados sobre a realidade, sendo funda-mentais para a qualidade dos serviços socioassistenciais, da gestão e do controle social da política de assistência social.4 Municípios com população de até 20.000 habitantes.

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CENTRO DE REFERÊNCIA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL (CRAS)

Cquantitativo de CRAS, cerca de 1.132 unidades. O estado do Rio de Janeiro, por sua vez, conta na sua estrutura com 450 CRAS. No tocante às formas de acesso dos usuários, a maioria, 50,9 % chega ao CRAS por demanda espontânea e 23,1% por busca ativa (BRASIL/MDS, Censo SUAS 2015).

Do ponto de vista objetivo, a intervenção do CRAS aponta para a prevenção da ocorrência de situ-ações de vulnerabilidades e ris-cos sociais através de três linhas interventivas: desenvolvimento de potencialidades e aquisições; for-talecimento de vínculos familia-res e comunitários; e ampliação do acesso aos direitos de cidadania (BRASIL/MDS, 2009). Com relação às funções destas unidades, pode-mos sumariá-las em dois eixos com-plementares e interdependentes: a) gestão territorial da Proteção Social Básica, b) oferta de serviços socio-assistenciais, dentre eles o Serviço de Proteção e Atendimento Integral à Família – PAIF. No tocante ao último, é importante destacar que deve ser ofertado exclusivamente no CRAS. Desse modo, o funcio-namento da unidade está condicio-nado, necessariamente, à oferta do serviço em questão. Dentre as famí-lias que constituem o público alvo do PAIF podemos citar:

Famílias beneficiárias de progra-mas de transferência de renda e

benefícios assistenciais; famílias que atendem os critérios de ele-gibilidade a tais programas ou benefícios, mas que ainda não foram contempladas; famílias em situação de vulnerabilidade em decorrência de dificuldades vi-venciadas por algum de seus membros; pessoas com defici-ência e/ou pessoas idosas que vivenciam situações de vulnera-bilidade e risco social(BRASIL, 2009, p.11)

A rigor, é no âmbito dos CRAS que a proteção social se territorializa, aproximando-se da população. O CRAS assume dois grandes pilares do SUAS: a matri-cialidade sociofamiliar e a territo-rialização. A Política Nacional de Assistência Social (PNAS/2004) requisita um movimento de apro-ximação com o cotidiano das fa-mílias e indivíduos, e considera que riscos e vulnerabilidades são gestados diariamente. Desse modo, a definição de estratégias interventivas nos territórios su-põe a organização da oferta de acordo com as demandas susci-tadas em âmbito local. Deve-se “[...] valorizar e fortalecer capa-cidades e potencialidades das fa-mílias; acreditar na capacidade da família e trabalhar com vul-nerabilidades, riscos e potenciali-dades”. (BRASIL 2005, p.17).

O referenciamento5 das famí-lias aos CRAS ocorre de forma

DICIONÁRIO DO SISTEMA SOCIOEDUCATIVO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

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territorializada e denota múltiplos desafios, principalmente porque o atendimento/acompanhamento familiar requer a valorização das heterogeneidades e vicissitudes dos distintos grupos familiares. A preservação da identidade e sin-gularidade; o respeito da história de vida; a possibilidade de ava-liação do serviço prestado, dentre outros, constituem direitos dos usuários dos CRAS. Mais substan-tivamente, é oportuno salientar o fato de que o CRAS deve oportu-nizar a democratização do acesso aos direitos socioassistenciais. Avançar nesse processo requer novas estratégias de intervenção que fomentem, sobretudo, o pro-tagonismo e a participação dos usuários nestas unidades.

Deve-se salientar ainda, que a capacidade de atendimento do CRAS é definida a partir da conju-gação de elementos como: porte do município e número de famílias em situação de vulnerabilidade social, em conformidade com a NOB-SUAS/2005, estruturada da seguinte forma: CRAS em terri-tório referenciado por até 2.500 famílias - capacidade de atendi-mento: até 500 famílias/ano; CRAS em território referenciado por até 3.500 famílias - capacidade de atendimento: até 750 famílias/ano;

CRAS em território referenciado por até 5.000 famílias - capacidade de atendimento: até 1.000 famílias/ano (BRASIL,2005).

Compreendemos que, se por um lado, no circuito da proteção social básica as marcas de rees-truturação são nítidas, cabendo destaque a expansão das unidades públicas, conforme men cionado anteriormente, e a organização dos serviços direcionada pela Tipificação Nacional dos Serviços Socioassistenciais, por outro lado, são expressas distorções na com-preensão acerca do papel dos CRAS. É inconteste a necessi-dade de adoção de mecanismos que fomentem o fortalecimento da identidade dos CRAS, enquanto “portas de entrada” para o SUAS. Posta a dinâmica sinalizada, é imprescindível a desconstrução do rótulo do CRAS, enquanto unidade que apenas é responsável pela ope-racionalização de benefícios de transferência de renda, ou seja, do local responsável pelo “cadastro do Programa Bolsa Família”.

Relativamente permanece o desafio de repensar as formas de intervenção no CRAS como um todo, articulando o PAIF com as demais ações, a partir de metodo-logias de trabalho que garantam a permanência dos usuários nos

5 O conceito de “família referenciada” se refere à unidade de medida de famílias que vivem em territórios vulneráveis e são elegíveis ao atendimento ofertado no CRAS instalado nessas localidades.

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CENTRO DE REFERÊNCIA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL (CRAS)

Cserviços. Associado a este desafio, é importante sublinhar a neces-sidade de avançarmos no debate sobre a referência e contrarrefe-rência no campo da assistência social, uma vez que é indispensá-vel a integração entre os níveis de proteção social do SUAS. Nesse sentido, a atuação do CRAS deve estar conectada com as demais unidades que constituem a rede sociossistencial no território, uma vez que o seu papel não limita aos muros da unidade.

REFERÊNCIAS

BOSCHETTI, Ivanete. Assis-tência Social no Brasil: um direito entre originalidade e conservado-rismo. 2ª ed. Brasília: UNB, 2003.

BRASIL. Presidência da Repú-blica. Lei Orgânica da Assistência Social. Lei nº. 8.742, de 7 de dezem-bro de 1993.

_______.Ministério do Desen-volvimento Social e Combate a Fome. Conselho Nacional de Assis-tência Social. Resolução nº 145, de 15 de outubro de 2004. Política Nacional de Assistência Social – PNAS. Brasília, 2004.

_______.Ministério do Desen-volvimento Social e Combate a Fome. Conselho Nacional de Assistência Social. Resolução nº 130, de 15 de julho de 2005. Norma Operacional Básica do Sistema Único de Assistência Social – NOB SUAS. Brasília, 2005.

_______.Ministério do Desen-volvimento Social e Combate a Fome. Conselho Nacional de Assis-tência Social. Resolução nº 109, de 11 de novembro de 2009. Aprova a Tipificação Nacional de Serviços Socioassistenciais. Brasília, 2009.

_______.Ministério do Desen-volvimento Social e Combate à Fome. Secretaria Nacional de Assistência Social (SNAS). Pro-teção Básica do Sistema Único de Assistência Social. Orienta-ções técnicas para o Centro de Referência de Assistência Social (CRAS). Brasília, 2006.

_______. Censo SUAS 2015 – Resultados Nacionais, Centros de Referência da Assistência Social, CRAS. Brasília, Coordenação Geral de Vigilância Socioassistencial. Secretaria Nacional de Assis-tência Social. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Abril de 2015. (Mimeo)

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CENTRO DE REFERÊNCIA ESPECIALIZADO DA ASSISTÊNCIA SOCIAL (CREAS)

O CENTRO DE REFERÊNCIA ESPECIALIZADO DA ASSISTÊNCIA SOCIAL E CUMPRIMENTO DE MEDIDA SOCIOEDUCATIVA DE LIBERDADE ASSISTIDA (LA), E DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS

À COMUNIDADE (PSC) NO ESTADO DO RIO DE JANEIRO.

Diana Delgado1

O presente verbete tem como objetivo apresentar, por meio das atuais legislações, o papel da política de Assistência Social no Sistema de Garantia de Direi-tos, especificamente do Cen-tro de Referência Especializado da Assistência Social (CREAS) como equipamento que oferta em âmbito municipal do Serviço de Proteção Social a Adolescentes em Cumprimento de Medida Socioe-ducativa de Liber dade Assistida (LA), e de Prestação de Serviços à Comunidade (PSC). A aborda-gem privilegia as possibilidades de monitoramento do serviço por meio dos diversos sistemas do governo federal. Acrescenta-mos a esta reflexão a atualização

dos dados referentes ao cofinan-ciamento e papel dos entes fede-rados nesta importante ação que deve ser pensada de forma mais abrangente quando relacionada aos demais atores e instituições do Sistema Socioeducativo.

A Lei no 8.742, de 7 de dezem-bro de 1993, que dispõe sobre a organização da Assistência Social, foi alterada pela Lei nº12.435 de 6 de julho de 2011. Segundo a nova legislação no artigo 6ª, II, a prote-ção social especial é formada por um “conjunto de serviços, pro-gramas e projetos que tem por objetivo contribuir para a recons-trução de vínculos familiares e comunitários, a defesa de direito, o fortalecimento das potenciali-

1 Analista Executivo. Assistente Social. Superintendente de Gestão do SUAS – Secretaria de Estado de Assistência Social e Direitos Humanos SEASDH. Mestranda em Política Social – Universidade Federal Fluminense – UFF.

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CENTRO DE REFERÊNCIA ESPECIALIZADO DA ASSISTÊNCIA SOCIAL (CREAS)

Cdades e aquisições e a proteção de famílias e indivíduos para o enfrentamento das situações de violação de direitos”.

Para alcançar este desafio, a Proteção Social tem seus ser-viços organizados por nível de complexidade, sendo chamada média ou alta complexidade de acordo com o nível de distancia-mento dos vínculos familiares e comunitários do indivíduo. Na Resolução CNAS nº 109, de 11 de novembro de 2009, mais conhe-cida como Tipificação Nacional de Serviços Socioassistenciais, são relacionados os seguintes serviços relacionados à Proteção Social Especial:

• Serviço de Proteção e Aten-dimento Especializado a Famílias e Indivíduos (PAEFI);

• Serviço Especializado em Abordagem Social;

• Serviço de Proteção Social a Adolescentes em Cumprimento de Medida Socioeducativa de Liber-dade Assistida (LA), e de Prestação de Serviços à Comunidade(PSC);

• Serviço de Proteção Social Especial para Pessoas com Defici-ência, Idosas e suas Famílias;

• Serviço Especializado para Pessoas em Situação de Rua.

Sendo os serviços de alta com-plexidade os seguintes:

• Serviço de Acolhi mento Institucional, nas seguintes moda- lidades:

– Abrigo institucional;– Casa-Lar;– Casa de Passagem;– Residência Inclusiva.• Serviço de Acolhimento

em República;• Serviço de Acolhimento

em Família Acolhedora;• Serviço de Proteção em

Situações de Calamidades Públicas e de Emergências.

O público da Proteção Social Especial (PSE) se caracteriza prin-cipalmente a partir das diversas violações de Direitos como, por exemplo, violência física, psico-lógica, negligência, abandono, violência sexual (abuso e explo-ração), situação de rua, trabalho infantil, práticas de ato infracio-nal, fragilização ou rompimento de vínculos, afastamento do convívio familiar, dentre outras.

Os serviços da Proteção Social Especial de Média Complexidade são executados no Centro de re fe-rência Especializado da Assis tência Social-CREAS, ainda de acordo com a lei nº 12.435 o CREAS é:

a unidade pública de abrangên-cia e gestão municipal, estadual ou regional, destinada à pres-tação de serviços a indivíduos e famílias que se encontram em situação de risco pessoal ou social, por violação de direitos

DICIONÁRIO DO SISTEMA SOCIOEDUCATIVO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

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ou contingência, que demandam intervenções especializadas da proteção social especial.

No estado do Rio de Janeiro, dos 92 (noventa e dois) municípios, 87 (oitenta e sete) possuem o equi-pamento CREAS, totalizando 116 equipamentos em todo o estado. O que vem sendo debatido e pactu-ado entre os gestores municipais e o ente estadual é a necessidade de pelo menos 1 (um) equipamento em cada município2, rejeitando a

possibilidade de CREAS Regional que, devido as distâncias territo-riais entre os municípios, inviabi-lizaria o atendimento à população usuária, dependendo do território de vivência.

A implantação do CREAS obedece alguns critérios míni-mos que variam de acordo com o porte do município, conforme sin-tetizado no quadro abaixo, o qual também serve de referência para o cofinanciamento dos três entes governamentais.

PORTE DO MUNICÍPIO

NÚMERO DE HABITANTES

PARÂMETROS DE

REFERÊNCIA

CAPACIDADE DEATENDIMENTO/

ACOMPANHAMENTOEQUIPE MÍNIMA3

Pequeno Porte I Até 20.000

Cobertura de atendimento em CREAS Regional; ou Implantação de CREAS Mu-nicipal, quando a demanda local justificar

50 casos (famílias/indivíduos)

1 Coordenador1 Assistente Social1 Psicólogo1 Advogado2 Profissionais de nível superior ou médio (abordagem dos usuários)1 Auxiliar administrativo

Pequeno Porte II

De 20.001 a 50.000 Implantação de

pelo menos 01 CREAS.Médio Porte De 50.001 a

100.000

Grande Porte, Metrópolese DF.

A partir de 100.001.

Implantação de 01 CREAS acada 200.000 habitantes

80 casos (famílias/ indivíduos)

1 Coordenador2 Assistentes Sociais2 Psicólogos1 Advogado4 Profissionais de nível superior ou médio (abordagem dos usuários)2 Auxiliares Administrativos

2 Decreto nº 41.541 de 11 de Novembro de 2008 aprova as diretrizes da Política Estadual de Assistência Social na implementação do Sistema Único de Assistência Social - SUAS no Estado do Rio de janeiro.3 De acordo com a Norma Operacional Básica – Recursos Humanos/SUAS (2006) e a Resolução do CNAS, nº 17/2011.

67

CENTRO DE REFERÊNCIA ESPECIALIZADO DA ASSISTÊNCIA SOCIAL (CREAS)

CO CREAS tem suas fun-ções bastante claras no Sistema de Proteção Social, segundo o caderno de orientações técnicas do Governo Federal cabe ao CREAS a:

• Oferta e referenciamento de serviço (s) especializado (s), con-forme definição do órgão gestor;

• Fornecimento de subsídios e informações ao órgão gestor que contribuam para:

• – Elaboração do Plano Municipal de Assistência Social;

• – Planejamento, monitora-mento e avaliação da Unidade e dos serviços ofertados pelo CREAS;

• – Organização e avalia-ção dos serviços referenciados aos CREAS;

• – Planejamento de medidas voltadas à qualificação da Unidade e da atenção ofertada no âmbito dos serviços do CREAS;

• Relacionamento cotidiano com Unidades referenciadas para acompanhamento dos casos, con-forme fluxos de encaminhamento e processos de trabalho previa-mente definidos;

• Organização de espaços e oportunidades para troca de informações, discussão de casos e acompanhamento dos encaminha-mentos realizados às Unidades referenciadas;

• Acompanhamento das Fa-mílias do PETI4 e do PFB, em especial daquelas em Situação de Descum-primento de Condicionalidades por motivos relacionados a situa-ções de risco pessoal e social, por violação de direitos;

• Acompanhamentos das famílias do BPC5, quando em situ-ação de risco pessoal e social, por violação de direitos, e articulação com o INSS para fins de concessão, quando for o caso;

• Alimentação periódica do SICON com registro do acompa-nhamento familiar efetivado;

• Encaminhamento ao órgão gestor de demandas relativas a recursos para o desenvolvimento dos serviços, melhoria e adequa-ção da infraestrutura da Unidade, capacitação da equipe, assessora-mento e suporte técnico ao CREAS e, quando couber, das necessida-des de ampliação dos recursos humanos, em função das deman-das do território.

• Monitoramento da utilização de materiais, comunicando deman-das de reposição ao órgão gestor.

• Participação na constru-ção de fluxos de articulação com a rede socioassistencial e com as demais políticas e órgãos de defesa de direitos.

• Desenvolvimento de trabalho em rede na atenção

4 Programa de Erradicação do Trabalho Infantil.5 Beneficio de Prestação Continuada.

DICIONÁRIO DO SISTEMA SOCIOEDUCATIVO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

68

cotidiana, por meio da articula-ção com a rede socioassistencial, outras políticas e órgãos de defesa de direitos, conforme fluxos pac-tuados, quando for o caso;

• Gestão dos processos de trabalho, incluindo:

• – Coordenação técnica e administrativa da Unidade;

• – Coordenação direta da execução dos serviços ofertados;

• – Coordenação da equipe da Unidade;

• – Organização e gestão dos registros de informações, dos pro-cessos e fluxos internos de trabalho;

• – Organização e coorde-nação dos processos de trabalho em rede para a atenção cotidiana, conforme fluxos previamente defi-nidos, quando for o caso;

• – Organização de momen-tos de reflexão, discussão de caso e integração em equipe;

• – Participação como re- presentante, da Assistência So- cial, em Comissões, Fóruns, etc, quando for o caso.

• – Participação em campa-nhas de prevenção e enfrentamento a situações de violação de direitos;

• Encaminhamento ao órgão gestor, pelo coordenador da Unidade, das informações solicita-das no Censo SUAS/CREAS;

• Registro de informa-ções relativas a atendimento/ acompanhamento;

• Elaboração e encaminha-mentos ao órgão gestor de relatórios sobre trabalhos realizados, com dados de vigilância socioassisten-cial e dados sobre atendimentos/ acompanhamentos.

Um dos serviços que deve ser executado pelo CREAS é o Serviço de Proteção Social a Adolescente em Cumprimento de Medida Socioeducativa de Liberdade Assistida (LA), e de Prestação de Serviços à Comunidade (PSC). Destaca-se que o Serviço deve fazer parte do Programa Municipal de Atendimento das Medidas Socioeducativas em Meio Aberto, integrado pelas Políticas Setoriais. Segundo a Tipificação Nacional (2009):

o serviço tem por finalidade pro-ver atenção socioassistencial e acompanhamento a adolescen-tes e jovens em cumprimento de medidas socioeducativas em meio aberto, determinadas judicialmente. Deve contribuir para o acesso a direitos e para a ressignificação de valores na vida pessoal e social dos ado-lescentes e jovens. Para a oferta do serviço faz-se necessário a observância da responsabili-zação face ao ato infracional praticado, cujos direitos e obri-gações devem ser assegurados de acordo com as legislações e normativas específicas para o

69

CENTRO DE REFERÊNCIA ESPECIALIZADO DA ASSISTÊNCIA SOCIAL (CREAS)

Ccumprimento da medida. Na sua operacionalização é necessário a elaboração do Plano Individual de Atendimento - PIA com a participação do adolescente e da família, devendo conter os objetivos e metas a serem alcan-çados durante o cumprimento da medida, perspectivas de vida futura, dentre outros aspectos a serem acrescidos, de acordo com as necessidades e interes-ses do adolescente. O acompa-nhamento social ao adolescente deve ser realizado de forma sistemática, com frequência mínima semanal que garanta o acompanhamento contínuo e possibilite o desenvolvimento do PIA. No acompanhamento da medida de Prestação de Serviços à Comunidade o serviço deverá identificar no município os locais para a prestação de serviços, a exemplo de: entidades sociais, programas comunitários, hos-pitais, escolas e outros serviços governamentais. A prestação dos serviços deverá se configu-rar em tarefas gratuitas e de inte-resse geral, com jornada máxima de oito horas semanais, sem pre-juízo da escola ou do trabalho, no caso de adolescentes maiores de 16 anos ou na condição de aprendiz a partir dos 14 anos. A inserção do adolescente em qual-quer dessas alternativas deve ser compatível com suas aptidões e favorecedora de seu desenvolvi-mento pessoal e social.

O monitoramento do Serviço de MSE é fundamental para enten-dermos algumas situações como, por exemplo, o perfil6 dos adoles-centes que hoje cumprem MSE. Pode se afirmar que vivem, em sua maioria, em situação de vulnerabi-lidade social e risco pessoal.

• 94,23% das unidades exe-cutoras de medidas em meio aberto haviam recebido adolescen-tes com dependência de álcool e substâncias psicoativas;

• 51,22% das unidades execu-toras de medidas em meio aberto haviam recebido adolescentes com deficiência física e/ou mobilidade reduzida;

• 40,76% das unidades execu-toras de medidas em meio aberto haviam recebido adolescentes com transtorno mental;

• A discriminação é a prin-cipal causa dos problemas de escolarização;

O monitoramento também pode ser feito por meio do Sistema Nacional de Informações do SUAS – Rede SUAS:

• CADSuas: Conferência mensal da implantação e funcio-namento dos CREAS;

• Módulo de acompanha-mento dos Estados/ Monitora-mento da Implantação do SUAS:

6 Fonte: Pesquisa CONANDA/SDH/IBAM – Execução Medidas Socioeducativas Meio Aberto LA e PSC nas capitais e no DF- Ano de 2012.

DICIONÁRIO DO SISTEMA SOCIOEDUCATIVO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

70

acompanhamento da oferta do Serviço de MSE

• Censo SUAS;• Registro Mensal de

Atendimento /CREAS (RMA 1): Quantificação sistemática do número de adolescentes atendidos nos CREAS em cumprimento de medidas de LA e PSC;

• Registro Mensal de Aten-dimento /CREAS (RMA 2): Regis-tro Individualizado das Famílias – Identificação do NIS do Adoles-cente em Cumprimento de MSE;

• SISC – Identificação dos adolescentes incluídos no SCFV em cumprimento de medidas de LA e PSC;

• CadÚnico: Identificação do Adolescente (NIS) e Diagnóstico das Famílias.

A Resolução CIT nº 4, de 24 de maio de 2011, instituiu parâ-metros nacionais para o registro das informações relativas aos ser-viços ofertados nos Centros de Referência da Assistência Social – CRAS nos Centros de Referên-cia Especializados da Assistência Social – CREAS mais conhecido como RMA7 – Registro Mensal de Atendimento é um importante instrumento de acompanhamento do Serviço de Proteção Social a Adolescente em Cumprimento de Medida Socioeducativa de Liber-dade Assistida (LA), e de Prestação de Serviços à Comunidade (PSC). Alguns dados coletados no sistema RMA-2015/2016 são apresentados a seguir para exemplificação da potencialidade deste sistema de monitoramento.

Gráfico 1- Quantidade de Centros de referência Especializados da Assistência Social no estado do Rio de Janeiro

7 http://aplicacoes.mds.gov.br/sagi/atendimento

71

CENTRO DE REFERÊNCIA ESPECIALIZADO DA ASSISTÊNCIA SOCIAL (CREAS)

C

Os dados apresentados ante-riormente são exemplificativos e pretendem incentivar os opera-dores deste serviço a utilizar os sistemas de monitoramento já cita-dos, a fim de que o planejamento e as estratégias da política de Assistência Social sejam eficazes em sua intervenção. O ente federal já os utiliza, exemplo é a proposta de cofinanciamento em 2014, a qual teve como fonte de estabe-

lecimento de elegibilidade dos municípios e respectivos valores de financiamento os atendimentos registrados no RMA em 2013.

Segundo a resolução CNAS nº 18 de 5 de junho de 20148 foram elegíveis os municípios que possuiam:

I. Centro de Referência de Assistência Social – CRAS com cofinanciamento fede-

Gráfico 2 – Quantidade de adolescentes em cumprimento de Medida Socioeducativas nos CREAS do estado do Rio de Janeiro

Gráfico 3 – Gênero dos adolescentes em cumprimento de Medidas Socioeducativas nos CREAS do estado do Rio de Janeiro

8 Dispõe sobre expansão e qualificação do Serviço de Proteção Social aos Adolescentes em Cumprimento de Medidas Socioeducativas em Meio Aberto de Liberdade Assistida e Prestação de Serviços à Comunidade no exercício de 2014.

DICIONÁRIO DO SISTEMA SOCIOEDUCATIVO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

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ral e implantado; II. Centro de Referência Especializado de Assistência Social - CREAS com cofinanciamento fede-ral, implantado ou em fase de implantação; III. média mensal de atendimento igual ou maior que 10 (dez) adolescentes infor-mados no Registro Mensal de Atendimento – RMA no ano de 2013 para a expansão da oferta do cofinanciamento. (Art 7º)

Os recursos financiados pelo MDS tem como referência capaci-dade de 6.880 acompanhamentos em 2014 nos 47 municípios cofinan-ciados. Tradicionalmente o estado do Rio de Janeiro cofinancia em 30% o valor repassado pela União, cumprindo a função estabelecida na Norma Operacional Básica do SUAS 2012, que reafirma o papel dos entes na condução da política de Assistência Social.

É importante que todos os atores do Sistema de Garantia de direitos estejam atentos para uma discussão mais ampla que é a qualificação deste serviço nos CREAS. Hoje, o Estado do Rio de Janeiro possui 116 CREAS ati-vos no CadSUAS e todos devem estar aptos a executar o serviço de medidas socioeducativas em meio aberto, em 84 municípios.

Considerando que o ser-viço deve fazer parte do Plano Municipal de Atendimento Socio-educativo, conforme definido

na Lei 12.594, de 18 de janeiro de 2012, que instituiu o SINASE, é preciso que o serviço passe a ser executado e avaliado como responsabilidade de todas as polí-ticas setoriais envolvidas.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Resolução nº 269, de 13 de dezembro de 2006. Conselho Nacional de Assistência Social. Norma Operacional Básica de Recursos Humanos do Sistema Único de Assistência Social. Brasília, 2006.

BRASIL. Resolução nº 109, de 11 de novembro de 2009. Conselho Nacional de Assistência Social. Tipificação Nacional de Serviços Socioassistenciais. Brasília, 2009.

BRASIL. Resolução Comissão Intergestores Tripartite nº 4, de 24 de maio de 2011. Institui parâ-metros nacionais para o registro das informações relativas aos ser-viços ofertados nos Centros de Referência da Assistência Social - CRAS e Centros de Referência Especializados da Assistência Social - CREAS. Brasília, 2011.

BRASIL. Lei Federal nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Estatuto da Criança e do Adolescente.

BRASIL. Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS). Lei nº

73

CONFLITO

C8.742, de 7 de dezembro de 1993.. Brasília, 1993.

BRASIL. LEI nº 12.435/ 2011, de 6 de Julho de 2011. Altera a Lei no 8.742, de 7 de dezembro de 1993, que dispõe sobre a organização da Assistência Social.

BRASIL. Orientações Técni-cas: Centro de Referência Espe-cializado de Assistência Social.

Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Secre-taria Nacional de Assistência Social.. Brasília, 2011.

BRASIL. Plano Nacional de Atendimento Socioeducativo estabelece metas e diretri-zes para a execução das MSE. Resolução do CONANDA nº 160/2013. Publicado em 2013.

CONFLITO

Flávia Fróis Gallo1 Glória Mosquéra2

É um processo no qual duas ou mais pessoas divergem em razão de metas e interesses percebidos como mutuamente incompatíveis. Tende-se a considerar o conflito como um fenômeno negativo, entretanto, atualmente sabe--se que sua administração de forma construtiva e a percepção do mesmo como um fenômeno natural na relação de qualquer ser

vivo tornam possível o surgimento de mudanças e resultados produ-tivos a partir de uma convivência conflituosa. Ele deve ser conside-rado como uma oportunidade de transformação (GOMMA, 2010).

O conceito de conflito sofreu diversas alterações ao longo do tempo. Nicolau Maquiavel (1469-1527) inaugura a história da sociologia ressaltando que o con-

1 Psicóloga Clínica; Especialista em Psicologia Jurídica UERJ; Pós Graduada em Práticas Colaborativas; Mediadora Sênior/Supervisora do TJRJ; Coordenadora do Núcleo de Mediação da SEAP, Coordenadora da Docência da Comissão de Mediação da OAB-RJ, Psicóloga na SEAP. [email protected] Psicóloga, terapeuta de família, mediadora, idealizadora, ex-coordenadora e do-cente da Pós-graduação em Mediação, na Faculdade Cândido Mendes; Instrutora de Mediação do TJRJ - CNJ, Supervisora de Mediadores do TJRJ, Mediadora Sênior do TJRJ,Coordenadora da Mediação do TED- Comissão de Mediação da OAB. Docente e Supervisora do Mediare. RJ. [email protected]

DICIONÁRIO DO SISTEMA SOCIOEDUCATIVO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

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flito nada mais é do que “uma luta pelo poder”; já Thomas Hobbes (1588-1679) considera que o con-flito é uma luta pela sobrevivência; e com Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831) aprendemos que o conflito também poderá ser uma luta pelo reconhecimento, sendo que esse nem sempre será negativo ou destrutivo, mas sim parte do próprio desenvolvimento da huma-nidade (GALLO, 2012). Seguindo essa diretriz, Kathy Constantino (1996) compara o conflito com a água, ressaltando que quando em grande quantidade poderá ser destrutivo como nas inundações e quando escasso poderá limitar o crescimento, como nas secas.

O conflito, portanto, poderá ser tanto o surgimento de diferen-ças entre duas ou mais pessoas, como também a necessidade des-sas de serem reconhecidas por seus pares ou mesmo pela sociedade (HONNETH, 2009). O conflito poderá ser destrutivo ou cons-trutivo dependendo do manejo de seus elementos, pois existem possibilidades para aproveitar a energia do atrito causado pela divergência de interesses, ideias e visões para construir novas reali-dades. Identificamos aspectos que poderão desabrochar em proces-sos destrutivos ou construtivos, tais como (i) ruídos na comunica-ção; (ii) diferença de percepção; (iii) diferença de interesse.

A comunicação, quando é aberta e honesta e com informações relevantes entre os participan-tes, direciona o conflito para uma transformação construtiva. Já os ruídos na comunicação, caracteri-zados pela escassez ou excesso de informação, eclodem em um pro-cesso que tende à destruição.

Quanto à percepção, obser-vamos que, quando se busca um aumento na sensibilidade, nos interesses comuns, minimizando as diferenças, o conflito se desen-volverá de forma construtiva. Também, quanto aos interesses, sabe-se que a atitude amigável e confiante, com aumento da incli-nação a responder beneficamente às necessidades e aos pedidos do outro de forma colaborativa, torna o conflito construtivo com ganhos para todos os envolvidos.

Atitudes suspeitosas e hos-tis, com foco na competição, com o objetivo de obter ganhos pesso-ais, explorando as necessidades do outro, são combustível para que o conflito caminhe para destruição dos envolvidos.

Para que o conflito seja viven-ciado de forma construtiva, será necessário o reconhecimento mútuo do problema, o empenho conjunto para a resolução, a legi-timidade dos interesses do outro e a compreensão da importância de se buscar solução que satisfaça a todos. Do contrário, a solução de

75

CONFLITO

Cum conflito como a imposição de um lado sobre o outro; minimiza-ção da legitimidade dos interesses do outro e emprego de proces-sos coercitivos para influenciar o outro, certamente levará a ruptura sem ganhos para os envolvidos (MUNIZ, 2013).

Espirais de Conflito

Segundo o Modelo de Espirais de Conflito, há uma progressiva escalada, em relações conflituosas, resultante de um círculo vicioso de ação e reação. Cada reação tor-na-se mais severa do que a ação que a precedeu e cria uma nova questão ou ponto de disputa. A experiência de cooperação produz espirais construtivas. A expe-riência de competição produz espirais destrutivas.

As espirais construtivas são conseguidas estimulando as partes a desenvolverem soluções criativas que permitam a compatibilização de interesses aparentemente con-trapostos. Já as espirais destrutivas ocorrem quando há polarização da relação social com conceitos binário como: Bom / Mau; Certo/ Errado; Feio/bonito.

Os elementos para um pro-cesso construtivo e desmontagem de uma espiral destrutiva se inicia com a aceitação da legitimidade do

outro, onde a informação deverá ser compartilhada em uma relação de confiança e respeito mútuo; res-peitando diferenças de valores e crenças, mantendo o processo cen-trado no problema e na narrativa, e não no julgamento.

A Mediação de Conflitos é um poderoso procedimento que pode desconstruir essa escalada do conflito, gerando resultados satis-fatórios para todos.

REFERÊNCIAS

COSTANTINO, Cathy. Designing Conflict Management Systems .USA: Jossey-Bass Publishers, Editorial Reviews, 1996.

GALLO, Flávia F. Punir x Reabilitar- considerações críti-cas sobre a política prisional no Rio de janeiro. Especialização em Psicologia Jurídica, UERJ, 2012. (Comunicação Oral)

HONNETH, A. Luta pelo reco-nhecimento: para uma gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo: Editora 34, 2009

GOMMA, André (org). Manual de Mediação Judicial. BRASIL, Ministério da Justiça, 2010.

MUNIZ, Mirian Blanco. Uma outra verdade na Mediação. São Paulo: Dash Editora, 2013.

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COORDENADORIA DE SEGURANÇA E INTELIGÊNCIA DO DEGASE (CSINT)

Elineque Baptista de Oliveira1

Ao longo de dezenove anos trabalhando na socioeduca-ção, presenciei muitas mudan-ças e a que eu acredito ser a mais importante – ou uma das mais importantes – foi a criação da Coordenação de Segurança e Inteligência (CSINT) pelo NOVO DEGASE através do Decreto nº 41.144 de 24/01/2008. A partir da criação desta Coordenação, medi-das passaram a ser criadas e ado-tadas com a finalidade única e exclusiva de implantar normas e procedimentos, para a segurança nas unidades de servidores, ado-lescentes e prestadores de serviço que atuam diretamente nas refe-ridas unidades. Essas novas nor-mas e procedimentos passaram a vigorar e a ser executadas por todos os servidores das unida-des, tanto as de internação quanto as de semiliberdade do departa-mento, visando a, dessa forma,

implementar um plano estraté-gico a ser seguido em casos de cri-ses nas unidades que compõem o departamento.

A Portaria n° 61, de 26 de Março de 2009, disciplinou o uso de tecnologia não letal no âmbito do DEGASE, pois, desde o Decreto 41.553, de 17 de novem-bro de 2008, o DEGASE estava autorizado a adquirir e utilizar tecnologia não letal para conten-ção e segurança dos adolescen-tes em cumprimento de Medidas Socioeducativas. Entretanto, para a utilização do “spray de pimenta”, o Departamento pas-sava a ter a obrigação de ofere-cer cursos de formação para os servidores aptos a utilizarem o referido equipamento não letal. É importante destacar que o servi-dor somente recebe a autorização para portar e/ou utilizar o equi-pamento mediante uma avaliação

1 Agente socioeducativo atuando desde 1996 no DEGASE e no NOVO DEGASE. Divisão de Segurança/CSINT desde 2008. Com cursos na SSINT da Secretaria de Segurança Pública (curso de inteligência), na EGSE do NOVO DEGASE (curso de formação de coordenador de plantão), na CIESP/SEAP (curso de formação do GAR, Grupamento de Ações Rápidas do NOVO DEGASE/CSINT), entre outros de qualificação específica.

77

COORDENADORIA DE SEGURANÇA E INTELIGÊNCIA DO DEGASE (CSINT)

Cpsicológica e a aprovação no curso de capacitação, no qual o servidor tem a oportunidade de experimen-tar ele próprio os efeitos do gás de pimenta em ambientes confinados.

Antes, as crises ocorridas no interior das unidades do depar-tamento, em sua maioria, eram resolvidas com a entrada da PMERJ, pois, como não existia um procedimento padrão de con-tenção a ser seguido em casos de crises, era necessária a interven-ção da força policial. No entanto, as soluções encontradas pela força policial para a restauração da ordem nem sempre eram as mais adequadas. A força policial é uma instituição da segurança pública do Estado e uma de suas atribui-ções também é manter a ordem e a segurança da população, porém não trabalha com procedimen-tos de socioeducação. Sua ação gerava certo desconforto e difi-culdade de aceitação por parte dos adolescentes e até mesmo dos servidores envolvidos na resso-cialização desses jovens, pois, na maioria das vezes, não se conse-guia uma solução pacífica para o conflito em curso.

Cabe ressaltar que a Coordena-doria de Segurança e Inteligência do Departamento Geral de Ações Socioeducativas (CSINT) também faz parte da Segurança Pública do Estado do RJ, pois, através do Decreto nº 44. 230, de 04 de

junho de 2013, foi instituída como Agência de Inteligência Especial, compondo o Sistema de Inteligên-cia do Estado do RJ- SISPERJ. No cotidiano, essa configuração se efetiva no compartilhamento das logísticas de inteligência.

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), Seção VII, que trata da internação, em seu Art. 123, diz que “A internação deverá ser cumprida em entidade exclusiva para adolescentes, em local distinto daquele destinado ao abrigo, obedecida rigorosa separação por critérios de idade, com-pleição física e gravidade da infração.” A acomodação dos adolescentes nas unidades do DEGASE, seja na semiliberdade ou na interna-ção, segue, na medida do possível, essas orientações, pois, de maneira geral, os alojamentos e a acomoda-ção dos adolescentes sempre foram pontos sensíveis à segurança.

No Sistema Nacional de Aten-dimento Socioeducativo (SINASE), acredita-se que os socioeduca-dores devem ser profissionais que desenvolvam tanto tarefas relativas à preservação da inte-gridade física e psicológica dos adolescentes e dos funcionários quanto atividades pedagógicas. A CSINT periodicamente oferece, em parceria com a Escola de Ges-tão Socioeducativa Paulo Freire (ESGSE), formação continuada na área da segurança socioeducativa e em áreas afins, para os agen-

DICIONÁRIO DO SISTEMA SOCIOEDUCATIVO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

78

tes socioeducativos. Os cursos de formação elaborados para os ser-vidores do departamento, visando à qualificação e à capacitação para o desempenho cada vez melhor das atribuições do agente socio-educativo, também auxiliam na sistematização da segurança socio-educativa nas unidades. Além disto, dessa forma, os agentes passam a ter conhecimentos apri-morados sobre os procedimentos, normas e posturas a serem adota-dos no momento em que uma crise se instaura na unidade.

No tópico 6.3.8.2., específico sobre as entidades e/ou programas que executam a internação provi-sória e as medidas socioeducativas de semiliberdade e de internação, ressalta-se que cabe a esses “elabo-rar plano de segurança institucional interno e externo juntamente com a Polícia Militar visando a garantir a segurança de todos que se encontram no atendimento socioeducativo, bem como fornecer orientações às ações do cotidiano, solução e gerenciamento de conflitos. (...)”.

Como podemos notar, a Segurança Socioeducativa é tema de diferentes normas e legislações, sobre as quais a CSINT e o DEGASE se debruçaram, para estruturar o Plano de Segurança (2013, p.13), que tem como objetivos:

Considerar os princípios bási-cos de uso progressivo e seletivo da força; Fornecer subsídios técnico-

-profissionais para a implantação de rotinas de segurança preven-tiva e interventiva em unidades de atendimento socioeducativo, em especial de privação e restri-ção de liberdade (Semiliberdade, Internação Provisória e Medida Socioeducativa de Internação); Indicar procedimentos a serem adotados nas unidades de aten-dimento socioeducativo visando ao planejamento e à prevenção, bem como o enfrentamento de situações de risco; Padronizar pro-cedimentos operacionais, levando em conta a especificidade de cada Unidade, objetivando minimizar as possíveis falhas na condução dos procedimentos no Sistema de Atendimento Socioeducativo do Degase; Assessorar as equipes diretivas das unidades de atendi-mento socioeducativo no sentido da padronização de procedimen-tos e fluxo de informações.

Dessa forma, consolidam--se medidas de prevenção das situações-limite, tais quais rebeli-ões, evasões, invasões, incêndios, agressões, depredações e outras ocorrências em que as condições de segurança, para todos os atores envolvidos no cenário socioeduca-tivo, estejam ameaçadas.

O efeito da iniciativa de haver uma Coordenação voltada exclusi-vamente à segurança não impediu o surgimento de crises nas uni-dades. Vale registrar, porém, que

79

CRIAAD NITERÓI

Co número de crises e ocorrências envolvendo agressões entre ado-lescentes, de adolescentes contra servidores, de motins e até mesmo de rebeliões diminuiu sensivel-mente depois da criação da CSINT e da implantação de todas as mudanças necessárias para o con-trole, contenção e segurança nas unidades e associadas à atuação dos profissionais que trabalham diretamente na ressocialização dos adolescentes em cumprimento de medidas socioeducativas.

O resultado se tornou tão satisfatório, que quando ocorrem crises em unidades, a força policial somente é acionada quando a crise se instala com maior dificuldade de se obter uma solução socioe-

ducativa. Mesmo assim, o apoio e a presença da polícia somente se fazem necessários para que seja feito um perímetro de segurança no entorno da unidade, de forma a ser coibida qualquer tentativa de fuga ou evasão dos adolescentes da unidade em questão.

A segurança na socioeduca-ção hoje é uma realidade que se faz necessária e que, por ser importante, também requer constantemente o aperfeiçoamento e a capacitação dos agentes socioeducativos, a fim de se obter sempre novos conhe-cimentos com a finalidade de que cada vez mais possamos desenvol-ver um trabalho com qualidade, seriedade e competência.

CRIAAD NITERÓI

Maria Gabriela Moura da Cunha1

Ronald de Souza2 Juliano Ferreira de Souza3

Jamerson J.de Oliveira Souto4

O CRIAAD Niterói (Centro de Recursos Integrados de Aten-dimento ao Adolescente), na sua implantação denominado de CRIAM (Centro de Recursos Inte-

grados de Atendimento ao Menor), tem por objetivo atender adoles-centes em cumprimento de medida socioeducativa de semiliberdade, do sexo masculino, na faixa etá-

1 Agente Sócio Educativo - Diretora2 Agente Sócio Educativo - Coordenador de Plantão3 Agente Sócio Educativo - Líder de Plantão4 Agente Sócio Educativo - Líder de Plantão

DICIONÁRIO DO SISTEMA SOCIOEDUCATIVO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

80

ria de 12 a 18 anos, e excepcional-mente até 21 anos, residentes nos municípios de Niterói ou Maricá.

Os CRIAMs surgem quando a FUNABEM dá início à implanta-ção do Projeto de Descentralização do Sistema de Atendimento aos Menores no Estado do Rio de Janeiro, com a finalidade de criar uma retaguarda municipal e comu-nitária, transferindo o atendimento direto para os municípios. Foi dada ênfase à montagem de uma nova estrutura mais participativa, ágil e que trouxesse reais benefícios à população a qual se propunha atender. A sua função essencial era de buscar a integração de recur-sos humanos, físicos, financeiros, públicos e privados em apoio aos adolescentes, à sua família, à sua comunidade e entre outras apoiar e promover alternativas comunitá-rias de atendimento a adolescentes em cumprimento da medida socio-educativa de Semiliberdade.

Foram construídos na época 15 CRIAMs, em municípios escolhi-dos, ou bairros do mesmo municí-pio, avaliados como áreas de maior carência no atendimento a adoles-centes. Planejados para acolher no máximo 32 jovens, na faixa etária acima mencionada, atendendo ini-cialmente tanto a adolescentes do sexo masculino, como feminino.

O CRIAAD Niterói, unidade pertencente ao Departamento Geral de Ações Socioeducativas

(DEGASE), vinculado à Secretaria de Estado de Educação do Rio de Janeiro, não deve ser entendido como um simples Órgão para aco-lher adolescentes autores de atos infracionais. Ele é muito mais do que isto, apresenta atualmente uma proposta de ser um espaço que contribua para que os socioe-ducandos encontrem sentido para redefinirem suas vidas, erigin-do-os como sujeitos de direitos, potencializando seu protagonismo no convívio social, favorecendo assim condições necessárias ao efetivo cumprimento da medida Socioeducativa de Semiliberdade.

Para que isso ocorra ao longo deste processo, e como forma de prevenção de novas práticas de atos infracionais, é fundamental a integração entre o atendimento socioeducativo e os diferentes campos das políticas públicas e sociais, como também a amplia-ção e articulação de parcerias com organizações públicas e privadas, tendo nesse papel, como nortea-dor, o princípio da incompletude institucional, em prol da promo-ção de ações planejadas que nos levem a alcançar os nossos obje-tivos. Segundo Guará et al (1998)

O primeiro desafio diz respeito a como implementar um projeto articulado e integrado (...) que resulte em ações efetivas voltadas para o desenvolvimento e a pro-teção de crianças e adolescentes.

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CO segundo desafio está intima-mente ligado ao primeiro: como fazer uma gestão ousada e compe-tente destas ações que devem ser efetivadas no âmbito municipal. (GUARÁ et AL, 1998, p.7)

A atual Direção (desde 2012) vem operacionalizando o seu trabalho pautado nas normati-vas nacionais e internacionais e demais documentos orientadores, tendo como parâmetro norteador das ações a gestão participativa, operando com transversalidade no que tange ao planejamento, execução, deliberações, avaliações e redirecionamento das ações que tem como destinatários os socioe-ducandos e os socioeducadores.

Desde o início da gestão, vem sendo implementadas ações visando a participação de todos os atores, visando a construção de um trabalho nos padrões acima men-cionados, estimulando os servido-res a produzir de forma eclética e eficaz, aprofundando e promo-vendo reflexões sobre a socioedu-cação avaliando a nossa prática e aquilatando as qualidades nas relações interpessoais.

Vale ressaltar que desta forma temos conseguido atingir nossas metas institucionais de efe-tivação de uma metodologia de atendimento socioeducativo no Município, reduzindo distancia-mento entre o discurso e a prática, aumentando a interlocução entre

os atores e a participação do pró-prio adolescente, desenvolvendo sua autonomia e protagonismo, bem como de suas famílias.

Neste ínterim, foram imple-mentados espaços de discussões com reuniões bimestrais junto à equipe de Agentes Socioeducativos com objetivo de deliberar de forma conjunta questões inerentes ao serviço específico e o alinhamento com o Projeto Político Pedagógico. Esses espaços ocorrem em todos os setores com o mesmo objetivo, contemplando as peculiaridades e singularidades de cada um.

Contamos também com reuni-ões gerais, com a presença de todos os servidores objetivando o alinha-mento de nossas ações, o funcio-namento articulado dos diversos setores, a socialização das infor-mações e a construção dos saberes entre os diversos segmentos.

Obtivemos avanços com a participação efetiva de todos os servidores na construção coletiva do nosso Projeto Político Peda-gógico, bem como na elaboração coletiva de dois novos documen-tos neste ano (2016): Manual de Procedimentos Internos e Manual de Portaria, documentos estes muito importantes para unifica-ção de procedimentos e ações de nossa unidade.

Nossos servidores têm par-ticipado ativamente de cursos de capacitação, disponibilizados

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pelo DEGASE, tanto presenciais mediante planejamento prévio, com objetivo de garantir a participação de todos, como de Cursos on-line oferecidos pela Escola Nacional Socioeducativa, que contribuem para a formação continuada e qua-lidade do atendimento.

Participam da gestão, além da Diretora, um Coordenador de Plan-tão e dois líderes de plantão, Agentes Socioeducativos, que atuam no ali-nhamento dos procedimentos de rotina entre os plantões e diversos setores, propiciando a manuten-ção de uma presença educativa, construtiva e criativa, contribuindo para a melhoria da qualidade das relações entre socioeducadores e socioeducandos.

Nossa equipe vem desenvol-vendo também um trabalho de articulação com a rede pública (Municipal e Estadual) e Privada, a princípio nos segmentos mais emergentes: educação, assistên-cia, saúde e esporte com objetivo de inserir nossos adolescentes nas políticas públicas, visando a sua proteção integral e promoção da garantia dos direitos fundamen-tais dos adolescentes como sujei-tos de direitos.

Através dessa intera-ção com as outras instâncias institucionais, na qual amplia-mos a discussão das questões inerentes à socioeducação, nossa equipe vem construindo uma

rede de atendimento social, for-mada pela efetivação de parcerias, indispensável à inclusão dos socio-educandos no convívio social, com a qual compartilhamos objetivos e estabelecemos procedimentos, visando o desenvolvimento de nossas ações.

Entende-se rede como “con-junto integrado de instituições governamentais, não governamen-tais e informais, ações, informações, profissionais, serviços e progra-mas que priorizem o atendimento integral à criança e adolescente na realidade local de forma des-centralizada e participativa.” (HOFFMANN et al, 2000, p. 6)

Do fruto deste trabalho e das parcerias firmadas com este Centro, fomos convidados a par-ticipar no ano de 2015 da 5ª Conferência Municipal de Polí-ticas Públicas de Juventude de Niterói, na qual participaram 05 (cinco) adolescentes que acompa-nharam todos os procedimentos do protocolo do evento, levando propostas de ações voltadas para a socioeducação, o que culminou na eleição de um de nossos socio-educandos como delegado na Conferência Estadual.

De acordo com nosso planeja-mento anual, realizamos também reuniões com as famílias e com os adolescentes, visando propiciar concretamente a sua participa-ção ativa e qualitativa no decorrer

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CRIAAD NITERÓI

Cdesse processo socioeducativo e o fortalecimento dos vínculos, fun-damentais para a consecução dos objetivos da medida aplicada.

É mister destacar a constru-ção de um trabalho desenvolvido por esta equipe também junto aos órgãos do Judiciário, Ministério Público e Defensoria das comar-cas de Niterói e Maricá, nossa área de abrangência.

Temos implementadas den-tro da Unidade uma Oficina de Artesanato e Reciclagem; o Projeto Educando para a Sustentabilidade da Fundação Mokiti Okada; o Projeto Esporte Legal; atividades de Pesquisa na área de Neurociências; e Assistência Religiosa disponibi-lizada por três entidades religio-sas, as Igrejas Evangélicas Bola de Neve e Universal e o GEAC (Grupo Espírita Amor em Cristo), para aqueles que o desejarem. Em trâmite, mais uma parceria com a instituição Campus Avançado, que irá implementar duas ofici-nas, de Ecodesigner e Ecomusica e com a SUDERJ, através do apoio da DICEL (Divisão de Cultura, Esporte e Lazer do DEGASE), visando a inserção dos nos-sos socioeducandos nas diversas modalidades esportivas disponi-bilizadas no Complexo Esportivo Caio Martins, neste município.

Importante também regis-trar o avanço da equipe no que se refere à obtenção da docu-

mentação civil dos nossos ado-lescentes, alcançando mais uma meta ao efetivarmos recente-mente parceria com a Regional do Ministério do Trabalho deste Município, bem como em anda-mento, com a Delegacia Regional da Receita Federal, estabelecendo um fluxo permanente, através de encaminhamento direto mediante agendamento para confecção de Carteiras de Trabalho e breve-mente dos CPF’s, documentos fundamentais para o exercício da cidadania.

Em breve síntese, concluímos que esta equipe vem procurando contribuir de forma significativa na valorização das diversidades, visando um efetivo alinhamento conceitual, essencial e operacio-nal, procurando superar práticas antigas, fortalecendo a comunica-ção entre os próprios profissionais e de todos com a sociedade, em busca de formas mais eficazes de atendimento e prevenção, aprimo-rando desta forma o crescimento institucional.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Lei Federal n.º 8.069/90. Estatuto da Criança e do Adolescente. Brasília, 1990.

BRASIL. Lei Federal n.º 12.594/2012. Lei do SINASE. Brasília, 2012.

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RIO DE JANEIRO. Projeto Político Pedagógico Institucional, 2016.

RIO DE JANEIRO. Caderno de Alinhamento Estratégico do Novo Degase, 2012.

GUARÁ, Isa M. Ferreira da Rosa et. al. Gestão Municipal dos serviços de atenção à criança e ao

adolescente. São Paulo: IEE/PUC - SP; Brasília: SAS/MPAS, 1998.

HOFFMANN, C. de F. M.; BOURGUIGNON, J.; TOLEDO, S. e HOFFMANN, T. Reflexões sobre rede de atendimento à criança e ao adolescente. Núcleo de Estudos sobre a questão da criança e do adolescente. Ponta Grossa/ Pr: UEPG, 2000.

CRIAAD SÃO GONÇALO

Paulo Fernando Lopes Ribeiro1

Fábio Pires Heringer2

1 Pedagogo do CRIAAD São Gonçalo, mestre em educação pela UNIRIO.2 Diretor do CRIAAD São Gonçalo, bacharel em direito pela UNIVERSO.

Observamos que no momento presente, século XXI, percebeu-se a falta de conhecimento da popu-lação gonçalense em relação aos propósitos da existência de uma instituição para adolescentes em conflito com a lei localizada bem no centro de seu município.

Verifica-se ainda, o crescimento da intolerância com os adolescentes autores de atos infracionais, o que se reflete no preconceito e na es-tigmatização destes, rotulando-os como “trombadinhas” ou “delin-quentes juvenis”.

Os estudiosos das áreas e demais defensores da aplicabili-

dade integral do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), insti-tuído pela Lei Federal nº. 8.069 de 13/07/1990 frustram-se ao verificar que em São Gonçalo a maior parte de sua população desconhece o papel social de uma instituição destinada exclusivamente a socia-lização dos adolescentes autores de atos infracionais.

Tal comportamento expressa desinteresse pela memória local assim como fomenta a progressiva perda da identidade histórica por parte de seus habitantes; bem como produz um sentimento co letivo de indignação por todos aqueles que

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CRIAAD SÃO GONÇALO

Cvivenciam “in loco” a implementa-ção de práticas educativas destina-das a esta parcela específica que se encontram, muitas vezes, relega-dos à margem desta sociedade que tanto os estigmatiza.

Muitos moradores do municí-pio de São Gonçalo, por desconhe-cimento ou preconceito, preferem rotular os adolescentes autores de atos infracionais como “margi-nais” ou “trombadinhas”, ou seja, como seres indesejados.

Desta forma, o Centro de Recursos Integrados de Atendi-mento ao Adolescente (CRIAAD) do Município de São Gonçalo está situado na Rua Nilo Peçanha, s/nº, no Bairro Estrela do Norte, Cidade de São Gonçalo, no Estado do Rio de Janeiro.

O CRIAAD São Gonçalo é uma das vinte e quatro ins-tituições existentes no sistema DEGASE – Departamento de Ações Socioeducativas – órgão criado pelo Decreto nº 18.493/93, que é responsável pela execu-ção das medidas socioeducativas de Internação e Semiliberdade, no Estado do Rio de Janeiro, que está subordinado à Secretaria de Estado de Educação3.

Segundo relato de uma antiga moradora, Srª Roseana Soares

da Silva Palmar, o CRIAAD São Gonçalo foi construído numa área localizada no antigo Sítio São Gonçalo, pertencente à Rede Ferroviária Federal, que na época era utilizada pela comunidade local para a realização de festas juninas, instalação de parques de diversão, montagem de circo, etc., uma área pública onde seria construída uma praça, ou melhor, todos acreditavam ser este o pro-jeto da Prefeitura para aquele local. Mas para a frustração de muitos em primeiro de dezembro de 1988, na presidência de José Sarney e como Governador do Estado do Rio de Janeiro Wellington Moreira Franco, foi inaugurado o CRIAM (Centro de Recursos Integrados de Atendimento ao Menor), nomenclatura esta que foi alte-rada para CRIAAD pelo Decreto nº. 41.983/2009, instituído pelo Governo de Sérgio Cabral.

A reação de muitos morado-res em 1988 foi de grande revolta, afinal a existência de um “presí-dio” próximo as suas residências causariam sem dúvida a desva-lorização dos seus imóveis, bem como traria pessoas de “condutas duvidosas” para seu bairro. Na época a Associação de Moradores do bairro Estrela do Norte promo-

3 O DEGASE já foi vinculado as Secretarias Estaduais de Justiça e Interior, de Justiça, Direitos Humanos, Ação Social e também ao Gabinete Civil, estando atu-almente (desde 2008) vinculado à Secretaria Estadual de Educação (SEEDUC/RJ), possuindo atualmente dotação orçamentária própria.

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veu um abaixo-assinado que seria entregue as autoridades locais. Contudo, não logrou êxito.

Mas a que propósito o governo da época, desafiando a sociedade civil manteve a construção do CRIAAD? Afinal porque a esco-lha de São Gonçalo e não outro município? Quais seriam os obje-tivos deste Centro?

Os CRIAADs foram construí-dos pela extinta FUNABEM – Fun-dação Nacional de Bem-Estar do Menor-, a partir de 1987, em dife-rentes municípios ou bairros de um mesmo município por terem uma posição geográfica conve-niente no Estado do Rio de Janeiro4, como uma proposta de integração de recursos e participação comuni-tária. O CRIAAD enfim se destina-ria a uma instituição que atenderia “menores infratores” (termo politi-camente incorreto, mas que perma-nece atual, apesar das mudanças promovidas com a o Estatuto da Criança e do Adolescente).

Este processo pretendia mudar as práticas de atendimento, acabar com a internação indiscriminada de adolescentes, que cometeram atos infracionais ou não, trans-formar os sistemas concentrados

e segregadores. Eles eram colo-cados num “depósito”, isolados do convívio social e submetidos a um processo frio e desumano, não tinham nenhum tratamento educativo, não havia nenhuma pro posta pedagógica.

No projeto original, os CRIAADs foram planejados para atender, no máximo, trinta e dois adolescentes residentes, de doze a dezoito anos, ambos os sexos, em pequenas unida-des com dois alojamentos, dois módulos residenciais que esta-vam divididos em quatro quartos amplos, nos quais poderiam ser abrigados oito adolescentes e que permitiria a convivência dos dois sexos. O CRIAAD São Gonçalo recebe regularmente adolescen-tes encaminhados pelo Juizado da Infância e da Juventude dos municípios abrangentes para o cumprimento da medida socio-educativa de Semiliberdade. Até setembro de 2008 o CRIAAD São Gonçalo atendia aos adolescentes em Liberdade Assistida também, contudo esta medida socioedu-cativa foi municipalizada, isto é, ficando a cargo de cada município sua aplicação. A medida socioe-

4 Ao contrário de outros Estados que possuem fundações públicas (administração indireta) ou delegam a ONG s a execução de medidas aplicadas ao adolescente em conflito com a lei, o Estado do Rio de Janeiro é a única Unidade da Federação que mantém um Departamento Geral, vinculado à Administração Direta, com funcionários contratados e com servidores concursados, estáveis e efetivos, tam-bém vinculados à Administração Direta, como responsável pela execução de me-didas sócio-educativas aplicadas ao adolescente em conflito com a lei.

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CRIAAD SÃO GONÇALO

Cducativa de semiliberdade pode ser determinada judicialmente, como início do cumprimento de medida, diante do julgado, ou pode ser determinada como forma de progressão de medida, cum-prida em regime fechado para o meio aberto, vindo possibilitar a realização de atividades externas como modo de melhor ser obtida a ressocialização do adolescente em conflito com a Lei.

Até o final do primeiro semestre do ano de 2003 compar-tilhavam das dependências desta instituição também adolescen-tes do sexo feminino. Todavia, após vários incidentes envol-vendo ambos os sexos, o Juizado da Infância e da Juventude deter-minou que as adolescentes fossem transferidas para outra unidade integrante do sistema DEGASE.

Considera-se adolescente para os efeitos da Lei, a pessoa entre doze e dezoito anos de idade incompletos. Contudo, determi-nar quando começa ou termina a adolescência torna-se uma tarefa complexa porque ao conceituá--la, um determinado elemento será usado como pressuposto. Dependendo da área que está estu-dando o processo de mudanças e transformações, a faixa etária esti-pulada será diferenciada.

O Estatuto da Criança e do Adolescente define o ato infracio-nal como a conduta descrita como

crime ou contravenção penal. Entretanto, não existe ainda um consenso geral como denominar os adolescentes que praticam atos infracionais. Os meios de comu-nicação social, em geral, têm preferido usar formas estigmati-zantes, referindo-se a eles como infratores, delinquentes, pive-tes e, mais recentemente, impor-tando uma expressão dos Estados Unidos, uma revista semanal taxou-os de “pequenos predado-res”. A opinião pública em geral tem reproduzido estas expres-sões, acrescentando outras que a sua criatividade preconceituosa produz, como; bandidos, tromba-dinhas, menores infratores, etc.

O termo “menor” foi banido por quem defende os direitos da in-fância, pois remete à doutrina da situação irregular ou do direito tu-telar do indivíduo menor de dezoito anos, revogados quando da extinção do Código de Menores. Tal legisla-ção foi substituída pelo Estatuto da Criança e do Adolescente em 1990. A Lei atual baseia-se na doutrina da proteção integral, que considera a criança e o adolescente como um cidadão em desenvolvimento e, por-tanto, digno de respeito e proteção. Os termos adequados são “criança”, “adolescente”, “menino”, “menina”, “jovem” (de 18 a 24 anos). Todavia, vários veículos de comunicação in-sistem em utilizar em textos e títulos o termo menor, muitas vezes acompa-

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nhados da designação carente, que é igualmente pejorativa. Isso contribui para a perpetuação de um conceito ultrapassado e discriminatório.

Conforme Bulcão (2002) o termo “menor”, no Código de Menores, é o autônimo do padrão de “normalidade” vigente. Assim foi elaborada a seguinte equa-ção: “MENOR= CRIANÇA + POBREZA”. Desta forma, todos estes “seres inferiores” eram colocados nos antigos internatos como o SAM5 e posteriormente na FUNABEM6.

Já no que tange o envolvimento de adolescente no cometimento do ato infracional, muitos estudiosos, como Liberati, formulam razões que o levam a isto.

As infrações cometidas por jovens não podem ser compre-endidas como partes integrantes da adolescência, atribuindo-as como uma das características ine-rente do adolescente. Os motivos que culminariam no ato infracio-nal não são apenas os ligados aos aspectos socioeconômicos, mas também à influência do neolibe-ralismo nos valores humanos que, diante do presente momento con-juntural, são adquiridos através da lógica do consumo, do mer-

cado e não mais como outrora, isto é, através do trabalho que dignificaria o homem.

A criação de uma unidade que atende adolescentes em conflito com a Lei no Município de São Gonçalo foi um processo inevitável haja vista o crescimento alarmante do número de jovens que se envol-vem com a prática criminosa nesta que é uma das maiores cidades do Estado do Rio de Janeiro.

Aos olhos de muitos o CRIAAD é sem dúvida uma pre-sença física e incômoda para toda a sociedade gonçalense. Sua exis-tência é encarada por diversas vezes como a personificação da falha das instituições que deve-riam evitar a chegada destes indivíduos ao mundo do narco-tráfico. Sua existência, segundo o senso comum, seria o fruto visí-vel do fracasso da família, escola, igreja, bem como de todas as insti-tuições que cercam o adolescente desde o seu nascimento.

Em contrapartida, é neces-sário perceber que a medida socioeducativa de semiliber-dade, quando bem aplicada, é a resposta do Estado para uma sociedade que se encontra fragi-

5 SAM: Serviço de Assistência ao Menor - criado nos anos 40 até os anos 60 sob a égide dos governos didatoriais, ligado ao Ministério da Justiça.6 FUNABEM: Fundação Nacional do Bem Estar do Menor - criada em 1964 para executar assistência aos menores e vigorou até os anos 90 ao surgir o novo orde-namento jurídico dos direitos das crianças e dos adolescentes.

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CRIAAD SÃO GONÇALO

Clizada e carente de intervenções firmes e que não sejam utópicas.

O grande paradoxo é que a mesma sociedade que repudia e marginaliza estes “indivíduos indesejados” é a mesma que clama por justiça e anseia por melhores condições sociais para nossa juventude.

O trabalho de socialização do CRIAAD São Gonçalo é sem dúvida desconhecido pela maior parte dos moradores da cidade. Só aparece na grande mídia quando ocorre algum fato nega-tivo. Tal atitude é decorrente da estigmatização que sofre esta clientela tão específica.

Em todo esse processo histórico que se relaciona aos prin-cípios do Estatuto da Criança e do Adolescente, não se pode deixar de considerar que todas as ações devem desencadear um trabalho em que o adolescente seja respei-tado à luz dos direitos humanos.

Oportunizar uma nova pers-pectiva de vida aos adolescentes é o objetivo das medidas socio-educativas, portanto, é salutar a construção de estratégias pon-tuais que propiciem a estes o protagonismo diante de novos desafios. Entretanto, o êxito das medidas socioeducativas exige uma mudança de mentalidade da sociedade, que muitas vezes utiliza-se da exclusão e da estig-matização aos autores de ato

infracional para ocultar sua res-ponsabilidade na reprodução deste quadro.

REFERÊNCIAS

BULCÃO, Irene. A produ-ção de infâncias desiguais: uma viagem na gênese dos conceitos “criança e menor”. In Nascimento, Maria Lívia. PIVETES. Rio de Janeiro: Oficina do Autor, 2002.

BRASIL. Constituição. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado, 1988.

BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei Federal nº 8.069 de 13 de julho de 1990. Brasília, DF: Imprensa Nacional, 1991.

BRASIL. Lei Orgânica da Assistência Social. Lei nº 8.742, de 07 de dezembro de 1993. Belo Horizonte, MG: Ministério da Assistência Social, 1993.

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CRIAAD RICARDO DE ALBUQUERQUE

Carmelita Leal Ballado1

1 Socioeducadora - Formação em psicologia; especialização em psicologia clíni-ca; pós-graduação em Análise Transacional. Diretora por 14 anos do CRIAAD Menina Ricardo de Albuquerque e atual assessora na Coordenação de Saúde

Conforme observado no ver-bete sobre Restrição de Liberdade, em 1996 o CRIAAD Ricardo de Albuquerque tornou-se uma uni-dade para atendimento exclusivo do sexo feminino, buscando aten-der às especificidades de gênero para captar, entender e atender as necessidades de cada uma das meninas que cumpriam a medi-da socioeducativa. Concebendo o que preconiza o SINASE (2006) com relação à diversidade ét-nico-racial, gênero e orientação sexual enquanto norteadora da prática pedagógica. E mais, a representação para as adolescen-tes daquilo que lhes é repassado socialmente enquanto papel fe-minino nos dias atuais.

Assim, o CRIAAD possuía toda uma ornamentação acon-chegante, onde havia a preo-cupação em proporcionar um ambiente humanizado, organi-zado e decorado de forma a aten-der da melhor maneira possível ao bem estar das adolescentes. Entretanto, esta atenção externa

não se esgotava somente nesse aspecto. Também eram reforça-dos os cuidados com a beleza: cabelos, unhas, pele, depilação, maneira de se portar e comportar, assim como os encaminhamentos médicos voltados exclusivamente ao sexo feminino: ginecologista, exames de preventivos, mamo-grafia, pré-natal, além das espe-cialidades comuns aos dois sexos. Em 2015, esta unidade foi tempo-rariamente fechada.

Adolescentes e os espelhos

Tudo começou em momentos de abordagens com as adolescen-tes quando, em necessidade de atendimentos mais contundentes, causando expressões faciais pesa-das e agressivas, era mostrado um pequeno espelho de mão para que, podendo se enxergar, pro-porcionasse uma auto avaliação de sua reação. Os resultados eram, na maioria das vezes, motivado-res de um repensar suas atitudes.

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CRIAAD RICARDO DE ALBUQUERQUE

CCom este “termômetro”, ousamos colocar um imenso espelho no pátio interno e tivemos a certeza de que a imagem vista por inteiro revelava a verdadeira identidade do feminino e atingia muito além do próprio reflexo.

A iniciativa da colocação do grande espelho causou, em alguns profissionais, muitas crí-ticas e recomendação negativas, que vencido o grande desafio, transcendeu aos 13 anos de exis-tência, intacto, sem que nenhuma vez tenha sido, sequer, ameaçado. Ao final dos 14 anos da última gestão, era nove o total de espe-lhos distribuídos pela Unidade e servindo de coadjuvante nas percepções, crenças, reflexões e nos desdobramentos do trabalho socioeducativo.

Rotina interna de segunda a sexta feira

Manhãs: Atividades fixas:7 às 7:30h Despertar e higiene pessoal7:30 às 8:00h Dejejum 8 às 9h Organização e lim-peza nos alojamentosAtividades variáveis de 9 às 12h: Oficina de artesanatoOficina de Corte e CosturaAulas de reforço escolarIda para escola CEJA

Saídas para cursos externosReunião/trabalho com famí-lias e participação final das adolescentes

Tardes:Atividades fixas:12 às 13h Almoço13 às 14h Lazer (filmes sele-cionados pela equipe técnica, jogos Eletrônicos, Caraoquê, Dama, dominó ao som de músicas funk por duas horas – nas outras horas do dia o som ambiente era MPB e JB). Atividades variáveis de 14 às 18h:Oficina de artesanato Projeto “Mulheres que Amam Demais”Projeto Esporte LegalAssistência religiosaOficina “Minha planta”Trabalho técnico em grupoReuniões com as adolescentes

Projetos setoriais

“CONHECER PARA SE CUIDAR”

JUSTIFICATIVA: A dificul-dade que as adolescentes demons-travam em relação às orientações sexuais motivou a escolha deste tema, pois muitas se tornavam mães muito cedo ou contraíam doenças sexualmente transmissí-

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veis. Este trabalho contribuiu para melhor compreensão sexual acerca do assunto em questão e conse-quentemente, promoção da saúde sexual das residentes etc.

“FAMÍLIA EM FOCO”

JUSTIFICATIVA: Tornou-se importante a criação e a manuten-ção de espaço que propiciassem aos familiares serem ouvidos, esclarecidos e orientados quanto às questões que permeiam o ado-lescer, bem como as questões institucionais que visem o forta-lecimento da relação entre família e adolescente durante o cumpri-mento da MSE de Semiliberdade e após o término da mesma.

“MARIA, MARIA”

JUSTIFICATIVA: A iniciativa deste Projeto surgiu pelo motivo mais relevante da Unidade: a exclusividade do atendimento a adolescentes do sexo feminino – 08 de março Dia Internacional da Mulher. Entretanto, a comemo-ração não significava apenas um festejo a mais, ela representava a culminância do trabalho de valo-rização, de inclusão por meio de ações voltados ao gênero, etnia e reflexões sobre a importância de ser mulher, sua força, suas possibilidades de ascensão cul-tural, profissional e consequente

independência. Objetivamos, portanto, avançar nas conquistas do gênero, diminuindo as vul-nerabilidades e discriminações ainda mostradas nas estatísticas e levando-as a desenvolver sua existência de forma produtiva, independente e respeitosa.

“ANDA QUE LÁ VEM CULTURA”

JUSTIFICATIVA: O projeto objetivava o descortinar do pro-cesso cultural, esportivo e de lazer, já que na cultura encontramos a possibilidade de compreender nosso papel social, e no esporte e lazer a exercitá-lo de forma lúdica. Desta forma, buscávamos apro-ximá-las das novas alternativas de vida, conduzindo-as a modi-ficação das ações negativas em produtivas e assertivas.

“REESCREVENDO A LEITURA”

JUSTIFICATIVA: Buscava utili-zar os livros da sala de leitura como ferramenta ao aprendizado, refle-xão, e na “viagem” literária, ampliar seus horizontes culturais e inte-lectuais, democratizando o acesso aos livros, tornando em um local agradável e atraente para as ado-lescentes e realizando atividades de incentivo à leitura, a pesquisas escolares ou por livre vontade.

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CRIAAD RICARDO DE ALBUQUERQUE

C“MENINA LIMPEZA”

JUSTIFICATIVA: A iniciativa deste projeto surgiu da necessidade de as adolescentes construírem um novo modelo de valorização da higiene do ambiente, pois percebe-mos que após a limpeza realizada, a parte externa dos alojamen-tos, aparentemente encontrava-se organizada, mas ao avaliar minu-ciosamente, constatava-se carência nos detalhes.

As adolescentes, na maio-ria das vezes, se surpreendiam com o questionamento, respon-dendo que daquela maneira já estava bom. Percebemos então a necessidade de um trabalho mais contundente e consciente, na qual a recíproca fosse verdadeira, cabendo a nós oferecer os meios para a efetivação da organização, limpeza e manutenção satis-fatória e para as adolescentes, respostas positivas em relação a essas exigências consistindo, portanto, em manter o local onde habitavam limpo e salubre, além de proporcionar mudan-ças de mentalidade no tocante a valorização pela compreensão e entendimento do ambiente em que permanecem.

“AMOR COM AMOR SE PAGA”

J USTIFICATI VA: A ini-ciativa deste Projeto surgiu da

constatação pela grande maioria das adolescentes no forte vínculo emocional com homens envol-vidos em práticas ilícitas. Tais atos culminam no rompimento de laços familiares e, seduzidas pelo encantamento, compactua-vam com as transgressões, sem avaliar os riscos e consequências, tudo em nome do amor.

O referido Projeto consis-tia em meditações diárias (365), pensamentos breves e diretos do livro “MADA (Mulheres que Amam Demais)” da autora Robin Norwood.

Nos pensamentos diários, a autora desfaz a falsa impressão de que:

Mulheres que amam demais são tolas, pouco inteligentes, vivem sonhando e suspirando pelos cantos e de que apenas elas amam demais – alguns homens também o fazem – e mostra que o amor se torna uma dependência quando: Amar significa sofrer e esse amor é alguém problemático, inade-quado ou indisponível; Todos os nossos pensamentos e atos são voltados para esse alguém; É mais importante resolver os problemas dele do que os nossos; Somos incapazes de abandonar esse relacionamento doentio devido ao medo de nos sentirmos vazias e solitárias.

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A autora também mostra que,

Como qualquer dependência, esse tipo de amor deve ser tratado seriamente e sem preconceitos para que se elimine essa compul-são, pois a maioria das mulheres já amou demais ao menos uma vez na vida, e para muitas a expe-riência se repete continuamente.

“SOS NATUREZA – A ARTE DE REAPROVEITAR”

J USTIFICATI VA: Dentro de uma perspectiva simplista no que tange os benefícios e a responsabilidade com sustenta-bilidade, sem muito aprofundar nas questões sobre mentalidade ou estratégia sobre o que é eco-logicamente correto, o CRIAAD MENINA havia iniciado há alguns anos a reciclagem de obje-tos, a reutilização de produtos, a redução de geração e descarte.

Nessa época, apenas vía-mos dentro das necessidades que surgiam e os escassos recursos econômicos, a possibilidade de transformar o que estava ao nosso alcance em novas formas de uti-lização do bem patrimonial, da organização, de um objeto ade-quado ao desenvolvimento do trabalho, ou mesmo, uma possi-bilidade de obra considerada de

arte e o que suscitou também num exercício de criatividade.

Desta forma, oferecemos uma oportunidade a mais de ativi-dade com as adolescentes e, com a mesma maturidade que a questão evoluiu em nossa equipe, mostra-mos que hoje a Sustentabilidade não é mais um diferencial, é obri-gação de todos nós.

Para além da questão sobre sustentabilidade, o trabalho socio-educativo nos mostra constante-mente a necessidade de Repensar Nossos Hábitos e Atitudes. É um eterno aprendizado sobre o com-portamento e a existência humana, no qual as nuances e variáveis são muitas e tudo é importante. O CRIAAD Menina buscava reafir-mar e entrelaçar este subjetivismo, materializando o local institucio-nal confortável, aconchegante, harmonioso no qual este repensar, pudesse ser sentido na perspectiva existencial e ambiental.

“INTEGRAÇÃO”

JUSTIFICATIVA: Os gestores precisam acreditar na capacidade que as equipes possuem de trans-formação, descoberta, criação e crescimento. Cada integrante do grupo traz uma riqueza de experiências, conhecimentos e possibilidades que vão se reve-lando ao longo do tempo, na construção do seu próprio saber.

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CRIAAD RICARDO DE ALBUQUERQUE

CA iniciativa deste projeto surgiu desta crença e da necessidade de fortalecimento e inter-relação da equipe, visando diminuir pos-síveis entraves existentes e que podem influenciar o trabalho da instituição, possibilitando assim um espaço em que tro-cas interpessoais e profissionais aconteçam, permitindo então, a formação da identidade profis-sional do grupo em um grande evento semestral dos aniversa-riantes de todos os profissionais.

Projetos em parceria

“Corte e Costura”

Em parceria com a PETROBRAS/DEGASE/CECAP, o referido curso objetivava ensinar e estimular o profissionalismo na feitura de peças de roupas, bol-sas, necessaires, estojos e outros objetos voltados ao tema para tra-balharem em casa, ou na área de confecção e ajudar na renda fami-liar, melhorando as condições e qualidade de vida e informando também através de palestras sobre economia solidária, reapro-veitamento, sustentabilidade e respeito ao meio ambiente.

“Esporte Legal”

Em parceria com a “Instituição do Homem Novo”, o projeto visava orientar e passar o maior conhecimento possível sobre a prática do Futsal, respeitando as individualidades biológicas e o desenvolvimento (físico e intelec-tual) das adolescentes, utilizando este esporte como fator de socia-lização e educação e na formação de cidadania e inclusão social, através de iniciativas e ações didá-ticas pedagógicas voltadas para a interação de forma cooperativa, competitiva, consciente e reflexiva.

Parques e Jardins

Em virtude dos altos muros, a temperatura do CRIAAD tor-nou-se ainda mais elevada. Tal situação levou-nos a procurar alternativas para minimizar o problema, desdobrando-se na cria-ção de parceria com a Fundação Parques e Jardins que elaborou um Projeto de Arborização na unidade, incluindo a doação e plantação de: Paus Brasil, Escumilhas, Ipês Roxo, Grumixamas, Jambo, Orelha de Negro, Murtas e Palmeiras Arecas.

A aquisição das mudas pro-porcionou o desenvolvimento de um projeto de jardinagem no qual cada planta era cuidada pelas ado-lescentes que tinham seus nomes em plaquinhas colocadas nos

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vasos de suas responsabilidades. Este foi um projeto inovador no CRIAAD e trouxe grande motiva-ção para as residentes.

Ainda na busca deste conceito, reutilizamos toras de madeiras doadas, que seriam jogadas no lixo, em bancos para sentar, pinta-das apenas no assento com cores vivas e deixando o ambiente con-vidativo e acolhedor.

Campanha de vacinação contra poliomielite

Em parceria com a Secretaria de Saúde, a Policlínica AUGUSTO AMARAL PEIXOTO, duas vezes por ano, realizava a campanha aten-dendo crianças entre um a cinco anos de todo o bairro da Unidade.

Parcerias Religiosas

Assegurando o acesso à liberdade de crenças, ao culto e às praticas religiosas, conforme preconiza o ECA e SINASE, o CRIAAD Menina possuía quatro frentes de trabalho junto a Igreja Batista, Metodista e Universal e Arquidiocese.

Parcerias Institucionais

• ESCOLA MUNICIPAL ALE-XANDRE FARAH: inserção das adolescentes no Programa de Edu-cação para Jovens e Adultos (PEJA).

• CIEP 418 ANTÔNIO CAR-LOS BERNARDES MUSSUM: in-serção das adolescentes no Ensino Regular Fundamental e Médio.

• ESCOLA MUNICIPAL NARBAL FONTES, ESCOLA MU-NICIPAL CYRO MONTEIRO e • ESCOLA MUNICIPAL BÉLGICA: inserção das adolescentes no En-sino Regular Fundamental.

• ESCOLA MUNICIPAL MAURICE MAETERLINCK: inser-ção das adolescentes no Ensino Regular Fundamental.

• VARA DE EXECUÇÕES PENAIS (VEP): recebimento de apenados para cumprimento de prestação de serviços comunitá-rios. Importante destacar que um deles tornou-se funcionário efetivo da empresa VIGO trabalhando conosco há dez anos.

• I, VII, X e XV Juizados Especiais Criminais (JECRIM’s): recebemos autores do fato que pagam cestas básicas. Através de ofício junto aos juízes, solicitamos que o pagamento seja em produ-tos, materiais, eletrodomésticos, eletroeletrônicos, utensílios de cozinha etc que atendam as neces-sidades de manutenção, obras e conforto para Unidade.

• ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA INTERDISCIPLINAR DE AIDS ABIA: apresentação teatral sobre AIDS com grupo de adolescentes (uma vez ao ano).

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C• CAPSI VILLA LOBOS e CAPS LINDA BATISTA, - Centro de Atenção Psicossocial Infanto Juve-nil: instituição de tratamento e apoio às adolescentes que necessitam.

• CAPS – AD RAUL SEIXAS e CAPS – AD MANÉ GARRINCHA – Centro de Atenção Psicossocial Álcool e drogas: instituição de tratamento e apoio às adolescen-tes que necessitam.

• HOSPITAL MATERNIDADE ALEXANDER FLEMING: atendi-mento emergencial para gestantes, parto e acompanhamento neonatal.

• Clínica da Família de Anchieta: Atendimento emergen-cial, vacinas e ambulatório.

• POSTO DE SAÚDE FLÁVIO COUTO (Unidade de referência no território de abrangência), atendi-mento odontológico, ginecológico e clínico. Na necessidade de outros atendimentos que não sejam ofe-recidos por aquela unidade de saúde, a própria realiza os encami-nhamentos para outras unidades.

• POLICLÍNICA AUGUSTO AMARAL PEIXOTO: tratamento, exames ginecológicos e clínica médica ambulatorial. Unidade responsável pela campanha de vacinação contra poliomielite que ocorre duas vezes por ano no CRIAAD, como resultado de parceria firmada em 2003 com a Secretaria de Saúde.

• UNIDADE DE PRONTO ATENDIMENTO RICARDO DE

ALBUQUERQUE (UPA): atendi-mentos clínicos e odontológicos emergenciais.

• Parques e Jardins: inicial-mente, projeto pelo engenheiro florestal, plantação de arvores e plantas e continuidade em dações de plantas ornamentais.

• Quartel do Corpo de Bombeiros de Deodoro: Oferece espaço para treinamento físico das adolescentes e doações de esporte.

• PONTO CINE: conveniado com a Petrobrás objetiva a projeção exclusiva de filmes brasileiros que possuam mensagens de qualidade cultural e educativa. As adolescen-tes assistem a aproximadamente dois filmes por mês.

• SINE ACARI: confec-ção das carteiras de trabalho. Temporariamente temos sido atendi-dos pelo SINE DUQUE DE CAXIAS.

• 167ª Zona Eleitoral – confec-ção dos títulos eleitorais.

• NUCLEO DE ARTE GRANDE OTELO: oferece cursos às adolescentes.

• CENTROS DE REFERÊN-CIA ESPECIALIZADOS DE ASS-SISTÊNCIA SOCIAL (Capital e Municípios onde as adolescen-tes residem) – pólos de referência, que articulam e coordenam a pro-teção social especial, responsável pela oferta de orientação e apoio especializados e continuados a indivíduos e famílias com direitos violados, direcionando o foco das

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ações para a família, na perspec-tiva de potencializar e fortalecer sua função protetiva. Oferecem acompanhamento psicossocial individualizado e sistemático a crianças, adolescentes em situação de risco ou violação de direitos, a adolescentes autores de ato infra-cional e suas famílias.

Um novo olhar sobre a gestão disciplinar

Na constante busca por um trabalho socioeducativo de exce-lência, a crescente recém-chegada de servidores, novos paradigmas afinados aos parâmetros norte-adores das ações recomendadas pelo SINASE, diplomas e protoco-los nacionais e internacionais que tratam da questão, surgiu a neces-sidade de apresentar e refletir junto com toda a equipe e dentro de aspectos legais a sistematização e normatização de procedimentos e regras de convivência, que repou-sem sobre uma nova abordagem disciplinar para as adolescentes que cumpriam medida socioedu-cativa naquela unidade.

Adotado sob o formato de CARTILHA, a ser disponibilizado às adolescentes (parte reservada a elas) quando de seu ingresso no CRIAAD, as normas e rotinas da unidade foram explicitadas de forma clara e objetiva - horários,

direitos, deveres, formas de sanção – sempre visando orientar a inter-venção e o seu cumprimento.

Destacamos a figura do CONSELHO DISCIPLINAR, pelo qual se buscava a defesa dos direitos das adolescentes, de forma democrática, participativa e constituindo-se em importante instrumento de avaliação, perso-nalização, mediação de conflitos e impasses institucionais, muitas vezes protagonizados pelas ado-lescentes em íntima vinculação com suas histórias de vida.

Cartilha CRIAAD MENINA

Apresentação: Inspirada na necessidade de oferecer maior e melhor visibilidade e fundamen-tação nos trabalhos desenvolvidos por aquela unidade, o que inclui cada funcionário lotado, os novos que chegarem e a todos os envolvi-dos nesta missão.

A presente cartilha visava nor-tear o trabalho desenvolvido pelos vários segmentos profissionais, bem como a conduta das residen-tes em cumprimento de medida socioeducativa.

A referida cartilha se dividia em três partes assim distribuídas:

Parte I – Atribuições dos cargos: objetivando a transparência das responsabilidades e ações, foi

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Ctranscrita a obrigação de fazer de cada profissional da unidade, ini-ciando pela direção, coordenador, equipe técnica, socioeducadores, administrativos, cozinheiras e auxiliares de serviços gerais. Parte II – Rotina da Unidade: contemplando os horários de todo o cotidiano durante as 24 horas do dia.Parte III – Normas gerais e enca-minhamentos disciplinares.

A disciplina deve ser conside-rada como instrumento norteador do sucesso pedagógico, tornando o ambiente socioeducativo um polo irradiador de cultura e conhecimento e não ser vista apenas como instrumento de manutenção da ordem institucio-nal (SINASE, 2006, p. 55).

Fundamentado nesta pre-missa, a cartilha continha anexos e 13 artigos: Ingresso na Unidade e desdobramentos deste momento; Escola e cursos; Relacionamento entre adolescentes e funcionários; Atendimento técnico; Objetos de valor e/ou dinheiro Aparelhos celulares; Computador/Internet; Revistas; Finais de semana e retorno; Adulterações de documentos; Higiene pessoal; Lavagem de roupas; Passeios; Entradas ou porte não permi-tidos; Alojamentos; Refeições/Refeitório; Sala de lazer; Som/TV/DVD/Filmes/Jogos/Karaokê; Apologia ao crime, drogas, sexo

ou violência; Pichação; Ofensas, agressões e ameaças; Dano ao patrimônio; Recolhimento.

Ficaram estabelecidas as seguin-tes categorias de sansão:1. LEVE – Advertência verbal2. MÉDIA - Restrição de lazer3. GRAVE – Restrição de final de semana e encaminhamento à D.P.C.A.4. GRAVÍSSIMA – Encaminha-mento ao juizado para regressão de medida.

Como funcionava o Conselho Disciplinar e sua importância

Um órgão autônomo e deli-berativo de apuração de fatos, em que eram discutidos, analisados e decididos assuntos relacionados às medidas disciplinares, como integração das adolescentes, con-vivência, alteração ou criação de normas de procedimentos, e de assuntos relacionados à conduta e avaliação da própria equipe etc.

Também instância institucio-nal com competência/autoridade para a aplicação de medidas dis-ciplinares internas se revelava como importante instrumento pedagógico que estimulava a res-ponsabilização das adolescentes sobre suas próprias ações e sobre as consequências das mesmas.

A existência deste conselho permitiu-nos que tomada de deci-

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são em situações singulares fosse pautada em: imparcialidade; visão integrada e composta pelos diferen-tes setores profissionais da unidade; alinhamento e fortalecimento da equipe nas decisões institucionais; ponderações sobre as motivações e as consequências de decisões tomadas; redução significativa de imprevisibilidades e de discricio-nariedades nas decisões.

A composição do Conselho Disciplinar era respaldado nos princípios fundamentais da par-ticipação democrática. Desta forma, era composto por repre-sentantes de todos os setores da unidade de forma equitativa e com a participação da direção e/ou seus representantes.

As decisões proferidas pelo Conselho respeitavam a gravidade do fato, seu contexto, e o processo socioeducativo da adolescente, acompanhando a lógica do Plano Individual da adolescente (PIA).

Cabe ressaltar que, nos casos em que o conselho era convocado a intervir, o que se pretendia era o entendimento e a aceitação por parte da educanda de que as medi-das disciplinares deviam ter por objetivo que ela encontrasse um novo meio de relacionar-se e não meramente um modo de punição a uma norma desacatada.

Não poderíamos falar de nor-mas disciplinares sem explici-tar a nossa compreensão sobre

as normas e procedimentos que orientavam nossas ações, con-tidas na Cartilha de Normas Disciplinares. Nessa perspectiva, buscamos compreender, num pri-meiro momento, o significado de alguns conceitos: normas signifi-cam o cumprimento das regras de acordo com determinados valores (www.anpocs.org.br). No campo jurídico, uma norma se manifesta por meio de regras ou princípios. Regra serve para disciplinar e/ou ordenar uma determinada situa-ção. Já a palavra disciplina deri-va-se de discípulo, ambas têm origem do termo latino para pupilo que, por sua vez, significa instruir, educar. www.origem-dapalavra.com.br. Constamos que nem mesmo em sua etimologia, a disciplina está atrelada a ações punitivas, mas sim educativa.

Projeto Diálogos

Muito vinculado aos desdobra-mentos do Conselho Disciplinar, pode-se afirmar que a dinâmica do debate avançou além da constru-ção do documento e conspirando positivamente para a aproximação entre os diversos atores envolvi-dos - agentes, técnicos, pessoal da administração e direção. Além disso, a troca de conhecimento e socialização de experiências a partir de um processo reflexivo de

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Cgrande valia para a equipe de pro-fissionais do CRIAAD Menina.

Acreditamos que os diversos impasses encontrados em nosso percurso se devem a um con-junto de ideais, valores e práticas que ainda constituem o pensar e o fazer de alguns funcionários e, por conseguinte, um modo de ser institucional. Características essas observadas durante a imple-mentação do “Projeto Diálogos” e podendo-se assim deduzir qual parcela dos servidores ainda comungavam com ideias que remontam ao período anterior ao ECA mas, as se oportunizarem do debate, troca e reflexão, visíveis mudanças de perspectivas foram percebidas sobre o trabalho e o olhar para as adolescentes.

A festa de debutante que não houve

Quase quinze anos ininterrup-tos de dedicação e investimento físico, emocional e o registro na memória de uma equipe séria, harmônica e comprometida com o fazer profissional. O bom e acolhedor ambiente de trabalho. Momentos de alegrias com desa-fios vencidos, vitórias alcançadas. Vínculos construídos. Um colega ouvindo e apoiando o outro por alguma frustração ou dificuldade

que tivesse enfrentado. Tudo que não existe preço que pague.

Paradoxalmente a esta reali-dade, o Rio de Janeiro em crescente estado de violência. A necessidade de criação das UPPs e a migração do tráfico de drogas para áreas mais distantes e menos vulnerá-veis. Ricardo de Albuquerque não foi poupado. O que um dia havia sido de paz, com moradores sim-ples e trabalhadores, num curto espaço de tempo foi invadido por traficantes que atuavam próximo a unidade. O risco para as adolescen-tes e funcionários tornou-se cada vez mais iminente e comunicado as autoridades, no dia 23 de outu-bro de 2015 por decisão judicial, o CRIAAD Menina foi esvaziado e fechado temporariamente.

Oração da Serenidade“Concedei-me Senhor, a serenidade necessária para aceitar as coisas que

não posso mudar;coragem para modificar aquelas que posso, e sabedoria para distinguir

umas das outras”.

REFERÊNCIAS

BRASIL[1988]. Constituição Federal. Brasília: Saraiva 2009.

BRASIL. Lei Federal nº 8.069/1990. Estatuto da Criança e do Adolescente. Brasília, 1990.

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NORWOOD, Robin MADA Mulheres que Amam Demais ed. Mandarim 1998. Comentários reti-rados da contra capa.

OSHO, Yoga, The Alpha & The Omega, Vol. I. O Significado de Disciplina Disponível em www.humaniversidade.com.br Acesso em 15 de março de 2012.

DELORS, Jacques et al. Educação: um tesouro a desco-brir. Relatório para a

UNESCO da Comissão Internacional sobre Educação para o Século XXI. 10ª ed. São Paulo: Cortez; Brasília: UNESCO, 2006.

GIL, Antônio Carlos. Métodos e Técnicas de Pesquisa Social. Ed. Atlas. 5ª. ed. São Paulo, 1999.

GUNTHER, I. Adolescência e Projeto de Vida. Cadernos Juven-tude, Saúde e Desenvolvimento, vol. I Brasília: Ministério da Saúde. 1999.

MINAYO. M. C. S. (Org.). Pesquisa social: teoria, método e criatividade. Petrópolis: Vozes, 1994.

BRASIL. Documento preli-minar de Descentralização do Sistema de Atendimento a meno-res do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: MINISTÉRIO DA PREVIDÊNCIA E ASSISTÊNCIA SOCIAL,FUNABEM, -1987. Brasil Projeto Pedagógico Institucional, Novo DEGASE, RJ, 2010.

PEREIRA, Cláudia de Paulo. A Sexualidade na Adolescência: os valores hierárquicos e igualitá-rios na construção da identidade e das relações afetivo-sexuais dos adolescentes. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2002.

Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça de Menores –

REGRAS DE BEJJING, ONU, 1985.

Brasil Lei Federal nº 12594/2012 Lei do SINASE. Brasília, 2012

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CRIMINALIZAÇÃO DA POBREZA

CCRIMINALIZAÇÃO DA POBREZA

Taiguara Libano Soares e Souza1

Conforme lecionam os juristas Nilo Batista e Eugênio Zaffaroni, “todas as sociedades contempo-râneas que institucionalizam ou formalizam o poder (estado) sele-cionam um reduzido número de pessoas que submetem à sua coação com o objetivo de impor--lhes uma pena” (ZAFFARONI, BATISTA et al., 2003, p.43).

Esta intervenção seletiva do poder punitivo dá ensejo ao con-

ceito de criminalização, tributário dos preceitos da Escola da Cri-minologia Crítica2. Superando o Paradigma Etiológico, hegemô-nico na então Criminologia tradi-cional, de viés positivista, a Escola Crítica revoluciona o método de estudo criminológico ao adotar o Paradigma da Reação Social como aporte norteador (BATISTA, 2011, p.89). Deste modo, o objeto de aná-lise é deslocado do criminoso e da

1 Advogado Criminalista, Mestre e Doutor em Direito pela PUC-Rio, Professor do Programa de Pós-graduação em Direito Constitucional da UFF (PPGDC-UFF), Professor de Criminologia e Direito Penal do IBMEC-RJ, Professor de Direito Penal da UFF, Professor de Direito Penal da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro, Professor da Pós-graduação em Direito Penal, Processo Penal e Criminologia da UCAM, Diretor do Instituto de Defensores de Direitos Humanos.2 Os discursos criminológicos críticos emergem na década de 1970 na Europa e nos EUA, com a Escola de Berkeley. Sua origem encontra-se nos trabalhos de Taylor, Walton e Young, na Inglaterra, com as obras The New Criminology, de 1973, e Critical criminology, de 1975, nas quais buscam questionar a ordem social, ata-cam os fundamentos do castigo aplicado às minorias, e por consequência, a não punição do Estado. Nos Estados Unidos, os sociólogos Hans e Schwendinger fo-ram os pioneiros. Na Europa, além dos três supracitados, destacam-se, na Itália, Dario Melossi, Massimo Pavarini e Alessandro Baratta, e ainda Simondi, Sack, Baurman, Schumann e Bianchi contribuíam com este campo teórico. Durante os regimes de exceção na América Latina, desenvolveram-se as obras de Lola Aniyar de Castro, Roberto Lyra Filho, e Juarez Cirino dos Santos. Posteriormente, desta-cam-se Eugenio Raúl Zaffaroni, Rosa Del Olmo, Nilo Batista, Vera Malaguti Batista e Vera Regina de Andrade. Mais recentemente, podem ser destacados os trabalhos de Gabriel Ignacio Anitua, Salo de Carvalho, Mauricio Dieter, Maximo Sozzo e Roberta Pedrinha. Ver mais em: ANITUA, G. I., História dos pensamentos crimi-nológicos; e BATISTA, V. M., Introdução crítica à Criminologia brasileira.

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criminalidade, como dado ontoló-gico, para os processos de crimina-lização, compreendendo o crime como status atribuído a determi-nados comportamentos conside-rados desviantes.

Esses processos podem ser divididos em criminalização pri-mária e criminalização secundária. Segundo Zaffaroni, Batista et al. (2003: 43), criminalização primá-ria “é o ato e o efeito de sancionar uma lei penal material que incri-mina ou permite a punição de certas pessoas”, por sua vez, a cri-minalização secundária “é a ação punitiva exercida sobre pessoas concretas, que acontece quando as agências policiais detectam uma pessoa que se supõe tenha praticado certo ato criminalizado primariamente” (Ibdem). Desta forma, evidencia-se a seletividade subjacente ao sistema penal.

Os fatos criminais, para a teo-ria crítica, não são explicados pelos determinismos de ordem bioló-gica, psicológica ou social, mas são predominantemente condiciona-dos pela realidade material. Por este viés, o criminólogo italiano Alessandro Baratta (1997) aponta que constituem

um bem negativo desigualmente distri-buído de acordo com a hierarquia de interesses ditados pelo sistema socioeconômico e segundo a desi-gualdade social dos indivíduos (BARATTA, 1997, p. 161).

Esta seletividade criminali-zante ancora-se nos processos de etiquetamento que serão objeto central de análise da denomi-nada teoria do labelling approach3 (Teoria do Etiquetamento) atra-vés da contribuição decisiva de Howard Becker, segundo o qual o desvio não corresponde a uma mera conduta individualmente realizada, mas decorre de uma construção social:

os grupos sociais criam o des-vio ao fazer as regras cuja infra-ção constitui o desvio e aplicar ditas regras a certas pessoas em particular e qualificá-las de mar-ginais (estranhos). Desde este ponto de vista, o desvio não é uma qualidade do ato cometido pela pessoa, senão uma conse-quência da aplicação que os ou-tros fazem das regras e sanções para um ofensor (BECKER apud ANDRADE, 2006, p. 206).

3 Abordagem fundada por Howard Becker, sociólogo norte-americano, através da publicação de sua obra Outsiders. A teoria do labelling approach, recebe in-fluências das correntes de origem fenomenológica na sociologia - a etnometo-dologia e o interacionismo simbólico, da Escola de Chicago. Ver ANITUA, G., História dos pensamentos criminológicos, p. 421-433, 2008; BECKER, H. S., Outsiders: estudos sobre sociologia do desvio, 1963; e CIRINO DOS SANTOS, J., A Criminologia Radical, p. 69, 2008.

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CRIMINALIZAÇÃO DA POBREZA

CConforme aponta Vera Regina de Andrade (2006), a introdução do labelling approach foi determi-nante para o Paradigma da Reação Social (social reaction approach) do “controle” ou da “definição”4.

Partindo desta perspectiva teórica, o conceito notadamente de criminalização da pobreza ganha vulto a partir dos trabalhos de Loïc Wacquant, criminólogo e sociólogo francês radicado nos Estados Unidos5. Em suas pala-vras: “Conduzindo uma investi-gação etnográfica junto ao gueto negro de Chicago, dei-me conta do quanto a instituição penitenci-ária banalizou-se, com toda a sua onipresença, na base da estrutura social dos Estados Unidos”6.

Sobretudo nas obras As Prisões da Miséria e Punir os Pobres: a nova gestão penal nos EUA, o autor analisa os impactos da implementação das políticas econômicas neoliberais nos EUA, a partir da década de 1980. De tal modo, apresenta contribuição deci-siva para compreender o enlace entre as transformações socioeco-nômicas e o sistema punitivo na presente quadra do capitalismo pós-fordista, de modo a atualizar a tese inaugurada por Rusche e Kirchheimer7 na década de 1930.

Como salienta Vera Malaguti Batista(2011), Wacquant sistematizou:

o eixo central desse novo movi-mento do capital que tratava de

4 Também chamada de Teoria do Labelling Aproach, trata-se uma subescola da cri-minologia, enquanto Criminologia da Reação Social (juntamente com a etnome-todologia e a criminologia radical). Centra sua análise sobre os processos de rotu-lação e estigmatização gerados pelo sistema penal. Ver BARATTA, Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal, 1997; e ANITUA, Gabriel, op. cit..5 Wacquant, professor PhD da Universidade de Berkeley na Califórnia, destaca--se como um dos principais discípulos de Pierre Bourdieu. Seus temas de pesqui-sa perpassam centralmente estudos comparativos sobre marginalidade urbana, dominação étnico-racial, e a ascensão do Estado penal.6 WACQUANT, Loïc. Entrevista concedida por Loïc Wacquant a Cécile Prieur e Marie-Pierre Subtil em 29 de novembro de 1999. Tradução: Suely Gomes Costa. Consultado em: http://www.uff.br/maishumana/loic1.htm. Acessado em: 02/07/2016.7 George Rusche e Otto Kirchheimer, representantes da tradição marxista da Escola de Frankfurt, publicam o livro Punição e estrutura social, em 1939, tida como referencial para a Criminologia Crítica, apontando de modo pioneiro a re-lação intrínseca entre os modelos de punição e a estrutura socioeconômica de uma determinada época. O diagnóstico dos autores funcionou bem quando apli-cado a sociedades pré-industriais em que o trabalho poderia ser forçado e pro-dutivo, mas aparentemente se perde quando aplicada a sistemas de punição no século 20 diante da crise do mundo do trabalho. Ver mais em: KIRCHHEIMER, O.; RUSCHE, G., Punição e estrutura social, p. 273 et. Seq, 2004.

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desmantelar o estado previdenci-ário para instituir o estado penal: punir os pobres, a nova gestão da miséria. Pesquisando o para-digma estadunidense e também sua disseminação pelo mundo, ele contribuiu decisivamente para o fortalecimento dos nossos argu-mentos na luta contra a expansão desse capital predador e contra o grande encarceramento que se instituía (BATISTA, 2011, p.5).

Com efeito, nas últimas déca-das, sob a égide do neoliberalismo, assiste-se à ascensão do recrudes-cimento das estratégias de con-trole punitivo em quase todo o Ocidente8, precipuamente nos Es-tados Unidos. Este movimento deságua, sobretudo, no grande en-carceramento, com o emblemático aumento da população carcerária dos EUA em um índice de 314% em 20 anos (1970-1991), algo iné-dito em uma sociedade democrá-tica e raramente visto na maioria dos países totalitários, segundo Garland (2008: 88).

Debruçando-se sobre as reformas nas políticas sociais implementadas nos EUA no último quartel do século XX, Wacquant

aponta para o declínio do Welfare State (Estado de Bem-Estar Social) e a ascensão do que denomina de Warfare State (Estado Penal), preco-nizando o incremento do aparato repressivo do Estado9.

A partir do momento em que o Estado retrocede no que tange à sua dimensão prestacional de direitos sociais, torna-se necessária a inter-venção do seu aparato repressivo em relação às condutas considera-das transgressoras da lei e o rigoroso controle dos grupos sociais ditos ameaçadores da nova ordem. Este binômio conduz Wacquant (2003) a fazer uso da expressão Estado Centauro para retratá-lo10.

Trata-se de uma nova forma política, um Estado híbrido de viés “liberal-paternalista”, que exibe rostos opostos nos dois extremos da estrutura de classes:

ele é edificante e ‘libertador’ no topo, onde atua para alavancar os recursos e expandir as opções de vida dos detentores de capi-tal econômico e cultural; mas é penalizador e restritivo na base, quando se trata de administrar as populações desestabilizadas pelo aprofundamento da desigualdade

8 Ibid, p. 20.9 O fim da Guerra Fria e a queda do muro de Berlim demarcam a ascensão da nova ordem mundial, cenário que torna obsoleta a necessidade de programas governamentais orientados na filosofia do Estado-Providência.10 O conceito utilizado por Wacquant simboliza ao mesmo tempo um ser dotado de cabeça humana, representando o racionalismo liberal, e de corpo bestial, es-pelhando sua face penal e de controle punitivo.

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CRIMINALIZAÇÃO DA POBREZA

Ce pela difusão da insegurança do trabalho e da inquietação étnica (WACQUANT, 2003, p. 20).11

Deste modo, o autor afirma que o Estado, que se mostra inca-paz de superar a crescente crise social, empenha seus esforços em uma gestão penal da miséria, na cri-minalização das consequências da pobreza.

Contrariando a leitura de alguns estudiosos, Wacquant (2003) aponta que o fortalecimento e a ampliação do setor penal do campo burocrático não são uma resposta à criminalidade, muito menos, uma criação de especuladores sedentos de lucro. Em sua visão:

O inchamento da instituição penal é um tijolo no edifício do Leviatã neoliberal. É por isso que ela está estreitamente correlacionada, não à onda de ‘ansiedades ontológicas’ da ‘modernidade tardia’, mas às mudanças específicas de fortale-cimento do mercado nas políticas econômicas e sociais que desenca-dearam a desigualdade de classe,

aprofundaram a marginalidade urbana e alimentaram o ressen-timento étnico, ao mesmo tempo em que erodiram a legitimidade dos formuladores de políticas.12

Nesta onda punitiva que se processa, o autor identifica cinco grandes tendências da emergência do Estado penal: a) o encarcera-mento massivo; b) ampliação hori-zontal da rede de controle penal, com a adoção de medidas como a parole e a probation; c) a hipertrofia orçamentária do sistema penal; d) a indústria do controle e a priva-tização do sistema penitenciário; e) e, por fim, a seletividade puni-tiva racializada. Em sua análise “a atrofia deliberada do Estado social corresponde à hipertrofia distó-pica do Estado penal: a miséria e a extinção de um tem como contra-partida direta e necessária a gran-deza e a prosperidade insolente do outro” (WACQUANT, 2001, p.80).

O criminólogo italiano Alessandro De Giorgi (2006), em sua obra A miséria governada

11 “O neoliberalismo realmente existente exalta o “laissez faire et laisez pas-ser” para os dominantes, mas se mostra paternalista e intruso para com os subalternos, especialmente para com o precariado urbano, cujos parâmetros de vida ele restringe através da malha combinada de workfare fiscalizador e da supervisão judicial”. WACQUANT, L., Punir os pobres - A nova gestão penal da miséria nos Estados Unidos, p. 20 et. seq.12 O autor apresenta diagnóstico distinto do apresenta por Jock Young, John Pratt e Jonathan Simon para sinalizar as principais macroteorias opostas da mu-dança penal recente. Apud WACQUANT, Três etapas para uma Antropologia histórica do neoliberalismo realmente existente, p. 513.

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através do sistema penal, apro-funda esta reflexão crítica acerca do encarceramento em massa da força de trabalho excedente uti-lizando a economia política da pena no desemprego pós-for-dista. Em sua análise, aponta que os Estados Unidos “constituem um importante ‘laboratório so-cial’ em cujo interior se experi-mentam estratégias políticas e econômicas, que, posteriormente, são sistematicamente exporta-das para o resto do mundo” (DE GIORGI, 2006, p. 98).

Nesta esteira, na América Latina, e notadamente no Brasil, em razão de se tratar da periferia do capitalismo, com histórico mar-cado pelo colonialismo explorató-rio, regime escravocrata e ditaduras civis-militares, as consequências são ainda mais nefastas no que tange à gestão penal da miséria13.

Destaca-se que, após a transi-ção da ditadura militar brasileira para a reabertura democrática, a

política de segurança pública tem se caracterizado por um processo de militarização que se acentua nas últimas décadas, sobretudo no Rio de Janeiro14. Da Doutrina de Segurança Nacional, que elegia o militante “subversivo” como ini-migo público, passa-se à Guerra às Drogas, que encontra na figura do traficante de drogas o novo ini-migo público a ser combatido.

A rigor, como salienta Wacquant, sequer necessita-se que de fato sejam traficantes, “basta que se pareçam com ele”, “essas categorias ontológicas não necessitam mais praticar crimes, mas tornam-se, elas próprias, cri-mes” (WACQUANT, 2003, p. 49). Neste processo de criminalização da pobreza, comunidades peri-féricas inteiras são etiquetadas como fora da lei, dando ensejo a intervenções autoritárias, tortura e execuções sumárias.

13 “A penalidade neoliberal é ainda mais sedutora e mais funesta quando aplica-da em países ao mesmo tempo atingidos por fortes desigualdades de condições e de oportunidades de vida e desprovidos de tradição democrática e de insti-tuições capazes de amortecer os choques causados pela mutação do trabalho e do indivíduo no limiar do novo século. Isso é dizer que a alternativa entre o tratamento social da miséria e de seus correlatos (...) que visa às parcelas mais refratárias do subproletariado e se concentra no curto prazo dos ciclos eleitorais e dos pânicos orquestrados por uma máquina midiática fora de controle, diante da qual a Europa se vê atualmente na esteira dos Estados Unidos, coloca-se em termos particularmente cruciais nos países recentemente industrializados da América do Sul, tais como o Brasil e seus principais vizinhos, Argentina, Chile, Paraguai e Peru” (WACQUANT, 2001, p. 4).14 DORNELLES, J.R. W., Conflitos e Segurança – Entre Pombos e Falcões, pp. 162-168.

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CRIMINALIZAÇÃO DA POBREZA

CVera Malaguti analisa tal ges-tão penal da miséria nos marcos do neoliberalismo:

O neoliberalismo, além de desmanchar o Estado previden-ciário (o welfare state), investe no Estado penal. (...). O neolibe-ralismo cria a violência e cria a criminalização da pobreza (...) e principalmente na periferia do capitalismo produz violên-cia, barbárie e criminalização. Então você pega o menino que está soltando foguete e classi-fica como “traficante”. A partir daí, ele vai passar por um pro-cesso de brutalização que, no final, ele realmente torna-se uma “pessoa irrecuperável” 15.

Por este prisma, convém bus-car compreender as peculiarida-des da difusão do Estado Penal e os contornos da criminalização da pobreza na América Latina, em especial no Brasil. Neste intento, fatores históricos, políticos e econô-micos são relevantes para que não se incorra na equívoca transposi-ção mecânica do panorama traçado por Wacquant (2003) nos EUA16.

REFERÊNCIAS

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CIRINO DOS SANTOS, Juarez. A Criminologia Radical. 3. Ed. Curitiba: ICPC: Lumen Juris, 2008.

DORNELLES, João Ricardo W. Conflito e Segurança – Entre Pombos e Falcões. 2. Ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2008.

GARLAND, David. A cultura do controle: crime e ordem social

15 BATISTA, Vera Malaguti. Entrevista concedida ao jornal A Nova Democracia. Consultado em: www.anovademocracia.com.br. Acesso em: 01/03/2016.16 Neste sentido, ver: SOUZA, Taiguara Libano Soares e. A Era do Grande Encarceramento: Tortura e Superlotação Prisional no Rio de Janeiro. Tese de Doutorado. Orientador. João Ricardo W. Dornelles. Rio de Janeiro: PUC-Rio, 2015.

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na sociedade contemporânea. Rio de Janeiro: Revan, 2008.

GIORGI, Alessandro de. A miséria governada através do sistema penal. Rio de Janeiro: Revan, 2006.

RUSCHE, George; KIRCHEIMER, Otto. Punição e Estrutura Social. Rio de Janeiro: Revan, 2004.

SOUZA, Taiguara Libano Soares e. A Era do Grande Encarceramento: Tortura e Superlotação Prisional no Rio de Janeiro. Tese de Doutorado. Orientador. João Ricardo W. Dornelles. Rio de Janeiro: PUC-Rio, 2015.

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ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas. 5ª edição (2001). Rio de Janeiro: Editora Revan, 1991.

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CULTURA

CCULTURA

Adriana Facina1

1 É graduada em História pela Universidade Federal Fluminense (1995), mes-tre em História Social da Cultura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (1997), doutora em Antropologia Social pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social/Museu Nacional/Universidade Federal do Rio de Janeiro (2002), com pós-doutorado pela mesma instituição (2008-2009). É professora do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social/Museu Nacional/UFRJ. Tem experiência nas áreas de Antropologia e História, com ên-fase em Antropologia Urbana e História Cultural, atuando principalmente nos seguintes temas: experiência urbana e criação artística, literatura e letramento, teorias da cultura, indústria cultural e mediações, música popular, criminali-zação da pobreza, criação e fruição cultural em favelas. Integra o Laboratório em Cultura, Etnicidade e Desenvolvimento (LACED), integra o grupo de pes-quisa Observatório Indisciplinar de Fazeres Culturais e Letramentos (OICULT) e o Núcleo de Estudos das Sociedades Complexas (NESCOM). Publicou, en-tre outros, os livros Santos e canalhas: uma análise antropológica da obra de Nelson Rodrigues (Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2004), Literatura e sociedade (Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2004), Vou fazer você gostar de mim. Debates sobre a música brega (Multifoco, 2011) e Acari Cultural (Mauad, 2014). Desenvolveu pesquisa de pós-doutoramento sobre música e lazer popular no Rio de Janeiro, com ênfase no funk. Atualmente pesquisa arte, produção cultu-ral e práticas de letramento em favelas cariocas.

Cultura é um termo polissê-mico. Poli é o mesmo que muitos e sêmico vem de semia, sentidos. A palavra cultura tem muitos sig-nificados. A sua origem remete ao cultivo da terra. Do mesmo modo que a terra tem de ser trabalhada para que gere frutos, os seres humanos não nascem cultos. A cul-tura deve ser apreendida e, desde cedo, somos socializados na cul-tura em que nascemos. Não existe, portanto, alguém que seja culto de

nascença, do mesmo modo que não há ser humano sem cultura.

Dois sentidos predominam quando falamos em cultura. O pri-meiro é aquele que associa cultura a um saber erudito, ou às artes, filo-sofia, enfim, àquilo que alguns con-sideram ser as obras mais elevadas do espírito humano. É neste sentido que utilizamos expressões como “fulano é culto”, quando estamos descrevendo alguém que sabe mui-tas coisas intelectualizadas, entende

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de ópera, música clássica, artes plásticas, história etc. Esse sentido da palavra cultura se desenvolveu no século XVIII na Europa, quando aquelas sociedades passavam por um processo de grandes transfor-mações que gestavam o capita-lismo. Essas transformações eram recebidas com entusiasmo pela bur-guesia e por grupos sociais que obti-nham seus lucros com o comércio, a agricultura mercantil ou a indus-trialização nascente. Mas vários outros segmentos da sociedade as viam com grande desconfiança, pois a modernização ameaçava seus modos de vida. Camponeses, nobreza, artesãos, artistas e inte-lectuais percebiam que valores e práticas que lhes eram significati-vos estavam se perdendo em nome da padronização, da mercantiliza-ção de tudo, do poder do dinheiro, da pressa, do que alguns deles vão chamar alienação, que é o estranha-mento dos seres humanos entre si e com a natureza (Facina, 2004).

A autonomização do campo da arte e da cultura no mundo contemporâneo tem a ver com essa crítica às transformações trazidas pelo capitalismo. A arte seria um tipo de atividade humana na qual a criatividade ainda seria possível, em que o trabalho poderia ser sig-nificativo e não apenas sofrimento. Uma finalidade sem fim, no dizer do filósofo Immanuel Kant. (2005) Uma atividade que tem validade

em si mesma, não precisa de objetivos políticos, econômicos, religiosos. Assim, a arte e a cultura formariam uma espécie de campo protegido da vida mecânica e sem sentido do mundo capitalista.

O problema desta concepção é que, em geral, ela está associada a um elitismo. Como resistência a uma tendência predominante naquela época, muitos artis-tas, literatos, intelectuais vão ver esse campo como acessível ape-nas a poucos. Os artistas seriam gênios criadores, indivíduos toca-dos por um talento excepcional, e a arte passa a ser vista como fruto dessa individualidade singular. O público fruidor como pessoas “de gosto”, gente vista como possuindo bom gosto e capacidade de discer-nir o que é ou não belo, sofisticado, refinado, profundo. Desse modo, somente uma elite seria capaz de produzir, fruir e compreender a arte e a cultura, defendendo esse mundo contra a barbárie das mas-sas brutalizadas pelo cotidiano alienado e massacrante sob o capi-talismo. Essa “elite do gosto”, nos termos de Bourdieu, é criada e perpetuada por mecanismos de distinção social baseados nessa capacidade adquirida de consu-mir bens culturais valorizados (Bourdieu, 2007).

O outro sentido é o que en-tende cultura como todo um modo de vida (Williams, 1979). A “alta

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CULTURA

Ccultura”, mas também a cultura popular, os costumes, e mesmo há-bitos mais corriqueiros em nossos cotidianos, podem ser entendidos como culturais. Um exemplo: to-dos os seres humanos têm fome e se alimentam, porém o que e como comemos é parcialmente determi-nado pela cultura em que fomos socializados. Assim, comidas que para nós parecem deliciosas po-dem parecer no mínimo estranhas para outras populações.

Diferentemente da concepção elitista, nesta concepção, que pode-ríamos chamar de antropológica, não existe ser humano sem cultura, nem povo sem cultura e nem mesmo culturas superiores ou inferiores a outras. Tão culturais quanto uma ópera de Verdi ou uma sinfonia de Beethoven são a capoeira, o can-domblé, o jongo, o acarajé. Mas aqui também há um problema. Muitas vezes essa concepção de cultura é utilizada para explicar processos históricos ou políticos de forma sim-plificada. Assim, tudo seria cultural em última análise, desprezando-se outros fatores econômicos, políti-cos e sociais que determinam os processos históricos. Por exemplo: quantas vezes não ouvimos dizer que o conflito árabe-israelense na Palestina tem motivo religioso--cultural? No entanto, se formos examinar com mais cuidado, antes do estabelecimento do Estado de Israel naquela localidade, o que se

deu nos anos 1940, judeus e árabes conviviam em harmonia. Portanto, as causas culturais servem muito mais como uma justificativa para legitimar aquele conflito e apre-sentá-lo como eterno, sem solução, alimentando a indústria da guerra e o genocídio do povo palestino. Nesse culturalismo conservador, a ideia de cultura ocupa o mesmo lugar que a noção de raça ocupava nos discursos racistas e imperialis-tas de finais do século XIX e início do século XX, servindo para justi-ficar a dominação da periferia do globo pelos países industrializados e centrais do capitalismo.

Um outro debate importante é o que envolve a indústria cultural. Este termo foi cunhado por Theodor Adorno e Max Horkheimer em 1947 e buscava explicitar a lógica da pro-dução da cultura como mercadoria sob o capitalismo tardio. A cultura, assim como quase tudo sob o capi-talismo, é passível de se tornar mer-cadoria. E a indústria cultural é o ramo da economia que se dedica a produzir bens culturais em larga escala. Bens estes que, segundo Adorno e Horkheimer, têm uma função de controle social impor-tante, pois alienam as pessoas, tornando-as conformistas, consu-mistas, incapazes de desejar e fruir outras coisas que não as que lhes são apresentadas pela indústria cul-tural. Desse modo, por exemplo, o telespectador de novelas se tornaria

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incapaz de gostar de outras formas de narrativas mais densas e profun-das, pois ele ficaria anestesiado pela necessidade do entretenimento, de ver sem ter de pensar ou refletir, usando a televisão como mera vál-vula de escape de um cotidiano massacrante de trabalho e escassez (Adorno & Horkheimer, 1970).

Essa crítica aos meios de comunicação e entretenimento é importante, mas ela gera uma visão muito pessimista que não leva em conta que, por mais que a ideolo-gia da indústria cultural possa ser favorável ao conformismo e busque manipular o público, as pessoas não são papéis em branco. Nós sempre comparamos aquilo que vemos na telinha, lemos nos jornais, ouvimos nas rádios com nossas experiências de vida. Então, sempre há mediações, brechas que contradizem os discursos hege-mônicos e que abrem espaço para a construção de visões de mundo alternativas. Por isso, o estudo da cultura de massa, dessa cultura tornada mercadoria, é tão precioso para coletivos que possuem proje-tos de transformação social. O que o povo consome como arte e cul-tura, seus gostos, são importantes caminhos para estabelecermos os diálogos necessários à construção de um mundo justo, democrático e igualitário. Se desprezarmos isso, rotulando como lixo cultural o consumo cultural popular, corre-

mos o risco de cair numa postura elitista e autoritária.

Para evitarmos posturas eli-tistas e conservadoras, é preciso, portanto, que vejamos a cultura como parte da produção e repro-dução material da vida e não como algo que paira acima dos confli-tos sociais, das questões econômi-cas e políticas. Falemos da arte ou de modos de vida, a cultura é parte de nossa vida material, pois nos ex-pressamos no mundo através dela.

Em uma entrevista para uma pesquisa que realizei sobre produ-ção cultural em favelas, um jovem MC (cantor de funk) e ativista do Complexo do Alemão assim resu-miu sua visão sobre o que era a cultura daquele território: “Aqui temos uma cultura da sobrevivên-cia. Não tem água? Então emen-damos os canos até que a água chegue a todos. Não tem luz? Fazemos emendas nos fios e leva-mos a luz para os barracos. Não tem internet? Fazemos ‘gatonet’. É na solidariedade e na superação das dificuldades que construímos nossa cultura. E é daí que nasce a música, a poesia, a nossa arte.”.

Com essa fala, o jovem artista associa a criação cultural à luta pela sobrevivência e às estratégias, frequentemente criminalizadas, para obter os recursos considera-dos necessários à existência, sejam serviços básicos (água e luz), seja aquilo que permite compartilhar

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CULTURA

Ca experiência do contemporâneo (internet). Essa perspectiva, com-partilhada por agentes e coletivos culturais que atuam em favelas e periferias, coloca a cultura no campo da complexidade, imbricada nos modos de vida e de reinvenção do cotidiano presentes nas socia-bilidades faveladas. Há, assim, um forte significado atribuído à prática como aquilo que orienta as ações de intervenção no mundo, mesmo aquelas relacionadas à leitura e à escrita, atividades que muitas ve-zes são associadas à “alta cultura” e ao pensamento abstrato.

Por fim, é preciso ver a cultura como complexidade, o que implica incorporar incoerências e contra-dições dos sujeitos às análises, evitando óticas que tornem homo-gêneas e estáticas práticas multicul-turais e dinâmicas. Nas palavras do antropólogo Fredrik Barth:

As pessoas participam de univer-sos de discursos múltiplos, mais ou menos discrepantes; cons-troem mundos diferentes, parciais e simultâneos, nos quais se movi-mentam. A construção cultural que fazem da realidade não surge de uma única fonte e não é mono-lítica. (BARTH, 2000, p.123)

E ainda:

A atividade social é uma ativi-dade contínua de produção do

mundo (...), abstrair princípios gerais não é a melhor maneira de explicar as formas da cultura. É melhor nos perguntarmos de que os padrões específicos que obser-vamos são evidências. Devemos perguntar que tipo de consistên-cia encontramos em cada padrão específico, e por que essa forma se desenvolveu justamente aí. A ausência de ordem não requer explicação; antes, é a tendência a formação de uma ordem parcial que precisa ser explicada, escla-recendo quais as causas eficientes específicas em jogo. (idem, p.126)

Nesse sentido, Barth pro-põe uma reconceitualização da cultura, o que é particularmente importante quando estamos li-dando com práticas culturais desenvolvidas em sociedades com-plexas e, mais especificamente, em territórios favelados, estratégicos para definições de políticas públi-cas e de disputas acerca do direito à cidade. Para ele, os atores estão sempre posicionados, o que nos obriga a prestar atenção ao con-texto, à práxis, aos diálogos dos atores entre si, à intenção comuni-cativa, à interpretação. Em síntese:

Precisamos incorporar ao nosso modelo de produção da cul-tura uma visão dinâmica da experiência como resultado da interpretação de eventos por indivíduos, bem como uma

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visão dinâmica da criatividade como resultado da luta dos ato-res para vencer a resistência do mundo. (idem, p.129)

Essa luta faz parte dos fluxos de sentido que disputam signifi-cados atribuídos à vida social na contemporaneidade (HANNERZ, 1992). Esses fluxos não são livres e seguem permeados por relações de poder e pela desigualdade na distribuição das possibilidades do exercício da criatividade men-cionada por Barth (2000). Dessa maneira, nas sociedades comple-xas não é possível tratar a cul-tura como algo partilhado de modo homogêneo, mas sim como “organização da diversidade” (HANNERZ, 1992: 14).

Mais do que um conceito, cultura é uma ideia (EAGLETON, 2005) e um campo de debates políticos, no qual a neutralidade é impossível. Cabe a nós refletir-mos criticamente sobre teorias e práticas culturais que informam nossa intervenção no mundo. Termino este texto com uma frase do poeta russo Wladimir Maiakóvski: “A arte não é um espelho para refletir o mundo, mas um martelo para forjá-lo”.2

REFERÊNCIAS

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BARTH, Fredrik. O guru, o iniciador e outras variações antropológicas. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2000.

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EAGLETON, Terry. A idéia de cultura. São Paulo: Unesp, 2005.

FACINA, Adriana. Literatura e sociedade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.

HANNERZ, Ulf. Cultural Complexity. Studies in the Social Organization of Meaning. New York: Columbia University Press, 1992.

KANT, Imannuel. Crítica da faculdade do juízo. São Paulo, Forense Universitária, 2005.

MARTIN-BARBERO, Jesús. Dos meios às mediações. Comunicação, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2006.

WILLIAMS, Raymond.Marx-ismo e literatura. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.

___________. Palavras-chave. São Paulo: Boitempo, 2007.

2 A frase é atribuída ao poeta por biógrafos e especialistas em sua obra.

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DEFENSORIA PÚBLICA

DD

DEFENSORIA PÚBLICA

Eufrásia Maria Souza das Virgens1

1 Defensora Pública coordenadora da Coordenadoria de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro

O Estatuto da Criança e do Adolescente, ao regulamentar a Constituição da República de 1988, dispõe sobre a proteção integral a crianças e adolescentes, assegu-rando direitos fundamentais com absoluta prioridade, nos termos do artigo 227 e disciplinando o procedimento de apuração de ato infracional, conforme o artigo 228 da Constituição.

Cabe também destacar que o Brasil ratificou em 1990, através do decreto 99.710, mesmo ano em que foi editada a Lei 8.069, a Convenção da ONU sobre direitos da criança de 1989, que prevê como criança a pessoa antes dos 18 anos de idade.

De acordo com o artigo 37 da Convenção da ONU:

b) nenhuma criança seja privada de sua liberdade de forma ilegal ou arbitrária. A detenção, a reclu-são ou a prisão de uma criança será

efetuada em conformidade com a lei e apenas como último recurso, e durante o mais breve período de tempo que for apropriado;

c) toda criança privada da liber-dade seja tratada com a huma-nidade e o respeito que merece a dignidade inerente à pessoa humana, e levando-se em consi-deração as necessidades de uma pessoa de sua idade. Em espe-cial, toda criança privada de sua liberdade ficará separada dos adultos, a não ser que tal fato seja considerado contrário aos melhores interesses da criança, e terá direito a manter contato com sua família por meio de cor-respondência ou de visitas, salvo em circunstâncias excepcionais;

d) toda criança privada de sua liberdade tenha direito a rá-pido acesso à assistência jurídica e a qualquer outra assistência adequada, bem como direito a impugnar a legalidade da pri-vação de sua liberdade perante

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um tribunal ou outra autoridade competente, independente e im-parcial e a uma rápida decisão a respeito de tal ação.

O Estatuto da Criança e do Adolescente, marco normativo importante por ser uma das pri-meiras legislações da América La-tina a se adequar à Convenção da ONU, traz as garantias processu-ais do devido processo legal (ar-tigo 110), além da igualdade na relação processual e defesa técnica por advogado e assistência judiciá-ria integral e gratuita aos necessi-tados (artigo 111, II, III e IV).

No procedimento de apuração de ato infracional, assim conside-rado aquele análogo a crime ou contravenção (artigo 103), é impres-cindível assegurar ao adolescente defesa técnica por advogado ou por Defensor Público, sendo certo que a realidade do sistema socioe-ducativo e dos procedimentos em cursos nas Varas da Infância e da Juventude é de quase totalidade da assistência jurídica prestada pela Defensoria Pública no Estado do Rio de Janeiro.

A Defensoria Pública, con-forme artigo 134 da Constituição de 88, é Instituição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a prestação de assistência jurídica integral e gra-tuita aos necessitados.

Importante destacar, conforme Lei Complementar 80/1994 com a redação da Lei Complementar 132/2009, que o Defensor Público tem como uma das funções ins-titucionais a defesa dos direitos individuais e coletivos de crian-ças e adolescentes e outros grupos vulneráveis (artigo 4°, XI), sendo importante papel assegurar o contraditório e ampla defesa aos adolescentes que respondem pela prática de ato infracional.

No Estado do Rio de Janeiro, a Defensoria Pública existe há mais de 60 anos, tendo, com a edi-ção do Estatuto da Criança e do Adolescente, o reconhecimento da atuação do Defensor Público nos procedimentos de apuração de ato infracional.

A Defensoria Pública pos-sui órgãos de atuação em to-das as comarcas e, na capital, fica sediada a Coordenadoria de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente, que presta as-sistência jurídica aos adolescen-tes em cumprimento de medida socioeducativa de internação nas unidades situadas na Capital e Baixada Fluminense e semiliber-dade na Capital, conforme delibe-ração 76 do Conselho Superior da Defensoria Pública.

A Coordenadoria de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente foi criada em 2001 e teve como objetivo inicial a pres-

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tação da assistência jurídica aos adolescentes privados de liber-dade. Sua atuação foi ampliada posteriormente para atender crian-ças e adolescentes em situação de vulnerabilidade, dentre as quais a privação ao direito à convivência familiar e comunitária.

O trabalho desenvolvido pelos Defensores Públicos em atendi-mento nas unidades do Estado de cumprimento de medidas privativas de liberdade (interna-ção) mereceu reconhecimento da Organização de Direitos Humanos, pelo Human Rights Watch, no relatório divulgado em junho 2005 com a seguinte referência:

Os defensores públicos visitam praticamente todos os centros de internação juvenil semanalmente. Não há nenhuma outra entidade autônoma do governo que esteja presente com tal frequência no sistema de internação juvenil do Estado. Como resultado, a Defensoria Pública tem um conhe-cimento inigualável do sistema e goza de alto grau de confiança por parte dos jovens internos (RELATÓRIO, 2005, p.41 e 42).

Importante destacar que a CDEDICA (Coordenadoria de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente) também tem por atribuição dar apoio aos colegas e uniformizar entendimentos sobre a defesa técnica através de teses,

participando de seminários e con-gressos de Defensores Públicos da Infância. O V Congresso Nacional foi realizado no Rio de Janeiro em julho de 2015 e contou com a par-ticipação de diversos atores do Sistema de Garantia de Direitos e importantes juristas, como Emílio García Mendez, o qual foi consultor do UNICEF para a América Latina por ocasião da edição do Estatuto. No importante trabalho sobre lei, infância e democracia na América Latina, afirma Mendez (1998) que o artigo 227 da Constituição de 88 “representa uma síntese admirá-vel da futura Convenção, que na época circulava em forma de um anteprojeto entre os movimen-tos que lutavam pelos direitos da infância” (Méndez, 1998)

Além da defesa dos adolescen-tes nos procedimentos de apuração de ato infracional, cabe também à Defensoria Pública atender os ado-lescentes que cumprem medida no sistema socioeducativo.

Existe também atuação insti-tucional dos defensores públicos da infância através da Comissão Especializada de Promoção e Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente do CONDEGE, bem como comissão temática da ANADEP, que tem como fun-ção, dentre outras, acompanhar projetos de lei ou emendas que digam respeito a direitos de crian-ças e adolescentes. Além disso,

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tal comissão tem se manifestado, através de nota pública, contrária a qualquer proposta de emenda para redução da maioridade, uma das quais tramita desde 1993 (PEC 171) e é posteriormente somada a uma árvore de apensos; proposta esta que entendemos além de inconsti-tucional, é incivil, posto que ainda foi não implementado o Estatuto da Criança e do Adolescente no sentido da garantia de direitos fun-damentais. Também nos preocupa tramitação de projetos de lei sobre aumento do tempo de internação, por violar os princípios constitu-cionais da brevidade e respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento.

O sistema de responsabili-zação previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente está ple-namente de acordo com os princí-pios consagrados na Constituição Cidadã de 88, inclusive o respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, brevidade e ex-cepcionalidade da medida de pri-vação de liberdade, tal como prevê o artigo 227, § 3º, V da Constituição da República.

Historicamente, crianças e adolescentes têm sido muito mais vítimas de crimes do que autores de ato infracional, conforme de-monstrado no Estado do Rio de Janeiro em estudo elaborado em 2015 pelo Instituto de Segurança Pública (CABALLERO e MON-

TEIRO, 2015) com dados da Polícia Civil em todo o Estado consta-tando que no

estado do Rio de Janeiro entre 2010 e 2014, o número anual de vítimas menores de 18 anos pas-sou de 33.599 para 49.276, um aumento de 46,7% (contra um aumento de 24,4% de vítimas maiores de idade). Ao longo dos cinco anos, foram 213.290 víti-mas menores de idade, das quais 26,2% eram crianças (de zero a 11 anos) e 73,8% eram adolescentes (de 12 a 17 anos). O dossiê Criança e Adolescente 2011 demonstrava que crianças e adolescentes eram vítimas em 88,5% dos registros de ocorrência sendo os adolescentes autores de ato infracional na pro-porção de 11,5%. (CABALLERO e MONTEIRO, 2015, p.13)

Já em relação ao adolescente acusado da prática de ato infracio-nal, segundo o Dossiê do ISP:

No estado do Rio de Janeiro, entre 2010 e 2014, o número anual de adolescentes autuados em flagrante passou de 4.039 para 10.732, um aumento de 165,7% (contra um aumento de 72,2% de adultos autuados em flagrante). Ao longo dos cinco anos, foram 37.073 autuados com idade entre 12 e 17 anos. (idem, p.17)

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Com toda assertividade e autoridade doutrinária, o mestre italiano Luigi Ferrajoli, no prefácio à obra Infância, Lei e Democracia na América Latina, de Emílio Garcia Mendez e Mary Bellof, coloca a questão da não concepção de um direito da infância:

Em nossa tradição jurídica, ao Direito – direito e infância são termos tendencialmente anta-gônicos. Por um lado, estando as crianças privadas da capa-cidade de atuar, sempre foram tratadas – e, antes disto, inclu-sive pensadas – muito mais como objetos do que como sujeitos do Direito. Por outro lado, o Direito dos “menores” sempre foi con-cebido em nossa cultura jurídica como um Direito menor, alheio ao horizonte teórico do jurista e escassamente compatível com as avançadas formas jurídicas do Direito dos adultos. A mencio-nada “autonomia científica” do Direito do Menor, tal como sus-tentam os organizadores deste volume, transformou-se de fato em uma autonomia do Direito Constitucional, ou seja, daquele sistema de direitos e garantias que constitui a substância do atual constitucionalismo demo-crático. (FERRAJOLI, 2005, p. 09)

Além da defesa individual dos adolescentes que são respon-sabilizados pela prática de ato in-fracional, importante papel da

Defensoria Pública está relacio-nado à tutela coletiva, como as di-versas ações civis públicas, desde 2005, em relação a algumas unida-des do DEGASE e as mais recentes de 2015 em relação ao Dom Bosco, GCA, EJLA, PACGC, CAI Baixada e ESE, propostas pela CDEDICA e da unidade de Campos proposta pelo Defensor Público da referida comarca. Destaca-se, assim, a im-portância não apenas da defesa dos interesses individuais como tam-bém coletivos dos adolescentes, mormente num quadro de super-lotação que a cada dia piora, sendo requerida, nesses casos, a aplica-ção do artigo 49, II, do SINASE, que prevê o direito a cumprir me-dida em meio aberto quando não houver vaga desde que o adoles-cente não tenha cometido ato com violência ou grave ameaça contra a pessoa. Na atual circunstância, não havendo condições adequa-das para cumprimento de medida privativa de liberdade, o caráter socioeducativo acaba não sendo percebido e principalmente a in-ternação mostra-se como medida meramente punitiva, através da privação de liberdade sem o reco-nhecimento de direitos, inclusive o direito à educação.

Defender direitos de ado-lescentes a quem se atribui ato infracional não é apenas um dever funcional, mas cumprir manda-mento constitucional, assegurando

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aos adolescentes uma defesa que tenha possibilidade senão de evitar imposição de medida ao menos que o cumprimento seja de acordo com os princípios legais e constitucionais.

Embora adolescentes respon-sabilizados pela prática de atos infracionais sejam vistos por parte da mídia e da sociedade como “perigosos e impunes”, título de matéria do jornal O Globo de 23 de setembro de 2012, eles têm sido muito mais vítimas de um sistema que reproduz desigualdades e in-flige sofrimento e dor. O perfil dos adolescentes no sistema socioedu-cativo – em sua maioria pobres e negros, com baixa escolaridade, acusados em grande percentual da prática de atos análogos a cri-mes patrimoniais ou tráfico de drogas, esse inclusive tipificado na Convenção 182 da OIT como uma das piores formas de traba-lho infantil, – deveria nos fazer refletir sobre a ausência das po-líticas públicas de efetivação dos direitos fundamentais e não ape-nas exigir a responsabilização do adolescente quando o poder pú-blico não cumpre seu papel de promover direitos.

Não queremos com essa afir-mação retirar do adolescente a responsabilidade pela prática de ato infracional, mas refletir sobre a falta de políticas públicas de atenção aos direitos de crianças e

adolescentes com absoluta prio-ridade, conforme determina a Constituição, bem como rechaçar qualquer proposta de redução da maioridade penal ou projeto de aumento de tempo de internação, devendo ser aperfeiçoado o sis-tema socioeducativo para que as condições de cumprimento das medidas, em especial privativas de liberdade, atendam aos requisitos legais, proporcionando efetiva res-socialização e não permanecendo como historicamente têm sido, meramente punitivas.

Acreditamos que a Defensoria Pública tem feito seu papel na defesa dos direitos de crianças e adolescentes e a integração opera-cional entre os órgãos do sistema de garantia de direitos é uma dire-triz a ser aprimorada, tendo sido tema do V Congresso Nacional de Defensores Públicos da Infância e da Juventude, realizado em 2015.

Com a implantação do Núcleo de Audiência de Apresentação pelo Tribunal de Justiça em junho de 2016, através da assinatura de convênio com a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, a Polí-cia Civil e o DEGASE, Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social, dentre outros, para aten-dimento inicial do adolescente a quem se atribui ato infracional, foi dado mais um passo no sentido da necessária integração entre os órgãos do sistema de justiça, espe-

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DEFENSORIA PÚBLICA

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rando com isso que a aplicação de medidas privativas de liberdade atendam os requisitos legais de brevidade e excepcionalidade.

Já o respeito à condição pecu-liar de pessoa em desenvolvimento deve ser preocupação do gestor das unidades de atendimento so-cioeducativo, que no momento estão superlotadas, havendo di-versas ações civis públicas pro-postas pela Defensoria Pública e também pelo Ministério Público sobre a superlotação das unida-des do DEGASE. Cabe também ao Judiciário zelar pelo cumprimento desse princípio constitucional e le-gal, evitando que os adolescentes permaneçam nas atuais condições de violações de direitos.

A aplicação do artigo 49, II, da Lei 12.594/2012 (SINASE) – que assegura o direito de cumpri-mento de medida em meio aberto quando não houver vaga nas hipóteses de não se tratar de ato cometido com violência ou grave ameaça contra a pessoa – é a única saída no quadro atual de super-lotação das unidades do sistema socioeducativo, evitando que as medidas socioeducativas sejam de fato meramente punitivas.

Continuamos acreditando que o nosso papel é de promover di-reitos e no atendimento aos ado-lescentes a quem se atribui ato infracional ou em cumprimento de medidas socioeducativas, fica

muito evidente a necessidade de uma atuação cada vez mais com-bativa da Defensoria Pública, prin-cipalmente diante das condições inadequadas do cumprimento das medidas privativas de liberdade, sendo esse papel de importância numa sociedade em que o medo tem gerado a banalização da impo-sição de medida privativa de liber-dade em prejuízo de se assegurar direitos fundamentais.

Conforme estabelece a Cons-tituição de 88, é dever de todos assegurar com prioridade abso-luta os direitos fundamentais de crianças e adolescentes, e, no que diz respeito ao direito à liberdade, para aplicação de medidas pri-vativas de liberdade, devem ser obedecidos os princípios de brevi-dade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento.

Como integrante do Sistema de Garantia de Direitos, a Defensoria Pública reafirma seu papel de pro-mover a defesa dos adolescentes de forma a se atender princípios constitucionais, assegurando o devido processo legal, contraditó-rio e ampla defesa, considerando que o adolescente jamais pode ser mais gravosa que a do adulto.

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REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição Federal. Brasília, 1988.

BRASIL. Lei Federal nº 8.069/1990. Estatuto da Criança e do Adolescente. Brasília, 1990.

BRASIL. Lei Federal nº 12.594/2012. Lei do SINASE. Brasília, 2012.

BRASIL. Lei Complementar 80/1994. Brasília, 1994.

CABELLERO, B. e MON-TEIRO, J. (org). Dossiê Criança e Adolescente - 2015. Instituto de Segurança Pública (ISP). Rio de Janeiro: Rio Segurança, 2015. Dis-ponível em http://arquivos.proderj.rj.gov.br/isp_imagens/Uploads/DossieCriancaAdolescente2015.pdf. Acesso em 25 de junho de 2016.

CONSELHO SUPERIOR DA DEFENSORIA PÚBLICA. DELI-BERAÇÃO CS/DPGE Nº 76 de 31 DE 31 DE AGOSTO DE 2011. Rio de Janeiro, 2011.

FERRAJOLI, Luigi. Infância, lei e democracia na América Latina (prefácio) In: MÉNDEZ, E. G.; BELOFF, M. (Org.). Infância, lei e democracia na América Latina EDIFURB-Blumenau, 2001.

MÉNDEZ, E. G. Infância, lei e democracia: uma questão de jus-tiça. In: MÉNDEZ, E. G.; BELOFF, M. (Org.). Infância, lei e demo-cracia na América Latina. Buenos Aires: Santa Fé de Bogotá, 1998.

RELATÓRIO. Brasil na escu-ridão: abusos ocultos a jovens internos no Rio de Janeiro. Human Rights Watch, junho de 2006. Disponível em https://www.hrw.org/legacy/portuguese/reports/brazil0605/brazil0605pttext.pdf. Acesso em 20 de maio de 2010.

ONU. Convenção sobre os direitos da criança. 1989

VASCONCELOS, Fabio e DAMASCENO, Natália. Menores no Crime: perigosos e impu-nes. In: Jornal O Globo, data por extenso, número da edição (se hou-ver). Disponível em http://oglobo.globo.com/rio/menores-no-cri-me-perigosos-impunes-6177491. Acesso em 25 de maio de 2015.

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DELEGACIA DE PROTEÇÃO À CRIANÇA E AO ADOLESCENTE1 (DPCA)

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DELEGACIA DE PROTEÇÃO À CRIANÇA E AO ADOLESCENTE1 (DPCA)

Kelly Murat-Duarte2

1 Artigo adaptado da dissertação de Mestrado intitulada: “Infância e adolescên-cia: punição, controle e o Sistema de Garantia de Direitos”, defendida em 2009, no Programa de Pós Graduação em Política Social na Universidade Federal Fluminense.2 Graduada em Serviço Social (2001-2005), com Mestrado em Política Social (2007-2009), pela Universidade Federal Fluminense/UFF. Docente na Pós Graduação em Serviço Social e Sistema Sociojurídico, na UNISUAM, e Coordenadora da Pós-Graduação em Serviço Social e Políticas Sociais, pela FAGOC. Pesquisadora das temáticas de violência urbana, direitos humanos, direitos da infância e juventude.3 Decreto nº 17.943-a de 12 de outubro de 1927: “Art. 1º O menor, de um ou outro sexo, abandonado ou delinquente, que tiver menos de 18 annos de idade, será submettido pela autoridade competente ás medidas de assistencia e protecção contidas neste Codigo.” Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/de-creto/1910-1929/d17943a.htm (Acesso em: 25/07/2016)4 As crianças que se envolvem em situações consideradas ato infracional devem ter atenção especial em seu atendimento. De acordo com o ECA, nenhuma crian-ça pode ser apreendida e nem responder a nenhum procedimento policial.

A Lei N.8.069/1990 - Estatuto da Criança e do Adolescente es-tabelece as diretrizes para o atendimento de crianças e a apre-ensão de adolescentes envolvidos em ato infracional. Diferentemente das orientações determinadas pe-los antigos Códigos de Menores, que indicavam que a autori-dade policial poderia apreender os menores “abandonados e de-linqüentes”3, o ECA surgiu para alterar esta concepção e romper com o ciclo de institucionalização anteriormente implementado.

De acordo com o Estatuto, após os 12 anos de idade, o adolescente passa a responder por sua con-duta perante a sociedade. Apesar de ter garantido um atendimento pautado na proteção integral, estes jovens, ao se envolverem em situa-ção considerada contra a lei, podem ser apreendidos por autoridade policial, ser encaminhados para a Delegacia de Proteção a Criança e ao Adolescente ou para a delega-cia comum mais próxima e receber os procedimentos necessários de acordo com o que preconiza o Esta-tuto da Criança e do Adolescente4.

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A apreensão dos adolescentes autores de ato infracional é reali-zada pela Polícia Militar em caso de flagrante, ou pela Polícia Civil por mandado de busca expedido pelo Juiz da área de Infância e Juventude. Uma vez entendida sua ação como ato infracional, os arti-gos 171 a 190 do ECA determinam os procedimentos para o atendi-mento do adolescente que tenha cometido a infração na presença de adulto ou em companhia de outro jovem sob menoridade penal. Cabe ressaltar que a apreensão deverá ser efetuada sem expor o adoles-cente a constrangimento e situação vexatória, não podendo ele, ainda, ser conduzido ou transportado em compartimento fechado de veículo policial (ECA, art. 178).

A Delegacia Especializada de Proteção a Criança e ao Adolescente teve origem em todo o Brasil com o advento do Estatuto da Criança e do Adolescente, em 1990, preten-dendo realizar o atendimento de crianças e adolescentes vítimas de violência cometida por pessoas maiores de idade. A atuação desta delegacia estaria voltada para a apuração de denúncias e investi-gação de crimes contra crianças e

adolescentes, ou seja, alterando a lógica de repressão construída his-toricamente, rumo a uma política de proteção. Entretanto, nem todos os Estados seguiram a indicação de criar uma delegacia especiali-zada no atendimento de crianças e adolescentes vítimas de violência. Os Estados do Rio de Janeiro, Acre, Amazonas e Sergipe criaram suas DPCAs para atender casos de ado-lescentes que cometeram ato infra-cional5 (UNICEF, 2004).

Neste sentido, a DPCA do Es-tado do Rio de Janeiro foi criada com a Resolução Estadual nº. 460, de 27 de março de 1991. Em substitui-ção à antiga Delegacia de Menores, sob a nomenclatura Divisão de Segurança e Proteção ao Menor (DSPM)6, a DPCA criada recebeu o nome oficial de “Divisão de Prote-ção à Criança e ao Adolescente”. De acordo com esta resolução, foram mantidas as mesmas competências e estrutura organizacional da an-tiga DSPM - Resolução Estadual nº. 362, de 5 de março de 1990, na qual se devem destacar os procedimen-tos direcionados aos adolescentes em situação de ato infracional: “III - A apreensão de menores infra-tores e dos que se encontram em

5 Apenas no ano de 2004, foi criada uma delegacia especializada no atendimento da violência contra crianças e adolescentes, sob o nome “Delegacia da Criança e Adolescente Vítima – DCAV”, voltada para crianças e adolescentes vítimas de violência (Resolução nº. 681, de 18 de junho de 2004). Esta delegacia também fica localizada no Centro do Rio de Janeiro, e é única no Estado.6 Resolução Nº 262 de 13 de dezembro de 1978.

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possível estado de abandono ou quaisquer das situações previstas em lei como interditas (...)”. (RIO DE JANEIRO, 1990, p.2).

Este inciso III da resolução de 1990 foi mantido em sua ínte-gra para definir as atribuições da nova DPCA no que se relaciona à apreensão de crianças e adoles-centes. Embora quando da criação da DPCA já existissem as diretri-zes apontadas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, de 13 de julho de 1990, que desconsi-dera a nomenclatura “menor” e acaba com a doutrina de situação irregular, a resolução de 1991, foi elaborada sem alteração e mantém a proposta de apreensão dos consi-derados “menores infratores e em estado de abandono”, presente no antigo Código de Menores.

No Estado do Rio de Janeiro foram criadas duas DPCAs, atual-mente localizadas uma no centro da capital e outra no centro do mu-nicípio de Niterói. Sua estrutura está subordinada à Polícia Civil e vinculada, no organograma políti-co-administrativo, à Secretaria de Estado de Segurança Pública.

Na inexistência de Delegacias Especializadas de Proteção a Criança e ao Adolescente no local em que ocorrer a infração, os pro-cedimentos deverão ser realizados em uma delegacia distrital comum

para o registro da ocorrência e os devidos encaminhamentos. Ao ado-lescente apreendido sem flagrante, deverá ser instaurado na delegacia um AIAI (Auto de Investigação de Adolescente Infrator), responsável pelo início da investigação do fato considerado infracional.

Já em situações que envolvam a apreensão do adolescente com fla-grante7, instaura-se o AAAPAI (Auto de Apreensão de Adolescente por prática de Ato Infracional), no qual serão colhidas as declarações dos policiais. Todas essas informações irão compor o processo a ser enca-minhado posteriormente ao Juizado da Infância e Juventude para análise.

Em casos que o fato conside-rado delituoso ocorreu sem violên-cia ou grave ameaça, o responsável também é chamado para a en-trega do adolescente, sob a res-ponsabilidade de apresentá-lo ao Ministério Público da Vara da Infância e Juventude, no mesmo dia, ou diante da impossibili-dade, no primeiro dia útil após o registro do fato, conforme orienta o artigo 174 do ECA.

Para infração cometida com violência ou grave ameaça, o primei-ro procedimento é a apreensão deste adolescente. Na delegacia ela-bora-se o AAAPAI e encaminha-se o adolescente imediatamente ao Ministério Público.

7 Flagrante indica o momento, o efervescer do acontecimento, não podendo espe-rar, para que se dê a apreensão pela autoridade (CÂMARA, 1998).

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As equipes profissionais que atuam nas Delegacias de Proteção à Criança e ao Adolescente, bem como nas delegacias comuns, pre-cisam efetivar sua prática profis-sional articuladas com a rede e em consonância com o que pre-coniza o Estatuto da Criança e do Adolescente, diante da condição peculiar de desenvolvimento da população infanto-juvenil. Dentro desta perspectiva, a DPCA tem como missão a tarefa de promover a repressão e a proteção simultane-amente. Como delegacia especiali-zada8 na proteção deste segmento infanto-juvenil, integra-se ao Sistema de Garantia de Direitos, através do eixo de defesa, em con-junto com o Conselho Tutelar, Minis tério Público, Juizado da Infância e Juventude 9.

O poder público precisa estar preparado para atender crianças e adolescentes que transgredi ram alguma norma, com o compro-misso da proteção de seus direitos humanos e sociais. A dificuldade da realização de um trabalho inter-setorial entre os profissionais que integram o Sistema de Garantia de Direitos, parece ser essencial para este debate. A quantidade re-

duzida de DPCAs no Estado do Rio demonstra que a Secretaria de Estado de Segurança não prioriza a necessidade de equipamentos especializados para atender este segmento da população; a troca constante de delegados evidencia a dificuldade no trabalho de sen-sibilização destes atores e no pro-cesso de fortalecimento da rede; e a ausência de qualificação dos profissionais na temática de di-reitos da infância e adolescência indica que nem as delegacias es-pecializadas possuem profissio-nais especializados.

A reflexão sobre a existência e as atribuições de uma DPCA torna-se fundamental para que se compreenda se este equipa-mento vem sendo utilizado como um instrumento de proteção ou em uma dupla punição destes jovens. Os entraves no atendi-mento, capazes de resultar em demora do atendimento, em per-noite em salas de custódia de delegacias comuns, o desconhe-cimento da rede de serviços por parte dos profissionais lotados nas delegacias, podem implicar em práticas punitivas que vão além da violência física.

8 As delegacias especializadas, criadas a partir da década de 1920, surgiram com uma proposta diferenciada das delegacias comuns, fomentando a construção de uma cultura de pesquisa e investigação, legitimando o trabalho dos especialistas da área correspondente (NASCIMENTO, 2008).9 O Sistema de Garantia de Direitos foi criado pelo CONANDA, através da Resolução nº. 113/2006 e tem por atribuição organizar os atendimentos voltados para as crianças e adolescentes em três eixos: eixo de defesa, de controle e de promoção.

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O olhar dos gestores públicos não pode estar reduzido, dentro da temática dos adolescentes autores de ato infracional, ao cumprimento das medidas socioducativas e suas unidades de internação. A ação policial no ato infracional come-tido por criança; a apreensão do adolescente; a estrutura de atendi-mento da delegacia; a efetividade dos atendimentos e encaminha-mento realizados; bem como a existência de uma delegacia ver-dadeiramente especializada, com profissionais capacitados, conhe-cedores não apenas da legislação vigente, mas de todo o debate aqui apresentado, precisam ser incorpo-rados à agenda pública, com vistas à garantia e promoção dos direitos das crianças e adolescentes.

Esta proposta deve ter como meta minimizar os efeitos de re-vitimização desses adolescentes que, em geral, já se encontram em situação de vulnerabilidade so-cial em mo mento anterior à infra-ção. Entende-se que a orientação da política de segurança pública, as técnicas empregadas pela equipe policial e a articulação com a rede do Sistema de Garantia de Direitos apresentam-se de extrema valia para que a aplicação da medida so-cioeducativa não tenha um caráter apenas punitivo, como no período do Código de Menores, mas seja ca-paz de promover uma transforma-ção e o protagonismo na vida de

cada adolescente atendido pelo sis-tema de justiça brasileiro.

REFERÊNCIAS

BRASIL. CONANDA. Resolução nº. 113/2006. Dispõe sobre os parâmetros para a instituciona-lização do atendimento do Sistema de Garantia de Direitos. Disponível em: <http://www.presidencia.gov.br/estrutura_presidencia/sedh/.arquivos/.spdca/.arqcon/113resol.pdf>. Acesso em: 13/05/2008.

BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei Federal 8.069, de 13/ 07/ 1990. Secretaria Especial de Direitos Humanos, CONANDA. 3º edição, 2004. Disponível em: <http://www.presidencia.gov.br/estrutura_presidencia/sedh/.arquivos/.spdca/eca.pdf>. Acesso em: 23/04/2007.

NASCIMENTO, A. A. A especialização sem especialis-tas: Um estudo sobre as práticas (in) formais de investigação e de transmissão de conhecimento nas Delegacias Especializadas. Dissertação de Mestrado, Rio de Janeiro: UFRJ/IFCS, 2008.

RIO DE JANEIRO. Resolução Estadual Nº. 460, de 27 de março de 1991. Dispõe sobre a alteração da denominação da antiga Divisão de Segurança e Proteção ao Menor. Disponível em: <http://servproxy/

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DEPARTAMENTO GERAL DE AÇÕES SOCIOEDUCATIVAS (DEGASE)

Janaina de Fátima Silva Abdalla1

resoluções/res-1991/res460.asp>. Acesso em 14/02/2009.

RIO DE JANEIRO. Resolução Estadual Nº. 362, de 05 de março de 1990. Dispõe sobre as compe-tências da Divisão de Segurança e Proteção ao Menor. Diário Oficial do Poder Executivo do Estado do

Rio de Janeiro. ANO XVI, Nº 44, Parte, de 07/03/ 1990, p. 30.

UNICEF. Delegacias de Proteção e Infância. Coleção: Em Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente. São Paulo: Saraiva; Brasília, DF: UNICEF, 2004.

1 Pedagoga Degase. Diretora da Escola de Gestão Socioeducativa Paulo Freire – Novo Degase. Mestre em Comunicação, imagem e formação (UFF). Doutora em Educação (UFF). Professora Faculdade Gama e Souza.2Através do Decreto nº 18.493, de 26 de janeiro de 1993.

Criação do DEGASE

A origem do Departamento Geral de Ações Socioeducativas - DEGASE não se constitui ape-nas com o ato governamental de sua criação na década de noventa, mas é fruto de uma restruturação política, administrativa e busca de mudanças de paradigmas ao aten-dimento a criança e adolescentes no Brasil, em especial, a crianças e jovens pobres, excluídos de todo sistema de garantias de direitos, em risco social e envolvidos em atos ilícitos.

O marco legal para a sua criação foi o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), quando houve a redefinição das atribui-ções dos estados e municípios. Os abrigos para atendimento de crianças e adolescentes em situ-ação de vulnerabilidade social ficaram ligados aos municípios, cabendo ao Estado a estrutura de atendimento aos adolescentes em conflito com a lei. Em consequ-ência, foi criado – em janeiro de 19932 – o Departamento Geral de Ações Socioeducativas (DEGASE), ligado a então Secretaria de Estado de Justiça, com o objetivo de pro-

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mover, coordenar e controlar as ações pertinentes:

I. à prevenção, à ocorrência da ameaça ou violação dos direitos da criança e do adolescente;

II. à defesa e garantia dos direi-tos fundamentais e de proteção integral à criança e ao adoles-cente, na forma da Constituição Federal e da legislação específica;

III. à integração operacional com os órgãos do Judiciário, Ministé-rio Público, Defensoria Pública, Segurança Pública e Assistência Social, para efeito do atendimento inicial ao adolescente a quem se atribua ato infracional;

IV. à execução dos programas de atendimento às medidas socioeducativas de proteção específica aplicadas em con-formidade com o Estatuto da Criança e do Adolescente.

A criação do DEGASE aten-deu ao novo reordenamento das políticas públicas no país, preco-nizadas na Constituição de 1988, cujo texto valoriza a descentra-lização político-administrativa, atribuindo aos órgãos federais funções normativas e coordena-doras e aos órgãos estaduais e municipais a coordenação e exe-cução dos programas de proteção à criança e ao adolescente.

Contexto Histórico do DEGASE

No início dos anos 90, os organismos federais de execução (a FUNABEM e sua sucessora, a Fundação Centro Brasileiro para a Infância e Adolescência – CBIA), os quais passaram a outras esferas da administração pública.

Na organização e estrutura do DEGASE, incorporaram-se 03 (três) unidades de Internação3 da extinta FUNABEM/CBIA, situadas na Ilha do Governador.

Criou-se a Unidade de Re-cepção Socioeducativa - URSE, planejada com o objetivo de dar agilidade ao atendimento de crian-ças e adolescentes, integrando dentro de um mesmo espaço físico os órgãos da Delegacia de Prote-ção à Criança e ao Adolescente, o Juizado da Infância e Juventude, o Ministério Público, a Defensoria e a recepção do DEGASE (conforme o que está preconizado no artigo 88, inciso V do ECA).

Na mesma época, foram implantadas unidades socioedu-cativas denominadas de Centro de Recursos Integrados de Aten-dimento ao Menor - CRIAM (dezesseis unidades construídas no final dos anos oitenta, dis-tribuídas pela capital e alguns municípios do Estado), já aten-dendo ao Plano do Governo Federal de descentralização do

3 Instituto Padre Severino, Educandário Santos Dumont e Escola João Luiz Alves.

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atendimento às crianças e aos adolescentes, originário da CBIA.

O Estado do Rio de Janeiro foi o primeiro Estado da fede-ração a implantar o projeto de descentralização, antes mesmo da promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente, em razão de ser o único Estado em que a FUNABEM/ CBIA (esta última de curta duração, em período de transição) atendia diretamente às crianças e aos jovens em seus internatos.

A política de descentralização apontava para a necessidade de integração de recursos (munici-pais, estaduais e federais), para a participação comunitária e para a ação conjugada entre os diferentes atores sociais envolvidos com as questões da infância e juventude. No documento sobre a origem dos CRIAMs, anterior ao ECA/DEGASE e pertencente a Fundação para a Infância e Adolescência – FIA-RJ, percebe-se o processo de descentralização refletindo o início do processo de redemocratização do país, com a intenção de “criar condições para que se manifeste objetivamente a crença de que o ‘menor é problema de todos nós’ – pedindo soluções criativas, inte-ligentes, políticas e racionais. (FIA, 1986, pp. 2-3)”. Afirma ainda que:

o programa de descentralização tem uma dimensão estraté-

gica: encoraja a organização e a implantação de projetos táticos – mas a definição de programas e a concepção operacional sur-gem de um profundo raciocínio diagnóstico; e do respeito à com-posição política e social de cada região – interpretada por uma ampla participação comunitá-ria, através de organizações e estruturas rigorosamente demo-cráticas. (FIA, 1986, pp. 2-3)

A concepção do projeto de descentralização do “atendimento ao menor” no Rio de Janeiro tinha como ideias balizadoras: a pro-posta de ação conjugada entre diferentes parceiros; interdisci-plinaridade; e estruturação do atendimento em pequenas unida-des semiabertas nos municípios próximos às moradias dos adoles-centes e suas famílias.

Porém, atendimento socioe-ducativo para os adolescentes em conflito com a lei, principalmente a de privação de liberdade, sem-pre foi visto a partir de uma visão repressora e prisional. Da mesma forma que se pune o adulto infrator, a tendência é punir o adolescente infrator, havendo, pois, uma dico-tomia entre o discurso construído em torno da lei e o do sistema ope-racional de atendimento.

A nova lei, em princípio, poderia significar novas concep-ções de atendimento. No entanto, o DEGASE herdou a mesma

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estrutura organizacional das uni-dades pertencentes à FUNABEM/ FEBEMs/CBIA4 para o atendimento em internação, as medidas priva-tivas de liberdade: o Complexo da Ilha do Governador, a Escola João Luiz Alves, o Instituto Padre Severino, responsáveis pela execu-ção de medida socioeducativa de internação de adolescentes do sexo masculino, e o Educandário Santos Dumont, para o atendimento a adolescentes do sexo feminino e os CRIAMs (FIA, 1988).

Os CRIAMs – Centros de Recursos Integrados para Atendimento ao Menor – fica-ram responsáveis pelo controle das medida de restrição de liberdade: a Semiliberdade, a

Liberdade Assistida e a Prestação de Serviço à Comunidade5.

Poucos são os registros ofi-ciais da história do DEGASE durante 20 anos. Porém, através dos meios de comunicação e dos relatos orais, aparece uma história que nada tem de glamorosa: rebe-liões, denúncias de maus tratos e o não cumprimento dos preceitos legais do Estatuto da Criança e do Adolescente, como a escolarização e a profissionalização.

Em 1994, houve o primeiro con-curso público para funcionários do Departamento. O quantitativo mínimo, longe da necessidade real, foi convocado a mudar o modelo de atendimento ao adolescente herdado da antiga FUNABEM.

4 FEBEMs Fundação Estadual de Bem Estar do Menor – No estado do Rio de Janeiro permaneceu a nomenclatura de FUNABEM, e em curto período CBIA, e possuíam as seguintes unidades: Complexo de Quintino, Unidades da Ilha do Governador, que eram constituídas por internatos como a Escola 15 de Novembro, João Luiz Alves, Escola Odylo Costa Filho, Escola Mario Altenferder, Escola Padre Anchieta, Escola Eduardo Bartlet James. Estas escolas possuírem características diferentes no atendimento: menores infratores, meninas carentes, meninos abandonados e crianças excepcionais (BAZILIO, 2004). 5 A Execução de Medida Socioeducativa por determinação dos Juizados da Infância e Juventude prevista no Estatuto da Criança e do Adolescente define, no artigo 120, a Semiliberdade: “O regime de semi-liberdade pode ser determinado desde o início, ou como forma de transição para o meio aberto, possibilitada a realização de atividades externas, independentemente de autorização judicial”. Já em relação à Liberdade Assistida, diz o Artigo 118: “A liberdade assistida será adotada sempre que se afigurar a medida mais adequada para o fim de acompa-nhar, auxiliar e orientar o adolescente”. O artigo 117 fala da Prestação de Serviço a Comunidade: “A prestação de serviços comunitários consiste na realização de tarefas gratuitas de interesse geral, por período não excedente a seis meses, junto a entidades assistenciais, hospitais, escolas e outros estabelecimentos congêne-res, bem como em programas comunitários ou governamentais”. In: Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei Federal nº8.069/1990.

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Apesar da existência do Esta-tuto da Criança e do Adolescente, o controle continuava sendo a palavra de ordem das unidades de internação. Era preciso con-trolar os internos, não importava a forma. As condições de vida nessas unidades também não pug-navam pela dignidade.

Fui mandado para a Escola João Luiz Alves, para uma ala com mais de trinta adolescentes, depois de passar mais de sete horas com eles num espaço mínimo, sujo e com pouca iluminação, cercado por grades. Um agente se apro-ximou de mim e me perguntou o que eu estava fazendo ali, eu disse que era o meu posto. Então ele disse que ali era terra de nin-guém, e que eu poderia ter sido morto. Era área dos meninos. (ABDALLA, 2013 – Entrevista de Agente de disciplina)

O esgotamento técnico e operacional do modelo em vigor levou o sistema administrativo do DEGASE a uma crise institucional, exigindo uma corajosa reengenha-ria institucional.

Em 1997, houve uma grande rebelião na Escola João Luiz Alves, unidade de internação de ado-lescentes do sexo masculino. O incêndio então provocado destruiu grande parte do prédio no qual fun-cionava a Escola. Os adolescentes que lá estavam internados foram

transferidos provisoriamente para a Casa de Custódia Muniz Sodré, unidade desativada do Complexo Penitenciário de Bangu.

Em 1998, em respeito aos pre-ceitos dos artigos 92 (inciso VI) e 124 (inciso VI) do ECA, que recomen-dam o atendimento personalizado e em pequenos grupos – dando o direito ao adolescente de permane-cer internado na mesma localidade ou em unidades mais próximas ao domicílio de seus pais ou respon-sáveis –, a Secretaria de Estado de Justiça do Rio de Janeiro criou um Grupo de Trabalho para elaborar um projeto denominado Projeto de Excelência, o qual planejou a rees-truturação do DEGASE no sentido de regionalizar o atendimento: “[...] com a instalação de novas unida-des e programas, sem desprezar o potencial existente no Complexo da Ilha do Governador, compatibili-zando a racionalização dos recursos com os princípios do ECA” (Projeto Excelência, 1998, p. 2).

Sob nova direção, o DEGASE firmou parceria com o governo federal para liberação de verbas e a operacionalização do pro-jeto. Porém, as verbas não foram liberadas em sua plenitude, mas, ainda assim, parte do projeto possibilitou avanços no sistema socioeducativo estadual.

Essa direção não permane-ceu por muito tempo. As pressões do Judiciário, a falta de estrutura

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administrativa e a morosidade burocrática na liberação de verbas para a implantação da reestru-turação humana e física das unidades, agravadas pela super-lotação e rebeliões constantes, não permitiram tirar do papel os avanços contidos na legislação em termos de segurança cidadã e dos direitos fundamentais do adoles-cente em conflito com a lei.

A Penitenciária Muniz Sodré, onde estão internados 400 meno-res infratores, é um cruel campo de concentração, que só difere dos utilizados na 2.ª Guerra Mundial pelo espaço mais reduzido. A afir-mativa parece queixa de algum interno, mas foi feita pelo ex-di-retor do Departamento Geral de Ações Sociais e Educativas do Estado (DEGASE), Judá Jessé Soares, que pediu demissão quarta-feira. Não tenho fôlego para essa desumanidade, diz o ex-diretor. (...) Houve mudança na filosofia do Poder Judiciário, que passou a internar mais, em vez de aplicar penas alternati-vas. Ele refere-se ao juiz da 2.ª Vara de Justiça da Infância e da Juventude, Guaraci de Campos Vianna. Ele acha que faltam vagas nas instituições, mas o que falta é política para essas crianças se desenvolverem. (O Estado de São Paulo, 19/05/1998)

O clima de desgaste e ten-são permanente nas unidades

de internação e entre os poderes Executivo e Judiciário, tornando os dirigentes políticos desses órgãos literalmente reféns, em alguns momentos, dos operado-res do sistema, mostra a concreta luta de poder existente. Essa luta impossibilita a implantação de novos planos para melhorar as condições de vida dos adolescen-tes, personagens que deveriam ser centrais nesta história, mas não são. A nova administração do DEGASE deu continuidade ao Plano de Excelência.

O Programa de Cooperação Técnica Universidade Estadual do Rio de Janeiro-UERJ e DEGASE, com o apoio do Ministério da Justiça, através da Secretaria de Estado dos Direitos Humanos e por meio de convênio com a Secretaria de Estado de Justiça, iniciou novas ações socioeducati-vas nas instituições do DEGASE.

No segundo semestre de 1998, foram convocados funcionários concursados, reduzindo o número de contratados. A UERJ realizou um curso de atualização, envolvendo técnicos e agentes educacionais.

As unidades sofreram refor-mas estruturais. Foram estabele-cidas parcerias com as secretarias de Educação e de Trabalho e com Organizações Não Governamen-tais. Descentralizou-se o atendi-mento, e novas unidades e projetos foram inaugurados.

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A superlotação das unida-des agravava as condições de atendimento aos adolescentes, a centralidade das unidades de internação e internação provisó-ria, todas localizadas na cidade do Rio de Janeiro, e inviabilizava um trabalho articulado com as famílias e as comunidades de ori-gem dos adolescentes.

Assim, visando atender as demandas da baixada fluminense, região metropolitana ao Rio de Janeiro, foi criado, em setembro de 1998, o Centro de Atendimento Intensivo de Belford Roxo, para atender os adolescentes em conflito com a lei em regime de internação da baixada e dos demais municípios do estado. Lembrando que a Casa de Custódia Muniz Sodré havia dado lugar ao Educandário Santo Expedito, em 1997, tornando-se mais uma unidade socioeducativa.

As rebeliões e denúncias de um sistema violento intensificaram-se na mídia impressa e televisiva.

Em 1999, houve a implantação de um ambulatório para trata-mento de dependência química, denominado Nossa Casa.

Durante o Governo de Anthony Garotinho, o DEGASE deixou de ser vinculado à Secretaria de Justiça para fazer parte da Secretaria de Direitos Humanos e Assuntos

Penitenciários, sendo, portanto, alocado junto com sistema peni-tenciário dos adultos. A proposta prisional, até na estrutura orga-nizacional, não diferenciava um departamento do outro.

Em 2002, a Superintendência de Saúde, ligada à Secretaria de Direitos Humanos e Sistema Peni-tenciário, à qual o DEGASE estava vinculado, instalou o Núcleo de Avaliação Biopsicossocial Anita Heloísa Mantuano “com o objetivo de traçar o perfil do adolescente em conflito com a lei e, assim, sub-sidiar programas de educação e saúde individualizados” (Superin-tendência de Saúde, 2002, p. 2).

Com o investimento fede-ral no Projeto de Excelência e com a abertura do sistema pelo grupo de funcionários concursa-dos, houve alguns avanços, como a criação do CTR (Centro de Tria-gem e Recepção)6, atual Centro Socioeducativo Gelso Carvalho do Amaral- CENSE GCA; a reestrutu-ração do Centro Profissionalizante na Ilha do Governador; a criação de Polo de Liberdade Assistida da Capital, deslocando para esse novo órgão o atendimento anterior-mente realizado pelos CRIAMs; e a Implantação de Projeto Nossa Casa e do Centro de Tratamento para Dependentes Químicos.

6 O CTR é um centro de internação provisória e triagem para menores encami-nhados pela Delegacia Especial da Criança e do Adolescente e pelo Juizado da Infância e Juventude da Capital.

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Essas medidas não indicaram mudanças significativas no coti-diano das instituições socioedu-cativas de internação e internação provisória, na vida dos adolescen-tes, uma vez que os agentes e téc-nicos responsáveis diretos pelo contato com os adolescentes, não foram envolvidos nesses projetos.

Ou seja, aqueles que atuavam junto aos adolescentes internos con-tinuavam reproduzindo práticas institucionais punitivo-represso-ras. A ausência de discussão crítica e de formação técnica e o sucate-amento das instituições, muitas vezes, justificavam a contenção física ou a aplicação de formas de violência física e simbólica.

No período das eleições de 2002/2003, o DEGASE passou por diferentes gestões, em espe-cial na fase do governo liderada pelo Partido dos Trabalhadores7. Durante esse curto período, o DEGASE passou a fazer parte da Secretaria de Direitos Humanos, separando-se do DESIPE.

Ainda em 2002, foi criada uma unidade de internação (15 leitos) para dependência química, deno-minada “Recuperando Vidas”.

Em 2003, os servidores do DEGASE elaboraram o plano de ação socioeducativo denominado “Traçando Caminhos”. Na pro-

posta, os eixos e as ações estavam calcados na descentralização do atendimento socioeducativo; no fortalecimento da necessidade de um atendimento mais personali-zado aos jovens; na valorização da atenção às famílias; na implantação de unidades menores e regionali-zadas; e na aplicação de um plano político-pedagógico centrado nos direitos humanos.

O projeto não saiu do papel.

Novo DEGASE

A partir do ano de 2006 com a publicação pelo CONANDA da Resolução n° 119, que estabelece o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE), é pos-sível verificar no Brasil, a reconfi-guração da gestão e execução do atendimento ao adolescente a quem se atribui ato infracional. O SINASE torna-se um documento-guia para os sistemas socioeducatativos bra-sileiros. A época, o DEGASE pas-sou por uma nova reestruturação física, política e administrativa.

No mesmo ano o DEGASE firma um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) junto ao Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, no qual se compro-mete a descentralizar a execução

7 A vice-governadora Benedita da Silva, do PT, assumiu o Governo do Estado para que o então Governador Anthony Garotinho pudesse para concorrer à Presidência da República.

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das MSE de acordo com o que esta-belecido pelo ECA. Desta forma, reorganiza as unidades geografi-camente no território estadual.

O ano de 2007 caracterizou-se como um marco no atendimento socioeducativo, no contexto nacio-nal, pois o SINASE foi apresentado como referência para uma política pública e o DEGASE recebeu insu-mos financeiros, a nível federal, visando uma adaptação às novas bases conceituais, arquitetônicas e metodológicas, tomando como referência as normativas que ope-racionalizavam o ECA; passando a se denominar o “NOVO DEGASE”.

A partir de 2008, a execução das medidas socioeducativas começou a seguir novas orientações, com o intuito de adequá-las às diretri-zes dispostas no projeto SINASE, o DEGASE passa a pertencer a Secretaria Estadual de Educação Secretaria (SEEDUC), Decreto Lei nº 41.334, de 30/05/2008, e a respeito ao processo de municipalização e a primazia no cumprimento das medidas socioeducativas em meio aberto: Liberdade Assistida e Prestação de Serviço à Comuni-dade, e passaram a ser executadas pelos Centros de Referência Espe-cializada da Assistência Social (CREAS) dos municípios, inscritas na Política de Assistência Social. (PLANO DECENAL DE ATENDI-MENTO SOCIOEDUCATIVO DO

ESTADO DO RIO DE JANEIRO, CEDCA 2014. p15 )

Em 2009, os CRIAMs passam a ser denominados Centro de Recur-sos Integrados de Atendimento ao Adolescente (CRIAAD), buscando romper com a lógica do termo “menor”. Neste momento, há uma valorização da política de munici-palização, e os CRIAADs passam a ser responsáveis exclusivamente pela execução da medida de semi-liberdade, uma vez que até então os CRIAMs executavam também, conforme o município, as medidas de Liberdade Assistida e Prestação de Serviços à Comunidade.

Deste modo, o DEGASE passou a atender somente os adolescentes envolvidos em atos ilícitos em restrição (medida socioeducativa de semiliberdade) e privação de liberdade (medida socioeducativa de internação, internação provisória e triagem).

Nos anos subsequentes, as unidades sofrem grandes refor-mas, visando se adaptarem aos parâmetros do SINASE, sendo transformadas em Centros de So-cioeducação, além da instituição de novas unidades em uma po-lítica de descentralização, sendo inauguradas as unidades de in-ternação localizadas nos municí-pios de Volta Redonda e Campos dos Goytacazes. Atualmente, o DEGASE possui as seguintes 8 unidades de privação de liberdade

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(vide privação de liberdade), sendo 5 na Capital (Cense GCA, Cense Dom Bosco, Cense PACGC, EJLA), 1 na Região Metropolitana (CAI- Belford Roxo), 1 em Volta Redonda (Cense IAGU) e 1 em Campos de Goytacazes (Cense PMHA); e 17 unidades de medidas socioeduca-tivas de semiliberdade, os Centros de Recursos Integrados de Atendi-mento ao Adolescente (CRIAAD), localizados em vários municípios do estado do Rio de Janeiro (vide semiliberdade). Tal configuração, indica uma forte centralização das unidades de privação de liberdade, mesmo que seja possível observar uma maior descentralização da execução da semiliberdade.

Na última década, novas produções conceituais são ela-boradas, destacando-se a cons-trução do Plano de Atendimento Socioeducativo do Rio de Janeiro (PASE) e o Projeto Pedagógico Institucional do NOVO DEGASE (PPI), ambos aprovados em 2010; assim como os Projetos Políticos Pedagógicos de todas as unidades, caracterizando um direcionamento sociopolítico ao sistema socioedu-cativo (DEGASE, 2014/2015).

Medidas concretas, como o investimento na formação dos profissionais (ABDALLA, 2013, 2014 e 2015); reformas nas unida-des socioeducativas; construções de unidades descentralizadas; normatização dos procedimen-

tos e abertura para a realização de pesquisas acadêmicas nas uni-dades; convênios com instituições públicas, privadas e do terceiro setor; e o processo de municipali-zação das medidas em meio aberto (ABDALLA, 2010b), são apresenta-das e registradas nos documentos institucionais. Órgãos de controle do sistema, representantes da so-ciedade civil e do sistema jurídico e do sistema de garantia de direitos vêm acompanhando essa mudança.

Nos documentos do DEGASE, aparecem a sua missão:

Instituição integrante do sistema de garantia de direitos reco-nhecida nacionalmente como órgão de excelência, responsá-vel pela execução da política de atendimento socioeducativo aos adolescentes em conflito com a lei, em prol de uma sociedade livre, justa e solidária. (Missão DEGASE, 2010)

A missão define a perspec-tiva de um papel social a ser desempenhado pelo DEGASE na sociedade, de modo a dar um rumo e distingui-lo de outros sistemas socieducativos, destacando o que a organização (instituição) deve fazer na busca pela realização de sua visão (missão), dando-lhe um perfil institucional, definindo um territó-rio de atuação, criando um roteiro para as atividades e motivando:

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Promover a socioeducação no Estado do Rio de Janeiro, favo-recendo a formação de pessoas autônomas, cidadãos solidários e profissionais competentes, possi-bilitando a construção de projetos de vida e a convivência familiar e comunitária. (DEGASE, 2010)

Transformar os documentos apresentados pelo DEGASE em prá-ticas cotidianas é o grande desafio, em uma instituição que historica-mente tem torturado, aprisionado e docilizado o corpo e a mente dos adolescentes, reproduzindo e pro-duzindo a violência e a barbárie destes novos e velhos tempos.

O DEGASE, para além dos documentos, é construído e reconstruído pelos sujeitos ordi-nários, adolescentes, famílias e operadores do sistema socioedu-cativo estadual, na arte de fazer os espaços praticados e como afirma Antônio Carlos Gomes da Costa:

Se formos capazes de estrutu-rar a unidade educativa com sensibilidade, compromisso e competência sob os ângulos da subjetividade (cuidados para acolher) e da objetividade (zelo pedagógico com o ambiente físico e material), poderemos trabalhar, dentre inúmeros temas e áreas que convergem para o desen-volvimento pessoal e social do educando, valores como a solida-riedade, o respeito, o altruísmo, a

cidadania, a confiança, a ética, o afeto, a flexibilidade, a reciproci-dade, o compromisso, a amizade, o amor, o companheirismo e muito mais. Podemos trabalhar, e muito bem, a liberdade com o adolescente que dela está privado (COSTA, 2004, p. 75).

REFERÊNCIAS

ABDALLA, Janaina. Aprisio-nando para educar adolescente em conflito com a lei: memória, paradoxos e perspectivas. 2013. 193 f. Tese (Doutorado) - Curso de Doutorado em Educação, Uni-versidade Federal de Educação, Niterói, 2013.

ABDALLA Janaína de Fátima; JULIÃO, Elionaldo Fernandes, VERGÍLIO Soraya Sampaio (orgs). Delinquência juvenil, políticas públicas e direitos humanos. Rio de Janeiro: Novo Degase, 2014.

ABDALLA Janaina de Fatima Silva; SILVA Saturnina Pereira da (Org.) Ações Socioducativas Saberes e Práticas de Formação dos Operadores do Sistema Socieoducativo do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Novo Degase, 2013.

ABDALLA Janaina de Fatima Silva; SILVA Saturnina Pereira da; VELOSO Bianca Ribeiro (Org.)

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Ações Socioducativas : Formação e saberes. Rio de Janeiro: Novo Degase, 2015.

ABDALLA, J.F.S.; SENA, A.R.; SILVA, S. P. S. (Org.). Ações socio-educativas: municipalização das medidas em meio aberto do estado do Rio de Janeiro. 1ª ed. Rio de Janeiro: DEGASE, 2010.

ABDALLA, J. F. S.; SENA, A. R.; &amp; SILVA, S. P. (Org.). Ações Socioeducativas: Municipalização das Medidas em Meio Aberto do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: DEGASE, 2010a.

ABDALLA, J. F. S. Execução das Medidas Socioeducativas no Estado do Rio de Janeiro: do sancio-nal ao pedagógico. In: ABDALLA, J. F. S.; SENA, A. R.;; SILVA, S. P. (Org.). Ações Socioeducativas: Municipalização das Medidas em Meio Aberto do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: DEGASE, 2010b, pp. 91-105.

COSTA, A. C. G. As Bases Éticas da Ação Sócio-educativa. Belo Horizonte: Manuscrito impresso, 2004.

RIO DE JANEIRO (Estado). De-creto n º 18.493 de 26.01.1993. Cria-ção do Departamento Geral de Ação Socioeducativa - DEGASE. Diário Oficial [do] Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Poder Execu-tivo, n º 17, Parte I, 27.01.1993, p. 04.

RIO DE JANEIRO (Estado). Decreto 42.715 de 23 de novembro de 2010. Plano de Atendimento Socioeducativo do Governo do Estado do Rio de Janeiro – PASE/RJ. D. O. do Estado do Rio de Janeiro. Parte I; Poder Executivo Ano XXXVI; Nº 213 de 24 de novembro de 2010.

RIO DE JANEIRO (Estado). Secretaria de Justiça e Interior do Estado do Rio de Janeiro – Departamento Geral de Ações Socioeducativas. Projeto Exce-lência (1993). Cooperação Técnica UERJ/DEGASE: 1998.

RIO DE JANEIRO (Estado). Secretaria de Justiça e Interior do Estado do Rio de Janeiro – Fundação da Infância e Adolescência – Projeto de Criação do Centro de Recursos Integrados de Atendimento ao Menor - CRIAM : 1986.

RIO DE JANEIRO (Estado). Secretaria de Estado de Educação. Projetos Pedagógicos das Unida-des Socioeducativas do DEGASE. Rio de Janeiro : Impresso .Arqui-vos da Coordenação de Educação Esporte Cultura e Lazer. CECEL. DEGASE , 2014 e 2015.

RIO DE JANEIRO (Estado). Plano decenal de atendimento socioeducativo do estado do Rio de Janeiro. / Vários autores. Rio de Janeiro: CEDCA, 2014.

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DISCIPLINA

SOCIEDADE DISCIPLINAR / PANOPTICON

Sharon Will1

1 Psicóloga, Bacharel e Licenciatura (UFF - 1999), Mestre em Educação (UFF - 2009) e doutora em Educação (UFF - 2015). Professora do SENAC RIO e pesquisa-dora do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação Superior (NEPES) da UFF.

Em Vigiar e Punir (1999), Foucault, utilizando o método genealógico, faz uma análise das práticas punitivas e marca, na história do poder, um momento central: a passagem da soberania à disciplina, apresentando as práti-cas de punição que existiam antes do sistema penitenciário/penal. Ao tomar a prisão como objeto, ele põe em questão as redes de poder–saber a ela associadas em nossa sociedade, por meio do caminho das tecnologias, perguntando como se pune em cada tempo.

Descrevendo o suplício, o au-tor nos coloca diante de cenas sa-crificiais violentíssimas. Naquela forma de punição, o condenado era submetido a uma exposição pública de suas penas, a um es-petáculo de atrocidades sobre o corpo que era supliciado, visando a reativação do poder soberano

do rei, que havia sido ameaçado na execução do crime. O soberano encarnava a lei e, na medida em que ela era transgredida, o pró-prio corpo do rei era atacado, o que exigia uma ação imediata para reativar o poder soberano. O supliciado servia de exemplo para os outros. Política do medo, na qual, nas marcas do corpo supli-ciado, todos deveriam ver a pre-sença encolerizada do soberano, reativando o seu poder.

O suplício judiciário deve ser com-preendido também como um ritual político. Faz parte, mesmo num modo menor, das cerimônias pelas quais se manifesta o poder (...). O suplício tem uma função jurídico--política. É um cerimonial para re-constituir a soberania lesada por um instante. Ele a restaura mani-festando-a em todo o seu brilho. (FOUCAULT, 1999, p. 41)

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DISCIPLINA

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O ritual do suplício tinha suas limitações, precisava ser rea-tivado a cada quebra de poder do soberano, a cada violação da lei; além de inspirar revolta na multi-dão que o assistia. No decorrer do século XVIII, um grupo de refor-madores – tendo em vista que os suplícios cada vez atemorizavam menos e incitavam mais à revolta, em função dos movimentos de resistência àquela forma de exer-cício do poder – criou um novo modelo de punição: a prisão. Nela, ao invés de chicotear, jogar azeite, fazer o sujeito andar em brasas, mutilar o corpo puxando cada membro por um cavalo, depois incinerar o corpo, produzia-se a culpabilidade sem o espetáculo da crueldade.

O poder disciplinar sucede, então, as sociedades de soberania, cuja função era muito mais a de de-cidir sobre a morte do que a de ge-rir a vida. Tendo como alvo o corpo do homem, as disciplinas se apre-sentam como “métodos que per-mitem o controle minucioso das operações do corpo, que realizam a sujeição constante de suas forças e lhe impõem uma relação de do-cilidade–utilidade” (FOUCAULT, 1999, p.118), visando aprimorá-lo, adestrá-lo para, dele, obter o má-ximo de produtividade.

Este novo tipo específico de poder Foucault (1999) chama de

poder disciplinar. Tornou–se uma fórmula geral de dominação a partir dos séculos XVII e XVIII, tendo ainda como alvo o corpo do homem, no entanto, efetuando nele um trabalho de manipulação, que produz seu comportamento, visando permitir uma relação de docilidade–utilidade, levando à sua máxima utilização em ter-mos econômicos. Absolutamente sintonizada com a nova ordem econômica industrial emergente, que tinha pouco interesse em corpos mutilados e ineficientes do ponto de vista da produtivi-dade. (WILL, 2015, p. 179)

Foucault toma como modelo prenunciador das instituições dis-ciplinares o projeto de arquitetura – Panopticon – de Bentham (1977), elaborado em fins do século XVIII. O projeto de um edifício em forma de anel, no meio do qual há um pátio com uma torre no centro. O anel se divide em celas voltadas tanto para o exterior quanto para o interior, sem ponto de sombra. O modo de difusão da luz faz com que o encarcerado não consiga enxergar o exterior, nem o vigilante no centro da torre. Na torre central, por consequência, um vigilante a tudo pode observar, sem ser visto. A certeza de estar sendo olhado sem poder ver, a suspeita de uma vigilância constante sobre si, sem poder exercer esta vigilância sobre outrem estende a eficácia do

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poder, para quem a ele está sujeito, que passa a exercer tal vigilância, espontaneamente, sobre si mesmo. Como consequência, o exercício do poder pode independer de aspec-tos físicos, tendendo ao incorpóreo e, quanto mais se aproxima desse limite, mais seus efeitos se tornam adquiridos de forma profunda e contínua, sendo internalizado pelo sujeito (FOUCAULT, 1999).

Com o Panoptismo, é for-mado um saber sobre quem é observado. Sua classificação e registro, a análise de seu compor-tamento e sua comparação com um padrão de normalidade cons-tituem condições de possibilidade para o surgimento das ciências do homem, tais como a psicologia, a sociologia etc.

A vigilância permanente dos atos, a observação dos comporta-mentos em relação ao que é dele esperado, a imposição daquilo que se pode, ou melhor, daquilo que se deve ou não fazer é uma reali-dade cada vez mais espalhada em todos os pontos da rede social. Em nossas instituições, como escola, hospital e mesmo em nossa vida cotidiana, podemos perceber o modelo “panopticon” presente.

Para Foucault, a sociedade dis-ciplinar tem como objetivo tornar os homens obedientes e úteis. Além de caracterizar-se por um con-junto de técnicas de coerção que se exercem segundo um enquadri-

nhamento sistemático do tempo, do espaço, dos movimentos dos indivíduos e que abrangem parti-cularmente as atitudes, os gestos, os corpos, é também uma técnica de individualização – como vigiar alguém, como controlar sua con-duta, seu comportamento, suas aptidões, como intensificar seu desempenho, multiplicar suas capacidades, como colocá-lo no lugar, onde ele será mais útil.

Foucault chama a disciplina de “Anatomia Política” – cinco e meia da manhã já tem que estar de banho tomado, dente escovado e, então, chega o sujeito para exami-nar se as mãos estão limpas. Às sete e meia, tem que sentar à mesa para comer, às oito e quarenta e cinco, tem que trabalhar forçado; mas, no entanto, o corpo não é mais muti-lado, não vai mais para o suplício. O corpo encontra-se aí em posição de instrumento ou intermediário. Segundo essa penalidade o corpo é colocado num sistema de coação e de privação, de obrigações e de interdições. Os sofrimentos físicos, a dor do corpo não são mais os “elementos constitutivos da pena”. (FOUCAULT, 1999, p. 14)

O poder disciplinar se exerce sobre e pelo corpo atua de forma classificatória, hierarquizando os comportamentos, os resultados obtidos individualmente e pro-curando efetuar uma correção de modo que todos se pareçam, de

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maneira a se enquadrarem dentro das normas sociais.

A partir da prisão, as tecnolo-gias disciplinares se “espalharam” por diversas instituições: a escola, as fábricas, os hospitais. Se modi-ficaram ao longo dos tempos, se recriaram de outras formas, mas continuam tendo força e sendo reproduzidas nas práticas atuais.

REFERÊNCIAS

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Trad. Raquel Ramalhete. 19a edição. Petrópolis: Editora Vozes, 1999.

WILL, Sharon Varjão. Vigiar, Punir, Educar e Matar: Discursos de disciplinamento, controle e extermínio da popu-lação preta e pobre do Rio de Janeiro. Tese (Doutorado em Educação). Niterói: Universidade Federal Fluminense, Centro de Estudos Sociais Aplicados, Programa de Pós-Graduação em Educação, 2015. (mimeo)

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Babalawô Ivanir dos Santos1

1 Doutorando em História Comparada (UFRJ), Coordenador da Coordenadoria de Experiências Religiosas Tradicionais Africanas, Afro-brasileiras Racismo e Intolerância Religiosa (ERARIR/LHER/UFRJ), membro da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros (ABPN), do Laboratório de História das Experiências Religiosas (LHER-UFRJ) e Laboratório de Estudos de História Atlântica das socie-dades coloniais pós-coloniais (LEHA-UFRJ). Conselheiro estratégico do Centro de Articulações de Populações Marginalizadas (CEAP), Interlocutor da Comissão de Combate a Intolerância Religiosa (CCIR), Conselheiro Consultivo do Cais do Valongo.

Diversidade – O conceito de Diversidade é muito amplo e, pode ser aplicado em diferen-tes campos do conhecimento

humano. No campo religioso o conceito de diversidade, pode ser compreendida pelas diversas for-mas de expressões, configurações

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e ressignificações religiosas. No cerne do conceito de Diversidade Religiosa está o respeitou multou e anão violência, mantendo um fino equilíbrio entre a liberdade de expressão religiosa, o com-bate à Intolerância Religiosa e o Direitos Humanos.

Todo ser humano tem capacidade para gozar os direitos e as liberda-des estabelecidas nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, 336 , Goiânia, v. 12, n. 2, p. 332-344, jul./dez. 2014 sexo, idioma, religião, opinião polí-tica ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nasci-mento, ou qualquer outra condição. (Declaração Universal dos Direitos Humanos, 1948)

... E digo-lhes hoje, meus amigos, que embora enfrentemos as difi-culdades de hoje e de amanhã, ainda tenho um sonho.(Martin Luther King, 1963).

Ao longo dos processos his-tóricos das formações das nossas sociedades, vários grupos ligados a movimentos sociais de resistên-cias e valorizações culturais ou-saram, com grande maestria lutar em prol dos direitos das minorias representativas no poder político e econômico e pela diversidade re-ligiosa. Em dos grandes exemplos em nossa sociedade brasileira é a

criação, no ano de 2008, da Comis-são de Combate à Intolerância Re-ligiosa (CCIR). A organização, não governamental, foi almejada por grupos religiosos marginalizados com o intuído de denúncia, com-bater a intolerância religiosa e lutar em prol da liberdade e diversidade religiosa no Brasil e no mundo. A CCIR, como é também conhecida a organização realiza anualmente, deste o ano de 2008, no terceiro do-mingo mês de setembro a Cami-nhada pela Liberdade Religiosa. Um evento que tem o objetivo de reunir e dialogar com as diversas seguimentos religiões para que juntos possam caminhar em prol da Liberdade, Reconhecimento e Dignidade Religiosa.

Liberdade Religiosa – Direito um direto garantido por lei, desde a Constituição de 1824 e, ratificada na constituição de 1988. Segundo a Constituição Federal, no artigo: 5° VI, é “ser inviolável a liberdade de consciência e de crença, assegurando o livre exercício dos cultos religio-sos e garantindo, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e as suas liturgias”. Assim qualquer cida-dão tem o direito de expressar as suas religiões ou religiosidade e quaisquer ato ou atentado contra esse direito, dolosos ao patrimônio litúrgico, material e imóvel é uma acometida contra os direitos dos cidadãos brasileiros. Mas, infe-lizmente esse direito vem sendo

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DIVERSIDADE / LIBERDADE RELIGIOSA

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violado a cada instante por parte de seguimentos religiosos que acreditam que suas religiões são as únicas a terem direito a existir no mundo. Daí, advém a Intolerância Religiosa, o preconceito e até o racismo religioso. A intolerância é a antítese da Liberdade Religiosa, e durante boa parte da nossa his-tória ela, a intolerância, foi um dos motivos de perseguição contra grupos étnicos raciais. No Brasil, a luta pela liberdade religiosa e con-tra o racismo tornou-se um mote político dos grupos religiosos de Matrizes Africanas, marginali-zados pela sociedade brasileira e principalmente por alguns segui-mentos religiosos.

REFERÊNCIAS

Brasil. [1988].Constituição da República Federativa do Brasil .35. ed. Brasília : Câmara dos Deputados, Edições Câmara, 2012.

CARSON, Clayborne. A autobiografia de Martin Luther King, tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro. ZAHAR, 2014

FERREIRA, A. B. H. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. 2ª edição. Rio de Janeiro. Nova Fronteira. 1986. p. 602.

ORO, Ari Pedro; BEM Daniel F. de. A discriminação contra as religiões afro-brasileiras: ontem e hoje. In_ Ciênc. Let, Porto Alegre, n. 44, p. 301-318, jul./dez. 2008.

PIERUCCI, Antônio Flavio e PRANDI, Reginaldo. A realidade social das religiões no Brasil. São Paulo, Hucitec, 1996.

DICIONÁRIO DO SISTEMA SOCIOEDUCATIVO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

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EEDUCAÇÃO BÁSICA NA SOCIOEDUCAÇÃO

Maria Minerva de Medeiros Valle1

Claudia Ferreira da Silva Santos2

Claudia Regina Lopes dos Santos3 Cristina Marcelo dos Santos4

Elizabete Velloso5

Maria Angélica Sodré Novaes6 Valéria Evangelista do Nascimento7

1 Mestre em Gestão e Avaliação da Educação Pública pela Universidade Federal de Juiz de Fora, concluído em 2012. Servidora Pública da Secretaria de Estado de Educação do Rio de Janeiro, desde 07 de março de 1994, atual Diretora Regional Administrativa e Pedagógica da Diretoria Regional de Unidades Escolares Prisionais e Socioeducativas/DIESP.2 Assessora da Diretoria Regional Administrativa e Pedagógica/DIESP3 Coordenadora de Inspeção Escolar da DIESP4 Coordenadora de Administração da DIESP5 Coordenadora Regional de Gestão de Pessoas da DIESP6 Coordenadora de Gestão e Integração da Rede DIESP7 Coordenadora de Ensino, Avaliação e Acompanhamento da DIESP

As unidades escolares inse-ridas nas unidades de internação do DEGASE – Departamento Geral de Ações Socioeducati-vas – passaram, a partir de maio de 2007, a ser vinculadas direta-mente ao Gabinete do Secretário de Estado de Educação, em face da necessidade de acompanha-mento contínuo da gestão escolar com suas atividades pedagógicas

e administrativas, considerando as especificidades dessas escolas.

Reconhecendo que a educação é parte estruturante do sistema so-cioeducativo e que a aplicação e o sucesso das medidas socioeduca-tivas dependem de uma política educacional, em junho de 2008, foi criada, através do Decreto nº 41.348, a Coordenadoria Especial de Unidades Escolares Prisionais

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EDUCAÇÃO BÁSICA NA SOCIOEDUCAÇÃO

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e Socioeducativas (COESP), para atender às unidades escolares em espaços de privação de liberdade, em parceria com a Secretaria de Estado de Administração Peniten-ciária (SEAP) e o Departamento Geral de Ações Socioeducativas (DEGASE), fidelizando o atendi-mento aos alunos em privação de liberdade em uma única co-ordenadoria. Foi chamada de Coordenadoria Especial, pois abrangia escolas fora do espaço geográfico delimitado, como as de-mais coordenadorias. Esse fato foi um grande avanço na política de educação do Estado do Rio de Ja-neiro, bem como em nível nacional.

Em 2011, com a reestrutura-ção da SEEDUC, Decretoº 43.015, ficou alterada a denominação da Coordenadoria Especial de Unidades Escolares Prisionais e Socioeducativas (COESP) para Diretoria Especial de Unidades Escolares Prisionais e Socioeducativas (DIESP), ficando vinculada à Subsecretaria de Gestão da Rede e de Ensino, da SEEDUC com o atendimento exclusivo aos privados de liber-dade, compondo o quadro com as demais Diretorias Regionais, o que proporciona atendimento escolar para 07 escolas em uni-dades socioeducativas, em 04 (quatro) municípios do Estado que são: Rio de Janeiro, Belford Roxo, Volta Redonda e Campos dos

Goytacazes. A maior concentração encontra-se no Município do Rio de Janeiro, na Ilha do Governador.

Para atender às escolas, a DIESP têm as seguintes atribuições pedagógicas, conforme Decreto nº 42.838 de 2011:

I. acompanhar a implantação da metodologia de gestão escolar;

II. participar do processo das avaliações externas e diagnós-ticas, acompanhando perma-nentemente os resultados dos indicadores;

III. supervisionar a implantação de programas e projetos pedagó-gicos nas escolas;

IV. supervisionar o cumpri-mento do regimento, do calen-dário escolar, da matrícula e da frequência, em consonância com as diretrizes da SEEDUC;

V. supervisionar as inspeções realizadas nas Unidades Escola-res, de acordo com as diretrizes da SEEDUC;

VI. acompanhar e oferecer su-porte à formação dos profissio-nais da rede estadual de sua área de abrangência;

VII. realizar a interface com a Regional Administrativa e as áreas técnicas da SEEDUC, apontando as necessidades das Unidades Escolares, com foco pedagógico.

DICIONÁRIO DO SISTEMA SOCIOEDUCATIVO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

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Quanto às atribuições Adminis-trativas:

I. orientar e acompanhar a aquisição de bens e serviços pelas Unidades Escolares;

II. planejar a distribuição dos recursos financeiros de acordo com as necessidades da Regio-nal Administrativa, da Regional Pedagógica e das Unidades Esco-lares, em consonância com as diretrizes da SEEDUC;

III. orientar e acompanhar a prestação de contas dos recur-sos financeiros da Regional Administrativa, da Regional Pedagógica e das Unidades Esco-lares, em consonância com as diretrizes da SEEDUC;

IV. controlar e orientar os proces-sos administrativos e de pessoal das Unidades Escolares a partir das diretrizes da SEEDUC;

V. supervisionar as obras da rede física e controle patrimonial nas Unidades Escolares de maneira a garantir a execução conforme padrão de qualidade da SEEDUC;

VI. realizar a interface com a Regional Pedagógica e áreas téc-nicas da SEEDUC, apontando as necessidades das Unidades Esco-lares, (Administrativa, Finan-ceira, Pessoal, Infraestrutura e Tecnologia com foco pedagógico).

VII. supervisionar e acompanhar os serviços e bens contratados cuja execução e entrega, respec-tivamente, sejam nas Unidades Escolares ou nas sedes das

Regionais, em colaboração com o gestor do contrato.

A estrutura da DIESP é com-posta pela Diretoria Regional Administrativa/Pedagógica, a Co-ordenação de Administração, Co-ordenação de Ensino Avaliação e Acompanhamento, Coordenação de Gestão e Integração da Rede, cuja missão é gerenciar pedagó-gica e administrativamente, em interface com a Coordenação de Gestão de Pessoas e Coordenação de Inspeção Escolar, as unidades escolares localizadas em ambiente de privação de liberdade, atu-ando para a garantia do direito à educação para os adolescen-tes em cumprimento de medidas socioeducativas.

Tal estrutura é o reconheci-mento da condição singular do estudante em cumprimento de medida socioeducativa e da neces-sidade de instrumentos de gestão qualificados na garantia de seu direito à educação.

Da mesma forma, reconhece o papel social da escola como fator protetivo de adolescentes em cum-primento de medida socioeducativa e, portanto, do papel da escola no Sistema de Garantia de Direitos.

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EDUCAÇÃO BÁSICA NA SOCIOEDUCAÇÃO

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Principais Bases Legais

Constituição Federal – Em especial o Capítulo III – Da Educação, da Cultura e do Desporto.

ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente – Em especial o Capí-tulo IV – Do Direito à Educação, à Cultura, ao Esporte e ao Lazer.

Portarias SEEDUC – Docu-mentos emitidos pela Secretaria de Estado de Educação do Rio de Janeiro, publicados em Diário Ofi-cial, destinam-se a dar instruções e contêm, em minúcia, as orientações para a aplicação das normas legais.

Resoluções SEEDUC – São normativas emanadas pela Secre-taria de Estado de Educação do Rio de Janeiro, publicadas em Diário Oficial, cuja finalidade é disciplinar assuntos relativos à política educacional.

Sinase – Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo - através do qual é organizada a execução das medidas socioedu-cativas aplicadas a adolescentes aos quais é atribuída a prática de ato infracional.

Quadro das Unidades

Unidade Escolar Unidade Socioeducativa MunicípioC.E. Candeia Escola João Luiz Alves Rio de JaneiroC.E. Gildo Candido da Silva

Educandário Santo Expedito Rio de Janeiro

C.E. Irmã Therezinha de Barros

Cense Irmã Assunción de La Gándara Ustara

Volta Redonda

C.E. Jornalista Barbosa Lima Sobrinho

Cai Baixada Berford Roxo

C.E. Luiza MahinCense Antônio Carlos Gomes da

CostaRio de Janeiro

C.E. Padre Carlos Leôncio da Silva

Cense Dom Bosco Rio de Janeiro

C.E. Rui BarbosaCense Profª Marlene Henrique

AlvesCampos dos Goytacazes

DICIONÁRIO DO SISTEMA SOCIOEDUCATIVO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

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REFERÊNCIAS

BRASIL. Ministério da Edu-cação. Conselho Nacional de Educação. Diretrizes Nacionais para o atendimento escolar de adolescentes e jovens em cumpri-mento de medidas socioeducativas. Parecer CNE/CEB Nº 8/ 2015. Dis-ponível em http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=-25201-parecer-cne-ceb008-15-pd-f&category_slug=outubro-2015-p-df&Itemid=30192, acesso em 12 de julho de 2016.

BRASIL. Ministério da Justiça e Cidadania. Disponível em: http://www.sdh.gov.br/assun-tos/c r ia ncas - e -adolescentes/programas/sistema-nacional--de-medidas-socioeducativas/sistema-nacional-de-atendimen-to-socioeducativo-sinase-1, acesso em 12 de julho de 2016.

BRASIL. Presidência da Repú-blica. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constitui-cao/constituicaocompilado.htm, acesso em 12 de julho de 2016.

BRASIL. Presidência da Repú-blica. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8069Compilado.htm, acesso em 12 de julho de 2016.

RIO DE JANEIRO. Secretaria de Estado de Educação. Página Principal. Disponível em http://www.rj.gov.br/web/seeduc/princi-pal, acesso em julho de 2016.

RIO DE JANEIRO. Secretaria de Estado de Educação. Serviço informativo. Disponível em: http://www.rj.gov.br/web/seeduc/exibe-conteudo?article-id=268827, acesso em julho de 2016.

RIO DE JANEIRO. Secretaria de Estado de Educação. Referên-cias Legislativas. Disponível para consulta interna dos servidores, acesso cotidiano.

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EDUCAÇÃO POPULAR1

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EDUCAÇÃO POPULAR1

Elizabeth Serra Oliveira2

1 Este verbete tem como referência minha dissertação de Mestrado: Diferentes Sujeitos e Novas Abordagens da Educação Popular Urbana. UFF/2001.2 Pedagoga e Mestre em Educação pela Universidade Federal Fluminense, Doutora em Políticas Públicas e Formação Humana - Programa de pós-gra-duação e formação humana da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Professora do Departamento de Educação Superior do Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES).

De modo geral, tem sido deno-minada educação popular toda ação educativa destinada a crianças, adolescentes, jovens e adultos desenvolvida por instituições públicas ou privadas, no âmbito da educação não formal. Essa não tem sido, no entanto, uma compreensão consensual entre os que estudam e/ou trabalham nesse campo.

Portanto, muitas são as difi-culdades apresentadas nessa con-ceituação da educação popular. A primeira consiste na dificuldade de recuperarmos uma concepção mais universal de educação, isto é, de uma concepção na qual a edu-cação seja entendida como forma-ção humana na perspectiva da emancipação e da transformação social. Ou seja, reconhecer os pro-cessos educativos presentes tanto na escola como fora da escola.

A segunda dificuldade tam-bém se refere à compreensão de

formação. Compreender a escola como espaço de formação implica vinculá-la diretamente aos pro-cessos sociais concretos. Assim, escola como lugar também da educação popular. Vencer essa dificuldade significa romper com toda uma tradição no pensamento educacional, que concebe como educação apenas aquela minis-trada dentro da escola e, como educação popular, a prática forma-tiva desenvolvida fora da escola.

Nesse sentido, a educação popular no Brasil e na América Latina tem sua trajetória marcada pela ênfase nas práticas educati-vas que se desenvolvem fora da escola. Não obstante, a luta dos movimentos populares por escola pública de qualidade vem con-tribuindo para que seja rompida esta separação estanque, exigindo um lugar efetivo para a educação do povo na escola.

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A terceira dificuldade refe-re-se à pouca importância atri-buída historicamente a esse tipo de ação educativa pela sociedade brasileira e, consequentemente, pelas políticas públicas do país. Uma quarta dificuldade advém falta de especificidade desse tipo de educação, ou seja, do pouco en-tendimento sobre as práticas po-lítico-pedagógicas, características desse tipo de intervenção social. Outra dificuldade, ainda, apre-sentada na conceituação da edu-cação popular, diz respeito à explicitação do termo popular, que qualifica essa educação. Nessa perspectiva, Beisiegel (1982) res-salta que o uso indiscriminado do termo popular para designar ape-nas as ações no campo educacio-nal voltadas para a população de jovens e adultos termina por di-luir o caráter de classe e de etnias dessas intervenções educativas.

O conceito de popular, en-tretanto, adquire diferentes significados à medida que as ativi-dades a ele atribuídas se orientam para os segmentos ‘populares’ da coletividade e sua condição de classe e às potencialidades trans-formadoras são inerentes a essa condição”. (ibid: 50).

Wanderley (1986), reforçando essa perspectiva teórico-metodo-lógica na abordagem da educação popular, concebe-a como um

trabalho pedagógico voltado para a construção de uma socie-dade cujo poder esteja sendo construído pelos segmentos res-ponsáveis pela produção social – os trabalhadores. Tratar-se-ia, então, de uma “educação sócio transformadora”. Logo, o ele-mento distintivo da educação popular em relação às outras modalidades de educação é “a sua proposta e práxis((KONDER, 1992), direcionadas para a “efe-tiva transformação do homem, da sociedade e do Estado” (RODRIGUES, 1999).

A partir dessas concepções de educação popular, e também em função da análise da natureza dos movimentos sociais, compreende-mos que o que define a educação popular é o caráter político-peda-gógico, assim como seu projeto político-ideológico que, em última instância, definem-na como uma prática social que, trabalhando fundamentalmente com o conheci-mento, tem uma intencionalidade e objetivos políticos, “é indistin-tamente, um espaço de participação social e um método de ação política” (GAJARDO, 1995, p. 191).

Ressalta-se que, ao longo da nossa história, a literatura so-bre a educação popular apresenta concepções distintas quanto à na-tureza da educação popular. A primeira delas reporta-se à educa-ção popular como aquela destinada

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EDUCAÇÃO POPULAR1

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à alfabetização de jovens e adultos, concentrando suas atividades no espaço escolar. A segunda reserva à educação popular um caráter exclusivamente transformador, concentrando suas ações predomi-nantemente fora do espaço escolar. A terceira, e mais recente, com-preende a educação popular como uma educação política da classe trabalhadora, tanto numa pers-pectiva emancipatória como numa perspectiva de conformação com o status quo. Essa concepção advoga serem a escola e a sociedade espa-ços legítimos de educação popular.

Isto significa que as inicia-tivas de educação popular, em cada momento histórico, podem se identificar tanto com iniciativas da classe trabalhadora, como com o projeto dominante de sociedade.

Insistimos que a distinção entre a educação popular e as outras moda-lidades educacionais localiza-se em sua proposta de “práxis política” direcionada para a efetiva transfor-mação do homem e da sociedade.

Com a crescente socialização da participação política na América

Latina, e mormente no Brasil, a luta dos movimentos sociais, especial-mente aqueles organizados pelos3 trabalhadores – movimentos sociais populares, pastorais, sindicais e de partidos políticos de esquerda nos anos 80 –, teve como centro a demo-cracia. Isto fez com que o Brasil saísse do longo período de ditadura militar, iniciado em 1964, com uma sociedade civil “complexa e articulada” (COUTINHO, 2000, p. 88). De acordo com o autor, essa é uma tendência que vem se viabilizando desde os anos 30, ou seja, um processo de oci-dentalização de nossa sociedade.4

Coutinho também não nega a permanência de traços orientais em nossa sociedade contemporâ-nea, porém ressalta que a ociden-talização com traços específicos da situação brasileira “é há muito tempo a tendência dominante na vida política e social de nosso país” (COUTINHO, 2000, p. 89). Essa ocidentalização em nossa so-ciedade contemporânea deriva-se de dois modelos: o modelo ameri-cano e o modelo europeu. 5

3 Criamos as categorias pelos e para definindo os movimentos sociais criados por iniciativas de fora (para), e movimentos sociais criados pelos grupos in-seridos nas demandas. 4 Nas sociedades em processo de ocidentalização, evidencia-se (...) “uma relação equilibrada entre Estado e sociedade civil”, (GRAMSCI, 1975, in: COUTINHO, 2000, p. 88). E nas sociedades com traços orientais “o Estado é tudo e a sociedade civil é primitiva e gelatinosa” (Ibid).5 Ocidentalização de tipo americano: na qual a sociedade civil é despolitizada e as lutas sociais são corporativas e particularizadas. Ocidentalização de tipo euro-peu: é composto por um alto grau de associativismo e de democracia de massas.

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O neoliberalismo brasileiro apresenta traços de ocidentali-zação, no entanto, no âmbito dos movimentos sociais, observa-se um grande esforço por parte do bloco no poder em desconstruir e cooptar os movimentos sociais organizados pelos trabalhadores, movimentos em geral, com carac-terísticas de uma ocidentalização de tipo europeu. Além disso, observa-se também uma tenta-tiva de consolidar e legitimar os movimentos sociais organizados para os trabalhadores, próprios do processo de ocidentalização de tipo americano.

Este exercício de reorganização dos movimentos sociais pelo bloco no poder dá-se principalmente sob duas formas: através do estímulo à criação e expansão de Organiza-ções Não Governamentais (ONGs) de caráter filantrópico e de progra-mas de voluntariado. Assim, o “(...) envolvimento de ONGs e associa-ções filantrópicas tem criado uma aparência de participação demo-crática e logrado, inclusive, cooptar direções de movimentos popula-res” (BOITO,1999, p. 83).

De um modo geral, institucio-nalizados em forma de ONGs e/ou sob a dinâmica de Movimento, os movimentos sociais populares que se consolidaram na década de 90 tiveram suas ações voltadas para os seguintes campos: 1º) Iniciativas coletivas cuja prioridade se volta

para ações de melhoria das con-dições de vida; 2º) Lutas no campo institucional; 3º) Lutas por melhoria na qualidade de vida e reivindicações de mudanças estru-turais na sociedade.

O fortalecimento da sociedade civil dos anos 90 e a redefinição do modelo de ocidentalização da sociedade brasileira, implemen-tada pelos governos neoliberais, se constituem em determinantes sig-nificativos no surgimento de novos movimentos sociais urbanos. As iniciativas de pré-vestibulares ur-banos caracterizam essas novas formas de organização popular. As ações de pré-vestibulares po-pulares urbanos trazem em seu bojo as contradições decorrentes desses processos político-sociais.

Na década de 90, as condições econômicas, políticas e sociais que se apresentavam para a educação popular não eram as mesmas das décadas precedentes. Como sín-tese do movimento histórico, a educação popular não está imune às transformações e aos proje-tos societários. Nesse sentido, a concepção de educação popular, enquanto necessidade de um pro-jeto político da classe trabalhadora, continua presente nesta década. A ideologia neoliberal e seus projetos social e educacional hegemônicos não conseguiram fazer desapare-cer essa necessidade.

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EDUCAÇÃO POPULAR1

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Nos anos 90, as propostas de educação popular não se limita-vam às experiências de educação política das massas, ou mesmo à alfabetização de jovens e adultos e ensino supletivo para frações das camadas populares, realizados pre-dominantemente nos espaços não escolares da sociedade civil. Elas se consubstanciavam, também, em experiências de escolarização regular, bem como em experiências extraescolares de preparação para a escolarização de nível superior.

As concepções de educação popular enfrentam novos desafios ao se depararem com o processo de reestruturação produtiva (e sua consequente mudança no conteúdo e na organização do tra-balho, bem como no conjunto das relações sociais globais). Também representou uma mudança o alargamento do processo de socia-lização da participação política dos tempos de abertura democrática e, ainda, a hegemonia do ideário neoliberal nos processos sociais, em geral e especificamente, no campo da educação.

O primeiro desafio consiste no redirecionamento das ações educativas das forças políticas que se dedicam à construção de um projeto contra hegemônico para a sociedade brasileira. Estes come-çam a se voltar para processos educativos com vista à formação de intelectuais de novo tipo: espe-

cialistas e dirigentes com patamar superior de educação escolar, o que implica na democratização do acesso à educação superior.

O segundo desafio refere-se à compreensão do papel da escola. Hoje, a escola não mais é com-preendida apenas como aparelho reprodutor do projeto hegemô-nico. Isso faz com que os projetos educacionais de vários governos democráticos populares expres-sem seus projetos educacionais como projetos de educação popu-lar. Assim, a escola pública se apresenta como espaço possível de práticas de educação popular.

O terceiro desafio refere-se à opção de alguns movimentos sociais populares como, por exem-plo, o Movimento Sem Terra, em desenvolver projetos de educa-ção popular também nos espaços formais de educação. Esses espa-ços formais de educação se dis-seminam a partir das diretrizes gerais de seu projeto de sociedade. “Esses movimentos pensam a edu-cação estrategicamente, isto é, arti-culada à perspectiva do projeto” (PALUDO, 2000, p. 240). Hoje o MST continua com seu trabalho de educação popular enquanto for-mação política das massas, mas, ao mesmo tempo, traz essa educação popular para dentro dos espaços formais (escolas oficiais coordena-das pelo MST). São escolas de pri-

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meiro e segundo graus e, ainda, experiências de educação superior.

O quarto desafio diz respeito às possibilidades transformado-ras da democratização do acesso à educação superior, em tem-pos de hegemonia da educação neoliberal, na qual se constata o predomínio de uma educação para os pobres permeada por uma compreensão de educa-ção popular com a finalidade de suprir o déficit de escolaridade das camadas populares. Logo, uma educação com caráter apenas compensatório e de conformação de valores neoliberais.

Em síntese, podemos apontar para três conclusões extraídas das experiências de Educação Popular que se consolidaram na década de 1990, quais sejam: a) tais ini-ciativas extrapolam os espaços ditos “não formais”, tal como se verificava nas décadas anterio-res, e se concentram também nas iniciativas de escolas públicas de caráter popular; b) embora de forma embrionária, demons-tram clareza na perspectiva da educação popular vinculada a um projeto popular de desenvol-vimento social, em especial no MST; c) ultrapassam, ainda que de forma um tanto insipiente, a for-mação para o trabalho simples. Elas vêm demandando também a formação para o trabalho com-plexo. Ou seja, apontam para a

necessidade de ir além da edu-cação básica, buscam alcançar o grau superior de formação escolar.

REFERÊNCIAS

BEISIEGEL, Celso Rui. Cultura do Povo e Cultura Popular. In: A Cultura do Povo. Edênio Vale e José J. de Queiroz (org.). São Paulo: Educ., 1982.

BOITO, Armando Jr.. Política Neoliberalismo e Sindicalismo no Brasil. São Paulo: Ed. Xamã, 1999.

COUTINHO, Carlos Nelson. Contra Corrente: ensaio sobre democracia e socialismo. São Paulo: Cortez, 2000.

GARJADO, Marcela (comp.). Teoria y Práctica de la Educación Popular. Pátzcuaro: OEA-CREFAL-IDRC, 1985.

PALUDO Conceição. Educação Popular - Brasil anos 90: para além do imobilismo e da crítica, a busca de alternativas- uma leitura desde o Campo Democrático e Popular (Tese de doutoramento). Porto Alegre: UFRGS, 2000.

RODRIGUES, M. V. (1999). Qualidade de vida no trabalho: evo-lução e análise no nível gerencial. Petrópolis, RJ: Vozes.

WANDERLEY, Luis. Educar para transformar. Petrópolis: Vozes, 1986.

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EDUCAÇÃO PROFISSIONAL NA SOCIOEDUCAÇÃO

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EDUCAÇÃO PROFISSIONAL NA SOCIOEDUCAÇÃO

Bianca Ribeiro Veloso1 Aníria Bastos Dezedias2

1 Pedagoga do Departamento Geral de Ações Socioeducativas do Estado do Rio de Janeiro, Mestre em Educação Profissional em Saúde pela Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio da Fundação Oswaldo Cruz. Professora Substituta da Faculdade de Educação da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (2013-2015).2 Socioeducadora do Departamento de Ações Socioeducativas Especialista em Administração Pública pelo CEPERJ Atualmente ocupando o cargo de Diretora da Divisão de Profissionalização, na Coordenação de Educação, Cultura, Esporte e Lazer – CECEL/Degase).3 Nela encontramos o binômio mundo do trabalho-prática social ou exercício da cidadania-qualificação para o trabalho presente no seu conceito geral de Educação.

Das normas que orientam a Educação Profissional no Brasil e o direito à profissionalização para jovens e adolescentes, des-tacamos o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira (LDB)3, o Plano Esta-dual de Educação do Estado do Rio de Janeiro (PEE/RJ) e o Sis-tema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE).

A norma vigente destaca o dever do Estado em assegurar ao adolescente, com absoluta prio-ridade, o direito à educação e à profissionalização; contudo, se faz necessário o estabelecimento de políticas públicas com objetivos e metas que fortaleçam as possi-bilidades de acesso à Educação

Profissional, e garantam o aporte das escolas técnicas ao longo da execução das medidas socioedu-cativas nas unidades, priorizando o aspecto transformador da edu-cação e sua contribuição para desenvolvimento das qualidades a serem potencializadas em nos-sos adolescentes através da oferta de cursos que atendam os seus reais interesses.

De forma geral, a Educação Profissional pode ocorrer nas seguintes opções: a) cursos de formação inicial e continuada ou qualificação profissional; b) cur-sos de formação técnica de nível médio; c) cursos de educação profissional tecnológica de gradu-ação e pós-graduação; d) ensino profissional articulado com o

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ensino regular; e) ensino profis-sional desenvolvido na forma de educação continuada em insti-tuições especializadas; f) ensino profissional aplicado na forma de educação continuada no ambiente de trabalho (BRASIL, 1996).

Em 2008, uma alteração na LDB determinou que “as insti-tuições de educação profissional e tecnológica, além dos seus cur-sos regulares, oferecerão cursos especiais, abertos à comunidade, condicionada a matrícula à capa-cidade de aproveitamento e não necessariamente ao nível de esco-laridade” (BRASIL, 2008, art.42).

Já as definições para a Edu-cação profissional dentro dos sistemas socioeducativo e prisio-nal se apresentam um ano depois, em 2009, a partir do Plano Esta-dual de Educação do Estado do Rio de Janeiro (PEE/RJ), institu-ído através da Lei nº 5.597, de 18 de dezembro de 2009. O PEE vale como diretriz para todo o Estado, desde sua publicação.

O PEE/RJ ratifica todo o arcabouço legal presente na Constituição de 1988 e na LDBEN, ao situar a Educação Profissional na confluência dos direitos do cidadão à educação e ao trabalho.

O papel da Educação Profissional no contexto neoliberal

Uma das concepções edu-cacionais que atravessa a LDB, instituída no Governo FHC, se reflete no escopo de uma política neoliberal de constituição de um novo pensamento hegemônico de defesa do estado liberal, nesse sen-tido, um novo discurso acerca da educação passa a ser dominante, do fracasso da escola pública, pois diante do pensamento neo-liberal de fortalecimento do mer-cado, a desvalorização do público como resultado da decadência do Estado reafirmaria o papel pro-gressivamente minoritário que o Estado deveria assumir.

Articulado a essa política, o novo modelo de trabalho inau-gurado a partir da crise de 1970 torna o trabalho menos estável e trabalhadores mais competitivos e empregáveis.

A educação nesse contexto passa a ser fundamental na em-pregabilidade deste trabalhador, portanto faz-se necessário inculcar na mente das pessoas que quanto mais bem preparado, quanto mais certificado e diplomado mais “em-pregável” será. A educação passa a ser vista como investimento onde o sujeito estará mais competitivo no mercado, ou seja, uma concep-ção centrada na busca pela produ-tividade na educação.

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EDUCAÇÃO PROFISSIONAL NA SOCIOEDUCAÇÃO

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As políticas públicas destinadas à educação profissional inicial de jovens e adultos trabalhado-res inserem-se nesse contexto: o esvaziamento da escolarização de jovens e adultos por parte do MEC, a descontinuidade das ações educacionais, a indefinição de res-ponsabilidades entre as esferas de governo e a falta de efetivo compromisso com a modalidade do ponto de vista da alocação permanente de verbas públicas apontam para a secundarização dessas políticas no interior das políticas educacionais (DELUIZ; VELOSO, 2012, p. 68).

Portanto, as políticas de Educação profissional implemen-tadas são reflexo de um Estado, Sociedade Política e Civil4, que secundariza a pauta da Educação, que reproduz ações desarticuladas entre políticas de educação, de tra-balho/renda e de desenvolvimento e perpetua o ciclo da desigualdade e da exclusão social.

Pedagogias possíveis na profissionalização no âmbito da socioeducação

Dentre as várias concepções de Educação profissional presentes

na literatura, assinalamos as que se classificam em críticas e não críticas.

As correntes críticas da educa-ção são aquelas que veem a educação como mediação ético-política da formação humana, a qual possi-bilita a compreensão da realidade e potencializa a ação dos sujei-tos para superar a exploração e a alienação dos trabalhadores, obje-tivando a emancipação humana (RAMOS apud VELOSO, 2011).

As teorias não críticas dão ori-gem às correntes pedagógicas não críticas caracterizadas por conside-rarem a realidade como um dado natural e estável, onde através de uma representação desta reali-dade o ser humano se adapta a ela (RAMOS apud VELOSO, 2011).

A partir desse pensamento, podemos concluir que a finalidade de emancipação do educando, sua conscientização, politização e auto-mia rejeita qualquer processo que amesquinhe a formação para o tra-balho em práticas fragmentadas, pragmáticas de caráter tecnicista.

A existência de propostas peda-gógicas que vise à (re)inserção social do adolescente/jovem é pressuposto para a execução das medidas socio-educativas (MSE) e deve ter como ponto de partida e de chegada, a ressignificação de valores que lhe permitirão ampliar sua compreen-

4 A concepção ampliada de Estado, sob a ótica gramsciana, é a união entre sociedade civil e sociedade política, entre ditadura e hegemonia, coerção e consenso, entre dominação e direção (Veloso, 2011).

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são de mundo e de si, como protago-nista de sua história de vida.

Neste sentido, o Educador Antônio Carlos Gomes da Costa (1991), nos ensina que a capaci-dade de fazer-se presente na vida do educando não é, como muitos preferem pensar, um dom, uma ca-racterística pessoal intransferível de certos indivíduos, algo de pro-fundo e incomunicável. Ao contrá-rio, esta é uma aptidão que pode ser aprendida, desde que haja, da parte de quem se propõe a aprender, dis-posição interior, abertura, sensibili-dade e compromisso para tanto.

Para Costa (1991), a Pedagogia da Presença é parte de um esforço coletivo na direção de um conceito e de uma prática menos irreais e mais humanos de educação de adolescentes em dificuldades.

A articulação entre trabalho e educação aponta, na Pedagogia da Presença, para o conceito de Cultura da Trabalhabilidade, des-crita por Costa (2007, p.48) como a “forma mais genérica e ampla de articulação, que transcende os âmbitos da Educação Geral e da Educação Profissional, podendo e devendo estar presente nessas duas grandes vertentes da educa-ção”, por tratar-se, como cultura, de um modo compartilhado de ver, sentir, entender, decidir, agir, interagir e reagir em todos os âm-bitos do mundo do trabalho:

(...) A cultura da trabalhabi-lidade não prepara a pessoa apenas para desempenhar-se em determinado posto, ramo de tra-balho ou segmento da atividade empreendedora, mas para atuar no mundo do trabalho em toda a sua inteireza e complexidade. Como tal, essa cultura pressupõe e requer uma visão totalizante do trabalho (...) A cultura da trabalhabilidade é o que nos permite apreender a trajetória, a situação atual e as perspectivas do mundo do trabalho em cada etapa de sua evolução histórica(...) Por isso, esse tipo de forma-ção cultural requer habilidades metacognitivas, como apren-der a aprender (autodidatismo), ensinar o ensinar (didatismo) e conhecer o conhecer (construção de conhecimento novo). (COSTA, 2007, p. 48).

Costa (2007) salienta que este conceito ainda se encontra nos seus alicerces devendo ser desenvolvido hoje pensando no futuro. Todos aqueles envolvidos de alguma forma na viabilização pessoal, social e produtiva das juventudes devem estar atentos à progressiva aplicação deste con-ceito na prática.

Em primeira análise pode-se afirmar que um dos aspectos deste conceito se aproxima da visão de educação como formação ampla e integral, característico nas correntes pedagógicas de cunho crítico onde

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EDUCAÇÃO PROFISSIONAL NA SOCIOEDUCAÇÃO

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[…] é preferível elaborar a pró-pria concepção do mundo de uma maneira crítica e consciente e, portanto, em ligação com este trabalho do próprio cérebro, esco-lher a própria esfera de atividade, participar ativamente na produ-ção da história do mundo, ser guia de si mesmo e não aceitar do exterior, passiva e servilmente, a marca da própria personalidade [...] (GRAMSCI, 1978, p.12)

Ou seja, Costa (2007) pretende em algum nível, a partir desse conceito, propor a construção de processos formativos totalizantes, o que coaduna com a proposta de formação de sujeitos autônomos e críticos, que participem ativa-mente da história do mundo tendo consciência da realidade concreta5 na qual está inserido.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Lei no. 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do adoles-cente e dá outras providências. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/

L8069Compilado.htm. Acesso em 31 de agosto de 2016.

BRASIL. Lei de diretrizes e bases da educação nacional: Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Disponível em http://www.camara.leg.br/edi-tora. Acesso em 23 de julho de 2016.

COSTA, Antonio Carlos Gomes da. Juventude popular urbana: educação, cultura, tra-balho. São Paulo: Associação Caminhando Juntos (ACJ), 2007.

_______. Por uma Pedagogia da Presença. Governo do Brasil. Brasília,1991.

DELUIZ, Neise e VELOSO, Bianca R. O projovem em foco. Paraná: Editora Champagnat, 2012.

GRAMSCI, Antonio. Obras escolhidas. São Paulo: Martins Fontes, 1978.

VELOSO, Bianca R. As ações de qualificação profissional do Projovem Trabalhador a partir do arco ocupacional saúde na percepção dos alunos, professo-res e coordenador pedagógico. Dissertação de mestrado. Fiocruz, Rio de Janeiro, 2011.

Acumular todos os fatos não significa ainda conhecer a realidade; e todos os fatos [reunidos em seu conjunto] não constituem, ainda, a totalidade. Os fatos são conhecimentos da realidade se são compreendidos como fatos de um todo dialético [...] se são entendidos como partes estruturais do todo [...] A destrui-ção da pseudoconcreticidade é o processo de criação da realidade concreta e a visão da realidade da sua concreticidade (KOSIK, 2002, p.24-44).

DICIONÁRIO DO SISTEMA SOCIOEDUCATIVO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

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EDUCANDARIO SANTO EXPEDITO

Gustavo Rodrigues Andrade Silva1

Verônica Valença dos Santos2

Bruno Roberto Lino Lima3

Marcos Di Sarli de Carvalho4

Marco Aurélio de Rezende5

Fernanda Acioly6

1 Diretor Geral do ESE – Agente Socioeducativo com formação em Gestão de Segurança Pública.2 Diretora Adjunta do ESE – Assistente Social3 Diretor Adjunto do ESE – Agente Socioeducativo com formação em Gestão de Segurança Pública.4 Diretor Adjunto do ESE – Agente Socioeducativo com formação em Gestão de Segurança Pública.5 Psicólogo da equipe de Saúde Mental do ESE6 Pedagoga da equipe do ESE.

Em 1997, após uma rebe-lião na Escola João Luiz Alves – (EJLA), unidade do Departamento de Ações Socioeducativas (DE-GASE), que deixou um cenário de destruição em suas dependên-cias, foi necessária a transferência dos adolescentes que cumpriam medida socioeducativa (MSE) de internação naquela instituição. Como medida imediata, os in-ternos ficaram acautelados numa unidade desativada na antiga Casa de Custodia Muniz Sodré, próxima ao Complexo Peniten-ciário de Gericinó, cedida pelo antigo DESIPE, atual Secretaria Estadual de Administração Peni-tenciaria (SEAP), ao DEGASE.

A proposta era que os ado-lescentes oriundos da Escola João Luiz Alves ficassem temporaria-mente, mas o espaço passou a ser oficialmente uma unidade de exe-cução de medida socioeducativa de privação de liberdade de jovens, o Educandário Santo Expedito. No entanto, as instalações físicas não atendiam a necessidade de uma unidade para adolescente, uma vez que a estrutura era meramente carcerária, por se tratar de espaço para atender adultos em cumpri-mento de regime penal. Sendo as-sim, após ser definido que aquele espaço continuaria abrigando os adolescentes, foram realizadas al-gumas reformas buscando remo-

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EDUCANDARIO SANTO EXPEDITO

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delar e adaptar sua estrutura para o atendimento adequado àquela faixa etária, baseadas em princí-pios preconizados na Constituição Federal de 1988.

Embora tenham sido rea-lizadas algumas adaptações, reformas de manutenção predial, limpeza, pintura, entre outros, ainda houve dificuldades a des-peito da divisão física da unidade que não pode ser alterada.

Sendo assim, o Educandário Santo Expedito passou a funcio-nar como uma unidade que abriga adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa de interna-ção. Para atender aos parâmetros arquitetônicos e socioeducativos definidos pelo Sistema Nacional de atendimento socioeducativo (SINASE) e Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em 2007, iniciou-se uma nova fase de obras para adequar a estrutura física, respeitando orientações do PASE (Plano de atendimento socioe-ducativo) e PPI (Projeto Político Institucional) do Novo DEGASE.

Atualmente, o Educandário Sato Expedito é uma unidade que pertence ao DEGASE, instituição vinculada a Secretaria Estadual de Educação do Estado do Rio de Janeiro, cuja finalidade é atender adolescentes entre 16 a 21 anos que estão cumprindo medida socioedu-cativa de internação ou internação--sanção do Estado do Rio de Janeiro.

Apesar de o SINASE pre-ver que o adolescente cumpra medida próxima a sua residência (o funcionamento da unidade seria apenas com adolescentes mora-dores da capital), o Educandário ainda recebe adolescentes oriun-dos de outros municípios. No dia 19 de julho de 2016, havia 465 adolescentes cumprindo medida de internação, sendo 214 socioedu-candos de fora da capital do RJ.

Embora a unidade atual-mente se encontre superlotada e esteja funcionando a pleno vapor como unidade socioeducativa, alguns obstáculos se colocam no cotidiano do nosso trabalho.

Por toda sua história, e por estar em desacordo com o art. 16 da lei 12594/12 que proíbe a edificação de unidades socioeducacionais em espaços contíguos, anexos, ou de qualquer outra forma integrados a estabelecimentos penais, órgãos de defesa dos direitos humanos dialogaram e traçaram estraté-gias para a completa desativação do Educandário, havendo uma decisão transitada em julgado pedindo o fechamento da unidade. Enquanto isso, é nesse cenário que a equipe trabalha, traçando estraté-gias e metodologias que sinalizem os melhores procedimentos para alcançar um trabalho que garanta a proteção integral ao adolescente e a construção de um projeto de vida para os mesmos, que busque

DICIONÁRIO DO SISTEMA SOCIOEDUCATIVO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

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sua cidadania plena e o seu pro-tagonismo social, norteados pelos documentos legais referenciados pelo ECA e pelo SINASE.

Na lógica da política de atendimento ao adolescente em conflito com a lei, deve ser garan-tido e priorizado o elemento da formação. Esta, por sua vez, enten-de-se consubstanciada por outros elementos, tais como, escolariza-ção, profissionalização, rede de relações sociais, lazer, cultura e esportes. A construção da metodo-logia na MSE de Internação deverá indicar os melhores procedimen-tos a serem gestados, objetivando uma ressignificação de projetos de vida que, por conseguinte, terá rebatimento do ponto de vista social, possibilitando aos adoles-centes e suas famílias a assunção de fato do seu papel de sujeitos de direitos e não objetos destes.

Nos últimos anos, os adoles-centes em conflito com a lei e tudo aquilo que concerne sua formação e envolvimento com atos violentos tem ganhado destaque em nossa sociedade. Não por sua natureza nefasta, mas pelo aumento desme-dido no número de adolescentes envolvidos com a criminalidade, o que acarretou um aumento brusco no quantitativo de internos.

Neste espaço onde os adoles-centes recebidos trazem consigo uma bagagem muito maior do que as estigmatizações sociais e a

institucionalização podem supor, percebe-se a necessidade de um trabalho focado não apenas na garantia de direitos, mas no pró-prio reconhecimento do sujeito como portador de uma história, uma cultura, um sonho. Muitas vezes negado ou subtraído ao longo das insidiosas relações de poder e controle sociais.

A adolescência é uma fase de desenvolvimento na qual o indi-víduo passa por um momento de particular fragilidade. E como fase de transição é caracterizada como uma crise na qual predomina a desorientação, a procura da pró-pria identidade e o perigo de ser atropelado pelos conflitos a serem enfrentados. Juntamente a essa fase, adiciona-se a maioria desses adolescentes uma marca do con-texto familiar, social e cultural.

Inúmeros estudos revelam que o adolescente, autor de ato in-fracional, possui um grau de es-colaridade abaixo do esperado. Rompem-se os laços familiares, escolares por falta de identifica-ção ou, simplesmente, porque os padrões existentes dentro destes espaços já não preenchem a ampli-tude do que se pretende ser.

Contudo, o envolvimento do adolescente com a criminalidade não é exclusividade de famílias desfeitas, pobres e marginaliza-das. É óbvio que esses fatores con-tribuem em larga escala para a

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EDUCANDARIO SANTO EXPEDITO

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formação da clientela socioedu-cativa. Mas o desejo, a carência, a incoerência, o abandono não seguem apenas os filhos negros e pobres das periferias, seguem a todos que não conseguem reco-nhecer em si, de forma valorativa, o potencial mutável e transforma-dor do próprio caminho.

Segundo consta no ECA, os programas de execução de medi-das socioeducativas devem possi-bilitar que todos os adolescentes se apropriem de certos instrumen-tais capazes de constituí-los como cidadãos. Para tanto, é necessá-rio que apreendam a organização e distribuição de conhecimen-tos e habilidades disponíveis no momento histórico, que lhes seja permitida a preparação para o trabalho, o acesso ao desenvolvi-mento tecnológico, a participação crítica na vida política, ou seja, o acesso à cidadania.

Outrossim, à luz do que esta-belece o artigo 3º do Estatuto da Criança e do Adolescente, temos então a finalidade maior da socioeducação.

Art. 3º: A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fun-damentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, asse-gurando-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental,

moral, espiritual e social, em con-dições de liberdade e de dignidade.

Nesta perspectiva, a socioedu-cação, entendida como o processo de formação humana integral, atua sobre os meios para a reprodução da vida - e essa é sua dimensão mais visível e prática -, bem como coopera para estender a aptidão do homem para olhar, perceber e compreender as coisas, para se reconhecer na percepção do outro, constituir sua própria identidade, distinguir as semelhanças e dife-renças entre si e o mundo das coisas, entre si e outros sujeitos.

A socioeducação, articulada a partir dos eixos do desenvol-vimento físico, mental, moral, espiritual e social, poderá cons-tituir-se como um espaço de oportunidades para o exercício da cidadania plena, no exercício de uma cotidianidade repleta de pos-sibilidades para os adolescentes constituírem-se verdadeiramente sujeitos de direitos e portadores genuínos da proteção integral.

Nesse propósito, ao definir os atributos do ato socioedu-cativo como o de preparar os indivíduos para a vida social, ins-titui-se um parâmetro universal sobre os fins da socioeducação: o de formar os indivíduos para o exercício da Cidadania.

O Educandário Santo Expedito tem por objetivo executar a me-

DICIONÁRIO DO SISTEMA SOCIOEDUCATIVO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

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dida socioeducativa de internação através de um acompanhamento psicossocial e pedagógico, com a finalidade de acolher, cuidar, acompanhar, atender, promover, capacitar e tratar os adolescen-tes em conflito com a lei e seus fa-miliares, a fim de criar condições para que possam desenvolver as competências pessoais, relacionais produtivas e cognitivas que per-mitam seu retorno para o convívio social (PASE/RJ, art. 10).

Seu propósito é preparar a pessoa em formação (adolescentes) para assumir papéis sociais relacio-nados à vida coletiva, à reprodução das condições de existência (traba-lho), ao comportamento justo na vida pública e ao uso adequado e responsável de conhecimentos e habilidades disponíveis no tempo e nos espaços onde a vida dos indi-víduos se realiza. Ao lado disso, desdobra-se o conjunto das ações educativas a serem desempenha-das pelos socioeducadores que devem buscar articulação entre as relações práticas da educação e a necessidade do adolescente à vida política e social, individual e coletiva, sendo a educação o cami-nho necessário para a formação do sujeito-cidadão ao dotar os edu-candos dos instrumentos que lhes são necessários e pertinentes.

A finalidade é propiciar o crescimento individual, ao mesmo tempo em que harmoniza a in-

dividualidade desenvolvida com a unidade orgânica do grupo so-cial ao qual o indivíduo pertence, permitindo a sua inclusão como adolescente-cidadão protagonista de sua realidade e comprometido com a modificação do mundo que o cerca. A partir do acompanha-mento dos adolescentes e jovens de 16 anos e 21 anos, que se en-contram em cumprimento de MSE de internação e internação-san-ção, desenvolver um atendimento integral com qualidade, na pers-pectiva de contribuir na (re) construção do seu projeto de vida, em consonância com os precei-tos estabelecidos na Constituição Federal de 1988, ECA e SINASE,.

REFERÊNCIAS

BRASIL, Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do ado-lescente. Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo – SINASE. Brasilia: Conanda 2016.

BRASIL, Presidência da Repú-blica. SINASE. Lei nº 12.594. Institui o Sistema Nacional de Atendi-mento Socioeducativo (Sinase), regulamenta a execução das medidas socioeducativas destina-das a adolescente que pratique ato infracional. Brasília, 18 de janeiro 2002. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-

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Egresso do Sistema Socioeducativo / AMSEG

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2014/2012/lei/l12594.htm. Acesso em 12 de junho de 2016.

BRASIL, Presidência da República. Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei 8.069/90. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras pro-vidências. Brasília, 13 jul. 1990. Disponível em http://www.pla-

nalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8069.htm. Acesso em 20 de julho 2014.

BRASIL. PASE. Estado do Rio de Janeiro, Poder Executivo, 2010.

Educandário Santo Expedito (ESE)– Projeto Político Pedagógico 2015 – Estado do Rio de Janeiro, 2015.

EGRESSO DO SISTEMA SOCIOEDUCATIVO / AMSEG

Dulci Sebra1

Maria Stela2

Saturnina Silva3

Vera Durão4

1 Psicóloga - Departamento Geral de Ações Socioeducativas.2 Assistente Social - Departamento Geral de Ações Socioeducativas.3 Especialista em Violência Doméstica contra Criança e Adolescente USP/Assistente Social - Departamento Geral de Ações Socioeducativas – Assessora.4 Psicóloga – Especialista em Psicologia Clínica e de Trânsito - Departamento Geral de Ações Socioeducativas – Agente de Disciplina.

Entende-se por egresso no sistema socioeducativo o adoles-cente/jovem que cumpriu medida socioeducativa de internação, se-miliberdade, liberdade assistida ou prestação de serviço à comu-nidade por algum ato infracional cometido, tendo seu processo de execução extinto.

O Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, lei nº 8.069 –, no seu artigo 94 dispõe “As en-

tidades que desenvolvem pro-gramas de internação tem as seguintes obrigações, entre ou-tras: inciso XVIII - manter pro-gramas destinados ao apoio e acompanhamento de egressos”.

O Sistema Nacional de Aten-dimento Socioeducativo (SINASE), em suas normativas, estabelece, no item 6.3.1.5, que as entidades e ou programas que executam a me-dida socioeducativa de interna-

DICIONÁRIO DO SISTEMA SOCIOEDUCATIVO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

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ção deverão dispor de programa de acompanhamento opcional aos egressos da internação.

O Departamento Geral de Ações Socioeducativas (DEGASE), órgão responsável pela execução das medidas de internação e semi-liberdade, através da Assessoria às Medidas Socioeducativas e ao Egresso (AMSEG) – elabo-rou em 2014 o “Projeto Egresso do Sistema Socioeducativo do Estado do Rio de Janeiro” com a finalidade de atender o que é preconizado no ECA e SINASE, entendendo a importância de dar continuidade ao trabalho desen-volvido durante o cumprimento da medida e de assegurar o acesso do adolescente/jovem ao Sistema de Garantia de Direitos na busca do protagonismo juvenil.

Para a elaboração do Projeto, foi realizada pesquisa nas Unida-des para identificar as demandas dos egressos e constatou-se: 26% dos adolescentes/jovens voltam para rever os funcionários; 22% em busca de cópia de documen-tação; 15% de orientação para fins profissionais; 9% para expressar gratidão aos funcionários por acreditarem nele; 8% para infor-mar o seu ingresso no mercado de trabalho e sobre o seu pro-gresso de vida.

Inicialmente, o projeto desen-volvido pela AMSEG observou que o quantitativo de adolescentes

que tem a medida de internação e semiliberdade extinta é ínfimo e que geralmente procuram a uni-dade onde cumpriram a última medida socioeducativa por serem próximas ao território de moradia e os profissionais com quem esta-beleceram vínculo. O número re-duzido de egressos da internação e semiliberdade se dá em função de a maioria dos adolescentes re-ceberem a progressão para as me-didas em meio aberto (liberdade assistida e prestação de serviço à comunidade) de responsabilidade de execução dos municípios atra-vés dos Centros de Referência de Assistência Social (CREAS), uni-dade pública estatal, de abran-gência municipal ou regional, referência na oferta de trabalho social a famílias e indivíduos em situação de risco pessoal e social por violação de direitos, que de-manda intervenções especializa-das no âmbito do Sistema Único da Assistência Social (SUAS) .

Diante desta realidade, atu-almente, a AMSEG trabalha na perspectiva de incentivar e impli-car as unidades para desenvolver o projeto tendo em vista a proxi-midade com o adolescente/família e o conhecimento/articulação com a rede socioassistencial local para orientar e encaminhar as deman-das apresentadas.

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ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE (ECA)

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REFERÊNCIAS

BRASIL. Lei Federal nº 8.069/1990. Estatuto da Criança e do Adolescente. Brasília, 1990.

BRASIL. Lei Federal nº 12.594/2012. Lei do SINASE. Brasília, 2012.

BRASIL. Orientações técnicas. Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS). Ministério do Desenvolvimento

Social e Combate à Fome. Secretaria Nacional de Assistência Social, 2011.

BRASIL. Sistema Nacional Atendimento Socioeducativo – SINASE (2006).

PROJETO. Egresso do Sistema Socioeducativo do Estado do Rio de Janeiro. Elaborado pela equipe da Assessoria às Medidas Socioeducativas e ao Egresso. Rio de Janeiro: DEGASE, 2014.

ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE (ECA)

Elisa Costa Cruz1

1 Defensora Pública. Subcoordenadora da CDEDICA. Doutoranda em Direito Civil na UERJ.2 Art. 2º Considera-se criança, para os efeitos desta Lei, a pessoa até doze anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade.Parágrafo único. Nos casos expressos em lei, aplica-se excepcionalmente este Estatuto às pessoas entre dezoito e vinte e um anos de idade.3 A Convenção sobre Direitos da Criança foi ratificada pelo Brasil e promulgada pelo Decreto n. 99.710, de 21 de novembro de 1990O art. 2º tem o seguinte teor:

1 Os Estados Partes respeitarão os direitos enunciados na presente Convenção e assegurarão sua aplicação a cada criança sujeita à sua jurisdição, sem dis-

Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) é o nome jurídico da Lei n. 8.069, sancionada em 13 de julho de 1990 e publicada em 16 de julho de 1990 no Diário Oficial da União (com republicação por incor-reção em 27 de setembro de 1990).

O Estatuto possui como inspira-ção a doutrina da proteção integral e

da prioridade absoluta à criança e ao adolescente2, cuja aceitação no sis-tema jurídico brasileiro ocorreu no art. 227 da Constituição da República de 1988 e art. 2º da Convenção sobre Direitos da Criança3.

Até sua vigência, o direito da infância tinha como diretriz norte-adora a doutrina do menor exposto

DICIONÁRIO DO SISTEMA SOCIOEDUCATIVO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

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ou em situação irregular, assim considerado esse último como aquele que estivesse privado de condições essenciais à subsistência, à saúde e à instrução obrigatória, vítima de maus tratos ou castigos imoderados impostos pelos pais

ou responsável, em perigo mora, privado de representação ou assis-tência legal pela falta eventual dos pais ou responsável, com desvio de conduta em virtude de grave inadaptação familiar ou comunitá-ria ou autor de infração penal4.

tinção alguma, independentemente de raça, cor, sexo, idioma, crença, opi-nião política ou de outra índole, origem nacional, étnica ou social, posição econômica, deficiências físicas, nascimento ou qualquer outra condição da criança, de seus pais ou de seus representantes legais.2 Os Estados Partes tomarão todas as medidas apropriadas para assegurar a proteção da criança contra toda forma de discriminação ou castigo por cau-sa da condição, das atividades, das opiniões manifestadas ou das crenças de seus pais, representantes legais ou familiares.

4 O Decreto n. 5.083, de 01 de dezembro de 1926, foi o primeiro Código de Menores do Brasil, o qual era aplicado às crianças expostas, abandonadas ou delinquen-tes, conforme dispunha o art. 1º: “O Governo consolidará as leis de assistência e protecção aos menores, adicionando-lhes os dispositivos constantes desta lei, adoptando as demais medidas necessárias á guarda, tutela, vigilância, educação, preservação e reforma dos abandonados ou delinquentes, dando redacção har-mônica e adequada a essa consolidação, que será decretada como o Código dos Menores”. A lei 6.697/1977 passou a adotar a teoria do menor em situação irregu-lar para atrair a incidência do Código de Menores:Art. 2º Para os efeitos deste Código, considera-se em situação irregular o menor:

I - privado de condições essenciais à sua subsistência, saúde e instrução obri-gatória, ainda que eventualmente, em razão de:a) falta, ação ou omissão dos pais ou responsável;b) manifesta impossibilidade dos pais ou responsável para provê-las;Il - vítima de maus tratos ou castigos imoderados impostos pelos pais ou responsável;III - em perigo moral, devido a:a) encontrar-se, de modo habitual, em ambiente contrário aos bons costumes;b) exploração em atividade contrária aos bons costumes;IV - privado de representação ou assistência legal, pela falta eventual dos pais ou responsável;V - Com desvio de conduta, em virtude de grave inadaptação familiar ou comunitária;VI - autor de infração penal.

Parágrafo único. Entende-se por responsável aquele que, não sendo pai ou mãe, exerce, a qualquer título, vigilância, direção ou educação de menor, ou volunta-riamente o traz em seu poder ou companhia, independentemente de ato judicial.

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ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE (ECA)

E

Embora legislativamente ino-vador, porque à época pouco de-bate havia sobre a proteção de crianças, os Códigos de Menores de 1926 e 1977 promoviam trata-mento discriminatório pois a eles se submetiam apenas as crianças sem família ou de famílias pobres5.

Com a promulgação da Constitui-ção de 1988, a ratificação da Conven-ção e a publicação do Estatuto, houve uma grande alteração de paradigma no tratamento legal de crianças e ado-lescentes: a condição fática da criança – como abandono ou exposição – dei-

xou de ser o fator relevante para atrair a incidência da norma especializada, passando a proteção legislativa espe-cífica ser aplicável a todas as crianças ou adolescentes, independentemente da existência de situação violadora de direitos, como fica claro da leitura do art. 1º do Estatuto6.

Essa alteração de paradigma surge no mesmo contexto de valori-zação de direitos humanos que domi-nou o cenário mundial no pós-guerra e inspirou a Constituição de 1988 a ado-tar como postulado, princípio e dire-triz a dignidade da pessoa humana7.

5 “A doutrina subjacente ao Código Mello Mattos (CMM) era a de manter a or-dem social. As crianças com família não eram objeto do Direito; já as crianças pobres, abandonadas ou delinqüentes, em situação irregular – e apenas aquelas que estivessem em situação irregular-, passariam a sê-lo. Estariam em situação irregular aqueles menores de idade (18 anos) que estivessem expostos (art.14 e ss, CMM); abandonados (art.26, CMM); ou fossem delinquentes (art.69 e ss, CMM). Era, pois, um tratamento conservador e parcial da questão; mas apesar disto constituía-se em um avanço legislativo considerável.” (AZEVEDO, s/d , p. 6) 6 O reconhecimento de que o ECA se aplique a todas as crianças e adolescen-tes não significa que a justiça especializada da infância terá competência para processar e julgar todos os litígios que envolvam seus direitos ou interesses. O juizado da infância só terá competência nas situações previstas nos arts. 98, 148 e 148 do ECA. Nos demais casos, segue-se a regra geral, ainda que se apliquem as disposições do ECA.7 A leitura do preâmbulo da Convenção sobre Direitos da Criança é esclarecedo-ra sobre o conteúdo e inspiração da doutrina da proteção integral:“Os Estados Partes da presente Convenção,Considerando que, de acordo com os princípios proclamados na Carta das Nações Unidas, a liberdade, a justiça e a paz no mundo se fundamentam no re-conhecimento da dignidade inerente e dos direitos iguais e inalienáveis de todos os membros da família humana;Tendo em conta que os povos das Nações Unidas reafirmaram na carta sua fé nos direitos fundamentais do homem e na dignidade e no valor da pessoa humana e que decidiram promover o progresso social e a elevação do nível de vida com mais liberdade;Reconhecendo que as Nações Unidas proclamaram e acordaram na Declaração Universal dos Direitos Humanos e nos Pactos Internacionais de Direitos

DICIONÁRIO DO SISTEMA SOCIOEDUCATIVO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

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Humanos que toda pessoa possui todos os direitos e liberdades neles enuncia-dos, sem distinção de qualquer natureza, seja de raça, cor, sexo, idioma, crença, opinião política ou de outra índole, origem nacional ou social, posição econômi-ca, nascimento ou qualquer outra condição;Recordando que na Declaração Universal dos Direitos Humanos as Nações Unidas proclamaram que a infância tem direito a cuidados e assistência especiais;Convencidos de que a família, como grupo fundamental da sociedade e ambien-te natural para o crescimento e bem-estar de todos os seus membros, e em par-ticular das crianças, deve receber a proteção e assistência necessárias a fim de poder assumir plenamente suas responsabilidades dentro da comunidade;Reconhecendo que a criança, para o pleno e harmonioso desenvolvimento de sua personalidade, deve crescer no seio da família, em um ambiente de felici-dade, amor e compreensão;Considerando que a criança deve estar plenamente preparada para uma vida in-dependente na sociedade e deve ser educada de acordo com os ideais proclama-dos na Cartas das Nações Unidas, especialmente com espírito de paz, dignidade, tolerância, liberdade, igualdade e solidariedade;Tendo em conta que a necessidade de proporcionar à criança uma proteção especial foi enunciada na Declaração de Genebra de 1924 sobre os Direitos da Criança e na Declaração dos Direitos da Criança adotada pela Assembleia Geral em 20 de no-vembro de 1959, e reconhecida na Declaração Universal dos Direitos Humanos, no Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (em particular nos Artigos 23 e 24), no Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (em particular no Artigo 10) e nos estatutos e instrumentos pertinentes das Agências Especializadas e das organizações internacionais que se interessam pelo bem-estar da criança;Tendo em conta que, conforme assinalado na Declaração dos Direitos da Criança, “a criança, em virtude de sua falta de maturidade física e mental, ne-cessita proteção e cuidados especiais, inclusive a devida proteção legal, tanto antes quanto após seu nascimento”;Lembrado o estabelecido na Declaração sobre os Princípios Sociais e Jurídicos Relativos à Proteção e ao Bem-Estar das Crianças, especialmente com Referência à Adoção e à Colocação em Lares de Adoção, nos Planos Nacional e Internacional; as Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça Juvenil (Regras de Pequim); e a Declaração sobre a Proteção da Mulher e da Criança em Situações de Emergência ou de Conflito Armado;Reconhecendo que em todos os países do mundo existem crianças vivendo sob condi-ções excepcionalmente difíceis e que essas crianças necessitam consideração especial;Tomando em devida conta a importância das tradições e dos valores culturais de cada povo para a proteção e o desenvolvimento harmonioso da criança;Reconhecendo a importância da cooperação internacional para a melhoria das condições de vida das crianças em todos os países, especialmente nos países em desenvolvimento(...)”

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ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE (ECA)

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Nessa esteira, deixou-se de considerar a criança um pequeno adulto para re-conhecê-la como uma pessoa em de-senvolvimento, isto é, uma pessoa que está em processo de construção e que, portanto, deve ser auxiliada por seus pais ou representantes legais, a so-ciedade e o Estado a tornar-se adulta (MACIEL, 2014, p.47-48).

A fim de dar concretude à doutrina da proteção integral, o Estatuto está estruturado em três princípios e em três partes. São princípios orientadores do Estatuto: princípio da prioridade absoluta, princípio do melhor in-teresse e princípio da municipali-zação (Id ibidem, p. 53).

Sistematicamente, o ECA é apresentado em três setores: direi-tos fundamentais, prevenção e ato infracional (desconsiderando-se a parte de direito processual, que ape-nas instrumentaliza as anteriores).

Na primeira parte, são descritos os direitos e garantias individuais e sociais de crianças e adolescentes.

São os direitos à vida, à saúde, à liberdade, à dignidade, às convi-vências familiar e comunitária, à educação, à cultura, ao esporte, ao lazer e à proteção ao trabalho.

A segunda parte volta-se à proteção. Violados ou na iminên-cia de serem violados os direitos anteriores, o Estatuto passa a dis-ciplinar uma série de mecanismos para a prevenção ou superação dos riscos a que está submetida a criança ou adolescente.

Em essência, esta seção do ECA lista as entidades, institui-ções e órgãos responsáveis por cuidar diretamente dos direitos da infância e suas respectivas atribui-ções, assim como os instrumentos disponíveis para que esse conjunto de pessoas, qualificado de sistema de garantias de direitos, exerça o controle dos direitos da infância8.

Vale destacar que a maior no-vidade do ECA em relação ao sis-tema anterior, quanto à proteção, foi a criação dos conselhos tute-

8 O Sistema de Garantias de Direitos (SGD) está normatizado na Resolução n. 113, de 19 de abril de 2006, do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente. O Conselho Nacional está previsto no art. 88 do ECA e foi criado pela Lei n. 8.242, de 12 de outubro de 1991, competindo-lhe: elaborar as normas gerais da política nacional de atendimento dos direitos da criança e do adoles-cente, fiscalizando as ações de execução, observadas as linhas de ação e as di-retrizes estabelecidas nos arts. 87 e 88 do ECA; zelar pela aplicação da política nacional de atendimento dos direitos da criança e do adolescente; dar apoio aos Conselhos Estaduais e Municipais dos Direitos da Criança e do Adolescente, aos órgãos estaduais, municipais, e entidades não-governamentais para tornar efe-tivos os princípios, as diretrizes e os direitos estabelecidos no ECA; avaliar a política estadual e municipal e a atuação dos Conselhos Estaduais e Municipais da Criança e do Adolescente; acompanhar o reordenamento institucional pro-

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lares, órgãos não jurisdicionais e autônomos, “encarregado pela sociedade de zelar pelo cumpri-mento dos direitos da criança e do adolescente” (art. 131 do ECA). Anteriormente essa função era exercida pelo Poder Judiciário, que, agora, passa a ter função ju-dicante exclusiva, cabendo ao con-selho tutelar atuar diretamente “na proteção de suas crianças e jo-vens, encaminhando à autoridade judiciária os casos de sua compe-tência e ao Ministério Público no-tícia de fato que constitua infração administrativa ou penal contra os direitos da criança e do adolescen-te”(MACIEL, 2014, p.48).

Por fim, a última seção do Estatuto trata da proteção da criança e do adolescente em caso de prática de ato infracional. O uso da palavra proteção não é equivo-cado: ao reconhecer que criança e adolescente estão em desenvolvi-mento, o ECA afasta a possibili-

dade de um direito sancionador para construir um sistema em que o fato seja utilizado no desenvolvi-mento da criança e do adolescente.

Nessa diretriz, o ECA impõe que a criança que venha a prati-car fato análogo a crime fica sujeito a medidas de proteção9, enquanto os adolescentes que venham a ser condenados por ato infracional, resguardado o devido processo le-gal10, ficam sujeitos à medida de proteção, advertência, obrigação de reparar o dano, prestação de servi-ços à comunidade, liberdade assis-tida, semiliberdade ou internação11, a depender da avaliação judicial da capacidade do adolescente de cum-prir a medida, as circunstâncias e a gravidade da infração12.

Nos últimos anos, o ECA tem sofrido alterações e complemen-tações por outras leis, como a Lei n. 12.010/2009, que tratou do di-reito às convivências familiar e comunitária; Lei n. 12.592/2012,

pondo, sempre que necessário, modificações nas estruturas públicas e privadas destinadas ao atendimento da criança e do adolescente; apoiar a promoção de campanhas educativas sobre os direitos da criança e do adolescente, com a in-dicação das medidas a serem adotadas nos casos de atentados ou violação dos mesmos; acompanhar a elaboração e a execução da proposta orçamentária da União, indicando modificações necessárias à consecução da política formulada para a promoção dos direitos da criança e do adolescente; gerir o fundo nacional para a criança e o adolescente e fixar os critérios para sua utilização; e, elaborar o seu regimento interno, aprovando-o pelo voto de, no mínimo, dois terços de seus membros, nele definindo a forma de indicação do seu Presidente.9 Arts.. 101 e 105 do ECA.10 Arts. 110, 111 e 114 do ECA.11 Art. 112 do ECA.12 Art. 112, § 1º, do ECA.

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ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE (ECA)

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que regulamenta a execução de medidas socioeducativas; Lei n. 12.962/2014, que disciplinou a convivência da criança e do ado-lescente com os pais privados de liberdade; Lei n. 13.010/2014, que estabelece o direito da criança e do adolescente de serem educados e cuidados sem o uso de castigos físicos ou de tratamento cruel ou degradante; e, Lei n. 13.257/2016, que estabelece políticas públicas para a primeira infância.

Embora seja um movimento natural de aperfeiçoamento legis-lativo e essas leis posteriores ao ECA contribuam para a proteção de crianças e adolescentes, ainda hoje não é possível afirmar que o sistema inovador do ECA, que o faz ser considerado um dos mais modernos do mundo, está plena-mente implementado. Segundo dados da Fundação Abrinq13, ape-nas 49% dos Conselhos Muni-cipais dos Direitos da Criança e do Adolescente funcionam regu-larmente; cerca de 30 conselhos

tutelares ainda não foram instala-dos no país; ainda apresentamos taxa de 5,1% de sub-registro14; te-mos uma taxa de homicídios con-tra crianças e adolescentes de 17,6 por 100.000 habitantes; a execu-ção de medidas socioeducativas não cumpre o disposto no ECA e na Lei n. 12.594/2012, de modo que não atende a finalidade educativa determinada em lei15.

Há, portanto, muito o que avançar a fim de alcançar a pro-teção integral almejada pela Constituição da República de 1988 e efetivamente reconhecer crian-ças e adolescentes como pessoas detentoras de plenos direitos em nossa sociedade.

REFERÊNCIAS

AZEVEDO, Maurício Maia de. O Código Mello Mattos e

13 Dados do Observatório da Criança, disponível em http://observatoriocrianca.org.br/cenario-infancia. Acesso em 17.07.2016.14 Dados de 2013 extraídos do site da Fundação Abrinq. Segundo a mesma fonte, “as estimativas de sub-registro civil representam o conjunto de nascimentos não registrados no ano de ocorrência, ou até o fim do primeiro trimestre do ano sub-sequente. A estimativa é calculada pela divisão entre a diferença do número de nascimentos estimados para uma população e os registros de nascidos informa-dos pelos Cartórios de Registro Civil ao IBGE e dos nascimentos estimados para a população residente em determinado espaço geográfico, no ano considerado.”15 Veja-se o relatório do CNMP sobre as condições do Sistema socioeducativo no país: http://www.cnmp.mp.br/portal/images/stories/Destaques/Publicacoes/Relatório_Internação.PDF. Acesso em 17.07.2016.

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seus reflexos na legislação pos-terior. Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, s/d. Disponível em http://www.tjrj. jus.br/docu-ments/10136/30354/codigo_mello_mattos_seus_reflexos.pdf. Acesso em 17 de julho de 2016.

LIBERATI, Wilson Donizeti. Comentários ao Estatuto da Criança e do Adolescente. 9ª ed. rev. e amp. São Paulo: Malheiros Editores, 2006.

MACIEL, Kátia Regina Ferreira Lobo Andrade (Coord.). Curso de direito da criança e do adolescente: aspectos teóricos

e práticos. 7ª ed. rev. e atua. São Paulo: Editora Saraiva, 2014.

PRIORE, Mary Del. História das crianças no Brasil. 7ª ed. São Paulo: Contexto, 2015.

VERONESE, J. R. P.; ROSSATO, L. A.; LEPORE, P. H.. Estatuto da Criança e do Adolescente: comen-tado artigo por artigo. São Paulo: Saraiva, 2015.

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FINANCIAMENTO DA POLÍTICA DE ATENDIMENTO SOCIOEDUCATIVO

F

FFINANCIAMENTO DA POLÍTICA DE ATENDIMENTO

SOCIOEDUCATIVO

Paula Latgé1

1 Formação em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense, mestrado em Saúde Coletiva pelo Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva - UFF, Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Bioética, Ética Aplicada e Saúde Coletiva, experiência de 16 anos na área da Gestão em Políticas Sociais, com destaque para Assistência Social e Saúde. Atuou como Subsecretária de Assistência Social nos Municípios de Niterói e Mesquita, professora das disci-plinas de Orçamento e Financiamento no SUS e no SUAS e de Plano Individual de Atendimento no curso de operadores do DEGASE. Atua como psicóloga da Equipe de Referência para Ações de Atenção ao uso de Álcool e outras Drogas - ERIJAD - e na Associação de Mídia Comunitária - BEM TV. Tem como projeto a tomada de decisão na gestão pública e faz parte do Grupo de Estudos de Gestão e Ensino em Saúde - GEGES - ISC-PROPPi-UFF(GP CNPq).

Para falar do financiamento da Política de Atendimento Socioeducativo, é preciso, antes de tudo, definir o que é entendido como política de atendimento. A lei nº 12.594, de 18 de janeiro de 2012, que institui o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo, aponta a responsabilidade de Coordenação do SINASE pela União, sendo partes integran-tes sistemas estaduais, distrital e municipais responsáveis pela implementação dos seus respecti-vos programas de atendimento ao

adolescente, ao qual seja aplicada medida socioeducativa.

O processo de gestão de SINASE envolve algumas reflexões sobre a descentralização político--administrativa, a municipalização e a territorialidade, afirmando as competências de cada ente fede-rado na execução dos programas de atendimento e dos instrumentos de gestão, sendo o financiamento uma das bases para garantir a institucio-nalidade do Sistema.

Em relação às competên-cias, é responsabilidade da União

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a formulação, a coordenação e a execução da Política Nacional de Atendimento Socioeducativo, ins-tituindo e mantendo o Sistema Nacional de Informações sobre o Atendimento Socioeducativo e prestando assistência técnica e suplementação financeira aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, para o desenvolvi-mento de seus sistemas.

Destaca-se ao parágrafo 1º do artigo 3º, que veda o desen-volvimento e a oferta de progra-mas próprios de atendimento pela União, sendo de responsabilidade do Estado a execução, o que inclui criar, desenvolver e manter progra-mas para a execução das medidas socioeducativas de semiliberdade e internação, e responsabilidade dos municípios a implementação e execução dos programas vol-tados para atendimento das me-didas socioeducativas em meio aberto. A complexidade da gestão da política de atendimento socio-educativo reside na integração e complementariedade dos sistemas por nível de governo, além da in-terface entre diferentes políticas, tais como assistência social, saúde, educação, entre outras.

A lei que institui o SINASE afirma o cofinaciamento como forma de gestão da política de atendimento socioeducativo, refor-çando em seu Artigo 30 que o SINASE será cofinanciado com

recursos do orçamento fiscal e da seguridade social, declarando que os entes federados que tenham instituído seus sistemas de atendi-mento socioeducativo terão acesso aos recursos na forma de trans-ferência adotada pelos órgãos integrantes do Sistema.

É necessário um retorno ao artigo 195 da Constituição Federal de 1988, o qual institui a norma-tiva do orçamento da Seguridade Social, destacando que a mesma será financiada por toda a socie-dade, de forma direta e indireta, mediante recursos dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e de contribuições sociais. Desta forma, uma abordagem sobre o financia-mento da política de atendimento socioeducativo nos convoca a pensar na interface das políti-cas de assistência social, saúde e previdência, e o SUAS (Sistema Único de Assistência Social) e o SUS (Sistema Único de Saúde), na direção da garantia de direitos de crianças e adolescentes, e na oferta de serviços e programas.

No campo das medidas socio-educativas em meio aberto, como essas são executadas por meio do Serviço de Proteção Social a Ado-lescentes em Cumprimento de Medida Socioeducativa de Liber-dade Assistida (LA), e de Prestação de Serviços à Comunidade (PSC), conforme Tipificação Nacional

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FINANCIAMENTO DA POLÍTICA DE ATENDIMENTO SOCIOEDUCATIVO

F

dos Serviços Socioassistenciais, Resolução 109/2009 do Conselho Nacional de Assistência Social, os repasses são feitos por meio de transferências do Fundo Nacio-nal de Assistência Social para os Fundos Municipais de Assistência Social, por Pisos de Proteção.

No caso da Assistência Social, vale destaque para o Piso Fixo de

Média Complexidade, voltado para a implementação dos Serviços de Proteção Social Especial de Média Complexidade, tendo como equi-pamento de referência o Centro de Referência Especializado da Assistência Social - CREAS.

Ressalta-se que, para conso-lidação da institucionalidade da Política de Atendimento Socio-educativo, é fundamental que o processo de financiamento esteja articulado com o ciclo orçamen-tário, ou seja, estando presente como programa de trabalho den-tro Plano Plurianual (PPA) e da Lei Orçamentária Anual.

Outro ponto fundamental a ser abordado é o artigo 31 da lei, que

QUADRO 1: SERVIÇOS FINANCIADOS PELO PFMC

Piso Fixo de Média

Complexidade (PFMC)

Serviço de Proteção e Atendimento Especializado à Família e Indivíduos (PAEFI)

Serviço de proteção social a adolescentes em cumprimento de medidas socioeducativas de

liberdade assistida (LA) e de prestação de serviços à comunidade (PSC)

Serviço Especializado para Pessoas em Situação de Rua

Serviço Especializado em Abordagem Social

Serviço de Proteção Social Especial em Centro-Dia de Referência para pessoas com deficiência em situação

de dependência e suas famíliasFONTE: MDS

institui o SINASE, que responsabi-liza os Conselhos de Direitos, nas 3 (três) esferas de governo, para de-finição de percentual anual de re-cursos dos Fundos dos Direitos da Criança e do Adolescente, que de-vem ser aplicados no financiamento das ações voltadas ao sistema so-cioeducativo, tendo como objetivos prioritários capacitação, sistemas de informação e de avaliação.

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Como formas de financia-mento previstas, estão os repasses fundo a fundo, já abordados an-teriormente, convênios, que têm objetos e prazos definidos em ins-trumentais próprios, e remunera-ção por serviços prestados.

Enfim, tratar do financia-mento da Política de Atendimento Socioeducativo nos convoca a pensar no desafio da institucio-nalização, considerando que as formas de financiamento estão articuladas a outras políticas es-pecíficas, o que pode representar uma diluição dos recursos apli-cados e uma grande dificuldade para a avaliação o monitoramento e para o controle social.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil: 1988 - texto constitucional de 5 de outubro de 1988 com as alte-rações adotadas pelas Emendas Constitucionais de n. 1, de 1992, a 32, de 2001, e pelas Emendas Constitucionais de Revisão de n. 1 a 6, de 1994.

______. Conselho Nacional de Assistência Social. Tipificação Nacional de Serviços Socioassis-tenciais. Brasília: CNAS, 2009.

______. Ministério do De-senvolvimento Social e Combate à Fome. Política Nacional de Assistência Social. Brasília: Se-cretaria Nacional de Assistência Social, 2004.

______. Secretaria Especial dos Direitos Humanos. Sistema Nacional de Atendimento So-cioeducativo – SINASE. Brasília: CONANDA, 2006.

______. Lei 12.594, de 18 de ja-neiro de 2012. Institui o Sistema Nacional de Atendimento Socioe-ducativo (SINASE). Diário Oficial da União, Brasília, 18 jan. 2012.

183

FLUXO DE ATENDIMENTO

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FLUXO DE ATENDIMENTO

Eneida Ramos Sousa1

1 Psicólogo pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (1990), Mestre em Saúde Coletiva pelo IMS/UERJ - Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (1994) e Doutor em Saúde Coletiva, também no IMS/UERJ (1999). Professor Associado 2 da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde atua na graduação e no Programa de Pós-graduação em Serviço Social. Coordenador do projeto de pesquisa PSICANÁLISE E SOCIEDADE.

Podemos conceber fluxo de atendimento como o desenho e o dimensionamento dos serviços e das informações necessários para o êxito da organização de deter-minado processo.

No nosso campo de atuação, é elementar que esse fluxo seja cons-tituído para que haja a implicação de todos os setores do programa socioeducativo (art. 1º, § 3º da lei 12594/ 2012) nos procedimentos e nas ações que vão viabilizar as condições de favorecimento para o adolescente em conflito com a lei em cumprir sua medida socio-educativa dentro dos princípios atinentes.

O fluxo de atendimento socio-educativo pode ser didaticamente nomeado como interno e externo e, apesar de serem independentes, estão articulados de forma que possam fazer a interface com as demais políticas públicas e auxi-liar o êxito da medida.

O fluxo interno se refere ao percurso do adolescente em con-flito com a lei dentro do sistema e está intimamente ligado aos recursos e práticas institucionais cotidianas que o sistema socioe-ducativo dispõe para garantir o atendimento, que vai desde seu ingresso, passando por sua per-manência em cumprimento de medida socioeducativa e encer-rando o processo quando esta medida se der por cumprida.

Já o fluxo externo tem a ver com os atores do Sistema de Garantia de Direitos e os serviços públicos e privados que vão envol-ver instituições, equipamentos e programas, tendo um desenho todo particular na rede de servi-ços, ou seja, é um fluxo criado para atender as necessidades específi-cas de cada adolescente.

Considerando que o Artigo 4º e os incisos da Lei 12594/ 2012 pre-conizam que as instituições e as

DICIONÁRIO DO SISTEMA SOCIOEDUCATIVO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

184

entidades que executam medidas socioeducativas têm autonomia para construir as metodologias e os fluxos desse atendimento, des-tacando-se o fato de que esse fluxo interno deva ser normatizado nas práticas institucionais e publicizado entre a comunidade socioeduca-tiva, na qual se inclui o adolescente e seus familiares, apresentamos o fluxo atual que orienta o Sistema Socioeducativo deste estado.

O que é comum aos pro-gramas de Atendimento Inicial, Internação Provisória, Internação e de Semiliberdade?

√ Recepção do adolescente e responsável – pode acontecer de forma individual ou em grupo. É o momento em que se explica como vai se dar a estada do adolescente dentro do sistema socioeducativo;

√ Entrevistas com o adoles-cente, com a família, e consulta aos registros institucionais sobre o adolescente para o estudo de caso e, posteriormente, elaboração do PIA;

√ Estudo de caso nas dife-rentes etapas do cumprimento da medida;

√ Elaboração do PIA com a participação do adolescente e da família e/ou responsável e enca-minhamento ao Poder Judiciário, com fulcro no P. único do artigo 55 da Lei 12594/2012;

√ Implementação do PIA, com a inserção do adolescente em programas internos e externos.

A chegada do adolescente no Sistema Socioeducativo

A necessidade da edificação de unidade específica para o aco-lhimento inicial do adolescente apreendido por suspeita de prá-tica de ato infracional foi parcial-mente suprida com a construção do CENSE Gelson Carvalho do Amaral (Cense GCA), que abriga diversos serviços imprescin-díveis para garantir um aten-dimento célere e que possa minimamente subsidiar o ma-gistrado para que ele possa com tranquilidade aplicar ou não me-dida socioeducativa aos adoles-centes a ele apresentados.

O Fluxo dentro do Cense GCA e das unidades de Belford Roxo – Cense Professora Marlene Henrique Alves (Cense Campos), Cense Professor Antonio Car-los Gomes da Costa (Cense PA-CGC) e Cense Irmã Assunción de Lá Gandara Ustará (Cense Volta Redonda) –, que também reali-zam atendimento inicial como porta de ingresso, tem o seguinte dimensionamento:

185

FLUXO DE ATENDIMENTO

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Ingresso de meninos e meninas suspeitos de prática de ato infracional

1- Provenientes dos Juizados das comarcas de interior;

Ao chegar de Juizados de interior ou de outras comarcas que não a da Capital, junto com o adolescente deverá haver em mãos documentação com a deter-minação judicial, devidamente motivada, assinada por Juiz.

Qualquer que seja a MSE, o adolescente deverá vir acompa-nhado da Guia de Execução com a medida pertinente, independen-temente de tal documento já ter sido expedido ao Juízo competente ou não. Portanto, não existe mais Carta Precatória e é obrigatória a apresentação da Guia de Execução com todos os documentos elenca-dos na Lei 12594/2012 e Resoluções CNJ nº 165 de 2012 e nº 191/2014.

2- Da DPCA/RJ para adolescentes provenientes da comarca da Capital;

Os adolescentes que vêm da DPCA/RJ devem chegar junta-mente com o(s) RO(s) e ofício(s) daquela delegacia especializada e, no caso de Busca e Apreensão,

junto com o mandado expedido pelo juiz.

3- Diretamente do Juizado da Infância e da Juventude da comarca da Capital;

Nesse caso, a documentação será encaminhada pelo Plantão Inte-rinstitucional que se situa na VIJ/RJ.

4- Dos plantões Judiciários de final de semana organizados pelo Tribunal de Justiça;

Os adolescentes que chegam nos finais de semana e nos feriados são atendidos pelo MP e pelo Juiz de plantão. Alguns são apresenta-dos pela DPCA/RJ diretamente ao plantão judiciário e, por este motivo, o Cense GCA não tem acesso ao RO referente a esses jovens, bastando, então, para seu encaminhamento, apenas o ofício do Juiz de plantão.

5- De delegacias da Polícia Militar ou da Secretaria de Estado de Administração Penitenciária, desde que para cumprimento de mandado de busca e apreensão.

DICIONÁRIO DO SISTEMA SOCIOEDUCATIVO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

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6- De outras Unidades do DEGASE;

Adolescentes encaminhados pelos motivos abaixo:

• Acautelamento provisório ou transferência por risco de vida ou da integridade física do adoles-cente, com a devida documentação e em casos excepcionais;

• Novo ato infracional co-metido dentro da Unidade de ori-gem, devendo, nesse caso, ser encaminhado como Registro de Ocorrência para Apresentação imediata ao Ministério Público.

7- De Unidade hospitalar desde que haja determinação judicial, já tendo sido verificado o estado de saúde do adolescente pela Coordenação de Saúde.

Passo a Passo do ingresso no Cense GCA

Quando chega ao CENSE GCA, o adolescente é recebido pelo recepcionista e pelo agente mesário do plantão. E esse procede como relatado a seguir:

1. - avisa ao plantão da chegada do adolescente, pelo interfone li-gado ao pátio;

2. - aguarda a chegada de um agente para dar apoio ao recebimento;

3. - confere os documentos (em caso da Secretaria Técnica estar fechada) e, se tudo estiver cor-reto, dá o recibo;

4. - confere os pertences do adolescente, registrando-os em livro próprio, onde o adolescente assina quando de sua entrada e de sua saída;

5. - recolhe os pertences de va-lor, lacrando-os em pacote onde faz constar o nome do adoles-cente e sua data de entrada e, em seguida, os encaminha para Direção da Unidade;

6. - entrega ao adolescente um saco de pano numerado, para que o mesmo coloque dentro os itens de seu vestuário e calça-dos, anotando este número ao lado do nome do adolescente no livro de registro de pertences.

7. - informa ao adolescente, juntamente com o agente de apoio, sobre as regras de con-duta da Unidade;

8. - avisa a secretaria técnica da chegada do adolescente, encami-nhando para o setor a documen-tação pertinente.

Após essa fase, o agente que deu apoio ao recebimento do adolescente conduz o jovem para dentro da Unidade, onde esse fará sua higiene pessoal, trocará sua roupa pelo uniforme do Cense GCA, guardando sua roupa e calçados no saco antes recebido e

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FLUXO DE ATENDIMENTO

F

dando-o ao agente que o acompa-nhou, para que este o guarde na sala de pertences.

Em seguida, o recém-chegado é conduzido à sala do Posto de identificação do DETRAN, após ter sido cadastrado no Sistema de Identificação e Informação de Adolescentes (SIIAD) e para a equipe técnica do Núcleo Biop-sicosocial, que fará o primeiro atendimento, registrando-o no Relatório de Recepção.

Antes disto, a secretaria téc-nica, ciente da chegada do jovem, checa a existência de passagens anteriores e abre seu prontuário, ou, no caso de reincidentes, retira do arquivo Centro de Documentação e Pesquisa (CEDOP) o prontuário de atendimento socioeducativo (PAS) já existente para atualiza-lo, passando-o para equipe técnica do Núcleo Biopsicossocial com o objetivo de facilitar o atendimento.

Finalizando, o adolescente é encaminhado para Unidade destino se o horário de recebi-mento da Unidade destino não estiver esgotado.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente ECA, Lei Federal 8.069, de 13/07/90. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/leis/L8069.htm. Acesso em 25 de julho de 2016.

BRASIL. Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE). Lei Federal 12.594, de 18 de janeiro de 2012. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/cci-vil_03/_ato2011 2014/2012/lei/l12594.htm. Acesso em 25 de julho de 2016.

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Resolução nº 165 de 16 de novembro de 2012. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/atos-norma-tivos?documento=1640. Acesso em 25 de julho de 2016.

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Resolução nº 191 de 25 de abril de 2014. Disponível em: < http://www.cnj.jus.br/images/resol_gp_191_2014.pdf. Acesso em 25 de julho de 2016.

DICIONÁRIO DO SISTEMA SOCIOEDUCATIVO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

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FORMAÇÃO DOS SOCIOEDUCADORES

Bianca Veloso1

Janaina de Fátima Silva Abdalla2

Marizélia Barbosa3

1Pedagoga, Mestre em Educação Profissional em Saúde pela Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio da Fundação Oswaldo Cruz e Pedagoga da Escola de Gestão Socioeducativa Paulo Freire do Departamento Geral de Ações Socioeducativas do Estado do Rio de Janeiro.2 Pedagoga Degase. Diretora da Escola de Gestão Socioeducativa Paulo Freire – Novo Degase. Mestre em Comunicação, imagem e formação (UFF). Doutora em Educação (UFF). Professora Faculdade Gama e Souza.3 Agente Socioeducativa Feminina, DEGASE, 1999; Pedagoga, UERJ, 2000; Orientadora Educacional, UCAM, 2005; Psicopedagoga, UCAM, 2009.

A formação do socioeducador é um direito a ser garantido pelo Estado através dos próprios ór-gãos gestores, de escolas de forma-ção, de escolas de governo, dentre outras instituições especializadas públicas e privadas.

É importante destacar que a formação do socioeducador para atuar junto aos adolescentes en-volvidos em atos ilícitos, isto é, a formação inicial e a formação conti-nuada dos profissionais que atuam como operadores dos sistemas so-cioeducativos, diz respeito ao grupo de conteúdos e saberes que:

não tem, de modo algum, a pre-tensão de substituir o saber-fazer técnico especifico de cada um dos campos de atuação dos pro-

fissionais envolvidos na ação socioeducativa: assistentes sociais, psicólogos, pedagogos, professores licenciados em diversas disciplinas da educação geral e profissional, arte-educadores, professores de educação física , profissionais de saúde , operadores do direito e membros do corpo de segurança. (COSTA, 2006 p.13)

Acreditamos que não se possa falar de formação continuada e saber profissional, no âmbito das ações socioeducativas e no entrelaça-mento das diferentes profissões dos socioeducadores, sem relaciona-los com os condicionantes e com o con-texto do trabalho socioeducativo. Como afirma Maurice Tardif (2005, p.11): “o saber não é uma coisa que flutua no espaço”.

189

FORMAÇÃO DOS SOCIOEDUCADORES

F

no Sistema de Garantia de Direitos, faz-se mister uma nova concepção de formação profissional, onde a questão da humanização esteja em voga. Esta perspectiva está consoante à garantia a todo e qual-quer ser humano do seu direito de pessoa humana e aos valores que passaram a ser adotados por diversos sistemas e ordenamen-tos jurídicos, como liberdade, solidariedade, justiça social, hones-tidade, paz, responsabilidade e respeito à diversidade cultural, religiosa, étnico-racial, de gênero e orientação sexualNeste sentido, a formação deve abranger processos de construção de conhecimentos que tenham estes valores como ponto de partida, compreendendo o trabalhador na sua forma integral e contextualizada, e o trabalho na sua dimensão histórica, assumindo formas contraditórias na socie-dade capitalista. O ser humano não está fora das condições his-tórica e socialmente produzidas, suas escolhas também estão a elas condicionadas. Contudo, de acordo com Frigotto (2002, p.63), “essas estruturas e determinações social-mente construídas são, portanto socialmente passíveis de serem alteradas pela ação consciente dos sujeitos humanos”.

O processo de formação que parte desta perspectiva tem como consequência o desenvolvimento da consciência crítica, da compre-

O saber dos socioeducadores é um saber próprio e está rela-cionado à pessoa e à identidade destes, com as suas histórias profissionais, com a relação que estabelecem com os adolescentes e suas famílias no cotidiano, em seu espaço de atuação, com os outros atores sociais na institui-ção e na rede socioeducativa.

Tal como mostra a história das instituições socioeducativas, na mu-dança do paradigma repressor para os processos sociopedagógicos, na execução e acompanhamento das medidas socioeducativas e na pro-moção da garantia de direitos na proteção integral, as práticas e sa-beres profissionais dos socioeduca-dores sofrem influência conforme as construções sociais/históricas e dependem intimamente de uma re-flexão/ação sobre sua pratica/práxis profissional (ABDALLA, 2015).

Trata-se de formação profi-ssional na perspectiva da huma-nização do sistema e de trazer para este processo as concepções, mé-todos e técnicas; o saber científico dos trabalhadores historicamente constituído e os “saberes fazeres”.

Concepção de formação profissional na perspectiva da humanização

Para a efetivação da Doutrina da Proteção Integral concretizada

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ensão de que, na sociedade capi-talista, na qual a desigualdade não é explícita como nas socieda-des pré-capitalistas, sendo a mais desigual de toda a história, faz-se necessário um sistema ideológico que inculque cotidianamente os valores de igualdade perante a lei na mente das pessoas (Sader apud Meszaros, 2005).

A desigualdade de direitos é estrutural neste sistema político--econômico e a “liberdade” está condicionada aos determinan-tes históricos e sociais, ou ainda, nas palavras de Marx: “os ho-mens fazem a história, mas não em condições escolhidas por eles” (Frigotto apud Lombardi, Saviani e Sanfelice, 2002, p. 63).

A importância de resgatar a perspectiva da humanização nos processos formativos está no fato de se posicionar na contramão do pensamento e das práticas domi-nantes, daquelas inscritas nos moldes neoliberais nos quais a “aprendizagem está a serviço da ordem social alienante e definiti-vamente incontrolável do capital” (MESZAROS, 2005, p 47).

Marcos Legais para a formação dos profissionais dos Sistemas Socioeducativos

A Constituição Federal de 1988, no seu artigo 39 parágrafo

2º afirma que a União, Estados, e o Distrito Federal cabem manter escolas de governo para a for-mação e o aperfeiçoamento dos servidores públicos, constituin-do-se a participação nos cursos um dos requisitos para a promo-ção na carreira. Já o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA Lei no 8.069/1990) indica a natu-reza da pedagogia do atendimento aos adolescentes envolvidos em atos ilícitos e define e prevê ações eficientes e de qualidade no tra-balho desenvolvido.

Nacionalmente, a partir do ECA, encontramos orientações em documentos construídos pelos sis-temas socioeducativos estaduais, do distrito federal e municipais, para um trabalho socioeducativo que seja operacionalizado pela ética pedagógica e com base em uma política de atendimento às crianças e adolescentes pautadas nos Direitos Humanos e nos Sis-tema de Garantia de Direitos dos adolescentes, apropriados a uma ação socioeducativa no paradigma da proteção integral.

Contudo, durante os dezes-seis anos de existências do ECA, observa-se uma escassez de es-pecificações legais e normativas operacionais em âmbito nacional sobre qual seria o perfil do profis-sional socioeducativo, assim como não encontramos orientações para a seleção, capacitação e formação

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FORMAÇÃO DOS SOCIOEDUCADORES

F

continuada de profissionais de di-ferentes áreas que atuam como operadores dos sistemas socioedu-cativos em seus diferentes níveis. Sendo assim, a preocupação com a formação e a qualificação continu-ada desses diferentes pro fissionais da Socioeducação era observada indiretamente.

Somente a partir de 2006 há uma mobilização no campo le-gal e de orientações aos sistemas socioeducativos nacionais para a formação e qualificação destes profissionais, constituindo os pi-lares fundamentais para a efetiva-ção das políticas de atendimento a adolescentes que cumprem as medidas socioeducativas, estabe-lecidas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA Lei no 8.069/1990) e reguladas pelo SI-NASE (Resolução no 119/2006 e a Lei Federal no 12.594/2012).

Assim, a formação dos pro-fissionais que atuam no sistema socioeducativo é evidenciada no SINASE (Resolução do Co-nanda nº 119/2006 e a Lei Federal nº 12.594/2012), no Plano Nacional Decenal dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA, 2006) e no Plano Nacional de Aten-dimento Socioeducativo, que fo-ram fundamentados no ECA que, por sua vez, foi embasado em inú-meras outras normativas inter-nacionais tais como: Declaração Universal dos Direitos Humanos,

Convenção Internacional dos Di-reitos Da Criança, Regras Mínimas das Nações Unidas para Adminis-tração da Justiça Juvenil, Regras Mínimas das Nações Unidas para os Jovens Privados de Liberdade e Diretrizes de Riad para Prevenção do Delito Juvenil.

Com o objetivo de definir parâmetros mais objetivos e pro-cedimentos mais justos que evitem a discricionariedade, a Resolução 119/2006 do CONANDA reafirma o ECA e a natureza pedagógica da medida, reconhecendo a neces-sidade de que estados, Distrito Federal e municípios realizem a formação inicial e continuada dos profissionais diretamente envolvi-dos e que atuam na rede. Também indica, quando versa sobre recur-sos humanos, a necessidade da formação continuada como um instrumento que busca garantir a qualidade do atendimento.

A Lei do SINASE (LF 12.594/2012) no inciso V do Art. 3, determina que compete à União “contribuir para qualificação e ações em rede dos Sistemas de Atendimento Socioeducativo”. O inciso IV do Art. 11 torna obri-gatório para a inscrição do pro-grama de atendimento uma política de formação de recursos humanos. O artigo 23 apresenta as políticas de pessoal quanto à qua-lificação, aperfeiçoamento, desen-volvimento profissional como um

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critério de avaliação das institui-ções socioeducativas.

O Plano Nacional de Aten-dimento Socioeducativo, de no-vembro de 2013, orienta nos seus Princípios e Diretrizes a valoriza-ção dos profissionais da socioe-ducação e promoção da formação continuada. No Marco Situacio-nal, o referido documento iden-tifica a falta de qualificação para a implementação da política e a formação fragmentada e desar-ticulada dos profissionais que atuam no sistema socioeduca-tivo. Quando aborda a gestão do SINASE, denota a qualificação do atendimento socioeducativo e o investimento na formação conti-nuada dos profissionais que nele atuam, por meio da Escola Nacio-nal de Socioducação4. Em comum, a Resolução, a Lei e o Plano Na-cional compreendem a formação continuada dos profissionais da socioeducação como uma condi-ção para a efetivação plena dos direitos dos adolescentes que cum-prem medidas socioeducativas.

O Plano Decenal dos Direitos Humanos de Crianças e Adoles-centes estabelece, na sua diretriz número 10, a qualificação perma-nente de profissionais para atuarem

na rede de promoção e defesa dos direitos de crianças e adolescen-tes como parte da estratégia dessa diretriz que orienta a formulação e implementação de uma política de formação continuada.

Escola de Gestão Socioeducativa Paulo Freire

Visando a formação dos pro-fissionais da Socioeducação do Estado do Rio de Janeiro, foi criada uma escola de formação por um grupo de profissionais do DEGASE, em 31 de Agosto de 2001, pelo Decreto n°29.113, com o nome de “Escola Socioeducativa”. À época, os cursos oferecidos eram planejados e executados por pro-fissionais do próprio DEGASE.

A partir de 2006, há um reorde-namento político, administrativo e pedagógico do DEGASEe em 2008, com a publicação do Decreto nº41. 144 de 24 de janeiro, que alterou a Estrutura Organizacional do DEGASE e deu outras providên-cias, passou a ser denominada Escola de Gestão Socioeducativa Paulo Freire (ESGSE).

4 A proposta da Escola Nacional de Socioeducação foi construída coletivamente com atores e atrizes centrais da gestão socioeducativa. A partir das demandas dos Estados para formação continuada dos profissionais de todas as áreas que atuam na socioeducação, deu origem ao “Parâmetros de Gestão, Metodológicos e Curriculares da ENS”, aprovado pelo Conselho Nacional de Direitos da Criança e do Adolescente - CONANDA em Abril de 2014. (Brasil, ENSE, 2016)

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FORMAÇÃO DOS SOCIOEDUCADORES

F

A função precípua da ESGSE é a formação inicial e continu-ada de profissionais do Novo DEGASE e operadores do Sistema Socioeducativo Estadual. Assim, a instituição apresenta como ob-jetivos : (a) a formação/ capacita-ção dos operadores do Sistema Socioeducativo do Estado do Rio de Janeiro; (b) a produção de saberes, através de cursos, seminários, fó-rum, oficinas, grupos de trabalho, colóquios , fomento a pesquisas com interface na formação ini-cial e continuada de profission-ais; (c) a promoção do diálogo entre o Sistema Socioeducativo e a sociedade, a partir das polí-ticas e parcerias com universi-dades, realimentando a formação e estimulando a reflexão dos pro-fissionais que atuam no campo socioeducativo.

Com base na proposta de formação, a ESGSE visa poten-cializar a interação e integração entre os operadores, acolhendo e respeitando as diversidades cul-turais, profissionais, de gênero raça e subjetividades.

O paradigma da proteção inte-gral e a promoção da garantia de direitos dos adolescentes norteiam a proposta pedagógica, mobili-zando e articulando saberes cien-tíficos, jurídicos e o saber-fazer dos profissionais. Sua estrutura admi-

nistrativa atual é composta pela direção, secretaria e pelas seguin-tes divisões: (a) Divisão de Estudo Pesquisa e Estágio(DEPE); (b) Divi-são Técnica Pedagógica (DETP) e, (c) Divisão de Publicação Docu-mentação e Certificação (DPDC).

Tal estrutura se articula na concretização dos objetivos da ESGSE e suas interfaces com o Sistema Socioeducativo Municipal, Estadual e Federal, além das insti-tuições acadêmicas públicas e pri-vadas e as instituições que atuam direta e indiretamente no Sistema de Garantia de Direitos.

Assim, a atuação junto com a Escola Nacional de Socioed-ucação, desde sua criação à efetivação do Núcleo Gestor Es-tadual do Estado do Rio de Ja-neiro5 para viabilizar a formação do Sistema Nacional de Atendi-mento Socioeducativo (SINASE) (CONANDA, 2006; 2012), ratificam a importância da Escola de Ges-tão Socioeducativa Paulo Freire do Departamento Geral de Ações So-cioeducativas do Estado do Rio de Janeiro, pois o trabalho que vinha sendo realizado desde de sua inau-guração em 2001 serviu como re-ferência e modelo de escola para o restante do Brasil, tendo sido a pioneira por vários anos (SOUZA, 2013).

5 Portaria Degase Nº 183 de 13 de abril de 2015. Publicada no DORJ de 20 de abril de 2015 – institui o Núcleo Gestor estadual da ENS.

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REFERÊNCIAS

BRASIL, Lei Federal nº 8.069/1990. Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

BRASIL, Resolução do CONANDA, Nº 119/2006. Sistema Nacional de Atendimento Socioe-ducativo (SINASE).

BRASIL, Lei Federal Nº 12.594/2012. Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE).

BRASIL, Sistema Nacional De Atendimento Socioeducativo (SINASE) Secretaria Especial dos Direitos Humanos. Brasília (DF): CONANDA, 2006.

BRASIL. Escola Nacional de Socioeducação. Parâmetros de Gestão, Metodológicos e Cur-riculares. Brasília: Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, CONANDA, 2014.

COSTA, A.C.G. (coord. Téc-nica). Parâmetros para formação do socioeducador: uma proposta inicial para reflexão e debate. Brasília: Secretaria Especial dos Direitos Humanos, 2006.

FRIGOTTO, Gaudêncio. Estru-tura e Sujeitos e os fundamentos da Relação Trabalho e Educação. In.: LOMBARDI, José Claudinei; SAVIANI, Dermeval; SANFELICE, José Luís (Orgs). Capitalismo,

Trabalho e Educação. São Paulo: Editora Autores Associados, 2002.

MESZAROS, Istvan. A edu-cação para além do capital. São Paulo: Boimtempo, 2005.

SADER, Emir. Prefácio. In.: MESZÁROS, Istvan. Educação para além do Capital. São Paulo: Boimtempo, 2005.

SOUZA, Patrícia Calado. Tra-jetórias Sociais e profissionais: a ambiguidade identitária dos agen-tes no Departamento Geral de Ações socioeducativas do Estado do Rio de Janeiro. Dissertação de Mes-trado. Rio de Janeiro: UFRJ, 2013.

TARDIF, Maurice. Saberes Docentes e Formação Profissional. Petrópolis: Vozes, 2005.

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GÊNERO

G

GGÊNERO

Simone Ouvinha Peres1

1 Instituto de Psicologia - Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Doutora em Saúde Coletiva – Instituto de Medicina Social – Universidade Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

Gênero é um conceito impor-tante formulado nos anos 1970 que permitiu questionar as certe-zas tão firmemente alicerçadas em torno das diferenças biológicas, as quais serviram durante muito tempo para justificar as desigual-dades entre homens e mulheres. As questões em torno dos gêneros e das sexualidades não envolvem apenas conhecimento ou informa-ção, mas envolvem valores e um posicionamento político diante da multiplicidade de formas de viver e de ser (LOURO, 2000). Gênero traz a possibilidade de pensar a existência de muitas formas de vi-ver as masculinidades e as femini-lidades e que estas são construções sociais e culturais. O conceito pos-sibilita pensar os processos de dis-criminação relacionados à própria problemática de gênero, da diversi-dade sexual e das relações étnico-

-raciais. Falar em Gênero significa levar em conta as diversidades so-cial e cultural, o etnocentrismo, os estereótipos e os preconceitos con-tra os indivíduos que têm parti-cularidades de gênero, raça/etnia, religião, orientação sexual, valo-res e outras diferenças relacio-nadas às suas histórias pessoais (CARRARA, 2009).

O termo “gênero” opõe-se ao imperativo de encontrar no corpo as razões das diferenças étnico-ra-ciais, de gênero ou de orientação sexual, que marcou os séculos XIX e XX, vinculando-se à restrição da cidadania a negros, mulheres e homossexuais. Opõe-se às análi-ses biologizadas para explicar as desigualdades construídas social-mente, a partir de características físicas dos indivíduos, ou seja, por sua identidade de gênero ou pertencimento a um determinado

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grupo racial-étnico (CARRARA, 2009). Na sua formulação mais re-cente, o termo enfatiza o caráter fundamentalmente social das dis-tinções baseadas no sexo. O termo “gênero” é utilizado para desig-nar as relações sociais entre os sexos e torna-se uma forma de in-dicar “construções culturais” – a criação totalmente social de ideias sobre os papéis sociais adequados aos homens e mulheres nas dife-rentes sociedades. É uma forma de fazer referência às origens so-ciais das identidades subjetivas de homens e mulheres. O uso de “gê-nero” enfatiza todo um sistema de relações que pode incluir o sexo, mas não é diretamente determi-nado pelo sexo, nem determina diretamente a sexualidade.

O conceito de “Gênero” per-mite um olhar para os processos sociais que cristalizam diferen-ças de valor entre o masculino e o feminino e que geram as desi-gualdades. O sistema de gênero – masculino e feminino – são for-mas diferenciadas de organizar as relações sociais de poder entre homens e mulheres com base na ideia de diferenças naturais ins-taladas nos corpos de homens e mulheres. O “Gênero” só pode ser entendido em relação a uma cul-tura específica, pois ele só adquire sentidos distintos de acordo com o contexto sociocultural no qual se manifesta. Ele tem um caráter rela-

cional. Isto é, só é possível pensar o feminino em relação ao mascu-lino e vice-versa. As desigualdades de oportunidades, de condições sociais e de direitos entre homens e mulheres são decorrentes das assimetrias de gênero:

No senso comum, as diferen-ças de gênero são interpreta-das como se fossem naturais, determinadas pelos corpos. Ao contrário, as ciências sociais postulam que essas diferen-ças são socialmente constru-ídas. Isto significa dizer que não há um padrão universal para comportamentos sexual ou de gênero que seja conside-rado normal, certo, superior ou, a priori, o melhor. Somos nós, homens e mulheres, pertencen-tes a distintas sociedades, a di-versos tempos históricos e a contextos culturais que estabe-lecemos modos específicos de classificação e de convivência social. Assim, o conceito de gê-nero pode nos ajudar a ter um olhar mais atento para deter-minados processos que conso-lidam diferenças de valor entre o masculino e o feminino, ge-rando desigualdades. (CENTRO LATINO AMERICANO EM SE-XUALIDADE E DIREITOS HU-MANOS – IMS/UERJ, 2009, p.41)

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GÊNERO

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O aprendizado de gênero se dá através da socialização na família e na escola

O Gênero é socialmente cons-truído no dia a dia. Os modelos de homens e de mulheres que as crian-ças têm nas famílias e na escola são moldados através da educação cotidiana. São primeiramente no cotidiano da família e depois na escola, através da socialização, que as noções do que é considerado pertinente ao feminino e ao mas-culino são transmitidas para as crianças. Na socialização primá-ria, as crianças durante a infância assimilam os modelos de homens e mulheres da família.

Os modelos de homem e de mulher que as crianças têm a sua volta, principalmente na família, e, secundariamente na escola, apre-sentados por pessoas adultas, irão marcar simbolicamente a constru-ção de suas referências sociais e subjetivas de gênero.

Quando os meninos e as meninas entram para a escola, já foram ensinados pela família e por outros grupos da sociedade quais são os “brinquedos de menino” e quais são os “brinquedos de menina”. A escola ainda reforça essas desigualdades.

Por exemplo, os meninos não são, em geral, estimulados a serem carinhosos, cuidadosos, gentis, a expressarem medo e dor; as me-

ninas não são incentivadas a praticar esportes, gostar de carros e motos, serem fortes, destemidas. Oferecem-se aos meninos apenas espadas, armas, roupas de luta, adereço de guerra, associando a agressividade à masculinidade, ou então bola, bicicleta, skate, indi-cando que o espaço público é deles - enquanto as meninas ganham mi-niaturas de utensílios domésticos, o que determina o espaço domés-tico como seu, como se as mulheres não tivessem outro interesse que não cuidar da casa e dos filhos (CENTRO LATINO AMERICANO EM SEXUALIDADE E DIREITOS HUMANOS – IMS/UERJ, 2009).

Além da família e da escola, a mídia, os pares e atualmente as redes sociais convencionam as referências de gênero. Mas as primeiras noções aprendidas na família do que é considerado perti-nente ao feminino e ao masculino se consolidam na adolescência e são poderosas influências dos pre-conceitos e estereótipos de gênero.

Os modos como meninos e meninas se comportam entre si a partir da adolescência contri-buirão para reforçar preconceitos e estigmas contra todos os que não correspondem a um ideal de feminilidade ou masculini-dade dominante, como gays, travestis e lésbicas.

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Identidade de gênero

Identidade de gênero se refere à maneira como alguém se sente, se identifica, se apresenta para si e para os demais e como é percebido/a como “masculino” ou “feminino” ou, ainda, uma mescla de ambos, independente tanto do sexo biológico quanto da orientação sexual.

Construção Social da Identidade adolescente/juvenil e suas marcas de gênero

A moral de gênero consoli-dada na adolescência interfere nos distintos modos de aproximação ao sexo oposto, através de dife-rentes formas de relacionamento afetivo-sexual (olhar, paquera, fi-car, namoro), que são maneiras de mostrar os limites aceitos e não aceitos entre os gêneros.

(...) há todo um conjunto de ati-tudes, posturas e modos de agir social e diferencialmente reco-mendados aos rapazes e às moças que ensaiam a entrada na sexua-lidade. Mesmo que a virgindade não signifique mais o que foi em outras épocas, e que haja uma relativa aceitação social em ter relações sexuais antes do casa-mento – variável conforme os costumes e os valores locais...” (CENTRO LATINO AMERI-

CANO EM SEXUALIDADE E DIREITOS HUMANOS – IMS/UERJ, 2009, p.51)

Ou seja:

(...) modelos de comportamento sexual e social podem se tornar verdadeiras prisões ou fontes de agudo sofrimento quando os ra-pazes e as moças não se encaixam nos estereótipos de gênero pre-viamente designados. Qualquer inadaptação ou desvio de conduta corre o risco de ser duramente criticada/o ou discriminada/o so-cialmente ... (CENTRO LATINO AMERICANO EM SEXUALI-DADE E DIREITOS HUMANOS – IMS/UERJ, 2009, p.52)

O fato das mulheres poderem hoje ter uma vida sexual e esco-lher ser mãe, planejar a materni-dade e decidir pelo número de filhos, almejar um trabalho e ter uma profissão além da vida do-méstica e dos cuidados com os fi-lhos e com a casa, infelizmente, não representa um padrão do-minante na sociedade brasileira. As imensas diferenças existentes e persistentes entre as mulheres estão presentes interferindo nas desigualdades de gênero arrai-gadas. A condição das mulheres tem melhorado, mas o exercício da liberdade e da autonomia em vários domínios da vida social

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GÊNERO

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e privada não é ainda facultado igualmente às mulheres. Além do mais, a participação dos homens nas obrigações da vida doméstica é atualmente muito reduzida e desigual, levando a grande maio-ria das mulheres à necessidade de conciliação da casa e do trabalho.

O Mercado de trabalho: indicador preciso da desigualdade de gênero

Além da vivência da sexua-lidade, é no domínio do ingresso dos jovens no mercado de trabalho e na escolha da carreira profissio-nal que se observam importan-tes diferenças e desigualdades de gênero. Já percebeu que há certas profissões predominantemente masculinas e outras predominan-temente femininas? Cada profis-são sofre interferência da lógica de gênero, desde a distribuição entre postos e turnos de trabalho até as formas de ascensão e remu-neração. Tantos para aqueles jo-vens que se veem forçados a entrar no mercado de trabalho precoce-mente, em razão da precariedade socioeconômica de suas famílias, quanto para os que podem perma-necer na escola por mais tempo, na edificação de uma carreira profis-sional, a oferta de postos de traba-lho e de profissões leva em conta

aptidões tidas como “naturais” aos homens e às mulheres.

Por exemplo, entre jovens de pouca escolaridade, cabe aos ra-pazes serem entregadores, offi-ce-boys, motoboys, operários da construção civil ou da indústria, trabalhadores no transporte de cargas, motoristas, trabalhadores rurais, vendedores ambulantes, seguir carreira policial ou militar. Em geral, as moças nas mesmas condições orientam-se para serem secretárias, copeiras, auxiliares de serviços gerais, ajudantes de cozinha, recepcionistas, empre-gadas domésticas, babás, faxinei-ras, comerciárias, operadoras de caixa e telemarketing. Mesmo en-tre jovens que conseguem cursar a universidade, é frequente haver uma adesão maciça de mulheres às carreiras existentes nas ciên-cias sociais (enfermagem, terapia ocupacional, fonoaudiologia, nu-trição) ou humanas (psicologia, educação, letras, serviço social, história, artes, etc.) (CENTRO LA-TINO AMERICANO EM SEXUA-LIDADE E DIREITOS HUMANOS – IMS/UERJ, 2009).

Diferenças de gênero na organização social da vida pública e da vida privada

O gênero interfere na orga-nização social do espaço público

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e privado e configura o mundo que nos cerca. Historicamente, o espaço público era restrito aos homens e as mulheres eram con-finadas no mundo doméstico. Em várias sociedades, há uma divi-são do trabalho entre homens e mulheres. Isso é chamado de divisão sexual do trabalho. As mudanças ocorridas em três seto-res, antes masculinos, como o mercado de trabalho, a escolariza-ção e a participação política, estão em processo de transformação. Isso pode ser observado através da crescente participação femi-nina no mercado de trabalho e nas atividades econômicas, políticas e legislativas. Apesar das mudanças em curso e do maior investimento das mulheres na educação e na qualificação profissional, não se observa a conquista da igualdade salarial, apenas a redução de parte das desigualdades históricas. As mulheres negras, a exemplo, ainda estão em posição de maior desi-gualdade em relação às mulheres brancas e aos homens, eviden-ciando que a segregação social se combina com as dimensões étni-co-raciais e de gênero.

Violência de gênero

A violência de gênero é aquela oriunda do preconceito e da desi-gualdade entre homens e mulheres.

Apoia-se no estigma da virilidade masculina e da submissão femi-nina. Enquanto os rapazes e os homens estão mais expostos à vio-lência no espaço público, garotas e mulheres sofrem mais violência no espaço privado. A masculinidade vem associada, desde a infância, a um modo de ser agressivo, de estí-mulo ao combate, à luta. Uma das formas principais de afirmação da masculinidade é por meio da força física, do uso do corpo como ins-trumento de luta para se defender, mas também para ferir.

A dominação masculina é o exercício do poder exercido pe-los homens sobre as mulheres. É um conceito estudado por Pierre Bourdieu (2002). A distribuição social da violência reflete a tra-dicional divisão dos espaços: o homem é vítima da violência na esfera pública, e a violência contra a mulher é perpetuada no âm-bito doméstico, onde o agressor é, mais frequentemente, o próprio parceiro (GIFFIN,1994). Como a violência é cultivada como valor masculino, muitas mulheres aca-bam submetidas a situações de sofrimento físico ou psíquico em razão da violência de seus compa-nheiros, irmãos, pais, namorados, empregadores ou desconhecidos.

A posição subordinada na hie-rarquia de gênero é o que torna as mulheres muito vulneráveis às agressões físicas e verbais, às ame-

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aças, aos diversos tipos de abuso sexual - como o estupro -, ao aborto inseguro, aos homicídios, aos constrangimentos e aos abusos no espaço público, aos assédios moral e sexual nos locais de trabalho.

A discriminação social por gênero ainda pune, na maioria das vezes, as vítimas de agres-sões com xingamentos, insultos, difamação e abusos sexuais. Por exemplo, no caso de estupro de uma mulher, é comum surgi-rem perguntas como: O que a vítima estaria fazendo naquele horário? Como se vestia? Estaria acompanhada ou só? Dançando, bebendo, divertindo-se?

Podemos assim dizer que as violências nas gangues, nos comandos do tráfico de drogas, que atingem mais rapazes de classes populares, ou nos ‘pegas’ de carro, que atingem mais rapazes de classe média e alta, são o resultado da imposição da força em disputa de poder para provar masculinidade, que é associada à agressividade.

Os episódios de violência intrafamiliar envolvendo homens e mulheres revelam conflitos familiares diversos, que obede-cem à lógica cultural que institui uma rígida divisão moral entre homens e mulheres no espaço privado, delimitando seus direi-tos e suas obrigações.

REFERÊNCIAS

BOURDIEU, Pierre. A domi-nação masculina. Tradução Maria Helena Kuner – 2ª. Ed. Rio de Janeiro, Bertrand do Brasil, 2002.

CARRARA, Sérgio. Educação, Diferença, Diversidade e Desigualdade. In: CENTRO LATINO AMERICANO EM SEXUALIDADE E DIREITOS HUMANOS – IMS/UERJ. Gênero e diversidade na escola: forma-ção de professoras/es em Gênero, Orientação Sexual e Relações Étnico-Raciais. Livro de conte-údo. Versão 2009 – Rio de Janeiro: CEPESC; Brasília: SPM, 2009.

CENTRO LATINO AME-RICANO EM SEXUALIDADE E DIREITOS HUMANOS – IMS/UERJ. Gênero e diversidade na escola: for-mação de professoras/es em Gênero, Orientação Sexual e Relações Étnico--Raciais. Livro de conteúdo. Versão 2009 – Rio de Janeiro: CEPESC; Bra-sília: SPM, 2009.

GIFFIN, K.. Violência de Gênero, Sexualidade e Saúde. Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 10 (supplement 1): 146-155, 1994.

LOURO, Guacira Lopes (org.). O corpo educado: pedagogias da sexualidade. 2.ed. Belo Horizonte, Autêntica, 2000.

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GUIA DE EXECUÇÃO

Eneida Ramos Sousa1

1 Psicólogo pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (1990), Mestre em Saúde Coletiva pelo IMS/UERJ - Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (1994) e Doutor em Saúde Coletiva, também no IMS/UERJ (1999). Professor Associado 2 da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde atua na graduação e no Programa de Pós-graduação em Serviço Social. Coordenador do projeto de pesquisa PSICANÁLISE E SOCIEDADE.

Embora o tema acerca de ado-lescentes em conflito com a lei venha ganhando maior espaço em discussões acadêmicas, ainda é escasso o subsídio jurídico-cien-tífico, sobretudo sobre a Execução das Medidas Socioeducativas.

Assim, este artigo pretende colaborar com esclarecimentos práticos acerca da Guia de Execu-ção de Medidas Socioeducativas, que surge como nosso objeto de análise, por ser elemento funda-mental para a garantia do Prin-cípio Constitucional do Devido Processo Legal.

Os avanços trazidos pelo Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE) ine-gavelmente contribuíram para modificar o cenário da execução das medidas socioeducativas, pois, funda-se como se depre-ende, do § 1º do artigo 1º da Lei Federal nº 12594/2012,

como conjunto ordenado de princípios, regras e critérios que envolvem a execução de medi-das socioeducativas, incluindo--se nele, por adesão, os sistemas estaduais, distrital e municipais, bem como todos os planos, polí-ticas e programas específicos de atendimento a adolescentes em conflito com a lei.

A Lei Federal nº 12.594 de 18 de janeiro de 2012 que instituiu o SINASE, no campo da execução das medidas socioeducativas, pre-coniza alguns procedimentos que devem ser adotados com relação ao processo de execução, como constatamos pelo texto do Artigo 39 que trazemos a colação:

Art. 39. Para aplicação das medi-das socioeducativas de prestação de serviços à comunidade, liber-dade assistida, semiliberdade ou internação, será constituído pro-

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GUIA DE EXECUÇÃO

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cesso de execução para cada ado-lescente, respeitado o disposto nos arts. 143 e 144 da Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), e com autuação das seguintes peças:

I - documentos de caráter pes-soal do adolescente existentes no processo de conhecimento, espe-cialmente os que comprovem sua idade; e

II - as indicadas pela autoridade judiciária, sempre que houver necessidade e, obrigatoriamente:a) cópia da representação; b) cópia da certidão de antecedentes; c) cópia da sentença ou acórdão; e d) cópia de estudos técnicos realizados durante a fase de conhecimento. Parágrafo único. Procedimento idêntico será observado na hipó-tese de medida aplicada em sede de remissão, como forma de sus-pensão do processo.

Determinando, ainda, o encaminhamento imediato dos referidos documentos ao órgão gestor para definição da unidade socioeducativa, conforme Artigo 40 do diploma legal em comento:

Art. 40. Autuadas as peças, a autoridade judiciária encami-nhará, imediatamente, cópia integral do expediente ao órgão gestor do atendimento socioe-ducativo, solicitando designação do programa ou da unidade de cumprimento da medida.

Pela simples leitura dos Artigos 39 e 40 da aludida Lei, notou-se que tal dispositivo carecia de maior definição e esse problema foi sanado com as Resoluções nº 165 de 2012 e 191 de 2014 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que regu-lamentaram a execução imposta no novo preceito legal.

Dessa forma, configura-se a Guia de Execução como o docu-mento apto a iniciar o processo de execução de medidas socioedu-cativas, expedido pelo respectivo Juízo do conhecimento, ou seja, aquele que profere a sentença/me-dida socioeducativa, de modo indi-vidualizado para cada adolescente, não importando a quantidade de autores envolvidos no ato infracio-nal, e remetido ao órgão gestor do atendimento socioeducativo.

As Resoluções CNJ 165/12 e 191/14 trouxeram para o or-denamento jurídico e sistema socioeducativo, importantes concei-tos acerca das Guias de Execução, como podemos observar no artigo 2º da Resolução CNJ 165:

Art. 2º Para os fins desta Resolu-ção define-se que:

I) Guia de internação provisória é aquela que se refere ao decreto de internação cautelar (art. 183 da Lei n. 8.069/1990); [Alterado pela Resolução nº 191, 25.04.2014]

II) Guia de execução provisó-ria de medida socioeducativa

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204

internação/semiliberdade é a que se refere à internação ou semiliberdade decorrente da aplicação da medida socioedu-cativa decretada por sentença não transitada em julgado;

III) Guia de execução provisória de medida socioeducativa em meio aberto é a que se refere à aplicação de prestação de serviço à comunidade ou de liberdade assistida por sentença não transi-tada em julgado;

IV) Guia de execução definitiva de medida socioeducativa de internação ou semiliberdade se refere à privação de liberdade decorrente de sentença ou de acórdão transitados em julgado;

V) Guia de execução definitiva de medida socioeducativa em meio aberto é a que se refere à aplicação de prestação de serviço à comunidade ou de liberdade assistida por sentença ou acórdão transitado em julgado;

VI) Guia de execução de interna-ção sanção se refere ao decreto de internação previsto no art. 122, inciso III, do Estatuto da Criança e do Adolescente.

VII) Guia unificadora é aquela expedida pelo juiz da execução com finalidade de unificar duas ou mais guias de execução em face do mesmo adolescente (art. 45 da Lei n. 12.594/2012). [Incluído pela Resolução nº 191, de 25.04.2014]2

Outro ponto que merece des-taque se refere a proibição de ingresso ou permanência de ado-lescente em unidade de execução de medida socioeducativa (inter-nação definitiva ou semiliberdade) ou em internação provisória sem ordem escrita da autoridade judi-ciária competente – Artigo 4º da Resolução CNJ 165/2012. Assim, fica completamente expurgada do ordenamento jurídico a prá-tica, que, até então, era comum de que representantes do Parquet, da Defensoria Pública ou Autoridade Policial praticassem atos pertinen-tes à jurisdição ferindo o que pre-coniza o Artigo 146 da Lei 8069 de 13 de julho de 1990.

Cumpre ressaltar que, dessa forma, o ingresso do adoles-cente em qualquer das medidas socioeducativas de meio aberto ou meio fechado ou em medida cautelar só ocorrerá mediante a apresentação da guia de exe-cução devidamente instruída, expedida pelo juiz do processo de conhecimento, conforme artigo 5° e seguintes da Resolução CNJ 165/2012 e 191/2014, devendo ser geradas na forma do Artigo 3º das referidas Resoluções.

Nesse sentido, nossos tri-bunais em recentes decisões se manifestam, corroborando com o exposto acima, exaram:

2 Grifo nosso

205

GUIA DE EXECUÇÃO

G

001741887.2016.8.19.0000 - HABEAS CORPUSDES. JOAQUIM DOMINGOS DE ALMEIDA NETO Julgamento: 26/04/2016 SETIMA CAMARA CRIMINAL

HABEAS CORPUS. ECA. ATO INFRACIONAL ANÁLOGO AO CRIME PREVISTO NO ARTIGO 157, §2º, II, DO CP. APLICAÇÃO DE MSE DE INTERNAÇÃO PROVISORIA. SENTENÇA DE PROCEDENCIA DA REPRESEN-TAÇÃO E FIXAÇÃO DE MSE DE SEMILIBERDADE. TRANS-FERENCIA DO ADOLESCENTE PARA UNIDADE COMPATÍ-VEL, SEM EXPEDIÇÃO DA GUIA DE EXECUÇÃO. PROVIDEN-CIA ADOTADA MAIS DE UM MÊS DEPOIS, POR FORÇA DE LIMINAR AQUI DEFERIDA. PRE-JUIZO E CONSTRANGIMENTO MANIFESTOS. ORDEM CONCE-DIDA. DECISÃO UNANIME.

Importa esclarecer que todo esse processo aparece como res-posta aos problemas encontrados pelo CNJ, em suas visitas nas uni-dades socioeducativas de todo país, nos anos de 2010 e 2012, no âmbito do serviço de justiça da infância e da juventude, no qual apontamos como destaque a ausência da confecção de guias.

Tal ausência é um impedi-mento para a execução da me-dida socioeducativa, pois fere o Princípio Constitucional do Devido Processo legal do adoles-

cente privado de liberdade e im-pede que a gestão do sistema socioeducativo atue dentro dos pa-râmetros de justiça e igualdade.

Também por este prisma é o entendimento do respeitável Ishida (2014), que perfilha o mesmo pen-sar, ao asseverar que:

Como no processo em geral, po-de-se afirmar que existem três fases na aplicação da medida socioeducativa: o processo de conhecimento, o cautelar e o de execução. O conhecimento é re-presentado pela ação socioedu-cativa. O processo cautelar, pela internação provisória. Já, a exe-cução da medida não encontrou disciplina no ECA. Em razão disso, existiu uma verdadeira lacuna da lei menorista, apenas parcialmente solucionada com o advento da Lei nº 12.594, de 18 de janeiro de 2012. A execu-ção da medida socioeducativa é um prolongamento da atuação do juiz, exercendo este, como no processo penal, a atividade jurisdicional. Possui uma natu-reza eclética à semelhança da execução penal, já que também existe uma parte administrativa através do controle exercido pelo dirigente da entidade de atendi-mento (ISHIDA, 2014, p.475).

Na era digital, estamos cada vez mais antenados e o CNJ não está fora dessa linha. Por isso na perspectiva de unifor-

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206

mização do procedimento de execução de medida socioeduca-tiva em todo país, instituiu-se o Cadastro Nacional de Inspeções em Unidades de Semiliberdade (CNIUIS) e o Cadastro Nacional de Adolescentes em Conflito com a Lei (CNACL), como mais uma ferramenta de controle para os ma-gistrados acompanharem melhor a execução da medida socioedu-cativa, na forma do artigo 3º da Resolução CNJ 165/2012.

Essas ferramentas permitem a extração da guia, com a cor-reta alimentação do cadastro, ou seja, não haverá possibilidade do adolescente ser privado de liber-dade sem a guia correspondente à medida cautelar ou socioedu-cativa, além de poder permitir ao magistrado saber antecipada-mente se o adolescente responde à ação socioeducativa em sua jurisdição e se já tem guia expe-dida em seu nome em qualquer outra vara do país.

Por fim, podemos concluir que em que pese a guia de exe-cução é elementar para que possamos, na esfera jurídica--pedagógica, redesenhar com o adolescente em conflito com a lei uma nova trajetória de vida.

Hoje, não é fato cabível o não envio das peças processuais ao órgão gestor com o escopo de pro-teção do adolescente, deixando assim, de informar fatos extrema-

mente relevantes ao cumprimento da medida socioeducativa e, mui-tas vezes, impedindo que a equipe socioeducativa possa ter acesso a dados que possam auxiliar para melhor organização da execução da medida junto ao adolescente.

Por isso é imprescindível o estudo mais apurado desse tema e a conscientização e sensibiliza-ção de todo os atores do Sistema de Garantia de Direitos para a devida atenção a questão da Guia de Execução, pois a sua ausência durante a privação de liberdade caracteriza prejuízos que podem se tornar irreparáveis no processo de ressocialização.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente ECA, Lei Federal 8.069, de 13de julho de 1990. Disponível em http://www.pla-nalto.gov.br/CCIVIL_03/leis/ L8069.htm. Acesso em 09 de julho de 2016.

BRASIL. Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE). Lei Federal 12.594, de 18 de janeiro de 2012. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/cci-vil_03/_ato2011 2014/2012/lei/l12594.htm. Acesso em 09 de julho de 2016.

BRASIL. Sistema Nacional De Atendimento Socioeducativo -SINASE/ Secretaria Especial dos

207

GUIA DE EXECUÇÃO

G

Direitos Humanos – Brasília-DF: CONANDA, 2006.

BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Acordão no Habeas Corpus/RJ. Relator: NETO, Joaquim Domingos de Almeida. Publicado no DJ de 29-04-2016 p. 143/147. Disponível em <http://www4.tjrj.jus.br/ejud/ConsultaProcesso.aspx? N=201605907380. Acesso em 20 de julho de 2016.

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Resolução nº 165 de 16 de novembro de 2012. Disponível em http://www.cnj.jus.br/atos-nor-mativos?documento=1640. Acesso em 09 de julho de 2016.

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Resolução nº 191 de 25 de abril de 2014. Disponível em: < http://www.cnj.jus.br/images/resol_gp_191_2014.pdf. Acesso 09 de julho de 2016.

ISHIDA, Válter Kenji. Estatuto da criança e do adolescente: dou-trina e jurisprudência / 15. ed. – São Paulo: Atlas, 2014

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HHUMANIZAÇÃO

André Pereira de Almeida1

1 Socioeducador do DEGASE e doutorando em filosofia pela UFRJ; mestre, licen-ciado e bacharel em filosofia pela mesma universidade; especialista em filosofia contemporânea e bacharel em administração pela PUC-Rio.2 Vide referências.3 La petite prostituée de toute la pensée, toute la culture, de toute la morale, de toute la politique des vingt dernières années. Tradução livre.

Humanização (hu·ma·ni·za·ção) – (s.f.) derivação feminina singular de humanizar. De acordo com o dicionário Priberam2 da língua portuguesa, corresponde ao ato ou efeito de humanizar.

O verbete humanização surge no rastro do conceito de huma-nismo, no qual é enfatizada a cons-trução ou o reconhecimento do ente humano. Na sua concepção filosó-fica, o humanismo surge na Gré-cia Antiga e é bem assinalado pelo sofista Protágoras (490 a.C. - 415 a.C.), que identificou no homem um valor superior e o definiu como a medida de todas as coisas. Histo-ricamente o humanismo reaparece no Renascimento, quando foi reno-vado o interesse pela civilização, cultura e literatura greco-romana, e

é restaurado o foco no ser humano, o qual foi relegado pela escolás-tica da época medieval. Destarte, é reforçada a dignidade do espí-rito humano, a confiança na razão e no pensamento crítico. Com a che-gada da modernidade e a criação das ciências humanas, a crença no conhecimento humano e na huma-nidade é reafirmada.

O que vai ser posto à prova e criticado por alguns intelectu-ais pós-modernos e contempo-râneos, como o filósofo francês Michel Foucault (2001), para quem o homem é uma invenção mo-derna e fadada a desaparecer e que criticou o humanismo como: “a pequena prostituta de todo o pensamento, de toda a cultura, de toda a moral, de toda a po-lítica dos últimos vinte anos”3

209

HUMANIZAÇÃO

H

(Foucault, 2001, p. 616). A huma-nização comumente enfatiza o bem-estar e a dignidade da pes-soa humana. Assim a humani-zação corresponde ao tornar-se humano, dar ou ganhar atributos humanos; e assim tornar-se soci-ável e civilizado. Também traz a marca do ente que se torna agra-dável, afável ou, ao menos, su-portável. Por exemplo: o sistema socioeducativo necessita de hu-manização ou os socioeducado-res devem humanizar o período de internação dos adolescentes autores de ato infracional.

A humanização é um verbete polissêmico, que remete a movi-mentos, conceitos, ações de dife-rentes origens históricas e linhas de pensamento sujeitas a várias formas de interpretação. Com as suas perspectivas multifocais, a humanização na socioeducação remete a um desafio duplo, tanto conceitual, como prático. Des-taco a dificuldade metodológica de implantar algo com contornos teóricos e operacionais não con-sensuais em abrangência e aplica-bilidade, de forma a alcançar uma massa crítica capaz de provocar um processo de mudança apto a responder aos anseios dos socioe-ducandos, dos familiares, dos tra-balhadores da socioeducação e da sociedade. Aí está a importân-cia de sintonizar o conceito com

a prática, o conhecimento com a transformação da realidade.

No campo socioeducativo, a humanização carece de ser rea-lizada de forma distinta e perso-nalizada. É fundamental resgatar o direito dos socioeducandos em preservar sua dignidade, com sua participação, responsabiliza-ção e autonomia. Instrumentos fundamentais para a construção da humanização do processo so-cioeducativo, que foi tão macu-lado no decorrer de sua história. Embora a temática da humani-zação como uma política socioe-ducativa seja algo relativamente novo - cujo germe surge no sé-culo XX, com a Declaração de Ge-nebra dos direitos da criança de 1924 e a Declaração Universal dos Di-reitos Humanos de 1948 -, a sua discussão tem despertado grande interesse de trabalhadores do sis-tema, de gestores, do judiciário, de intelectuais, de políticos e de pesquisadores no sentido de com-preender e analisar a humaniza-ção dos serviços socioeducativos e de desencadear ações concre-tas nesse sentido. Haja vista que uma humanização socioeduca-tiva que não se reflita em práticas é letra morta ou eufemismo.

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REFERÊNCIAS

Dicionário digital da língua portuguesa Priberan. Disponível em: https://www.priberam.pt/DLPO/humanização. Acesso em 29.08.2016.

FOUCAULT, Michel. Dits et écrits I (1954-1975). Paris: Quarto Gallimard, 2001.

211

INDIVIDUALIZAÇÃO DO ATENDIMENTO

I

1 Doutora em Teoria Psicanalítica pela UFRJ (2010). Mestre em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (1992). Psicóloga do Departamento Geral de Ações Socioeducativas do Estado do Rio de Janeiro. Coordenadora de Saúde Integral e Reinserção Social do Departamento Geral de Ações Socioeducativas do Estado do Rio de Janeiro, cargo assumido em janeiro de 2013. Professora substituta do Departamento de Psicologia da Universidade Federal Fluminense (2011-2012). Membro do Comitê da Política Editorial (CPE) do NOVO DEGASE. Parecerista ad hoc da Revista Psicologia: Teoria e Pesquisa.

IINDIVIDUALIZAÇÃO DO ATENDIMENTO

Christiane da Mota Zeitoune1

Um dos princípios que rege a execução da medida socioeduca-tiva é a individualização do aten-dimento. Com a Lei Federal 12.594, de 18 de janeiro de 2012, que insti-tui o Sistema Nacional de Atendi-mento Socioeducativo – SINASE, o Brasil conseguiu definir parâ-metros para o atendimento so-cioeducativo com bases éticas e pedagógicas, instituindo uma re-ferência para a estruturação do Sistema de Atendimento Socio-educativo nos Estados e Municí-pios, através da articulação das várias áreas das políticas públi-cas, de forma que o atendimento ocorra fundamentado no princípio da incompletude institucional, da

garantia dos direitos individuais e na perspectiva da inclusão social dos adolescentes e suas famílias.

Vamos destacar o inciso VI do artigo 35, da referida Lei:

Art. 35. A execução das medidas socioeducativas reger-se-á pelos seguintes princípios:(...)

VI - individualização, conside-rando-se a idade, capacidades e circunstâncias pessoais do adolescente;(...)

O princípio da individuali-zação, considerando-se a idade, a capacidade e as circunstâncias pessoais do adolescente, é funda-mental para se garantir uma es-

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212

cuta diferenciada, para que nessa política de direitos e deveres “para todos” algo da singularidade do sujeito possa aparecer. Trata-se de assegurar o acesso aos direi-tos fundamentais preconizados no Estatuto da Criança e do Adoles-cente, mas sem deixar de conside-rar que cada adolescente tem suas habilidades e escolhas individuais.

Todas as medidas socioedu-cativas buscam a responsabiliza-ção do adolescente respeitando sua “condição peculiar de pessoa em desenvolvimento” (BRASIL, 2002). É através do cumprimento da medida socioeducativa que o adolescente é convocado a respon-der juridicamente pelo ato infra-cional cometido, mas cada um o fará a sua maneira, ao seu tempo e de acordo com a sua possibilidade e capacidade (ZEITOUNE, 2011).

Esse olhar individualizado deve ser trabalhado em todas as medidas socioeducativas e por to-dos os agentes do Sistema de Ga-rantias de Direitos: pelo Sistema de Justiça - Juiz, Promotor de Jus-tiça, Defensor Público ou advo-gado; pela Assistência Social - com a equipe técnica do programa de meio aberto ou fechado; pela Saúde, pela Educação, etc.

No atendimento ao adoles-cente, devem ser considerados eventuais transtornos mental e/ou comprometimento psíquico, uso abusivo de drogas ou, ainda,

alguma espécie de deficiência – o que demandará tratamento dife-renciado daqueles que não a pos-suem. Da mesma forma, aquele adolescente que não possui respon-sável ou genitor demandará ações diferenciadas daqueles que os possuem, e assim sucessivamente.

Para se fazer esse acompanha-mento individualizado, o Plano Individual de Atendimento (PIA) é um instrumento pedagógico fundamental, pois cria estratégias de escuta, cuidado e propostas pedagógicas, com a participação efetiva do adolescente e da sua fa-mília. A construção de uma pro-posta individual e única para o adolescente deve expressar a es-pecificidade de cada caso e garan-tir um acompanhamento ímpar, que leve em conta sua subjetivi-dade, potencialidades, capacida-des, interesses e limitações. O PIA abre a possibilidade de trabalhar a implicação, a responsabilização e a reparação das consequências do ato infracional necessárias ao processo socioeducativo.

Garantir a individualização do atendimento socioeducativo de cada adolescente não é uma tarefa fácil. Sabemos dos desafios da so-cioeducação. No entanto, é preciso criar estratégias de atendimento, com ações integradas onde, além do acesso aos direitos e às políticas públicas, se abra a possibilidade de dar voz ao adolescente, de modo

213

INDIVIDUALIZAÇÃO DO ATENDIMENTO

I

que ele seja participante ativo no processo subjetivo de construção do seu projeto pessoal e se impli-que nas suas escolhas de vida e se responsabilize por elas.

REFERÊNCIAS:

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, Senado Federal, Brasília, 1988.

_______. Estatuto da Criança e do Adolescente: Lei federal nº 8069, de 13 de julho de 1990. Diário Oficial [da República Federativa do Brasil], Brasília, DF, 1990, p. 13563-13577.

_______. Conselho Nacio-nal do Direito da Criança e do Adolescente. SINASE – Sistema Nacional de Atendimento Socioe-ducativo. Brasília, 2006.

________. Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo – Lei Federal nº 12.594, de 18/01/2012.

_________. Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adoles-centes a Convivência Familiar e Comunitária. Brasília/ DF, dezembro de 2006.

DEGASE. Plano de Atendi-mento Socioeducativo do Governo do Estado do Rio de Janeiro - (PASE) - Decreto nº 42.715 de 23/11/2010. Diário Oficial do Estado do Rio de Janeiro - ANO XXXVI - Nº

213. Governo do Estado do Rio de Janeiro. Secretaria de Estado de Educação. Departamento Geral de Ações Socioeducativas, RJ, 2010.

________. Plano Indivi-dual de Atendimento (PIA). Rio de Janeiro: Governo do Estado. Secretaria de Estado de Educa-ção. Departamento Geral de Ações Socioeducativas, 2013.

ZEITOUNE, C. M. A Clínica Psicanalítica do Ato Infracional – Os impasses da sexuação na adolescência. Psicanálise & Barroco em Revista. V.09, p.117-134, 2011. Disponível em: http://www.psicanaliseebarroco.pro.br. Acesso em 30/07/2016.

ZEITOUNE, C. M. Ética, Lei e responsabilidade – Considerações sobre o atendimento clínico aos adolescentes em conflito com a lei. In: aSEPHallus (Online). Nº 8, p.43 60, 2009.Disponível em: ht tp://www.nucleosephora.com/asephallus/numero_08/index.html. Acesso em 30/07/2016.

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INTERDISCIPLINARIDADE

Cláudia da Silva Rodrigues1

1 Pós-Graduada em Terapia de Família pela UCAM/IAVM. Assistente Social da Prefeitura de Piraí. E-mail: [email protected]

As discussões em torno da interdisciplinaridade remontam períodos históricos remotos, sendo considerada um recurso aglutina-dor de saberes, que pode ter um desdobramento ao revés, caso seu sentido não seja explicitado ade-quadamente. Para Jupiassu (1976, p.72) a interdisciplinaridade “não possui ainda um sentido epistemo-lógico único e estável”, portanto, mais que conceito, esta se configura como visão de mundo, com des-dobramentos propositivos numa prática imbricada de significados, compreensões e finalidades que acompanham o movimento histó-rico, sendo por este modificado.

A incorporação desta termino-logia perpassa várias áreas do sa-ber: educação, saúde, assistência, sendo, nos últimos vinte anos, am-plamente utilizada na gestão de políticas públicas em concomitân-cia com a intersetorialidade, pro-posta política de articulação entre diferentes setores sociais.

A interdisciplinaridade se configura enquanto processo em construção, não tanto teórica,

mas, sobretudo, na sua imple-mentação exigindo a ruptura com a metodologia positivista de cien-tificidade hegemônica, que gerou ao longo da história, e ainda gera conforme Severino (1995, p.15) “uma fragmentação do saber e ao sacrifício da unidade real”.

A historicidade que antece-deu o surgimento da interdisci-plinaridade ocorre no século XIX, marcado por muitas mudanças na esfera econômica, política e so-cial, incluindo a expansão cientí-fica com invenções e descobertas. O mundo passa a ser apreendido segundo a perspectiva positivis-ta, responsável pelo movimento de especialização/fragmentação do conhecimento, por acreditar que atingindo a realidade micro, apreender-se-ia a realidade ma-cro, de modo totalitário.

Porém, a crescente disciplina-ridade da ciência tornou o conhe-cimento individualizado e a visão fragmentada, inviabilizando novas respostas aos problemas emergen-tes, não contribuindo para a com-preensão da realidade de modo

215

INTERDISCIPLINARIDADE

I

amplo, conforme o pressuposto inicial. Assim, a partir da segunda metade do século XX, a proposta positivista de superespecialização passa a ser discutida, abrindo es-paço para o diálogo entre as dife-rentes disciplinas, por se concluir que uma disciplina ou área isola-damente não conseguiria dar con-ta das novas demandas. Segundo Pereira (1992) a interdisciplinarida-de emerge não como uma panaceia da ciência, mas lançando um novo olhar sobre a repartição dos sabe-res, renegando a herança positivis-ta ratificadora da disciplinaridade; da tipologização dos saberes; da verticalização das especialidades; do raciocínio dicotômico; da perda de contato do conhecimento com a realidade e da linguagem incomu-nicável entre diferentes áreas.

O aumento exacerbado das es-pecializações provocou uma espécie de “patologia do saber” ou de uma “alienação científica” propulsora da interdisciplinaridade, que surge da carência no campo do conheci-mento, conforme aponta Japiassu:

O saber chegou a um tal ponto de esmigalhamento, que a exigên-cia interdisciplinar mais parece, em nossos dias, a manifestação de um lamentável estado de ca-rência. Tudo nos leva a crer que o saber em migalhas seja produto de uma inteligência esfacelada. Nesse domínio, até parece que a razão tenha perdido a razão,

desequilibrando a própria per-sonalidade humana em seu conjunto. (JAPIASSU, 1976, p. 30)

O movimento interdisciplinar surge na Europa, em meados de 1960, concomitantemente ao mo-vimento estudantil imbricado na luta por um novo estatuto para as universidades e escolas, visando sua sincronia com as grandes questões da época. Esse movi-mento se expande e chega ao Brasil já no final dos anos 60, porém no dizer de Fazenda (1995), de forma deturpada, sem grande aprofun-damento ou estudo, sendo incor-porado como um modismo.

Ainda Fazenda (1995) destaca três momentos na historicidade da interdisciplinaridade: o primeiro, referente à década de 70, diz res-peito à sua definição; o segundo, na década de 80, marcado pela construção do método e o último momento, marcado pela teoriza-ção, se dá nos anos 90.

Conforme mencionado ante-riormente, as discussões acerca da interdisciplinaridade não são convergentes sob a perspectiva da conceituação e sim perpassa-das pelo pluralismo na sua com-preensão e abordagem, conforme afirmação de Pátaro e Bovo:

São vários os significados atri-buídos ao conceito de interdisci-plinaridade e, apesar da grande

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variedade de definições, seu sentido geral pode ser definido como a necessidade de interli-gação entre as diferentes áreas do conhecimento. (PÁTARO; BOVO, 2012, p. 45)

A interdisciplinaridade traz em si uma relação dialética com o conceito disciplinaridade, evi-denciada pelo prefixo “inter”, mantendo com este suas diver-gências, mas não o rejeitando to-talmente. Segundo Ianni (1986) esta relação é ao mesmo tempo de reciprocidade e antagonismo, o que põe em evidência seu cará-ter dialético, gerador de um todo unido com grau de dependência e reciprocidade e não um amon-toado de partes. Nesta relação, nenhuma das partes ganha sen-tido ou consistência se separadas das demais e das circunstâncias que as mantém.

Para Japiassu (1976, p.74): “A interdisciplinaridade caracteriza--se pela intensidade das trocas en-tre os especialistas e pelo grau de interação real das disciplinas no interior de um mesmo projeto de pesquisa”. Ou seja, a proposta não é diluir as disciplinas, mas preser-vando a especificidade dos seus métodos e conceitos, integrá-las, fomentando que cada área exerça seu potencial de contribuição me-diante o respeito à autonomia e criatividade de cada profissão en-

volvida, privilegiando as relações horizontais. A primeira condi-ção para que a interdisciplinari-dade ocorra é segundo Ely (2003, p.115): “a socialização do conheci-mento, linguagens e conceitos de cada área envolvida, para, poste-riormente, promover uma recom-binação dos elementos internos que possam facilitar o processo de comunicação”.

Para Pereira (1992) a inter-disciplinaridade sugere, pois, relação de reciprocidade entre saberes distintos, com suas con-tradições específicas e inerentes, tendo em vista à recomposição da unidade segmentada do co-nhecimento, que na realidade, não é compartimentalizado.

Entender a interdisciplina-ridade significa apoderar-se do que Marx (1982) afirmou ao elu-cidar que o mundo real só é real e concreto porque é síntese de múltiplas determinações e que a realidade concreta não é territó-rio cativo do saber, mas espaços móveis cujas fronteiras se alteram e se expandem tendo em vista o movimento do real e do vivido que não comporta segmenta-ções. Assim, Pereira (1992) aponta que para que cada especialidade possa ser a representação confi-ável desse real e desse vivido é preciso se abrir para a intervincu-lação interdisciplinar.

217

INTERDISCIPLINARIDADE

I

REFERÊNCIAS

ELY, Regina Fabiana, Interdisciplinaridade na saúde: um campo em construção. Katalysis, Florianópolis, v. 6, n. 1, p.113-117, jan/jun. 2003.

FAZENDA, Ivani. Interdis-ciplinaridade: história, teoria e pesquisa. 2ª ed. São Paulo: Papi-rus, 1995.

_________. Didática e interdisci-plinaridade. São Paulo: Papirus, 1997.

IANNI, Otávio. Classe e Nação. Petrópolis/RJ: Vozes, 1986.

JAPIASSU, Hilton. Interdisci-plinaridade e Patologia do saber. Rio de Janeiro: Imago, 1976.

MARTINELLI, M. L. ET AL. O uno e múltiplo nas relações entre áreas do saber. São Paulo: EDUC/Cortez, 1995.

MARX, Karl. Introdução à crítica da economia política. São Paulo: Abril Cultural, 1982.

MINAYO. Interdisciplinari-dade: uma questão que atravessa o saber, o poder e o mundo vivido. Medicina, v. 24, n. 2, p. 70-77. 1991

MUNHOZ, D. Trabalho inter-disciplinar: realidade e utopias: Revista Serviço Social e Sociedade. São Paulo: Cortez, n.51, ano XVII, 1996.

PÁTARO, Ricardo F.; BOVO, Marcos C. A interdisciplinaridade como possibilidade de diálogo e trabalho coletivo no campo da pesquisa e da educação. Revista NUPEM, Campo Mourão, v. 4, n. 6, p. 45-63, jan./jul. 2012.

PEREIRA-PEREIRA. Polí-tica Social: um espaço para a interdisciplinaridade. In: Revista Humanidades, volume 8, número 4, 1992.

SEVERINO, Antônio Joaquim. Subsídios para uma reflexão sobre os novos caminhos da interdiscipli-naridade. In: SÁ, Jeanete, L. Martins de (org.). Serviço Social e interdis-ciplinaridade: dos fundamentos filosóficos à prática interdisciplinar no ensino, e pesquisa e extensão. São Paulo: Cortez, 1995.

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INVISIBILIDADE SOCIAL

Murilo Peixoto da Mota1

1 Doutor em Serviço Social pelo Programa de Pós Graduação da Escola de Serviço Social/UFRJ (2011); Sociólogo do Núcleo de Estudos em Políticas Públicas e Direitos Humanos/UFRJ; Coordenador do Laboratório de Pesquisa GANIMEDES: Estudos e Pesquisas em Diversidade Sexual e Direitos Humanos no NEPP-DH/UFRJ.

Quando se fala em invisibili-dade social, estamos nos referindo a fatores econômicos, sociais, cul-turais e estéticos direcionados à análise sobre os indivíduos no espaço social. Apesar dos fatores econômicos serem contundentes para a discussão das invisibili-dades sociais, eles não devem ser tomados como o epicentro da dis-cussão situacional do sujeito na sociedade. As práticas dos indi-víduos na sociedade são relacio-nais e envolvem inúmeros fatores como gostos, consumo, valores ideológicos, capital cultural e sim-bólico adquirido pelos indivíduos ao longo de sua trajetória da vida. Nesse sentido, o olhar sobre o ou-tro se constrói tendo por base as experiências adquiridas, que pos-sibilitam aceitação, negação ou to-lerância ao que está fora da norma, dos padrões culturalmente esta-belecidos pela cultura, pela tra-dição e que incidem nos valores éticos sobre esse outro. Assim, aqueles que sofrem com a invisi-

bilidade social são principalmente sujeitos considerados fora dos pa-drões previamente estabelecidos por um perfil dominante, que en-volve majoritariamente perten-cer a camadas médias, de maioria branca e masculina. Em contrapo-sição, homossexuais, usuários de drogas, loucos, criminosos, defi-cientes, pobres, negros, velhos, crianças, mulheres, desemprega-dos, indivíduos em situação de rua, profissionais do sexo entre outros estão sob a égide da invi-sibilidade social. Neste aspecto, a invisibilidade social está marcada por atravessamentos de classe so-cial, gênero, raça e geração.

A invisibilidade social se per-petua pela violência simbólica a partir do desprezo à existência do outro diferente, à margem, aquele que meu “eu” insiste negar como semelhante e, portanto, o desejo é de afirmar que inexiste.

Mas a sociedade tem se em-penhado a fim de dar voz a quem não tem voz a partir da mobiliza-

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ção social e da organização dos próprios grupos marginalizados, o que possibilita a afirmação e a luta pelos direitos humanos e o enfrentamento das desigualda-des sociais nos planos econômi-cos (pela redistribuição da renda) e jurídico (pelo reconhecimento dos direitos sociais e civis). Esta perspectiva vem sendo articulada pela organização da sociedade ci-vil, como, por exemplo, grupos de mulheres, Movimento Sem Terra, trabalhadores rurais, centrais de favelas, fóruns em defesa da criança e do adolescente etc. Vale lembrar, contudo, que também se articulam os grupos de crimino-sos em comandos.

Os invisibilizados sociais prenunciam o quanto o mundo simbólico se constrói por meio de um habitus, como afirma o soci-ólogo Pierre Bourdieu (2008), que nega o outro distinto e desigual desqualificado pela falta de capi-tal econômico e capital cultural. Isso porque o habitus encontra-se na base das afinidades imediatas, que condicionam os encontros e as aquisições sociais capazes de produzir forças e estratégias para mobilizações estruturais transfor-madoras. Esses invisibilizados, sujeitos que não se quer ver ou que se quer negar existir, estão aos nossos olhos. Eles expres-sam as desigualdades sociais em relação a um “outro” detentor de

poder de existência definido pelo acesso objetivado pela trajetória da vida com maiores oportunida-des de capitais simbólicos.

Cotidianamente nos percebe-mos em meio a aqueles que nos servem como empregados domés-ticos, garçons, vendedores de rua, varredores, diaristas, motoristas e cobradores de ônibus, atenden-tes etc., que, mesmo não estando à margem social como indivíduos em níveis de pobreza absurda, são ignorados, desprezados sob nos-sos olhares e, muitas vezes, hu-milhados sob o crivo da distinção hierárquica social do domínio au-toritário do clichê: “– Você sabe com quem está falando?”. Esse domínio, segundo o antropólogo Roberto da Matta (1997), se atua-liza pelas teias de relações sociais, que, em determinadas situações, manifestam o operador autori-tário para se resolver uma situ-ação de conflito. A violência está direcionada e não se está sozi-nho quando se trata de sustentar ou legitimar uma ação contra al-guém com quem se queira susten-tar um propósito de transgressão. São contra os que estão hierarqui-camente desfalcados de poder, posição social e, portanto, subal-ternalizados. “Num parque de es-tacionamento de automóveis, o guardador diz a um motorista que não há vagas. O motorista, entre-tanto, insiste dizendo que as vagas

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estão ali. Diante da negativa firme do guardador, o motorista diz ir-ritado: sabe com quem está fa-lando?, e revela sua identidade de oficial do Exército” (DA MATTA, 1997, p. 208). Esse sistema hierár-quico se atualiza e se perpetua na família, na escola, na comunidade, no parentesco no qual cada indi-víduo aprende a ver o outro como igual somente quando lhe é favo-rável ou coloca o outro no “seu lugar”, quando esse “outro” é po-tencialmente subalternalizado e lhe desfalca os seus interesses. Assim, um invisibilizado social está sob o controle das relações de poderes hierárquicos construídos nas relações cotidianas.

Cabe destacar que a invisi-bilidade social também pode ser uma estratégia. A questão dos ho-mossexuais, por exemplo, se con-figura em meio a muitas consequ-ências coletivas, que prenunciam violações de direitos humanos sobre aqueles que ousam se afir-mar como homossexuais em de-terminados territórios, para além do âmbito privado. Assim, es-tar invisibilizado, no “armário”, também pode ser um elo de re-sistência. No “armário”, muitos homossexuais podem enganar os olhares opressores e encontraram convenientes maneiras de experi-mentar e viver o desejo sexual. Ao tomar como foco a ideia de “armá-rio” para os homossexuais, o de-

bate passa a desnudar o sentido de busca por autoproteção indivi-dual, já que a homossexualidade é elaborada sob o crivo da repres-são, do controle e da vigilância.

Só existe invisibilidade social para muitos sujeitos porque sua si-tuação de vida se qualifica pela ne-gação, pelo desinteresse em saber e ver, pelo desprezo à diferença, as-pectos que reforçam um conjunto de desigualdades em meio à con-centração de renda, à precarie-dade da força de trabalho, à falta de oportunidade e de mecanismos que deem visibilidade a questões sociais e suas mazelas distintivas.

REFERÊNCIAS

BOURDIEU, Pierre. A distin-ção: crítica social do julgamento. São Paulo: Edusp; Porto Alegre, RS: Zouk, 2008

DA MATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. Rio de Janeiro, Ed. Rocco, 6. Ed., 1997.

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Mário Pires Simão1

1 Geógrafo, professor de Geografia. Doutor e mestre em Geografia pela Universidade Federal Fluminense. É Professor Adjunto do Departamento de Geografia da Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). É colaborador do Observatório de Favelas do Rio de Janeiro e pesquisador associado ao Instituto João e Maria Aleixo, que discute periferias urbanas.

É comum encontrarmos jovem, juvenil e juventude como sinônimos. Nos dicionários, encontraremos desde definições médicas – como a que define o jovem como um ser humano situado entre a infân-cia e a maturidade – a definições sociológicas – como a que se refere a um contingente com determi-nadas afinidades culturais e com significado social na estrutura de reprodução da vida coletiva.

Uma estruturação da vida em ciclos ocupa a centralidade na explicação destes termos. Contudo é preciso reconhecer que infância, adolescência e juven-tude emergem como categorias um tempo depois dos vocábulos usuais de criança, adolescente e jovem. São categorias relacionais que cumprem uma função social.

Juventude, verbete em ques-tão, é uma categoria datada. É uma produção da sociedade mo-derna ocidental, sobretudo a par-tir dos séculos XVIII XIX, sob a égide do ordenamento temporal da vida, um momento em que os referenciais desta sociedade se di-fundem tornando a classificação, a normatização e a hierarquização práticas indispensáveis para ga-rantir o ordenamento social. É as-sim que uma pluralidade de vidas jovens passa então a compreensão de juventude, numa tentativa de homogeneizar indivíduos.

Em resumo, uma tradução quase hegemônica de juventude centra-se nas seguintes dimensões:

1. Etária - estabelecida pelos órgãos oficiais do Estado e outros

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organismos de caráter universalista, que varie em seus limites em função do indicador que é valorizado por cada órgão como central para sua definição de juventude. O Estatuto da Juventude, sancionado em 2013 no Brasil, considera jovem todo cida-dão que compreende a faixa etária entre 15 e 29 anos de idade;

2. Comportamento social - estabelece uma gradação entre a imaturidade quase infantil até in-vestir-se de responsabilidade social. A noção de moratória social2 reflete bem a condição juvenil. Refere-se a um período da vida em que os su-jeitos estão livres das obrigações de trabalho para dedicar-se exclusiva-mente a formação para uma inser-ção futura no mundo adulto. Esta argumentação torna plausível a de-finição de espaços de socialização para onde se destinam os mais jo-vens. A escola é um destes, um es-paço de aprendizagem para uma esperada transição para a maturi-dade e o exercício da vida adulta.

3. Critérios do desenvolvi-mento físico e biológico - obser-váveis no corpo do indivíduo, que estabelece claramente a ideia dos ciclos da vida estabelecidos desde

a infância, passando pela adoles-cência, juventude e idade adulta;

4. Critérios culturais - orde-nados para uma noção de uma identidade assumida a partir do conjunto de elementos objetivos e subjetivos presentes na vida dos indivíduos, portanto, que aponta para existência de jovens urbanos e jovens rurais, jovens sob diferen-tes classes sociais, sob distintos contextos político-ideológicos etc.

Essa biocronologia3 nos ajuda a construir tipologias, represen-tações indicadoras da realidade social, mas pode também obscu-recer as contradições, as especifi-cidades. Não é difícil reconhecer que a noção de limites temporais e da lógica da etapa de vida em formação, isto é, eminentemente transitória, se pauta pelo referen-cial do outro e não da própria ex-periência jovem.

Categorias socioculturais, como juventude, continuam como patri-mônio de um pensamento moderno e universal. Elas fazem parte de um ordenamento que cumpre, sobre-tudo, uma função social. Como tal,

2 Termo cunhado por Erickson em 1986 conforme nos diz Abramo (2008). Significa a condição juvenil de estar numa etapa de vida se preparando para a outra, portanto, estando, em tese, livre das injunções da vida produtiva, como o trabalho e outras responsabilidades da vida adulta, é uma construção que não traduz com precisão a diversidade de juventudes que temos.3 Estamos chamando de biocronologia esta definição hegemônica de juventude centrada na dimensão temporal e nas explicações biológicas das mudanças no corpo do sujeito.

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a homogeneização nos ajuda a en-contrar elementos comuns para a construção de políticas mais con-tundentes e focadas. Contudo, os emblemas fundamentais tecidos na modernidade nos ajudam na defesa da humanidade presente em todos os seus indivíduos. Mas naufragam em supor que conseguem abarcar as diferenças múltiplas dos sujeitos reais em suas teorias e elaborações pragmáticas do mundo.

Também podemos dizer a transitoriedade presente na noção de juventude é uma demonstra-ção da concepção teleológica que a sustenta. Há um conjunto de caracterizações que gravitam em torno deste ordenamento da vida do jovem para o futuro.

No entanto, este futuro está já delimitado, é a vida adulta com seus compromissos largamente conhe-cidos. O que fica implícito a esta dimensão cronológica da vida é sua previsibilidade e conformação, ou seja, está prescrito o caminho a ser trilhado, não há nada que deve-ria comprometer estes sujeitos a assumirem progressivamente seu papel social, herdado por aqueles que lhes antecedem.

Desse modo, a principal expec-tativa que se tem dos jovens é que cumpram o papel de perpetuar a estrutura que elegemos - conheci-mentos e valores - que dão signi-ficado ao mundo social. Qualquer perturbação desta vida ordenada

para o futuro deve ser veemente-mente rebatida e sanada, o que nos parece fornecer argumentos para leituras como as que são direcio-nadas para os jovens de origem popular e, especialmente, aqueles que têm seu caminho cruzado com as práticas sócio educativas porque ultrapassaram os limites prescri-tos da lei. Cerbino (2006) realça o discurso dominante que focaliza a violência nos setores juvenis, como se estes fossem implicitamente bio e psicologicamente violentos. Assim, a noção do desvio se forta-lece, sustentando-se na tese de que vivemos um contexto de ordem e normalidade das relações sociais e do cotidiano, portanto as ações de resistência, de subversão, de opo-sição e, consequentemente, a vio-lação das regras de convívio social seriam consideradas uma anoma-lia. A noção do desvio assenta-se, desse modo, numa concepção mo-ral que tende a fazer juízo de va-lor sobre a conduta das pessoas, indicando as boas e as más práti-cas, como se fossem campos dia-metralmente opostos.

É difícil encarar a juventude como um momento de encontros e, portanto, como uma experiência efetivamente muito plural. Ao en-carar o plural de juventude como ponto de partida, os tais limites de-pendem de diferentes conjunturas sociais e podem variar conforme a vivência de cada indivíduo. Cada

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um constrói para si uma rede mul-tifacetada de elementos cognitivos, emocionais, todos sempre media-dos no tempo e no espaço em que a vida do sujeito acontece. Os tem-pos dedicados à formação não são os mesmos para todos os jovens. Os espaços de socialização não são experimentados de modo idêntico.

Do mesmo modo, a ideia do acúmulo de conhecimento pre-sente na dimensão teleológica da vida do jovem, apontada para o futuro, pode não se apresentar da forma como a convencionamos. Ser jovem não é necessariamente ter menos conhecimentos. Um bom exemplo disso é o reconhecimento de que existem conhecimentos fa-cilmente assimilados pelos mais jovens, como aqueles vinculados ao desenvolvimento das tecnolo-gias, que os mais velhos têm mais dificuldades em se apropriar, o que coloca em cheque uma lógica temporal linear e harmônica.

Há, portanto, uma diversidade de juventudes a serem analisadas que não conseguimos vislum-brar nas clássicas tipologias que são aplicadas aos jovens. Embora tenhamos sujeitos sociais dentro de uma mesma faixa etária, depa-ramo-nos cada vez mais com uma variedade de composições para além destas categorias históricas. Devemos assim reconhecer que JUVENTUDES expressa este plu-ral, do qual não podemos abrir

mão, sob risco de cair em definições simplórias e vagas sobre sujeitos sociais diversos e complexos.

Esta pluralidade se explicita à medida que os jovens emergem como sujeitos políticos para a socie-dade. Conforme salientou Bourdieu (1980), a juventude é apenas uma palavra se não nos atentamos para os diferentes contextos e condições sociais em que estes sujeitos estão inseridos, não se pode desconside-rar a participação efetiva dos jovens nos grandes temas e paixões, nos dilemas mundiais, nas transforma-ções sociais contemporâneas.

Abramo (2008), em publica-ção de baseada em pesquisa na-cional sobre juventude brasileira realizada em 2003, destaca enfo-ques possíveis sobre juventude no Brasil, fruto da relevância desta ca-tegoria no contemporâneo, ou seja: um enfoque na dimensão política dos jovens como sujeitos que pro-tagonizam novos espaços de luta em diferentes movimentos sociais, com capacidade para incidir sobre a transformação da sociedade; os jovens num recorte demográfico, isto é, como um contingente que tem demandas específicas, sobre-tudo em termos de políticas sociais e, por fim, o enfoque dos jovens como sujeitos de direitos, o que im-plicaria numa abordagem que ul-trapasse os espaços prescritos aos jovens e tente entendê-los em sua singularidade e complexidade.

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Portanto para além dos con-ceitos normativos, apresenta-se um enorme desafio para a política pública em suas diferentes esferas de avançar no que concerne a estes distintos universos juvenis.

Segundo o Censo Demográfico do IBGE, de 2010, há no Brasil 51,3 milhões de jovens entre 15 e 29 anos de idade, um contingente que equivale a ¼ da população do País. Em Agenda Juventude Brasil, pu-blicação da Secretaria Nacional da Juventude de 2014, que traz re-sultados de pesquisa amostral de abrangência nacional realizada em 2013 a etapa juvenil é “mar-cada por trajetórias relativamente longas, intermitentes e, muitas ve-zes, não lineares de formação, in-clusão social e desenvolvimento da autonomia” ( Brasil. Secretaria Nacional da Juventude, 2014, p. 16)

É importante notar como a noção de etapa de vida atravessa a explicação, mas ao mesmo tempo, se incorpora a noção de trajetória para indicar os diferentes arran-jos de vida que traçam percur-sos distintos para sujeitos numa mesma faixa etária. Ao conside-rar as trajetórias, a Agenda é bas-tante assertiva em apresentar os comuns e os diferentes, ao mesmo tempo em que reconhece as de-sigualdades que condicionam a vida dos jovens brasileiros. Mais do que uma etapa de vida, os jo-vens vivem experiências e confli-

tos muito particulares, portanto a superação dos esquemas mo-dulares que tendem a homoge-neizar a juventude apresenta-se como um caminho para romper com as representações estetiza-das dos jovens, ora centradas no velho paradoxo da ameaça X es-perança, ou mesmo referenciadas em imagens de consumo.

A pluralidade não deve ser vista de maneira abstrata, mas ao contrário é preciso conside-rá-la a partir de algumas dimen-sões que lhe dão concretude, isto é, a desigualdade, a diversidade e a diferença. Os jovens vivem condições desiguais de vida, os jovens são diversos enquanto di-mensão sócio-humana e os jo-vens produzem modos de viver muito diferentes.

É, portanto, nosso desafio que todo o percurso que façamos de conhecimento e reconhecimento considere as falas, os gestos, as ações, as práticas criadas e signi-ficadas por estes sujeitos. São for-mas e conteúdos novos que nos fazem pensar sobre o lugar da di-ferença em nossas ações indivi-duais ou coletivas, profissionais ou militantes e também nos fa-zem discutir os novos direitos que ainda precisamos nos debruçar para tornar a vida humana uma experiência mais digna.

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REFERÊNCIAS

ABRAMO, H. W. & BRANCO, P, P. M. (orgs.) Retratos da Juventude Brasileira: análises de uma pes-quisa nacional. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2008.

ALMEIDA, M. I. M. & EUGENIO, F. (orgs) Culturas Jovens: novos mapas do afeto. Rio de Janeiro: Zahar Editora, 2006.

BRASIL.. Agenda Juven-tude Brasil – Quem são...Como vivem...O que pensam e pro-põem os jovens brasileiros? – Pesquisa Nacional sobre Perfil e Opinião dos Jovens Brasileiros, 2013. Relatório Preliminar Resu-mido. Secretaria Nacional da Juventude. Brasília: SNJ, 2014.

CASTRO, M.; ABRAMOVAY, M. Por um novo paradigma do fazer políticas de/ para/com juven-tudes. Brasília: UNESCO, 2003.

CENSO DEMOGRÁFICO 2010. Características da população e dos domicílios: resultados do universo. Rio de Janeiro: IBGE, 2011.

CERBINO, Mauro. Jóvenes em la calle. Cultura y Conflicto. Rubi (Barcelona): Antrophos Edi-torial, 2006.

FAVERO, Osmar et al. (orgs). Juventude e Contemporanei-dade. Brasília : UNESCO, MEC, ANPEd, 2007.

MAGNANI, José G. C. & SOUZA, Bruna M. (orgs.) Jovens na metrópole: etnografias de circuitos de lazer, encontros e sociabilidade. 1. ed. São Paulo: Editora Terceiro Nome, 2007.

NOVAES, Regina R. & RIBEIRO, Eliane (orgs) Livro das Juventudes Sul-Americanas. Rio de Janeiro: IBASE e Instituto Pólis, 2010.

RICOER, Paul. Percurso do Reconhecimento. São Paulo: Edições Loyola, 2006.

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Roberta Duboc Pedrinha1

1 Advogada. Doutora em Sociologia Criminal pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP-UERJ). Doutoranda em Direito Penal pela Universidade de Buenos Aires (UBA-Argentina). Mestra em Criminologia e Direito Penal pela Universidade Candido Mendes (UCAM). Pós-graduada em Criminologia pela Universidade de Havana (UH-Cuba). Graduada em Ciências Jurídicas pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Professora e Coordenadora da Pós-graduação em Criminologia, Direito e Processo Penal da Universidade Candido Mendes (UCAM). Professora Convidada de Direito Penal da Pós-graduação da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e de Direito Penal Econômico da Pós-graduação da Pontifícia Universidade Católica (PUC/RJ). Professora Convidada de Direito Penal das Especializações e dos Mestrados da Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ). Professora Convidada de Criminologia da ACADEPOL, da EMERJ e do DEGASE.

Quando uma pessoa co-mete um crime, para que venha a responder por isso, entre outros fatores, sua conduta deve ser repro-vável, ou seja, culpável. Então, ela deve, primeiramente, ter discerni-mento, capacidade de compreen-der o caráter ilícito do seu ato. Não deve apresentar nenhuma doença mental (que são as alterações do funcionamento da mente que pre-judicam o desempenho pessoal, fa-miliar, social e profissional, como a esquizofrenia, a bipolaridade e a paranoia) ou oligofrenia (redução

da capacidade cognitiva ou desen-volvimento mental incompleto). Deve ter uma idade biológica que permita entender, comportar-se de acordo com o seu entendimento e agir com maturidade.

Portanto, maioridade penal é a expressão empregada para de-signar quando o indivíduo é con-siderado imputável e passa a ter o dever jurídico de arcar com as consequências por seu comporta-mento, através da responsabilidade criminal, podendo receber penas rígidas como a de prisão. Toma

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como base a idade, em face do cri-tério biológico de aferição adotado pelo Brasil. Isso quer dizer que so-mente a idade será levada em conta para definir o parâmetro referen-cial para a responsabilização do sujeito. E esta foi prefixada em 18 anos completos no país, conforme elenca a Constituição Republicana no artigo 228, consoante o Código Penal dispõe no artigo 27 e pre-ceitua o Estatuto da Criança e do Adolescente com fulcro no artigo 2º. Portanto, a maioridade de 18 anos é cláusula pétrea. A mesma idade é mantida em cerca de 70% dos países do globo.

Desse modo, a imputabilidade desenhar-se-á a partir do primeiro instante do dia do aniversário do indivíduo que completar 18 anos, quando será considerado maior de idade, independentemente de qualquer ato da vida civil, como ser emancipado, casado, pai, ter in-gressado na universidade, ter sido aprovado em concurso público, ou ainda ser superdotado. Nesta oca-sião, responderá por crime, em razão da sua maioridade penal. Porém, todos os comportamentos que afrontarem os diplomas legais, realizados por indivíduos com menos de 18 anos de idade, serão concebidos como atos infracionais e não crimes. Por conseguinte, não estarão os jovens, inimputáveis, submetidos às penas de prisão,

mas sim, às medidas protetivas e até às medidas socioeducativas.

Os atos infracionais consistem nas condutas negativas perpetra-das pelos jovens, que se amoldam à descrição típica dos comporta-mentos previstos no Código Penal, definidos como crimes, e alcançam ainda as contravenções penais. Os atos infracionais estão descritos no artigo 103 do Estatuto da Criança e do Adolescente. Hoje, são cerca de 23 mil casos de adolescentes em conflito com a lei no país, pelo co-metimento de atos infracionais. Destes, aproximadamente 20.000 encontram-se sob medidas socioe-ducativas rígidas como a interna-ção, de onde cerca de 5.000 estão na preocupante modalidade pro-visória, conforme os dados do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas, referente ao ano de 2013.

Merece destaque o fato de que, aproximadamente, apenas 13% co-meteram atos infracionais contra a pessoa, na maioria dos casos, con-figuram-se atos infracionais contra o patrimônio e de tráfico de drogas. Dessa forma, facilmente se verifica a precária dimensão social e a caó-tica condição econômica escamote-ada nos atos infracionais de autoria dos jovens pinçados pelo sistema penal. Constata-se a seletividade com que opera a concretude da in-cidência das medidas socioedu-cativas, sempre em face dos mais pobres, dos mais vulneráveis.

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Vale conferir no ranking dos atos infracionais o percentual de 38,7% de roubo, seguido de 27,1% de tráfico de drogas, 8,9% de homi-cídio, 4,2% de furto, 4,3% de lesão corporal e ameaça, 2,2% de porte de arma de fogo, 2,2% de latrocínio, 1,5 de estupro, entre outros. Mesmo que se considere a faixa de atos in-fracionais de homicídios (8,9%), os realizados por jovens entre a faixa etária de 16 a 18 anos corres-pondem a menos de 1%. Portanto, constata-se que, sob o ponto de vista quantitativo, seria inócua a redução da maioridade penal, di-ferentemente da promessa a que se propõe, ainda que do ponto de vista histórico e político represente uma fissura ao Estado Democrático de Direitos, pela frontal violação aos direitos fundamentais.

Atualmente, cerca de menos de 1% de todas as infrações penais correspondem aos atos infracio-nais praticados, revelando que o número de jovens envolvidos em atos infracionais não é elevado, diante do contingente total da população juvenil do país, com aproximadamente 11 milhões, que corresponde a uma faixa de 11% do total da população brasileira2. Para estes jovens que come-tem atos infracionais, ao invés das penas cominadas no Código Penal, são aplicadas as medidas

protetivas e as medidas socioedu-cativas, insculpidas no Estatuto da Criança e do Adolescente. Tais medidas encontram-se, respecti-vamente, nos artigos 101 e 112 do mencionado Diploma.

Dentre as medidas proteti-vas, destacam-se: o encaminha-mento aos pais ou responsável, mediante termo de responsabili-dade; orientação, apoio e acompa-nhamento temporários; matrícula e frequência obrigatórias em esta-belecimento oficial de ensino fun-damental; inclusão em programa comunitário ou oficial de auxílio à família, à criança e ao adolescente; inclusão em serviços e programas oficiais ou comunitários de prote-ção, apoio e promoção da família, da criança e do adolescente; requi-sição de tratamento médico, psico-lógico ou psiquiátrico, em regime hospitalar ou ambulatorial; inclu-são em programa oficial ou co-munitário de auxílio, orientação e tratamento a alcoólatras e to-xicômanos; abrigo em entidade; acolhimento institucional; coloca-ção em família substituta e inclu-são em programa de acolhimento familiar.

Por outro lado, dentre as me-didas socioeducativas, têm-se notadamente: a advertência, a re-paração de danos, a prestação de serviços à sociedade, a liberdade

2 Nessa linha, vale conferir os dados do Conselho Nacional de Justiça. Há um cadastro nacional de adolescentes em conflito com a lei, além de relatório.

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assistida, a semiliberdade e a in-ternação. Esta última é adotada apenas excepcionalmente, uma vez que se equipara à prisão, pre-ventivamente no máximo por 45 dias ou então por no máximo 3 anos após decisão do juiz. Afinal, vale ressaltar o caráter de prote-ção integral à criança e ao adoles-cente e não de punição, conferido pelo artigo 1º. do ECA e, antes disso, atribuído pela Constituição Republicana, em seu artigo 227, que frisa a absoluta prioridade na garantia dos direitos fundamen-tais da criança e do adolescente.

Contudo, as campanhas mi-diáticas insuflam ondas de medo, clamam por sanções rígidas, di-fundem os discursos de intolerân-cia, legitimadores do sistema penal, ainda que se trate de uma propa-ganda enganosa, como adverte Maria Lúcia Karam. Logo, signifi-cativa parcela da população adere, pois não tem acesso a outro ponto de vista, já que se formou um con-senso punitivista com os meios de comunicação. Assim, passa a fazer apologia a um sistema que não re-cupera e nem reabilita, cuja marca é a seletividade, observada pelo quantitativo de indivíduos pobres e de baixa escolaridade fisgados.

As mazelas que ocorrem na es-fera juvenil hoje ainda serão agra-vadas com a possível aprovação da redução da maioridade, ao sancio-nar com prisão os jovens que an-teriormente recebiam internação de curto prazo e ao maximizar o seu tempo de confinamento, o ri-gor punitivo, embrutecendo-os - como ocorreu no Brasil no período da escravidão, em que a maiori-dade penal era de 14 anos. Trata-se de uma forma cara de tornar os se-res humanos piores, de contami-ná-los com a subcultura carcerária, de conduzi-los às arregimentações das facções dos presídios, com seus altos índices de reincidência. Agora não somente os adultos, cor-re-se o risco de alcançar também os adolescentes.

Destaca-se que 54 países reduziram a maioridade penal. Contudo, a violência não dimi-nuiu. Por conta disso, alguns vol-taram atrás, como foi o caso da Alemanha e da Espanha3. Na rea-lidade, precisa-se atentar para o fato de que, mais do que autores de atos infracionais, os adolescen-tes são vítimas de crimes, come-tidos por adultos, e inclusive, por agentes públicos, retrato de uma violência institucional.

3 Nos EUA, em Nova York, o Governador democrata Andrew Cuomo propôs a ação executiva de elevar a maioridade penal de 16 para 18 anos no estado, após constatar a elevada reincidência de jovens processados, que subiu 26%, além do número de abusos sexuais que cresceu alarmantemente, pois se multiplicou por 5.

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Os dados apresentados em 2014 revelaram que no ano de 2012 no Brasil foram assassinados apro-ximadamente 11 mil adolescentes e crianças. Neste mesmo período de referência, 2,9 mil jovens foram au-tores de atos infracionais contra a pessoa4, de onde se infere a situação de vulnerabilidade e vitimização da juventude, pela discrepância entre a posição de sujeito ativo de ato infracional e de sujeito passivo de crime de homicídio. Como des-creve Batista (2006), vive-se um filicídio de uma civilização que de-vora os seus próprios filhos.

Ressalta-se que o Brasil se inscreve como o 6º. país com mais mortes de crianças e adolescen-tes no ranking mundial - são 17 crianças e adolescentes mortos para cada 100.000 pessoas. Em ter-mos absolutos, é o 2º. no ranking global. Sublinha-se que morrem 3 vezes mais crianças e adoles-centes negros, como aponta a pesquisa da Anistia Internacional (77% dos jovens assassinados são negros). Isso reforça a reprodução das desigualdades estruturais, de uma sociedade que traz perma-nências racistas, marcada pelos

traços da escravidão e de seus controles sociais.

Durante mais de 20 anos, trami-tou quase adormecida no Congresso Nacional a Proposta de Emenda Constitucional de autoria de Benedito Domingos, a PEC 171/1993, da Redução da Maioridade Penal5. Em Plenária, a citada PEC não foi aprovada em 2015. Inconformada com o resultado, a bancada conser-vadora, com o apoio do Presidente da Casa à época, perpetrou o que fi-cou conhecido como um golpe re-gimentar. Com abuso de poder, realizou uma segunda votação, me-nos de 24 horas após a primeira, quando reenviou uma nova e in-devida pauta para votação, através do artificioso emprego de pseudo--emenda aglutinadora. E, nesta em-preitada, logrou êxito.

Então, na Câmara dos Depu-tados, foi fixada em 16 anos de idade a redução da maioridade penal. De modo atípico, com natu-reza parcial, pois faz referência apenas às condutas de latrocínio, estupro, lesão corporal seguida de morte e homicídio. Na medida em que retiraram de pauta um rol de comportamentos que no pro-

4 Conferir o Cadastro Nacional de Adolescentes em Conflito com a Lei e o relatório da Vara de Infância e Adolescência, ambos indicados nas referências.5 Após passar pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania na Câmara dos Deputados, a primeira votação foi pela admissibilidade da PEC. Logo adiante, foram realizadas 3 audiências públicas e em seguida a relatoria do Deputado Luiz Couto, que concluiu pela sua inadmissibilidade. Depois, em nova relatoria, o Deputado Marcos Rogério em seu parecer votou pela admis-sibilidade. As controvérsias não cessaram na Comissão Especial da Câmara.

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jeto foram imputados aos jovens com 16 anos, como tortura, tráfico de drogas, lesão corporal grave e roubo qualificado, restaram apenas alguns de maior repú-dio. Trata-se de uma excrescência jurídica. Como um jovem de 16 anos será imputável somente se cometer determinados comporta-mentos escolhidos, taxativamente arbitrados, e não outros6?

Vale esclarecer que a manobra política infringiu o artigo 60, pará-grafo 5º, da Constituição Republi-

cana, o qual elucida que matéria proposta de emenda rejeitada ou prejudicada não pode ser votada seguidamente, objeto de nova pro-posta na mesma sessão legislativa. Nesse diapasão, prenuncia o Regi-mento Interno da Câmara dos De-putados 17/1989. Assim, também se posicionaram em declarações públicas ministros do STF7.

No aspecto jurídico, deve-se atentar para os planos nacional e in-ternacional. Na seara internacional8, precisam-se averiguar os Tratados

6 A equivocada aprovação gerou celeuma, ocasionou a representação de seis par-tidos políticos, que impetraram mandado de segurança na Suprema Corte do país, com o escopo de anular a segunda votação; com o fito de obstar a redução da maio-ridade penal e, na mesma esteira, a Ordem dos Advogados do Brasil Federal.7 Como o atual Ministro Marco Aurélio Mello e o Ex-Ministro que outrora inte-grou a Corte, Joaquim Barbosa, guardiões da Constituição Republicana que se posicionaram firmemente. Disponível em: http://oglobo.globo.com/brasil/marco--aurelio-barbosa-consideram-inconstitucional-nova-votacao-da-pec-da-maiori-dade-penal-16639629. Acesso em: 10 de dezembro de 2015. Muitas outras críticas dirigiram-se à PEC; elas partiram da Sociedade Civil, dos Movimentos Sociais, da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil da Igreja Católica, da Associação do Ministério Público, da Associação da Defensoria Pública, da Ordem dos Advogados do Brasil Federal, da Associação dos Juízes para a Democracia, dos Secretários de Justiça de 24 Estados do Brasil e do Distrito Federal, do DEGASE, de Institutos Jurídicos, de Cursos de Direito das principais Universidades do país. Através de atos públicos, manifestos, passeatas e resistências em frente ao Congresso, como o que ficou conhecido como “Amanhecer em Brasília”. 8 Vale rememorar que, em 1919, a Sociedade das Nações criou o Comitê de Proteção da Infância. Em 1923 foi elaborada a Declaração de Genebra sobre os Direitos da Criança. No ano seguinte, a Declaração de Genebra foi adota-da pela Sociedade das Nações. Em 1927, após o IV Congresso Pan-americano da Criança, dez países americanos (Argentina, Bolívia, Brasil, Cuba, Chile, Equador, Estados Unidos, Peru, Uruguai e Venezuela) subscreveram a ata de fundação do Instituto Interamericano da Criança, hoje vinculado à OEA e es-tendido à adolescência, organismo destinado à promoção do bem-estar da in-fância e da maternidade na região. Em 1934, a Sociedade das Nações aprovou, pela segunda vez, a Declaração de Genebra. Em 1946, um movimento interna-cional se manifestou a favor da criação do Fundo Internacional de Emergência

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MAIORIDADE PENAL

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e Convenções Internacionais dos quais o Brasil é signatário. Nesse terreno, inscreve-se a Convenção da Organização das Nações Unidas so-bre os Direitos da Criança, Resolu-ção 44/25 da Assembleia Geral da ONU, de 1989, ratificada pelo Bra-sil em 1990 e o Pacto de São José da Costa Rica, de 1969, do qual o Brasil é também signatário, com destaque para os artigos 19 e 5º, parágrafo 5º.

No campo nacional, deve-se verificar a notória inconstituciona-lidade da redução da maioridade penal, que fere cláusula pétrea, com fulcro no artigo 60, parágrafo 4º da Magna Carta. Nela, consta que não será objeto de deliberação pro-posta de emenda tendente a abolir a forma federativa; a separação dos poderes; o voto secreto, direto, periódico e universal; e os direitos e garantias fundamentais do indivíduo. Este último com grifo nosso.

Neste âmbito, das garantias fundamentais, inscreve-se o di-reito à liberdade, que deve ser preservado frente às investidas do Poder Punitivo, logo, o direito a não responsabilização crimi-nal. Isso com lastro no mesmo Diploma Republicano, em seu dis-positivo 228, que expressamente aduz a inimputabilidade aos me-nores de 18 anos, em consonância com norma infraconstitucional, o Código Penal, que também deter-mina isso no seu artigo 27.

Acerca da imputabilidade do jovem, como primeiro elemento da culpabilidade, deve-se aferir a capacidade de entendimento do caráter ilícito do fato e de determi-nar-se, de acordo com essa compre-ensão, quer seja, de controlar-se no âmbito das emoções. Neste aspecto, segundo observa Juarez Cirino dos Santos9, deriva no jovem uma maior

das Nações Unidas para a Infância - UNICEF. Em 1948, a Assembleia Geral das Nações Unidas proclamou a Declaração Universal dos Direitos Humanos, com a inclusão implícita dos direitos e liberdades das crianças e adolescentes. Foi a partir da década de 1950, com a criação da ONU e de sua subsidiária es-pecífica para a criança - a UNICEF –, que ganhou ênfase a situação da criança e do adolescente. Em 1959 foi aprovada a Declaração Universal dos Direitos das Crianças. Em 1959, a Declaração dos Direitos da Criança foi adotada por unanimidade. Em 1969, foi celebrado no Continente Americano o Pacto de San José da Costa Rica. Em 1983, a sociedade civil e ONGs se organizaram para elaborar a Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança, em consulta junto à ONU. Em 1989, a Convenção sobre os Direitos da Criança foi adotada pela Assembleia Geral da ONU. Em 1990, foi celebrada a Cúpula Mundial de Presidentes em favor da infância e aprovado o Plano de Ação para o decênio 1990-2000, referência para os Planos Nacionais de Ação.9 Vale conferir a entrevista concedida ao Jornal Jogo do Poder em Curitiba - Paraná, por Juarez Cirino dos Santos, ao advogado Luiz Carlos da Rocha, no Canal 6, CNT, realizada em 10/05/2015.

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dificuldade de conter seus impul-sos, refrear seus instintos e contro-lar suas pulsões. Ademais, o jovem costuma ser destemido, forçando e rompendo limites, pois falta a ele maturidade e experiência.

Nesse ínterim, de acordo com as modernas tendências na área Psi, nos jovens o comportamento tido como “normal” ou “comum” é aquele considerado antissocial. Daí, podem-se inferir algumas ca-racterísticas ilustrativas do compor-tamento desviante do adolescente, como ser geral, experimental e tran-sitório. É geral na medida em que usualmente todo jovem comete ao menos um ato infracional. É experi-mental de modo que o adolescente testa o limite, experimenta-o. E por fim é transitório porque perdura temporariamente, de maneira que se extingue em um dado prazo10.

Doravante, a maioridade penal fixada em 18 anos consubstancia-se em direito fundamental, cláusula pétrea, fundante da República e dos valores democráticos. Qualquer al-teração ensejaria um retrocesso e afrontaria também o Princípio de Proibição do Regresso. Trata-se da vedação do retrocesso, de modo que as questões afeitas aos direi-tos humanos devem ser analisadas sempre na perspectiva da afirma-ção de direitos. Estes, uma vez re-

conhecidos como fundamentais na ordem interna ou externa, consoli-dam-se e concretizam-se. Logo, não podem ser destituídos, mediante supressão total ou parcial.

Desse modo, qualquer proposta de redução representa um iminente perigo posto que infla ainda mais o já falido e superlotado sistema peni-tenciário, com todas as suas agruras e desvirtuamentos, agora sob a ame-aça de vir a alcançar a juventude. Por conseguinte, se tal medida é irrele-vante do ponto de vista estatístico, é da maior relevância sob o aspecto das garantias arduamente conquis-tadas, podendo vir a significar um grande atraso se aprovada.

No aspecto humanitário, entre os riscos que se colocam junto à possibilidade de redução da maio-ridade penal, está o de isentar o Estado do compromisso que pos-sui com a Infância e a Juventude. Ou seja, a preocupação de rup-tura com a prevenção primária, os imprescindíveis investimentos em políticas públicas educacionais, em programas sociais, culturais, educativos, artísticos, conectados à saúde, esporte e lazer, de longo prazo, que não se coadunam aos períodos dos mandatos eleitorais e das propostas eleitoreiras.

Hodiernamente, são neces-sárias medidas urgentes capazes

10 Vale conferir a entrevista concedida ao Jornal Jogo do Poder em Curitiba - Paraná, por Juarez Cirino dos Santos, ao advogado Luiz Carlos da Rocha, no Canal 6, CNT, realizada em 10/05/2015.

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MAIORIDADE PENAL

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de gerar inclusão social para mi-lhões de crianças e jovens, de suas práticas cotidianas no presente às perspectivas futuras, imprimindo--lhes qualidade de vida, agregan-do-lhes valores, assegurando-lhes o pleno desenvolvimento humano. Medidas de viés humanista que forneçam ferramentas imprescin-díveis para que se viabilize um processo de conscientização e a construção da emancipação. Ao se transformar a realidade da infân-cia e da juventude, está-se também mudando toda a sociedade.

Entretanto, diante do des-pertar da PEC 171 de 1993 e da segunda votação da Plenária da Câmara dos Deputados em 2015, foi retomada uma questão no-dal, a de se optar pela redução da maioridade penal ou não. Assim, caberá à sociedade decidir se almeja medidas punitivas ou me-didas sociais, se deseja ver a sua juventude sentada no banco dos réus ou nos bancos escolares.

REFERÊNCIAS

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ridade Penal?. Brasília: Conselho Federal de Psicologia, 2015.

BATISTA, Vera Malaguti. Filicídio. In: RIZZINI, Irene; ZAMORA, Maria Helena et al. Crianças, adolescentes, pobreza, marginalidade e violência na América Latina e Caribe: relações indissociáveis?. Rio de Janeiro: Quatro Irmãos/FAPERJ, 2006.

BRASIL. Constituição Federal. Brasília, 1988.

BRASIL. Código Penal. Decreto-Leo 2848 de 07 de dezembro de 1940.

BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei Federal nº 8.069 de 13 de julho de 1990. Brasília, 1990.

BRASIL. Censo do Sistema Único de Assistência Social. 2014. Disponível em http://ces.ibge.gov.br/base-de-dados/metadados/mds/metadados-do-censo-suas.html. Acesso em 25 de junho de 2016.

BRASIL. O adolescente em conflito com a lei e o debate sobre a redução da maioridade penal: esclarecimentos necessá-rios. IPEA, 2015. Disponível em: www.ipea.gov.br. Acesso em: 16 de dezembro de 2015.

BRASIL. Cadastro Nacional de Adolescentes em Conflito com a Lei. Conselho Nacional de Justiça, 2016. Disponível em: http://www.cnj.jus.br/sistemas/infancia-e-juventude/20531

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-cadastro- nacional-de-adolescentes--em-conflito-com-a-lei-cnacl. Acesso em: 10 de dezembro de 2015.

BRASIL. Relatório da Vara da Infância e Juventude. Conselho Nacional de Justiça, 2014. Disponível em: http://www.cnj.jus.br/noticias/judiciario/79506-va-ra-da-infancia-e- juventude-lan-ca-relatorio-justica-juvenil-2014. Acesso em: 10 dezembro de 2015.

KARAM, Maria Lucia. Relação história da psicologia com o sis-tema prisional. In: Fórum Nacional “Desafios para a Resolução sobre a atuação do Psicólogo no Sistema Prisional. Conselho Federal de Psi-cologia, São Paulo, 19 de novembro de 2010. (comunicação oral).

FREI BETTO. Todos os países que reduziram a maioridade penal não diminuíram a violência. Jusbrasil, 2014. Disponível em: http://nelcisgomes.jusbrasil.com.br/noticias/116624331/todos-os-paises-que-reduziram-a-maioridade-penal-nao-diminuiram-a-violencia. Acesso em: 10 dezembro de 2015.

SANTOS, Juarez Cirino dos. Entrevista concedida a Luiz Carlos da Rocha. Jornal Jogo do Poder, Canal 6, CNT. Curitiba, 10 de maio de 2015. Disponível em https://www.youtube. com/wat-ch?v=3WkJOLNmPOI. Acesso em 10 dezembro de 2015.

MASCULINIDADES

Marcos Nascimento1

Jimena de Garay-Hernández2

1 Psicólogo, Doutor em Saúde Coletiva, Fundação Oswaldo Cruz Psicóloga, Doutoranda em Psicologia Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

Ao longo da História e em di-ferentes contextos sociais, os ho-mens têm sido considerados como protagonistas do espaço público, chefes da família e provedores. O questionamento sobre o lugar so-cial dos homens e sobre a constru-

ção da masculinidade é um evento recente e tem sua origem no ca-minho aberto pelos debates femi-nistas e pelos movimentos sociais que reuniram (e reúnem) mulhe-res, pessoas negras e LGBT (lés-bicas, gays, bissexuais, travestis e

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MASCULINIDADES

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transexuais) em torno de desigual-dades como o sexismo, o racismo, a homofobia, entre outras formas de hierarquização social.

A problematização das rela-ções sociais entre homens e mu-lheres, e posteriormente entre os próprios homens, lançou luz so-bre um conjunto de questões. Haveria uma “natureza” mas-culina ou feminina ou seríamos fruto de um intenso e contínuo processo de construção social? Como as concepções sobre mas-culinidade e feminilidade afetam diferentes domínios da vida coti-diana como a sexualidade, o ca-samento, a família, os processos de educação, o trabalho, a saúde, as vidas pública e privada?

Partimos da premissa de que a masculinidade não é um dado natural, mas que, ao contrário, é construída, afirmada, negociada e desconstruída ao longo da vida como experiência social e sub-jetiva, pertencente a uma certa cultura e datada historicamente (CONNEL, 1995).

Para pensar sobre a masculi-nidade – ou as diferentes mascu-linidades –, é necessário dialogar com o conceito de gênero e com as noções polarizadas de femi-nino/masculino. A educadora Guacira Lopes Louro alerta para a necessidade de desconstrução dessa visão de mundo binária e polarizada, enfatizando o seu ca-

ráter histórico e, portanto, passí-vel de mudanças:

Uma das consequências mais significativas da desconstrução dessa oposição binária reside na possibilidade que abre para que se compreendam e incluam as diferentes formas de mascu-linidade e feminilidade que se constituem socialmente. (...) Ao aceitarmos que a construção de gênero é histórica e se faz inces-santemente, estamos entendendo que as relações entre homens e mulheres, os discursos e as representações dessas relações estão em constante mudança (LOURO, 1997, pp. 34-35)

Para a socióloga australiana Raewyn Connell (1995), é justa-mente essa consciência histórica que vai constituir a característica do pensamento contemporâneo sobre a masculinidade (e a femi-nilidade). Desnaturalizar as con-cepções fixas sobre o masculino e o feminino significa escapar de uma visão essencialista sobre es-sas noções e pensar sobre os pro-cessos sociais de construção do que é ser homem e mulher. Signi-fica, também, estar atenta/o às rela-ções desiguais de poder, como por exemplo, aquelas presentes em atos de violência ou a persistente desi-gualdade salarial entre mulheres e homens ainda presente no mercado de trabalho. Essa consciência his-

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tórica também nos permite pensar sobre processos de mudanças nas relações de gênero.

Connell (1995 :71), numa tentativa de definição, diz que a masculinidade “é ao mesmo tempo a posição nas relações de gênero, as práticas pelas quais homens e mulheres se com-prometem com esta posição de gênero e os efeitos destas práticas na experiência corporal, na per-sonalidade e na cultura”.

Neste sentido, a autora não nega a importância da biologia, mas traz essa perspectiva para o campo das práticas sociais. É so-bre um corpo biológico e sexuado que a prática social age, revelando posturas, posições e formas corpo-rais apropriadas para os homens. Essa prática social diz respeito a um intenso processo de aprendi-zagem conduzido pela família, es-cola, religião, comunidade, mídia e sociedade de maneira mais ampla. Através das concepções sociais, culturais, políticas e econômicas sobre o masculino e o feminino, essas instituições vão imprimindo cotidianamente suas marcas nos meninos (e meninas) desde a in-fância, tornando-os homens e mu-lheres no cenário da vida adulta.

Daniel Welzer-Lang (2001), so-ciólogo francês, chama a atenção sobre a importância da “casa dos homens” na construção da mascu-linidade dos garotos. O autor en-

fatiza a ideia de que, em espaços como os pátios das escolas durante os intervalos, as quadras de prática de esportes, as rodas de conversas e brincadeiras entre garotos, há um intenso aprendizado sobre os “ri-tos da masculinidade”, em que ho-mens adultos e garotos mais velhos ensinam aos menores o uso de pa-lavras, gestos e comportamentos apropriados para o “mundo dos homens”. Esse processo de ensino/aprendizagem é extremamente im-portante para a aquisição de valo-res sobre gênero e a sexualidade na adolescência e na vida adulta.

Connell (1995) lança mão da ideia de uma “masculinidade he-gemônica”, referindo-se ao homem branco, heterossexual, de camada média, educado, que serve como guia e referência para os homens, ainda que poucos a alcancem ple-namente. Marcadores sociais como idade, cor da pele, etnia, classe so-cial e orientação sexual influenciam a experiência social de ser homem. Essa diversidade de experiências se traduz na concepção da autora so-bre as masculinidades no plural, ou seja, as diferentes posições sociais que os homens ocupam, revelando hierarquias não somente entre ho-mens e mulheres, mas também entre os próprios homens.

Outro registro importante na construção da masculinidade é a heteronormatividade compulsória. A antropóloga francesa Elisabeth

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MASCULINIDADES

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Badinter (1993) diz que a constru-ção da identidade masculina está baseada em uma tripla negação: não ser criança, não ser mulher e não ser homossexual. Essa cons-trução identitária traz indícios de uma masculinidade sempre em negociação, ou seja, sempre passí-vel de refutação e/ou confirmação por parte de outros homens, em que os atributos de comportamento precisam ser constantemente ava-liados, negociados, relembrados: um contínuo fazer-se, construir-se, afirmar-se, confirmar-se.

Nesse sentido, a figura do homossexual funciona como negação e reforço da própria mas-culinidade. A ideia de atividade/passividade presente no ato sexual confere, àquele que exerce o papel de ativo, o estatuto de masculino. Por outro lado, aquele que exerce o papel de passivo é percebido como feminino e, portanto, desvalori-zado socialmente (FRY, 1982).

É nesse jogo de relações entre os homens e as configurações de masculinidade que se estabelece o que Michael Kimmel (1997) chama de “patrulhamento de gênero”, ou seja, uma vigilância contínua, incessante, sobre a per-formance dos homens nos seus discursos e práticas cotidianos em relação a um modelo idealizado de “homem de verdade”.

É através do autopatrulha-mento e do patrulhamento alheio

que os homens tentam obter o aval para suas credenciais masculinas. Esse dispositivo controlador sobre os homens, suas práticas, discur-sos e modos de vida, busca regu-lar as expressões de afeto (quem nunca ouviu que homem não chora?), fomenta o silêncio de mui-tos deles em mostrarem-se com opiniões contrárias ao “senso co-mum” com medo do julgamento dos outros homens, reproduz um modelo de criação dos/as filhos/as segundo um discurso machista, entre outros tantos efeitos.

Portanto, ser homem significa incorporar um conjunto de nor-mas e prescrições sociais sobre como se inserir no mundo, em que alguns repertórios são naturaliza-dos e legitimados como próprios da “natureza masculina”, como o uso da violência para demons-trar força, coragem e defender a honra de sua família ou grupo (CECCHETTO, 2004); acumular histórias de conquistas sexuais (VALE DE ALMEIDA, 2000); ou apresentar discursos homofóbi-cos que desqualifiquem pessoas LGBT (BORRILLO, 2010).

No sistema socioeducativo, como em outros contextos, obser-vamos uma complexa relação entre os homens concretos e as mas-culinidades que eles constroem e almejam. Uma população em sua maioria marginalizada e sem acesso a direitos, devido a seus

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marcadores de raça, classe e idade, tem embarcado em estratégias para alcançar certo status, para exer-cer certo tipo de poder, no qual se pode aproximar de um modelo de masculinidade configurada como projeto de distinção social (VALE DE ALMEIDA, 1996), incluindo a adesão a instituições que oferecem um certo tipo de masculinidade, como as facções do tráfico de dro-gas (BARKER, 2008). Estas, por sua vez, delimitam um carregado conjunto de códigos com o intuito de preservar a “honra” masculina, incluindo determinados tipos de relações, uma inquestionável leal-dade à corporação, a demarcação de espaços e de corpos, dentre outras normas de gênero e seus correspondentes patrulhamentos.

O que aparece como impor-tante a ser considerado é que essas masculinidades que os jovens (e as instituições às quais pertencem – não apenas o tráfico, mas a mí-dia, as famílias, a escola, as igrejas) constroem não é inerente nem fixa, e sua construção não é alheia, mas parte da disputa cultural por cer-tas características que fazem parte de um projeto hegemônico – como a fartura financeira (ostentação), a potência sexual, a dominação so-bre um território público - através de práticas que garantiriam um poder no tecido social, inclusive a violência entre eles no intuito do patrulhamento, contra as mulhe-

res com as quais se relacionam, contra outros homens considera-dos rivais e contra gays e transe-xuais, consideradas/os traidoras/es da masculinidade. Também é fundamental entender que essas masculinidades são relacionais e produzidas cotidianamente nas práticas, inclusive dentro do sis-tema socioeducativo, pelo que po-demos pensar, a partir disso, como podemos, junto com eles, desnatu-ralizar, problematizar, pensar al-ternativas de masculinidades que não sejam assimétricas, margi-nalizadas, deslegitimadas e nem violentas, que ofereçam um per-tencimento, uma forma de acesso a territórios. Esse exercício, também, implica uma socioeducação.

REFERÊNCIAS

BADINTER, Elisabeth. XY: sobre a identidade masculina. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993.

BARKER, Gary. Homens na linha de fogo: juventude, mascu-linidade e exclusão social. Rio de Janeiro: 7 letras, 2008.

BORRILLO, Daniel. Homofobia: história e crítica de um preconceito. Belo Horizonte: Autêntica, 2010.

CECCHETTO, Fátima. Violên-cia e estilos de masculinidade. Rio de Janeiro: FGV, 2004.

241

MECANISMO ESTADUAL DE PREVENÇÃO E COMBATE À TORTURA

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CONNELL, R. W. Mascu-linities. Berkeley: University of California Press, 1995.

FRY, Peter. Para inglês ver: identidade e política na cultura bra-sileira. Rio de Janeiro: Zahar, 1982.

KIMMEL, Michael. Homofo-bia, temor, verguenza y silencio en la identidad masculina. In: VAL-DES, Teresa; OLAVARRÍA, José. Masculinidad/es: poder y crisis. Santiago: ISIS/Flacso, p. 49-62, 1997.

LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pós-estrutura-lista. Petrópolis: Vozes, 1997.

VALE DE ALMEIDA, Miguel. Género, Masculinidade e Poder. Revendo um caso do Sul de Portugal. In: Anuário Antropológico (Brasil), 95, p. 161-190, 1996.

VALE DE ALMEIDA, Miguel. Senhores de si: uma interpretação antropológica da masculinidade. Lisboa: Fim de Século, 2000.

MECANISMO ESTADUAL DE PREVENÇÃO E COMBATE À TORTURA

Graziela Contessoto Sereno1

Renata Lira2

Vera Lucia Alves3

Patrícia Oliveira4

Alexandre Campbell5

Fabio Cascardo6

1 Psicóloga, mestre em psicologia pela UFRJ e membro do Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura do Rio de Janeiro.2 Mestre em Direito pela PUC e membro do Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura do Rio de Janeiro. 3 Membro do Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura do Rio de Janeiro.4 Membro do Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura do Rio de Janeiro.5 Membro do Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura do Rio de Janeiro. 6 Membro do Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura do Rio de Janeiro.

O Mecanismo Estadual de Pre-venção e Combate à Tortura do Rio de Janeiro (MEPCT/RJ) é um órgão criado pela Lei Estadual N.º 5.778

de 30 de junho de 2010, vinculado à Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro, que tem como objetivo planejar, realizar e condu-

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242

zir visitas periódicas e regulares a espaços de privação de liberdade, qualquer que seja a forma ou fun-damento de detenção, aprisiona-mento, contenção ou colocação em estabelecimento público ou privado de controle, vigilância, internação, abrigo ou tratamento, para verificar as condições em que se encontram submetidas as pessoas privadas de liberdade, com intuito de prevenir a tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos e degra-dantes. Segundo o Protocolo Facul-tativo à Convenção contra a Tortura, os Mecanismos também têm como atribuição recomendar medidas para a adequação dos espaços de privação de liberdade aos parâme-tros internacionais e nacionais e acompanhar as medidas implanta-das para atender às recomendações.

Como prevenção da tortura e de outros tratamentos ou penais cruéis, desumanos e degradantes, entende-se:

Desde a análise de instrumentos internacionais de proteção até o exame das condições materiais de detenção, considerando políticas públicas, orçamentos, regulações, orientações escritas e conceitos teóricos que explicam os atos e omissões que impedem a apli-cação de princípios universais em condições locais. (Protocolo Facultativo à Convenção da ONU contra a Tortura: manual de implementação. p.73. 2010).

Para tanto, o propósito fun-damental do mandato preventivo é o de “identificação do risco de tortura” e, a partir da ação proa-tiva de monitoramento de centros de privação de liberdade, preve-nir que as violações aconteçam. O enfoque preventivo do MEPCT/RJ se baseia na premissa de um diálogo cooperativo com as auto-ridades competentes para coibição da tortura e outros tratamentos degradantes e cruéis à pessoa pri-vada de sua liberdade. Desta forma, como expressa o inciso II, do art. 2º da lei que o institui, busca-se a:

articulação, em regime de colabo-ração, entre as esferas de governo e de poder, principalmente, entre os órgãos responsáveis pela segurança pública, pela custódia de pessoas privadas de liberdade, por locais de longa permanência e pela proteção de direitos huma-nos. (Lei Estadual n.º 5.778/2010)

O MEPCT/RJ resulta do processo de estabelecimento, pelo Estado Bra-sileiro, das diretrizes contidas no Protocolo Facultativo à Convenção contra Tortura e Outros Tratamen-tos ou Penais Cruéis, Desumanos ou Degradantes da Organização das Nações Unidas, ratificado pelo país no ano de 2007. O referido Protocolo decorre do acúmulo es-tabelecido na Conferência Mundial de Direitos Humanos da ONU rea-

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MECANISMO ESTADUAL DE PREVENÇÃO E COMBATE À TORTURA

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lizada em 1993, na qual se declarou firmemente que os esforços para er-radicar a tortura deveriam primeira e principalmente concentrar-se na prevenção, designando para tanto, o estabelecimento de um sistema preventivo de visitas regulares a centros de detenção.

Além disso, a construção de Mecanismos Preventivos de moni-toramento dos locais de privação de liberdade integra as prerrogativas do “Plano de Ações de Integra-das para a Prevenção e o Combate à Tortura no Brasil”, de 2006, bem como o Plano Nacional de Direitos Humanos III, PNDH 3, da Secreta-ria Nacional de Direitos Humanos. Neste sentido, o Estado do Rio de Janeiro coloca-se em posição de pio-neirismo na Federação, salientando o compromisso com a implementa-ção do Plano de Ações Integradas para a Prevenção e Combate à Tor-tura no Brasil, com a defesa dos direitos humanos e a consolidação dos princípios democráticos.

Para tanto, o propósito fun-damental do mandato preventivo é a “identificação do risco de tor-tura” 7 e, a partir da ação proativa de monitoramento de centros de privação de liberdade, prevenir que as violações aconteçam. O enfoque preventivo do MEPCT se baseia na premissa de um diálogo cooperativo com as autoridades

competentes para coibição da tor-tura e outros tratamentos, cruéis, desumanos e degradantes à pes-soa privada de liberdade. Desta forma, como expressa o inciso II, do art. 2º da Lei Nº 5.778/10 que o institui, busca-se a:

articulação, em regime de colabo-ração, entre as esferas de governo e de poder, principalmente, entre os órgãos responsáveis pela segu-rança pública, pela custódia de pessoas privadas de liberdade, por locais de longa permanência e pela proteção de direitos humanos.

A Declaração Universal de Di-reitos Humanos de 1948, no seu artigo 5°, diz que ninguém será submetido à tortura nem à puni-ção ou a tratamento cruéis, desu-manos ou degradantes, o que foi corroborado pela Constituição Fe-deral de 1988, no inciso III art. 5º. No entanto, é sabido que diversas pessoas são submetidas a esses tratamentos em nosso País, espe-cialmente pelo Estado. A tortura, que necessariamente prevê uma relação verticalizada de poder entre o perpetrador e sua vítima, possui uma característica essen-cial: é um crime de oportunidade, sendo sua prática mais costumeira em locais de invisibilidade, como os locais de restrição de liberdade

7 Declaração do Subcomitê de Prevenção à Tortura da ONU ao apresentar o segundo relatório anual do SPT ao Comitê contra a Tortura. Acesso em 10 de junho de 2016.

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sob a gestão do Estado, que possui o uso legítimo da força.

Em nosso país, a gestão governamental da política para infância e adolescência é responsa-bilidade da Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente (SNPDCA). Esta, por sua vez, está subordinada à Secretaria de Direitos Humanos da República, assim como o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA), que é a instância máxima de for-mulação, deliberação e controle das políticas públicas para esse segmento populacional na esfera federal. Esse Conselho, criado pela Lei n. 8.242 de 12/10/1991, tem a res-ponsabilidade de tornar efetivos os direitos, princípios e diretrizes contidos no ECA.

No ano de 2006, o CONANDA lançou a Resolução nº 113 e a Resolução nº 117. Ambas dispõem sobre os parâmetros para a institu-cionalização e o fortalecimento do Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente (SGD). Este sistema se consti-tui na articulação e integração das instâncias públicas governa-mentais e da sociedade civil, na aplicação de instrumentos nor-mativos e no funcionamento dos mecanismos de promoção, defesa e controle para a efetivação dos direitos humanos da criança e do adolescente, nos níveis Federal,

Estadual, Distrital e Municipal, especialmente nas áreas da saúde, educação, assistência social, trabalho, segurança pública, pla-nejamento, orçamentária, relações exteriores e promoção da igual-dade e valorização da diversidade.

Em nosso país, a Lei nº 8069 de 1990 - ECA - prevê como órgãos fiscais ou controladores da polí-tica de atendimento à criança e ao adolescente o Ministério Público, o Judiciário, os Conselhos Tute-lares e os Conselhos dos Direitos das crianças e dos adolescentes e, além deles, novos atores se inserem nesse cenário com a criação dos Mecanismos preventivos de moni-toramento dos locais de privação de liberdade, como, por exemplo, o Mecanismo Nacional e os Meca-nismos Estaduais de Prevenção e Combate à Tortura, que também passam a fazer parte do SGD.

O Brasil é considerado um dos países mais avançados no que se refere às legislações para garan-tia dos direitos humanos para crianças e adolescentes. O país foi o primeiro a adotar uma legis-lação específica para esse público nos parâmetros da Convenção Internacional das Nações Unidas para os Direitos da Criança – aprovada pela Assembleia Geral da ONU em 20 de novembro de 1989 – com a promulgação do Estatuto da Criança e do Adoles-cente (ECA - Lei 8069), em julho

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MECANISMO ESTADUAL DE PREVENÇÃO E COMBATE À TORTURA

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de 19908, oito meses após o refe-rido marco internacional.

A Constituição Federal de 1988 estabelece no art. 227 ser “de-ver da família, da sociedade e do Estado assegurar com absoluta prioridade os direitos da criança e do adolescente”. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) considera crianças e adolescentes em situação peculiar de desen-volvimento, devendo, portanto, receber proteção integral9. A le-gislação brasileira considera esse público não passível de cumpri-mento de pena (inimputável) e compreende o ato infracional en-quanto prática análoga ao crime. Os adolescentes estão sujeitos a cumprimento de medidas socio-educativas10, que são aplicadas levando em conta a sua capacidade de cumpri-la, as circunstâncias e a gravidade do ato infracional.

No que se refere ao tema do adolescente autor de ato infracio-nal, há que se destacar a impor-tância da aprovação do Sistema

Nacional de Atendimento Socioe-ducativo (SINASE), em 2006, pela Secretaria de Direitos Humanos e pelo Conselho Nacional dos Di-reitos da Criança e do Adolescente (CONANDA) 11. Tal documento é fruto de um intenso debate entre os mais variados setores e expressa uma série de normas e parâmetros para execução de medidas socioe-ducativas inseridas em uma pers-pectiva de direitos humanos. Em janeiro de 2012, foi aprovada a Lei federal Nº 12.594/201212, que insti-tui e regulamenta o SINASE.

Uma série de dispositivos que zelam pela promoção, defesa e controle social desses direitos com-postos de órgãos governamentais e não governamentais constituem o Sistema de Garantias de Direitos da Criança e do Adolescente (SGD). Apesar dos avanços alcançados em termos de dispositivos legais, a efetivação dos direitos das crianças e adolescentes enfrenta inúmeros desafios. O principal público de atendimento do sistema socioedu-

8 Disponível em: www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L8069.htm.9 O referido marco legal considera criança de 0 a 12 anos incompletos e, ado-lescente, de 12 anos a 18 anos incompletos. Nos casos expressos em lei, pode-se aplicar excepcionalmente até os vinte e um anos de idade.10 As medidas socioeducativas são: advertência, obrigação de reparar o dano, prestação de serviços à comunidade, liberdade assistida, semiliberdade e inter-nação em estabelecimento educacional.11 Disponível em: http://www.sdh.gov.br/assuntos/criancas-e-adolescentes/pdf/plano-nacional-de-atendimento-socioeducativo-diretrizes-e-eixos-ope-rativos-para-o-sinase.12 Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12594.htm.

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cativo, os jovens negros e pobres, tem vivenciando a intensificação do processo de criminalização de suas existências e o cenário atual no Brasil desenha-se como uma experiência de violação de direitos.

Desde 2011, o MEPCT/RJ tem realizado várias visitas nas unidades de internação e inter-nação provisória que compõem o Departamento Geral de Ações Socioeducativas, com o objetivo de acompanhar a implantação do SINASE no estado.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei Federal 8.069/1990. Brasília: Secretaria de Estado dos Direitos Humanos, Departamento da Criança e do Adolescente, 2002.

CONANDA & SEDH. Sistema Nacional De Atendimento Socio-educativo – SINASE. Secretaria Especial dos Direitos Humanos, Brasília: CONANDA, 2006.

COMMITTE AGAINST TOR-TURE & SUBCOMMITTE ON PREVENTION OF TORTURE. Comunicado de imprensa de 02 de maio de 2009, disponível em: www.unog.ch.http://www.unog.ch/80256EDD006B9C2E/( h t t pNe w s ByYe a r_ e n)/ 0 2 A-1 6 C 2 5 5 B 9 5 E 9 0 0 C 1 2 5 7 5 B -

40051FA5A? Open Document. Acesso em 10 de junho de 2016

RIO DE JANEIRO (Estado). Assembléia Legislativa. Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da ALERJ. Relatório anual de 2013. Rio de Janeiro: Gráfica da Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro, 2013. Disponível em: <http://ddh.org.br/wp-content/uploads/2014/01/rela-torio2013cddh.pdf>. Acesso em 02 de abril de 2014.

RIO DE JANEIRO (Estado). Assembléia Legislativa. Meca-nismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura do Rio de Ja-neiro. Relatório anual de 2012. Rio de Janeiro: Gráfica da Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Ja-neiro, 2012. Disponível em: <http://cressrj.org.br/download/arquivos/relatrio-anual-mepct-rj-2012-.pdf>. Acesso em 02 outubro de 2013.

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MEDIAÇÃO

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MEDIAÇÃO

Flávia Fróis Gallo1 Glória Mosquéra2

1 Psicóloga Clínica; Especialista em Psicologia Jurídica UERJ; Pós Graduada em Práticas Colaborativas; Mediadora Sênior/Supervisora do TJRJ; Coordenadora do Núcleo de Mediação da SEAP, Coordenadora da Docência da Comissão de Mediação da OAB-RJ, Psicóloga na SEAP. [email protected] 2 Psicóloga, Terapeuta de Família, Mediadora, Idealizadora, ex-coordenadora, Docente da Pós graduação em Mediação na Faculdade Cândido Mendes, Instrutora de Mediação do TJRJ - CNJ, Supervisora de Mediadores do TJRJ, Mediadora Sênior do TJRJ,Coordenadora da Mediação do TED- Comissão de Mediação da OAB. Docente e Supervisora do Mediare. RJ. [email protected]

É um processo que tem como foco a construção do diálogo produtivo entre pessoas em con-flito, buscando trabalhar com os interesses de ambas as par-tes, transformando um processo adversarial em um processo coo-perativo. O mediador (especialista neutro, capacitado) atua de forma imparcial, facilitando a comunica-ção entre os envolvidos.

Durante as sessões, fica claro que todos serão ouvidos e que a ver-dade de uma das partes não significa que a narrativa ou o posiciona-mento da outra parte sejam falsos. O mediador trabalha com o crité-rio da imparcialidade. O método é voluntário e ambas as partes preci-sam formalizar seu compromisso em participar do processo.

O Mediador trabalha com ses-sões conjuntas e individuais. A importância da entrevista indivi-dual é evitar o que alguns autores chamam de “colonização das nar-rativas” (Foucault, 2007), já que in-dividualmente as pessoas poderão expressar melhor seus sentimen-tos, seus desejos e angustias, sem se preocuparem com o que o outro pensa ou poderá dizer.

A responsabilidade pelo resultado do processo é dos pró-prios participantes. A Mediação é como água, se usada no momento certo impede que o incêndio se torne devastador.

É necessário que o Mediador tenha desenvolvida a escuta ativa, que é uma ferramenta da comuni-cação (Almeida, 2014), cuja utiliza-ção é possível em vários contextos,

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sendo fundamental para a Media-ção. Pressupõe disponibilidade, in-teresse pela pessoa e pelo diálogo. Propicia o acolhimento, validando a participação dos envolvidos em seus aportes e informação. Oferece perguntas com o objetivo de gerar comunicação, possibilitando pro-gressos e movimentos produtivos, que muito auxiliam nos processos de construção de diálogo.

O acordo na Mediação é visto como uma possibilidade e não como um fim. Ela visa trabalhar os interesses e necessidades das partes, especialmente, a restaura-ção do diálogo. O que se observa é que a transformação na relação entre os mediados viabiliza o res-tabelecimento dos laços afetivos. O acordo é consequência desses laços retomados. Trata-se de um método aplicável a quase todas as espécies de conflito, especial-mente àqueles em que há, entre os envolvidos, uma ligação inter-pessoal duradoura no tempo, como por exemplo, os que dizem respeito às questões de família e vizinhança (Brandão, 2012).

A Mediação é usada tanto para prevenção quanto para reso-lução de conflitos, constituindo-se um meio célere, desburocratizado e consensual de retomada do diálogo, de forma autônoma e madura, pelos próprios envolvi-dos na contenda, os quais, uma vez empoderados em suas capa-

cidades e habilidades, conseguem avançar no processo dialético de ajuste, que sela a pacificação da relação (Gomma, 2010).

Na área familiar, a Mediação é de suma importância. Uma ação judicial de alimentos, por exemplo, pode se desdobrar em muitos outros processos, como regulamentação de convivência, alteração de guarda e outros, se os envolvidos não tiverem oportuni-dade de construir a via do diálogo. A Mediação certamente poupará essas pessoas de anos a fio de uma relação beligerante que prejudica a todos, especialmente aos filhos.

A Mediação se mostrou tão eficaz e indispensável que o próprio poder Judiciário a encampou, tornando-a Lei atra-vés do Novo Código de Processo Civil, o qual trata justamente das alternativas pacíficas de reso-lução de conflitos, valorizando a autocomposição através da Mediação (Lei 13.140 de 2015).

Hoje, a Mediação é muito res-peitada, deixando claro que me-diar é preciso, que a pacificação das relações está mais em nossas mãos do que na de um terceiro, estranho, por meio de uma deci-são judicial. Uma sentença é deter-minação, ordem. Por mais que ela seja tecnicamente correta, é a deci-são de uma pessoa, o Juiz, que irá interferir na vida de todos. Desta forma, muito provavelmente al-

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MEDIAÇÃO

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guém sairá satisfeito com o resul-tado, sendo que necessariamente alguém estará profundamente in-satisfeito. Chamamos esse pro-cesso de ganha-perde. E o que normalmente ocorre é que a pes-soa que “perdeu” a ação sente-se injustiçada e com variados senti-mentos que podem provocar rea-ções levando a um novo conflito, desta vez, já escalado.

A Mediação de Conflitos tem como proposta básica que as par-tes sejam as autoras da solução que atenda a todos, e assim acabam por promover um ganha-ganha, em que todos se sentem atendidos em suas necessidades da melhor forma possível. A Mediação oferece a oportunidade das partes de serem elas mesmas as autoras da solu-

ção de seus conflitos, promovendo maior humanidade nas contendas.

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Tania. Caixa de Ferramentas em Mediação - Aportes práticos e teóricos. Rio de Janeiro:Dash Editora, 2014.

BRANDÃO, Berenice N. de Andrade., Revista do MPMG. Edição Especial de 2012. MPMG - Ministério Público de MG. Jurídico . CEAF .

FOUCAULT, Michel. Micro-física do Poder. (Trad. Roberto Machado). São Paulo: Graal, 2007.

GOMMA, André. (Org). MA-NUAL DE MEDIAÇÃO JUDI-CIAL. Ministério da Justiça, 2010.

MEDIDAS SOCIOEDUCATIVAS

Ana Utzeri1

1 Advogada. Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (CEDECA- RJ)

e especiais que, em razão de sua condição específica de pessoas em desenvolvimento, estão a necessi-tar de uma proteção especializada, diferenciada e integral. O Esta-tuto da Criança e do Adolescente (ECA) define por ato infracional “a conduta descrita como crime ou contravenção penal” prati-

A Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990, que deu origem ao Esta-tuto da Criança e do Adolescente, significou uma verdadeira revo-lução ao adotar a doutrina da proteção integral. Essa postura tem como alicerce a convicção de que a criança e o adolescente são merecedores de direitos próprios

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cada por adolescente. No entanto, temos que ter em mente que a medida aplicada ao adolescente autor de ato infracional não é idên-tica àquela sofrida pela pessoa imputável – maior de 18 (dezoito) anos de idade. O tratamento esta-tal deve ser diferenciado porque o adolescente, que ainda está for-mando sua personalidade, merece, obviamente, cuidados especiais. Assim foi que a nossa legislação, muito sabiamente, tratou da ques-tão do ato infracional, chamando a atenção para um atendimento diferenciado, sem descaracterizar o processo de responsabilização que emerge das práticas infra-cionais. Adolescentes respondem pelos atos infracionais praticados através das medidas socioeduca-tivas, respectivamente, dentro de um procedimento legal específico especial, garantindo-se o princí-pio do devido processo legal e da ampla defesa.

Nas palavras de João Batista Costa Saraiva:

O garantismo penal impregna a normativa relativa ao adoles-cente autor de ato infracional como forma de proteção deste face à ação do estado. A ação do estado, autorizando-se a sancio-nar o adolescente e infligir-lhe uma medida socioeducativa, fica condicionada à apuração, dentro do devido processo legal, que esse agir típico se faz antijurí-

dico e reprovável – daí culpável (SARAIVA, 2002, p. 32)

Sendo assim, realizado o ato infracional, inicia-se o procedi-mento de apuração deste por meio da Representação elaborada por membro do Ministério Público. Finalizado este procedimento, caberá ao Magistrado da Vara Es-pecializada da Infância e da Ju-ventude julgar e aplicar a medida socioeducativa adequada ao caso concreto. É necessário que restem suficientemente comprovadas a autoria e a materialidade do ato infracional. No art. 112 do Esta-tuto da Criança e do Adolescente, em seu caput, estão dispostas as medidas de caráter socioeducativo e também protetivo. As medidas socioeducativas destinam-se, ex-clusivamente, ao adolescente autor de ato infracional e devem ser apli-cadas observando-se a capacidade desse adolescente em cumpri-las, dadas as circunstâncias e a gravi-dade da infração cometida no con-texto da proteção integral.

As medidas socioeducativas estão pautadas, principalmente, em uma proposta pedagógica, que visa à reinserção social do adoles-cente, partindo da ressignificação de valores e da reflexão interna.

Temos que observar que o rol do art. 112 do ECA é taxativo e não exemplificativo, não sendo permitida a imposição de medidas

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MEDIDAS SOCIOEDUCATIVAS

M

diversas daquelas dispostas no artigo. As medidas socioeducati-vas previstas no artigo são:

i. advertência;ii. obrigação de reparar o dano;iii. prestação de serviços à

comunidade;iv. liberdade assistida;v. inserção em regime de

semiliberdade;vi. internação em estabeleci-

mento educacional;vii. qualquer uma das previs-

tas no art. 101 I a VI

É importante informar que as medidas protetivas previstas no art. 101, de I a VI do ECA, também podem ser aplicadas cumulati-vamente ou não ao adolescente que cometeu ato infracional. Excepcionalmente, a sua aplica-ção e o seu cumprimento poderão ser estendidos até os 21 anos, caso o cometimento do ato infracional seja próximo à data em que o ado-lescente complete a maioridade. Também é fundamental escla-recer que criança que se envolve na prática de alguma infração receberá as medidas protetivas previstas no artigo 101 do ECA e jamais medida socioeducativa.

Como iremos verificar, essas medidas podem ser cumpridas em meio aberto (advertência, obrigação de reparar o dano,

prestação de serviços à comu-nidade e liberdade assistida) ou em meio privativo de liberdade (semiliberdade e internação).

Medidas em meio aberto

Nessa perspectiva, as medi-das socioeducativas em meio aberto constituem-se em uma ino-vação estabelecida pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, tendo em vista que elas se tornam as mais adequadas para o cumpri-mento, tanto no que diz respeito à construção do projeto de vida do adolescente – que não per-derá os vínculos locais – quanto no incentivo à responsabilização e participação da comunidade no processo socioeducativo. As medidas em meio aberto mais especificamente são:

A ADVERTÊNCIA, que con-siste na repreensão verbal; uma forma de alerta dada pelo juiz (artigo 115 do ECA).

A OBRIGAÇÃO DE REPARAR O DANO - quando o ato infracio-nal envolver danos materiais, o juiz pode determinar que o ado-lescente devolva a coisa, indenize ou compense o prejuízo da vítima (artigo 116 do ECA).

A PRESTAÇÃO DE SER-VIÇO À COMUNIDADE (PSC) - a Vara da Infância e da Juventude mantém convênio com diversas

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instituições que se dispõem a receber adolescentes autores de ato infracional. Cada instituição possui um tutor, que se torna responsável por acompanhar as atividades desenvolvidas pelo adolescente no que tange as tare-fas que serão executadas durante o cumprimento da medida e por realizar a avaliação ao seu final através de um relatório (artigo 117 do ECA). As tarefas devem ser atribuídas de acordo com a aptidão dos adolescentes, compre-endendo, no máximo, seis horas semanais, não podendo prejudicar a frequência escolar e/ou a jornada de trabalho. O acompanhamento dessa medida é feito nos Centros de Referência Especializados de Assistência Social (CREAS). Cabe à equipe técnica interdisciplinar do CREAS o acompanhamento do adolescente, contribuindo no trabalho de responsabilização quanto ao ato infracional prati-cado, cujos direitos e obrigações devem ser assegurados de acordo com as legislações e normativas especificas. A reavaliação dessa medida é realizada com base nos relatórios técnicos encaminha-dos ao Juizado. Prazo máximo de cumprimento de PSC: 6 meses.

A LIBERDADE ASSISTIDA (LA) é aplicada sempre que for a medida mais adequada para acompanhar, auxiliar e orien-tar o adolescente (artigo 118 do

ECA). É uma medida socioedu-cativa em meio aberto que visa o acompanhamento do adoles-cente sem afastá-lo do convívio familiar e comunitário, sob a su-pervisão de uma equipe técnica interdisciplinar. O acompanha-mento dessa medida é feito igual-mente nos Centros de Referência Especializados de Assistência So-cial – CREAS. Cabe ao CREAS o acompanhamento do adoles-cente, contribuindo com o traba-lho de responsabilização quanto ao ato infracional praticado, cujos direitos e obrigações devem ser assegurados de acordo com as le-gislações e normativas especificas. Durante o período em que estiver em cumprimento da liberdade as-sistida, o adolescente deverá ser inserido em programas de escola-rização e profissionalização, além de receber atendimentos sistemá-ticos individuais e/ou com sua fa-mília. A reavaliação da medida é realizada com base nos relatórios técnicos encaminhados semes-tralmente ao Juizado. O cumpri-mento da medida de LA deve ser de 6 meses, no mínimo. A medida socioeducativa é prevista nos ar-tigos 112, 118 e 119 do Estatuto da Criança e do Adolescente.

Cabe observar que a pro-posta da política nacional é de que o atendimento às medidas em meio aberto ocorram no âmbito municipal, sendo da competência

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MEDIDAS SOCIOEDUCATIVAS

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deste ente federado a criação e a manutenção de programas de aten-dimento para a execução dessas medidas. É importante ressaltar que, estas diretrizes da política de atendimento estão previstas no art.88 do ECA. Neste ínterim, as medidas de Liberdade Assistida e de Prestação de Serviço à Comuni-dade no Estado do Rio de Janeiro são executados pela Prefeitura, mais especificamente pelo CREAS.

Medidas em meio restritivo de liberdade

Rompendo com essa lógica do encarceramento, o Estatuto da Criança e do Adolescente consi-dera as medidas em meio restritivo de liberdade como medidas que somente devem ser aplicadas em caráter de excepcionalidade e bre-vidade. O caráter breve e excepcio-nal das medidas de semiliberdade e internação surge do reconheci-mento dos provados efeitos ne-gativos da privação de liberdade, principalmente no caso da pessoa humana em condição peculiar de desenvolvimento. Os mais impor-tantes instrumentos internacio-nais que se referem explicitamente ao tema da privação da liberdade dos jovens (Convenção Internacio-nal, Regras de Beijing e Regras Mí-nimas das Nações Unidas para os Jovens Privados de Liberdade) são

absolutamente claros em caracte-rizar a medida de privação de li-berdade como sendo de: a) última instância; b) caráter excepcional; e c) mínima duração possível. As-sim, igualmente na normativa bra-sileira, temos esses princípios da brevidade, da excepcionalidade e do respeito à condição peculiar da pessoa em desenvolvimento a se-rem considerados na decisão e na implementação da medida socio-educativa. Atualmente, no Estado do Rio de Janeiro, as medidas res-tritivas de liberdade são executa-das pelo Departamento Geral de Ações Socioeducativas (DEGASE), que é um órgão vinculado à Secre-taria de Estado de Educação.

A SEMILIBERDADE é uma medida socioeducativa que pode ser aplicada desde o início ou como forma de transição para o meio aberto. É cumprido em regime de privação parcial de liberdade nos Centros de Recursos Integrados de Atendimento ao Adolescente - CRIAADs. Nesse regime, o adolescente tem a possibilidade de realizar atividades externas, independentemente de autoriza-ção judicial, sendo obrigatória a escolarização e a profissionaliza-ção (art. 120 do ECA), sempre com o compromisso do retorno, tendo em vista que, aos finais de semana, é permitida a sua permanência junto ao convívio de seus familia-res em sua residência. A medida

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de semiliberdade não poderá ser imposta por prazo determinado e deve a sua manutenção ser rea-valiada pela autoridade judicial, no máximo, a cada seis meses, através dos relatórios técnicos elaborados pela equipe técnica interdisciplinar da unidade.

A INTERNAÇÃO é a medida socioeducativa mais gravosa e, por isso, deve se ater aos critérios defi-nidos no art.122 do ECA, o qual dispõe que somente poderá ser aplicada quando:

a. tratar-se de ato infracional cometido mediante grave ameaça ou violência à pessoa;

b. por reiteração no cometi-mento de outras infrações graves; e

c. por descumprimento rei-terado e injustificável da medida anteriormente imposta, sendo, neste caso, de, no máximo, 3 meses.

Como já foi dito, essa medida está sujeita aos princípios da brevidade, da excepcionalidade e do respeito à condição peculiar do adolescente como pessoa em desenvolvimento.

No entanto, podemos escla-recer que, na prática, existem três momentos processuais nos quais a internação pode ser decretada: um anterior à prolação da sen-tença, outro que lhe é simultâneo e um terceiro que lhe é posterior. Essas distintas formas de inter-

nação são mais conhecidas como internação provisória, definitiva e internação-sanção.

No que se refere à internação provisória, esta se encontra disci-plinada nos artigos 108, 174, 183 e 184 do ECA e deverá ser cum-prida dentro do prazo máximo de 45 dias, respeitando as hipóteses definidas em lei para a sua decre-tação: a) quando existirem indícios suficientes de autoria e materiali-dade, devendo restar demostrada a imprescindibilidade da medida, ou b) quando a garantia da segu-rança pessoal do adolescente ou a manutenção da ordem pública assim o exigirem, em função da gravidade do ato infracional e de sua repercussão social.

Já nos artigos 121 a 125 estão as normas relativas à medida de internação definitiva e àquela pro-veniente da regressão por sanção. A definitiva não comporta prazo determinado – no entanto, não pode ultrapassar o período de três anos e necessariamente precisa ser reavaliada, no máximo, a cada seis meses –, tendo como requi-sitos tratar-se de ato infracional cometido mediante grave ameaça ou violência à pessoa ou por rei-teração no cometimento de outras infrações graves. No tocante à internação-sanção, esta poderá ser aplicada caso o adolescente des-cumpra por diversas vezes e sem motivo justificado uma medida

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MEDIDAS SOCIOEDUCATIVAS

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socioeducativa anteriormente imposta, podendo, no entanto, ser imposta por um prazo máximo de 3 meses (artigo 122, § 1° do ECA). Para a sua aplicação, é preciso que seja ouvida a justificativa do ado-lescente no que se refere ao motivo do descumprimento da medida. Além disso, a internação-san-ção não pode ser convertida em medida socioeducativa de interna-ção por prazo indeterminado.

É importante frisar que as medidas socioeducativas são rea-valiadas para fim de progressão ou extinção de medida socioeducativa através dos relatórios técnicos en-caminhados ao Juizado da Infância e da Juventude. Estes relatórios, além de possuírem uma perio-dicidade máxima semestral para serem elaborados, devem, igual-mente, estabelecer um Plano Individual de Atendimento (PIA) para cada adolescente em cumpri-mento de medida socioeducativa.

Por fim, podemos concluir que, tendo por base a Doutrina da Pro-teção Integral, verifica-se que, para atingir a finalidade da medida so-cioeducativa, é de extrema im-portância que se estabeleça uma proposta de fato socioeducativa, contando com orientação pedagó-gica, psicológica, profissionalizante e acompanhamento individuali-zado aos adolescentes. Sendo assim, podemos afirmar que se busca atra-vés das medidas socioeducativas o

trabalho integral e o desenvolvi-mento humano desses adolescen-tes, buscando orientá-los quanto aos seus direitos e deveres perante a sociedade para que possam ser reintegrados a esse conjunto de ma-neira que se sintam pertencentes a ela, sendo uma alternativa passar a integrar essa parcela da sociedade ao meio comunitário em perma-nente construção.

Nesse sentido, podemos con-cluir que a opção pelas medidas socioeducativas em meio aberto são uma resposta ao modelo de encarce-ramento e corrobora por completo a doutrina de proteção integral prevista no ECA, uma vez que este Estatuto prevê a internação como medida excepcional e breve. Desta forma, a valorização pelas medi-das em meio aberto representa a consolidação de um modelo trans-formador que realmente possibilita construções de novos parâmetros e paradigmas a esses adolescentes.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente: Lei nº 8.069/90, de 13 de julho de 1990. Brasília: Senado Federal, 1993.

SARAIVA, João Batista Costa. Adolescente e ato infracional: garantias processuais e medi-das socioeducativas. 2ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002.

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MENOR

Paula Vargens1

1 Pedagoga Novo Degase. Mestre em Educação.

O conceito de menor refere-se tanto às crianças órfãs, em vulne-rabilidade, como infratoras. His-toricamente, o termo foi utilizado para designar a infância pobre, uma vez que, até a promulgação do Estatuto da Criança e do Ado-lescente (ECA, Lei 8069/90), não havia distinção legal, nem mesmo nas políticas de atendimento, en-tre as categorias, sendo todos cha-mados de “menores”. Diante do público ao qual estas políticas se direcionavam, consolidava-se uma forte distinção entre o “me-nor” e a “criança”. Esta separação só acabará na letra da lei do ECA, quando todos passam a ser trados como crianças e adolescentes e en-tendidos como sujeitos de direitos.

A preocupação com o atendi-mento à infância “pobre e desva-lida” não se inicia com o Código Mello Mattos (1927), contudo esta é a primeira legislação que siste-matiza a mesma, definindo as di-retrizes legais para o atendimento ao “menor, de um ou outro sexo, abandonado ou delinquente, que tiver menos de 18 anos de idade” (art. 1º). A criança e o adolescente

saem do lugar de “bem da família” e começam a ser vistos também como responsabilidade do Estado.

O referido Código, contudo, pautado na Doutrina da Situa-ção Irregular, direciona esse olhar apenas para a infância pobre e é marcado fortemente por um viés colonialista que associa a pobreza ao abandono e à delinquência, não considerando, ainda, crianças e adolescentes como sujeitos de di-reitos. Oficializa o atendimento aos chamados “menores” em três mo-dalidades: (i) abrigo - Instituto Sete de Setembro; (ii) escolas de pre-servação – Escola Quinze de No-vembro; e (iii) escolas de reforma – Escola João Luiz Alves. Cria ainda uma escola de preservação para menores do sexo feminino, sendo nesta destinado um pavi-lhão pra as que fossem processa-das e julgadas por infração penal.

A escola de reforma, “desti-nada a receber, para regenerar pelo trabalho, educação e instrucção, os menores do sexo masculino, de mais de 14 anos e menos de 18” (art. 204), tinha a capacidade de atender até “200 delinquentes”. Tais Escolas

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estão subordinadas ao Juizado de Menores, tendo o ingresso e o desligamento vinculados direta-mente à ordem judicial, de onde se depreende um forte peso do sancionatório no atendimento ofe-recido. O vínculo das escolas com o Ministério da Justiça e Negócios Interiores aponta como a questão dos menores (incluindo tanto os infratores quanto os não-infratores) é tratada a partir de um prisma cri-minalizante destas populações.

Na prática, apesar de legal-mente haver uma distinção no que tange aos objetivos das Escolas XV e João Luiz Alves, além do Instituto Sete de Setembro, “desti-nado a recolher em depósito, por ordem do Juiz de Menores, (...) os menores abandonados”, o critério de separação dos adolescentes, muitas vezes, era ambíguo. A indeterminação no atendimento acaba por simbolizar mais um elemento desta percepção da infância pobre, reforçando a cons-trução do imaginário do “menor”.

O decreto de 1934 determinava que as Escolas XV de Novembro, Sete de Setembro e João Luiz Alves fossem incorporadas ao Ministério da Educação e Saúde Pública. No entanto, não se efetivou. A manutenção das Escolas junto ao Ministério da Justiça parece estar muito mais atrelada à concepção que se tem destas crianças e ado-

lescentes, reforçando o caráter da segurança e da punição.

Em 1941, através do decre-to-lei 3.799 de 1941 é criado o Sistema de Assistência ao Menor (SAM), vinculado ao Ministério da Justiça, com “atribuição de pres-tar, em todo o território nacional, amparo social aos menores des-validos e infratores”. Se por um lado representa um avanço estatal no serviço social de atendimento infantil, por outro, dá seguimento à mesma lógica de atendimento de modo a permanecer a concepção de infância e o tratamento dispen-sado em especial à infância pobre. Foram incorporados ao novo Sistema de assistência a Escola XV de Novembro, a Escola João Luiz Alves, o Patronato Agrícola Artur Bernardes, e o Patronato Agrícola Vesceslau Brás, os quais passaram ser subordinados técnica e admi-nistrativamente ao SAM. Assim, juntamente com a expansão da escola, temos a expansão da rede de atendimento aos “menores”.

O SAM reforça a finalidade educativa e profissionalizante das instituições destinadas ao aten-dimento dos menores, chegando inclusive a determinar como uma das atribuições do Juizado de Menores a fiscalização da parte disciplinar e educativa. Reconhece ainda a necessidade dos estabeleci-mentos destinados ao atendimento destes meninos e meninas serem

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adequados, bem como a impor-tância dos estudos e pesquisas na área. Tais premissas inauguram, ao menos em termos legais, o reco-nhecimento da necessidade de estabelecimentos adequados para que se desenvolva um projeto de educação, instrução e tratamento que, mesmo que na lógica do olhar punitivo e “re-socializador” sur-tam o efeito esperado. Ficou, no entanto, marcado por suas carac-terísticas de contenção e repressão infanto-juvenil. Atuando com um olhar higienista, o processo de internação de menores ganhou um forte peso se consolidando como principal opção no atendimento à criança e ao adolescente das clas-ses subalternizadas. A condição dos estabelecimentos era precária, não se cumprindo as determina-ções legais. Do mesmo modo, não havia um processo de escolariza-ção adequado às demandas e que garantisse uma inserção diferen-ciada destes meninos e meninas na sociedade após o período de inter-nação por meio da escolaridade ou mesmo da profissionalização.

Em 1º de dezembro de 1964, é criada a Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor (FUNABEM) por meio da lei 4.513, e a ela são incorporados o patrimônio e as atribuições do Serviço de Assistência aos Menores. A nova lei de atendimento à infância, em resposta ao fracasso do SAM, com

seu forte processo de encarcera-mento, estabelece como diretriz um processo de valorização da comunidade e do trabalho junto às famílias dos “menores”, bem como a opção prioritária para colocação em família substituta em detrimento da internação.

Somente em 1974 tal lei é vinculada ao Ministério da Previdência e Assistência Social com a atribuição de promover em todo o território nacional a Política Nacional do Bem-Estar do Menor; e em 1977 passa a in-tegrar o Sistema Nacional de Previdência e Assistência Social. Além da ação de fiscalização e promoção de políticas voltadas aos menores, a FUNABEM exer-ceu, nos estados do Rio de Janeiro e de Minas Gerais, ação direta de atendimento, através do que com-preendia como “programas só-cio-terapêuticos”, nos quais eram atendidos “menores de diversas qualificações e de diferentes ori-gens – carentes, órfãos ou aban-donados, infratores e de conduta anti-social” (FUNABEM, 1984, p. 11). Tal atendimento se dava em regime de internato, exter-nato e semi-internato a menores de ambos os sexos de 6 a 18 anos. Segundo o mesmo documento da FUNABEM, esta atendeu, com seus recursos próprios, em 1983, 606 mil menores. Desses, 63,54% são menores carentes, 18% órfãos

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ou abandonados e 18,46% de con-duta antissocial” (idem).

Os dados expostos indicam que, apesar da diretriz legal existir no sentido de valorizar a família e o convívio familiar (muito em decorrência das influências da Declaração de Direitos da Infância, assinada pelo Brasil), a prática da internação ainda seguia forte-mente, inclusive por orientação da Doutrina da Segurança Nacional, defendida pela Escola Superior de Guerra. O documento refere-se a todos os menores como “em pro-cesso de marginalização social” e a atuação da FUNABEM, inclu-sive com as internações, como uma atividade preventiva e fundamen-tada como uma ação terapêutica sobre a sociedade.

Em 1973, em documento interno da FUNABEM, Correa (1995, p. 24) identifica que há uma orientação para o trabalho ser direcionado à “integração social do menor”, que passará a ser o cri-tério de avaliação da eficiência de uma instituição para esse público, e sendo criado um Plano Integral de Atendimento, construído com base em quatro eixos relativos ao desenvolvimento do próprio ado-lescente; de seu meio social; do meio social a que se destina; e do quadro de vida na instituição que está sendo atendido.

A doutrina da situação irre-gular consagrada pelo Código de

Menores de 1979 é muito explícita neste sentido. O documento veio afirmar tal Doutrina como marco do atendimento aos “menores”, com um forte olhar criminalizante da pobreza. A situação irregular (expressa em seu art. 1º) vinha espe-cificada no art. 2º da referida Lei. A gama de aspectos que incluíam o jovem na “situação irregular” era de tal ordem que, na prática, qual-quer criança ou adolescente pobre poderia ser enquadrado nos termos da legislação como “menor em situ-ação irregular” e sofrer as sanções legais. Vale, neste sentido, observar o inciso III, o qual trata da questão do “perigo moral”. A conceituação de “perigo moral” e “bons costu-mes” é de tal ordem subjetiva que, dentro de uma sociedade marcada por uma profunda desigualdade social e formada por grupos de diversas origens, com modos de estar no mundo distintos, aos olhos do judiciário, a tendência era de que todas as crianças e adolescentes das classes subalternizadas encon-travam-se em situação irregular. Considerando-se ainda o fato de, à época, estarmos vivendo no país uma ditadura militar, esta lei vem quase que explicitamente viabilizar a internação de qualquer pessoa até 18 anos (e 21 em casos excepcio-nais), e corrobora com a doutrina militar de segurança nacional.

Observamos assim que a ideia do “menor” está diretamente asso-

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ciada à ideia de raça e classe social: são menores os meninos e meninas pobres, eminentemente não-bran-cos, de baixa escolaridade. Ainda hoje, permanece no imaginário social a associação do termo com a prática de ato infracional por meni-nos negros e pobres. A nomeação de adolescentes, quando negros e pobres, autores de ato infracional, como menores não é rara, inclusive em documentos oficiais.

Quando lançamos nosso olhar para as grandes mídias, a distinção entre menor, adolescente e criança fica ainda mais explícita. Para casos de apreensão de drogas com adoles-

centes temos chamadas como “Seis menores e um homem são detidos com drogas”2; “Polícia prende três e apreende dois menores por trá-fico de drogas no AC”3, ou no caso de roubo “Menor é apreendido com arma e assume intenção de cometer roubo”4; “Menor suspeito de matar ciclista na Lagoa Rodrigo de Freitas é detido”5. Em oposição, as apreen-sões relacionadas a adolescentes das classes médias o tratamento midiá-tico é diferenciado: “PF apreende 49 quilos de maconha em carro de universitário”6; ou “Jovem é preso com 7kg de drogas em mala no ae-roporto de Manaus”7.

2 O GLOBO, Seis Menores e um homem são detidos com drogas em Caratinga. Edição Online, publicada em 15/06/2016. Disponível em: http://g1.globo.com/mg/vales-mg/noticia/2016/06/seis-menores-e-um-homem-sao-detidos-com-drogas--em-caratinga.html, acesso em 09 julho de 2016. 3 O GLOBO, Polícia prende três e apreende dois menores por tráfico de drogas no AC. Edição Online, publicada em 02/02/2019. Disponível em: http://g1.globo.com/ac/acre/noticia/2016/03/policia-prende-tres-e-apreende-dois-menores-por-trafico--de-drogas-no-ac.html, acesso em 09 julho de 2016.4 O GLOBO, Menor é apreendido com arma e assume intenção de cometer roubo. Edição Online, publicada em 17/05/2016. Disponível em: http://g1.globo.com/sp/piracica-ba-regiao/noticia/2016/05/menor-e-detido-com-arma-e-assume-intencao-de-rou-bar-em-piracicaba-sp.html, acesso em 09 julho de 2016.5 O GLOBO, Menor suspeito de matar ciclista na Lagoa Rodrigo de Freitas é detido. Edição Online, publicada em 21/05/2015. Disponível em: http://g1.globo.com/jor-nal-hoje/noticia/2015/05/menor-suspeito-de-matar-ciclista-na-lagoa-rodrigo-de--freitas-e-detido.html, acesso em 09 julho de 2016.6 O GLOBO, PF apreende 49 quilos de maconha em carro de universitário. Edição Online, publicada em 04/05/2016. Disponível em: http://g1.globo.com/pernam-buco/noticia/2016/05/pf-apreende-49-quilos-de-maconha-em-carro-de-universi-tario.html, acesso em 09 julho de 2016.7 O GLOBO, Jovem é preso com 7kg de drogas em aeroporto de Manaus. Edição Online, publicada em 05/05/2016. Disponível em: http://g1.globo.com/am/amazonas/no-ticia/2016/05/jovem-e-preso-com-7kg-de-drogas-em-mala-no-aeroporto-de-ma-naus.html, acesso em 09 julho de 2016.

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Todas as notícias aqui rela-cionadas foram retiradas de um mesmo site de informações e são do ano de 2016, o que corro-bora a ideia da estigmatização do jovem negro de grupos subalter-nizados como infratores, ou ao menos potencialmente perigosos. O modo, contudo, como são tra-tados os adolescentes das classes médias pode indicar uma certa “surpresa” com a prática do ato e retira deles uma categorização a priori: eles não são menores.

Interessante considerar ainda que a quantidade de drogas parece não ter relevância quando opera--se nesta lógica. Assim, notícias como “Polícia prende jovem de classe média com 300 kg de maco-nha no Rio”8, se opõem a “Menor é flagrado com maconha e crack e acaba apreendido por tráfico”9 e, ao ler a notícia, identifica-se que este

adolescente foi apreendido com “uma sacola com quatro pedras de crack e sete grandes papelotes de maconha”. Ao lançarmos o olhar sobre a violência sofrida, também observamos que a objetificação do adolescente subalternizado e a consequente associação à ilici-tude, também contribuem para legitimar a ação sofrida. Deste modo, “Menor morto pela PM foi apreendido por furto no sábado na Zona Sul de SP”10, “PM mata menor suspeito de furtar carro em suposto confronto em SP”11.

Temos que considerar, por fim, que apesar das mudanças serem muitas vezes lentas e conquis-tas legais não representarem uma mudança radical na prática, é ne-cessário reconhecer a importância dos movimentos e suas transfor-mações. Se ainda temos notícias como as aqui relatadas, temos

8 O GLOBO, Polícia prende jovens de classe média com 300kg de maconha no Rio. Edição Online, publicada em 27/06/2015. Disponível em: http://g1.globo.com/rio--de-janeiro/noticia/2015/03/policia-prende-jovens-de-classe-media-com-300-kg--de-maconha-no-rio.html acesso em 09 julho de 2016. 9 O GLOBO, Menor é flagrado com maconha e crack e acaba apreendido por tráfico. Edição Online, publicada em 28/05/2016. Disponível em: http://g1.globo.com/sp/presidente-prudente-regiao/noticia/2016/05/menor-e-flagrado-com-maconha-e--crack-e-acaba-apreendido-por-trafico.html acesso em 09 julho de 2016 10 O GLOBO, Menor morto pela PM foi apreendido por furto sábado na zona Sul. Edição Online, publicada em 03/06/2016. Disponível em: http://g1.globo.com/sao--paulo/noticia/2016/06/menor-morto-pela-pm-foi-apreendido-por-furto-ha-uma--semana-na-zona-sul.html acesso em 09 julho de 201611 O GLOBO, PM mata menor suspeito de furtar carro em suposto confronto em SP. Edição Online, publicada em 03/06/2016. Disponível em: http://g1.globo.com/sao--paulo/noticia/2016/06/pm-mata-menor-suspeito-de-roubar-carro-em-suposto--confronto-em-sp.html acesso 09 julho de 2016

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que valorizar um reconhecimento cada vez maior dos direitos de crianças e adolescentes.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Lei 4.513 de 1964. Criação da FUNABEM. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/cci-vil_03/leis/1950-1969/L4513impressao.htm acesso em 05 julho de 2013.

_______. Decreto nº 17.943 – A de 12 de outubro de 1927 (Código Mello Mattos). Disponível em: http://www.planalto.gov.br/cci-vil_03/decreto/1910-1929/d17943a.htm acesso em 05 julho de 2016.

_______. Decreto-lei 3.799 de 1941, disponível em: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/dec lei /1940 -1949/decreto -lei--3799-5-novembro-1941-413971-pu-blicacaooriginal-1-pe.html acesso em 05 julho de 2013.

_______. Lei nº 6697, de 10 de outubro de 1979. Código de Menores. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/1970-1979/L6697.htm acesso 27 julho de 2013.

CORREA, Ivone. Resgate his-tórico dos tipos de atendimento à criança e ao adolescente em privação de liberdade, em Be-lém do Pará: 1964 – 1990. Belém: UNAMA, 1995.

FUNABEM. A FUNABEM de hoje. Rio de Janeiro: Funabem, 1984.

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NORMATIVA INTERNACIONAL DE PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES

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NNORMATIVA INTERNACIONAL DE PROTEÇÃO DOS

DIREITOS HUMANOS DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES

Pedro Pereira1

1 Advogado, membro da coordenação colegiada do CEDECA RIO DE JANEIRO. Doutorando em Serviço Social pela Escola de Serviço Social da UFRJ.

É inegável a influência da normativa internacional (declara-ções, regras internacionais, con-venções, tratados e protocolos) no ordenamento interno brasileiro relacionado aos direitos de crian-ças e adolescentes.

Importante distinguir Declara-ções ou Regras Internacionais, de Convenções, Pactos, Tratados e Pro-tocolos. As Declarações ou Regras Internacionais não geram vincula-ção jurídica de caráter obrigatório, seu cumprimento está relacionado ao compromisso ético na defesa e promoção de direitos humanos e seu descumprimento gera um constrangimento diante da comu-nidade internacional. No entanto, regras e declarações cumprem um papel muito importante na influ-ência do aprimoramento da Cons-tituição e leis nacionais.

Os Tratados, Convenções, Pac-tos ou Protocolos são denomina-ções utilizadas para se referir aos acordos internacionais solenes que geram obrigações aos Estados Partes, como, por exemplo, a ade-quação da normativa interna aos preceitos dos tratados, e apresen-tação de relatório periódico sobre o cumprimento do Tratado, sob o monitoramento da comunidade in-ternacional através de comitês.

De acordo com a Constituição Federal de 1988 (art. 5º, §3º), os tra-tados e convenções internacionais de direitos humanos que forem aprovados pelo Congresso Nacio-nal serão equivalentes às emen-das constitucionais. Nesse sentido, os tratados e convenções, após sua ratificação e aprovação pelo Con-gresso Nacional, são incorporados como norma interna com status de norma constitucional, ampliando o rol dos direitos fundamentais.

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O Brasil como país membro da Organização das Nações Uni-das (ONU) e da Organização dos Estados Americanos (OEA), ao ratificar diversos tratados e con-venções internacionais, assume um compromisso com a comuni-dade nacional e internacional em respeitar e dar efetividade aos di-reitos de crianças e adolescentes, tomando todas as medidas admi-nistrativas, judiciais, legislativas e de políticas públicas para ga-rantir e promover tais direitos.

Com relação ao adolescente a quem se atribui a prática de ato in-fracional, a normativa internacio-nal do Sistema Universal (ONU) e Sistema Regional (OEA) aprovou regras, diretrizes e tratados que dispõem sobre direitos, proteção e prevenção, bem como sobre políti-cas públicas relacionadas à admi-nistração da justiça.

A Organização das Nações Unidas aprovou em 1990 as Regras

Mínimas das Nações Unidas para os Jovens Privados de Liberdade2, considerando, especialmente, as condições e circunstâncias pelas quais os jovens estão privados de sua liberdade em todo o mundo, convencidas de que esses, quando se encontram privados de liber-dade, são extremamente vulnerá-veis aos maus-tratos, à vitimização e à violação de seus direitos.

Nesse sentido, as Nações Unidas são categóricas ao afirma-rem que a reclusão juvenil só será aplicada em último caso e pelo menor período possível. Essas regras têm como objetivo norma-tizar minimamente a proteção dos jovens privados de liberdade, de maneira compatível com os direitos humanos e liberdades fundamentais e deverão ser apli-cadas sem discriminação3.

Pouco antes disso, a Conven-ção Internacional sobre os Direitos da Criança4 já apontava as diretrizes so-

2 Adotadas pela Assembleia Geral das Nações Unidas em sua Resolução 45/113, de 14 de dezembro de 1990. O Governo Brasileiro apresentou em 2003 seu primeiro relatório sobre a Convenção sobre os Direitos da Criança (ONU/1990), com 12 anos de atraso.3 Item 12. A privação de liberdade deverá ser efetuada em condições e circunstâncias que garantam o respeito aos direitos humanos dos jovens. Deverá ser garantido, aos jovens reclusos em centros, o direito de desfrutar de atividades e programas úteis que sirvam pra fomentar e garantir seu são desenvolvimento e sua dignidade e conheci-mentos que ajudem a desenvolver suas possibilidades como membros da sociedade.4 Adotada pela Resolução n. L 44 da Assembleia Geral das Nações Unidas, em 20 de novembro de 1989. Aprovada pelo Decreto Legislativo n 28, de 24 de setembro de 1990. Ratificada pelo Brasil em 24 de setembro de 1990. Entrou em vigor no Brasil em 23 de outubro de 1990. Promulgada pelo Decreto n. 99.710, de 21 de novembro de 1990. A Convenção considera como criança todo ser humano com menos de 18 anos de idade (art. 1º).

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NORMATIVA INTERNACIONAL DE PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES

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bre a matéria, sob a luz do melhor interesse da criança, já que em seu artigo 375, também estabelece re-gras para a privação de liberdade de crianças, preconizando valores como dignidade, humanidade, respeito, preservação dos vínculos familia-res e separação de presos adultos. Mesmo as Regras Mínimas das Na-ções Unidas para a Administração da Justiça da Infância e da Juventude (Regras de Beijing), adotadas na As-sembléia Geral da ONU em sua resolução 40/336, de 1985, adotavam esses princípios norteadores.

De acordo com a Convenção sobre os Direitos da Criança (CDC), em relação a Justiça Juvenil e as garantias do devido processo, temos:

2. Nesse sentido, e de acordo com as disposições pertinentes dos instru-mentos internacionais, os Estados Partes assegurarão, em particular:a) que não se alegue que nenhuma criança tenha infringido as leis penais, nem se acuse ou declare culpada nenhuma criança de ter infringido essas leis, por atos ou omissões que não eram proibidos

pela legislação nacional ou pelo direito internacional no momento em que foram cometidos;

b) que toda criança de quem se alegue ter infringido as leis penais ou a quem se acuse de ter infringido essas leis goze, pelo menos, das seguintes garantias:

I) ser considerada inocente en-quanto não for comprovada sua culpabilidade conforme a lei;

II) ser informada sem demora e diretamente ou, quando for o caso, por intermédio de seus pais ou de seus representantes legais, das acusações que pesam contra ela, e dispor de assistência jurí-dica ou outro tipo de assistência apropriada para a preparação e apresentação de sua defesa;

III) ter a causa decidida sem de-mora por autoridade ou órgão ju-dicial competente, independente e imparcial, em audiência justa con-forme a lei, com assistência jurí-dica ou outra assistência e, a não ser que seja considerado contrário aos melhores interesses da criança, levando em consideração especial-mente sua idade ou situação e a de seus pais ou representantes legais;

5 37c) toda criança privada de liberdade seja tratada com humanidade e re-speito que merece a dignidade inerente à pessoa humana, e levando-se em consideração as necessidades de uma pessoa de sua idade. Em especial, toda criança privada de sua liberdade ficará separada dos adultos, a não ser que tal fato seja considerado contrário aos melhores interesses da criança, e terá direito a manter contato com sua família por meio de correspondência ou de visitas, salvo em circunstâncias excepcionais.6 Recomendadas no 7º Congresso das Nações Unidas sobre Prevenção de Delito e Tratamento do Delinquente, realizado em Milão no período de 26 de agosto a 06 de setembro de 1985 e adotada pela Assembleia Geral em 29 de novembro de 1985.

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IV) não ser obrigada a testemu-nhar ou a se declarar culpada, e poder interrogar ou fazer com que sejam interrogadas as testemu-nhas de acusação bem como poder obter a participação e o interroga-tório de testemunhas em sua de-fesa, em igualdade de condições;

V) se for decidido que infringiu as leis penais, ter essa decisão e qualquer medida imposta em decorrência da mesma submeti-das à revisão por autoridade ou órgão judicial superior compe-tente, independente e imparcial, de acordo com a lei;

VI) contar com a assistência gra-tuita de um intérprete caso a criança não compreenda ou fale o idioma utilizado;

VII) ter plenamente respeitada sua vida privada durante todas as fases do processo. (CDC, art. 40, inciso 2)

–Já por parte da idade mínima para responsabilização, postula que,

3. Os Estados Partes buscarão pro-mover o estabelecimento de leis, procedimentos, autoridades e insti-tuições específicas para as crianças de quem se alegue ter infringido as

leis penais ou que sejam acusadas ou declaradas culpadas de tê-las infringido, e em particular:

a) o estabelecimento de uma idade mínima antes da qual se presumirá que a criança não tem capacidade para infringir as leis penais;

b) a adoção sempre que conve-niente e desejável, de medidas para tratar dessas crianças sem recorrer a procedimentos judi-ciais, contando que sejam res-peitados plenamente os direitos humanos e as garantias legais. (CDC, art. 40, inciso 3)

O Brasil, através do Decreto nº 678 de 6 de novembro de 1992, ratificou a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), importante instrumento normativo do sistema interamericano de direitos humanos também dispõe sobre a proteção dos direitos da Criança e da família7:

Art. 19: Direitos da criança: Toda criança terá direito às medidas de proteção que a sua condição de menor requer, por parte da sua família, da sociedade e do Estado.

7 17b) as restrições à liberdade pessoal do jovem serão impostas somente após estudo cuidadoso e se reduzirão ao mínimo possível. 17c) não será imposta a privação de liberdade pessoal a não ser que o jovem tenha praticado ato grave, envolvendo violência contra outra pessoa ou por reincidência no cometimento de outras infrações sérias, e a menos que não haja outra medida apropriada. (...)

19.1) A internação de um jovem em uma instituição será sempre uma medida de último recurso e pelo mais breve período possível (Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica)

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NORMATIVA INTERNACIONAL DE PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES

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Conforme o art. 15 do “Proto-colo de San Salvador”,

Direito à constituição e proteção da família

c. Adotar medidas especiais de proteção dos adolescentes, a fim de assegurar o pleno amadu-recimento de suas capacidades físicas, intelectuais e morais;

d. Executar programas espe-ciais de formação familiar, a

fim de contribuir para a criação de ambiente estável e positivo no qual as crianças percebam e desenvolvam os valores de com-preensão, solidariedade, respeito e responsabilidade.

A seguir apresentamos um quadro com as principais Decla-rações, Regras e Diretrizes das Nações Unidas sobre os direitos de crianças e adolescentes:

DECLARAÇÕES, REGRAS E DIRETRIZES DA ONU

Declaração Universal dos

Direitos Humanos (1948)

Com relação a crianças e adolescentes, merecem destaque os artigos XXV e XXVI, proclamando que a maternidade e a infância têm direito a cuidados e assistência especiais, e ainda que todas as crianças nascidas dentro ou fora do matrimônio, gozarão da mesma proteção social.

Declaração sobre os Direitos da Criança

(1959)

Tem como base e fundamento os direitos a liberdade, estudos, brincar e convívio social das crianças que de-vem ser respeitadas e preconizadas em dez princípios.

Diretrizes das Nações Unidas

para a Prevenção da Delinquência (1990) “Diretrizes

de Riad”

Apresenta como princípios fundamentais:1) Prevenir a delinquência juvenil como parte essencial da prevenção do delito na sociedade;2) Propiciar investimentos objetivando o bem-estar das crianças e dos adolescentes.3) Aplicar medidas políticas e progressistas de preven-ção à delinquência.4) Desenvolver serviços e programas com base na co-munidade para a prevenção da delinquência juvenil.

Regras Mínimas das Nações Unidas

para Proteção de Jovens Privados de

Liberdade (1990)

Estabelece um conjunto de regras mínimas aceitáveis pelas Nações Unidas para a proteção dos jovens priva-dos de liberdade sob qualquer forma, compatíveis com os direitos humanos e liberdades, tendo em vista com-bater os efeitos nocivos de qualquer tipo de detenção e promover a integração na sociedade.

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REFERÊNCIAS

BRASIL. Decreto nº 678, de 6 de novembro de 1992. Ratificação da Convenção americana de direi-tos humanos (Pacto de San José da Costa Rica). Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D0678.htm. Acesso em 07 de junho de 2016.

BRASIL. Decreto nº 3.321, de 30 de dezembro de 1999. Promulga o Protocolo Adicional à Conven-ção Americana sobre Direitos Humanos em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais “Protocolo de São Salvador”, con-cluído em 17 de novembro de 1988, em São Salvador, El Salvador.

Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/

D3321.htm. Acesso em 07 de junho de 2016.

BRASIL. Decreto n.º 99.710, de 21de novembro de 1990. Convenção sobre os direitos da criança: reso-lução n. L 44 da Assembleia das Nações Unidas em 20 de novem-bro de 1989. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/D99710.htm. Acesso em 07 de junho de 2016.

ONU. Princípios das Nações Unidas para a prevenção da delinquência juvenil (Princípios orientadores de Riad). Documento das Nações Unidas n.º A/ CONF. 157/ 24.Parte I. 1990. Disponível em http://www.direitoshumanos.usp.br /index.php/Crian%C3%A7a/principios-das-nacoes-unidas--pa ra -a -pr eve nc ao - da- de l i n queencia-juvenil-principios-orien-

Regras Mínimas das Nações

Unidas para a Administração da

Justiça, da Infância e da Juventude.

(Regras de Beijing, 1990)

Tais regras prescrevem e orientam aos Estados signa-tários a lidar com os adolescentes a quem se atribui a prática de ato infracional, conferindo e resguardando os direitos que lhes assistem, assegurando as garantias básicas processuais, pautando pela proporcionalidade quanto às medidas adotadas.São destacadas algumas garantidas empregadas aos menores infratores: imparcialidade quanto à aplica-ção das regras mínimas aos jovens infratores; como a presunção de inocência, o direito de ser informado das acusações, o direito de não responder, o direito à assistência judiciária, o direito à presença dos pais ou tutores, o direito à confrontação com testemunhas e a interrogá-las e o direito de apelação ante uma autori-dade superior, direito a intimidade, não podendo ser publicada nenhuma informação que possa dar lugar a identificação do jovem infrator.

269

NORMATIVA INTERNACIONAL DE PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES

N

tadores-de-riad.html. Acesso em 07 de junho de 2016.

ONU. Regras mínimas das Nações Unidas para administra-ção da justiça juvenil (Regras de Beijim). 7.º Congresso das Nações Unidas sobre prevenção de delito e tratamento do delin-quente. Milão , 1985. Disponível em http://portal.mj.gov.br/sedh/ct/conanda/ diretriz.htm. Acesso em 07 de junho de 2016.

ONU. Regras das Nações Unidas para proteção de menores privados de liberdade. Assembleia Geral das Nações Unidas, 1990.. Disponível em http://www.mprs.mp.br/infancia/documentos_inter-nacionais/id104.htm. Acesso em 07 de junho de 2016.

PEREIRA, Pedro; GARCIA, Joana. Somos Todos Infratores. In: O Social em Questão. Ano XVIII - nº 31, p.137-162, PUC-Rio, 2014. Disponível em http://osocialem-questao .ser. puc-rio.br/ media/OSQ_31_7_Garcia_Pereira.pdf. Acesso em 07 de junho de 2016.

DICIONÁRIO DO SISTEMA SOCIOEDUCATIVO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

270

PPARTICIPAÇÃO SOCIAL

Heloísa Mesquita1

1 Assistente Social, Doutora em Política Social pela Universidade Federal Fluminense, Professora da PUC-Rio Departamento de Serviço Social.

Falar em participação envolve considerar as categorias descen-tralização e desconcentração. Stein (1997) nos traz inspirada em Ugac (1991), entre outros autores, que desconcentração envolve delega-ção de competência sem desloca-mento do poder decisório, trata-se de um processo de dispersão físi-co-territorial de instituições ini-cialmente concentradas. Continua a autora reconhecendo que, em-bora necessária, não é suficiente para que os níveis desejados da descentralização sejam atingidos, trazendo consequências para con-ceitos e processos de ação coletiva.

Pereira (1996) faz relação da descentralização com a amplia-ção da democracia e da participa-ção popular, reafirmando serem estas posições contrárias ao auto-ritarismo e à centralização. Stein (1997) afirma que essa relação só é possível de ser feita se contemplar

a intermediação de participação popular e do controle social que pressupõe a intermediação das di-vergências sociais como um ins-trumento de lógica democrática.

Stotz (2009) destaca que o con-ceito de participação, do ponto de vista sociológico, é relacional e tem mais de um sentido, inclusive contrastantes, pois remete tanto à coesão de uma sociedade quanto à sua transformação. A participação implica comportamentos e atitu-des passivos e ativos, estimulados ou não, e deve ser entendida como um princípio diretor do conheci-mento, variável segundo os tipos de sociedade em cada época histó-rica e marcada pela normalização institucional neles vigente.

É importante perceber que o não autoritarismo não implica ne-cessariamente em descentralização e que a relação entre descentraliza-ção e democracia precisa conside-

271

PARTICIPAÇÃO SOCIAL

P

rar o controle do governo por parte dos cidadãos, a participação popu-lar e o processo de educação para a cidadania, entre outros.

Para que a descentralização viabilize processos de participa-ção, é necessário que se garanta o acesso às informações da gestão de forma transparente, com en-tendimento acessível a toda po-pulação e assento nos espaços de decisão. Estes, por sua vez, preci-sam ser vistos para além dos espa-ços formais, isto é, tão importante quanto os espaços institucionais dos Conselhos previstos em lei, como a eleição de governantes e legisladores na democracia for-mal, são os espaços que se podem criar para facilitar a formação ci-dadã, mesmo dentro de unidades prestadoras de serviços, como os CRAS, os CREAS ou as unidades de atendimento ao cumprimento de medidas socioeducativas em meio fechado. Neste sentido, cha-ma-se a atenção para a juventude que precisa aprender a se reco-nhecer como protagonista na his-tória, afinal, participar significa tomar parte de uma ação coletiva.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, 1988.

PEREIRA, Potyara A. P. A Assistência Social na perspectiva dos direitos: crítica aos padrões dominantes de proteção aos pobres no Brasil. Brasília: Thesaurus. 1996.

STEIN, Rosa Helena. O Sis-tema descentralizado e partici-pativo: construindo a inclusão e universalizando direitos. Con-juntura, Assistência Social e Se-guridade Social: subsídios às Conferências de Assistência So-cial. Vol. I. In: Cadernos Abong nº 20. São Paulo: ABONG, 1997.

STOTZ, Eduardo Navarro. Participação social. In: Dicionário da educação profissional em saúde. PEREIRA, Isabel Brasil; LIMA, Júlio César França (coords.).. Rio de Janeiro: Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV), 2009. p. 293-298.

DICIONÁRIO DO SISTEMA SOCIOEDUCATIVO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

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PÁTIO

Luciana Cassia Costa da Silva Santos1

Miguel Eduardo de Azevedo Martins2

1 Agente Socioeducativo Feminino, DEGASE, 1998, Bacharel em Direito pela Universidade Cândido Mendes – Centro - RJ;2 Agente Socioeducativo Masculino, DEGASE, 1994, formado em Ciências Contábeis pela Universidade Federal Fluminense – Niterói - RJ .

Segundo o dicionário Michaelis, para a definição do verbete pátio temos:

Pátio (pá-ti-o) sm. Área térrea murada e descoberta, no inte-rior de uma habitação ou anexa a ela; Espaço descoberto que em muitas construções vai desde a entrada externa até a sua porta principal; átrio; vestíbulo; Espaço onde eram realizadas as aulas de humanidades nos colégios religiosos; Praça fronteiriça a uma igreja; adro; Local junto às estações de trem ou de metrô onde são feitas as manobras das locomotivas; Amplo espaço nos aeroportos onde são realizadas as manobras das aeronaves, seu abastecimento e manutenção e, também, a carga e descarga.

Nas Unidades do Departa-mento Geral de Ações Socioedu-cativas – NOVO DEGASE, onde os adolescentes cumprem as medi-das socioeducativas a eles aplica-

das, sejam elas de semiliberdade, internação provisória ou de inter-nação, o pátio é muito mais do que apenas um espaço físico. O pátio é o local que norteia a rotina diária dentro de uma Unidade.

O pátio é uma espécie de “coração” da Unidade, uma vez que é a partir dali que são toma-das as decisões no sentido de organizar as atividades que serão desenvolvidas com os adolescen-tes ao longo de cada dia.

Os funcionários que cuidam desse espaço físico são os agentes socioeducativos, mais conhecidos como “agentes de pátio”, já que são eles que zelam pelo cumprimento de horários e programações, reu-nindo os grupos de adolescentes para a entrada e saída das salas de oficinas, de atividades, de recrea-ções e até mesmo dos alojamentos.

O principal compromisso dos adolescentes é o ensino formal. Este ensino acontece nas escolas estaduais que funcionam dentro

273

PÁTIO

P

das Unidades de internação e tam-bém na rede pública em geral, no caso de internos das Unidades de semiliberdade, uma vez que os adolescentes que ali cumprem medida podem sair para estudar.

A educação é uma forma de inserir o jovem na sociedade e deve sempre prevalecer em relação ao caráter punitivo da privação de liberdade. Além das atividades pedagógicas e do ensino regular, são disponibilizados a esses inter-nos atividades profissionalizantes, bem como atividades de cultura, esporte e lazer, que são primor-diais para o bom desenvolvimento desses adolescentes.

A palavra pátio fica mais evi-denciada nos CRIAADS, que são as Unidades onde se cumprem as medidas socioeducativas de se-miliberdade, pois nestas existem realmente um pátio central para o qual todos os prédios convergem e é ali que a maioria das ativida-des acontecem. Nas Unidades de Internação, os espaços físicos de-nominados pátios diferem-se um dos outros de acordo com a pecu-liaridade física de cada uma delas.

Ao longo desses anos, o traba-lho no pátio vem acompanhando as mudanças necessárias às legisla-ções vigentes e, associado a isso, é crescente a preocupação na forma-ção dos profissionais que ali atuam, a fim de que os mesmos sejam cada vez mais capacitados em realizar

um trabalho socioeducativo de qualidade, no sentido da evolução de todo esse processo. Apesar de ainda haver muito que melhorar, percebe-se um grande crescimento nas condições de trabalho, sejam em questões humanas ou estrutu-rais. Nesse sentido, vale observar que, até o concurso de 2012, não havia uma formação obrigatória para o início das atividades. Muitas vezes, os agentes iam para o pátio, sem nenhuma capacitação especí-fica para o trabalho.

Após 16 anos da vigência do Estatuto da Criança e do Adoles-cente - ECA, entra em vigor o Sis-tema Nacional de Atendimento Socioeducativo – SINASE, que ar-ticula os três níveis de governo para o desenvolvimento dos pro-gramas de atendimento, consi-derando a intersetorialidade e a corresponsabilidade da família, comunidade e Estado.

O SINASE prevê a composição mínima do quadro de pessoal em cada modalidade de atendimento socioeducativo, e, para isso, tem de ser levados em consideração a dinâmica institucional, o número de adolescentes e o perfil da uni-dade. A proposta é garantir um quadro em que se possa, efetiva-mente, realizar uma socioeducação, garantindo aos agentes condições de realizar um trabalho não apenas vinculado à segurança, mas que dê conta de um espaço educativo.

DICIONÁRIO DO SISTEMA SOCIOEDUCATIVO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

274

A relação numérica de um socioeducador para cada dois ou três adolescentes, ou de um socioeducador para cada cinco adolescentes, dependerá do perfil e das necessidades pedagógicas destes. Em casos excepcionais, o SINASE traz diretrizes específi-cas, como por exemplo, quando a situação envolver alto risco de fuga, autoagressão ou agressão a outros, na qual a relação numé-rica será de dois socioeducadores para cada adolescente.

Ainda que a realidade vi-vida nas Unidades do Sistema Socioeducativo dificulte a real implementação deste sistema de

garantias, fica evidente que a exe-cução deste plano traria melhores condições de ressocialização para os adolescentes que cometeram ato infracional, além de melhores condições de trabalho para os ope-radores do sistema socioeducativo.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE). Resolução do CONANDA, nº 119, 2006. Disponível em http://www.conselhodacrianca.al.gov.br/sala-de-imprensa/publicacoes/sinase.pdf. Acesso em 13 de agosto de 2016

PLANO INDIVIDUAL DE ATENDIMENTO

Christiane da Mota Zeitoune1

1 Doutora em Teoria Psicanalítica pela UFRJ (2010). Mestre em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (1992). Psicóloga Departamento Geral de Ações Socioeducativas do Estado do Rio de Janeiro. Coordenadora de Saúde Integral e reinserção Social do Departamento Geral de Ações Socioeducativas do Estado do Rio de Janeiro, cargo assumido em janeiro de 2013. Professora substituta do Departamento de Psicologia da Universidade Federal Fluminense (2011-2012). Membro do Comitê da Política Editorial (CPE) do NOVO DEGASE. Parecerista ad hoc da Revista Psicologia: Teoria e Pesquisa.

O Plano Individual de Aten-dimento (PIA) é um instrumento pedagógico fundamental no pro-cesso de cumprimento da medida socioeducativa (SINASE, 2006).

Pode ser definido como um plano de trabalho elaborado e desenvol-vido pela equipe multidisciplinar dos centros de socioeducação, com a participação do adolescente, para

275

PLANO INDIVIDUAL DE ATENDIMENTO

P

planejar todas as ações que serão desenvolvidas durante o cumpri-mento da medida. Visa pactuar com o adolescente e sua família e/ou responsável metas e compro-missos, que possam auxiliar o ado-lescente a construir um projeto de vida e criar perspectivas de futuro desvinculados da prática de ato infracional. De acordo com o artigo 52 da Lei 12.594/2012, que insti-tui o Sistema Nacional de Atendi-mento Socioeducativo (SINASE) e regulamenta a execução das medi-das socioeducativas, o PIA é uma importante ferramenta “de previ-são, registro e gestão das ativida-des a serem desenvolvidas com o adolescente” (BRASIL, 2012, p. 10) e deve refletir as mudanças conquis-tadas pelo adolescente em todos os campos de seu desenvolvimento.

É importante ressaltar que a proposta do processo socioedu-cativo é trazer o adolescente para o centro de suas ações e planejar com ele todo o trabalho a ser rea-lizado, de modo que ele possa ser protagonista, participante ativo no processo subjetivo de construção do seu projeto pessoal e se impli-que nas suas escolhas de vida e se responsabilize por elas.

Isso se dá através de um tra-balho interdisciplinar, exigindo metodologia, profissionalismo e políticas intersetoriais. É um tra-balho dinâmico, flexível e inova-dor, que busca, através de uma

ação interdisciplinar integrada, uma intervenção com o adoles-cente de promoção da cidadania, mas sem perder de vista que es-tamos lidando com sujeitos, de modo que esse trabalho deve estar sempre comprometido com a ética, com a singularidade e com a dife-rença, para que esse possa reco-lher a responsabilidade diante do ato infracional cometido e seja ca-paz de realizar escolhas e inventar soluções diferentes daquelas que o levou a cometer o ato infracional.

O objetivo do PIA é garan-tir essa singularidade, através de um acompanhamento individuali-zado, de escuta do adolescente, para que a medida socioeducativa possa ser cumprida pelo adolescente de acordo com a sua possibilidade, capacidade e responsabilidade.

É imprescindível a participação da família, ou seu substituto, nas intervenções junto ao adolescente e esta parceria se torna mais evidente e necessária quando da elaboração e desenvolvimento do PIA, por isso é importante favorecer e incenti-var a participação ativa da família durante o período de cumprimento da medida socioeducativa.

Ao construir os marcos da pro-posta de trabalho com a família, os programas de atendimento socioe-ducativo devem articulá-los com o Plano Nacional de Defesa, Promo-ção e Garantia da Convivência Fa-miliar e Comunitária de Crianças

DICIONÁRIO DO SISTEMA SOCIOEDUCATIVO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

276

e Adolescentes, como uma possi-bilidade de fortalecer essa convi-vência, estendida para o âmbito comunitário. (LAPP/CEAG)

As dimensões a serem consi-deradas no PIA seguem as diretri-zes fixadas pelos eixos da garantia de direitos fundamentais: escolari-zação, profissionalização, cultura, esporte e lazer; saúde física e men-tal; convivência familiar e comu-nitária; espiritualidade; situação processual e deve preparar o ado-lescente para o desligamento.

O artigo 54 da citada Lei dis-põe que constarão do PIA:

I - os resultados da avaliação interdisciplinar;

II - os objetivos declarados pelo adolescente;

III - a previsão de suas atividades de integração social e/ou capaci-tação profissional;

IV - atividades de integração e apoio à família;

V - formas de participação da família para efetivo cumpri-mento do plano individual; e

VI - as medidas específicas de atenção à sua saúde.

A construção do PIA é de res-ponsabilidade da equipe técnica do Programa (meio aberto ou fechado) e se inicia com a recepção do adoles-cente. Deve-se considerar a escuta do adolescente e do seu grupo

familiar. Requer a construção de ins-trumentais que possam contribuir na gestão, planejamento e avaliação das medidas socioeducativas

Para construção do PIA, deverá ser realizado estudo de caso a partir da reunião com a equipe multiprofis-sional, com a presença e participação de agentes socioeducativos.

No estudo de caso, serão sis-tematizadas as informações refe-rentes ao contexto sociofamiliar de origem do adolescente, as circuns-tâncias da prática do ato infracio-nal, suas aptidões, habilidades, interesses e motivações, suas carac-terísticas pessoais e condições para superação das suas dificuldades. É o momento de troca de informa-ções, reflexão e discussão interdis-ciplinar, onde cada profissional contribui com a sua área de forma-ção com a finalidade de planejar as ações e ter subsídios para a elabo-ração do Relatório Técnico Multi-disciplinar do adolescente que será encaminhado ao Poder Judiciário.

O PIA exige um contrato com o adolescente. É neste contrato que se estabelecerão as metas e os pra-zos, considerando os critérios de prioridade e viabilidade e tendo como ponto de partida as propos-tas emergentes do estudo de caso. É este contrato que será encami-nhado para o Poder Judiciário no prazo de até 45 (quarenta e cinco) dias da data do ingresso do adoles-cente no programa de atendimento.

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PLANO INDIVIDUAL DE ATENDIMENTO

P

O desenvolvimento do PIA requer que a equipe continue um trabalho de integração das in-formações e observações sobre o encaminhamento do processo so-cioeducativo do adolescente. Este acompanhamento consiste em (DEGASE, 2013, p. 05):

a. observar e documentar os avanços e retrocessos, facilidades e dificuldades, sucessos e insuces-sos apresentados pelo adolescente, face ao previsto no PIA;

b. estimular, facilitar e apoiar o adolescente em suas atividades;

c. indicar e fomentar ações voltadas ao aprimoramento do atendimento prestado;

d. facilitar e incentivar a comu-nicação entre as partes envolvidas no processo educacional;

e. articular as ações desenvolvi-das nas diferentes atividades na unidade em função do previsto no PIA dos adolescentes. (...)

O acompanhamento do PIA deve se processar diariamente em todas as atividades que o adolescente esteja envolvido de forma comparti-lhada, participante e interativa.

O Relatório Técnico e o PIA se complementam. O Relatório Téc-nico de avaliação da medida socio-educativa deve obrigatoriamente ser embasado a partir da constru-ção do Plano Individual de Aten-

dimento. Ambos são instrumentos que vão subsidiar a decisão de en-caminhamento da medida socioe-ducativa do adolescente.

Os registros do PIA de cada adolescente não são uma tarefa fá-cil. Sabemos dos desafios da so-cioeducação e o quanto somos capturados pela nossa rotina e demandas institucionais, que en-gessam a nossa prática e nos dis-tanciam das ações socioeducativas. Por isso, é importante promover ações integradas e políticas inter-setoriais buscando, assim, romper com uma cultura de institucionali-zação e fortalecer o paradigma da atenção integral expressa na lei.

É através de uma intervenção na dimensão clínica, educativa, social e política que se busca recons-truir com esses jovens um novo caminho. É importante criar condi-ções para que eles reflitam sobre a sua realidade, contem suas histórias, formulem suas questões, impli-quem-se, posicionem-se em relação ao seu dizer e que não fiquem, sim-plesmente, capturados em seus destinos, sem saídas e sem escolhas.

REFERÊNCIAS

ADIMARI, M. F.; PAES, P. C.; COSTA, R. P.(Org). Formação Continuada de Socioeducadores, caderno 4: PIA – Plano Individual

DICIONÁRIO DO SISTEMA SOCIOEDUCATIVO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

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de Atendimento. Campo Grande, MS: Ed. UFMS, 2013.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, Senado Federal, Brasília, 1988.

______ Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei 8.069/90, Ministério da Justiça, Brasília, 1990.

______ Conselho Nacional do Direito da Criança e do Adoles-cente. SINASE – Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo. Brasília, 2006.

______ Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo – Lei Federal nº 12.594, de 18/01/2012.

_______ Plano Nacional de Pro-moção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes a Con-vivência Familiar e Comunitária. Brasília/ DF, dezembro de 2006.

DEGASE. Plano de Atendi-mento Socioeducativo do Governo do Estado do Rio de Janeiro - (PASE) - Decreto nº 42.715 de 23/11/2010. Diário Oficial do Estado do Rio de Janeiro - ANO XXXVI - Nº 213. Governo do Estado do Rio de Janeiro. Secretaria de Estado de Educação. Rio de Janeiro: Departamento Geral de Ações Socioeducativas, 2010.

________. Plano Individual de Atendimento (PIA). Rio de Janeiro: Governo do Estado. Secretaria de Estado de Educação. Rio de Janeiro: Departamento Geral de Ações Socioeducativas, 2013.

IASP. Cadernos do IASP: Prá-ticas de Socioeducação. Curitiba: Imprensa Oficial do Paraná, 2006.

LAPP/CEAG. Apostilas do Curso de Formação de Operadores do Sistema Nacional de Atendi-mento Socioeducativo (SINASE). Brasília: Universidade de Bra-sília, CEAG (Centro de Estudos Avançados de Governo e Admi-nistração Pública) e Secretaria de Direitos Humanos, 2014.

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PLANO MUNICIPAL DE ATENDIMENTO SOCIOEDUCATIVO

P

PLANO MUNICIPAL DE ATENDIMENTO SOCIOEDUCATIVO

Thaís Vargas Menezes1

1 Psicóloga DEGASE. Psicóloga Secretaria de Assistência Social do Município de Itaguaí. Mestre em Psicologia UFRJ.

Em busca da compreensão do Plano Municipal Socioeducativo, precisamos esclarecer o processo de municipalização das políticas públicas desde a Constituição Fe-deral de 1988, conhecida como a Constituição Cidadã. É importante também conhecer a proposta so-cioeducativa, entendendo a relação de responsabilização do adoles-cente autor de ato infracional e as responsabilidades do Poder Pú-blico dentro deste contexto.

A Constituição Federal de 1988 é um marco fundamental na discussão de qualquer política pú-blica por ter realizado uma grande transformação legal e ideológica, visando a mudanças culturais a longo prazo. Considerando o fim do período de ditadura, a constru-ção da Carta Magna procurou ser o mais democrática possível, am-pliando ao máximo a participação popular nas decisões políticas. Fo-ram encontrados desafios à efetiva participação, como a extensão ter-ritorial do país e as pluralidades

sócio-histórica e cultural. Assim, a descentralização político-adminis-trativa foi tomada como um princí-pio fundamental para a construção e principalmente para a execu-ção do atendimento à população. Sendo o menor ente da federação, o município assume um papel muito importante. A municipalização do atendimento à população não é, portanto, uma proposta restrita ao atendimento socioeducativo, ela está ligada a uma concepção de prática política que vai permear a política de saúde, de educação, de assistência social, entre outras, e também a socioeducativa.

Outro avanço conquistado pela CRFB/88 foi a organização dos servi-ços em sistemas, por exemplo, o Sis-tema Único de Saúde (SUS), Sistema Único de Assistência Social (SUAS) e, na mesma lógica de organização do atendimento, o Sistema Socio-educativo. A palavra sistema traz a compreensão de que os serviços prestados à população devem fun-cionar como um conjunto, em rela-

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ção uns com os outros, que tenham coordenação e organização entre si, ou seja, é fundamental que os servi-ços estejam articulados para garan-tir um atendimento de qualidade e completo.

Em relação às políticas volta-das para a infância e a juventude, a Constituição traz a Doutrina da Proteção Integral como norteadora de todas as ações, contrapondo--se à Doutrina da Situação Irregu-lar dos Códigos de Menores (1927 e 1979), em que as crianças “aban-donadas ou delinquentes”, que tinham uma rotina de vida dife-rente daquela esperada pela classe dominante, oriundas de famílias mais pobres, sem instrução, que viviam em condições precárias de moradia e alimentação, e que se organizavam de formas múlti-plas, eram tidas como incapazes de educar bem seus filhos, preju-dicando a formação do bom cida-dão brasileiro, justificando assim que o Estado as retirasse da famí-lia e assumisse os cuidados. Neste período, a manutenção dos víncu-los familiares e comunitários não era preservada. As referidas insti-tuições de atendimento ofereciam todos os recursos para escolari-zação, acesso ao atendimento de saúde, à alimentação, à moradia, à cultura, tudo dentro dos muros; essa era a configuração das insti-tuições totais.

A noção de sistema, já mencio-nada, contrapõe-se diretamente às instituições totais. Se na vigência anterior o atendimento retirava as crianças da família para oferecer tudo em um único espaço, agora é necessária a formação da rede pro-tetiva e da articulação entre os sis-temas para atender a família em seu território, efetivando o Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente (SGD).

O SDG está organizado em três eixos: da defesa dos direitos, res-ponsabilidade dos órgãos ligados ao sistema judiciário e conselhos tutelares; de promoção de direitos, composto pelos órgãos que execu-tam serviços e programas voltados para a criança e o adolescente; e o eixo do controle social, no qual a sociedade é convocada em sua res-ponsabilidade com as políticas pú-blicas. O último eixo, em especial, nos interessa para a discussão do plano municipal porque o controle social é o espaço em que represen-tantes governamentais e da socie-dade civil se reúnem, de forma paritária, para formular, regula-mentar, socializar, fiscalizar, deli-berar e aprovar políticas públicas.

No caso das políticas e ser-viços ofertados ao público da infância e juventude, temos por referência o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Ado-lescente (CONANDA), o Conselho Estadual de Defesa da Criança e

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PLANO MUNICIPAL DE ATENDIMENTO SOCIOEDUCATIVO

P

do Adolescente (CEDCA) e, em âmbito municipal, o Conselho Municipal de Direitos da Criança e do Adolescente (CMDCA). O município pode elaborar diver-sos planos municipais, que vão organizar o eixo da promoção de direitos, ou seja, vão direcionar a execução das políticas em âmbito local, tendo como norteador maior as diretrizes constitucionais.

No Sistema Socioeducativo, as diretrizes comuns são dadas pela CRFB/88, o ECA (1990), o SINASE (2006), que foram base para a elabo-ração do Plano Nacional de Atendi-mento Socioeducativo, que é base para os Planos Estaduais de Aten-dimento Socioeducativo e os Pla-nos Municipais de Atendimento Socioeducativo. Tendo em vista que no município as ações socioe-ducativas estão intimamente liga-das ao SUAS, os documentos que norteiam este sistema também pre-cisam ser considerados.

As medidas socioeducativas estão previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e visam à responsabilização do ado-lescente autor de ato infracional2. Elas consistem em uma resposta legal e social, considerando a condição peculiar de desenvolvi-mento do adolescente, ou seja, seu processo de educação e a constru-ção de sua sociabilidade não são

processos naturais, mas sim resul-tados das interações, colocando em cena outros atores, como a família, a sociedade e o Estado, também responsáveis pelas crian-ças e adolescentes desde a adoção da Doutrina da Proteção Integral (CRFB, 1988; ECA, 1990).

As referidas medidas têm três objetivos: a desaprovação da conduta, para que ela não seja re-petida; a responsabilização do adolescente pelo ato cometido, para que compreenda os efeitos de seus atos; e a integração social (MDS, 2010). Configura-se assim o caráter pedagógico da medida so-cioeducativa, com especial olhar para o último objetivo, que pre-tende reestabelecer os laços rom-pidos pela prática infracional. O atendimento socioeducativo tem como foco: o adolescente, a sua fa-mília e a sociedade na qual estão inseridos, promovendo interven-ções também sobre o território.

A elaboração do plano deve partir da construção de um diag-nóstico situacional do município. É importante conhecer o perfil dos adolescentes que respondem por ato infracional, observando demandas e necessidades mais frequentes. Também precisa ser realizado levantamento da rede de atendimento, das condições de acesso, da qualidade dos servi-

2 Ato infracional é conduta análoga às condutas tipificadas como crime ou con-travenção no Código Penal.

DICIONÁRIO DO SISTEMA SOCIOEDUCATIVO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

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ços. É preciso estar especialmente atento às redes de saúde, educação, assistência social, cultura, esporte e lazer, que são os direitos funda-mentais, identificando possíveis falhas da política pública local na formação dos jovens, além de pensar em estratégias para priori-zar o acesso dos adolescentes em cumprimento de medida socio-educativa. O diagnóstico pode e deve contribuir para avançar em qualidade de serviço para toda a população, considerando o papel protetivo do Estado.

Segundo o Levantamento Anual SINASE – Privação e Res-trição de Liberdade referente ao ano de 20133, entre os adolescen-tes privados ou com restrição de liberdade o roubo (43%) e o tráfico (24,8%) continuam sendo os atos infracionais mais praticados. In-dependente da história que apro-ximou o adolescente da ilicitude, o retorno financeiro da infração é um desafio que se coloca no acompanhamento destes jovens; é fundamental que sejam constru-ídas alternativas. O plano precisa identificar, além do acesso à es-colarização, as possibilidades de profissionalização e empregabi-lidade. Questões que podem ser discutidas, por exemplo, em con-junto com associações comerciais e empresariais para o estabeleci-

mento de parcerias que viabilizem qualificação, estágios e inserção no mercado de trabalho. As famí-lias devem ser incluídas neste pro-cesso, visto que o suporte à família também contribui para a constru-ção de outras inserções possíveis para o adolescente.

O Plano Nacional Socioedu-cativo (2013) identifica que, no ano de 2012, havia 19.595 adolescen-tes em cumprimento de medida socioeducativa em meio fechado e 88.075, em meio aberto. Os da-dos do meio aberto são colhidos pelo Censo SUAS, que monitora o atendimento dos equipamentos da Assistência Social, isto porque as medidas em meio aberto são exe-cutadas pelos Centros de Referên-cia Especializados de Assistência Social (CREAS). No âmbito mu-nicipal, SINASE e SUAS precisam estar bastante articulados para que seja possível um acompanhamento de qualidade aos adolescentes.

É importante lembrar que a grande maioria dos municípios não contam com unidades de pri-vação ou restrição de liberdade em seu território, porque é um serviço excepcional e que deve acontecer em tempo breve, em contrapartida, isto gera demanda de deslocamento das famílias para visitação ou mesmo para o adolescente que retorna da semi-

3 O Levantamento de referência foi publicado em 2015, mas faz referência aos dados de 2013.

283

PLANO MUNICIPAL DE ATENDIMENTO SOCIOEDUCATIVO

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liberdade aos finais de semana. O atendimento em unidades do meio fechado, por mais que rea-lize intervenções sobre a família, não possui alcance de ação no território e, por isso, deve estar articulado com o CREAS, para que, durante o processo de afasta-mento, os vínculos comunitários sejam fortalecidos e a família esteja mais fortalecida para rece-ber o adolescente em seu retorno.

Observamos que o processo de construção do Plano Munici-pal Socioeducativo pode ser con-siderado um grande movimento de articulação entre as políticas setoriais para efetivar o funcio-namento do Sistema de Garantia de Direitos. A identificação de de-mandas e potencialidades do mu-nicípio, a organização de fluxos entre os serviços e a proposição de ações específicas para este pú-blico são as principais estratégias para garantir direitos, para além da responsabilização do ado-lescente, a responsabilização do poder público. Talvez seja interes-sante pensar que todo este traba-lho possa também ser aproveitado para outras crianças e adolescen-tes do território, o que poderia re-duzir a vulnerabilidade e quiçá romper o ciclo de violência ini-ciado pelo Estado.

REFERÊNCIAS

BRASIL, Código de Menores - Mello Mattos. Decreto 17.943A de 1927.

BRASIL, Constituição Federal de 1988.

BRASIL, Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei n° 8.069 de 1990.

BRASIL, Presidência da Repú-blica. Secretaria Especial de Direi-tos Humanos (SDH). Sistema Nacional De Atendimento Socio-educativo – SINASE. Brasília (DF): CONANDA, 2006.

BRASIL, Ministério do Desen-volvimento Social e Combate à Fome. Caderno de Orientações Técnicas: Serviço de Medidas Socioeducativas em Meio Aberto. Secretaria Nacional de Assistência Social. Brasília (DF), 2010.

BRASIL. Presidência da Repú-blica. Secretaria de Direitos Huma-nos (SDH). LEVANTAMENTO ANUAL SINASE 2013. Brasília (DF), Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, 2015.

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PLANO NACIONAL DE PROMOÇÃO, PROTEÇÃO E DEFESA DO DIREITO DE CRIANÇAS E

ADOLESCENTES À CONVIVÊNCIA FAMILIAR E COMUNITÁRIA (PNCFC)

Clayse Moreira e Silva1

1 Mestre em Políticas Públicas e Formação Humana (PPFH/UERJ), Psicóloga espe-cialista em Psicologia Jurídica. Coordenação Colegiada da Associação Nacional dos Centros de Defesa da Criança e do Adolescente (ANCED) e do Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente do Rio de Janeiro (CEDECA RJ).

O Plano Nacional de Promo-ção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Con-vivência Familiar e Comunitária (PNCFC) foi aprovado em 13 de dezembro de 2006 pela Resolução Conjunta do Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS) e do Conselho Nacional dos Direi-tos da Criança e do Adolescente (CONANDA), no 1/2006.

A tão ampla e diversa par-ticipação em nível intersetorial, envolvendo governo e sociedade civil, de todas as esferas e seg-mentos, e a consulta pública, desde 2002, possibilitaram um giro paradigmático, abandonan-do-se a preocupação original de implementar uma política de re-ordenamento dos abrigos para afirmar a importância da perma-nência da criança e do adolescente em sua família de origem, da pre-

servação e do fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários.

Assim, atendendo à Conven-ção Internacional sobre os Direitos da Criança, o PNCFC implementa a Doutrina da Proteção Integral, rompendo com os paradigmas da Doutrina Penal do Menor e da Doutrina da Situação Irregular.

O PNCFC considera crianças e adolescentes como sujeitos de di-reitos em condição peculiar do de-senvolvimento, sendo um marco, principalmente para aquelas com vínculos familiares fragilizados ou interrompidos. Impôs uma mu-dança de paradigma ao conside-rar a família e a comunidade como “lócus” privilegiados para a per-manência e desenvolvimento de todas as crianças e adolescentes. Trouxe a família para a centrali-dade das políticas públicas, dialo-gando com o SUAS (Sistema Único

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PLANO NACIONAL DE PROMOÇÃO, PROTEÇÃO E DEFESA DO DIREITO DE CRIANÇAS E ADOLESCENTESÀ CONVIVÊNCIA FAMILIAR E COMUNITÁRIA (PNCFC)

de Assistência Social) e rompendo com a lógica da institucionaliza-ção. O PNCFC também é centrado na matricialidade sociofamiliar, na vivência comunitária e na oferta de serviços e ações destinadas à prevenção das situações de viola-ção de direitos, fortalecimento de vínculos e apoio à família, obede-cendo também à lógica territorial.

O PNCFC trata os programas de acolhimento institucional como necessários, porém excepcionais e transitórios, devendo-se recor-rer aos mesmos somente quando esgotadas todas as possibilida-des de manutenção na família de origem ou para a colocação em fa-mília substituta.

Essa mudança de olhar impli-cou na criação de programas de apoio, auxílio e proteção à famí-lia; na realocação de recursos para essa finalidade pelos estados e municípios; na deliberação de resoluções sobre o assunto pelos Conselhos Municipais e Estaduais dos Direitos da Criança e do Ado-lescente; na implementação de programas de acolhimento fami-liar (famílias acolhedoras, entre outros); na criação de um cadastro e numa nova política para a ado-ção. Modificou a forma de atuar nos Conselhos Tutelares, no sis-tema jurídico, nas entidades de atendimento, nos antigos “abri-gos”, agora intitulados programas de acolhimento institucional.

O PNCFC foi um dos princi-pais parâmetros para a elaboração da Lei 12.010/2009, conhecida como “Lei da Convivência Familiar e Co-munitária”, que alterou significati-vamente o Estatuto da Criança e do Adolescente, no que tange à preser-vação e fortalecimento dos víncu-los familiares e comunitários, bem como à regulamentação e funcio-namento dos programas de acolhi-mento familiar e institucional. O Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE) e o Sis-tema Único de Assistência Social (SUAS, contemporâneo ao PNCFC) são normativas que também tive-ram como referência o PNCFC.

Além disso, o PNCFC propõe ações e diretrizes para o cumpri-mento do art. 229 da Constituição Federal, a qual determina que “os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores (...)” (CF, 1988); e dos arts. 19, 92 e 100 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que se referem à provisoriedade e excepciona-lidade da colocação de crianças e adolescentes em programas de acolhimento institucional ou em família substituta.

O PNCFC apresenta os marcos legais, conceituais e situacionais, as diretrizes, os objetivos gerais, os resultados programáticos, os indicadores para a sua implemen-tação, monitoramento e avaliação. O PNCFC traz ainda um plano de

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ação em quatro eixos: 1 – Análise de situação e sistemas de infor-mação; 2 – Atendimento; 3 – Mar-cos regulatórios e normativos; 4 – Mobilização, articulação e par-ticipação, para ser implementado num período de 9 anos (2007-2015).

Nos marcos conceituais, o Plano amplia o conceito “família natural” (Art. 25/ECA). Introduz os conceitos de família extensa ou ampliada – que se estende para além da unidade pais e filhos ou da unidade do casal, formada por parentes próximos com os quais a criança ou adolescente convive e mantém vínculos de afinidade e afetividade, podendo estar ou não dentro do mesmo domicílio, incluindo, por exemplo, irmãos, meio-irmãos, avós, tios e primos de diversos graus (PNCFC, 2006).

O PNCFC desenvolve, ainda, os conceitos de convivência fami-liar e de convivência comunitária, admitindo os novos arranjos fami-liares e cotidianos, a diversidade sócio e étnicocultural das famílias dos povos e comunidades tradi-cionais (indígenas; remanescentes de quilombos), com respeito à identidade e orientações sexuais, à equidade de gênero e às parti-cularidades das condições físicas, sensoriais e mentais.

Portanto, ele abandona a ideia preconcebida de “modelo familiar normal”, “funcional” ou “estru-turado”. Resgata a referência de

afeto, proteção e cuidado familiar, nos quais os indivíduos cons-troem seus primeiros vínculos afetivos, experimentam emoções, desenvolvem a autonomia, tomam decisões, exercem o cuidado mútuo e vivenciam conflitos. Considera a família como um espaço dinâ-mico em constante transformação, tendo a crença de que cada famí-lia é singular e potencialmente capaz de se reorganizar diante de suas dificuldades, de maximizar as suas capacidades, de transfor-mar suas práticas para consolidar novas formas de relações.

O PNCFC vê na comunidade o espaço onde os sujeitos expressam a sua individualidade e encon-tram importantes recursos para o seu desenvolvimento, reconhecen-do-a como mediadora das relações que crianças e adolescentes esta-belecem, contribuindo para a construção de relações afetivas e de suas identidades individual e coletiva. Destaca a sua importância no suporte à família em situações de crise, cuidando das crianças e adolescentes na ausência dos pais, denunciando violações ou realizando projetos coletivos e de cooperação mútua como for-mas de apoio coletivo, protegendo crianças e adolescentes.

O PNCFC considera também a ameaça e a violação dos direi-tos da criança e do adolescente pela família e pelo Estado, consi-

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derando a co-responsabilização constitucional de ambos, as inter-venções através de programas de atenção à família, bem como as medidas previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente.

Nessa lógica, promoveu mo-dificações importantes na forma de atendimento também ao ado-lescente que cumpre medida so-cioeducativa. Aborda o tema dos “adolescentes em conflito com a lei em cumprimento de medidas socioeducativas”, apresentando a realidade situacional desses ado-lescentes na ocasião em que o Plano foi aprovado. Em 2006, havia em torno de 28% menos adolescen-tes em cumprimento de medidas privativas de liberdade do que em 2016. Ratifica o SINASE, reprodu-zindo que tal Plano ressalta que

as práticas sociais devem ofere-cer condições reais, por meio de ações e atividades programáticas à participação ativa e qualitativa da família no processo socioedu-cativo, possibilitando o fortaleci-mento dos vínculos e a inclusão dos adolescentes no ambiente fa-miliar e comunitário (SINASE, apud PNCFC, 2006, p. 58).

A preservação e o fortaleci-mento dos vínculos familiares e comunitários devem ser conside-rados na progressão da medida socioeducativa para que o adoles-

cente seja mantido em sua família original. Nesse sentido, na desin-ternação, na progressão da medida e no cumprimento em meio aberto, as ações devem estar centradas no restabelecimento e no fortaleci-mento dos vínculos familiares e comunitários, no seu território de moradia e da sua família.

Não é à toa que, na elabo-ração do Plano Individual de Atendimento (PIA), deve-se consi-derar a participação e colaboração direta da família, contando com a contribuição dos recursos comu-nitários e da sociedade civil. Com esse objetivo, os serviços de educa-ção, saúde, formação profissional, fortalecimento de vínculos e de proteção especial devem estar arti-culados ao trabalho desenvolvido pelos programas de execução de medidas socioeducativas.

Uma vez seguido o PNCFC, em articulação com o SINASE, adotando-se a lógica do SUAS, as medidas socioeducativas, princi-palmente as privativas de liber-dade, precisam ser executadas o mais próximo da família e da co-munidade do adolescente. O Art. 124/ECA estabelece que um dos direitos do adolescente internado é permanecer na mesma localidade ou naquela mais próxima ao domi-cílio dos seus pais ou responsáveis. O Art. 49, inc. II/SINASE, estabe-lece que é direito do adolescente

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ser incluído em programa de meio aberto quando inexistir vaga para o cumprimento de medida de privação da liberdade, exceto nos casos de ato infracio-nal cometido mediante grave ameaça ou violência à pessoa, quando o adolescente deverá ser internado em Unidade mais pró-xima de seu local de residência (p. 16, SINASE, 2012).

Assim, questiona-se por que, nesses casos, a prevalência do direito à convivência familiar e comunitária na lógica da socioedu-cação, em detrimento da punição, na maioria das vezes, não é seguida pela autoridade judiciária.

São possíveis circunstâncias que impeçam o adolescente de retornar ao convívio de sua famí-lia e de sua comunidade, como por exemplo, quando há a ameaça de morte ou o rompimento defini-tivo dos vínculos familiares. Para isso, é necessário que existam pro-gramas de apoio aos adolescentes que têm a medida de internação extinta ou que progridem para o meio aberto, ou “repúblicas” para os adolescentes que se encontram nessas circunstâncias e estão pres-tes a completar ou já completaram 18 anos, apoiando-os nessa nova etapa da vida. Tais programas possibilitariam o restabelecimento e o estabelecimento de novos vínculos comunitários, podendo

ressignificar as suas experiências ou encontrar novos significados.

O prazo para implementar o plano de ação proposto no PNCFC já expirou. É momento de revisá-lo, avaliar os indicadores alcançados e propor a sua atualização. Muito se avançou na política de atendi-mento à criança e ao adolescente com o PNCFC. Porém, ainda é preciso implementá-lo para os adolescentes que cumprem medi-das socioeducativas e para as crianças e adolescentes em situa-ção de rua, de exploração sexual, e as limitadas em suas condições físicas, sensoriais ou mentais.

Na revisão do PNCFC, reco-menda-se uma especial atenção para o desenvolvimento de ações concretas que efetivem a articu-lação entre o PNCFC, o SUAS e o SINASE, garantindo também a elas o direito às convivências familiar e comunitária.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Lei Federal 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Ado-lescente. Brasília, 1990. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm>. Acesso em 19 de junho de 2016.

______. Senado Federal. Lei 12.010/2009. Lei da convivência familiar e comunitária. Brasília,

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2009. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/lei/l12010.htm>. Acesso em: 27 de agosto de 2010.

______. Presidência da Repú-blica. Lei 12.594/2012. Institui o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase) e regu-lamenta a execução das medidas socioeducativas destinadas a adolescente que pratique ato infra-cional. Brasília, 2012. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12594.htm>. Acesso em: 25 de junho de 2016.

CNAS/CONANDA. Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes ao Direito à Convivên-cia Familiar e Comunitária. Brasília, 2006. Disponível em: http://www.conselhodacrianca.al.gov.br/sala-de--imprensa/publicacoes/PNCFC%20_%2028_12_06%20_%20Doc u-mento%20Oficial%20_2_.pdf/view. Acesso em: 25 de junho de 2016.

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PLANTÃO INTERINSTITUCIONAL (PI)

Leandro Torres Dos Reis1 Susan Lemos Gibson2

Deborah Rosangela Gonçalves Pezzi3

1 Banco do Brasil: estagiário Aux. Adm. (2004). UNEI: setor jurídico (2004). UNESA: auxiliar de cobrança (2008). UNESA: Bacharel em Direito (2010). Escritório Marques de Oliveira: advogado (2011). Advogado autônomo (2011). Curso de Direito Previdenciário (2013). Agente socioeducativo Degase ESE. Transferência PI (2015). Diretor PI. Pós Graduação: Direito Previdenciário e Trabalhista (cursando).2 Coordenadora de saúde mental do HEGV da SESRJ de 2003 até 2013. Psicóloga do Degase desde 2013. Psicóloga da Secretária de saúde do Rio de Janeiro desde 2007. Matriciadora da ESF. Graduada pela PUC/RIO. Operadora do sistema socioeducativo.3 eEntrada no Degase DEGASE - unidade ESD (PACGC) (1995). Atual lotação PI. Função: ADM. (2000). Técnico em enfermagem (PROFAE). Licenciatura em Pedagogia UCB (. 2013). Pós-Graduada em Gestão Escolar Integradora UCB (Adm. Escolar, Supervisão Escolar, Orientação Educacional e Professor Inspetor Escolar) (. 2015). Letras: Português/Literatura UNESSA (cursando). Italiano UFRJ (cursando).

O Plantão Interinstitucional (PI) foi criado em 1997 e é uma unidade do DEGASE com carac-terística bem peculiar comparada às demais unidades. Sua concep-ção se deu em virtude de estar pre-visto na Lei 8069/90, em seu art. 88, inciso V - Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), ratificado em 2012 pela Lei 12594/12 (SINASE), que reforça a importância do PI. A unidade nasce com a finalidade de integração operacional de órgãos do Judiciário, Ministério Público, Defensoria Pública, Segurança Pú-blica, Assistência Social e outras unidades do Degase. Funciona na Vara da Infância e da Juventude da

Comarca da Capital (atualmente no bairro de Olaria), atendendo a todas as unidades desta comarca de forma predominante e do inte-rior, caso haja necessidade.

O PI conta com uma equipe composta de agentes administra-tivos, agentes socioeducativos e equipe técnica, que procuram pro-mover relações sociais de trabalho coletivas baseadas na cooperação.

Um de seus objetivos é fa-zer parte do sistema de garantia de direitos, contribuindo com a celeridade da trajetória jurídico--institucional dos adolescentes apreendidos por cometimento de ato infracional, garantindo o cum-

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PLANTÃO INTERINSTITUCIONAL (PI)

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primento dos prazos estabelecidos em lei e, assim, evitando violações de direitos. Busca, também, atra-vés da sua prática, contribuir para a construção de uma sociedade mais tolerante e inclusiva, concretizando os avanços contidos nas legislações.

Além disso, pretende desen-volver um trabalho com base nos princípios de interlocução ativa e participativa, que possibilite um melhor atendimento às necessi-dades de adolescentes em conflito com a lei e de suas famílias. Visto que somos parte de um corpo social, procuramos contribuir, pro-piciando ao adolescente o acesso a direitos e a oportunidades de supe-ração de sua situação de exclusão, tornando mais digna a sua passa-gem na instituição e mobilizando esforços para que os prazos legais sejam cumpridos.

O adolescente em conflito com a lei, ao ser apreendido pelas Delegacias locais, deverá ser enca-minhado à Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente (DPCA), que também pode efetuar apreen-sões e proceder com sua autuação, encaminhando-o para o Núcleo de Audiência de Apresentação (NAAP), criado em junho de 2016 em consonância com o ECA art. 88, inciso V e ratificado pela Lei 12594/12 (SINASE).

O adolescente é recebido pelos agentes do PI que os encami-nham para uma entrevista com a

Defensoria Pública (DP). A seguir, ele é conduzido ao Ministério Público, que, já de posse da docu-mentação entregue pela delegacia, realiza a oitiva. Depois é levado ao corpo técnico (psicóloga / assistente social), seguindo-se a audiência de apresentação, na qual o juiz deter-mina a liberação com entrega aos responsáveis e/ou liberação com encaminhamento ao abrigo, caso os responsáveis não estejam pre-sentes, ou internação provisória com audiência de continuação marcada para data posterior e, nesse caso, o adolescente é enca-minhado ao Degase pelos agentes do PI para acautelamento até a data da audiência designada.

Agentes do Plantão Interinsti-tucional (PI) precisam:

• Acautelar os adolescentes entregues pela DPCA;

• Fazer o transporte entre as unidades do Degase e a VIJ dos ado-lescentes com audiência marcada, que pode ser: audiência de apresen-tação, continuação, especial e reava-liação, procedendo também o seu acautelamento enquanto se encon-trarem nas dependências da VIJ;

• Atualizar periodicamente a planilha de atendimento ela-borada pelo PI, contendo dados quantitativos que permitem o con-trole do atendimento fornecido, assegurando a transparência e tor-nando público o funcionamento e os resultados obtidos;

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• Garantir maiores infor-mações aos responsáveis sobre a situação jurídico-processual do adolescente mediante consulta ao sistema de informática;

• Assessorar as unida-des quanto aos procedimentos a serem tomados no que tange aos incidentes processuais através de comunicação permanente;

• Encaminhar documentos da Vara da Infância e Juventude (ofí-cios, solicitações, guia de execuções e outros) às unidades do Degase mediante uma guia de remessa;

• Receber e protocolizar documentos das unidades do Degase nos setores da VIJ e devol-vê-lo com o devido recebimento;

• Acompanhar o adolescente e também sua família, desde sua aco-lhida (quando da entrada do sistema) até o seu desligamento, visando à humanização do atendimento;

• Garantir espaços de encon-tro coletivo para a discussão de assuntos relevantes para melhoria organizacional do trabalho e para sua avaliação a partir de critérios consensuais, constituídos pelo coletivo, que sejam indicadores de qualidade do trabalho;

• Atender a família pós-au-diência. A equipe técnica deve desenvolver ações visando a ofe-recer um espaço de informações, orientações e reflexões, estimu-lando, assim, a participação da família no processo socioeducativo;

• Marcar atendimento dos adolescentes e dos seus responsáveis para o serviço social ou psicologia do judiciário, quando necessário;

• Encaminhar o adolescente e a família para o Centro de Referência Especializado da Assistência Social do Município (CREAS), para cumpri-mento das medidas Socioeducativas (MSE) de Liberdade Assistida (LA) e Prestação de Serviço à Comunidade (PSC), de acordo com o SINASE;

• Entregar os encaminha-mentos determinados em audiência ao cartório para que procedam à realização dos ofícios às unidades do Degase, tornando, assim, mais rápido o andamento do processo.

“A única história que vale alguma coisa, é a história que fazemos hoje”.

(Henry Ford)

REFERÊNCIAS

BRASIL. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e dá outras pro-vidências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8069.htm>. Acesso em: 20 jun. 2016.

_______. Lei nº 12.594, de 18 de janeiro de 2012. Institui o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase), regula-

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POLÍTICAS SOBRE DROGAS

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menta a execução das medidas socioeducativas destinadas a adolescente que pratique ato infra-cional. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12594.htm>. Acesso em: 20 jun. 2016.

Projeto Político Pedagógico do PI. Rio de Janeiro: 2006.

ABDALLA, J. F. S.; SILVA S. P.; VELOSO, B. R. Curso de Operadores do Sistema Socioeducativo. In: Ações Socioeducativas, Formação e Saberes Profissionais: A psi-cologia no PI, A Importância do Primeiro Acolhimento à Família de Susan Lemos Gibson. Rio de Janeiro: Degase, p.177-186, 2015.

POLÍTICAS SOBRE DROGAS

Renato Athayde Silva (Renato Cinco)1

1 Sociólogo, vereador e conhecido ativista pela legalização da maconha. É forma-do em ciências sociais pela UFRJ. Foi eleito vereador do Rio de Janeiro pelo PSOL, em 2012 e está em sua primeira legislatura. Membro fundador do movimento MLM – movimento pela legalização da maconha e participa da organização da Marcha da Maconha desde 2005. Em 2009, Renato Cinco foi um dos subs-critores da Representação dirigida à Procuradoria-Geral da República que deu origem à Adpf 187. Nesta ação o STF reconheceu a legalidade das manifestações públicas em defesa da legalização das drogas.

A política sobre drogas con-siste no conjunto de concepções, convenções, práticas e equipamen-tos públicos ou em parcerias pú-blico-privadas direcionados a lidar com o uso de substâncias psico-ativas tornadas ilegais pelas con-venções internacionais e/ou pela legislação nacional.

A política pública brasileira sobre drogas é comandada pela SENAD, Secretaria Nacional de Políticas Sobre Drogas (criada pela medida provisória nº 1669, de junho

1998, e posteriormente transferida para a estrutura do Ministério da Justiça pelo Decreto nº 7.426, de 7 de janeiro de 2011), assim como pelo Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas - CONAD - e pela gestão do Fundo Nacional Antidrogas – FUNAD.

Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), droga é toda a substância que, introdu-zida no organismo vivo, modifica seu funcionamento. Esta definição engloba substâncias ditas lícitas e

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substâncias ilícitas. Dentre as dro-gas, são considerados medicamen-tos aquelas que possuem eficácia terapêutica reconhecida.

Ainda segundo a OMS, depen-dência é um estado psíquico ou físico, caracterizado por comporta-mentos e respostas compulsivas de uso da droga, de forma contínua ou periódica, em busca de efeitos físi-cos ou psíquicos e/ou para evitar o desconforto da sua abstinência.

Existem diferentes correntes de aporte ao tema, dentre elas destacam-se a proibicionista e a antiproibicionista.

Com origem na moralidade de grupos religiosos, o proibicio-nismo inicia-se com a busca pelo fim do consumo de certos entorpe-centes, a partir da proibição pela lei penal. O uso de drogas, entendido como desvio de conduta, passa a ser combatido pelo Estado através das leis, criminalizando usuários e comerciantes, marginalizando os usos das substâncias consideradas ilegais. Assim, recursos humanos e materiais são mobilizados na tentativa de “purificar” a socie-dade de uma prática milenar.

Não bastasse a inexistência de argumentos sólidos a favor do proibicionismo, ele tem sido o responsável por uma verdadeira guerra cotidiana. Com o objetivo de exterminar as drogas, as polí-cias são cada vez mais e melhor armadas, funcionando como ver-

dadeiros exércitos contra usuários e comerciantes. O resultado ao longo dos anos não aponta para o fim do uso e do comércio de dro-gas, mas sim para o extermínio de jovens e pobres, quando não são presos e engrossam a enorme população carcerária.

A partir do completo fracasso da guerra às drogas e da certeza de que cada indivíduo é livre para fazer suas próprias escolhas sobre seu corpo e consciência, o antiproibicionismo surge como contraponto ao discurso moralista da proibição. Na tentativa de frear o número elevadíssimo de mortos e encarcerados por conta do proi-bicionismo, uma das alternativas é desmistificar a relação pessoal com as drogas. Nesse sentido, a política de redução de danos tem um papel fundamental no empo-deramento individual sobre os efeitos gerados pelo uso de cada substância, diferenciando situ-ações de uso e abuso de drogas, de uso seguro ou de risco, mas sempre pautando a liberdade do indivíduo sobre suas escolhas.

Dessa maneira, diferentemente do proibicionismo, pela ótica anti-proibicionista não há interferência sobre essa decisão, que deve ser individual e autônoma, do mesmo modo que se entendem descabidas tantas mortes e prisões pautadas em um discurso moralista, que vem sendo superado.

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POLÍTICAS SOBRE DROGAS

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O uso de drogas pela huma-nidade é, segundo a arqueologia, pré-histórico e anterior às civiliza-ções que surgiram no Paleolítico Tardio e na Idade do Bronze. São encontrados usos medicinais e ceri-moniais também nos mais antigos registros escritos da humanidade. A mais antiga farmacopeia conhecida é a publicação chinesa Pen-Ts’ao Ching, de 2723 a.C. (ZUARDI, 2006).

As drogas foram um tema precioso na cultura helênica clássica. Os pharmakón não eram vistos como benignos ou malig-nos. As substâncias e seu modo do uso eram avaliados em fun-ção do propósito que se buscava alcançar e esse sim era passível de questionamento ético.

Os interditos ao uso de drogas estiveram sob a esfera da moral religiosa e até o fim da Idade Moderna raramente eram assunto de legislação do poder temporal. As grandes navegações possibi-litaram que as nações europeias entrassem em contato com uma imensa quantidade de substâncias psicoativas e as integrassem em seus interesses comerciais. A mer-cantilização em larga escala das substâncias retiraram as drogas de seus contextos culturais e as trans-formaram em bens de consumo compulsivo, portanto, mercadorias extremamente lucrativas.

Em meados do século XIX, o império britânico utilizava o

porto de Cantão para adquirir produtos chineses de alto valor comercial na Europa e pagava por eles com ópio adquirido na Índia. O uso da droga como moeda de pagamento derrubava o valor da prata e o governo chinês proibiu e confiscou estoques britânicos de ópio no país. O império britânico reagiu usando sua força militar e, assim, obrigou os chineses a con-sumirem ópio em 1860.

Não havia um debate público sobre drogas até o final do século XIX. Foi como resultado do advento do positivismo, do cientificismo, do racionalismo, do evolucio-nismo, da eugenia, e das teses de Lombroso. Naquele momento, o saber médico se impôs como discurso de verdade, sendo requi-sitado nos tribunais para atestar a sanidade dos acusados, definindo a possibilidade de lhes atribuir ou não responsabilidade por seus atos e, portanto, sua culpa. Essa preponderância do saber médico no controle do Estado sobre os cor-pos da população tem o nome de medicalização da vida.

Surgiu, também nesse perí-odo, a figura do criminoso como um tipo natural, com uma trajetó-ria pré-definida, de uma natureza individual anômala. Com as pri-sões e a seletividade do sistema penal, focado nas classes popula-res urbanas, o processo histórico de construção do criminoso como

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um “tipo social” constitui aquilo que chamamos de criminalização.

Como resultado dos processos de medicalização e criminalização no debate sobre drogas, a Liga das Nações (predecessora da ONU) realizou, em 23 de janeiro de 1912, a Convenção Internacional do Ópio, em Haia, na Holanda. O congresso (e a convenção assi-nada a partir dele) debruçou-se principalmente sobre as molécu-las de princípios ativos isolados de seus extratos naturais, como a morfina, a heroína e a cocaína. A proposta de atuação seguia o modelo repressivo proibicionista.

Em 1920, nos EUA, começou a vigorar a legislação de proibi-ção ao álcool, conhecida como “lei seca”, que durou até 1933. Esse período atestou a incapaci-dade da proibição em cumprir seu objetivo de eliminar a produ-ção, o comércio e o consumo das drogas tornadas ilegais. Ficaram evidentes o efeito corruptor sobre os agentes do Estado e o fortale-cimento das organizações que atuam ao arrepio da lei.

O fracasso retumbante da “Lei seca” não resultou na des-moralização do modelo proi-bicionista. Na verdade, todo o aparato público voltado à repres-são ao álcool foi redirecionado, ao fim da “lei seca”, para a re-pressão ao uso da cannabis e dos grupos sociais a ela relacionados,

mais notadamente da população de imigrantes mexicanos.

O Brasil foi pioneiro em legisla-ções de proibição à cannabis quando, em 1830, a Câmara Municipal do Rio de Janeiro, por meio do Código de Posturas Municipais, criou res-trições ao comércio e ao consumo do “pito do pango”.

Atualmente, vigoram as con-venções da Organização das Nações Unidas (ONU), notada-mente a Convenção Única sobre Estupefacientes de 1961 (emen-dada pelo Protocolo de 1972), o Convênio sobre substâncias Psicotrópicas de 1971 e a Con-venção contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e Substâncias Psicotrópicas de 1988.

Durante os anos da Ditadura Militar no Brasil, os movimentos da saúde começaram a se organizar em torno do que ficou conhecido como Reforma Sanitária. Essa expressão refere-se ao conjunto de ideias que seguiam no sentido de transformação da forma de se pensar saúde. Esse movimento sanitarista iniciou-se no começo dos anos 70 e seguiu fazendo dis-cussões políticas e desenvolvendo teses. Um grande marco dessas discussões foi a 8ª Conferência Nacional de Saúde, que contou com a presença de 4.000 pessoas e pro-duziu um relatório final, que ainda hoje é fundamental para quem quer se aproximar do tema do SUS.

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POLÍTICAS SOBRE DROGAS

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As décadas onde foi gestionada a Reforma Sanitária também foram anos de intensa luta e organização da população brasileira. O processo de resistência ao regime ditatorial influenciou tanto um levante de massas que, quando o regime caiu, manteve acesa a luta pela democra-cia. Desse processo, resultou-se a construção da Constituição de 88, que vigora até hoje, e que contém em seus textos diversos avanços da classe trabalhadora em direção a um governo que garantisse direitos básicos à população. Nessa cons-tituição foi afirmado o direito de acesso universal à saúde.

Durante os dois anos seguin-tes, foi construído o projeto de lei que viria a ser conhecido, em 19 de setembro de 1990, como a lei 8080, a qual institui o Sistema Único de Saúde - o SUS. Esse modelo de atenção à saúde foi revolucionada em diversos sen-tidos. A atenção dos serviços passaria a se dar de maneira ter-ritorial, ou seja, respeitando a necessidade de atenção à popu-lação em seus locais de moradia, e respeitando os costumes e a cultura local. Além disso, o SUS organizou os diferentes níveis de atenção, desde a atenção básica até a atenção hospitalar. Mas, além de organizar os processos e o fluxo dentro dos serviços de saúde e de garantir que todos pos-sam ter acesso ao serviço, o SUS

foi mais longe na proposição do que significa ter saúde. As ações de saúde passaram a ser transdis-ciplinares e a pensar a saúde da população como um conceito que vai para além do saber médico. Passa-se a pensar a saúde como uma ação integrada entre educa-ção, cultural, economia etc.

Dentro desse mesmo pro-cesso de movimentação da saúde, os trabalhadores de saúde mental começaram a fazer o seu movi-mento. Essa separação deu-se tanto com a separação física dos locais de trabalho - a saúde mental ainda ficava restrita aos manicômios - quanto com as especificidades de reivindicações da área de saúde mental. Apesar das necessidades táticas da época, devemos nos questionar ainda hoje se realmente é saudável essa separação da saúde mental com a saúde como um todo.

O movimento da luta antima-nicomial, como ficou conhecido mais tarde, organizou-se primeiro em torno dos trabalhadores e tra-balhadoras que estavam nos mani-cômios e surgiu em 1987, durante o Encontro de Trabalhadores da Saúde Mental. Com o lema “Por uma sociedade sem manicômios”, o movimento foi às ruas e continuou crescendo nos anos seguintes. Ele deixou de ser um movimento só de trabalhadores, quando incorporou os usuários dos serviços e os fami-liares. A discussão foi avançando

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na sociedade, conforme o movi-mento foi sendo bem sucedido em denunciar os diversos absurdos contra os direitos humanos que eram cometidos nos manicômios. Em 2001, após um longo pro-cesso de tramitação no Congresso Nacional, foi aprovada a lei 10.216, a lei da Reforma Psiquiátrica.

Essa lei trouxe um novo olhar sobre a saúde mental. Ela trazia como sua pedra fundamental a progressiva extinção dos mani-cômios e a criação de uma rede substitutiva aberta e de base terri-torial. A lei é pequena, pouco mais de uma página, mas ela abre as portas para todo um mundo novo. Hoje, 15 anos depois de sua apro-vação, os manicômios ainda não foram completamente extintos, mas a maior parte já. Nesses ser-viços substitutivos, ao longo dessa última década, foram sendo expe-rimentadas diversas tentativas e formas de cuidar. Isso resultou numa produção teórica sobre o tema da loucura muito rica e potente. Porém, a luta antimanico-mial ainda segue com o desafio de romper as barreiras que separam, não mais fisicamente, os loucos dos ditos “normais”.

Apesar dos manicômios esta-rem sendo gradualmente fechados, hoje nos deparamos com um retro-cesso exatamente no que se refere à política de drogas. Tem sido viven-ciado nos últimos anos, no Brasil,

o aparecimento das Comunidades Terapêuticas como política pública de cuidado de usuários de drogas. Esses espaços de “acolhimento a dependentes químicos” foram ins-pecionados pelo Conselho Federal de Psicologia e por outras institui-ções de defesa dos direitos humanos e os resultados foram os piores. As diversas violações de direitos humanos fundamentais e a orienta-ção religiosa desses serviços fazem deles analogias dos manicômios.

Em oposição a esse pensa-mento, onde a abstinência é ne-cessária para qualquer tipo de tratamento do problema de dro-gas, foram desenvolvidas outras experiências. Na Holanda, em 1984, usuários de heroína começa-ram a reivindicar o direito de ter acesso a seringas descartáveis para minimizar os riscos de contamina-ção da AIDS. Essa experiência re-plicou-se em outros países e ficou conhecida como redução de danos. Redução de danos é uma ética e um conjunto de práticas para abor-dar o uso de drogas numa pers-pectiva menos preconceituosa. O objetivo é claro: reduzir os danos que podem estar associados ao consumo de drogas da população sem tornar uma imposição a absti-nência do uso de drogas.

Apesar dessa orientação geral, a prática de redução de danos se desenvolveu de formas diferentes em cada local onde foi aplicada.

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Aqui no Brasil, a experiência histó-rica mais marcante foi a de Santos, em que os agentes redutores de danos foram contra várias barreiras e desenvolveram uma experiência muito potente de cuidado. Hoje, redução de danos pode ser com-preendida até no sentido de que a proibição das drogas se configura como o maior dano à saúde do usu-ário. Mas a melhor definição ainda é da redução como uma ética do cuidado ao usuário de drogas.

A orientação proibicionista da política de drogas se reflete tam-bém no modelo de educação que propomos às crianças e aos ado-lescentes. O direito à educação é garantido pela Constituição Federal e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. Todavia, a reboque da atual lei de drogas, o que observa-mos é uma educação verticalizada. Ao contrário da educação para autonomia, que propõe um diálogo entre educador e educando, o que temos é a orientação direta para o não uso de drogas, sem qualquer reflexão ou espaço para o debate. Definido como “correta”, a lógica proibicionista mitiga o potencial de reflexão dos jovens sobre suas vidas e a política de drogas adotada.

O ECA estabelece que o menor que infringe a Lei de dro-gas comete ato infracional, e não crime, estando sujeito a medidas socioeducativas, as quais serão

aplicadas pelo juiz competente. Assim, o menor infrator pode sofrer desde advertência, prestação de serviço e liberdade assistida até a internação em estabelecimento dito educacional. Nesse sentido, uma política de drogas proibicio-nista, estigmatizante e baseada em intensa repressão termina por justificar a grande incidência de internação de adolescentes que cometem atos infracionais relacio-nados à lei 11.343/06.

No ano de 2006, o Congresso Nacional aprovou uma alteração na lei de drogas do nosso país. Até então, era crime o ato de portar maconha e qualquer um que fosse pego era levado como cúmplice. Com a nova lei, foram estipulados os critérios subjetivos de distinção entre usuário e traficante. Apesar de poder ser comemorada em um primeiro momento, as estatísticas hoje nos mostram o quão desas-trosa essa lei se tornou. Houve um aumento de 400% da popu-lação carcerária, nos últimos 20 anos2, em sua maioria formada por jovens negros e pobres. Esse aumento deu-se em grande parte pelo crime de tráfico de drogas e a maioria dos presos foi flagrada com uma quantidade inferior a 100g de maconha.

Hoje, o mundo já começa a rever sua posição em relação à proibição das drogas. O Uruguai

2 Ministério da Justiça, 2016.

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legalizou a maconha, com uma proposta de produção estatal de maconha. Diversos países, como Israel, Holanda e Espanha, permi-tem o uso medicinal e os estudos com a maconha. O uso recreativo está legalizado em alguns esta-dos dos Estados Unidos. Apesar de, por um lado, a conjuntura estar avançando para a legaliza-ção, ainda há muitos dissensos. Em sua última reunião sobre dro-gas, a UNGASS (United Nations Drug Control)3, a ONU se viu diante de um impasse. Enquanto países legalizaram a maconha no último período, outros exigiram a permanência da pena de morte para o crime de tráfico. Alguns países devem começar agora gra-dualmente a abrir suas políticas de drogas a novas perspectivas, menos preconceituosas e mais pautadas pelos direitos humanos.

REFERÊNCIA

BRASIL. População Carcerária brasileira chega a mais de 622 mil detentos, 2016. Disponível em http://www.justica.gov.br/radio/mj-divulga-novo-relatorio-sobre--populacao-carceraria-brasileira. Acesso 20 em julho de 2016.

ZUARDI, Antônio Waldo. História da Cannabis como medi-camento: uma revisão. Revista Brasileira de Psiquiatria, São Paulo, vol. 28, nº 2, jun. de 2006. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttex-t&pid=S1516-44462006000200015.

3 Controle de Drogas das Nações Unidas

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PRIVAÇÃO DE LIBERDADE

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PRIVAÇÃO DE LIBERDADE

Camila Meireles1

Livia Vidal2

Paula Vargens3

Thaís Vargas Menezes4

1 Psicóloga Degase. Mestranda em Psicologia PUC-Rio.2 Pedagoga Degase. Mestranda em Educação UFF.3 Pedagoga Degase. Mestre em Educação, UERJ.4 Psicóloga Degase. Psicóloga Secretaria de Serviço Social Prefeitura de Itaguaí. Mestre em Psicologia UFRJ.

O processo de privação de li-berdade dentro do sistema socio-educativo ocorre de três formas distintas: pela triagem e recepção (ver verbete CENSE GCA); nas unidades de internação provisó-ria; e nas unidades de internação. Cada uma destas tem uma especi-ficidade própria, que demanda um trabalho diferenciado da equipe técnica e dos agentes socioeducati-vos. O tempo de permanência dos adolescentes nestes diferentes mo-mentos de privação de liberdade influi nas relações estabelecidas. A privação de liberdade nas uni-dades de triagem e provisórias são marcadas pela alta rotatividade e trabalham com adolescentes que não têm medida determinada. Por sua vez, a internação garante um tempo de permanência maior dos adolescentes, sendo possível esta-

belecer outro tipo de vínculo com a equipe técnica e os agentes.

O modo de organização das unidades considera as especifi-cidades do público atendido, lo-calização geográfica e a própria infraestrutura. Em comum, nas unidades de internação provisória e internação, considera-se também a presença de um colégio esta-dual dentro das unidades; ativida-des profissionalizantes, de cultura, esporte e lazer; além da garantia da visita dos familiares aos ado-lescentes, ao menos uma vez por semana. Nestas visitas, é possibili-tada ao adolescente a manutenção (ou resgate) do vínculo familiar, além da possibilidade da família levar para os adolescentes os per-tences (objetos de uso pessoal).

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Internação Provisória

O período da internação pro-visória corresponde ao tempo en-tre a audiência de apresentação que pode determinar a interna-ção provisória do adolescente e a determinação da medida socio-educativa que o mesmo deverá cumprir. Segundo o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), a de-terminação da internação provisó-ria ocorreria apenas nos casos em que seria possível a aplicação da medida de internação, observando sua excepcionalidade, e conside-rando os casos em que o processo exigisse um procedimento espe-cífico para apuração de materia-lidade e autoria. Esta etapa deve durar até 45 dias e pode resultar na aplicação de qualquer medida socioeducativa ou mesmo na ex-tinção do processo. Neste período, o jovem fica privado de sua liber-dade ainda sem estar cumprindo nenhuma medida, ou seja, sem que tenha sido comprovada a au-toria do ato. Dentro desse prazo, poderão ocorrer tantas audiên-cias quantas forem necessárias ao esclarecimento dos fatos que en-volvem o ato infracional em julga-mento avaliando se ele cometeu ou não ato infracional e, em caso po-sitivo, determina a medida socioe-ducativa a ser cumprida.

O DEGASE possui atualmente 6 unidades que abrigam adoles-

centes em internação provisória espalhadas pelo estado. A princi-pal unidade de internação provi-sória do Departamento é o extinto Instituto Padre Severino, renome-ado como CENSE Dom Bosco, que é exclusivamente de internação provisória e, portanto, tem a maior capacidade, atendendo adolescen-tes do sexo masculino provenien-tes de todo o território estadual. O Instituto Padre Severino foi inaugurado em 1954, ainda sob a égide do Sistema de Atendimento ao Menor, estabelecendo-se como a principal unidade para atendi-mento aos adolescentes autores de ato infracional. Ainda hoje é a unidade de referência do sistema socioeducativo do Rio de Janeiro.

Outra unidade histórica é a Escola João Luiz Alves, que tanto acautela os adolescentes em inter-nação provisória, como executa a medida de internação, separan-do-os em dois prédios. No caso da Internação Provisória desta unidade, são atendidos priorita-riamente os adolescentes do sexo masculino, de até 15 anos, prove-nientes da comarca da capital.

Assim como na Escola João Luiz Alves, nas unidades de Campos, Volta Redonda e Belford Roxo, há uma parte destinada es-pecificamente para o atendimento da internação provisória e outra para o cumprimento da medida de internação. Nestas unidades, con-

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PRIVAÇÃO DE LIBERDADE

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tudo, a prioridade não se dá em decorrência da idade, mas sim do local da prática do ato infracional. Vale observar, que diante do alto número de apreensões registradas nos últimos anos, a demanda por internação provisória é significati-vamente mais alta do que o número de vagas ofertadas, de onde decorre que nem sempre os critérios, geo-gráfico e de idade, são respeitados, sendo os adolescentes transferidos para o Cense Dom Bosco.

A internação provisória femi-nina é realizada no antigo Educan-dário Santos Dumont, renomeado para Centro de Socioeducação Professor Antônio Carlos Go-mes da Costa, ou CENSE PACGC, atualmente a única unidade que executa as medidas de privação de liberdade de adolescentes do sexo feminino, o que a faz conju-gar tanto a internação provisória, quanto as medidas de internação, além de ser a porta de entrada no Sistema para todas as adolescentes.

Pela característica diferen-ciada da internação provisória em relação ao tempo de permanên-cia dos adolescentes e pela situa-ção processual, observamos uma grande rotatividade. Vale obser-var que há uma diferença entre os procedimentos da Capital e das Comarcas, de modo que a dinâ-mica estabelecida naquela faz com que os adolescentes apreendidos na Capital permaneçam um tempo

menor em cumprimento da inter-nação provisória, não sendo co-mum a permanência por 45 dias.

Por sua vez, as peculiaridades de cada Comarca proporcionam um tempo maior na provisória. Considerando as diferenças, em média permanecem duas semanas nas unidades, os adolescentes de processo da Capital, enquanto os adolescentes vindos de Comarca do interior costumam permane-cer por um período maior. Com isso, as unidades de internação provisória geralmente gozam de menor oferta de atividades peda-gógicas em comparação àquelas ofertadas para os que cumprem a medida de internação. No que diz respeito à escolarização, os jovens frequentam turmas multisseriadas nos Colégios Estaduais em funcio-namento dentro das unidades, de matrícula obrigatória. Ressalvando a particularidade de cada unidade, os adolescentes têm ainda acesso à assistência religiosa e algumas ofi-cinas oferecidas por parceiros do DEGASE, como teatro, horta, e ati-vidades esportivas, dentre outras.

Em relação à equipe técnica, o trabalho tem especial importân-cia por ser o primeiro momento em que é possível estabelecer algum vínculo com o adolescente, iniciando uma reflexão sobre o ato. Seria ainda um momento importante de buscar contato com a rede de garantia de direitos

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(SUAS, SUS, Conselhos Tutelares, etc.) no território de moradia do adolescente, considerando que todo trabalho realizado com o adoles-cente em quaisquer das medidas deve estar voltado para seu retorno ao convívio social e ao acesso à rede de proteção e garantia de direitos. No caso da Internação Provisória, em que, na prática, grande parte dos adolescentes sairão para cum-primento de medidas em meio aberto (liberdade assistida e pres-tação de serviço à comunidade), a articulação com outros atores do sistema de garantia de direitos se faz ainda mais necessária.

O atendimento com as famí-lias, orientando-as, contatando as famílias que desconhecem a apre-ensão do adolescente, buscando um trabalho de fortalecimento ou manutenção dos vínculos é outra característica muito marcante do trabalho da equipe na internação provisória. Todos os adolescentes passam por atendimento de saúde, em uma equipe composta por médicos, enfermeiros e dentistas.

As unidades contam com Equipes de Referência em Saúde Mental, composta minimamente, por psiquiatra e psicóloga, que buscam dar apoio e avaliar os ado-lescentes com questões de uso/abuso de drogas ou que apresentem necessidade de atendimento psiqui-átrico, sinalizando os casos em que precisam de encaminhamento para

tratamento na rede. Essas equipes desenvolvem trabalhos específi-cos de acordo com a realidade e a demanda de cada unidade.

Apesar de todas essas possi-bilidades de trabalho, a relação com o judiciário e a superlotação das unidades compromete a qua-lidade do trabalho e as possibilida-des de atuação. Assim, os jovens são atendidos por profissionais da equipe técnica e essa produz rela-tório de apresentação, com a histó-ria de vida do jovem, sua trajetória escolar, composição familiar e rea-lidade socioeconômica, com vistas a subsidiar o judiciário. A atuação das equipes técnicas deve se dar de forma transdisciplinar, onde todos os saberes possam voltar o olhar para o adolescente, sua famí-lia e uma análise da conjuntura so-cioeconômica, histórica e cultural.

É importante que o adoles-cente seja convidado a refletir sobre as relações, que possa compreen-der o sentido da medida socioe-ducativa, contribuindo para outro modo de inserção social. A carên-cia de profissionais, entretanto, aparece em equipes incompletas, além do alto número de adolescen-tes atendidos pelos profissionais, reduzindo a frequência de ativida-des e espaços de contato educati-vos. A falta de compreensão sobre o trabalho multiprofissional tam-bém limita as possibilidades de in-tervenção e de construção.

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Medida Socioeducativa de Internação

De acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente, a me-dida socioeducativa mais grave, é considerada a medida de inter-nação, podendo durar de 6 meses ao prazo máximo de 3 anos. Cabe observar ainda que nos casos de descumprimento reiterado e injus-tificável da medida anteriormente imposta, pode ser aplicada a cha-mada “internação sansão”, com prazo de até 3 meses. A medida socioeducativa de internação de-verá ser cumprida em “local dis-tinto daquele destinado ao abrigo, obedecida a rigorosa separação por critérios de idade, compleição física e gravidade da infração” (ECA, 1990: Art. 123). Vale espe-cificar que internação dentro do Sistema Socioeducativo corres-ponde à privação de liberdade por cometimento de ato infracional.

A internação deve seguir os princípios de brevidade, excep-cionalidade e respeito à condição peculiar da pessoa em desenvol-vimento, não apresentando tempo pré-determinado de duração. As-sim, durante o cumprimento da medida, o judiciário a reavalia, a cada 6 meses, considerando o his-tórico infracional do adolescente, a natureza do ato infracional pelo qual ele responde e conta com os relatórios produzidos pela equipe

técnica multidisciplinar para am-pliar a percepção sobre o caso, e através destes tem conhecimento do trabalho realizado junto ao ado-lescente durante a medida.

Os relatórios são enviados ao judiciário a cada seis meses, de acordo com as prerrogativas le-gais de reavaliação de medida. Acompanha o relatório técnico o Plano Individual de Atendimento (ver verbete PIA), uma ferramenta interdisciplinar de avaliação do desenvolvimento do adolescente. Nesta reavaliações pode o adoles-cente receber uma determinação de progressão, remissão ou ma-nutenção de medida.

Como sabemos, é a medida mais grave e sendo assim deve ser aplicada excepcionalmente, ou seja, em consequência da gravidade do ato infracional cometido ou em função de recorrentes reincidên-cias, o jovem ter cometido diversos atos e/ ou descumprir medidas anteriormente a ele atribuídas.

No caso da internação, o jovem permanece na unidade durante todo o período de duração da me-dida, saindo excepcionalmente da unidade para atividades externas, para audiência ou algumas situa-ções pontuais. A rotina dos adoles-centes fica marcada pela fronteira entre a educação e a segurança. Tendo em vista a peculiaridade do adolescente, é garantido a todos o acesso à escolarização, a cursos

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profissionalizantes e oficinas, além de atividades de esporte e cultura.

A avaliação da medida so-cioeducativa é baseada, de modo significativo, na participação e de-sempenho dos jovens nestas ativida-des. Assim, dentro das unidades de internação que compõe o DEGASE existem Colégios Estaduais, sob co-ordenação da Secretaria de Estado de Educação pela DIESP (Diretoria Especial de Unidades Escolares Pri-sionais e Socioeducativas) e parce-rias estabelecidas pela Coordenação de Educação, Cultura, Esporte e La-zer (CECEL - Novo DEGASE).

O adolescente é acompanhado por uma equipe técnica mínima, composta por profissionais da psi-cologia, pedagogia e serviço social podendo ser enriquecida com outros profissionais de acordo com o projeto de intervenção proposto pelo Projeto Político Pedagógico da unidade. A equipe de saúde também está presente nestas uni-dades atuando com prevenção e acompanhamento de saúde dos adolescentes internados.

As equipes de saúde mental acompanham adolescentes indica-dos pela equipe técnica e ou pelo judiciário com uma proposta de acompanhamento diferenciado da equipe técnica, também conhecida como equipe de medida, já que não possui o compromisso da pro-dução de relatório técnico.

Os adolescentes recebem ainda atendimento jurídico para defesa técnica, estando presente semanalmente, nas unidades, uma equipe de defensoria pública, além de gozar de atendimento religioso.

Atualmente, no Novo DEGASE, existem seis unidades de internação:

• CENSE Professor Antônio Carlos Gomes da Costa (PACGC) (antigo Educandário Santos Dummont). Localizada na Ilha do Governador. A unidade é a única do Estado que realiza o atendi-mento feminino e foi inaugurada ainda na época da Funabem (sig-nificado?). Nela se localiza a Escola Estadual Luiza Mahin.

• Escola João Luiz Alves (EJLA). Localizada na Ilha do Governador, Rio de Janeiro, atende prioritariamente adolescentes de até 16 anos, de diferentes regiões do Estado, notadamente da Capital e Região Metropolitana II (Niterói, São Gonçalo, Itaboraí, Magé). A unidade foi inaugurada em 1926, como escola de reforma, já sob a lógica menorista que iria se estabe-lecer com o Código Mello Mattos. Os adolescentes são atendidos pela Escola Estadual Mestre Candeia.

• Educandário Santo Expe-dito (ESE). Localizado próximo Complexo Penitenciário de Geri-cinó, teve seu funcionamento ini-ciado em 1997, após o episódio de uma grande rebelião na EJLA. Os

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adolescentes foram encaminha-dos para a unidade penitenciária desativada Muniz Sodré, tempo-rariamente para que as instala-ções da EJLA fossem refeitas. Ao longo dos anos, tem sofrido adap-tações em sua estrutura, embora sua arquitetura permaneça mar-cada pela lógica prisional tendo se tornado uma unidade socioe-ducativa. Na unidade, encontra-se a Escola Estadual Gildo Cândido da Silva. Atende prioritariamente os adolescentes e jovens com 16 anos ou mais em cumprimento de medida de internação.

• Centro de Atendimento Integrado (CAI - Belford Roxo). A unidade foi inaugurada em 1998, inicialmente com capacidade para 80 adolescentes, mas após a reforma de 2008 a unidade passou a ter capacidade para 124 adoles-centes. Atende prioritariamente a Baixada Fluminense, tendo sido criada visando a descentralização das unidades. Dentro da uni-dade localiza-se o C. E. Jornalista Barbosa Lima Sobrinho.

• CENSE Profª Marlene Henrique Alves (Campos) e CENSE Irmã Assunción de La Gándara Ustara (Volta Redonda) duas unidade inauguradas em 2013, construídas de acordo com as nor-mas estabelecidas pelo SINASE, vêm responder a necessidade de proximidade com o local de moradia dos jovens. Fruto de um processo de

crescimento institucional a cons-truções dessas unidades favorece a manutenção dos vínculos familia-res, um investimento que ampliou a capacidade do atendimento socio-educativo para a medida de inter-nação nos últimos anos. Realizam o atendimento de triagem, interna-ção provisória e internação, e nessas unidades também existe a oferta es-colar (C. E. Rui Barbosa e C.E Irmã Therezinha de Barros, respectiva-mente), além de cursos e oficinas com parceiros locais.

Na tabela abaixo trazemos um resumo das unidades de privação de liberdade e a disponibilidade de vagas. Conforme é possível observar, há um processo de des-centralização das unidades, de modo a favorecer a participação e o acompanhamento das famílias ao longo do período de privação de liberdade do adolescente.

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Ao final da produção deste verbete, em decorrência da super-lotação, as unidades de internação provisória da EJLA e do CAI foram fechadas, para dar espaço à inter-nação. Cumpre observar que no 1º semestre de 2016 havia sido fechado o CENSE Ilha, unidade também de atendimento de internação provisó-ria, destinada a atender adolescentes de primeira passagem, com atos sem violência, dando o lugar ao CRIAAD Ilha. Deste modo, houve um retorno à centralização do aten-

dimento da internação provisória no CENSE Dom Bosco.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Lei Federal nº 8.069/1990. Estatuto da Criança e do Adolescente. Brasília, 1990.

BRASIL. Lei Federal nº 12.594/2012. Lei do SINASE. Brasília, 2012.

TABELA UNIDADES E VAGAS DAS UNIDADES DE PRIVAÇÃO DE LI-BERDADE - DEGASE

UNIDADECAPACIDADE DE ATENDI-

MENTO

CENSE GCA Porta de Entrada Masc. 64 adolescentes

PACGC (FEM)Internação Provisória e Por-

ta de entrada Fem. 20 adolescentes

Internação 24 adolescentesCENSE Dom Bosco Internação Provisória 233 adolescentes

EJLAInternação Provisória 21 adolescentes

Internação 112 adolescentesESE Internação 232 adolescentes

CAI - Belford RoxoInternação Provisória 19 adolescentes

Internação 124 adolescentes

CENSE Profª Marlene Henrique Alves (Campos)

Internação Provisória 20 adolescentesInternação 60 adolescentes

CENSE Irmã Assunción de La Gándara Ustara

(Volta Redonda)

Internação Provisória 20 adolescentes

Internação 60 adolescentes

Fonte: Dados DEGASE / CEMSE. Agosto de 2016.

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RAÇA

R

RRAÇA

Andreia Gomes Cruz1

1 Doutora em Educação pela Universidade Federal Fluminense (UFF), Mestre em Educação pela UFF, Graduada em Pedagogia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Professora do Curso de Pedagogia na Universidade Estácio de Sá (UNESA). Pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação Superior (NEPES) da UFF, atuando na linha de pesquisa de políticas públicas de educação superior. Integrou como bolsista de extensão e auxiliar de pesquisa no Programa Políticas da Cor na Educação (PPCOR) do Laboratório de Políticas Públicas (LPP) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

O debate sobre ações afirma-tivas nas universidades brasileiras trouxe à tona, inevitavelmente, fe-ridas ainda não cicatrizadas sobre a questão de raça no Brasil. Nesse sentido, é necessário ampliar o contexto das relações raciais no plano internacional para mais bem compreendermos essa problemá-tica, pois, apesar dos distintos processos, existem algumas singu-laridades nesse campo, principal-mente para aqueles que sofreram o impacto do processo colonial. Portanto, concordamos com Wolfe ao afirmar que “raça é endêmica à modernidade” (WOLFE, 2001 apud MEDEIROS, 2004, p.33).

Entretanto, o conceito de raça como o compreendemos hoje é

fruto do processo de expansão eu-ropeia iniciado ainda no século XV, período que marca os “desco-brimentos”, ou seja, um período em que ainda não encontraremos menções a “negros”, “brancos”, “amarelos” e sim a “gregos”, “cel-tas”, “hunos” etc. Essa distinção passa a existir somente no mo-mento da “descoberta” da América e do estabelecimento, pela Europa, de relações militares e comerciais regulares com a África e a Ásia. A partir de então, os europeus “[...] começarão a estabelecer distinções sistemáticas entre eles próprios e os povos que lhes eram fisicamente di-ferentes” (MEDEIROS, 2004, p.33).

É importante destacar que essa concepção moderna de raça

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prevalece somente no senso co-mum e não mais na ciência. Ainda dentro dessa discussão, Guimarães (2013, p.2-3) vai apon-tar que “a ideia de raça, que, na verdade, é uma construção pseu-docientífica, política, mobilizada à época da institucionalização da sociologia para a consolidação dos impérios e sua expansão ul-tramarina, foi rejeitada sistemati-camente pela teoria sociológica”.

Munanga (2004) vai apontar que, no século XVIII, a cor da pele foi considerada um divisor de águas entre as chamadas raças, sendo por isso que a espécie humana ficou dividida em três raças estanques: a raça branca, a negra e a amarela; porém, devemos atentar para o fato de que a cor da pele é definida pela concentração de melanina, ou seja, quanto maior ou menor for essa concentração, esta vai ser a medida do que vai definir a cor dos cabelos, dos olhos e da pele.

Assim, a palavra raça etimolo-gicamente deriva do italiano razza (séc. XV) que, por sua vez, vem do latim ratio que significa causa, categoria, espécie. Munanga (2004) expõe que o conceito de raça foi uti-lizado primeiramente na área das Ciências Naturais, mais especifica-mente na Botânica e na Zoologia,

para a classificação de espécies da flora e da fauna. O dicionário Hou-aiss2 define que “Etnologicamente, a noção de raça é rejeitada por se considerar a proximidade cultu-ral de maior relevância do que o fator racial; certas culturas de raças diferentes estão muito mais próximas do que outras da mesma raça”. Assim, como a maioria dos conceitos, este também é neces-sário ser localizado na dimensão espaciotemporal.

No Brasil, o conceito de raça foi introduzido a partir de 1870, tendo sido tomado de empréstimo das ciências naturais, pois era necessária uma orientação cien-tífica sobre a cultura, ao mesmo tempo em que era importante um programa de desenvolvimento político para uma nação pós-escra-vista. Guimarães (2011) expõe que essa absorção do conceito de raça, como era utilizado pela biologia do século XIX, foi importante para a geração de 1870, pois explicava as diferenças culturais entre os povos e, consequentemente, os modos de subordinação com que foram in-corporados ao sistema mercantil global, em virtude da expansão e das conquistas europeias.

É importante apontar que a te-oria racial esteve atrelada a uma

2 Divisão tradicional e arbitrária dos grupos humanos, determinado pelo con-junto de caracteres físicos hereditários (cor da pele, formato da cabeça, tipo de cabelo etc.). Disponível em: <http://houaiss.uol.com.br/busca?palavra=ra%-25C3%25A7a>. Acesso em: fev.2015.

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RAÇA

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motivação imperialista, já que os cientistas, ao incorporarem a teoria de raças, tinham apenas uma mo-tivação política – a nova nação, ou seja, que seria o “resultado do entre-cruzamento entre três raças (a cau-casoide, a africana e a americana), mas que tal produto resultaria num povo homogêneo, de cultura la-tina” (GUIMARÃES, 2011, p.265). Ainda de acordo com esse pesqui-sador, tal processo ficou conhecido como embranquecimento que propa-gava a perspectiva de que, para o Brasil alcançar “um estágio mais elevado de progresso, seria neces-sário que, ao elemento humano na-cional, marcadamente negro, fosse adicionado o elemento europeu, branco” (THEODORO, 2009).

A ideologia do embranqueci-mento expõe a ideia de que o de-senvolvimento da nação brasileira, em grande parte, dependeria da qualidade e dos atributos gené-ticos da população, sendo forte-mente defendida pelos principais pesquisadores e pensadores nacio-nais no final do século XIX. Nesse sentido, Guimarães (2011, p.265) vai apontar que a ideologia do em-branquecimento e da mestiçagem foram utilizadas como verdadeiras políticas raciais, mesmo quando “o conceito de raça e as teorias que a utilizavam caíram em total des-crédito no mundo científico e inte-lectual”. Teodoro (2009), por outro lado, lembra que somente no pós-

-guerra a “problemática racial” deixa de ser utilizada como ins-trumento de atraso do país, sendo privilegiados como foco de análise os aspectos econômicos e, em es-pecial, as desigualdades presentes entre o centro e a periferia.

Outra questão importante relacionada ao conceito de raça, conforme aponta Gomes (2012, p.45), é que as pessoas vão rea-gindo de maneira diversa ao termo raça, uma vez que esse conceito serve para nomear ou identificar pessoas negras. Além disso, “a ‘raça’ nos remete ao racismo, aos ranços da escravidão e às imagens que construímos sobre ‘ser negro’ e ‘ser branco’ em nosso país”. Desse modo, é de fundamental impor-tância, ainda, problematizarmos e esclarecermos os embates em torno do conceito de raça em nossa socie-dade, uma vez que esse conceito nos aproxima da discriminação que negros sofrem ou, melhor dizendo, é o racismo que mais afeta as pes-soas negras em nosso meio.

Na realidade, isto ocorre por-que “raça” ainda é o termo que consegue dar a dimensão mais próxima da verdadeira discrimi-nação contra os negros, ou melhor, é a definição do racismo que mais afeta as pessoas negras da nossa sociedade. Entretanto, é impor-tante chamar atenção para o fato de que, quando falamos de raça, seja no Brasil ou no exterior, temos de

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compreender quem fala e quando fala, pois, quando o conceito é usado [...] “usam-no com uma nova interpretação, que se baseia na dimensão social e política do referido termo”. E, ainda, usam--no porque a discriminação racial e o racismo existentes na socie-dade brasileira se dão não apenas devido aos aspectos culturais dos representantes de diversos grupos etnorraciais, mas também “devido à relação que se faz na nossa socie-dade entre esses aspectos físicos observáveis na estética corporal” e os indivíduos pertencentes a tais grupos (GOMES, 2012, p.45).

Sendo assim, as discussões em torno do termo raça não estão fun-damentadas na ideia de raças su-periores ou inferiores conforme foi utilizado no século XIX, ou atrelado ao conceito biológico de raças hu-manas, cujo exemplo clássico desta utilização foi o caso do nazismo na Alemanha de Hitler. As discus-sões relacionadas ao termo raça na atualidade buscam uma nova in-terpretação que englobam aspec-tos sociais e políticos desse termo, usado, muitas vezes, para também justificar ideias separatistas de na-tureza político-geográficas.

Na década de 1950, Florestan Fernandes e Roger Bastiste par-ticiparam de uma pesquisa pro-movida pela UNESCO que tinha como objetivo compreender o su-posto “caráter democrático das re-

lações étnicas e raciais em nosso país”. Entretanto, Fernandes (1978, p.51-52) vai apontar que o “[...] o regime escravista não preparou o escravo (e, portanto, também não preparou o liberto) para agir ple-namente como ‘trabalhador livre’ ou como ‘empresário’”. Assim, a população negra acabou ocupando as posições mais subalternas da sociedade brasileira, uma vez que o trabalho livre não permitiu sua inserção em cargos da economia competitiva. Aprofundando suas críticas à sociedade brasileira clas-sista, Fernandes (Idem, p.20) expõe que “a sociedade brasileira largou o negro ao seu próprio destino, deitando sobre seus ombros a res-ponsabilidade de reeducar-se e se de transformar para corresponder aos novos padrões e ideais de ho-mem, criados pelo advento do tra-balho livre, do regime republicano e capitalista”. O racismo é, nesse sentido, um desses aspectos sociais que causa severos prejuízos em nossa sociedade, uma vez que “ele afirma-se através da sua própria negação” (GOMES, 2012, p.46).

A partir do que foi exposto aqui, afirmarmos que é de funda-mental importância refletir sobre o conceito de raça, principalmente sobre o que é ser negro em um país que nega a existência do racismo e do preconceito racial. E, também, sobre a necessidade de políticas e ações que permitam a negros,

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RAÇA

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brancos e a outros grupos étnicos que tenham acesso à educação, à moradia e a um trabalho digno. Diante disso, diante de tal reali-dade, precisamos nos reeducar a nós mesmos, renovando nossos ideais e nossa subjetividade.

REFERÊNCIAS

FERNANDES, Florestan. A integração do negro na socie-dade de classes. São Paulo: Ática, 1978, vol. 1 e 2.

GOMES, Nilma Lino. Alguns termos e conceitos presen-tes no debate sobre as relações raciais no Brasil: uma breve dis-cussão. Ação Educativa. 2012. Disponível em: <http://www.acao-educativa.org.br/fdh/wp-content/uploads/2012/10/Alguns-termos-e-conceitos-presentes-no-debate-sobre-Rela%C3%A7%C3%B5es-Raciais-no-Brasi l-uma-breve-discuss%C3%A3o.pdf> Acesso em 10 de fevereiro de 2014.

GUIMARÃES, Antonio Sérgio. Sociologia e Raça. Fala na mesa--redonda Raça e Etnicidade nas ciências sociais e na política da América Latina, XVI Congresso da Sociedade Brasileira de Socio-logia, Salvador, 13 de setembro de 2013. Disponível em: <http://www.fflch.usp.br/sociologia/asag/Sociolo-

gia%20e%20raca%2019032014.pdf> Acesso em 26 fevereiro de 2015.

GUIMARÃES, Antonio Sérgio. Raça, cor, cor da pele e etnia. Revista Cadernos de Campos. São Paulo, 2011, v.20, n.º 20, p.265-271. Dispo-nível em: <http://www.fflch.usp.br/ sociologia/asag/Raca%20cor%20cor%20da%20pele%20e%20etnia.pdf> Acesso em 26 fevereiro de 2015.

MEDEIROS, Carlos Alberto. Na lei e na raça: legislação e rela-ções raciais Brasil-Estados Unidos. Rio de Janeiro: DP&A, 2004.

MUNANGA, Kabengele. Uma abordagem conceitual das noções de raça, racismo, identi-dade e etnia. Cadernos PENESB (Programa de Educação sobre o Negro na Sociedade Brasileira). UFF, Rio de Janeiro, n.º 5, p.15-34, 2004. Disponível em: http://www.uff.br/penesb/images/ publicacoes/Penesb%205%20- %20Texto%20Kabenguele%20Munanga.pdf. Acesso em 26 fevereiro de 2015.

TEODORO, Mário. Questões do desenvolvimento. O desen-volvimento e a questão racial. In: Revista Desafios do desen-volvimento. Brasília: IPEA/Ed. Qualidade. Ano 6, edição 51, jun. 2009. Disponível em: http://www.ipea.gov.br/desafios/ index.php?op-t ion=com_content&view=arti-cle&id=2257:catid=28&Itemid=23. Acesso em 26 fevereiro de 2015.

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RESTRIÇÃO DE LIBERDADE

Carmelita Leal Ballado1

1 Socioeducadora - Formação em psicologia; Especialização em psicologia clíni-ca; Pós graduação em Analise Transacional. Diretora por 14 anos do CRIAAD Menina Ricardo de Albuquerque Atual assessora na Coordenação de Saúde

Com a promulgação da Constituição Federal em 1988, a posterior extinção da Fundação Nacional do Bem Estar do Menor - FUNABEM – regida pelo Código de Menores – observou-se “não ser possível defender sistemas con-centrados e segregados ou ainda impor aos órgãos oficiais respon-sabilidades exclusivas pelo des-tino de crianças e adolescentes, privadas nas suas origens, dos benefícios das políticas públicas” (Sardinha, 1987, p.3) acarretando em mudanças de referenciais e pa-radigmas com reflexos inclusive no trato da questão infracional.

Nessa perspectiva, ainda em 1988, dezesseis CRIAMs (Centro de Recursos Integrados de Atendimento ao Menor) foram inau-gurados e divididos entre a região metropolitana e interior do Estado do Rio de Janeiro, “como estratégia para projetos táticos, definição de programas e concepção operacio-nal, política e social de cada região”. Surge então o projeto de descentra-lização no atendimento a criança

e ao adolescente, como parte da Fundação Centro Brasileiro para a Infância e Adolescência (FCBIA), que era uma fundação pública fede-ral responsável pela execução da Política Nacional do Bem Estar do Menor (Sardinha, 1987, p.5).

No plano legal, essa substitui-ção concebeu uma opção pela inclu-são social do adolescente em conflito com a lei enquanto sujeito de direi-tos, e não mais um mero objeto de intervenção como anteriormente no Código de Menores. Neste sentido percebeu-se a necessidade premente de regularização do quadro funcio-nal, haja vista os recursos humanos dos CRIAMs basearem-se em pro-fissionais contratados por convênios firmados entre a FCBIA e mante-nedoras. Em 1993, com a estadua-lização da execução das Medidas Socioeducativas (MSE), e a extin-ção da FCBIA, titulou-se o DEGASE como responsável pelo sistema so-cioeducativo, promovendo-se o pri-meiro concurso público.

Em 1990, com a implantação do Estatuto da Criança e do Ado-

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RESTRIÇÃO DE LIBERDADE

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lescente (ECA) viu-se a necessi-dade da criação de novas Políticas de Atendimento Integral à Criança e ao Adolescente. O ECA, institu-ído pela Lei 8069 em 13 de Julho de 1990, regulamenta os direitos da criança e do adolescente, inspirado pelas diretrizes fornecidas pela Constituição Federal de 1988, inter-nalizando uma série de normativas internacionais – Declaração dos Di-reitos da Criança em 1959, Regras de Beijing em 1985, Diretrizes das Nações Unidas para Prevenção da Delinquência Juvenil, normas estas que instrumentalizavam uma nova concepção sobre o cuidar destas crianças e adolescentes, contrapon-do-se historicamente a um passado de controle e reclusão, e uma tra-dição assistencial repressiva prin-cipalmente em se tratando dos adolescentes em conflito com a lei. Em suma, o ECA representa um di-visor de águas na história da infân-cia e da adolescência brasileira ao substituir a lógica da Doutrina da Situação Irregular pela Doutrina da Proteção Integral.

Até 1996 todos os CRIAMs atendiam ambos os sexos, poste-riormente esse padrão foi sendo substituído devido à crescente afluência de jovens do sexo mas-culino, impondo demandas de atendimento diferenciado para meninos e meninas.

Todos os CRIAMs se caracteri-zavam por apresentar uma arquite-

tura e capacidade de atendimento padronizada para trinta e dois ado-lescentes, constituídos por uma quadra esportiva, um pátio interno e cinco anexos: um compõe a ofi-cina; dois outros anexos dividem--se em dois alojamentos, A e B com quatro quartos contendo quatro beliches cada, banheiros e chuvei-ros para cada alojamento. Em outro anexo, funciona a sala de atendi-mento técnico e secretaria técnica, sala de revista e pertences pesso-ais dos adolescentes e alojamento da equipe de agentes. Já o último anexo, é constituído de cozinha, sala para refeição, sala da adminis-tração, sala da direção, almoxari-fado, dois banheiros, um masculino e outro feminino e área de serviço.

Até 1999, os CRIAMs eram res-ponsáveis também pela execução da medida de Liberdade Assistida e, em alguns casos, da Prestação de serviços à comunidade. Neste ano, na Capital, são criados os polos de atendimento de medi-das em meio aberto, em Bangu e na Ilha, retirando dos CRIAMs a responsabilidade da execução das mesmas. Nas unidades do inte-rior, contudo, somente no ano de 2009, com o investimento na polí-tica de municipalização, passam a atender exclusivamente a adoles-centes em cumprimento de me-dida de semiliberdade.

É nesse ano, também, que a denominação CRIAM foi alterada

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para CRIAAD – Centro de Recursos Integrados de atendimento ao Ado-lescente, pelo decreto Nº 41983/2009, pelo Governador Sergio Cabral, que destaca essa alteração como “neces-sária à singularidade dos serviços prestados pelo Novo DEGASE, e a “necessidade de adequação da ter-minologia adotada em unidades de atendimento ao adolescente em con-flito com a lei, de forma a não utilizar o termo “menor”, como recomenda a legislação infanto-juvenil”2. Assim, os Centros de Recursos Integrados de Atendimento ao Adolescente (CRIAADs) compõem unidades do DEGASE de cumprimento de medida socioeducativa de SEMILI-BERDADE, que tem por finalidade orientar, assistir, acompanhar e avaliar as adolescentes durante o processo socioeducativo.

No bojo desta perspectiva era ressaltada a peculiaridade da ado-lescência feminina que se diferencia em aspectos significativos, conside-rando que cada geração possui ca-racterísticas próprias, construídas pelas mudanças sociais e culturais. E dentro desta compreensão, foi es-tabelecido, já em 1996, Ricardo de Albuquerque como uma unidade de atendimento exclusivamente feminino (CRIAAD Meninas) abrangendo todo o Estado do Rio de Janeiro em atendimento a todas as comarcas. Buscava-se garantir as especificidades do gênero para

captar, entender e atender as neces-sidades de cada uma das meninas que cumpriam a medida socioedu-cativa. Concebendo o que preco-niza o SINASE (2006) com relação à diversidade étnico-racial, gênero e orientação sexual enquanto nortea-dora da prática pedagógica. E mais, a representação para as adolescen-tes daquilo que lhes é repassado socialmente enquanto papel femi-nino nos dias atuais.

Assim, o CRIAAD possuía toda uma ornamentação aconche-gante, onde havia a preocupação em proporcionar um ambiente hu-manizado, organizado e decorado de forma a atender da melhor ma-neira possível ao bem estar das ado-lescentes. Entretanto, esta atenção externa não se esgotava somente nesse aspecto. Também eram re-forçados os cuidados com a beleza: cabelos, unhas, pele, depilação, maneira de se portar e comportar, assim como os encaminhamentos médicos voltados exclusivamente ao sexo feminino: ginecologista, exames de preventivos, mamogra-fia, pré-natal, além das especialida-des comuns aos dois sexos.

Em 2015, esta unidade foi temporariamente fechada. Atu-almente, a unidade de Nilópolis realiza o atendimento feminino. Observando que, em Nova Fri-burgo e em Barra Mansa, o aten-dimento segue sendo misto. As

www.jusbrasil.com.br/politica/3129659/decreto-troca-o-termo-criam-por-criaad

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RESTRIÇÃO DE LIBERDADE

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demais unidades do sistema fazem atendimento exclusivamente aos adolescentes do sexo masculino.

Apesar das especificidades de cada unidade, a dinâmica da semiliberdade é marcada pela possibilidade de realização de ati-vidades em meio aberto. Assim, os adolescentes estudam em escolas regulares, fora da unidade, bem como participam de cursos, ati-vidades culturais e esportivas na comunidade. Outra característica da medida de semiliberdade é a possibilidade de passarem finais de semana e feriados fora da uni-dade, em casa. Disto decorre ser uma medida que exige extrema responsabilidade e comprometi-mento por parte dos adolescentes e seus responsáveis.

Atualmente estão em funcio-namento 16 CR IAADS, sendo eles: Ilha do Governador; Penha; Bangu; Santa Cruz; Nilópolis; Nova Iguaçu; Duque de Caxias; Niterói; São Gonçalo; Barra Mansa; Volta Redonda; Teresó-polis; Nova Friburgo; Cabo Frio; Campos; e Macaé.

REFERÊNCIAS

BRASIL Lei 6.697 de 1967 Código de Menores, 1979.

BRASIL Lei Federal nº 12.594/2012. Lei do SINASE. Brasília, 2012.

BRASIL Lei Federal nº 8.069/1990. Estatuto da Criança e do Adolescente. Brasília, 1990.

BRASIL SINASE- Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo. Brasília: Conselho Nacional do Direito da Criança e do Adolescente, 2006.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, 1988.

Declaração dos Direitos da Criança em 1959, Regras de Beijing em 1985, Diretrizes das Nações Unidas para Prevenção da Delinquência Juvenil

ESTADO DO RIO DE JANEIRO. Decreto CRIAAD. Disponível em: http://governo-rj.jusbrasil.com.br/politica/3129659/decreto-troca-o-termo-criam-por--criaad-no-novo-degase, acesso 10 de junho de 2016.

MINISTÉRIO DA PREVIDÊN-CIA E ASSISTÊNCIA SOCIAL – FUNABEM - Documento pre-liminar de Descentralização do Sistema de Atendimento a menores do Estado do Rio de Janeiro / 1987.

Projeto Pedagógico Institucio-nal, Novo Degase, RJ, 2010.

Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça de Menores - REGRAS DE BEJJING, ONU, 1985.

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SSAÚDE MENTAL

Lourdes Trindade1

1 Mestranda em Psicologia (UFF). Pós-graduação em Teoria Geral dos Sistemas (1998) e Pós-graduação em Terapia Sistêmica de Família e Casal (2000) pelo Instituto de Terapia de Família do Rio de Janeiro. Graduação em Serviço Social pela Universidade Gama Filho (1980) e Graduação em Psicologia pela Universidade Gama Filho (2013). Assistente Social do Departamento Geral de Ações Socioeducativas do Estado do Rio de Janeiro desde 1994. Professora vi-sitante da Fundação Centro Estadual de Estatísticas, Pesquisas e Formação de Servidores Públicos do RJ - CEPERJ.2 Lei Federal 12.594/2012

O conceito de socioeduca-ção envolve o aprendizado para o convívio social e o preparo do adolescente para o exercício da sua cidadania, considerando-o sujeito de direitos, numa perspec-tiva de proteção integral.

A partir do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), o Sis-tema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE)2 é a polí-tica pública que organiza e orienta o Sistema Socioeducativo, tendo como objetivo articular, em ter-ritório nacional, as políticas seto-riais básicas, bem como assegurar a efetividade e a eficácia na execu-ção das Medidas Socioeducativas

aplicadas ao adolescente autor de ato infracional. Interessa-nos, em particular, o que diz o art. 60º, in-ciso III do SINASE:

Art. 60. A atenção integral à saúde do adolescente no Sistema de Atendimento Socioeducativo seguirá as seguintes diretrizes:

III - cuidados especiais em saúde mental, incluindo os relacionados ao uso de álcool e outras substâncias psicoati-vas, e atenção aos adolescentes com deficiências;

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SAÚDE MENTAL

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A atenção em saúde mental aos socioeducandos, autores de ato infracional, põe em evidência al-guns desafios do trabalho com essa parcela de adolescentes, bem como aponta para o necessário desenvol-vimento de uma assistência mais eficaz em direção à promoção e efe-tivação de direitos sociais.

Os adolescentes que apre-sentam transtorno mental e/ou comprometimentos psíquicos de-correntes do uso de drogas são al-vos das políticas de saúde mental e de assistência à infância e ado-lescência na esfera do sistema so-cioeducativo. O desafio está em promover uma política orientada pela singularidade de cada su-jeito e oferecer um lugar para os socioeducandos, tanto no sistema socioeducativo como na rede de atenção psicossocial.

A Reforma Psiquiátrica veio produzir significativas mudanças no modo de se entender o cuidado às pessoas que se encontram em sofrimento psíquico, mostrando a importância de sua inserção na família, no ambiente de trabalho, no território. Apesar disso, ainda per-manecem, na atualidade, práticas de reclusão que objetivam corrigir as anormalidades (Foucault, 1987).

Torna-se necessário conside-rar a vulnerabilidade de pessoa em situação peculiar de direito, os necessários cuidados em saúde mental e as particularidades que

envolvem o fato de ter cometido um ato delituoso. Essas diferentes peculiaridades combinam ques-tões diversas, pertinentes a vários campos de intervenção, resultando numa complexa relação entre os sistemas de justiça, saúde e assis-tência social, os quais funcionam num processo sistêmico de recam-biar competências e adversidades, produzindo desatenção e aban-dono na necessária atenção a esses adolescentes (VINCENTIN, 2006).

Hoje, a política de saúde men-tal infanto-juvenil integra um con-junto de ações de saúde pública. Tal política apresenta especificida-des voltadas para o atendimento aos usuários, que se efetivam prio-ritariamente através dos disposi-tivos de base territorial, os CAPSi (Centros de Atenção Psicossocial infantis). No entanto, é necessário que esses dispositivos de cuidado em saúde mental sejam suficien-tes para atender a demanda. Além disso, para que as ações sejam efi-cientes é necessário que haja maior articulação intersetorial entre as políticas de assistência em saúde mental infanto-juvenil e as polí-ticas de assistência à criança e ao adolescente, integrando educação, direitos, atenção básica em saúde e justiça, entre outras, a fim de que se possa garantir a doutrina de prote-ção integral proposta pelo ECA.

Outros entraves se colocam para a inserção dos adolescentes

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autores de ato infracional nesses serviços, conforme afirmam Couto, Delgado e Duarte (2008):

Há muitos obstáculos a esta inte-gração, como o estigma, a falta de qualificação profissional, dentre outros. Só uma direção publica-mente afirmada, que se constitua como eixo organizador da inter-setorialidade, pode produzir diferenças nessa realidade. A intersetorialidade, portanto, não se reduz à simples presença de serviços, mas efetiva-se quando uma linha de ação comum pode ser pactuada, partilhada e verifi-cada entre diferentes programas (COUTO, M.C.V; DELGADO, P.G.G; DUARTE, C.S, 2008, p.396).

Vemos, então, que o distan-ciamento entre os serviços de saúde mental e esses adolescen-tes se mantém não apenas pela escassez de oferta de dispositivos ou pela desarticulação interseto-rial, mas também pelo estigma de periculosidade que eles carregam (VINCENTIN, M.C; GRAMKOW, G., 2010).No que se refere à medida socioducativa privativa de liber-dade, as Unidades executoras da medida de Internação do Rio de Janeiro contam com equipe mul-tiprofissional de referência em saúde mental, formada por pro-fissionais das áreas de psicologia, serviço social, terapia ocupacio-nal e musicoterapia.

O trabalho dessas equipes, lo-tadas nas Unidades executoras da medida socioeducativa de Inter-nação, se desenvolve a partir do reconhecimento do sofrimento psíquico que o próprio encarce-ramento produz na vida dos ado-lescentes, no qual o afastamento da família e do convívio social, a institucionalização e o padrão de rigidez das normas e regras im-postas acabam acarretando ou agravando as demandas de cui-dado em saúde mental.

A proposta está em desenvol-ver um trabalho que se volte para: a possibilidade de oferecer escuta subjetiva, a partir do reconheci-mento da necessidade de atenção singular que possibilite o apare-cimento do sujeito; desenvolver ações de prevenção de agravos em saúde mental aos adolescen-tes em sofrimento psíquico que ali estão internados por determi-nação judicial, incluindo aqueles com demandas decorrentes do uso prejudicial de álcool e drogas; e, ainda, favorecer o acesso desses adolescentes à rede de serviços de atenção em saúde mental de base territorial. Isso exige um novo arranjo institucional para tratar dessas questões, repensando con-ceitos e posturas no modo de lidar com o socioeducando com deman-das de atenção em saúde mental.

A escuta subjetiva, especial-mente para o adolescente que

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SAÚDE MENTAL

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cumpre medida privativa de liber-dade e está em sofrimento mental, é direito ao exercício da sua sin-gularidade. Pela descoberta de Freud, o que se deve escutar no discurso é essa palavra manifesta através ou apesar do sujeito, pois é essa a dimensão do inconsciente. Como postula Lacan (1988) o inconsciente é estruturado como linguagem. Pela linguagem o homem se coloca em relação com o outro. Ele o faz de modo singular e o endereçamento do seu discurso é, geralmente, o próprio sujeito. Cada ser humano, independen-temente da estrutura psíquica na qual seja classificado, com seu modo de ser e de se colocar no mundo, tem o direito de ser iden-tificado como pessoa, como sujeito com direito a sua singularidade.

Recentemente publicada, a Portaria nº 1.082 referente à Polí-tica Nacional de Atenção Integral à Saúde de Adolescentes em Conflito com a Lei em Regime de Internação e Internação Provisória (PNAI-SARI), de 23 de maio de 2014, “ redefine as diretrizes e estabelece novos critérios e fluxos para ade-são e operacionalização da atenção integral à saúde de adolescentes em situação de privação de liber-dade, em Unidades de internação, de internação provisória e de semi-liberdade”. (BRASIL. Portaria nº 1.082 – PNAISARI, 2014, p.1).

No que se refere à saúde men-tal, a referida lei pretende garantir ações de atenção psicossocial e de promoção em saúde e redução de danos provocados pelo consumo de álcool e outras drogas para esses adolescentes, conforme o anexo I da PNAISARI:

ANEXO I

Nesse sentido, ainda que haja equipe de saúde lotada e atu-ando somente dentro da unidade socioeducativa, é de fundamental importância que se garanta uma referência na rede de atenção à saúde pública externa a fim de garantir, mesmo de forma com-plementar, a realização de ações coletivas de promoção e de edu-cação em saúde na lógica do SUS.

Essa estratégia favorece a per-meabilidade da instituição socioeducativa à comunidade e atende aos princípios previs-tos no Estatuto da Criança e do Adolescente de incompletude institucional e reinserção social dos adolescentes em situação de privação de liberdade.

Cabe destacar também o que diz seu art. 12:

Parágrafo 1º. Todas as unidades socioeducativas terão como refe-rência uma equipe de saúde da Atenção Básica.

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Parágrafo 2º. Nas situações em que houver equipe de saúde den-tro da unidade socioeducativa, a equipe de Atenção Básica de referência articular-se-á com a mesma para, de modo comple-mentar, inserir os adolescentes na Rede de Atenção à Saúde.

Como estratégia de operacio-nalização da PNAISARI há, no estado do Rio de Janeiro, um inves-timento na implementação dos Planos Operativos3, o qual propõe ações de integração intersetorial, incluindo parcerias, acordos ou convênios, como mecanismos de cooperação entre os gestores municipais e estaduais de saúde e o gestor do sistema socioedu-cativo, para a “implantação de ações de prevenção e cuidados específicos à saúde(...) em particu-lar à saúde mental, a atenção aos agravos psicossociais e atenção aos agravos associados ao uso de álcool e outras drogas, sob a pers-pectiva da redução de danos(...)” (Portaria Interministerial MS/SEDH/SEPM 1.426/2004).

Há muitos desafios no que se refere à atenção ao adoles-cente autor de ato infracional, especialmente quando este é portador de transtorno mental ou apresenta comprometimen-tos de saúde em decorrência do uso prejudicial de drogas.

Faz-se necessário analisar tais questões em profundidade, buscar referenciais e indicadores que ad-venham da experiência prática co-tidiana nesse campo de trabalho, que poderão orientar o debate so-bre o tema e a complexidade das questões o que envolve. Cabem aqui discussões sobre direitos so-ciais e sobre a atenção em saúde mental no campo sociojurídico, que sirvam de base para orientar novas e mais eficientes políticas de atenção aos adolescentes autores de ato infracional com demandas de atenção em saúde mental, reque-rendo dos diversos setores envol-vidos a articulação necessária na execução de uma política orientada pela singularidade de cada sujeito, tomando por base os direitos dos adolescentes em conflito com a lei.

REFERÊNCIAS

BRASIL. ECA - Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei federal nº 8.069, de 13 de Julho de 1990. Brasília, DF.

_______. Lei da Reforma Psiquiátrica. Lei federal nº 10.216, 6 de abr. de 2001. Brasília, DF.

_______. Lei federal nº 12.594, de 18 de janeiro de 2012. Sistema Nacional de Atendimento Socio-educativo (SINASE). Brasília, DF.

3 Portaria Interministerial MS/SEDH/SEPM 1.426/2004

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SEXUALIDADE

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_______. Portaria nº 1.082 - de 23 de maio de 2014. Política Nacio-nal de Atenção Integral à Saúde de Adolescentes em Conflito com a Lei em Regime de Internação e Internação Provisória (PNAI-SARI). Brasília, DF.

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Anna Paula Uziel1

1 Professora associada da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

Os anos 70 estiveram povoa-dos de questionamentos sobre sexo oriundos de movimentos sociais como os movimentos gay, hippie, fe-ministas. Os debates versavam sobre liberação sexual, relações entre capi-talismo e diferenças entre os sexos, seus vieses de opressão, forças his-

tóricas que moldam a sexualidade, e tantos outros pontos (UZIEL, 1996).

O desenvolvimento tecnoló-gico, a entrada maciça da mulher no mercado de trabalho, a difusão da pílula e outros métodos contra-ceptivos foram fundamentais para mudanças nos padrões que regiam

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as relações afetivo-sexuais. Os anos 80 e 90 viram a epidemia de HIV/Aids introduzir o debate sobre o uso mais consistente do preser-vativo, em uma geração que dava início à vida sexual marcada por uma doença sem cura e com tra-tamento ainda bastante incipiente. Na primeira década do novo milê-nio, os medicamentos para a Aids trouxeram a possibilidade de uma vida longa e saudável, recolocando os sentidos da doença e alterando comportamentos: já não parecia tão grave arriscar-se à contaminação de um vírus passível de controle. Ainda que restrita a uma parcela da população, em função dos al-tos custos, a reprodução assistida ganha espaço: a possibilidade de gerar filhos sem relação sexual re-força a separação entre reprodução e sexo, já conquistada parcialmente com a pílula nos anos 1970 e oferece a casais do mesmo sexo a possibili-dade de uma filiação com caracte-rísticas genéticas, o que passa a ser regulado de forma clara através da resolução 2121/2015 do Conselho Federal de Medicina.

Se, no século XVI, “sexo” tra-tava da divisão da humanidade entre duas partes, a feminina e a masculina, desde o século XIX, o significado corrente é o de relação sexual. Isto mostra a mudança que a compreensão de sexuali-dade – termo abstrato que aponta a qualidade de “sexual” – sofreu

na nossa cultura e como tem sido um processo social complexo.

Um olhar cuidadoso sobre a forma como se experimenta hoje a sexualidade revelaria o foco produtivo em que se transformou esse objeto tão precioso. Segundo Foucault, a sexualidade é muito mais um processo que se inscreve na necessidade nossa, hoje em dia, de criar uma nova vida cul-tural sob nossas escolhas sexuais do que portadora de um segredo, como é concebida no cotidiano. A sexualidade é algo que cria-mos, não um aspecto secreto de nosso desejo. O sexo não é uma fatalidade, é uma “possibilidade de aceder a uma vida criativa”, afirma Foucault (1994, p. 735).

Segundo Weeks (1986), a sexu-alidade passa por três momentos fundamentais em seu desenvolvi-mento: a regulação do sexo através do casamento, no século 1 d.C.; a incorporação, nos séculos XII e XIII, da discussão sobre a vida se-xual dos casais, não apenas como exercício intelectual, mas como prática de controle moral e, nos séculos XVIII e XIX, a definição de sexualidade “normal” como aquela exercida com o outro sexo. Hoje, a sexualidade é concebida como aspecto do “eu” que conecta corpo, identidade e normas so-ciais, adquirindo importância so-cial e política, além da moral. Se na época vitoriana o erotismo envol-

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via relacionamentos sociais, hoje a sexualidade envolve a identidade pessoal (SENNETT, 1974).

Uma vez que a sexualidade é, hoje, peça fundamental na cons-trução da individualidade – valor máximo nas sociedades ocidentais pós século XVIII –, cabe perguntar que práticas promoveram seu des-locamento, quase homogêneo, para o centro de preocupações e projetos, por que assume tal lugar e que des-lizamentos provoca (UZIEL, 1996).

Cada vez mais distante da na-tureza enquanto determinante, a se-xualidade se situa - a partir de um referencial foucaultiano – enquanto processo histórico, no campo da política e da história, uma vez que formada por práticas que se en-gendram no tempo. Várias apro-ximações entre política e história têm sido ensaiadas, de acordo com Weeks (1991). Uma delas seria to-mar o passado como lição para se compreender o presente e prever o futuro, desprezando possíveis des-continuidades. Outro caminho se-ria o entendimento da história como advertência: significaria observar batalhas, perdas e danos, e tomá-las como exemplo moral. Uma terceira via, que parece mais interessante e apropriada à linha de raciocínio que estrutura este texto, concebe Política e História como uma combinação inextricável, onde entender o pre-sente é buscar a constelação de for-ças históricas que o constituem.

Sexo é tomado, em geral, como um imperativo biológico, locali-zado misteriosamente na região genital, com predicados intrans-poníveis para cada uma de suas partes, feminina e masculina, cuja união é hierarquicamente supe-rior a qualquer outra, tomada como perversa. Se a sexualidade se situa no plano da moral desde a Grécia Antiga, seu significado tem variado: na cultura ocidental, o que define a verdade de cada um é seu desejo sexual. Nos últimos sécu-los, o sexo tem sido fundamental para fixar o lugar do indivíduo na cultura (WEEKS, 1995).

Parece-me importante explodir noções generalizantes e grosseiras como as de mulher, homossexual... As coisas nunca são tão simples assim. Quando as reduzimos a ca-tegorias branco/preto ou macho/fêmea, é porque estamos com uma ideia de antemão, é porque es-tamos realizando uma operação redutora-binarizante e para nos assegurarmos de um poder sobre elas. (GUATTARI, 1987, p.36).

A essa perspectiva preten-demos agregar a concepção de Foucault da sexualidade como dis-positivo. Foucault (1989) não busca fazer uma descrição dos comporta-mentos sexuais através dos tempos, mas compreender o que vem asso-ciando, em nossa sociedade, sexo e

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busca da verdade. Sexualidade, para Foucault, compreende, enquanto dispositivo histórico, estimulação de corpos, intensificação de prazeres, reforço de controles e resistências, participação em discursos segundo mecanismos de saber e poder,

um conjunto decididamente he-terogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arqui-tetônicas, decisões regulamenta-res, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposi-ções filosóficas, morais, filantrópi-cas” (FOUCAULT, 1990, p.244).

Apesar de não existir um refe-rente único ou exclusivo da sexu-alidade, Costa (1995) afirma que a evocação de tal termo gera a ilusão de uma compreensão totalizadora e hegemônica, dispensando qual-quer aposto. Sexo seria, simples-mente, um conjunto de objetos, comportamentos, sentimentos, ex-pressões que aprendemos a adjeti-var dessa forma: sexuais.

No campo da sexualidade, é fundamental discernir entre: o sexo biológico; a identidade de gê-nero e a orientação sexual. O sexo biológico é identificado ao nascer, e cada vez mais cedo, através de exames de ultrassonografia que permitem enxergar a existência ou não de um pênis ou de sangue, que identificam o sexo através de aná-lises cromossomiais. No entanto,

algumas pessoas – que, em geral, se identificam como transexuais – sentem necessidade de modifi-car seu sexo biológico, anatômico, quando, na maior parte dos casos, se identificam com o outro gênero. No entanto, mesmo sem desejar ou aceder à mudança de seu sexo biológico, é possível se identificar com outro gênero diferente da-quele que em geral é associado à anatomia. Neste caso, estamos tra-tando de identidade de gênero. É importante que se atente para a identidade de gênero da pessoa, checando sempre com a própria. A orientação sexual se refere à atra-ção, ao desejo por pessoas, sejam de mesmo sexo (homossexuali-dade), sejam de sexos opostos (he-terossexualidade) ou ainda dos dois sexos (bissexualidade). Cabe ressaltar, no entanto, que cada vez menos as pessoas têm escolhido declarar sua identidade sexual, que se refere à orientação sexual. Diferentemente de afirmar identi-dades, muitas pessoas, em especial as novas gerações, têm procurado descrever suas práticas e desejos, ao invés de encontrar um rótulo que dê conta de suas experiências afetivas e sexuais. Este movimento corrobora a ideia de que anatomia, desejo, práticas e identidades não são redutíveis uma à outra, tam-pouco andam juntas.

A suposição de uma heteros-sexualidade que acompanha nosso

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cotidiano e podemos nomear como heteronormatividade carrega de-terminadas concepções de mas-culinidades e feminilidades como hegemônicas e desejáveis, dese-nhando um contorno e excluindo quem dele escapa. A homosse-xualidade deixou de ser conside-rada transtorno mental em 1973, quando sai do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Men-tais (DSM) e em 1990 deixa de ser considerada doença na Classifica-ção Internacional de Doenças (CID-10). No entanto, ainda é bastante entendida como patologia ou des-vio pelo senso comum, perspectiva reforçada pelo discurso religioso, cada vez mais presente na socie-dade brasileira, inclusive em ins-tituições do Estado, apesar de sua laicidade, presente na Constituição Federal. Em 1999, o Conselho Fede-ral de Psicologia publicou a resolu-ção 001/99 que interdita tratamento e/ou cura da homossexualidade. Trata-se de um documento funda-mental não apenas para o exercício da psicologia como profissão, mas para pautar a compreensão da ho-mossexualidade como expressão de desejo, identidade, práticas, como outras quaisquer.

Apesar das mudanças sociais, científicas e legais, ainda morrem pessoas em diversas partes do mundo – e no Brasil não é dife-rente – por conta de sua orientação sexual. A este fenômeno que gera

mortes denominamos homofobia: “A homofobia é a atitude de hos-tilidade para com os homossexu-ais. (...) Assim como a xenofobia, o racismo ou o antissemitismo, ela é uma manifestação arbitrária que consiste em qualificar o outro como contrário, inferior ou anormal. Devido a sua diferença, esse outro é posto fora do universo comum dos humanos” (BORRILLO, 2010, p. 15). Além da homofobia, chama--se a atenção para a existência da lesbofobia e da transfobia, em geral cobertas pela primeira definição.

É importante ressaltar que,

quer se trate de uma escolha de vida sexual, quer se trate de uma característica estrutural do desejo erótico por pessoas do mesmo sexo, a homossexuali-dade deve ser considerada tão legítima quanto a heterossexu-alidade. De fato, ela não é mais que a simples manifestação do pluralismo sexual, uma variante constante e regular da sexuali-dade humana. Na condição de atos consentidos entre adultos, os comportamentos homoeróticos devem ser protegidos como qual-quer outra manifestação da vida privada. (BORRILLO, 2010, p.16)

Na luta pela conquista de di-reitos no campo da sexualidade, nos anos 1990, começou-se a falar em direitos sexuais, expressão que ganhou o texto da IV Conferência

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Mundial sobre a Mulher, em 1995, em Beijing. Até 1993, 1994, era pra-ticamente inexistente a garantia da autonomia dos direitos sexuais e re-produtivos em documentos gover-namentais, sequer estas expressões existiam. Uma marca da consoli-dação dos direitos sexuais está na publicação, em 2006, dos Princípios de Yogyakarta, que são os “princí-pios sobre a aplicação da legislação internacional de direitos humanos em relação à orientação sexual e à identidade de gênero”2. Para Roger Raupp Rios (2006), é preciso desen-volver a ideia de direitos sexuais na perspectiva dos direitos humanos, o que “aponta para a possibilidade do livre exercício responsável da sexualidade” (p.72).

Entre os eixos que estruturam os direitos sexuais, estão:

as questões identitárias vincula-das à expressão da sexualidade (onde se inserem, principal-mente, os temas das homosse-xualidades), as relações sexuais propriamente ditas e suas con-sequências (campo que alcança matérias diversas como consen-timento, violência e aborto) e a busca da fundamentação dos direitos sexuais (historicamente atada à ideia de saúde sexual). (RIOS, 2006, p. 73)

No entanto, esse debate em torno dos direitos sexuais é mais tímido quando se trata de adoles-centes. A necessidade de regulação da fertilidade e do corpo das e dos adolescentes pobres, muito mar-cada no discurso dominante por uma espécie de prevenção à cri-minalidade, costuma tomar conta do debate. Quando esta mesma população está encarcerada, novos matizes aparecem.

Sexualidade e Socioeducação

Ao tematizar sexualidade e adolescência, em geral a discussão se resume a dois assuntos: pre-venção a DSTs/Aids e prevenção à gravidez. O direito ao prazer, à regulação do próprio corpo e a ex-perimentações raramente aparece. Em situações de cumprimento de medidas socioeducativas, o direito ao exercício da sexualidade parece um luxo. Em meio à precariedade do sistema e à difícil garantia de direitos, que sofre com a dificul-dade de implementação do ECA, marcada pelo descaso estatal, pela falta de recursos de toda ordem, por resistências de parte de pro-fissionais envolvidos, entre outras, abordar a sexualidade tem sido um desafio. No entanto, a necessidade de implementação da visita íntima

Para acesso ao documento, ver http://www.clam.org.br/uploads/conteudo/prin-cipios_de_yogyakarta.pdf

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nas unidades de socioeducação prevista no Sinase, no art. 68, para adolescentes casados ou em união estável, tem exigido discussões e ações em torno da sexualidade.

A visita íntima coloca em pauta a vida sexual ativa que ado-lescentes levam desde muito cedo e instaura, também no sistema so-cioeducativo, um debate sobre: o exercício da sexualidade como um privilégio ou como um direito; a homossexualidade e a transexu-alidade, presentes nas unidades, mas muitas vezes desconsideradas ou não reconhecidas; a violência como acesso aos corpos confinados nas celas. A conversa sobre o uso de preservativos, seja feminino, seja masculino, no Sistema não inaugura nem estimula práticas sexuais, mas contribui para a pro-teção, em alguma medida, desses e dessas jovens de doenças sexu-almente transmissíveis. A entrada nos muros das unidades fechadas do Sistema não garante que a sexu-alidade, em suas mais variadas ex-pressões, seja deixada do lado de fora. Este exercício, tão valorizado em nossa sociedade contemporâ-nea, acompanha homens e mulhe-res, de diferentes faixas etárias.

REFERÊNCIAS

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DINIZ, Debora (orgs.). Homofobia & Educação: um desafio ao silên-cio. Brasília: LetrasLivres / EdUnB, 2009, p. 15 a 46.

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UZIEL, Anna Paula. Exal-tação da diferença: um elogio à

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WEEKS, Jeffrey (1986) Sexu-ality. Londres e Nova York: Routledge, 1991.

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SISTEMA DE GARANTIA DE DIREITOS

Damiana de Oliveira1

1 Psicóloga do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, atuando na Vara da Infância, da Juventude e do Idoso do Fórum de Madureira, Especialista em Psicologia Jurídica pela UERJ e Mestre em Psicologia pela UFF, na área de Estudos da Subjetividade.

O Sistema de Garantia de Direitos, na área da infância e da juventude, constitui-se numa articulação e integração entre diferentes instâncias públicas go-vernamentais e da sociedade civil, visando à promoção, à defesa e à plena efetivação dos direitos hu-manos de crianças e adolescentes, através de um controle eficaz e efe-tivo, em níveis Federal, Estadual, Distrital e Municipal.

O processo de construção e formação do Sistema de Garantia de Direitos teve início com a Cons-tituição Federal de 1988, a qual, em seu artigo 227, já estabelecia que crianças e adolescentes têm priori-dade absoluta na garantia de uma

série de direitos, sendo dever da família, da sociedade e do Estado assegurar para que estes sejam cumpridos. Posteriormente, o Es-tatuto da Criança e do Adolescente (ECA), Lei Federal promulgada em 13/07/1990, veio a se estabelecer como marco normativo da garan-tia de direitos a crianças e adoles-centes no Brasil, conferindo uma atenção especial ao adolescente em conflito com a lei, a quem “são des-tinadas medidas de caráter socioeduca-tivo (que visam punir o ato e reparar o dano social) e ainda medidas protetivas (que visam a assegurar direitos viola-dos)”. (GONÇALVES, 2005, p. 50).

O ECA, assim, se propõe a garantir direitos a todas as crian-

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ças e adolescentes, não excluindo aqueles que cometeram ato infra-cional. Isso significa dizer que o fato de ter cometido uma infração não faz com que o adolescente deixe de ser detentor de direitos, os quais devem ser assegurados, inclusive, durante a vigência da medida socioeducativa. Tendo a doutrina da proteção integral como sua maior premissa, o ECA inovou ao conceber crianças e adolescentes como sujeitos de direitos e não mais como meros objetos da intervenção estatal.

Não obstante a Constituição Federal e o Estatuto da Criança e do Adolescente estabeleçam as diretrizes para a garantia dos direitos de crianças e adolescen-tes, foi somente com a Resolução Nº 113/2006 do Conselho Nacio-nal dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA) que o Sistema de Garantia de Direitos infanto-juvenil se consolidou e di-ferentes atores despontaram no ce-nário nacional, visando garantir a efetivação de tais direitos.

O Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adoles-cente se sustenta em três eixos estratégicos de atuação, a saber, defesa, promoção e controle.

O eixo da Defesa dos Direitos se caracteriza pela garantia do acesso à Justiça, de modo que crian-ças e adolescentes possam buscar a proteção legal de seus direitos

que estejam sendo ameaçados ou violados. Nesse sentido, as ins-tâncias jurídicas em conjunto com organizações da sociedade civil organizada, fazendo uso dos ins-trumentos normativos nacionais e internacionais, dos quais o Brasil é signatário, devem zelar para que a lei saia do papel e cumpra de fato seu papel social produ-zindo transformações na vida de crianças e adolescentes, através da efetivação de seus direitos.

Dentre os principais órgãos que atuam na linha de defesa dos direitos das crianças e adolescen-tes estão o Conselho Tutelar (que é uma espécie de guardião do ECA, cujas atribuições, competên-cias, composição e funcionamento estão previstas nos artigos 131 a 140 do ECA), o Ministério Público, especialmente as Promotorias de Justiça e as Procuradorias Gerais de Justiça, as Varas da Infância e da Juventude e suas equipes multiprofissionais, a Defensoria Pública, as Polícias e Delegacias Especializadas, a Advocacia Geral da União e as Procuradorias Gerais dos Estados, os Centros de Defesa da Criança e do Adoles-cente (Cedecas), entre outros.

Os Órgãos que integram o campo da defesa devem não só garantir o acesso à Justiça de crian-ças, adolescentes e suas famílias, mas também são responsáveis por fiscalizar e aplicar as sanções

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cabíveis sempre que observarem o descumprimento das leis de prote-ção à criança e ao adolescente.

Todavia, quando se trata de adolescente em conflito com a lei, o acesso à justiça, como forma de ga-rantir-lhes o devido processo legal e a defesa técnica por advogado, tem se revelado bastante deficitário, pois a falta de investimentos nas Defensorias Públicas de todo o país deixa muitas vezes sem defesa es-ses adolescentes que, sem recursos para arcar com os custos de um ad-vogado particular, não conseguem se fazer ouvir. Segundo Hamoy (2005), o que se observa na maior parte das vezes nos processos dos adolescentes autores de ato infra-cional é a falta ou deficiência de defesa técnica, defensores públicos com função meramente figurativa e negação das garantias processu-ais aos adolescentes. Nesse quadro desalentador, os Centros de Defesa da Criança e do Adolescente (CE-DECAs ou CEDEDICAs) surgem como importantes alternativas para fazer frente à ineficiência do Estado na defesa técnica dos direi-tos de crianças e adolescentes, tor-nando-se seus principais aliados na busca por justiça social e pela garantia dos direitos humanos.

O eixo da Promoção de Direi-tos se caracteriza pela implemen-tação da Política de Atendimento dos Direitos da Criança e do Ado-lescente, conforme preconizado no

artigo 86 do ECA. Tal Política se desenvolve de forma transversal e intersetorial, articulando-se com todas as demais políticas públicas e integrando suas ações, com parce-ria entre o poder público e a socie-dade civil, visando à garantia total dos direitos de crianças e adoles-centes. Nesse eixo, encontram-se todos os atores responsáveis por fazer valer o direito, executando-o, transformando-o em ação. É nesse campo que encontramos direitos como saúde, educação, esportes, cultura, alimentação, trabalho pro-tegido, profissionalização, entre outros, cuja promoção visa satis-fazer as necessidades básicas de crianças e adolescentes, sendo de-ver do Estado, da família e da so-ciedade assegurá-los.

No eixo da promoção de direi-tos, estão inseridos os serviços e os programas das políticas públi-cas, com destaque para as polí-ticas sociais de atendimento aos direitos humanos de crianças e adolescentes, os quais têm como propósito assegurar acesso aos ser-viços oferecidos a todas as crianças e adolescentes, especialmente para aqueles que tiveram seus direitos violados ou se encontram em con-flito com a lei. Incluem-se também nesse eixo os serviços e progra-mas de execução de medidas de proteção de direitos, cujo caráter emergencial tem como propósito desenvolver ações que objetivem

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a prevenção da ocorrência de ame-aças ou de violação de direitos de crianças e adolescentes, bem como prestar o pronto atendimento, tão logo o desrespeito a esses direitos ocorram. Por fim, têm-se os pro-gramas e serviços de execução de medidas socioeducativas destina-dos ao atendimento aos adoles-centes autores de atos infracionais, que estejam em cumprimento de medida socioeducativa, aplicada na forma da lei, assegurando-lhes o devido processo legal.

O eixo do Controle da Efetiva-ção dos Direitos é responsável pela avaliação, pelo acompanhamento e pela monitoração das ações de pro-moção e de defesa dos direitos das crianças e dos adolescentes, através das instâncias públicas colegiadas com a participação da sociedade civil, que tem um papel funda-mental na cobrança da execução das políticas públicas, além de afe-rir a qualidade das que já existem. Busca-se, assim, que essas políticas possam ser aprimoradas e coloca-das a serviço do público a que se destinam, fazendo a diferença na vida de crianças, adolescentes e de suas famílias. Incluem-se nesse campo os Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente nas esfe-ras municipal (CMDCA), estadual (CEDCA) e federal (CONANDA) e os Conselhos Setoriais, tais como, Conselhos de Saúde, de Assistência Social, de Educação, entre outros.

A resolução nº 113/2006 do Conselho Nacional da Criança e do Adolescente estipula, ainda, que o Controle da efetivação dos direitos humanos de crianças e adolescentes se dará também pe-los órgãos de controle interno e externo, tais como, o Ministério Público, os Conselhos Tutelares, as Varas de Infância e de Juventude, as Defensorias Públicas, o Poder Legislativo, os Centros de Referên-cia em Assistência Social (CRAS), os Fóruns de discussão e controle social, entre outros.

REFERÊNCIAS

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BRASIL. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras provi-dências. Brasília, DF: DOU, 1990.

BRASIL. Resolução Nº 113, de 19 de abril de 2206. Dispõe sobre os parâmetros para a institucio-nalização e fortalecimento do Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente. Brasília, DF: DOU, 2006.

GONÇALVES, Hebe Signorini. Medidas Socioeducativas: avanços e retrocessos no trato do adoles-

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cente autor de ato infracional. IN: ZAMORA, Maria Helena (Org.). Para além das grades: Elementos para a transformação do sistema socioeducativo. Rio de Janeiro: PUC; São Paulo: Loyola, 2005. p. 35-61.

HAMOY, Ana Celina Bentes. A garantia do devido processo legal ao adolescente acusado da

prática de ato infracional: o acesso à justiça, ampla defesa e o con-traditório. In: FRASSETO, Flávio (Org.). Apuração de ato infra-cional e execução de medida socioeducativa: Considerações sobre a defesa técnica de adoles-centes. São Paulo: ANCED, 2005.

SISTEMA ÚNICO DE ASSISTÊNCIA SOCIAL (SUAS)

Ana Lucia da Silva Garcia1

1 Assistente social, Mestre em Serviço Social pela UFRJ, Coordenadora Geral do Sistema Municipal de Assistência Social da Secretaria Municipal de Desenvolvi-mento Social /Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro.

A configuração da Assistên-cia Social como política pública no Brasil é bastante recente. Com a extinção da LBA, várias pro-postas são elaboradas no sentido de se criar uma nova concepção de Assistência, que se instituísse enquanto política pública, com todo o aparato legal necessário. A primeira delas foi a criação da Comissão de Apoio à Reestrutu-ração da Assistência Social (por-taria nº 3.764 de 21 de maio de 1986). Cabe destacar que a década de 80 foi marcada pelo movi-mento de luta pela redemocrati-zação do país, que culminou com o fim da ditadura militar, pas-sando por governos de transição

(Tancredo Neves e José Sarney), até a instalação de um Congresso Constituinte, resultando na ela-boração de uma Nova Constitui-ção (1988), a qual refletiu, em seu conteúdo, a intensa disputa entre uma perspectiva democratizante e instauradora de uma cultura de cidadania e o projeto conserva-dor e neoliberal em curso no país.

Incluída pela primeira vez no tripé da Seguridade Social, a Assistência Social passa a ser tra-tada como política pública, sendo regulamentada pela Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), pro-mulgada em dezembro de 1993. Porém, apenas entrou em vigora partir de 2004, com o Presidente

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SISTEMA ÚNICO DE ASSISTÊNCIA SOCIAL (SUAS)

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Luiz Inácio Lula da Silva, pois nem o governo do Presidente Fernando Collor de Mello (1990 a 1992), nem a gestão de Fernando Henrique Cardoso adotaram as medidas ne-cessárias para sua implementação.

A construção da Política Pública de Assistência Social, como direito do cidadão e dever do Estado, teve como momento forte a realização, em dezembro de 2003, da IV Conferência Nacional de Assistência Social, em comemo-ração aos 10 anos da aprovação da Lei Orgânica da Assistência Social (Lei nº 8.742, de dezembro de 1993), para que finalmente a Política Nacional de Assistência Social (PNAS) fosse publicada em 2004, conforme relata Yazbeck:

Em 2004, a criação do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome(MDS), e em seu âmbito, a instituição da Secretaria Nacional de Assistência Social (SNAS), aceleraram, e fortalece-ram o processo de construção do SUAS, numa relação comparti-lhada com a CIT e o CNAS. Em dezembro deste mesmo ano, após ampla mobilização nacional, o CNAS editou a Política Nacional de Assistência Social (PNAS/2004). Tal documento apresenta as bases e referências necessárias para a implantação e gestão do SUAS em todo o território nacional (YAZBECK, 2008, p. 79)

A implementação desse sis-tema em todo território nacio-nal vem seguindo as diretrizes da Norma Operacional Básica do Sis-tema Único de Assistência Social (NOB/SUAS), conforme a Resolução nº 33/2012 do Conselho Nacional de Assistência Social, e um conjunto de outras regulamentações do Conse-lho Nacional de Assistência Social, órgão formulador da política.

Através de um conjunto de normativas, foram definidos os componentes do Sistema Único, tais como a forma do cofinan-ciamento dos serviços entre as esferas de governo (União, Estados e Municípios), as respon-sabilidades dos entes, os objetivos, as diretrizes, os instrumentos de gestão, entre outros elementos. É através do SUAS que começa a ser ordenado em nível nacional o funcionamento da Assistência Social como Política Pública a ser implementada obrigatoriamente em todo o território nacional, de forma padronizada.

São funções da Política de Assistência Social: (i) a Proteção Social, (ii) a Vigilância Socioassis-tencial e (iii) a Defesa de Direitos, através de um sistema público não contributivo, descentralizado e participativo. São princípios fun-damentais da lógica da proteção social: (i) a matricialidade sociofa-miliar, compreendendo as novas configurações familiares e que o

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núcleo familiar deve ser fortale-cido em suas funções protetivas pela política pública; e (ii) a territo-rialização, pois os serviços devem estar localizados nos territórios onde vive a família, sendo funda-mental conhecer os fatores de risco e vulnerabilidade de cada territó-rio (vigilância socioassistencial).

O sistema prevê as seguin-tes garantias de segurança a serem oferecidas a população: (a) Segurança de acolhida nos ser-viços próprios da Assistência Social; (b) Segurança de renda; (c) Segurança de convívio ou vivên-cia familiar, comunitária e social; (d) Segurança do desenvolvimento da autonomia individual, familiar e social; (e) Segurança de sobrevi-vência a riscos circunstanciais

O SUAS prevê, no seu desenho operacional, dois níveis de atenção social: a Proteção Social Básica, ofe-recida através dos Centros de Refe-rência de Assistência Social (CRAS), e a Proteção Social Especial, que se divide em dois níveis: de Média Complexidade, cujos serviços são oferecidos nos Centros de Referên-cia Especializada de Assistência Social (CREAS), e de Alta Comple-xidade, oferecidos nas Unidades de Acolhimento institucional .

A Proteção Social Básica é for-mada pelo conjunto de serviços, programas, projetos e benefícios da assistência social, que visam a prevenir situações de vulnera-bilidade e risco social por meio do desenvolvimento de poten-cialidades e aquisições, e do fortalecimento de vínculos fami-liares e comunitários. Destina-se à população que vive em situ-ação de vulnerabilidade social decorrente de pobreza, provação (ausência de renda, precário ou nulo acesso aos serviços públicos, entre outros) e /ou fragilização de vínculos afetivos. Este nível de proteção é operado por meio de: 1) Centros de referência de Assistência Social (CRAS), ter-ritorializados de acordo com a demanda do município; 2) rede de serviços socioeducativos dire-cionados para grupos geracionais e intergeracionais, grupos de interesse, entre outros; 3) bene-fícios eventuais; 4) benefícios de prestação continuada e 5) servi-ços e projetos de capacitação e inserção produtiva.” 2

Os serviços da Proteção Social Básica são: (a) Serviço de Proteção e Atendimento Inte-gral à Família- PAIF; (b) Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos (por faixa etária), (c) Serviço de Proteção Social Básica

2 Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro: O Ministério Público na Fiscalização do Sistema Único de Assistência Social – cartilha de orientação, Centro de Apoio Operacional Cidadania, 2014. p,18.

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SISTEMA ÚNICO DE ASSISTÊNCIA SOCIAL (SUAS)

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no domicílio para pessoas com deficiência e idosas.

A Proteção Social Especial, é formada pelo conjunto de ser-viços, programas e projetos que têm por objetivo contribuir para a reconstrução de vínculos fami-liares e comunitários, a defesa de direito, o fortalecimento das potencialidades e aquisições, a proteção de famílias e indiví-duos para o enfrentamento das situações de violação de direitos. Tem por referência a ocorrência de situações de risco ou violação de direitos. Os serviços podem ser classificados em dois níveis, de acordo com a complexidade: a proteção social especial de média complexidade e a de alta com-plexidade. A primeira destina-se às situações em que os vínculos familiares e comunitários, apesar da violação de direitos existir, con-tinuam preservados; a segunda, aos casos em que esses vínculos estão rompidos.3

Como menciomado, os ser-viços de Proteção Especial são de dois níveis de complexidade:

1. Média complexidade (CREAS): a) Serviço de proteção e atendi-mento especializado a famílias e indivíduos – PAEFI;

b) Serviço especializado de abor-dagem social;

c) Serviço de proteção Social a Adolescente em cumprimento de Medidas Socioeducativa e de Liberdade Assistida – LA e de Prestação de Serviços à Comunidade – PSC;

d) Serviço de Proteção Social Especial para Pessoas com Defi-ciência, Idosos e suas Famílias; e) Serviço Especializado para Pes-soas em Situação de Rua;

2. Alta Complexidade:

a) Serviço de Acolhimento Institu-cional nas seguintes modalidades: Abrigo Institucional, Casa-lar, Casa de Passagem, Residência Inclusiva;

b) Serviço de Acolhimento em República;

c) Serviço de Acolhimento em Família Acolhedora,

d) Serviço de Proteção em Situ-ação de Calamidades Públicas e Emergências

Em 2006 o Conselho Nacional de Assistência Social, através da Resolução nº269, de 13 de Dezembro de 2006 (DOU 26/12/06), art. 1º, aprova a Norma Operacional Básica de Recursos Humanos do Sistema Único de Assistência Social – NOB/SUAS (NOB-SUAS 2006), que define os níveis de gestão do SUAS, instâncias de articulação, pactuação e deliberação que com-

3Idem, p. 27

DICIONÁRIO DO SISTEMA SOCIOEDUCATIVO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

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põe o processo democrático de gestão do SUAS, financiamento e regras de transição.

Uma das inovações propostas pelo SUAS é a descentralização ad-ministrativa e financeira, entendida como o repasse de financiamentos da política para as instâncias esta-duais e municipais. A gestão finan-ceira se materializa na instituição e funcionamento dos Fundos de As-sistência Social, nos três níveis de governo, de acordo com a legisla-ção específica. Assim, os três níveis de governo ficam responsáveis pelo cofinanciamento e pela definição das fontes orçamentárias.

O Fundo de Assistência So-cial passa a ser o instrumento de gestão de todos os recursos desti-nados ao financiamento das ações assistenciais, os quais só podem ser repassados aos Estados e mu-nicípios que tivessem instituído oficialmente o tripé “Conselho de Assistência Social, o Fundo de As-sistência e o Plano de Assistência Social”. A transferência de recur-sos federais deixa de ser executada pela via dos convênios e passa a ser realizada fundo a fundo para os municípios habilitados, e na forma de piso para as instituições prestadoras de serviços devida-mente cadastradas nos Conselhos de Assistência Social. Nesta ló-gica, os conselhos têm atribuições específicas no que tange ao Fundo, pois os mesmos não são criados

apenas para receber recursos, mas para analisar e aprovar o plano de assistência social, tornando “pú-blicos” o planejamento de ações e a destinação dos recursos.

O Controle Social sobre a Política de Assistência Social é realizado pelos Conselhos de Assistência Social, instância paritá-ria e deliberativa, composta por 50% de representantes governamentais e 50% de organizações sociais elei-tas para esta função. Objetivou-se, com a implantação dos Conselhos, o exercício democrático de delibe-ração, acompanhamento da gestão e avaliação da política, do Plano Plurianual de Assistência Social e dos recursos financeiros destina-dos a sua implementação.

Outro eixo inovador que surge a partir da PNAS/2004 é a estrutura-ção de um Sistema de Informação, monitoramento e avaliação, com-preendido como o caminho ne-cessário para o acompanhamento, a avaliação e o aperfeiçoamento das ações desenvolvidas. O SUAS assume a responsabilidade de for-mular e implementar uma política de monitoramento e avaliação que permita a utilização de dados e in-formação na retroalimentação das políticas, melhorando seu desem-penho e tornando mais eficiente e eficaz a aplicação dos recursos, para que cheguem aos que real-mente necessitam.

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SISTEMA ÚNICO DE ASSISTÊNCIA SOCIAL (SUAS)

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A estruturação de sistemas com critérios e parâmetros que permitam monitorar e avaliar políticas públicas nos remete à questão da democratização das mesmas, as quais deixam de ser consideradas como impenetrá-veis e de domínio dos políticos e funcionários especializados, pas-sando a uma concepção de gestão pública com transparência nas in-formações através de sistemas de informação, com processos e flu-xos, definidos nacionalmente.

REFERÊNCIAS

BRASIL, Lei Orgânica da Assistência Social – LOAS. Brasília, 1996.

BRASIL, Política Nacional de Assistência Social. Brasília, 2004.

BRASIL, Norma Operacional Básica da Assistência Social – NOB/SUAS. Brasília, 2005.

BRASIL, Resolução n. 269, de 13 de dezembro de 2007. Norma Operacional Básica de Recursos Humanos – NOB-RH/SUAS. Brasília, MDS.

BRASIL, Capacita SUAS, vol. 2 – Desafios da Gestão do SUAS nos Municípios e Estados. Ministério do Desenvolvimento e Combate à Fome. Instituto de Estudos Especiais da Pontifícia

Universidade Católica de São Paulo. Brasília: MDS, 2008.

YAZBEK, Maria Carmelita. Estado, Políticas Sociais e Implementação do SUAS. In: BRASIL, Capacita SUAS, vol. I - Configurando os eixos de mudança. Ministério do Desenvolvimento e Combate à Fome. Instituto de Estudos Especiais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Brasília: MDS, 2008.

RIO DE JANEIRO, O Ministério Público na Fiscalização do Sistema Único de Assistência Social – cartilha de orientação. Centro de Apoio Operacional Cidadania, Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, 2014.

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SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE (SUS)

Ana Rosa Vieira Oliveira1

1 Doutora em Saúde Coletiva (UERJ), Mestre em Saúde Coletiva (UERJ), Especialista em Docência Superior (FABES) e Fisioterapeuta (UNISUAM). É Coordenadora do Curso Superior de Tecnologia em Segurança no Trabalho (Faculdade Gama e Souza), professora da graduação (UNICARIOCA e UCAM) e professora da Pós-Graduação/MBA (UNESA e Faculdade São Camilo).

O Sistema Único de Saúde (SUS) configura-se como o sistema nacional de saúde brasileiro e tem como princípios doutrinários a Universalização, que garante a saúde como direito de todos, além de dever do Estado; a Integrali-dade, que preconiza a organiza-ção do sistema de modo integrado no que se refere às ações e serviços de saúde; e a Equidade, que propi-cia a prestação de ações e serviços em todos os níveis de acordo com a complexidade exigida por cada caso, sem entraves ou privilégios.

O SUS é organizado a partir de três diretrizes constitucionais: a Descentralização, com ênfase para os municípios; a Integrali-dade das ações, que determina sua oferta em todos os níveis de atenção à saúde, enfatizando as ações de Atenção Primária; e a Participação Popular, que garante o exercício do controle social so-bre as ações e serviços de saúde.

O sistema adquiriu mate-rialidade jurídico-formal com a promulgação da Constituição Fe-deral de 1988, instrumento que concedeu à saúde um capítulo próprio, fato que em si mesmo já se constituiu como um dos prin-cipais avanços para o setor. Foi regulamentado pela Lei 8080/90, a Lei Orgânica da Saúde, de 19 de setembro de 1990, e está em vigor no país desde então.

Historicamente, a confor-mação do SUS tem basicamente início com o evento da Reforma Sanitária Brasileira, deflagrada a partir das lutas dos movimentos sociais que surgiram em paralelo às mobilizações de críticas rela-cionadas às crises e reformas que permearam o país nos anos 1980. Os movimentos da Reforma Sani-tária culminaram com a convoca-ção, em 1986, da VIII Conferência Nacional de Saúde (VIII CNS), que contou com a participação de representantes da população ci-

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SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE (SUS)

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vil e de profissionais e intelectu-ais da área da saúde.

Durante a Conferência, rea-lizada no início do período de redemocratização no Brasil, foram discutidos os temas e propostas para a conformação de um sistema de saúde que pudesse atender às grandes demandas reformis-tas, incluindo dimensões como a universalização do acesso aos ser-viços, o desenvolvimento de ações integradas, a hierarquização e a regionalização, entre outros.

O texto final da Conferên-cia versou principalmente sobre três questões essenciais à nova proposta: saúde como direito uni-versal, reformulação propriamente dita do sistema e financiamento do setor (fundamental para permitir a nova conformação). Foi encami-nhado ao Congresso Nacional e, naquele momento histórico espe-cífico, analisado pela Assembleia Nacional Constituinte, eleita para elaborar e desenvolver a Constitui-ção Federal, que deveria se adequar à nova realidade do país.

Após as discussões necessá-rias, e apesar de divergências no aspecto referente ao financiamento, a quase totalidade das propostas foi apreendida pela Assembleia. Assim, o texto constitucional aca-bou por incluir as propostas da VIII CNS, refletindo todo o pensamento reformista do setor saúde.

Nesse sentido, o SUS repre-senta um relevante avanço para o setor saúde no Brasil, garantindo direitos ao cidadão/usuário que nunca tinham sido considerados pelos sistemas anteriores. Em es-pecial, destacam-se o inédito di-reito universalizado ao acesso à saúde e o pleno entendimento e aceitação de seu conceito, na me-dida em que o texto constitucio-nal associa diretamente a garantia da saúde da população ao equa-cionamento das questões econô-micas e sociais, em conjunto com as ações próprias do setor.

Embora desde sua implanta-ção venha sofrendo com diversos e sérios problemas que necessitam de soluções eficazes e urgentes, incluindo reformulações que per-mitam sua melhor adequação às necessidades sociais e econômicas do país, o SUS é um sistema que se fundamenta em características muito bem estruturadas e em total consonância com o bem-estar social, além de ter respaldo constitucional.

Assim, é fundamental para o país que o sistema seja ampla-mente preservado em sua essência e todos os esforços precisam ser direcionados no sentido de asse-gurar seu funcionamento efetivo, como é demandado pelas amplas e reais necessidades da população e como é determinado pela legis-lação correspondente.

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REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição da República Federativa. Texto

Constitucional promulgado em 05 de outubro de 1988.

BRASIL. Lei 8080, de 19 de setembro de 1990.

SITUAÇÃO DE RUA

SITUANDO AS CATEGORIAS: DE “MENOR ABANDONADO” A “CRIANÇAS E ADOLESCENTES EM SITUAÇÃO DE RUA”

Márcia Gatto1

1 Márcia Gatto é Jornalista, Doutoranda em Políticas Públicas e Formação Humana (UERJ); Coordenadora da Rede Rio Criança.

Ao longo da história brasi-leira, levamos algum tempo para se pensar a criança e o adoles-cente enquanto sujeito de direitos. Inicialmente vistos como objetos, ou mesmo como “adultos peque-nos”, não existia uma visão ou legislação que os diferenciasse dos adultos, ou de leis e dispositi-vos que garantissem direitos. Isso veio de forma gradual.

A preocupação com as crianças pobres e abandonadas foi tratada de diversas maneiras e a respon-sabilidade foi atribuída a vários segmentos e instituições. Em se tratando de políticas públicas, clara é a diferenciação feita entre as crianças das diferentes classes,

como se existissem duas infân-cias: políticas para as “crianças” privilegiadas, filhos de “homens de bem”, geralmente com direitos sociais garantidos; e políticas para os “menores” marginalizados, filhos da classe subalterna, geral-mente com seus direitos negados. Ateremos-nos a esses últimos.

Os autores Rizzini e Pilotti (2009) observaram que “de mão em mão”, essas crianças foram passando desde o período colo-nial, quando estiveram sob a res-ponsabilidade dos jesuítas, quem tinham o papel de evangelizá-las; passando pelas mãos dos senho-res de escravos que, na verdade, consideravam-nas um fardo, pois

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SITUAÇÃO DE RUA

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pouco era a sua produção e muitas morriam devido às péssimas con-dições em que viviam; posterior-mente passaram pelas mãos das Santas Casas de Misericórdia, que dos expostos e desvalidos se res-ponsabilizavam, como exemplo, as crianças deixadas na famosa Roda dos Expostos, geralmente filhos in-desejáveis, de senhores com suas escravas, ou de jovens solteiras.

Segundo Ester Arantes (2008), durante os primeiros séculos da colonização portuguesa, não exis-tia àquela época a “criança”, pen-sada enquanto categoria genérica. O que existiam eram categorias di-ferenciadas de crianças como “os filhos de família”, “os meninos da terra”, os filhos dos escravos”, “os órfãos”, “os expostos”, “os desva-lidos”, “os negrinhos”. Durante o sistema caritativo, século XVII, fo-ram adotadas categorias distintas às do sistema não-caritativo, es-pecialmente para aquelas crianças que eram vistas pelas ruas da ci-dade, supostamente provenientes de famílias “desestruturadas” ou mesmo abandonadas.

Com a Lei do Ventre Livre (1871) surge uma grande inquie-tação: o que fazer com aquelas crianças fruto do Ventre Livre? Elas não eram órfãs, não eram expos-tas, nem tinham cometido crime algum e, sobretudo, deixariam de ter um dono que as tutelas-sem. Ou seja, o que fazer com as

crianças que eram livres e pobres e que perambulavam pelas ruas? Começava-se a dizer que aquelas crianças pelas ruas estavam aban-donadas material e moralmente, ou seja, abandonadas à própria sorte, podendo assim se tornar possíveis criminosos. A categoria “menor abandonado” surge, assim, após o advento da Lei do Ventre Livre. As crianças pobres, negras, nas ruas, consideradas órfãos de pais vivos e futuros delinquentes, deveriam ser encaminhados às instituições pre-ventivas em regime de internato, ou às casas de correção, quando da prática de ato infracional. Este foi um sistema que diferenciou o aten-dimento às crianças, uma vez que, enquanto o Código Civil de 1916 tratava dos “filhos de família”, o Código de Menores de 1927 tratava dos menores “abandonados” ou “delinquentes” (ARANTES, 2008).

O “menor abandonado” era uma categoria jurídica que impli-cava nas ações do Juiz de Menores e do Código de Menores de 1927. A adoção do termo “menor” passa a ser uma nomenclatura jurídica e social, adotada na virada do século XX, classificando a infância pobre, distinguindo-a de outros segmen-tos infantis da época.

O menor era visto como uma ame-aça social, e o atendimento a ele dispensado pelo Poder Público tinha por fim corrigi-lo, regenerá-

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-lo, reformulá-lo pela reeducação, a fim de devolvê-lo ao convívio social desvestido de qualquer vestígio de periculosidade, cida-dão, ordeiro, respeitador da lei, da ordem, da moral e dos bons costumes (COSTA, 1993, p.27).

A categorização estigmatizante do “menor”, “menor abandonado”, “pervertido” ou em “perigo de o ser” foi criada nessa época e efetiva-mente passou a ter uma conotação pejorativa. O Código de Menores de 1979 já trabalha com a categoria de “menor em situação irregular”, distinguindo-a da categoria “me-nor em situação regular”. Todo esse período fortaleceu muito a visão criminalizadora das crianças e dos adolescentes que estavam nas ruas, fortalecendo o estigma do “menor”, se perpetuando até nossos dias.

A categoria “meninos de rua” surge na década de 1980, época de criação do Movimento Nacional dos Meninos e Meninas de Rua, em 1985. Naquela época, tem início uma grande discussão nacional quanto à

histórica e desumana diferenciação entre “crianças” e “menores”, enten-dendo que ela era incabível. No bojo das lutas pelo fim da Ditadura Militar e pela redação de uma nova Constituição Federal, através de processo Constituinte, tem início uma grande mobilização do movi-mento social pela mudança na lei e no atendimento a essas crianças.

Com a aprovação da Consti-tuição Federal de 1988, que traz a relevante contribuição do movi-mento social em seu artigo 2272, e em 1990 da Lei 8.069/90, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), há uma quebra de paradigma não apenas nas concepções, mas tam-bém no sentido e aplicação da lei, que dispõe sobre a proteção integral à criança e ao adolescente (art. 1º), e na condição peculiar de pessoas em desenvolvimento (art. 6º). Crianças e adolescentes3 passam a ser consi-derados como sujeitos de direitos. Isso representou uma grande vitória para o movimento social e, princi-palmente, para esse segmento da população, pois, além de titulares de

2 Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. O Artigo 227 da CFB teve o peso de um milhão e meio de assina-turas, a partir da emenda popular denominada “Criança prioridade nacional”, liderada pelo Movimento Nacional dos Meninos e Meninas de Rua (MNMMR) e Pastoral do Menor, que mobilizou a sociedade brasileira de norte a sul.3 ECA, Artigo 2º - Considera-se criança, para efeitos desta lei, a pessoa até 12 anos incompleto, e adolescente aquela entre 12 e 18 anos de idade.

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SITUAÇÃO DE RUA

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uma série de direitos, o ECA também prevê a constituição de dispositivos políticos, como os Conselhos de Direitos das Crianças e dos Adoles-centes, os Conselhos Tutelares, bem como mudanças importantes em relação ao ato infracional do ado-lescente e regulamentação quanto a idade e inserção no mercado de tra-balho, dentre outros.

Até o final da década de 1990, parte da literatura sobre o tema costumava dividir as crianças e os adolescentes em situação de rua de acordo com dois amplos perfis, considerando como um dos prin-cipais fatores em sua descrição a existência ou não de vinculação com a família: (i) “meninos(as) na rua” (aqueles que estavam na rua, mas tinham ainda o vínculo familiar) e (ii) “meninos(as) de rua” (aqueles que permaneciam na rua, supostamente perdido o vín-culo familiar) (Rizzini, Caldeira, Ribeiro e Carvano, 2010).

De “menores abandonados”, passando por “menores em situa-ção irregular” e “meninos/as de/na rua”, chegamos ao conceito crianças e adolescentes em “situação de rua”:

A categoria “crianças e adolescen-tes em situação de rua” surge por volta do ano 2000, a partir de dis-cussões também nacionais, res-peitando o Estatuto da Criança e do Adolescente que os constitui como sujeitos de direitos. No âm-bito interno da Rede Rio Criança, desde a sua constituição, em me-ados de 2001, esta categoria foi alvo de muitas discussões e deba-tes. Pesquisadores do tema, como Ricardo Luccini e Daniel Stocklin (2003), sociólogos suíços, foram convidados pela Fondation Terre des hommes para um Seminário da Rede Rio Criança, em 2002, para apresentarem seus estudos so-bre esse grupo na Guatemala e na China, nos quais ressaltaram “que o mais importante a ser levado em consideração é o processo de rela-cionamento entre um ator e a rua, entre um ator e sua família, entre um ator e a polícia, entre outros” (RIZZINI; CALDEIRA; RIBEIRO e CARVANO , 2010, p. 19)4.

O termo “em situação de rua” era usado, mas ainda faltava um conceito que conseguisse abarcar a complexidade que envolvia esta questão. Para a Rede Rio Criança5,

4 www.ciespi.org.br/publicacoes/livros-e-periodicos?task...file...pdf. Acessado em janeiro de 2016.5 Rede Rio Criança é uma articulação de ONGs de referência que atuam de for-ma articulada no trabalho e em defesa dos direitos humanos de crianças e ado-lescentes em situação de rua no RJ. Instituições que integram a Rede Rio Criança: Associação Beneficente Amar, Associação Beneficente São Martinho, Associação Brasileira Terra dos Homens – ABTH, Associação Childholpe, Associação Excola, Banco da Providência, CEDECA RJ, Centro de Teatro do Oprimido – CTO, Movimento Moleque, Pastoral do Menor e Se Essa Rua Fosse Minha.

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era necessário dar movimento, fluidez à categoria, pois a relação com a rua é processual, heterogê-nea, individual, diferenciada, mas, ao mesmo tempo, para cada uma dessas crianças e adolescentes, em determinado(s) momento(s) de suas vidas, a rua tinha uma refe-rência muito forte.

Depois de muitas discussões, especialmente entre 2008 e 2009, época de formulação da Política Municipal de Atendimento às Crianças e Adolescentes em Situa-ção de Rua, no âmbito do Grupo de Trabalho constituído no Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (CMDCA Rio), chegou-se ao seguinte conceito, adotado na referida Política:

Situação de rua é uma complexa relação dinâmica que envolve “casa – rua – abrigo – rua – pro-jetos sociais / instituições – rua – família / comunidade – rua”, em que a rua, em diferentes graus, ocupa um lugar de refe-rência predominante e um papel central em suas vidas.

De acordo com este conceito, os meninos(as) que estão em situ-ação de rua não são apenas os que dormem nas ruas ou os que tra-balham nas ruas, mas também aqueles que estando abrigados temporariamente, ou em cumpri-mento de medidas socioeducati-vas, ou fazendo parte de projetos sociais em sua família ou comuni-dade, reiteradas vezes retornam às ruas, pois essa ainda é uma refe-rência forte em suas vidas.

O conceito mais recente para “Crianças e Adolescentes em Situ-ação de Rua” foi elaborado, coleti-vamente, ao longo do processo de construção das propostas de dire-trizes para uma Política Nacional de Atendimento às Crianças e Adolescentes em Situação de Rua, pelo Comitê Nacional da Rede de Atenção às Crianças e Adolescen-tes em Situação de Rua6, formado, em 2013, por Redes e Instituições de referência nessa temática das cinco regiões do Brasil, e dos ado-lescentes. Devido à abrângência do termo o grupo optou por definir o conceito e desenvolver também tipificações para “situação de rua”.

6 Instituições que compõem o Comitê Nacional: Campanha Nacional Criança Não é de Rua, Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua, Rede Rio Criança (RJ), Rede Inter-Rua (RS), Rede Amiga da Criança (MA), Projeto Meninos de Rua (SP). Desde meados de 2015, este grupo veio a compor o GT Criança e Adolescente em situação de rua do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA),deliberado pela Resolução 173, de abril de 2015, também formado pela representação de Ministérios (Desenvolvimento Social e Combate à Fome, Saúde, Educação, e pelo Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento da Política Nacional para População de Rua - CIAMP).

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SITUAÇÃO DE RUA

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De acordo com o documento:

Crianças e Adolescentes em situ-ação de rua, são crianças e ado-lescentes com direitos violados, caracterizados por sua heteroge-neidade (diversidade de gênero, orientação sexual, étnico-racial, religiosa, geracional, territorial, de nacionalidade, de opção polí-tica, entre outros), pela interrup-ção ou fragilidade dos vínculos familiares, em situação de po-breza ou pobreza extrema, com dificuldade de acesso às políticas públicas, utilizando logradouros públicos e/ou áreas degradadas de forma permanente ou intermi-tente. (Comitê Nacional da Rede de Atenção às Crianças e Adoles-centes em situação de rua, 2016)

A tipificação das situações de rua é dada da seguinte forma:

a. Situação de trabalho nas ruas.b. Situação de pedir nas ruas.c. Situação de abuso e explo-

ração sexual nas ruas.d. Situação de uso abusivo de

álcool e outras drogas nas ruas. e. Situação de ameaça de

morte que foram para as ruas. f. Situação de pernoite ou

moradia nas ruas de crianças e adolescentes.

g. Situação de pernoite ou moradia nas ruas de crianças e ado-lescentes acompanhados da família.

Utiliza-se o termo “situação” exatamente para enfatizar a pos-

sível transitoriedade e efemeri-dade dos perfis desta população. Ou seja, as crianças e adolescentes que estão em situação de rua po-dem mudar por completo o perfil repentina ou gradativamente, em razão de um fato novo.

Ocorre uma forte interseção das várias situações de rua. A situação de pernoite ou moradia nas ruas é a que mais se associa a outros perfis de maneira permanente. As inter-seções podem ocorrer também de maneira circunstancial. É possível identificar uma correlação entre os vários perfis, na qual uma situação levará à outra, o que torna o exer-cício de categorizar a situação de rua entre vários perfis uma tarefa complexa, a qual requer muita observação. Entretanto, a tipifica-ção das várias situações de rua é necessária para orientar que tipo de abordagem e qual encaminha-mento serão mais efetivos.

Podem existir outras tipifica-ções possíveis para situação de rua, de menor incidência que as ante-riores ou existentes em contextos regionais diversos. A situação de imigrantes ilegais, desabrigados em razão de catástrofes, desalojados de ocupações, entre outros, podem ser considerados provisoriamente como parte desta população.

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REFERÊNCIAS

ARANTES, Esther M. M. A reforma das prisões, a Lei do Ventre Livre e a emergência no Brasil da categoria de “menor abandonado”.2008. Disponível em: http://www.pol.org.br/pol/export/sites/default/pol/noticias/noticiaDo-cumentos/A_reforma_das_prisxes.pdf. Acesso em: 12 de agosto de 2011.

Comitê Nacional da Rede de Atenção às Crianças e Adolescentes em situação de rua, 2016 - Propostas de Diretrizes para uma Política Nacional de Atenção às Crianças e Adolescentes em situ-ação de rua, ainda em construção

COSTA, A. C. Brasil criança urgente. Belo Horizonte: Colum-bus Cultural, 1993.

RIZZINI, Irma; RIZZINI, Irene. A institucionalização de crianças No Brasil. Rio de Janeiro: Loyola, 2004.

RIZZINI, Irene; PILOTTI, Francisco (Orgs). A arte de gover-nar crianças. São Paulo: Editora Cortez, 2009.

RIZZINI, Irene; CALDEIRA, P.; RIBEIRO, R. ; CARVANO, M. Crianças e adolescentes com direitos violados: situação de rua e indicadores de vulnerabilidade no Brasil urbano. Rio de Janeiro: PUC, 2010.

SOCIOEDUCAÇÃO E EDUCAÇÃO SOCIAL

Janaina de Fátima Silva Abdalla1

1 Pedagoga no DEGASE. Diretora da Escola de Gestão Socioeducativa Paulo Freire – Novo Degase. Mestre em Comunicação, imagem e formação (UFF). Doutora em Educação (UFF). Professora na Faculdade Gama e Souza.

O princípio da ação socioe-ducativa tem seu caráter pedagó-gico e eminentemente educacional segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA, Lei no 8.069/1990) e o SINASE (Resolução no 119/2006 e a Lei Federal no 12.594/2012).

A política de socioeducação é responsável por proporcionar a ação socioeducativa aos adoles-

centes e jovens envolvidos e/ou em conflito com a lei.

Durante o processo socioedu-cativo, busca-se práxis pedagógica a partir de objetivos e critérios meto-dológicos próprios de um trabalho social reflexivo, crítico e construtivo. Como desdobramento, há promo-ção pessoal e social através de um trabalho de orientação de educação

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SOCIOEDUCAÇÃO E EDUCAÇÃO SOCIAL

S

formal, de atividades pedagógicas, de lazer, esportivas, culturais e de educação profissional, bem como demais questões inerentes ao desen-volvimento do sujeito frente aos de-safios da vida em liberdade.

Segundo Silva (2012):

A busca do rompimento com os ciclos de violência vivenciados his-toricamente pelos adolescentes e jovens e a construção de meios para educação destes para a vida em liberdade, a partir de um padrão de sociabilidade ético e saudável, é, portanto, o desafio da política de socioeducação. (SILVA, 2012, p. 105)

O conceito de socioeducação ou educação social, no entanto, des-taca e privilegia o aprendizado para o convívio social e para o exercício da cidadania. Trata-se de uma pro-posta que implica uma nova forma do indivíduo se relacionar consigo e com o mundo (COSTA, 2004b).

Deve-se compreender que edu-cação social é educar para o coletivo, no coletivo e com o coletivo. É uma tarefa que pressupõe um projeto social compartilhado, em que vários atores e instituições concorrem

para o desenvolvimento e o forta-lecimento da identidade pessoal, cultural e social de cada indivíduo.

A educação social é uma prá-xis política que entende o sujeito como ser que pensa, age, sente e se relaciona com as pessoas e seu contexto social, de forma a pro-mover a formação de sujeitos da educação e a transformação social.

Para a Souza e Müller (2009), o trabalho na e da educação social é entendido como:

Derecho del ciudadano que se con-creta en el reconocimiento de una profesión de carácter pedagógico, generadora de contextos educa-tivos y acciones mediadoras y formativas, que son ámbito de com-petencia profesional del educador social, posibilitando: La incorpo-ración del sujeto de la educación a la diversidad de las redes sociales, entendida como el desarrollo de la sociabilidad y la circulacion social; La promoción cultural y social, entendida como apertura a nuevas posibilidades de la adquisición de bienes culturales, que amplío en las perspectivas educativas, labo-rales, de ocio y participación social. (SOUZA & MÜLLER, 2009, p. 3)2.

2 Direito do cidadão tal como consagrado no reconhecimento de uma profis-são de caráter pedagógico , gerando contextos educativos e de mediação e ações de formação , que são âmbito da competência profissional do educador social , permitindo : A incorporação do tema da educação para a diversidade de rede so-cial, entendido como o desenvolvimento da sociabilidade e do movimento social; Promoção cultural e social , entendida como a abertura a novas possibilidades para a aquisição de bens culturais , que se expandiu no , trabalho, perspectivas educacionais de lazer e participação social. ( SOUZA & MÜLLER , 2009, p. 3).

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Portanto, a educação social / socioeducação prevê um processo de construção orientado pelo qual o jovem, situado no mundo e com o mundo, concretamente, transforma a si mesmo e o que está em sua volta, tornando-se sujeito de sua história.

A socioeducação como prá-xis pedagógica propõe política e um trabalho social reflexivo, crí-tico e construtivo, mediante os processos educativos orientados à transformação das circunstâncias que limitam a integração social, a uma condição diferenciada de relações interpessoais e, por exten-são, à aspiração por uma maior qualidade de convívio social.

De acordo com Antônio Carlos Gomes da Costa (2004a), a socioe-ducação se bifurca, por sua vez, em duas grandes modalidades: de cará-ter protetivo, voltada para a criança, o jovem e o adulto em circunstâncias especialmente difíceis em razão da ameaça ou violação de seus direitos por omissão da família, da socie-dade, do Estado ou até mesmo da sua própria conduta, o que os levam a se envolver em situações que implicam risco pessoal e social; e outra socioeducativa, voltada espe-cificamente para o trabalho social e educativo, que tem como destinatá-rios os adolescentes e os jovens em conflito com a lei em razão do come-timento de ato infracional.

Segundo o autor,

pode-se falar de uma socioedu-cação de caráter protetivo e outra de caráter socioeducativo. Essa última voltada para a prepara-ção de adolescentes e jovens para o convívio social, de forma que atuem como cidadãos e futuros profissionais, que não reincidam na prática de atos infracionais (crimes e contravenções), e asse-gurando-se, ao mesmo tempo, o respeito aos seus direitos funda-mentais e a segurança dos demais cidadãos. (COSTA, 2004a, p. 33)

Ao dar ênfase a esta forma-ção, a socioeducação se torna a tarefa primordial dos Sistemas Socioeducativos para adolescentes em conflito com a lei. O trabalho socioeducativo, nesse sentido, é uma resposta às premissas legais do Estatuto da Criança e do Adolescente, bem como às deman-das sociais do mundo atual.

REFERÊNCIAS

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SOCIOEDUCAÇÃO E EDUCAÇÃO SOCIAL

S

COSTA, Antonio Carlos Gomes da. As Bases Éticas da Ação Sócio-educativa. Manuscrito impresso. Belo Horizonte: abril/2004a.

__________, Antonio Carlos Gomes da. Sócio-educação – Estru-tura e Funcionamento de uma Comunidade Educativa. Manuscrito impresso. Belo Horizonte: abril/2004b

__________, Antonio Carlos Gomes da. Um histórico do aten-dimento socioeducativo dos adolescentes autores de atos infracionais no Brasil. Brasília: Ministério da Justiça, 1998.

SILVA, Silmara Carneiro. Socio-educação e juventude: reflexões sobre a educação de adolescentes e jovens para a vida em liberdade. In: Serviço Social Rev. v. 14, nº 2. Londrina, junho de 2012. p. 96-118. Disponível em: http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/ssrevista/article/view/8398/11639. Acesso em: 16 julho de 2016. Acesso em

SOUZA, Cléia Renata Teixeira & MÜLLER, Verônica Regina. Educador Social: conceitos fun-damentais para sua formação. In:VOSGERAU, Dilmeire Sant’Anna Ramos; ENS, Romilda Teodora; CASTELEINS, Vera Lúcia. Anais do IX Congresso Nacional de Educação (EDUCERE) / III Encontro Sul Brasileiro de Psicopedagogia – PUC PR. Curitiba: Ed. Champagnat, 2009. Disponível em: http://www.pucpr.br/eventos/educere/edu-cere2009/anais/pdf/2658_1385.pdf. Acesso em:16 julho de 2016.

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TTRABALHO INFANTIL

Elizabeth Serra Oliveira1

1 Pedagoga e Mestre em Educação pela Universidade Federal Fluminense, Doutora em Políticas Públicas e Formação Humana-Programa de pós-graduação e for-mação humana- Universidade do Estado do Rio de Janeiro- UERJ. Professora do Departamento de Educação Superior do Instituto Nacional de Educação de Surdos.

O trabalho é uma catego-ria fundante da ontologia do ser social, por ser uma realização essencialmente humana, cuja cen-tralidade determina a vida e, por isto deve ser um eixo mobilizador dos processos educativos. Se a vida humana necessita do trabalho e de seu potencial emancipador, ela deve combater o trabalho que aliena e explora o ser social. No entanto, a natureza do trabalho, tal como se apresenta, na maioria das sociedades mundo a fora, evi-dencia uma contradição, se por um lado podemos afirmar o trabalho como fundante da vida humana, por outro, sob o capitalismo, tor-na-se mercadoria, produto da acumulação de capitais e de merca-dorias, transformando em trabalho assalariado, alienado, fetichizado. Como tal, enquanto mercadoria e

com tais atributos, o trabalho con-verte-se em meio de subsistência e assume um papel central na vida das crianças das classes populares e, assim, segue se reproduzindo historicamente de modo diverso em cada sociedade. O trabalho, em sua forma alienada, deixa de ser emancipatório e torna-se mutila-dor do presente e do futuro. Desse modo, o envolvimento precoce da criança no mundo do trabalho, não raro, é utilizado como exploração econômica e como elemento de disciplina e controle.

Consideramos o trabalho como atividade fundamental da vida humana, que existirá enquanto existirmos. Ele assume caracte-rísticas históricas diferenciadas, associadas aos modos de produ-ção escravista, feudal, capitalista, socialista. O que muda é a natu-

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TRABALHO INFANTIL

T

reza do trabalho, as formas de trabalhar, os instrumentos de tra-balho, as formas de apropriação do produto do trabalho, as relações de trabalho e de produção, que se constituem de modo diverso ao longo da história da humanidade.

O trabalho humano materia-liza-se em coisas, objetos, formas, gestos, palavras, cores, sons, em realizações materiais e espiritu-ais. O ser humano cria e recria os elementos da natureza que estão ao seu redor e lhes confere novas formas, novas cores, novos signi-ficados. De modo que o trabalho é o fundamento da produção mate-rial e espiritual do ser humano para sua sobrevivência e reprodu-ção (IANNI, 1984).

Na cidade, conforme a herança do início do século passado, pelo taylorismo e o fordismo, com a divi-são de tarefas e a administração científica do trabalho, acontecem as linhas de montagem e o traba-lho mecanizado. Mais tarde, com o toyotismo e a automação, surgem a microeletrônica, a cooperação e o modelo “flexível” de produção e de relações de trabalho. Em um caso ou em outro, os trabalhadores perdem a visão do todo, destinam--se a cumprir tarefas coordenadas de trabalho. Na produção flexível, são estimulados a socializar seu saber sob a ideologia de terem

patrões e empregados (chamados de “colaboradores”) os mesmos interesses na produtividade e na competitividade da empresa.

Marx (1980) fala sobre o tra-balho das mulheres e das crianças em O Capital, considerando que,

Na medida em que torna supérflua a força muscular, a maquinização transforma-se em um meio de empregar operá-rios sem força muscular, ou com desenvolvimento físico incom-pleto, mas dotados de grande destreza de movimentos. Faça-mos trabalhar as mulheres e as crianças! Eis o que diz de si e para si o capital, quando come-çou a servir-se das máquinas. Este poderoso substituto do tra-balho e dos operários tornou-se assim um meio de aumentar o número de assalariados, englo-bando neles todos os meios da família operária, sem distinção de sexo nem de idade. Todos foram diretamente submetidos ao capital. O trabalho forçado em proveito do capital substi-tui os brinquedos da infância e até mesmo o trabalho livre que o operário realizava para a sua família no círculo doméstico e nos limites duma sã moralidade (MARX, 1980, p.77, grifo nosso)

Nesse sentido, compreende-mos o trabalho precoce2 como o

2 O termo trabalho infantil e trabalho precoce aqui apresentado se inter-rela-cionam em seus significados.

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conjunto de atividades realizadas por crianças, portanto, como a inserção da criança no trabalho, que visa a possibilitar-lhe sobrevi-vência ou a de outros, bem como sua exploração econômica.

O artigo 32 da Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança, ratificada em 1989 pela grande maioria dos países3 (com exceção dos EUA e da Somália), e pelo Brasil em 1990, serve-nos de um instrumento de referência para reflexão, ao discorrer sobre os direitos de crianças e adolescentes da seguinte forma:

1. Os Estados partes reconhecem o direito da criança de estar pro-tegida da exploração econômica e de qualquer trabalho que possa ser perigoso ou interferir na sua educação, ou seja nocivo para a sua saúde ou para o seu desenvol-vimento físico, mental, espiritual, moral ou social.4

Segundo definição do governo brasileiro, no Documento Orienta-dor da III Conferência Global sobre o trabalho infantil (2013: p.32), “o trabalho infantil pode ser defi-nido como todo tipo de atividade laboral realizada por crianças e adolescentes em desacordo com a idade estabelecida por lei para a permissão da entrada no mer-cado de trabalho”. Assim sendo, constitui forma de exploração que viola direitos fundamentais de crianças e adolescentes, qualquer atividade laboral desempenhada para o mercado ou não, seja habi-tual ou mesmo esporádico, sendo remunerada ou não.

É assegurado que crianças e adolescentes devem ter respon-sabilidades compatíveis com sua faixa etária, como parte do pro-cesso de socialização e desen-volvimento do indivíduo. Faz-se necessário compreender a asso-ciação que vai sendo produzida

3 A necessidade de proporcionar à criança uma proteção especial foi enunciada na Declaração de Genebra de 1924 sobre os Direitos da Criança, e na Declaração dos Direitos da Criança adotada pela Assembleia Geral em 20 de novembro de 1959, e reconhecida na Declaração Universal dos Direitos Humanos, no Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (em particular nos artigos 23 e 24), no Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (em particular no artigo 10) e nos estatutos e instrumentos pertinentes das Agências Especializadas e das organizações internacionais que se interessam pelo bem-estar da criança. Para efeitos da presente Convenção considera-se como criança todo ser humano com menos de dezoito anos de idade, a não ser que, em conformidade com a lei aplicável à criança, a maioridade seja alcançada antes. 4 Decreto nº 99.710. de 21 de novembro de 1990, que promulga a Convenção so-bre os direitos da criança http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/D99710.htm, acessado em 10 julho de 2013.

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TRABALHO INFANTIL

T

no capitalismo, entre trabalho, ocupação e emprego. Em relação à categoria trabalho, já vimos an-teriormente que o mesmo assume diferentes formas, de acordo com a realidade histórico social, dos modos de produção. Em relação ao termo ocupação, para os gregos, ocupações eram entendidas como atividades que visavam à satis-fação pessoal e eram desenvolvi-das por escolha própria. Na Idade Moderna, a ocupação distingue-se de trabalho (prática de esforço ou mera atividade subordinada às necessidades do processo de pro-dução) e de carreira (sequência ou progressão de posições dentro da mesma ocupação, que levam de um status inferior a um status superior). Atualmente, predomi-nantemente o termo ocupação é associado a trabalho e emprego.

Desse modo, é considerado trabalho infantil as atividades que comprometam o desempenho esco-lar, o tempo de estudo, de descanso, de convivência familiar e comu-nitária ou que acarretem riscos e danos ao processo de desenvolvi-mento físico, psicossocial, mental ou moral de crianças e adolescen-tes (BRASIL/OIT, 2013, p. 04).

No entanto, no Brasil, a com-preensão do trabalho infantil como forma de exploração econô-mica não é uma unanimidade.

O trabalho infantil no Brasil, ao longo da sua história, nunca foi representado como um fenômeno negativo na mentalidade da sociedade brasileira. Até a década de 80, o consenso em torno desse tema estava consolidado no sen-tido de entender o trabalho como sendo um fator positivo no caso de crianças que, dada sua situa-ção econômica e social, viviam situações de pobreza, de exclu-são e de risco social. Tanto a elite como as classes mais pobres com-partilhavam plenamente dessa forma de encarar o trabalho infantil (FILHO&NETO& GROF, 2007, p.13-14, p.).

A inserção precoce da criança no mundo do trabalho está asso-ciada a uma multiplicidade de condicionantes. Entre eles os que colocam o trabalho infantil como sendo consequência e não causa da pobreza. Segundo Rizzini (1996, p. 30), “a relação imediata que geralmente se estabelece no senso comum é alternativa de ocupar dignamente a infância no trabalho quando a ela só parece restar a trilha e a criminalidade”, No entanto, a ideologia do traba-lho, na forma de emprego visando ao lucro, tem sido bastante enrai-zada em nossa sociedade. Ainda de acordo com autora “o trabalho tornou-se valor inquestionável, mesmo o trabalho exercido em condições indignas e humilhan-tes. Ao pobre, o trabalho, desde a

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356

mais terna idade, como elemento educativo, formador e reabilitador (RIZZINI; RIZZINI, I., 1996, p. 31).

Sabemos que não é apenas a questão etária que garante o direito à infância. Não existe uma relação linear entre criança e infân-cia, a definição de criança difere de um país para outro. Enquanto, em algumas áreas, a criança e a infância são relacionadas à idade cronológica e suas fases de desen-volvimento, em outras, fatores sociais e culturais também são considerados, para garantir à criança seu tempo de infância.

Em relação ao conceito de in-fância, pretende-se discutir o sen-tido não unívoco de infância. Mormente, esse conceito tem con-siderado a criança como sujeito histórico incapaz de modificar o mundo e ser dialeticamente por ele modificado, cabendo-lhe somente a assimilação passiva dos conteú-dos culturais produzidos histori-camente pelo homem adulto. Para nós, “crianças não constituem ne-nhuma comunidade separada, mas são partes do povo e da classe a que pertencem” (BENJAMIN, 1985, p. 247-248). Desse modo, Benjamin (2007), compreende a infância, como um tempo em que a criança é reconhecida como ser social his-tórico, o qual, “as crianças for-mam seu próprio mundo de coisas, um pequeno mundo inserido no grande” (BENJAMIN, 2007, p.58).

Essas argumentações nos per-mitem fazer a distinção entre duas formas fundamentais de trabalho: o trabalho como relação criadora, do homem com a natureza, pro-duzindo a existência humana, o trabalho como atividade de auto-desenvolvimento físico, material, cultural, social, político, estético, o trabalho como manifestação de vida; e o trabalho nas suas formas históricas de sujeição, servidão ou de escravidão ou do trabalho moderno, assalariado, alienado na sociedade capitalista.

A história tem nos mostrado que o trabalho infantil vem acom-panhando a história da humani-dade, assumindo diversas formas, revelando diferentes intensidades, de acordo com cada processo sócio histórico e assume novas especifi-cidades sob a égide da sociedade de mercadorias. Neste modelo societário, ocorre uma “supressão da infância na vida das crianças” (MARTINS, 1993, p. 17).

Com o surgimento do sistema capitalista, a inserção precoce da criança no mundo do trabalho se intensifica, pois, ultrapassa sua dimensão familiar artesanal, transformando-se numa proble-mática social, uma vez que as crianças passaram a ser explora-das comercialmente, com base em regras do sistema capitalista. Essa inserção, em sua grande maioria, torna-a mercadoria e ocupa ou-

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TRABALHO INFANTIL

T

tros condicionantes na vida da criança e do adolescente.

A inserção precoce da criança no trabalho capitalista, do mesmo modo que para o adulto, se dá sob a forma do trabalho alienado, por-que também o trabalho infantil está absolutamente dissociado da condição autônoma de transfor-mação da natureza, bem como do seu princípio educativo.

REFERÊNCIAS

BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas I: Magia e técnica, arte e política (S. P. Rouanet, Trad.) São Paulo: Brasiliense, 1985 (Original publicado em 1974).

______. Reflexões sobre a criança, o brinquedo e a edu-cação. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 2007.

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BRASIL. Decreto no 3.597, de 12 de setembro de 2000 - Promulga a Convenção 182 e a recomendação 190 da Organização Internacional do Trabalho - OIT sobre a proibi-ção das piores formas de trabalho

infantil e a ação imediata sobre sua eliminação, concluídas em Genebra, em 17 de junho de 1999. Diário Oficial da União, Poder Executivo, Brasília, DF, 13 set. 2000. Disponível em http://www2.planalto.gov.br/presidencia/legis-laca. Acesso em 22 abril de 2013.

______. Decreto no 4.134, de 15 de fevereiro de 2002 - Promulga a Convenção no 138 e a Recomendação no 146 da Organização Internacional do Trabalho - OIT sobre idade mínima de admissão ao emprego. Diário Oficial da União, Poder Executivo, Brasília, DF,18 fev. 2002. Disponível em http://www2.planalto.gov.br/presidencia/legislacao. Acesso em 22 abril de 2013.

FILHO, Raimundo Coelho de Almeida; NETO, Wanderlino Nogueira; GROF, Rogério. Guia Metodológico para Implementação de Planos de Prevenção e Erradica-ção do Trabalho Infantil. Brasília: OIT, 2007. 52 p.

IANNI, Octavio. A era do globalismo. Rio de Janeiro, Civili-zação Brasileira, 1984.

MARX, Karl. . O Capital (crítica da economia política). Rio de Ja-neiro: Civilização Brasileira, 1980. 2 v.

MARTINS. José de Souza. O Massacre dos Inocentes: a criança sem Infância no Brasil. 2. ed. São Paulo: Editora Hucitec, 1993.

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OLIVEIRA. Elizabeth Serra. Exploração do trabalho infan-til, a violação do direito de ser criança e adolescente no Brasil. In: OLIVEIRA, Elizabeth Serra; VARGENS, Paula W. (org.). Desafios Educativos do fazer cotidiano, Diferentes Olhares. Rio de Janeiro: Imperial novo Milênio, 2012.

RIZZINI, Irene. RIZZINI, Irma. A Criança e o Adolescente no Mundo do trabalho. Rio de Janeiro: Ed.USU, 1996.

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UNIDADE DE REINSERÇÃO SOCIAL

U

UUNIDADE DE REINSERÇÃO SOCIAL

Ida Cristina Rebello Motta1 Tania Mara Trindade Gonçalves2

1 Assistente Social do DEGASE desde 1994, atuando na Escola de Gestão Socioeducativa Paulo Freire. Assistente Social da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro – Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social – SMDS desde 1987, lotada na 7ª Coordenadoria de Desenvolvimento Social. Apresentando experiên-cia na Proteção Social Especial de Média e Alta Complexidade, Proteção Social Básica e na área Sociojurídica. Experiência em gestão (Gerência, Assessoria e Coordenação) na Política de Assistência Social nos períodos de 1993 a 2006 e 2010 a 2016. Graduada pela UERJ e Mestranda em Políticas Sociais pela UFF. Pesquisadora do Núcleo de Direitos Humanos e Sociais, UFF.2 Assistente Social da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro - Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social – SMDS, desde 1987, lotada na 7ª Coordenadoria de Desenvolvimento Social e Assistente social do DEGASE desde 1998, com lota-ção na Escola de Gestão Socioeducativa Paulo Freire. Possui experiência na área Sociojurídica, na Proteção Social Básica e na Proteção Social Especial de Média e Alta Complexidade. Com experiência em gestão (Coordenação, Gerência e Assessoria) na Política de Assistência Social nos períodos de 1993 a 2002 e de 2009 a 2016. Graduada pela UERJ, com Pós-Graduação em Políticas Sociais pela UERJ.

A Unidade de Reinserção Social (URS) é uma modalidade de acolhimento institucional de famí-lias e indivíduos que se encontram em situação de risco pessoal e so-cial, provocados por situações de violação de direitos, como aban-dono, maus tratos físicos e/ou psí-quicos, diversas formas de abuso, situação de rua, uso de substân-

cias psicoativas, cumprimento de medida socioeducativa, dentre ou-tras, visando a garantir proteção integral a esses cidadãos.

No âmbito do município do Rio de Janeiro, a Secretaria Mu-nicipal de Desenvolvimento So-cial (SMDS) executa o programa de acolhimento institucional nas Unidades de Reinserção Social, vi-

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sando ofertar serviços de proteção e cuidado. Historicamente, entida-des não governamentais também realizam este tipo de atendimento.

O Sistema Único de Assistên-cia Social é um sistema público não contributivo, destinado à ges-tão da assistência social, enquanto política pública, que deve garantir as seguranças de sobrevivência, de acolhida e de convívio ou vivência familiar e comunitária. Possui como um dos objetivos afiançar a vigilân-cia socioassistencial e a garantia de direitos. Neste sentido, organiza as ações por níveis de complexidade.

As Unidades de Reinserção Social integram o Sistema de Proteção Social Especial (PSE) de Alta Complexidade, que estabe-lece como diretriz o acolhimento personalizado de indivíduos e/ou famílias, em pequenos grupos, afas-tados temporariamente do núcleo familiar e/ou comunitário de origem e o resgate do convívio. Atendendo aos objetivos da PSE, atuam na construção e/ou no fortalecimento de vínculos familiares e comunitá-rios, no destaque de potencialidades e na proteção dos usuários aten-didos, para que possam enfrentar as situações de risco a que estão submetidos. Com centralidade na família e incentivo ao processo de mudança de vida dessas pessoas, realizam intervenções referentes à subjetividade, às relações fami-liares e comunitárias, ressaltando

a importância do acesso a direitos e à inserção social, que se fazem necessárias e prementes, além de encaminharem para a reinserção familiar, comunitária e social.

Neste sentido, o trabalho aponta para a perspectiva da ampliação da cidadania e para a garantia dos direi-tos humanos, conforme preconiza a Política Nacional de Assistência So-cial. A Tipificação Nacional de Servi-ços Socioassistenciais, aprovada em 2009, promoveu normas de padroni-zação dos serviços de proteção social básica e especial, em âmbito nacional.

Considerando tal organização dos serviços, as unidades de aco-lhimento institucional, segundo a Tipificação Nacional de Serviços Socioassistenciais deverão:

Garantir privacidade, o respeito aos costumes, às tradições e à diversidade de: ciclos de vida, ar-ranjos familiares, raça/etnia, reli-gião, gênero e orientação sexual; funcionar em unidade inserida na comunidade com característi-cas residenciais, ambiente acolhe-dor e estrutura física adequada, visando o desenvolvimento de relações mais próximas do am-biente familiar. As edificações devem ser organizadas de forma a atender aos requisitos previs-tos nos regulamentos existentes e às necessidades dos usuários, oferecendo condições de habi-tabilidade, higiene, salubridade, segurança, acessibilidade e pri-vacidade (CNAS, 2009, p. 40).

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Assim, os serviços de prote-ção especial deverão cuidar dos cidadãos em sua integralidade e de forma conjunta com as demais políticas públicas, destacando-se a importância da articulação com a Saúde e a Previdência Social, visto que a Assistência Social compõe a Política de Seguridade Social.

Os serviços ofertados na Pro-teção Social Especial têm uma relação direta e próxima com o Sistema de Garantia de Direitos, exigindo, muitas vezes, uma ges-tão mais complexa e compartilhada com o Poder Judiciário, o Ministério Público e outros órgãos e ações do executivo, especialmente quando se tratam de crianças, adolescentes, idosos e pessoas com deficiência.

O conceito de incompletude ins-titucional, associado às demandas postas pelos usuários dos serviços que compõem a alta complexidade, apontam para a importância da articulação intersetorial enquanto estratégia de potencialização do atendimento e de melhor orga-nização dos recursos existentes. Neste sentido, para além da articu-lação com a rede socioassistencial, ressaltamos a urgência no estabele-cimento de um diálogo mais efetivo entre as duas proteções afiançadas pela Assistência Social (Básica e Especial), tendo em vista as ações limites que se colocam no cotidiano do trabalho, pela própria política.

É importante ressaltar que está previsto na legislação o regis-tro das entidades governamentais e não governamentais, no Con-selho Municipal da Criança e do Adolescente e no Conselho Muni-cipal de Assistência Social, assim como a inscrição de seus progra-mas de acolhimento institucional nos referidos conselhos, de modo a favorecer o controle e a fiscaliza-ção dos serviços oferecidos.

No que se refere a crianças e adolescentes, o acolhimento insti-tucional se configura como uma medida de proteção prevista no artigo 98 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), a qual, com base no artigo 92, deverá assegurar, resguardando o caráter provisório e excepcional da lei:

I- Preservação dos vínculos familiares;

II- Integração em família substituta, quando esgotados os recursos de manutenção na famí-lia de origem;

III- Atendimento personalizado e em pequenos grupos;

IV- Desenvolvimento de ativi-dades em regime de coeducação;

V- Não desmembramentos de grupos de irmãos;

VI- Evitar, sempre que possí-vel, a transferência para outras entidades de crianças e adoles-centes abrigados;

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VII- Participação na vida da comunidade local;

VIII- Preparação gradativa para o desligamento;

IX- Participação de pessoas da co-munidade no processo educativo.

(ECA, 1990, p. 44)

Destacamos a estreita relação existente entre a PNAS e o Sistema Nacional de Atendimento Socio-educativo (SINASE) no âmbito do atendimento de adolescentes a quem se atribui autoria de ato infracional, que necessitam de acolhimento institucional durante o cumprimento da MSE e ainda no acompanhamento das medidas em meio aberto, municipalizadas no ano de 2009. Ressalta-se aqui a importância das equipes de profissionais dialogarem entre si no sentido de construírem, con-juntamente, referências para um atendimento mais qualificado e eficaz, que atenda as demandas postas para ambas as políticas.

Para o atendimento direto nas URS, levando-se em considera-ção a referência de unidade com até 20 (vinte) usuários, a Norma Operacional Básica de Recursos Humanos, NOB-RH / SUAS, define o quantitativo mínimo de profis-sionais, sendo um coordenador, um cuidador, um assistente social e um psicólogo. Assim, as ações desenvolvidas por essas equipes, referem-se a: acolhimento, escuta,

realização de estudo social e de relatórios, alimentação de dados no sistema da justiça destinado a informações do atendimento a crianças e adolescentes – Módulo Criança e Adolescente (MCA), visitas domiciliares, atendimentos em grupos (reflexivos e temáti-cos), realização de assembleias, orientações e encaminhamentos (Varas da Infância e Juventude, Conselhos Tutelares, Promoto-rias, instituições que compõem a rede de serviços socioassisten-ciais, entre outros), promoção de atividades e eventos comemora-tivos, inserção dos usuários em atividades oferecidas no território (escolas, cursos, oficinas, serviços de convivência ofertados nos Cen-tros de Referência de Assistência Social – CRAS), articulação com os profissionais das instituições que compõem o Sistema de Garantia de Direitos (SGD), estudos de casos, dentre outras. As ações menciona-das devem estar direcionadas ao fortalecimento dos usuários e ao empoderamento de suas famílias, a fim de que possam conquistar a proteção e a segurança social necessárias ao convívio familiar, comunitário e social.

É importante ressaltar que a implementação das diretrizes aqui apresentadas se constitui como um grande desafio para as equi-pes profissionais, tendo em vista a complexidade das expressões

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das questões sociais vivenciadas no cotidiano do trabalho e das contradições presentes nas rela-ções que se estabelecem no espaço político institucional.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente: Lei 8.069/90, de 13 de julho de 1990. Brasília: Senado Federal, 1993.

BRASIL. Resolução nº 109, de 11 de novembro de 2009. Tipificação Nacional de Serviços Socioassistenciais. Diário Oficial da União, Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, Conselho Nacional de Assistência Social. Brasília: 25 nov. 2009. Seção 1, nº 225, p. 1 - 43.

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VVIOLÊNCIA

Roberto Marques1

1 Professor da Faculdade de Educação da UFRJ. Doutor em Educação pela UFF.

Violência é uma palavra de origem latina (violentia) e se rela-ciona ao sentido de “veemência” ou “impetuosidade”. Tem a ver com a palavra “violar”, que, por sua vez, também vem do latim violare e sig-nifica “não respeitar”, “maltratar”, “exercer força ou abuso”. Ambas se formam a partir da palavra la-tina vis, que significa “força”, mais especificamente exercida sobre al-guém. Essas significações iniciais nos levam a uma concepção de violência que assume um caráter que nos acostumamos a conside-rar negativo – o exercício da força sobre o outro, o abuso da força. No entanto, a mesma raiz etimológica nos leva a outras palavras, como “viril” e “virtuoso”. A primeira ligada ao masculino como um elemento constituído de força. A segunda nos leva às ideias de valor, virtude, força ou potência intrín-seca a algo ou alguém. Esse curto exercício etimológico nos mostra

como os significados das palavras e os sentidos que carregam podem ser relativos e precisam ser contex-tualizados para compreendermos como elas se inserem em deter-minados momentos históricos e como se articulam com elementos constitutivos da cultura e das ela-ções de poder em uma sociedade. Quer dizer, mais do que uma ex-plicação ou definição do termo, é importante identificarmos os seus sentidos, usos e desdobramentos na cultura e na sociedade.

Por exemplo, em 2013, no Brasil, as manifestações populares de rua trouxeram ao cenário nacional um coro que se repetiu várias vezes, nas ruas e nos meios de comuni-cação de massa: “sem violência!”. Uma multidão de cerca de um mi-lhão de pessoas, em protesto, en-toando palavras de não violência é, ao mesmo tempo, contraditório e sintomático. Contraditório por-que um ato de protesto que reúne

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tantas pessoas pode ser compre-endido como uma manifestação de violência em si, uma vez que se trata da demonstração de força contra determinados sujeitos ou grupos. É sintomático do simbo-lismo da ideia de violência que se torna dominante nessa sociedade ou nessa cultura. Uma violência fetiche e de significado seletivo, orientado a comportamentos e su-jeitos. Ou seja, costumamos identi-ficar como violência determinadas manifestações e como violentos determinados sujeitos sociais. Voltando às manifestações, a preo-cupação em não haver agências de bancos quebradas ou depredações pelo caminho não impediu que o aparato policial utilizasse da força e de armas para conter e dissipar os manifestantes.

A necessidade de seguir um comportamento padrão, identifi-cado como “pacífico” ou “não vio-lento”, se insere em um contexto de domínio de concepções liberais que prezam pela harmonia e pela manutenção da ordem. Por isso, desdobrando as ideias de Slavoj Žižek, a recusa a priori da violência insere as pessoas em um pacto de manutenção da ordem, por mais injusta e opressiva que ela seja. Portanto, as pessoas que concla-maram “sem violência” o faziam para não perderem a legitimidade da manifestação. Não queriam que o protesto fosse desqualifi-

cado, identificado como vanda-lismo, mal educado, incivilizado.

A objetificação e fetichização da violência também nos levam a cair em três eixos de interpretação que ocultam as relações de poder e os conflitos inerentes às relações sociais e humanas. O primeiro é a associa-ção direta entre violência e sujeito violento. Ao tratarmos a violência como uma manifestação individual (ainda que de um grupo ou outro), perdemos de vista as relações e pas-samos a tratar o assunto como algo subjetivo ou marca de uma cultura, grupo social ou pessoa. Ou seja, é o indivíduo violento, o lugar violento, o grupo violento, a cultura violenta etc. O segundo diz respeito a des-considerar as relações de poder, de dominação e os conflitos, tratando a violência como um fenômeno em si. Falamos, então, em violên-cia como algo endêmico, como um mal dos tempos atuais, ou, ainda, violências específicas (doméstica, escolar, urbana, etc.). Como uma doença que pode ser controlada ou extirpada com ações preventivas. Ela se torna, assim, em problema a ser resolvido e não é compreendida como uma produção ou uma ação. Por fim e associado ao segundo eixo de interpretação, a violência como ideia encerrada e pronta, con-siderada como objeto, permite que seja discursivamente manipulada e associada a outras manifestações, como o medo ou a segurança.

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O medo da violência e a busca pela ideia de segurança pautada no controle de uma determinada ideia de violência funcionam como dispositivos importantes para o exercício do controle em prol da manutenção de uma ordem.

A discussão sobre a violência, mais do que a necessidade de defi-nição do significado da palavra, é importante para compreender-mos os seus desdobramentos e o que ela representa.

Franz Fanon, observando o processo de independência e des-colonização da Argélia, escre-veu um longo capítulo intitulado “Sobre a violência”, em seu livro Os condenados da terra. Nele, dis-cute a colonização e a coloniali-dade como ações violentas, ainda que não consideradas como tal – e, por isso mesmo, qualifica como violência –, ao contrário da força empreendida pelos colonizados no processo de emancipação. Žižek, na mesma linha, declarou que Gandhi foi muito mais vio-lento do que Hitler, porque de-safiou a ordem colonial inglesa, enquanto o último pretendeu a manutenção da ordem capitalista ocidental. Pierre Bourdieu, em boa parte da sua obra, tratou do tema da violência simbólica e da naturalização das regras e modos de pensar, agir e conviver dentro de um sistema e da sociedade.

A questão da violência, as-sim, mais do que uma discussão de definição ou etimologia, passa também por buscar identificar e compreender os ordenamentos, as demandas por manutenção da or-dem e os movimentos cotidianos e estruturais, subjetivos e coletivos de enfrentamento ruptura ou re-produção da ordem.

REFERÊNCIAS

FANON, Frantz. Os condenados da terra. Salvador: EDUFBA, 2005.

ŽIŽEK, Slavoj. Violência. São Paulo: Boitempo, 2014.

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Patrícia Castro de Oliveira e Silva1

1 Psicóloga, Pós-doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social (PPGPS) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, doutora em Psicossociologia de Comunidades e Ecologia Social (EICOS/UFRJ), em 2012.

Violência sexual diz respeito a qualquer atitude ou prática sexual realizada sem o consentimento da ou das pessoas envolvidas ou cujo consentimento não foi dado de maneira livre e autônoma, mas sim sob quaisquer formas de co-erção. Existem diferentes tipos de violência sexual, que podem envolver contato físico ou não, tal como nos casos de abuso sexual verbal, assédio sexual, voyerismo, exibicionismo e pornografia in-fantil. Qualquer pessoa pode vi-venciar ou perpetrar violência sexual, no entanto, historicamente são mulheres, crianças e adoles-centes que mais têm sido afligidas por este tipo de violência. Nestes casos, os(as) perpetradores(as) costumam ser pessoas conhe-cidas: familiares (pai, mãe, pa-drasto, madrasta, dentre outros), namorados(as), companheiros(as), amigos(as), vizinhos(as), pessoas de referência em suas vidas.

Violência Sexual:visão geral

A violência sexual faz parte da historia da humanidade e aflige diferentes grupos de pessoas em todo o mundo. No entanto, ape-nas a partir da década de 90, este tipo de violência passou a receber destaque e visibilidade por parte de órgãos governamentais, enti-dades civis, movimentos sociais e organizações não governamentais (SOUZA; ADESSE, 2005). Tal visi-bilidade se deve aos movimentos feministas, que inicialmente fo-caram seus esforços no enfrenta-mento da violência doméstica, em função da magnitude dos casos de violência conjugal e do grau de violência envolto nos mesmos (D´OLIVEIRA, 1997). Mas, poste-riormente, passaram a atuar so-bre outras formas de violência, dentre elas a violência sexual. Por isso, estudos e políticas públicas mundiais e nacionais voltadas para o enfrentamento deste tipo de violência são mais recentes.

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Somente em 2002, a Organização Mundial de Saúde (OMS) definiu a violência sexual como todo ato sexual não desejado, ou ações de comercialização e/ou utilização da sexualidade de uma pessoa mediante qualquer tipo de coer-ção. Essa postergação na visibili-zação e enfrentamento deste tipo de violência parece remeter a uma dificuldade em se trabalhar com “dimensões mais problemáticas da sexualidade, possivelmente em função de nossa cultura e sociali-zação sexual” (SOUZA; ADESSE, 2005, pag. 11). No entanto, a vio-lência sexual em verdade faz parte de uma rede de violências. Conforme Domenach (1981:40), “a violência dos indivíduos e gru-pos tem que ser relacionada com a do Estado”. Assim, enquanto cidadãs e cidadãos, somos todos sujeitos(as) e objetos das diversas formas de violência. A violência sexual precisa ser compreendida a partir de uma análise intersec-cional2 que considere os diversos aspectos de sua produção e re-produção, a partir de dimensões como gênero, raça/etnia e geração, aspectos relacionados à hetero-normatividade3, dentre outras.

A luta dos movimentos femi-nistas resultou na consolidação de instrumentos jurídicos e sociais de

proteção às pessoas em situação de violência, especialmente mulheres e adolescentes. Por exemplo, o Brasil é signatário da CEDAW (Conven-ção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres), da Convenção de Belém do Pará, da Conferência Mundial sobre a Mulher (Beijing, 1995) e da Conferência Internacional de Popu-lação e Desenvolvimento (Cairo, 1994), dentre outras. No Brasil, são frutos fundamentais dessa histó-rica luta contra as diversas formas de violência contra as mulheres: a criação da Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM), a Lei de Notificação Compulsória das vio-lências contra mulheres, crianças, adolescentes e pessoas idosas aten-didos em serviços de saúde públicos ou privados (Lei nº 10.778/2003, art. 13 da Lei nº 8.069/1990, art. 19 da Lei nº 10.741/2003), a Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006), e ainda as Varas Especializadas em Vio-lência Doméstica e Familiar contra a Mulher, as Delegacias Especia-lizadas no Atendimento à Mulher (DEAMs) e as Delegacias da Criança e Adolescente Vítima (DECAVs).

Apesar dos avanços, ainda existem muitas lacunas no que diz respeito ao conhecimento sobre a violência sexual. Existe subnotifi-cação dos casos, seja por questões

2 Sobre o conceito de “interseccionalidade”, ver: Crenshaw (1989); Combahee River Collective (2008); Hirata (2014).3 Sobre heteronormatividade, ver o verbete Sexualidade nesta publicação.

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culturais vinculadas ao gênero, nas quais a vítima da violência tende a ser culpabilizada pela violência sofrida e, assim, muitas mulheres acabam por não buscar ajuda ou denunciar a violência - o que também aflige os homens vítimas de violência, adultos ou adolescentes, os quais tendem a não revelar a violência temendo que sua masculinidade seja ques-tionada. Além disso, existem problemas para identificação e notificação dos casos nos setores saúde e educação. Unidades de saúde não especializadas no aten-dimento das violências, bem como instituições educacionais tendem a não identificar e notificar os ca-sos que, em verdade, estão pas-sando por estas instituições. Tudo isso contribuiu para que as di-mensões do fenômeno não sejam realistas, e, portanto, estratégias de prevenção e atenção não sejam tão eficazes atingindo as popula-ções mais vulneráveis, como mu-lheres, crianças e adolescentes.

Violência Sexual contra crianças e adolescentes

A violência contra crian-ças e adolescentes manifesta-se de múltiplas formas ao longo de história humana. Podemos carac-terizá-la como uma situação em que existe um sujeito em condi-

ções de superioridade, que comete dano, seja corporal, psicológico ou sexual, contrariamente à von-tade da criança e/ou adolescente ou, mesmo após consentimento desta, quando tal consentimento for obtido por indução ou sedução enganosa (De LORENZI, 2001).

Muitas vezes, a violência sexual contra adolescentes é crônica, ou seja, é um tipo de violência que vem ocorrendo há muito tempo, provavelmente dentro da própria casa ou praticada por algum/a conhecido/a, amigo/a ou parente. Especificamente, no caso de vio-lência sexual contra adolescentes é comum o pensamento de que a adolescente seduziu o violador, ou o levou a praticar a violência. Em relação aos e às adolescentes, ao contrário do que ocorre com crianças, existe forte culpabiliza-ção pela violência sofrida, pois costuma-se ter o entendimento de que eles(as) têm consciência do que estavam fazendo. Quanto a isso, é importante observar que adolescentes estão em desenvol-vimento e cabe à sociedade, ou seja, a todos/as nós, possibilitar que se desenvolvam adequada-mente e que tenham seus direitos garantidos. Educadores(as), além de familiares, são os adultos que possuem maior possibilidade de verificarem quaisquer modifica-ções no estado físico e psicológico de crianças e de adolescentes,

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tendo em vista a proximidade e o convívio diário. Setores como o de educação, saúde e assis-tência social onde crianças e adolescentes estão inseridos têm papel fundamental na prevenção, identificação e atenção deste tipo de violência (ADESSE; CASTRO; MOTA, 2010). De modo geral, a violência sexual contra crianças e adolescentes pode ser compreen-dida em duas categorias: o Abuso Sexual e a Exploração Sexual.

Abuso Sexual

Caracteriza-se pela utilização de criança ou de adolescente em uma relação de poder desigual, geralmente praticada por pessoas muito próximas, que podem ou não ser da família. Adultos(as) ou adolescentes mais velhos(as), geralmente, estão em um estágio de desenvolvimento psicossexual mais adiantado e se aproveitam dessa relação desigual de poder e confiança para satisfazer seus dese-jos sexuais. Pode ocorrer com ou sem violência física, mas a violência psicológica está sempre presente (ADESSE; CASTRO; MOTA, 2010).

• Abuso sexual em instituições de atenção a crianças e adolescen-tes: ocorre em espaços como unidades de saúde, escolas, e outras instituições responsáveis

por prover, proteger, defender, cuidar e aplicar medidas socio-educativas. Pode se perpetrada por profissionais da instituição ou entre as próprias crianças ou adolescentes. No caso da violên-cia ser cometida por funcioná-rios da instituição, revela-se aí como uma atividade do poder instituído, que submete a ví-tima àqueles(as) que detêm esse poder. Quando ocorre entre as próprias crianças e adolescentes, os(as) recém-chegados(as) são forçados a se submeter sexual-mente a grupos de adolescentes mais velhos(as) e/ou antigos(as) na instituição e que domi-nam o território e o poder local (SANTOS, 2009);

• Violência Sexual Intrafamiliar ou Doméstica: tipo mais frequente de abuso sexual cometido em nosso país contra crianças e adolescentes, que também pode ser denominada incesto. A conceituação de incesto implica também a conceituação de família. Correntes atuais compre-endem família de modo ampliado, para além da consanguinidade ou de modelos tradicionais familia-res baseados na família nuclear e heterossexual. Assim, o incesto seria o relacionamento sexual entre membros de uma família, compreendida também pela afi-nidade e pela função social de pa-rentesco (COHEN, 1993). Uma das maiores consequências desse tipo de violência é a saída de muitas crianças e adolescentes para a rua, ficando mais expostos às redes de exploração sexual.

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Exploração Sexual

Trata-se da utilização sexual de crianças e adolescentes com fins comerciais e de lucro. Implica o en-volvimento destes(as) em praticas sexuais coercitivas ou persuasivas, o que configura uma transgressão legal e uma violação de direitos à liberdade individual de crianças e adolescentes. A exploração sexual comercial de crianças e adolescen-tes é uma relação de poder e de sexualidade mercantilizada, que visa à obtenção de proveitos por adultos, que causa danos biopsi-cosssociais aos(as) explorados(as), que são pessoas em processo de desenvolvimento (FALEIROS, 2000). Ainda que a violência sexual acometa crianças e adolescentes, homens e mulheres, pertencentes a diferentes camadas socioeconô-micas, o perfil das crianças e ado-lescentes exploradas sexualmente aponta para a exclusão social de determinados grupos sociais. A maioria são meninas e adolescen-tes mulheres, negras e pertencen-tes às camadas populares.

Violência Sexual e Aborto previsto em lei

O Código Penal não exige qualquer documento para a prá-tica do abortamento nos casos de violência sexual, e a mulher ou

adolescente violentada não tem o dever legal de noticiar o fato à polí-cia. Deve-se orientá-la a tomar as providências policiais e judiciais cabíveis, mas, caso ela não o faça, não lhe pode ser negado o aborta-mento (BRASIL, 2012).

Para o atendimento às adoles-centes solicitantes ao aborto legal nas unidades de saúde, devem ser seguidas as orientações da Portaria 1508 de 2005, de Procedimento ao Aborto Legal: (a) menores de 18 anos grávidas com direito ao aborto legal devem ser acolhidas e esclarecidas sobre o seu direito à escolha da opção do abortamento, sendo necessária a autorização de responsáveis ou tutores para a solicitação do procedimento; (b) menores de 14 anos necessitam adicionalmente de uma comu-nicação ao Conselho Tutelar e acompanhamento do processo, com solicitação de agilização do mesmo (BRASIL, 2012).

Em caso de divergência entre a vontade da adolescente e a dos responsáveis, deve prevalecer a vontade da adolescente e não ser realizado procedimento que se oponha a sua vontade. Segundo a Norma Técnica de Prevenção e Tratamento dos Agravos Resul-tantes da Violência Sexual contra Mulheres e Adolescentes (2012), em casos em que haja posicionamentos conflitantes, em que a adolescente deseja a interrupção da gravidez e a

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família não deseja, e estes não este-jam envolvidos na violência sexual, deve ser buscada a Promotoria de Justiça da Infância e Juventude.

Violência Sexual e Sistema Socioeducativo

É fundamental que as uni-dades do sistema socioeducativo atuem na prevenção, identifica-ção e atenção à violência sexual, que pode fazer parte do histórico dos(as) adolescentes recebidos(as) ou pode ser perpetrada por fun-cionários(as) contra adolescentes e/ou entre os(as) adolescentes na própria unidade. Existem situ-ações em que é necessária uma especial atenção. Estudos mos-tram que pessoas LGBT4 estão em situação de maior vulnerabili-dade dentro do sistema prisional, tendo uma probabilidade 15 vezes maior de sofrer violência sexual no ambiente prisional em compa-ração a pessoas heterossexuais e/ou cis (cuja identidade de gênero é compatível com a anatomia cor-poral de nascimento) (CENTER OF AMERICAN PROGRESS, 2013).

Prevenção

É importante que as equipes de socioeducação estejam sensibiliza-

das e capacitadas para desenvolver ações de prevenção, identificação e realização do atendimento/enca-minhamento necessário aos casos de violência sexual. Profissionais devem estar atentos à amplitude do conceito e às especificidades dos(as) adolescentes, estando ap-tos(as) a trabalhar de forma a ga-rantir direitos básicos à dignidade, à liberdade, à saúde e à segurança pessoal, contribuindo para a pre-venção da violência sexual. Sensi-bilização, informação e educação participativa contínua dentro da perspectiva de Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos são fun-damentais, devendo incluir as famílias e, especialmente, os pró-prios(as) adolescentes, informando--os(as) e empoderando-os(as) para o enfrentamento desse tipo tão cruel de violação de seus direitos.

A violência sexual tem efeitos devastadores nas esferas física, emocional e psicológica. Crianças e adolescentes com história de violência sexual têm maior vulne-rabilidade para transtornos psiqui-átricos, principalmente depressão, pânico, tentativa de suicídio, abuso e dependência de substâncias psi-coativas (FACURI, 2013). Assim, é necessário que o sistema de socio-educação esteja atento para a iden-tificação deste tipo de violência que aflige tantos(as) adolescentes no mundo e em nosso país.

4 LGBT = lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros e transexuais.

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REFERÊNCIAS

ADESSE, L.; CASTRO, P; MOTA, A. Orientações para a atenção inte-gral à saúde de adolescentes, de ambos os sexos, vítimas de violên-cia sexual: Atenção Básica. Rio de Janeiro: Ipas Brasil e Ministério da Saúde, Área Técnica da Saúde do Adolescente e Jovem, 2010.

BRASIL, Ministério da Saúde. Aspectos Jurídicos do Atendimento às Vítimas de Violência Sexual: perguntas e res-postas para profissionais de saúde. 2ª Edição, Série Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos – Caderno nº 7 Série F. Comunicação e Educação em Saúde, 2012.

CENTER OF AMERICAN PROGRESS. Dignity Denied: LGBT Immigrants in U.S. Immigration Detention, 2013.

COHEN, C. O incesto. In: AZEVEDO, M.A.; GUERRA, V.N.(Orgs.), Infância e Violência Doméstica: fronteiras do conhe-cimento, São Paulo, Cortez, p. 211-225,1993.

De LORENZI, D.R.S; PONTALTI, L.;, FLECH, RM. Maus tratos na infância e adolescência: análise de 100 casos. Rev Cient AMECS, v.10, n.1,p. 47-52, 2001.

D’OLIVEIRA, A.F.P. Violência, gênero e saúde. In: D’OLIVEIRA, Ana Flávia Pires Lucas (Org.). Curso

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DOMENACH, J. M.,. La vio-lencia. In: La Violencia y sus Causas (A. Joxe, org.), pp. 33-45, Paris: Unesco, 1981.

FACURI, C.de O. et al . Violência sexual: estudo descritivo sobre as vítimas e o atendimento em um serviço universitário de referência no Estado de São Paulo, Brasil. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro , v. 29, n. 5, p. 889-898, 2013.

FALEIROS, Eva T. (Org). O abuso sexual contra crianças e adolescentes: os (dês) caminhos da denúncia. Brasília: Presidência da Republica. Secretaria Especial dos Direitos Humanos, 2000.

SANTOS, B.R. dos. Guia de Re-ferência: construindo uma cultura de prevenção à violência sexual. São Paulo: Childhood - Instituto WCF--Brasil: Prefeitura da Cidade de São Paulo. Secretaria de Educação, 2009.

SOUZA, C.M.; ADESSE, L. (Orgs). Violência Sexual no Brasil: perspectivas e desafios. Rio de Janeiro: Lidador, 2005.