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Janaina de Fatima Silva AbdallaMaria Beatriz Barra de Avellar Pereira

Tania Mara Trindade Gonçalves(ORGANIZADORAS)

Ações Socioeducativas:

Estudos e Pesquisas

DEGASERio de Janeiro

2016

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©Janaina de Fátima Silva AbdallaMaria Beatriz Bara de Avellar Pereira

Tania Mara Trindade Gonçalves

Direitos desta edição adquiridos pelo DEGASE. Nenhuma parte desta obrapode ser apropriada e estocada em sistema de banco de dados ou pro cesso similar, em qualquer forma ou meio, seja eletrônico, de fotocópia, gravação, etc., sem a permissão da editora e / ou autor.

Janaina de Fátima da Silva Abdalla Alexandre de Moraes LessaChristiane da Mota Zeitoune

Conselho Editorial

Ida Cristina Rebello Motta Maria Beatriz Barra de Avellar Pereira Tania Mara Trindade Gonçalves

Comissão Científica

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Janaina de Fatima Silva AbdallaMaria Beatriz Barra de Avellar Pereira

Tania Mara Trindade Gonçalves(ORGANIZADORAS)

Ações Socioeducativas:

Estudos e Pesquisas

DEGASERio de Janeiro

2016

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Diretor-GeralDepartamento Geral de Ações Socioeducativas

DEGASE

Diretora da Escola de Gestão Socioeducativa Professor Paulo Freire

Capa

Diagramação

Revisão

Janaina de Fátima Silva Abdalla

Assessoria de Sistematização Institucional

Coordenação da revisão Júlia Nunes Equipe de revisão: Fernando Pimentel HenriquesÉrika Cristine Ilogti de Sá Núbia Graciella Mendes Mothé

Alexandre Azevedo de Jesus

Wagner VicterSecretário de Estado de Educação

Luiz Fernando PezãoGovernador do Estado do Rio de Janeiro

Assessoria de Sistematização Institucional

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Ações Socioeducativas Estudos e Pesquisas

Janaina de Fátima Silva AbdallaMaria Beatriz Barra de Avellar Pereira

Tania Mara Trindade GonçalvesOrganizadores

Estudos e Pesquisas desenvolvidos no Sistema Socioeducativo do Estado do Rio de Janeiro

Escola de Gestão Socioeducativa Paulo Freire –ESGSE

DiretoraJanaina de Fatima Silva Abdalla

Equipe TécnicaIda Cristina Rebello Motta

Maria Beatriz Barra de Avellar PereiraMarizélia Barbosa

Tânia Mara Trindade GonçalvesBianca Ribeiro VelosoLívia de Souza Vidal

Paula Werneck Vargens

Apoio Técnico AdministrativoAmanda Taufie Mendonça

Arnaldo Dutton Albuquerque da SilvaLuciana Cássia Costa da Silva SantosMiguel Eduardo de Azevedo Martins

Mírian Maria da Fonseca

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Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas 8

Sumário

Ações Socioeducativas: Estudos e PesquisasJanaina de Fatima Silva AbdallaMaria Beatriz Barra de Avellar PereiraTania Mara Trindade Gonçalves

Parte I “Sistema Socioeducativo – reflexões e desafios”

Poder, Estado e adolescentes envolvidos em atos ilícitosJanaina de Fátima Silva Abdalla

A contradição do sistema socioeducativoJoyce da Silva Ferreira

Adolescentes infratores brasileiros: desafios para a socioeducaçãoJanaina Specht da Silva MenezesPaulo Fernando Lopes Ribeiro

Gestão em saúde no sistema socioeducativo no Estado do Rio de JaneiroChristiane da Mota Zeitoune

PARTE II “Educação, formação e o Sistema Socioeducativo”

Pedagogia Social e sistema socioeducativo: diálogos possíveisMargareth Martins de Araújo

A importância das diferentes vivências nos cursos de Licenciatura: a formação docente através das experiências no sistema socioeducativoStephany Petronilho Heidelmann Gabriela Salomão Alves Pinho Maria Celiana Pinheiro Lima

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Relações de poder e produção de subjetividade: desafios da contemporaneidadeThereza Cristina da Silva Nunes

PARTE III “Gênero e sexualidade na socioeducação”

Transitando entre territórios: modos de subjetivação e relações de gênero no contexto socioeducativoCarolina Soares da RosaJuliana Damiana dos Santos SilvaKaroline Baptista PeresThiago Melicio

Gênero e sexualidade: o que a socioeducação tem a ver com isso?Jimena de Garay Hernandez Gabriela Salomão Alves Pinho Luisa Bertrami D’Angelo Anna Paula Uziel

A visita íntima do adolescente no sistema socioeduca-tivo: um dispositivo da sexualidadeJuraci Brito da SilvaSílvia Maria Melo Gonçalves

PARTE IV “Pesquisa e Socioeducação”

Família na política socioeducativa: uma análise dos 20 anosIda Motta

Escutar é sempre um ato possível: a responsabilização no discurso da psicanáliseMaria Geni Rangel LeitePaulo Eduardo Viana Vidal

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“Eles não sabem o que se passa aqui dentro”: problematizando o campo e o fazer da pesquisa com adolescentes em conflito com a leiAndressa Melo SilvaFrancinne CampeloRaiane Barreto TeixeiraThiago Melicio

A representação social do psicólogo do DEGASE e a importância da fala e da escuta durante o acompanhamento de medida socioeducativa a partir de um caso de cumprimento de semiliberdade: o caso LunaLetícia Montes Penha

O que eles falam sobre o jovem não é sério? Mídia, Violência e Direitos HumanosMaira Bruna Monteiro Santana Ingrid Monteiro Siss Braga Loise Lorena do Nascimento SantosThiago Melício

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Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas 12

Apresentação

Ações Socioeducativas: estudos e pesquisas

Janaina de Fátima Silva Abdalla 1

Tania Mara Trindade Gonçalves2 Maria Beatriz Barra de Avellar Pereira3

O Departamento Geral de Ações Socioeducativas – Novo DEGASE, através da Escola de Gestão Socioeducativa Paulo Freire (ESGSE), órgão da Secretaria de Estado de Educação do Governo do Estado do Rio de Janeiro tem a satisfação de apresentar o livro Ações Socioeducativas: estudos e pesquisas, fruto de pesquisas científicas realizadas nos últimos anos por diferentes pesquisadores, professores e profissionais da socioeducação tendo como campi as unidades socioeducativas do Departamento Geral de Ações Socioeducativo.

No contexto atual a política de formação implementada pela ESGSE, instituição formadora no âmbito de governo do Estado do Rio de Janeiro/DEGASE, que se apoia na definição de “escola de governo” (CARVALHO 2005)4, este livro se inscreve na política de estudo, pesquisa e formação dos operadores do sistema socioeducativo, na cooperação técnica e na parceria com universidades e entidades da sociedade civil, e, no desdobramento, na produção de saberes científicos no campo

1 Doutora em Educação/UFF, Pedagoga, Diretora da ESGSE Paulo Freire/ DEGASE e Profª da Faculdade Gama e Souza; 2 Serviço Social/UERJ, Pós-Graduação em Políticas Sociais/UERJ, Assistente Social da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro - Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social – SMDS, Assistente Social do DEPE-ESGSE Paulo Freire/DEGASE3 Psicologia/USU, Especialização em Psicologia Clínica/UERJ, Mestrado pelo Programa de Pós-Graduação em Psicanálise/UERJ, Psicóloga do Município do Rio de Janeiro/CAPS ad Mané Garrincha, Psicóloga do DEPE-ESGSE Paulo Freire/DEGASE;4 CARVALHO Paulo Sergio. Escolas de governo e cooperação. X Congreso Internacional del CLAD sobre la Reforma del Estado y de la Administración Pública, Santiago, Chile, 18-21 Oct. 2005 http:/repositorio.enap.gov.br/handle/1/1/1246

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dos saberes-fazeres da ação socioeducativa no atendimento à adolescentes envolvidos com a violência5 e em atos ilícitos.

Este livro faz parte da coleção “Ações Socioeducativas”, publicações realizadas pela ESGSE – Novo DEGASE: o primeiro em 2013 - “Ações Socioeducativas, saberes e práticas: formação dos Operadores do sistema socioeducativo do Estado do Rio de Janeiro”6 e o segundo – “Ações Socioeducativas: Formação e Saberes Profissionais”7, em 2015.

A publicação em livro das contribuições trazidas pelo(as) diferentes estudiosos(as), pesquisadores(as) e profissionais da socioeducação tem sido um fator importante no processo de construção da política Socioeducativa no Estado do Rio de Janeiro, uma referência para a formação, teorização e prática socioeducativa. Numa difícil e trabalhosa operação que envolve o trabalho dedicado, qualificado e competente de toda a equipe do Novo DEGASE. Em especial, a equipe da ESGSE, à Direção Geral, à Coordenação Administrativa e Financeira - COAFI, a Assessoria em Medidas Socioeducativas e Egresso - AMSEG e as demais coordenações e assessorias.

Este livro é mais um resultado (o terceiro) destes esforços.

Importância da pesquisa na socioeducação De modo geral, as pesquisas por si só, sejam elas em

qualquer abordagem, representam ferramenta importantíssima no desenvolvimento de uma sociedade.

Sabe-se que a pesquisa científica no campo das ciências sociais e humanas é um processo permanentemente inacabado 5 “Produtores e vítimas da violência, portanto em situação de vulnerabilidade social” – ABDALLA, 20136 ABDALLA, F.; SILVA, S. Ações Socioeducativas Saberes e Práticas – Formação dos Operadores do Sistema Socioeducativo do Estado do Rio de Janeiro. 1º ed. Rio de Janeiro: Novo Degase. 2013, 257 p.7 ABDALLA, F.; SILVA, S.; VELOSO, B. Ações Socioeducativas – Formação e Saberes Profissionais. 1º ed. Rio de Janeiro: Novo Degase. 2015, 217 p.

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e, nesse processo, a pesquisa surge como uma proposta de investigação que, sem perder seu caráter científico, possibilita que os investigados, no caso especifico, os profissionais, adolescentes e famílias envolvidos com a violência no sistema socioeducativo, tenham maior participação, apropriação dos processos e dos resultados obtidos. Não se tratam de cobaias, mas sim, de coautores no processo de construção do conhecimento sobre a socioeducação.

O fato das pesquisas não desprezarem o contexto e aceitarem o ponto de vista do investigado, como dado de análise nos traz uma riqueza maior quanto à realidade estudada.

As pesquisas realizadas em um sistema complexo como o atendimento socioeducativo, com seus diferentes sujeitos, os temas apresentados podem ser considerados inéditos uma vez que, um mesmo campo pode ser abordado por determinado pesquisador, segundo a visão de um referencial ou a partir de um método que ainda não tenha sido contemplado em outras pesquisas. Isso, por si só, já garante uma riqueza de significados.

À medida que se colhem os depoimentos, vão sendo levantadas e organizadas as informações relativas ao objeto da investigação e, dependendo do volume e da qualidade delas, o material de análise torna-se cada vez mais consistente e denso.8 DUARTE, 2002. P.

Nas pesquisas, que ora apresentamos, em formato de artigos, levaram-se em conta o caráter dinâmico dos próprios sujeitos pesquisados, portanto mutáveis e historicamente constituídos. Nessa perspectiva as pesquisas/artigos, e, portanto, este livro, possibilita-nos visualizar a produção de conhecimentos científicos, por levarem em conta a realidade vivenciada pelo objeto em estudo, mediante seu contexto histórico e social.

8 DUARTE, Rosália. Pesquisa qualitativa: reflexões sobre o trabalho de campo. Cad. Pesqui., São Paulo , n. 115, p. 139-154, Mar. 2002 . Available from <http://www.scie-lo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-15742002000100005&lng=en&nrm=i-so>. access on 23 Aug. 2016. http://dx.doi.org/10.1590/S0100-15742002000100005.

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Destacamos que alguns pesquisadores atuam como profissionais do DEGASE, entendemos que esta possibilidade nos traz grande oportunidade entre a produção científica e os saberes / fazeres da prática socioeducativa.

Compreendemos, que há risco de “saber impregnado” como alerta Durhan (1986)9 sobre as muitas armadilhas embutidas no processo de identificação subjetiva que se estabelece na coleta de dados, especialmente quando entrevistador e entrevistado compartilham um mesmo universo cultural, neste caso, universo institucional.

Porém, como afirma Velho (1986)10, é preciso sempre ter em mente que sua subjetividade precisa ser “incorporada ao processo de conhecimento desencadeado” (p. 16), o que não significa abrir mão do compromisso com a obtenção de um conhecimento relativamente objetivo, não neutro, mas buscar as formas mais adequadas de lidar com o objeto de pesquisa.

Para Abdalla (2013)

Não há pesquisa neutra, os saberes teóricos e práticos e a metodologia escolhida para a realização de um estudo acadêmico-científico devem ser conduzidos por uma “atitude crítica” do pesquisador, pois as estratégias para a produção de saberes se articulam em “verdades, poder e sujeito ético” (2013, p 39).

Abdalla (2013) e Julião (2009) afirmam que o pesquisador /profissional ético a parti de um olhar mais amplo e crítico dos fatos da pesquisa em seu campo de atuação profissional, proporciona uma leitura “entre linhas” dos dados coletados. Pois consegue compreender detalhes da “dinâmica da administração pública, muitas vezes invisíveis e/ou incompreensíveis aos olhos de qualquer cidadão”. (JULIÃO p. 24-25)9 DURHAN, E. R. A pesquisa antropológica com populações urbanas: problemas e perspectivas. In: CARDOSO, R. (org.). A Aventura antropológica: teoria e pesquisa. Rio de Janeiro: Paz e Terra,1986, p. 17-38.10 VELHO, G. Subjetividade e sociedade: uma experiência de geração. Rio de Janeiro: Zahar, 1986.

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Portanto, apurando os olhares pelo saber prático construído anteriormente e investindo no rigor teórico-metodológico durante o processo de pesquisa, procuramos desvelar os sentidos simbólicos produzidos pelos discursos na prática cotidiana.

O livro Todas as pesquisas/artigos deste livro foram apresentadas

por seus autores/pesquisadores, recortes/sínteses de teses, dissertações, monografias e estudos realizados no DEGASE nos últimos anos. Compreendemos não ser possível a publicação na integra dos conhecimentos, análises, reflexões e problematizações apresentadas em tais publicações acadêmicas11.

Pretende-se com esta publicação divulgar e apresentar os saberes científicos visando os seguintes objetivos:

(1) problematizar as diferentes questões e perspectivas sobre o sistema socioeducativo; (2) análise e reflexão sobre os saberes científicos apresentadas pelos pesquisadores e (3) análise de proposições científicas nas interfaces com os saberes da prática, na política implementada pelo sistema e no processo de formação inicial e continuada de seus profissionais.

A obra se divide em quatro partes, apresentando artigos de pesquisadores/estudiosos e pesquisadores/operadores do sistema socioeducativo estadual que se articulam desvelando os saberes.

A Parte I “Sistema Socioeducativo – reflexões e desafios” inicia-se com o artigo Poder, Estado e adolescentes envolvidos em atos ilícitos, de Janaina de Fátima Silva Abdalla. A autora, partindo da análise histórica das instituições socioeducativas, apresenta e analisa os paradoxos entre as políticas públicas em direitos humanos na socioeducação e as práticas cotidianas gerando dispositivos disciplinares de encarceramento/controle e, ao mesmo tempo, produzindo resistências, fabricando processos de subjetivação dos adolescentes em privação de liberdade. O artigo, 11 Todas Teses/ dissertações e estudos encontram-se arquivadas na ESGSE

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em síntese, apresenta importantes discussões sobre as políticas públicas e o sistema de garantia de direitos nos últimos anos voltados a crianças e adolescentes no Brasil.

Dando continuidade à temática, Joyce da Silva Ferreira, através do artigo A contradição do sistema socioeducativo, fundamentam-se na análise histórica e estrutural do sistema socioeducativo, trazendo para a discussão sua contradição entre a punição e a violência e a garantia de direitos aos adolescentes, sem descartar o caráter simbólico, cultural, social e político enraizado na sociedade brasileira. A indagação que mobiliza a autora é: “como um sistema destinado ao encarceramento pode assegurar direitos?”.

Janaina Specht da Silva Menezes e Paulo Fernando Lopes Ribeiro, no artigo Adolescentes infratores brasileiros: desafios para a socioeducação, buscam refletir sobre a educação relacionada aos adolescentes e jovens envolvidos com a prática de atos infracionais. Destacam, entre outros resultados de pesquisa documental, bibliográfica e análise de campo, a necessidade de a socioeducação ampliar seus limites, “buscando encontrar na integração entre os profissionais que orbitam em seus espaços e na colaboração entre diferentes áreas, setores, secretarias e unidades federadas, formas de efetivar e potencializar sua (atu)ação”.

No artigo Gestão em saúde no sistema socioeducativo no Estado do Rio de Janeiro, a autora Christiane da Mota Zeitoune, através de um recorte histórico de 2013 a 2015, apresenta as ações da Coordenação de Saúde Integral e Reinserção Social do Sistema Socioeducativo do Estado do Rio de Janeiro analisando o processo de implantação e implementação das diretrizes da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde de Adolescentes em Conflito com a Lei – PNAISARI.

A Parte II “Educação, formação e o Sistema Socioeducativo”, desta obra, composta por três artigos, problematiza, analisa e desvela diferentes perspectivas do processo de educação/escolarização dos adolescentes em risco social e formação dos profissionais /operadores do sistema socioeducativo.

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No primeiro artigo “Pedagogia Social e Sistema Socioeducativo: diálogos possíveis”, da professora e pesquisadora Margareth Martins de Araújo, apresenta a pedagogia social como uma possibilidade de estabelecer um diálogo entre a escola e os historicamente excluídos, as crianças e os jovens em situação de conflito com a Lei e ou em privação de liberdade.

Através do artigo “A importância das vivencias nos cursos de licenciatura: a formação docente através das experiências no sistema socioeducativo” as autoras Gabriela Salomão Alves Pinho, Stephany Petronilho Heidelmann e Maria Celiana Pinheiro Lima, relatam e analisam o processo de formação acadêmica e científica de graduandos na interface com o campo empírico de pesquisa-ação em instituição de privação de liberdade no Sistema Socoieducativo – DEGASE. A partir dos resultados obtidos com a atividade, discute-se a importância da proposta para os futuros professores numa perspectiva de responsabilidade social, bem como o impacto de atividades de alfabetização científica para os jovens em cumprimento de medida socioeducativa.

Finalizando a Parte II, Thereza Cristina da Silva Nunes, no artigo “Relação de poder produção de subjetividade: desafios da contemporaneidades,” apresenta um estudo bibliográfico e documental buscando compreender como as relações de poder e produção de subjetividade que estão presentes na sociedade são desveladas na realização do fazer profissional no sistema socioeducativo - DEGASE e, no desdobramento, propõem a necessidade de repensar os instrumentos técnico-operativos usados no exercício profissional.

A Parte III “Gênero e sexualidade na socioeducação”, composta por três artigos de pesquisadores que transitam nos espaços acadêmicos e nas unidades socioeducativas do Novo DEGASE, apresenta análises e reflexões sobre a temática gênero e sexualidade e, também, no que se refere às perspectivas críticas acionadas de experiências vivenciadas, possibilitam-nos proposições para o sistema socioeducativo.

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O artigo “Transitando entre territórios: modos de subjetivação e relações de gênero no contexto socioeducativo”, de Thiago Melicio, Carolina Soares da Rosa, Juliana Damiana dos Santos Silva e Karoline Baptista Peres, propõe uma análise de discurso das adolescentes em privação de liberdade sobre gênero e iniciação ao tráfico a partir de experiências cotidianas na unidade feminina do Departamento Geral de Ações Socioeducativas.

Ana Paula Uziel e as pesquisadoras Jimena de Garay Hernandez, Gabriela Salomão Alves Pinho e Luisa Bertrami D’Angelo, no artigo “Gênero e Sexualidade: o que a socioeducação tem a ver com isso?” relatam e discutem as diversas práticas que atravessam o cotidiano da socioeducação, no que tange ao gênero e à sexualidade a partir de pesquisa sobre sexualidade na contemporaneidade desenvolvida em algumas unidades de privação de liberdade do DEGASE.

Resultado de pesquisa-intervenção na perspectiva da análise institucional em uma unidade de privação de liberdade de adolescentes do sexo masculino do DEGASE, Juraci Brito da Silva e Sílvia Maria Melo Gonçalves, no artigo “A visita íntima do adolescente no sistema socioeducativo: um dispositivo da sexualidade”, problematizam e desvelam a percepção dos adolescentes sobre a possiblidade da implementação da visita íntima no sistema socioeducativo.

Na ultima parte desta publicação, PARTE IV “Pesquisa e Socioeducação”, apresentamos cinco artigos frutos de pesquisas de variadas metodologias e abordagens teóricas tendo como eixo condutor os diferentes atores sociais da comunidade socioeducativa: as famílias, os adolescentes e os profissionais. Acreditamos que respeitar esses vários ângulos de análise é também colaborar para que novas iniciativas no atendimento sejam postas em prática, considerando a necessária diversidade das contribuições.

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No artigo, “Família na política socioeducativa: uma análise dos 20 anos”, Ida Motta objetivou fazer um estudo das propostas voltadas para o atendimento de famílias na Política Socioeducativa dentro do Departamento Geral de Ações Socioeducativas do Estado do Rio de Janeiro nos últimos 20 anos, a partir da metodologia de análise documental e histórica dos marcos legais para o sistema nacional.

O artigo “Escutar é sempre um ato possível: a responsabilização no discurso da psicanálise” de Maria Geni Rangel Leite e Paulo Eduardo Viana Vidal tem como objetivo “discorrer sobre a responsabilização que implica o exercício da fala sob a perspectiva do discurso da psicanálise tendo em vista a socioeducação”. E ainda, afirmam os autores, “permitir ao sujeito adolescente elaborar em seu nome a sua narrativa é pertinente à psicanálise”, e, portanto, a ação necessária implementada pelos profissionais na socioeducação.

Thiago Melicio e os pesquisadores Andressa Melo Silva, Francinne Campelo e Raiane Barreto Teixeira no artigo ‘Eles não sabem o que se passa aqui dentro”: problematizando o campo e o fazer da pesquisa com adolescentes em conflito com a lei” buscam refletir acerca do sistema socioeducativo e da maneira com que a metodologia de pesquisa pode ser empregada neste campo.

O artigo “A representação social do psicólogo do DEGASE e a importância da fala e da escuta durante o acompanhamento a partir de um caso de cumprimento de liberdade: o caso Luna”, de Letícia Montes Penha, problematiza o saber-fazer do profissional psicólogo e suas representações sociais, no desdobramento, enfatiza a importância da fala e da escuta na ação deste profissional na socioeducação.

Através do artigo “O que eles falam sobre o jovem não é sério? Mídia, violência e Direitos Humanos”, o psicólogo, professor e pesquisador Thiago Melicio e as graduandas de psicologia e pesquisadoras Maira Bruna Monteiro Santana, Ingrid Monteiro Siss Braga e Loise Lorena do Nascimento Santos, apresentam

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uma análise qualitativa de notícias online, a partir de termos como “menor”, “adolescente”, “maioridade penal”, entre outros. Procurando problematizar processos de alteridade por meio de articulações entre as formas de agenciamento da mídia e as falas de adolescentes que estão na unidade feminina do DEGASE-RJ.

Convite à leitura O presente livro reúne contribuições que, contrariamente ao

pensamento único e homogeneizador, mostram a multiplicidade, a riqueza, a variedade das perspectivas e sujeitos da socioeducação. Saberes científicos que se constituem em um espaço historicamente construído, é claro, com velhos e persistentes saberes-fazeres, mas que se introduzem aquelas preocupações que estão no cerne destes novos-velhos tempos, vidas cotidianas dos jovens-adolescentes envolvidos com a violência e atos ilícitos: violência, sexualidade, escuta, subjetividade, gênero, aprisionamento, resistências ... No conjunto, as contribuições aqui apresentadas constituem um panorama de questões que afetam aos diversos campos de saberes, de fazeres e de construir uma politica socioeducativa inclusiva e amorosamente restaurativa.

Convidamos a leitura-ação!

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Parte I“Sistema Socioeducativo – reflexões e desafios”

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Poder, Estado e adolescentes envolvidos em atos ilícitos

Janaina de Fátima Silva Abdalla1

ResumoEste artigo apresenta e analisa os paradoxos entre as

políticas públicas em direitos humanos na socioeducação e as práticas cotidianas voltadas para os adolescentes em conflito com a lei. Partimos da análise histórica das instituições educacionais para adolescentes envolvidos em atos ilícitos. As análises empreendidas se fizeram a partir do entrecruzamento dos aportes teóricos advindos, principalmente do pensamento de Michel Foucault, Gilles Deleuze e Michel de Certeau. Concluímos que as práticas punitivas de sanção e de socioeducação se articulam com as tensões históricas no cotidiano, gerando dispositivos disciplinares de encarceramento/controle e, ao mesmo tempo, produzem resistências, fabricando processos de subjetivação dos adolescentes: “menor/bandido” “adolescente/infrator” ou “adolescente em conflito com a lei/socioeducando”. A (auto) responsabilização do adolescente pelos atos ilícitos e a intervenção socioeducativa prevista pelo amparo legal na doutrina da proteção integral ainda, é um desafio para os Sistemas Socioeducativos.

Palavras chaves: adolescentes; unidades socioeducativas; Estado; poder; resistências

1 Pedagoga e Diretora da Escola de Gestão Socioeducativa Paulo Freire – Novo DEGASE; Mestre em Comunicação Imagem e Informação - Programa de Pós Graduação em Comunicação - UFF ( 2003); Doutora em Educação – Programa de Pós Graduação em Educação – UFF ( 2013) – Coordenadora do Instituto Superior de Educação e Professora Universitária – Faculdade Gama e Souza.

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A criminalidade e a violência são, hoje, uma das preocupações centrais dos habitantes das grandes cidades. Nesse contexto, as infrações cometidas por adolescentes vêm causando alarde, e essa contundência discursiva aparece na mídia como se fossem os atos somente de responsabilidade dos próprios adolescentes, consideradas infrações penais por eles praticadas. No Brasil, não são poucos os que responsabilizam o próprio Estatuto da Criança e do Adolescente pelo envolvimento dos mesmos em atos de violência.

Para os críticos do Estatuto, a política de “proteção integral” da criança e do adolescente, imposta pela Constituição de 1988, pela Convenção Internacional dos Direitos da Criança e pelo Estatuto, criou um ambiente de impunidade que tem incentivado o ingresso destes jovens no mundo do crime. Nesse sentido, propugnam por medidas estatais mais duras em reação à criminalidade, reclamando, inclusive, a diminuição da maioridade penal. Um subproduto ainda mais perverso dessa sensação de impunidade é o extermínio.

Essas críticas, a rigor, escondem as reais motivações socioculturais e econômicas que impelem os adolescentes para o mundo da criminalidade. Escondem também o sistema socioeducativo incapaz de “ressocializar” e que apenas amplia o potencial ofensivo desses jovens no momento em que deixam de estar sob a proteção do sistema, fomentando, qualitativa e quantitativamente, a criminalidade.

Para além do discurso da população, veiculado pela mídia, qual é o discurso do Estado quanto às ações socioeducativas e políticas públicas para a infância e adolescência?

O Estatuto da Criança e do Adolescente e o adolescente em conflito com a lei A atualização e o desenvolvimento do atendimento aos

adolescentes em conflito com a lei, particularmente no Brasil, foram

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Ações Socioeducativas - Estudos e Pesquisas 26

feitas, ao longo do século XX, a partir dos conceitos de “ajuda”, “assistência” e “ressocialização”, perseguindo-se, pois, objetivos assistencialistas e não uma verdadeira inclusão social desses sujeitos. Tudo sob a égide daquilo que, a priori, é considerado o “melhor interesse” desse adolescente, ainda que, na maioria das vezes, o seu real interesse não seja visualizado. Essa intenção, entretanto, só permanece no discurso oficial e a realidade revela uma face – perversa – do mundo do adolescente infrator.

O entendimento do que é considerado o “melhor interesse” desse sujeito social esteve sempre marcado por permanentes contradições dicotômicas: medida versus pena, educação/assistência versus controle/repressão, vitimação versus delinquência.

Assim, o Estado oscila pendularmente entre duas tendências, apresentadas como antagônicas: os Modelos de Proteção Administrativa e os Modelos da Penalidade Judicial (NOGUEIRA NETO, 1998). No Brasil, diante das peculiaridades enfatizadas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, que afirmava ser preciso adotar medidas socioeducativas, caminhou-se para uma solução eclética: instaurou-se um tipo de atendimento que pode ser classificado como judicial-administrativo, ou seja, o adolescente infrator continua submetido às sanções legais do Judiciário, de quem recebe as medidas socioeducativas que deverão ser cumpridas administrativamente em unidades de internação; essas unidades, entretanto, estão submetidas ao rígido controle do Poder Judiciário e dos Conselhos da Criança e do Adolescente.

Das Medidas Socioeducativas Para o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), no caso

do adolescente, com 12 anos completos e menores de 18 anos, envolvido em atos ilícitos, a inimputabilidade não quer dizer irresponsabilidade. Isto é, o adolescente, assim como a criança, não recebe pena, como o adulto, diante da infração cometida;

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são inimputáveis. A criança, porém, é considerada também irresponsável, por isso os pais ou seus substitutos é que devem comparecer com ela perante a autoridade, enquanto se aplicam a ambos, criança e familiares, medidas chamadas de proteção. Em relação ao adolescente, entretanto, embora não receba pena (e permaneça inimputável), será sujeito a medidas socioeducativas, quais sejam: (i) advertência; (ii) obrigação de reparar o dano; (iii) prestação de serviços à comunidade; (iv) liberdade assistida; (v) inserção em regime de semiliberdade; (vi) internação em estabelecimento educacional; (vii) além de qualquer uma das medidas de proteção previstas no art.101, I a VI (ECA, art. 112).

Infância, adolescência e práticas de privação de liberdadeDesde as origens da história da privação de liberdade,

quando as transformações na esfera produtiva introduziram a mudança no viés capitalista-moderno, o qual estabelecia o tempo certo dessa privação, nem todos foram sujeitos de direito destas transformações: crime-pena/tempo/produção.

Paradoxalmente, quem ficou fora do processo produtivo também ficou fora dos “benefícios” da “revolução democrática”. Na verdade, e aqui aparece o eufemismo que está na base de toda a sequência posterior, a infância-adolescência é marginal e clandestinamente incorporada ao processo produtivo, ficando, entretanto, fora do discurso oficial do trabalho. Essas premissas determinavam não que a infância ficasse isenta das práticas de privação de liberdade, senão que as mesmas se organizassem sob as formas radicalmente distintas de legitimidade do mundo dos adultos criminosos.

O conceito de infância e de juventude também influenciou na construção legalista da área, como vimos anteriormente. A reeducação, ao invés do castigo, e as medidas de segurança, no lugar das penas, constituíram os eufemismos específicos que legitimaram, na prática, privações de liberdade sem processo, sem garantias e, sobretudo, sem um tempo definido de duração.

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A cultura da internação-proteção e do “sequestro dos conflitos sociais” se manifestou com toda intensidade na construção do “menor delinquente abandonado”. Eis aqui a história do “menor” como objeto da compaixão-repressão. Nesse enfoque, as práticas concretas que dele derivam imperavam e ainda imperam até os nossos dias.

Nesse ponto, é conveniente fixar um momento na dimensão ético-jurídica dessas práticas. Se tomarmos como contexto momentos históricos do Brasil, como exemplo e modelo, essas práticas poderiam ser consideradas como prejudiciais ou ilegítimas, embora não como ilegais à época. Porém, os “excessos” nas políticas de privação de liberdade no Brasil, ainda hoje, descansam, paradoxalmente, sobre uma base jurídica menorista: a doutrina da situação irregular. Podemos citar como exemplo a detenção de adolescentes em instituições para adultos quando o aparelho jurídico e administrativo estatal não está devidamente equipado.

Nesse sentido, é imprescindível tomar consciência da ruptura absolutamente radical que implica, nesse campo, o Estatuto da Criança e do Adolescente. As experiências de privação de liberdade devem ser reconstruídas, em consequência, sobre bases de ação e legitimidade, na doutrina da proteção integral.

Em primeiro lugar, é necessário tomar consciência do fato de que a privação coativa da liberdade deverá ser o resultado de uma infração jurídica grave e devidamente comprovada, tal qual dispõe o art. 122 do Estatuto. Em segundo lugar, representa um enorme desafio trabalhar no campo das técnicas de privação de liberdade no marco jurídico do Estatuto.

É necessário reconhecer que fomos formados em uma cultura correcionalista, a qual pressupunha a conveniência de processos de ressocialização – ainda que com as melhores intenções – com práticas sociais (não jurídicas, não judiciais) de privação de liberdade. O novo caráter jurídico-restritivo da privação de liberdade implica a necessidade do desenvolvimento de uma nova cultura: uma cultura de tolerância, que não significa

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outra coisa senão o duro aprendizado (nosso) de conviver com a diversidade. Os comportamentos socialmente indesejáveis, mas não antijurídicos, podem e, em muitos casos, devem ser objetos de políticas específicas: mas isso, sim, absolutamente despojadas de conteúdos de caráter coercitivo.

O Estatuto, abarcando o melhor da normativa e da doutrina internacional, consagra o princípio do “incompleto institucional”; ou seja: colocar a instituição responsável pela privação de liberdade em uma situação mais dependente possível do mundo real. Entretanto, o princípio do “incompleto institucional” só poderá ser realizado se implantado, simultaneamente, o princípio do “incompleto profissional”.

Os órgãos deliberativos e gestores do Sistema Socioeducativo, em especial as instituições executoras das medidas socioeducativas de privação de liberdade, devem promover a articulação da atuação de diferentes áreas da política social. Nesse papel de articulador, a incompletude institucional é um princípio fundamental e norteador de todo o direito da adolescência, que deve permear a prática dos programas socioeducativos e da rede de serviços. Demanda a efetiva participação dos sistemas e políticas de educação, saúde, trabalho, previdência social, assistência social, cultura, esporte, lazer, segurança pública, entre outras, para a efetivação da proteção integral de que são destinatários todos adolescentes. Portanto, a instituição de privação de liberdade deverá ser “dependente” dos demais aparelhos sociais e dos profissionais que compõem a rede de serviços na incompletude profissional, sendo indispensável à articulação das várias áreas para maior efetividade das ações e participação da sociedade civil.

Nessa perspectiva, rompe-se com o paradigma da completude institucional ou instituição completa através do qual se aprisionam e excluem os adolescentes em conflito com a lei, justificando o “bom e necessário atendimento” pela instituição total (GOFFMAM, 1996).

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A medida de privação de liberdade encerra em si mesma uma contradição profunda, mas não indecifrável ou irresolúvel. O grau de sua eficiência está dado pelo grau de sua “não necessidade”. Liberar-se da cultura de sua necessidade e transformá-la num meio contingente e aleatório constitui o melhor caminho de sua construção-reconstrução. (COSTA, 2004, p. 37)

O autor aponta a perspectiva de um trabalho a partir da “utopia positiva”, no sentido de que a melhor instituição para a privação da liberdade é aquela que não existe e que a melhor sociedade é aquela que supera a necessidade de sequestrar conflitos sociais que podem ser resolvidos por outras vias.

Segundo Emilio Garcia Mendez (1992),

despojadas de seus eufemismos, as leis de menores na América Latina propõem uma correspondência perversa entre a realidade cruel e um direito absurdamente repressivo. As leis de menores na América Latina eliminam, negativamente, a distância entre a norma e a realidade. O caráter garantista único do Estatuto da Criança e do Adolescente inaugura uma brecha positiva entre direito e realidade, que somente técnicas baseadas em profundas razões humanitárias e uma política consequente de respeito aos direitos humanos conseguirão reverter. (MENDEZ, 1992, p. 15)

Privação e restrição de liberdade: paradoxos socioeducação e aprisionamentoPara implementar a socioeducação, é fundamental

reconhecer no “infrator” um sujeito com direitos, ou seja, um cidadão, o que parece ser um exercício extremamente complexo. Como compreender o paradoxo entre os relatos-denúncias das condições em que se apresentam as instituições socioeducativas em uma sociedade que se democratiza e clama pelos direitos humanos? E essa mesma sociedade, paradoxalmente, exige punições mais severas e um sistema socioeducativo mais rígido (violento!?) para com os adolescentes infratores?

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Segundo Caldeira (2000), “a cidadania brasileira é disjuntiva porque, embora o Brasil seja uma democracia política e embora os direitos sociais sejam razoavelmente legitimados, os aspectos civis da cidadania são continuamente violados” (p. 343).

Convivemos perplexos com os avanços da legislação que prevê a proteção integral da criança e do adolescente, as conquistas nos movimentos de direitos humanos e grupos que responsabilizam o próprio Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8069/90) pelo envolvimento de jovens em atos de violência, justificando que tais medidas proporcionaram um ambiente de impunidade que tem incentivado o ingresso dos adolescentes no mundo do crime. Nesse sentido, propugnam por medidas estatais mais duras em reação à criminalidade, reivindicando inclusive a diminuição da maioridade penal.

Um subproduto ainda mais perverso desse paradoxo é a existência da violação de direitos nas instituições em que se pretende o exercício de um processo socioeducativo, em que se pretende a proteção da vida (VICENTIN, 2004).

Quase sempre as instituições de atendimento aos adolescentes em conflito com a lei funcionam apenas como espécies de depósitos de “infratores”, ainda que se apresentem como organizações racionais com determinadas finalidades oficialmente confessadas e aprovadas. Frequentemente, esses objetivos definidos pela legislação implicam reforma das instituições na direção de um padrão ideal. Essa contradição entre o que a instituição realmente faz com os adolescentes em conflito com a lei e aquilo que oficialmente deveria fazer constitui a face mais perversa de atuação do Estado contra esses sujeitos excluídos de sua própria existência.

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Internação Provisória2

O fluxo inicia-se com a apreensão do adolescente em conflito com a lei por unidade policial em situação de flagrante de ato infracional e/ou por determinação judicial (mandado de busca e apreensão por descumprimento de medidas impostas anteriormente e/ou por denúncias previamente apuradas, indicando cometimento de ato infracional). O adolescente apreendido é encaminhado à delegacia especializada – Delegacia de Polícia da Criança e do Adolescente - DPCA. Os municípios do estado que não possuem delegacias especializadas não cumprem as determinações legais na apreensão e encaminhamento do adolescente em conflito com a lei.

Este procedimento processual, internação provisória, deve ser aplicada no caso de indícios de cometimento de ato ilícito grave ou de risco da comunidade e do adolescente (integridade física e moral).

Apesar de a internação provisória não ser, de fato, uma medida socioeducativa, e sim uma medida processual de natureza cautelar, alguns aspectos referentes a ela precisam ser esclarecidos.

A internação provisória aproxima-se bastante da medida de internação, ainda que tenha finalidade totalmente diversa: enquanto esta tem caráter sancionatório e implica o reconhecimento de que o adolescente cometeu um ato ilícito, aquela tem o escopo de garantir a aplicação da lei e está ligada aos fins do processo judicial. Ambas as medidas, entretanto, retiram do jovem o direito de ir e vir e, portanto, devem ser aplicadas em último caso, isto é, somente quando imprescindíveis para se atingir a finalidade pretendida: a proteção integral.

2 A internação provisória é um procedimento aplicado antes da sentença julgada, quan-do há indícios suficientes de autoria e materialidade do ato infracional cometido pelo adolescente ou quando há um descumprimento de ordem anteriormente aplicada pelo Poder Judiciário. Conforme prevê o artigo 183 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), a internação provisória caracteriza-se pela privação de liberdade com duração máxima de 45 dias, período em que são realizados os estudos técnicos que subsidiam a aplicação da medida socioeducativa determinada pelo Poder Judiciário

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Considerando-se os prejuízos que a privação de liberdade ocasiona na vida de um adolescente, ainda mais numa fase em que sequer há juízo de culpabilidade, a internação provisória é regida pelos mesmos princípios constitucionais da medida socioeducativa de internação3. Isso significa que os jovens que cumprem a internação provisória possuem os mesmos direitos daqueles que cumprem uma medida de internação e que as obrigações dos estabelecimentos para adolescentes internados a título provisório e definitivo são coincidentes4.

Medida de Semiliberdade5 e Medida de Internação6

Segundo as orientações do ECA, o regime de semiliberdade pode ser determinado desde o início ou como forma de transição para o meio aberto, pois possibilita a realização de atividades externas às unidades socioeducativas, independentemente de autorização judicial. Não há prazo determinado de duração para as medidas socioeducativas restritivas e privativas de liberdade: semiliberdade e internação, respectivamente, cabendo à autoridade judicial avaliar cada caso, salvo o período máximo de três anos da aplicação da mesma medida.

De acordo com o ECA, a medida de internação só deve ser aplicada mediante a prática de atos infracionais graves. A

3 Segundo estabelece o artigo 227, da Constituição Federal, “§3º: O direito à proteção especial abrangerá os seguintes aspectos: V- obediência aos princípios de brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, quan-do da aplicação de qualquer medida privativa de liberdade”.4 Ver artigos 124 e 94 do Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA 5 ECA - Art. 120. O regime de semiliberdade pode ser determinado desde o início, ou como forma de transição para o meio aberto, possibilitada a realização de atividades externas, independentemente de autorização judicial. § 1º São obrigatórias a escolari-zação e a profissionalização, devendo, sempre que possível, ser utilizados os recursos existentes na comunidade. § 2º A medida não comporta prazo determinado aplicando--se, no que couber, as disposições relativas à internação.6 ECA - Art. 121. A internação constitui medida privativa da liberdade, sujeita aos princípios de brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento.

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internação não poderá ultrapassar três anos; caso o adolescente permaneça na medida de internação ao final desse período, deverá ser liberado, colocado em regime de semiliberdade ou de liberdade assistida.

O trabalho socioeducativo passa a ser visto como uma resposta às premissas legais do Estatuto da Criança e do Adolescente, bem como às demandas sociais do mundo atual.

Segundo Costa (2006), a socioeducação decorre de um pressuposto básico de que o desenvolvimento humano deve se dar de forma integral, contemplando as múltiplas dimensões do ser. A opção por uma educação que vai além da escolar e profissional está intimamente ligada a uma nova forma de pensar e abordar o trabalho com o adolescente.

A unidade educativa deve ser capaz de oferecer um leque, um cardápio, uma pluralidade de modalidades educativas ao educando, que lhe possibilite desenvolver sua autonomia (capacidade de decidir segundo suas crenças, valores, pontos de vista e interesses); sua solidariedade (capacidade de atuar como solução e não como problema em questões relativas ao bem comum); sua competência (desenvolvimento de competências pessoais, relacionais, produtivas e cognitivas). (COSTA, 2006, p. 67)

Na última década, observa-se avanços significativos na estrutura administrativa, espacial, e no processo de planejamento das ações dos sistemas socioeducativos na tentativa de humanizar o sistema, porém as técnicas disciplinares e de controle sobre o corpo do adolescente-delinquente, que se desvelam em ações cotidianas, demonstram a permanência da visão disciplinar e de docilização do adolescente em conflito com a lei.

Analisar as instituições de internação, os lugares de aprisionamento, é, imediatamente, referir-se às complexas relações de saber/poder que atravessam e traduzem os dispositivos disciplinares ao longo de toda a extensão da sociedade. Mas em que consistem esses dispositivos disciplinares? Como a sociedade

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e as instituições socioeducativas de privação de liberdade constituem os processos de subjetivação do adolescente em conflito com a lei?

A disciplina é uma tecnologia específica do poder, ela é “um tipo de poder, uma modalidade para exercê-lo, que comporta todo um conjunto de instrumentos, de técnicas, de procedimentos, de níveis de aplicação, de alvos; ela é uma física ou uma anatomia do poder, uma tecnologia” (FOUCAULT, 2000, p. 177).

No entanto, como explicita Foucault (2000), todo poder corresponde também a uma resistência, muitas vezes microscópica, surda, velada e não explosiva. As instituições são, sobretudo, lugares de instauração de forças. O que existe, então, nessa unidade de internação é uma relação de poder/saber, que subjuga e adestra esses corpos? Seria constituída historicamente esta imagem/saber das instituições de internação e de seus internos? E qual seria o papel da mídia na perpetuação dessa imagem?

Os dispositivos disciplinares presentes nas instituições socioeducativas se materializam nas práticas institucionais, isto é, nas técnicas de distribuição dos adolescentes através da inserção dos seus corpos em espaços individualizados, classificatórios, combinatórios: os alojamentos, a escola, o pátio, o refeitório, os lugares demarcados em horários estabelecidos, sob vigilância constante. O olhar hierárquico das câmeras de vídeo7 está presente continuamente, para que, ininterrupto, o adolescente se sinta potencialmente vigiado.

Há o controle do tempo, das atividades, dos corpos, que são aperfeiçoados pelas sanções normalizadoras: manter-se em filas, mãos para trás, silêncios, perda de objetos pessoais, corte de cabelos, uniformes, com o objetivo de produzir o máximo de rapidez e eficiência no processo de “ressocialização” do

7 Diante dos avanços tecnológicos , muitos sistemas socioeducativos tem optado por instalar câmeras de filmagem em locais estratégicos que transmitem e gravam imagens constantes para setores de segurança do Sistema Socioeducativo.

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adolescente-delinquente. E, finalmente, a disciplina implica um registro contínuo do conhecimento: o exame. Ao mesmo tempo em que exerce um poder, produz um saber sobre o adolescente-delinquente e seus desvios. Mais do que isso, com o exame, o adolescente em conflito com a lei passa a ser o “delinquente”, ao mesmo tempo, efeito e objeto do poder e do saber: “o exame não se contenta em sancionar um aprendizado; é um de seus fatores permanentes” (FOUCAULT, 2000. p. 155).

É neste jogo saber-poder-saber que se estrutura a sociedade disciplinar. Ainda que na sociedade contemporânea se possa perceber uma sofisticação nas estratégias disciplinares, como o avanço da mídia e das tecnologias de controle, rompendo os muros e atravessando os sujeitos (corpo, mente e alma), as estruturas disciplinares continuam ativas e atuantes; em particular no caso das instituições socioeducativas, os dispositivos disciplinares se perpetuam em alto grau.

O poder disciplinar, segundo Foucault (2000), manifesta-se na estrutura de parâmetros e limites do pensamento e da prática, sancionando e prescrevendo comportamentos considerados normais ou desviantes. Foucault busca extrair das relações de poder, histórica e empiricamente, os seus operadores de dominação.

O autor destaca que, em vez de orientar a pesquisa sobre o poder para o âmbito do edifício jurídico da soberania, para o âmbito dos aparelhos de estado ou das ideologias que o acompanham, devem-se privilegiar a análise sob o ponto de vista da dominação, dos operadores materiais, das formas de sujeição, das conexões e utilizações dos sistemas locais dessa sujeição, e, enfim, os dispositivos de saber.

Como esse tema da socioeducação vem se configurando no campo da socioeducação? O que tem motivado os estudos e reflexões sobre disciplina punição versus educação nas instituições socioeducativas? Como os socioeducadores enfrentaram esse debate? Que alternativas formularam para o controle-sanção na execução das medidas socioeducativas

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de crianças e jovens? Como isso se articula com o projeto de formação ou governo moral? Que outros desdobramentos essa questão poderia promover e provocar?

O século XVIII, para Foucault, pode ser caracterizado como o tempo do fim dos suplícios físicos, mas também como o tempo de recomposição das formas de controle disciplinar.

Se a punição não mais se centralizava no suplício do corpo, como técnica de sofrimento, agora o objeto de punição passou a ser a perda de um bem ou de um direito. Com isso, a transformação das formas punitivas dos suplícios deu lugar a uma “suavidade” dos castigos, ocorrendo o deslocamento da punição sobre o corpo, implicando em um novo regime de poder, em um emaranhado de saberes, técnicas e discursos científicos, que se formam e se entrelaçam com a prática do poder de punir.

O regime de poder disciplinar produz saberes que estrategicamente vão servir de mecanismo para moldar o comportamento dos indivíduos. Desse modo, os espaços a serem construídos são determinados por modelos que possibilitam o vigiar dos indivíduos para controlá-los e discipliná-los. Foucault (2000c) apresenta a ideia do Panóptico, em que a relação de poder é de uma sujeição constante do indivíduo: vigiado, enclausurado e distribuído em espaços uteis.

Conforme Foucault (2000) analisa:

A regra das localizações funcionais vai pouco a pouco, nas instituições disciplinares, codificar um espaço que a arquitetura deixava geralmente livre e pronto para vários usos. Lugares determinados se definem para satisfazer não só a necessidade de vigiar, de romper as comunicações perigosas, mas também de criar um espaço útil. (p.123)

Os procedimentos disciplinares ficam cada vez mais meticulosos: a punição e a vigilância são mecanismos de poder utilizados para docilizar e adestrar as pessoas para que essas se adaptem às normas estabelecidas nas instituições, através da

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tecnologia da vigilância de poder que incide sobre os corpos dos indivíduos, controlando seus gestos, suas atividades, sua aprendizagem, sua vida cotidiana.

Nesse sentido, o corpo será submetido a uma forma de poder que irá desarticulá-lo e corrigi-lo através de uma nova mecânica do poder. As práticas disciplinares permitem o controle das operações dos corpos e a sujeição constante de suas forças, impondo-lhes uma relação de docilidade e utilidade.

Para o referido autor:

[...] O poder disciplinar é [...] um poder que, em vez de se apropriar e de retirar, tem como função maior “adestrar”: ou sem dúvida adestrar para retirar e se apropriar ainda mais e melhor. Ele não amarra as forças para reduzi-las; procura ligá-las para multiplicá-las e utilizá-las num todo. (...) “Adestra” as multidões confusas (FOUCAULT, 2000, p.143).

O poder disciplinar se exerce sobre os corpos individuais por meio de exercícios especialmente direcionados para a ampliação de suas forças. Esses exercícios tinham como objetivo o adestramento e a docilização dos corpos. “É dócil um corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser transformado e aperfeiçoado” (FOUCAULT, 2000, p.118).

Foucault (2000) reafirma que nas relações de poder há sempre resistência. O poder não é somente força negativa, mas também produtiva. Uma vez que o poder está sempre presente, a resistência também está, uma vez que onde há poder há resistência, sendo que essa não é uma posição de exterioridade em relação ao poder. A resistência é o outro lado do poder, faz parte dele, articula-se com ele de forma intrínseca.

Para Foucault, a palavra-chave da dinâmica das relações de poder é a resistência. Nesse sentido, há sempre a possibilidade de mudar uma situação, de dentro dela, já que em nenhum lugar se está livre das amarras do poder. É preciso, então, construir novas articulações, gestos singulares, falas e práticas cotidianas de resistência. É desse lugar – ou seja, de dentro – que se pode construir a resistência.

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Ainda que a mudança não seja efetuada no tempo desejável, há sempre a possibilidade de sua existência. Ao estarem presos, os adolescentes, os socioeducadores, as suas famílias – real ou simbolicamente – constroem também práticas de liberdade. E essa possibilidade de resistência começa nas mudanças possíveis dos adolescentes, dos socioeducadores e dos gestores, através dos atos de astúcia. Seriam esses atos de astúcia respostas à vigilância, ao controle, ao poder e à disciplina? A resistência, então, se operaria em atos, astúcias cotidianas (CERTEAU, 2000).

Esses atos são formas de comunicação intergeracional, caracterizadas como relacionais, simbólicas e de experiência/luta. A comunicação assim entendida seria a principal materialização da existência desses sujeitos e o caminho encontrado para não serem subjugados? São essas linguagens-arte que constroem a subjetividade e as táticas cotidianas de sobrevivência e libertação? Pequenas liberdades, luta de forças:

Eu acho que isso aí de não ter mais solução é uma palavra muito forte, porque se eu quero mudar, eu vou mudar. Se eu botar na minha cabeça que eu vou mudar, eu quero, eu posso e eu vou. Qualquer oportunidade eu iria agarrar, porque é uma oportunidade, e eu não posso desperdiçar, é uma oportunidade pra largar o crime de mão (Adolescente internado, Fantástico, 22/07/2012).

Considerações finais O propósito principal deste estudo foi apresentar e analisar

os paradoxos entre as políticas públicas em direitos humanos, as diretrizes e a legislação para os adolescentes em conflito com a lei inseridas nos planos e projetos do Estado Brasileiro, e as práticas cotidianas de disciplina e controle que constituem um lugar/espaço de aprisionamento para educar-disciplinar adolescentes. Ao mesmo tempo em que procuramos desvelar essas práticas discursivas e o panorama sociocultural que as constituem, tentamos compreender os sentidos produzidos por essas narrativas no processo de subjetivação dos adolescentes que por

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vezes se autointitulam “menores infratores” ou “adolescentes infratores”. Esses sujeitos são nomeados pelos profissionais que os atendem como “educando-aluno”, “adolescentes em conflito com a lei”, “adolescentes em situação especial de desenvolvimento”, “adolescentes”, “menores”, “bandido”, “bebel” ou destituídos de um nome.

Ao estudarmos a história das instituições responsáveis por (re)acolher, assistir e educar crianças e jovens, atualmente adolescentes envolvidos em atos ilícitos, deparamo-nos com a criminalização da infância e juventude pobre que nasce com a própria modernização brasileira.

No final da década de 1980, a sociedade se “humaniza”. Como não cuidar das crianças e jovens pobres que não tiveram alternativa, se não o crime? Houve um retorno à visão do assistencialismo excludente, com maior investimento nas instituições de aprisionamento-acolhimento: instituições maiores, mais distantes e internação por maior tempo.

Estruturam-se novas configurações sociais e políticas, tais como a Constituição Cidadã (1988). Houve a ampliação dos movimentos populares, dos sindicatos e do Movimento Nacional dos Meninos de Rua e, por fim, o Estatuto da Criança e do Adolescente é promulgado em 1990.

O poder é pulverizado, saímos de um poder soberano da ditadura, avançamos em um movimento da sociedade civil, na microfísica do poder, na sociedade disciplinar e anunciamos a sociedade de controle.

E as nossas crianças e jovens ainda menores infratores? O Estado brasileiro capitalista e neoliberal indica a descentralização político-administrativa e a corresponsabilidade dos três entes federativos: federal, estadual e municipal.

Gilles Deleuze anuncia: “estamos saindo da sociedade disciplinar para a sociedade de controle”, as “sociedades disciplinares são aquilo que estamos deixando para trás”.

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“Estamos entrando nas sociedades de controle, que funcionam não mais por confinamento, mas por controle contínuo e comunicação instantânea.” (DELEUZE, 2000, p223)

Entretanto, nas instituições socioeducativas, os muros continuam de pé e os adolescentes continuam aprisionados e submetidos a todas as perversões e privações de liberdade. Para a sociedade é lá que eles devem ficar, porém, melhor atendidos. É a exclusão do convívio social e a inclusão nos equipamentos sociais que lhes foram negados durante a vida lícita.

Surge o termo “adolescente em conflito com a lei”, sujeito de direito e de proteção integral. Com o ECA, o Juiz permanece com o poder de avaliar e aplicar as medidas de sanção/punição aos adolescentes envolvidos em atos ilícitos. Auxiliando a decisão-controle dos juízes, entram em cena os executores das medidas, através dos relatórios biopsicossociais, com poder de progressão ou regressão da medida socioeducativa.

Nos sistemas socioeducativos estaduais, houve a continuidade dos problemas estruturais da internação/privação da liberdade e de direitos. O perfil socioeconômico dos adolescentes permaneceu o mesmo: os segmentos pobres da população e de caráter étnico bem visível – os negros.

No estudo histórico das instituições e na configuração e produção social do adolescente-menor infrator, das questões que procuramos responder surgem outras que apenas se enunciam. Algumas que emergiram recentemente, ao lado de outras há muito presentes na história dos adolescentes em conflito com a lei. O que procuramos, sobretudo, foi dar a esses sujeitos a possibilidade de ocupar um espaço, torná-los visíveis, fazendo com que ganhassem novas cores.

Sem dúvida, a tessitura carcerária das instituições de internação dos adolescentes “infratores”, constituída historicamente, possibilita a criação de uma armadura desse saber-poder e desses sujeitos. O adolescente infrator – homem

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conhecido como tal e assim divulgado à exaustão pela mídia – é o efeito-objeto desse investimento analítico, dessa dominação-observação (FOUCAULT, 2000).

A instituição que pretende socioeducar, escolarizar e profissionalizar adolescentes, autorredirecionando os seus projetos de vida para a não reincidência infracional, paradoxalmente apresenta relatos de violência institucional e dispositivos de docilização e violação do “eu”, acabando por produzir a delinquência.

O esforço de alguns profissionais, através da presença pedagógica junto ao adolescente, e as alterações e mudanças das estruturas físicas produzem cotidianamente a própria instituição socioeducativa, por vezes punitiva, educativa, protetiva e curativa.

Assim, pensamos que a relação saber/poder nunca é unidimensional. Ela é exercida não apenas como modo de dominação do forte sobre o fraco, mas também como ato de resistência, expressão de um modo criativo de produção cultural e social de forças. Claramente, em todas as relações de poder, disciplina e controle, há elementos de expressão cultural, práticas criativas inspiradas em lógicas diferentes.

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REFERÊNCIAS

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FOUCAULT, M. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução: Raquel Ramalhete. 22ª Ed. Petrópolis: Vozes, 2000.

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A contradição do sistema socioeducativo

Joyce da Silva Ferreira1

ResumoEste artigo destina-se a analisar o sistema socioeducativo

e suas especificidades. Propõe-se a caracterizá-lo como um sistema contraditório onde a punição e a violência fazem-se presente, ainda assim, garante direitos. Os eixos da discussão estão fundamentados na análise histórico estrutural, sem descartar o caráter simbólico, cultural, social e político enraizado na sociedade brasileira. A indagação que se instaura é: como um sistema destinado ao encarceramento pode assegurar direitos?

Palavras-chave: sistema socioeducativo; contradição; encarceramento.

Este artigo destina-se a analisar o sistema socioeducativo e suas especificidades. Propõe-se a caracterizá-lo como um sistema contraditório onde a punição e a violência fazem-se presente, ainda assim, garante direitos.

A pesquisa em questão é fruto de uma reflexão iniciada no mestrado sobre a temática da socioeducação, cujo tema é “Inserção no mundo do trabalho: as perspectivas de adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa de internação marcados por uma identidade social estigmatizada” defendida em 2014 no Departamento de Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Cabe apontar, também, a inserção como Assistente Social do sistema socioeducativo que ajudou a melhorar a percepção sobre a questão apresentada aqui. 1 Assistente Social. Doutoranda em Serviço Social pelo Programa de Pós-Graduação da UFRJ, Mestre em Serviço Social pelo Programa PUC-Rio, especialista em Direito Especial da Criança e do Adolescente pela UERJ e bacharel em Serviço Social pela UFF. E-mail: [email protected].

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Como caso emblemático que suscitou a pesquisa, recordamos certa família que não tinha acesso ao serviço de saúde dental em seu município. Somente, quando os adolescentes desta família foram inseridos em uma unidade internação, os referidos adolescentes e todos os membros da família (mãe e irmãs) foram atendidos na instituição em serviço odontológico.

Este fato auxiliou na identificação de que: o sistema socioeducativo conseguia garantir, ou mesmo ser porta de entrada para o acesso a direitos, mesmo que de forma contraditória e violenta. Um acesso invertido aos direitos sob a égide do encarceramento.

Para tanto, o percurso escolhido neste trabalho para sustentar o argumento foi: em primeira análise, discutir o debate teórico defendido pela pesquisa sobre a socioeducação e apresentar os parâmetros legais; em segundo momento apresentar a pesquisa e os caminhos trilhados para sua realização. Nesta última parte, priorizou-se o reconhecimento do campo de pesquisa, assim como os atores pesquisados e os dados que ratificam os argumentos da contradição.

Como campo de análise, este estudo se fixará na análise da medida de privação de liberdade: internação. Ademais, tal como Wacquant (2012), o debate segue a linha de não separar as abordagens materialistas e simbólicas para compreender o fenômeno do encarceramento, e no caso aqui o cumprimento de medida socioeducativa de internação, uma vez que o objetivo é apreender de forma totalizante tais questões. Sem cair num ecletismo, a proposta é analisar através de um debate intertextual as diversas dimensões da socioeducação, nos meandros das microrrelações e nas macrorrelações sociais. Desta forma, os eixos de discussão estão fundamentados na análise histórico-estrutural, sem descartar o caráter simbólico, cultural, social e político enraizado na sociedade brasileira.

A indagação que se instaura é: como um sistema destinado ao encarceramento pode assegurar direitos?

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A proposta de socioeducação difundida nos parâmetros legais e seus impactos reais na vida dos adolescentesO sistema socieducativo é o espaço para a responsabilização

do adolescente, de 12 a 182 anos de idade, que cometeu algum ato infracional descrito no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA, Lei 8.090 de1990), ou seja, uma conduta análoga ao crime ou contravenção penal.

Os aparatos legais da Constituição de 88, do ECA e do SINASE3 preveem que a internação constitui medida sujeita aos princípios de brevidade, excepcionalidade e respeito a condição peculiar em desenvolvimento. Deve ser executada no âmbito estadual e aplicada quando tratar-se de: ato com grave ameaça ou violência; descumprimento reiterado e injustificável de medida anteriormente imposta; e acometimento reiterado de infrações graves.

A internação assim como todas as medidas socioeducativas devem ter como perspectiva fundamental, segundo as prerrogativas legais, a garantia da Proteção Integral e assegurar com absoluta prioridade os adolescentes como sujeitos de direitos. Entretanto, no momento, o Sistema Socioeducativo gera uma relação contraditória. Ainda que tenha a proposta de uma política de contenção da classe pobre, deve disponibilizar ao adolescente a possibilidade de ingresso às políticas públicas e sociais através de atividades educativas, profissionalizantes, culturais, esportivas, atendimento médico e acompanhamento jurídico, ou melhor, de acesso aos serviços públicos de forma adequada para a aplicação de medida socioeducativa.

2 Para os efeitos de socioeducação o adolescente pode estar em cumprimento de medi-da até os 21 anos de idade, segundo o ECA.3 Em janeiro de 2012, é instituído o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE) que regulamenta a execução da medida socioeducativa destinado ao adolescente que pratique ato infra-cional, Lei nº 12.594, de 18 de janeiro de 2012. Ainda que haja limites e necessidades de maior discussão, este representa um importante avanço na perspectiva de melhorar a execução da medida e unificar padrões de qualidade.

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Apesar das importantes críticas sobre o ECA e sua efetivação, ele rompe com certos paradigmas, principalmente com a “situação irregular” e propõe um direito para todos. Não podemos olvidar, no entanto, que as “continuidades” do antigo código de menores permanecem nesta legislação, conforme afirma Silva (2005, p.31), por conta de um “processo de reafirmação do controle do capital”. Mais ainda, o ECA possui uma proposta contraditória, já que permanece em seu âmago um caráter punitivo. Guindani (2005) afirma que diante do discurso educativo permanece uma base punitiva.

A socioeducação possui características semelhantes ao direito penal brasileiro, até porque em sua descrição o magistrado deve fazer analogias ao crime tipificado no código penal. Portanto, serão utilizadas algumas análises do sistema penal para complementar este estudo. Sendo assim, Batista descreve que o direito penal brasileiro tem um discurso de igualdade quando suas bases são punitivas e de segregação. Logo,

(...) é apresentado como igualitário (...). Por fim, o sistema penal se apresenta comprometido com a proteção da dignidade humana (...) quando na verdade é estigmatizante, promovendo uma degradação na figura social de sua clientela. Sistema penal brasileiro é seletivo, repressivo e estigmatizante (BATISTA, 2005, p.26)

Este aparato tem um objetivo estrutural de garantir o encarceramento de uma classe. Para Wacquant (2012), faz parte de uma lógica perversa com o objetivo de corroborar para a expansão e expropriação dos lucros capitalistas. Ainda que ele esteja analisando a prisão, o autor afirma que o papel é conter os jovens pobres e negros que interferem no livre funcionamento do sistema capitalista, pois se tem “(...) a prisão não como um implemento técnico para o cumprimento da lei, mas como o âmago de poder político, cujo emprego seletivo e agressivo nas regiões inferiores do espaço social viola os

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ideais da cidadania democrática” (WACQUANT, 2012, p. 12). A internação como medida socioeducativa representa a segregação dos adolescentes de uma determinada classe em espaços de isolamento e confinamento.

Em análise genealógica, Foucault (2009) descreve que o encarceramento cumpre uma função simbólica importante: para o adestramento dos corpos, transformação dos mesmos em corpos dóceis. Toda a engrenagem constitui formas à “(...) expiação que tripudia sobre o corpo deve suceder um castigo que atue, profundamente, sobre o coração, o intelecto, a vontade, as disposições” (FOUCAULT, 2009, p. 21). Cumpre também uma função econômica, já que também tem um efeito econômico com a produção de sujeitos disciplinados para esta sociedade industrial, “ajustamento a um aparelho de produção” (FOUCAULT, 2009, p.230) Para o referido autor, o trabalho foi definido como um dos agentes de transformação carcerária atribuído pela sociedade. Todavia, estabelece uma relação de poder, tonando-se, com o isolamento, um “esquema de submissão individual” e “ajustamento”.

Wacquant (2012), por sua vez, destaca que para além do “adestramento” dos corpos, a prisão contemporânea assume a função política de neutralização brutal dos sujeitos e de vigilância das categorias sociais desfavorecidas por conta do avanço das ações neoliberais. Para ele,

A marca punitiva das mudanças recentes tanto nas políticas assistenciais quanto nas políticas judiciais aponta para uma reconstrução mais ampla do estado (...). A penalização paternalista da pobreza almeja conter as desordens urbanas alimentadas pela desregulamentação econômica e disciplinar as frações precarizadas da classe trabalhadora pós-industrial. (WACQUANT, 2012, p.12)

Ou seja, não é a insegurança criminal que tem solicitado respostas do Estado e sim a insegurança social instaurada pela crise do trabalho. Para a regulação destas instabilidades, o Estado

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propõe a esta classe social o atendimento no sistema penal e na assistência social, o que garante a conservação das bases estruturais do sistema mesmo em grave crise (WACQUANT, 2012).

Neste foco centralizado nas questões macrossociais, Rusche & Kirkchheimer (2004) apontam que as práticas penais específicas possuem determinações históricas e estruturais. Elas cumprem uma função singular na sociedade, são demandadas por uma ordem societária que tem como diretriz a produção material e das relações sociais. Para os autores, as principais determinações das penas são as questões materiais. Ou seja,

Todo sistema de produção tende a descobrir formas punitivas que correspondem às suas relações de produção. (...) o uso e a rejeição de certas punições e a intensidade das práticas penais, uma vez que elas são determinadas por forças sociais, sobretudo pelas forças econômicas e, consequentemente, fiscais. (RUSCHE & KIRKCHHEIMER, 2004, p. 20)

Como outra característica, Moreira (2005) ao apontar os estudos de Zaffaroni (1990), declara que para o autor o sistema penal é a manifestação de poder, assim é palco de disputas políticas. Como já assinalado, não há como distanciar as análises dos autores sobre o encarceramento. Elas se complementam, uma vez que a privação de liberdade cumpre as funções de corroborar o ordenamento social vigente com a subalternidade das classes, sanciona a função de poder e controle, manipula os sujeitos e os modela, garante a produção, abafa as tensões, e, por último, cumpre uma função política.

Cabe, no entanto, estabelecer que a base estrutural é o horizonte para a concretude destas funções. Já que, “(...) embora o direito penal seja modelado pela sociedade – e, em última instância, hão de prevalecer sempre as variáveis econômicas que determinam suas linhas fundamentais” (BATISTA, 2005, p.22).

Não há como afirmar que o sistema socioeducativo, um aparato tão complexo deve ser analisado somente por um prisma. Garland (1999), ao analisar o castigo, identifica a mesma

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necessidade. Para o referido autor, “El objetivo del análisis siempre debe ser captar esa variedad de causas, efectos y significados que trazan su interacción, más que reducirlos a una sola divisa”4 (GARLAND, 1999, p.325).

O cenário histórico, social e político brasileiro apresenta que a diretriz seguida sempre foi a de criminalização e de contenção dos pobres. E o sistema socioeducativo, seguindo esta linha, representa um aparato estatal de confinamento desta classe criminalizada. Todavia, o sistema socioeducativo representa um sistema paradoxal, capaz de assumir dupla função. Ainda que tenha a proposta de uma política de encarceramento, deve disponibilizar ao adolescente a possibilidade do ingresso às políticas públicas e sociais, e o faz. Contraditoriamente, somente a partir da perda do direito a liberdade, os adolescentes acessam direitos que deveriam ser assegurados de forma preventiva.

Ratificando a análise, insta apresentar o caso de certo jovem que ao ingressar no sistema socioeducativo, para cumprimento de medida de internação, não sabia informar seu nome completo, data de nascimento, idade, entre outras informações. Ao indagado como não sabia informações básicas sobre sua vida, ele respondeu que nunca havia sido registrado. O nome que constava no processo judicial era, na verdade, o nome do seu primo. Ele utilizava a certidão de nascimento deste primo para estudar, assim, se apropriou deste nome. A partir da internação e de sua visibilidade como “infrator”, seu registro de nascimento estava sendo providenciado.

Ou seja, em acompanhamento no sistema socioeducativo, o adolescente, em certo grau, mesmo que este grau seja precarizado e equivocado, passa a ser ouvido por profissional qualificado e tem a possibilidade de acesso a alguns direitos outrora negados. Cabe salientar que, o ingresso de jovens no sistema não é capaz de romper com a subalternidade. 4 Tradução livre: “O objetivo da análise sempre deve ser captar essa variedade de causas, efeitos e significados que traçam sua interação, mais que reduzi-los a uma só insígnia”.

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Vera M. Batista, descreve o conceito desenvolvido por Nilo Batista de Cidadania negativa. Para a autora, o grupo, em contexto de vulnerabilidade, que possuem um passado de escravidão e na contemporaneidade representa os marginais, só tiveram o acesso ao avesso da cidadania. Estes “(...) só conhecem o avesso da cidadania através dos sucessivos espancamentos, massacres, chacinas e da opressão cotidiana dos organismos do sistema penal”. (BATISTA, 2003, p.133)

É necessário, neste momento, apresentar os resultados da pesquisa empírica que comprova a contraditoriedade do sistema socioeducativo.

Os contornos da análiseO objetivo, neste momento, é apresentar a pesquisa e

os caminhos percorridos. Cabe aqui explorar o perfil dos adolescentes pesquisados e o campo de pesquisa. A condução garante o reconhecimento da subjetividade dos atores pesquisados e suas condições de vida.

A primeira parte fundamenta-se sobre os caminhos traçados até a obtenção dos resultados. Por último garantem-se o debate teórico e os resultados alcançados, bem como o discurso dos adolescentes sobre suas vivências.

O perfil dos adolescentes ratifica o perfil dos adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa no Brasil, onde os dados demonstram ser: negros, pobres, com baixa escolaridade, em cumprimento de medida por atos cometidos principalmente contra o patrimônio ou o trabalho no tráfico5. Este grupo tem o racismo como principal fator de segregação na sociedade; ele categoriza quem será ou não usuário do sistema socioeducativo

5 Dados nacionais podem ser analisados em: CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Programa Justiça ao Jovem. Disponível em <http://wwwh.cnj.jus.br/portal/images/programas/justica-ao-jovem/relatorio_final_rio_de_janeiro.pdf>. Acesso em: 24 de fev. 2014. ________. Panorama Nacional – A execução das Medidas Socioeducativas de Internação. Brasília, Conselho Nacional de Justiça, 2012.

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O sistema possui predileções, usuários preferenciais. Segundo Moreira (1990) apud Zaffaroni (2005),

(...) sabemos que não são causas de crimes, mas são causa da prisionização da pessoa; sabemos que eles fazem parte dos estereótipos, sabemos que sem estereótipo não temos preso, sabemos que a prisão fixa os dados do estereótipo (...) e também sabemos que a pessoa pratica esses crimes contra a propriedade porque não sabe praticar os crimes usualmente praticados pelas pessoas respeitáveis. Ou seja, tem treinamento para os roubos, tem treinamento que é próprio dos feios, daqueles que têm cara e reputação de ladrões. Só tem treinamento para esses roubos não para outros. Estão treinados para isso e mais nada. Hoje sabemos isso. O estereótipo e o treinamento são duas condições sociais da sua vulnerabilidade na frente do sistema penal. Se não tivessem cara e tivessem treinamento para praticar outros crimes, não estariam na cadeia, sem dúvida; seriam pessoas respeitáveis. (MOREIRA apud I, ZAFFARONI, 1990, p.55).

A fala deste autor, ainda que esteja referindo-se ao sistema penal, é fundamental para a compreensão dos adolescentes em internação que tiveram imposta uma Identidade Social Estigmatizada6. Clarifica que não é qualquer pessoa elegível ao sistema, nem quaisquer tipos de atos infracionais. No sistema socioeducativo está apenas os adolescentes pertencentes a uma determinada classe social com uma origem e cor ainda que os atos não sejam os mais graves.

O que determina não é o ato infracional ou o grau de violência e sim o lugar social o qual adolescente pertence.

6 A Identidade Social Estigmatizada é uma categorização depreciativa imposta pela sociedade a um determinado grupo que não se encaixa nas determinações da hegemonia. Esta categorização possui uma raiz histórica e cultural de uma classe de dominadores que se sobrepõe a uma classe de dominados. Para melhor compreensão sobre a temática ver: GUIMARÂES, Joyce Ferreira. Inserção no mundo do trabalho: as perspectivas de adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa de internação marcados por uma identidade social estigmatizada. Orientador: Irene Rizzini. – Rio de Janeiro: PUC, Departamento de Serviço Social, 2014.

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A diretriz para o atendimento às classes pobres, em diversos momentos históricos, caminhou em direção à criminalização e a contenção. A meta para este atendimento, segundo Rizzini, “(...) não era o alívio da pobreza tendo em vista maior igualdade social; visava, ao contrário, o controle através da moralização do pobre” (RIZZINI, 2011, p.50).

Com o recorte especificamente do grupo apresentado, cabe neste momento identificar os escolhidos para a entrevista.

Tratamento dos dadosO percurso que foi seguido para a análise do material

exigiu o esforço de articular o discurso dos sujeitos e as reflexões anteriores. Além dos cruzamentos entre dados empíricos e teóricos, foram empreendidos cruzamentos destes dados primários, colhidos no âmbito da presente pesquisa, bem como de dados secundários, advindo de outras pesquisas publicadas neste campo temático.

Para uma pesquisa qualitativa, foram entrevistados 20 adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa de internação na Escola João Luiz Alves. Todos tinham acima de 16 anos7. Cabe agora um retorno às indagações centrais deste estudo: Como um sistema destinado ao encarceramento pode assegurar direitos?

EscolarizaçãoOs dados aqui levantados sobre a escolarização ratificam

a baixa frequência e a dificuldade em manter os adolescentes nos bancos escolares. Este quadro impõe a problematização sobre o tipo de escolarização que está sendo oferecido, além de reforçar críticas sobre políticas públicas que pouco avançaram no incentivo e a manutenção de alunos nas escolas. Ainda,

7 Para melhor compreensão do grupo pesquisado, indicamos a pesquisa acima citada.

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os dados reiteram que os adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa representam o grupo excluído de uma escolarização e profissionalização de qualidade.

Dos adolescentes pesquisados foi constatado que, no ensino fundamental, estavam: 1º Ano - 1; 3º Ano - 1; 4º Ano - 1; 5º Ano - 1; 6º Ano - 8; 7º Ano - 6; 8º Ano - 1. E apenas um adolescente no 1º no do ensino médio.

Todos os adolescentes estavam matriculados na escola que funciona dentro da Unidade do DEGASE no momento da entrevista. Antes da internação, apenas três estavam matriculados em escolas em seus territórios e as estavam frequentando, dezesseis estavam fora da escola e um não informou sua situação. Dos adolescentes fora da Escola, 10 estavam há mais de dois anos sem frequentar o ensino regular.

Desses 16 adolescentes fora da escola, as justificativas apontadas para esta interrupção foram: sem vontade - 1; atividades ilícitas - 8; repetência -1; desânimo - 4; indisciplina - 1; uso de drogas - 1.

Destaque para o envolvimento em atividades ilícitas. A inserção principalmente no tráfico é um fator incompatível com a permanência na escola. A escola perde o sentido e não cria condições para a continuação desses adolescentes como alunos. “Depois que entrei para o crime a escola perdeu a importância” (Guimarães, 2014, p.87), entrevista com adolescente em cumprimento de medida socioeducativa de internação, na Escola João Luiz Alves, em janeiro de 2014, informando os motivos para a sua saída da escola.

Sobre a justificativa desânimo, vale considerar que 3 dos 4 adolescentes que informaram esta resposta estavam no tráfico de drogas no período em que deixaram os bancos escolares. Novamente nos permite fazer a reflexão sobre a as dificuldades de permanência na escola e o envolvimento em atividades ilegais.

É possível questionar se esta falta de acesso à educação tenderia a reforçar a permanência de seus envolvimentos com

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a prática de atos infracionais. Este conjunto de fatores parecem formar um ciclo vicioso: a sociedade impõe a um determinado grupo uma identidade estigmatizada, esta identidade por sua vez o exclui do acesso aos direitos e o adolescente internaliza esta identidade a partir da infracionalidade ou segregação. São questões que se atravessam sem início ou fim, são concomitantes, continuas e reflexivas.

Apenas a escola do sistema socioeducativo é capaz de absorver esses adolescentes. É notório que, e não há espaço para a ingenuidade, esta absorção vem acompanhada da ação impositiva do Judiciário e da força.

ProfissionalizaçãoNão somente na escolarização, mas na realização de cursos

e preparação escolar profissionalizante verificamos o acesso invertido aos direitos. Dentre os entrevistados: um realizou cursos apenas em seu território, este não estava matriculado nos cursos oferecidos pelo DEGASE; três já haviam feito cursos em sua comunidade e no Sistema Socioeducativo; dezesseis haviam realizado cursos apenas no DEGASE.

Políticas SociaisO acesso aos programas, serviços, benefícios e projetos sociais

pouco aparece no discurso dos adolescentes. Dos entrevistados, quinze indicaram nunca terem participado – pessoalmente ou por meio de sua família - de qualquer programa social. Neste momento, cabe destacar dois importantes apontamentos:

· os adolescentes pouco sabem sobre suas dinâmicas familiares. Este fato é evidenciado pelas informações imprecisas sobre a renda, trabalho e/ou idade dos membros familiares. Desta forma, os adolescentes não apresentam clareza sobre

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programas em que somente o Responsável Familiar participa, tais como Bolsa Família ou CRAS;

· os adolescentes não indicam ter acesso aos serviços de Proteção Social Básica como forma de prevenção à violação de direitos ou rompimento dos vínculos familiares, tais como Projovem, Serviços de Convivência e Fortalecimento de Vínculos, Centro de Referência para a Juventude, entre outros.

Sobre os programas sociais: cinco indicaram que participavam de programas sociais; dois acessaram o Bolsa Família; dois participaram do PETI; um esteve em atividades no CRAS.

Demais PolíticasConforme já apontado, é somente no sistema que o

adolescente tem ingresso nas políticas públicas, entre elas de saúde, inclusive, com tratamento para uso abusivo de drogas. Há uma equipe profissional que atende exclusivamente adolescentes com esta demanda. Existe também atendimento médico para demandas em clinico geral, para especialidades os adolescentes tem prioridade nos atendimentos na rede municipal e estadual. A prioridade se dá pelo cumprimento de medida, prioridade esta que, por vezes, se estende à família, a partir do encaminhamento da equipe técnica ou determinação judicial.

ConclusãoO sistema socioeducativo de uma forma contraditória

tem representado a porta de entrada para acessar alguns direitos. Ainda que de uma maneira controversa utilizando excessivamente a violência, com o encarceramento dos pobres, com a promoção da miséria humana e subjugação dos resistentes.

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É notória que neste espaço impera a violência, a coerção, a subalternidade, estigmatização, culpabilização, sistemas frágeis e insuficientes, assim como serviços precarizados. Mas não é ele o único responsável pelas mazelas dos adolescentes que ingressam ali. Este espaço, também, proporciona ingresso em sistemas de proteção e acesso a serviços/direitos. É paradoxal pensar que o adolescente precisa perder o direito a liberdade e estar em cumprimento de medidas socioeducativas para ter direitos.

Esta é a contradição da medida socioeducativa, somente pela via da infração alguns adolescentes terão acesso a certos direitos fundamentais. De acordo com o conceito de Cidadania Negativa (Batista, 2003), isto é, apenas através da ação coercitiva do Estado os sujeitos terão possibilidades de acesso a políticas e serviços públicos.

A análise dos resultados da pesquisa demonstram as lacunas sociais em âmbito de toda a sociedade, que excedem os muros do sistema socioeducativo. Não é objetivo “demonizar” ou “suavizar” a responsabilidade do sistema socioeducativo. A compreensão é de que o sistema faz parte de uma lógica superior ao âmbito apenas da socioeducação. Funcionário da EJLA, ao referir-se a falência dos sistemas de proteção, discorre que: “Quando o adolescente chega aqui significa que todo o resto falhou”. (Guimarães, 2014, p.101), entrevista com servidor do sistema socioeducativo, unidade Escola João Luiz Alves, em janeiro de 2014.

Conforme Rusche & Kirkchheimer (2004), não há como refletir sobre o sistema penal, para o caso deste estudo o socioeducativo, sem situá-lo na totalidade. É necessário pensar como um aparato coletivo “O sistema penal de uma dada sociedade não é um fenômeno isolado sujeito às suas leis especiais. É parte de todo o sistema social, e compartilha aspirações e seus defeitos”( RUSCHE & KIRKCHHEIMER, 2004, p.282).

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Assim também, aponta Garland a importância de: “Señala la interrelación de la penalidad con otras esferas de la vida social, así como su papel funcional en la red de instituciones sociales8 ” (Garland, 1999, p. 331).

Este estudo não se propõe a amenizar a realidade do sistema socioeducativo. E sim, pretende demonstrar sua interface com o aparto social mais amplo, com a sociedade de classe. A contraditoriedade chega ao ponto em que adolescentes que deveriam ter de forma preventiva acesso aos direitos, por vezes, o tem através da infracionalidade e da violência.

Em face ao exposto, as propostas para amenizar estas questões estão na emancipação humana, através da luta de classes com vistas a equidade de acesso aos direitos, para uma sociedade mais justa. De forma mediata, programas e serviços de prevenção são alternativas importantes, criar estratégias no rompimento da subalternização das classes e garantir não apenas ingresso, mas permanência nas políticas será fundamental.

8 Tradução livre: “Marcar a interrelação da penalidade com outras esferas da vida social, assim como seu papel funcional na rede de instituições sociais”.

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Adolescentes infratores brasileiros: desafios para a socioeducação

Janaina Specht da Silva Menezes1

Paulo Fernando Lopes Ribeiro2

ResumoEste trabalho tem por objetivo refletir sobre a educação

relacionada aos adolescentes e jovens envolvidos com a prática de atos infracionais. Tendo como aporte metodológico as pesquisas bibliográfica, documental e de campo e como fio condutor algumas abordagens da mídia e os processos de higienização social associados a esses adolescentes e jovens, especialmente durante a realização de grandes eventos no País, o texto destaca, entre outros resultados, a necessidade de a socioeducação ampliar seus limites, buscando encontrar na integração entre os profissionais que orbitam em seus espaços e na colaboração entre diferentes áreas, setores, secretarias e unidades federadas, formas de efetivar e potencializar sua (atu)ação.

Palavras-chave: Socioeducação, Adolescentes, Infratores, ECA.

Educar é sempre uma aposta no outro. Ao contrário do ceticismo dos que querem ‘ver para crer’, costuma-se dizer que o educador é aquele que buscará sempre ‘crer para ver’. De fato, quem não apostar que existam, nas crianças e nos jovens com que trabalhamos, qualidades que muitas vezes não se fazem evidentes nos seus atos, não se presta, verdadeiramente, ao trabalho educativo.(Antonio Carlos Gomes da Costa, 1999, p. 23).

1 Profa. Dra. da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio) e integran-te do Núcleo de Estudos: Tempos, Espaços e Educação Integral (Neephi/Unirio).2 Pedagogo do Departamento Geral de Ações Socioeducativas (DEGASE) da Secretaria de Estado de Educação do Rio de Janeiro (Seeduc-RJ) e integrante do Núcleo de Estudos: Tempos, Espaços e Educação Integral (Neephi/Unirio).

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Carece de maiores estudos o fato de parcela significativa da população brasileira denominar os adolescentes e jovens que se envolvem com a prática de atos infracionais pelos termos “menor infrator” e/ou “delinquente juvenil”, além de tantos outros termos que o senso comum, fortalecido pelo uso intensivo da mídia, vem naturalizando como forma de classificá-los e, por conseguinte, excluí-los. Ao analisar essa questão pela perspectiva socioeducativa, observamos que, mais do que um fator linguístico, a intolerância para com os adolescentes infratores esconde esse e outros problemas, os quais vêm paulatinamente influenciando, de forma negativa, a sua socialização.

Aliada a essa inquietação, cabe analisar como a educação tem sido promovida para esse público tão peculiar. No Estado do Rio de Janeiro, por exemplo, é responsabilidade do Departamento Geral de Ações Socioeducativas (DEGASE) atender aos adolescentes que cumprem medidas socioeducativas 3de internação e semiliberdade, as quais são aplicadas pelos Juizados da Infância e da Juventude. Mas, qual seria a finalidade do DEGASE?

Primeiramente, é necessário destacar que, embora o DEGASE4 esteja vinculado à Secretaria de Estado de Educação (Seeduc) e tenha por responsabilidade promover a socioeducação no Estado do Rio de Janeiro, cristalizando, por conseguinte, a imagem do sistema socioeducativo, ele não se constitui propriamente o sistema socioeducativo do Estado. O DEGASE é um dos órgãos que compõem o Sistema de Garantia de Direitos(SGD), constituindo-se no executor das medidas socioeducativas de internação e semiliberdade. A esse respeito, Oliveira (2015a, p. 104) lembra-nos que: “[...] por este motivo, 3 De acordo com Liberati (2003, p. 100): “As medidas socioeducativas são aquelas ati-vidades impostas aos adolescentes, quando considerados autores de ato infracional. Destinam-se elas à formação do tratamento integral empreendido, a fim de reestrutu-rar o adolescente, para atingir a normalidade da integração social”. 4 Diferentemente de outros estados, no Rio de Janeiro, o DEGASE está vinculado à Secretaria de Educação, e as unidades do Departamento são sistematicamente fiscali-zadas pelo Ministério Público.

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espera-se que sua atuação [do DEGASE] se efetive de forma articulada e integrada com as demais instâncias públicas governamentais e da sociedade civil”.

Cabe ao DEGASE o papel de “promover socioeducação no Estado do Rio de Janeiro, favorecendo a formação de pessoas autônomas, cidadãos solidários e profissionais competentes, possibilitando a construção de projetos de vida e a convivência familiar e comunitária” (RIO DE JANEIRO, 2013, p. 29). Sob essa perspectiva, faz-se fundamental a constituição de políticas intersetoriais voltadas para o atendimento dessas pessoas que se encontram marginalizadas, ou que continuam invisíveis para uma significativa parcela da sociedade e, especialmente, para o Estado, de modo a–tendo por base o acesso a uma educação que as estimule a se tornarem pessoas críticas e as auxilie no desafio de construírem novos projetos para suas vidas– promover sua socialização e seu pleno desenvolvimento. A esse respeito, Oliveira e Assis (2015, p. 844) observam que a real modificação da sociedade exige “despertar o interesse das autoridades e da sociedade para a necessidade de priorizar ações para a infância e adolescência”, demandando, portanto, investimentos social e político, de modo a “trazer de volta à sociedade, com dignidade, os jovens infratores”.

O necessário enfrentamento dessa questão, por parte do Estado brasileiro, emerge da análise dos dados do Gráfico 1, os quais revelam que o número de adolescentes submetidos a medidas de restrição e privação da liberdade, no País, vem progressivamente aumentando.

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GRÁFICO 1 – Evolução da privação e restrição de liberdade dos jovens infratores no Brasil – 1996-20115

Já o Quadro 1 possibilita observar que, de 2010 para 2011, a maioria dos estados brasileiros apresentou crescimento das medidas socioeducativas de internação e internação provisória, em contraposição à diminuição da medida de semiliberdade, o que pode caracterizar uma certa rigidez por parte dos juízes da infância e da juventude no que tange à aplicação da medida de internação. Contudo, convém observar que, conforme dados do Censo Demográfico de 2010, no âmbito de uma população total de adolescentes na faixa etária de 12 a 18 anos incompletos (pouco mais de 20 milhões), “apenas 0,09% desse total encontra[va]-se em cumprimento de medidas socioeducativas em meio fechado” (BRASIL, 2015b, p.8).

5 Fonte: Levantamento Nacional de Atendimento Socioeducativo (BRASIL, 2015b)

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QUADRO 1 – Demonstrativo dos estados brasileiros que tiveram elevação ou redução das taxas referentes à restrição ou privação de liberdade – 2010-20116

- Não houve elevação ou diminuição significativa da taxa de internação no Rio Grande do Norte, a qual se manteve estável nesses anos.- Não houve elevação ou diminuição da taxa de semiliberdade no Pará, a qual se manteve estável nesses anos

A conjugação das informações presentes no Gráfico 1e no Quadro 1 permite constatar que em um contexto de avanço da população de adolescentes infratores acautelados no país–o qual, no período de 2010 a 2011, apresentou taxas crescentes de internação, internação provisória e semiliberdade–, o Rio de Janeiro, provavelmente pela prévia constatação da necessidade de enfrentamento dos problemas associados ao aumento do contingente de adolescentes em conflito com a lei, em situação de restrição ou privação de liberdade, constituiu-se no único estado brasileiro a incluir no Plano Estadual de Educação (PEE)7 eixos

6 Fonte: BRASIL; 2015b. As Unidades Federadas estão listadas em ordem crescente7 O PEE do Rio de Janeiro foi aprovado por meio da Lei n° 5.597/2009 (RIO DE JANEIRO, 2009).

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específicos voltados para as medidas socioeducativas e para a educação prisional, na modalidade jovens e adultos (SOUZA; MENEZES, 2014)8 .

A perpetuação do termo “menor infrator” no (con)texto brasileiro

O fato de os adolescentes envolvidos com ilicitudes virem sendo denominados “menores infratores”, tanto pela mídia quanto por parte da sociedade, tem provocado, ao longo do tempo, prejuízos a esses jovens, como, por exemplo, sua estigmatização. Se a palavra “menor” foi utilizada no Código de Menores de 1927 (BRASIL, 2015) e no Código de Menores de 1979 (BRASIL, 2015a) para designar os jovens que são objetos de medidas judiciais, a manutenção dela no contexto atual promove a preservação de uma espécie de signo que rotula, principalmente, aqueles indivíduos pertencentes às camadas mais desfavorecidas. A perpetuação de tal denominação associa-se ao caráter pejorativo com o qual se impregnou o senso comum, de tal forma que algumas manchetes (Quadro 2), por vezes, parecem contrapor menores e adolescentes, como se ambos não fossem investidos das mesmas características, sendo que a palavra “menor”, na grande maioria das vezes, está vinculada àquele que cometeu o ato infracional.

8 A pesquisa realizada por Souza e Menezes (2014) abarcou os 11 (onze) PEEs aprova-dos na vigência do Plano Nacional de Educação (PNE) 2001-2010 (Alagoas, Amazonas, Bahia, Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Pará, Paraíba, Pernambuco, Rio de Janeiro, Tocantins).

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QUADRO 2 – Títulos de notícias com destaque para os termos “menor” e “adolescente”9

Embora o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), instituído por meio da Lei nº 8.069/1990, tenha utilizado as palavras “criança” e “adolescente” para designar todo indivíduo com menos de 18 anos de idade, a mídia, ao continuar utilizando a palavra “menor” para caracterizar o adolescente infrator, estigmatiza aquele a quem se faz associar, contribuindo para que ele se mantenha à margem da sociedade, uma vez que vincula a esse adolescente um caráter de negatividade, incentivando sua segregação. Nesse sentido, Kiddo (2015, [s/p]), ao observar que: “As palavras não são neutras e têm muita força. Carregam símbolos, ideologias, histórias [...]”,destaca que “o termo ‘menor’ ainda é frequentemente usado para classificar as crianças e os adolescentes no Brasil, mas não todos. Aplicado como dispositivo de controle e coerção, o menorismo [...] incide suas normas para uma única classe social” (KIDDO, 2015, [s/p]). Esse autor, para além de refletir sobre a contribuição da mídia no processo de estigmatização dos adolescentes autores de atos infracionais, discute ainda a reprodução da lógica da exclusão e da desigualdade associada aos filhos das camadas populares, os quais, diferentemente daqueles com origem nas

9 Elaborado pelos autores.

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elites econômicas, são designados como “menores”, podendo ser caracterizados, em geral, como negros, pobres e residentes das periferias urbanas, “perfil” esse que chancela as desigualdades sociais, políticas e econômicas. Geralmente, o “menor” corresponde à criança e ao adolescente que se encontram em situação de vulnerabilidade social, em grande parte das vezes, afastados, inclusive, do alcance de políticas públicas. Durante a elaboração do ECA, foi substituída a palavra “menor”, assim como outros termos que fortaleciam a concepção menorista. Mais do que a simples troca de expressões, tais mudanças buscaram ampliar a compreensão associada à necessidade de se desenvolver uma visão mais humana e menos preconceituosa em relação aos jovens em conflito com a lei, lembrando, a todo momento, sua condição de crianças ou adolescentes. Nesse sentido, no Quadro 3, são apresentadas algumas das mudanças promovidas pelo ECA nos termos associados aos adolescentes em conflito com a lei. O foco aqui reside na distinção dos termos considerados inadequados, os quais, por conseguinte, poderiam promover prejuízos ao pleno entendimento dos direitos dos adolescentes que cometem atos infracionais.

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QUADRO 3 – Mudanças promovidas pelo ECA nos termos relativos aos adolescentes infratores10

Além da questão menorista, vinculada aos dois Códigos de Menores11 implementados antes da aprovação do ECA, outro problema, associado aos adolescentes que se envolvem com atos infracionais, refere-se à questão da higienização social, que, de forma subliminar, continua a ser promovida em nosso País.

10 Fonte: Brasil (2012a, p. 77), adaptado pelos autores.11 No caso, o Decreto nº 17.943-a, de 12 de outubro de 1927 (BRASIL, 2015), substituí-do pela Lei n° 6.697, de 10 de outubro de 1979 (BRASIL, 2015a).

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Adolescentes infratores e higienização socialA higienização social, ou limpeza social, caracteriza-se pelo

extermínio ou supressão dos direitos dos indivíduos considerados “indesejados” pela sociedade. Cruz-Neto e Minayo (2015, p. 211) entendem que, “dentro de um processo político-ideológico com um nítido propósito de destruição de vidas, referendado na necessidade de exclusão do outro”, a higienização social manifesta-se por meio da iníqua ideologia que entende que existem seres humanos “inferiores” e, portanto, merecedores de receberem tratamento condizente com sua condição de vida. Tal pensamento ganha destaque nas sociedades capitalistas em que a vida dos menos favorecidos parece ter menos valor.

De acordo com o relatório do Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura do Rio de Janeiro12 ,o número de adolescentes apreendidos e encaminhados para o Departamento Geral de Ações Socioeducativas aumentou mais de 45% no Município13 , durante a realização da Copa do Mundo de Futebol de 2014 (RIO DE JANEIRO, 2015).O documento destaca ainda que este fato possibilita o entendimento de que “se instalou no estado, quiçá no Brasil, um verdadeiro Estado de exceção, em que adolescentes eram apreendidos pelas forças de segurança e mantidos privados de sua liberdade pelo Poder Judiciário com vistas à higienização da cidade sede da partida final da Copa do Mundo de Futebol”. (RIO DE JANEIRO, 2015, p.77).

O referido relatório revela que o preconceito e a segregação orbitam em torno da questão do adolescente em conflito com a lei, especialmente no que tange à realização de grandes eventos no Estado, provavelmente no País. A esse respeito, ativistas de direitos humanos apontam para uma possível repetição do processo de higienização social, durante os Jogos Olímpicos de 2016, a ser concretizado por meio da “retirada de pessoas em

12 Instituído por meio da Lei nº 5.778, de 30 de junho de 2010 (RIO DE JANEIRO, 2010).13 O relatório aponta que o número de adolescentes privados de liberdade passou de 1.005, em 4 de julho de 2013, para 1.487, durante a Copa do Mundo de 2014.

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situação de vulnerabilidade das ruas, principalmente menores de idade” (PLATONOW, 2015, p. 1). Tal afirmação está alicerçada no fato de essa medida, segundo o Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura, vir sendo reiterada a cada nova ocorrência de grandes eventos no Rio de Janeiro, tendo sido verificada durante a Conferência Rio+20, em 2012, na Copa das Confederações, em 2013, e na Copa do Mundo de 2014, ocasião em que se constatou um significativo aumento do número de internação de crianças e adolescentes, especialmente durante os dias de realização dos jogos (PLATONOW, 2015).

Esse fenômeno aponta para uma possível política velada de “limpeza social”. Segundo Sudbrack:

Apesar da implementação da democracia há, em nosso país, uma tradição de práticas autoritárias e totalitárias – particularmente dos agentes públicos – que atentam contra os direitos humanos e permanecem, a partir de 1985, período que dá início à (re)democratização. Com efeito, existem certos grupos de pessoas que se tornam, ao longo dos anos, o alvo da violência ilegal do Estado e da sociedade (SUDBRACK, 2015, p. 28)

O resultado de tais ações contribui para o avanço do número de internações e, consequentemente, para a superlotação nas unidades do DEGASE.

A esse respeito, dados associados ao Centro de Recursos Integrados de Atendimento ao Menor (CRIAAD), localizado no Município de São Gonçalo/RJ, onde são acautelados adolescentes que cumprem medida socioeducativa de semiliberdade, revelam que os meses com maior número de entradas convergiram com o período da Copa do Mundo de 2014.

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Gráfico 2 – Número médio de adolescentes no CRIAAD São Gonçalo/RJ, nos meses do ano de 201414

Partindo da informação de que a Copa do Mundo de Futebol no Brasil ocorreu no período de 12 de junho a 13 de julho de 2014, os dados do Gráfico 2 permitem observar que, nos meses de agosto e setembro, subsequentes à realização do mundial, o número de adolescentes encaminhados para o cumprimento da medida socioeducativa de semiliberdade, no CRIAAD São Gonçalo, apresentou um aumento considerável. Entre outros fatores, podemos inferir que tal fenômeno decorreu da progressão da medida recebida pelos adolescentes, os quais, em um primeiro momento, foram internados compulsoriamente, ocasião que coincidiu com a realização da Copa, para, após o encerramento do evento, receberem uma medida mais branda, refletindo, assim, no aumento do atendimento nas unidades de semiliberdade. Outro aspecto que merece destaque diz respeito ao fato de o CRIAAD São Gonçalo apresentar capacidade para atender

14 Elaborado pelos autores a partir dos dados fornecidos pelo CRIAAD São Gonçalo/RJ.

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apenas 32 (trinta e dois) jovens, sendo que o Gráfico 2 comprova que, em oito dos doze meses (66,7%) do ano de 2014, o número médio de adolescentes atendidos ultrapassou esse limite, expondo as difíceis condições a que estão submetidos esses adolescentes durante grande parte do tempo em que se encontravam vinculados àquele Centro, o qual, durante o mês de agosto do ano observado, comportou um atendimento médio diário 50,4% superior à sua capacidade. Essa constatação remete à necessidade de o Estado promover políticas que coíbam a persistência de tal problemática, não só em ocasiões perpassadas pela realização de grandes eventos, mas que impliquem mudanças no cotidiano desses sujeitos sob sua responsabilidade, cujos direitos parecem carecer de efetivação. Muitas das ações do Estado acabam por encobrir as falhas produzidas por uma sociedade iníqua, que não consegue atender satisfatoriamente aos adolescentes que se envolvem com atos infracionais. Oliveira (2015), analisando a questão da internação indiscriminada de adolescentes, percebe-a como um retrocesso daquilo que preceitua o ECA. A par desse pressuposto, Costa (2006) é enfático ao afirmar que a educação, na sua perspectiva social, poderia consolidar-se como uma estratégia viável para promover mudanças de paradigmas e desenvolver articulações que permitiriam ao adolescente em conflito com a lei conquistar um novo estilo de vida que, entre outras possibilidades, o favorecesse em sua ascensão ao mundo do trabalho.

Socioeducação: conceitos e fundamentosPara Costa (2006, p. 11), a educação social prepara os

adolescentes infratores para “o convívio social pleno, buscando colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, seja como vítima ou como autores dessas práticas, além de se autopromoverem nos

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planos pessoal, social produtivo e cultural”. Assim, partindo da compreensão de que o foco da educação é essencialmente social, vale observar que:

O conceito de socioeducação ou educação social, no entanto, destaca e privilegia o aprendizado para o convívio social e para o exercício da cidadania. Trata-se de uma proposta que implica em uma nova forma do indivíduo se relacionar consigo e com o mundo. Deve-se compreender que educação social é educar para o coletivo, no coletivo, com o coletivo. É uma tarefa que pressupõe um projeto social compartilhado, em que vários atores e instituições concorrem para o desenvolvimento e fortalecimento da identidade pessoal, cultural e social de cada indivíduo. (PARANÁ, 2015, p. 27).

Para Carvalho e Carvalho (2015, [s/p]), “as ações intituladas como Educação Social normalmente contam com a participação ativa da sociedade civil”, possibilitando observar que a educação social/socioeducação pode ser entendida não apenas como uma estratégia indutora de enfrentamento dos problemas de segurança das cidades promovido pela sociedade como também, especialmente, enquanto possibilidade de construção de um novo projeto de vida e formação para esses jovens em conflito com a lei que se encontram em situação de privação ou restrição de liberdade.

A socioeducação decorre de um pressuposto básico que compreende que o desenvolvimento do ser humano deve acontecer de forma integral, contemplando as diferentes dimensões do indivíduo15 , devendo pautar-se por uma educação que vai além daquela oferecida pela escola ou pelo aprendizado profissional. Nesse sentido, é preciso conectar-se, essencialmente, a uma nova forma de pensar e desenvolver o trabalho com o adolescente (ABDALLA, 2013; ABDALLA; PAULA, 2013).

15 De acordo com Costa (1999, p. 53), “o trabalho educativo é – e sempre será – uma fonte inesgotável de aprendizagem. Basta querer aprender. O automatismo e a rotina fazem com que experiências valiosas se percam por falta de sensibilidade, interesse e sutileza do educador em captá-las e delas fazer a matéria de seu crescimento como pessoa, como profissional e como cidadão”.

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Contudo, a socioeducação carece de maiores estudos no campo acadêmico brasileiro. Na verdade, esse é um termo relativamente novo, o qual vem paulatinamente incorporando-se ao vocabulário daqueles que estudam o fenômeno da juventude e seu envolvimento com a ilicitude. Não é compreensível que um assunto tão pertinente continue a receber tão pouca, ou nenhuma, atenção por parte significativa da sociedade e, em especial, do Estado. A invisibilidade do tema só aumenta os desafios enfrentados pelos próprios adolescentes infratores, além de fomentar o preconceito.

Assim, tendo por referência que “todos que atuam nessas unidades [de privação de liberdade] (pessoal dirigente, técnico e operacional) são educadores (socioeducadores) e devem, independente da sua função, estar orientados nessa condição” (JULIÃO, 2015, p. 4), é necessário que esses profissionais se invistam das reflexões norteadoras da educação social, apoderando-se e empoderando-se de seus conceitos e princípios, de modo a melhor fundamentar suas ações. Alicerçados na plena compreensão do seu papel e entendendo que “todos os recursos e esforços devem convergir, com objetividade e celeridade, para o trabalho educativo” (JULIÃO, 2015, p. 4), esses profissionais terão melhores condições de contribuir para uma maior potencialização dos resultados do trabalho socioeducativo.

De modo mais geral, é necessário que todos aqueles que atuam na educação de adolescentes em conflito com a lei percebam-se como educadores potenciais e, sob essa perspectiva, envolvam-se e, consequentemente, corresponsabilizem-se com o processo de educar. Assim, a socioeducação há que ampliar seus estritos limites, buscando encontrar, na integração entre profissionais que orbitam em seus espaços e na colaboração entre diferentes áreas, setores, secretarias e unidades federadas, formas de efetivar e potencializar sua (atu)ação.

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Considerações finais

O Brasil carece que a socioeducação ganhe o destaque que lhe é devido, tanto no contexto das políticas públicas em educação quanto no âmbito das instituições públicas de ensino superior. O fenômeno associado ao envolvimento da infância e da juventude com a ilicitude deve subsidiar a promoção de estudos e pesquisas voltados para a socioeducação, possibilitando, assim, agregar maior aporte teórico-metodológico a essa concepção de educação, de modo a viabilizar melhores condições para o desenvolvimento do trabalho educativo associado a essa parcela da população.

Os adolescentes e jovens em conflito com a lei têm direito a uma educação que favoreça seu desenvolvimento intelectual, físico, psicológico, espiritual e social, que os prepare e fortaleça para o exercício da cidadania. Todavia, na contramão dessa possibilidade, a estigmatização desses adolescentes e jovens vem sendo promovida continuamente, entre outros motivos, por lacunas e/ou frágeis enfrentamentos na esfera do Estado, da sociedade, das famílias, das instituições e/ou dos profissionais que deveriam se responsabilizar pela díade educação-socialização desses sujeitos.

O crescimento de uma cultura de exclusão – fortalecida pela mídia e por governos, em que a higienização social encontra especial apoio durante, por exemplo, a realização de grandes eventos no país – constitui-se opção lesiva associada aos adolescentes e jovens em conflito com a lei, e cujos resultados, ao estimularem a segregação e o preconceito, vão de encontro tanto ao maior desenvolvimento desses sujeitos quanto a um maior desenvolvimento do próprio Estado.

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Por fim, é relevante destacar que, embora a educação destinada aos indivíduos que se encontram em situação de restrição e privação de liberdade venha conquistando maior espaço nas agendas das políticas públicas – quiçá das associadas à segurança pública em detrimento das vinculadas à própria educação –, ainda há muito a caminhar, uma vez que, entre outros desafios, os avanços das políticas públicas para a educação vêm se revelando lentos e distantes da urgente realidade daqueles a quem devem atender.

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Gestão em Saúde no Sistema Socioeducativo do Estado do Rio de Janeiro

Christiane da Mota Zeitoune 1

ResumoO objetivo deste artigo é apresentar as ações realizadas no

período de 2013 a 2015 pela Coordenação de Saúde Integral e Reinserção Social do Sistema Socioeducativo do Estado do Rio de Janeiro para implantação e implementação das novas diretrizes da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde de Adolescentes em Conflito com a Lei – PNAISARI - e a consolidação de um modelo de gestão participativa pautada no planejamento, monitoramento e avaliação.

Palavras-chave: adolescente em conflito com a lei, saúde, responsabilidade, política pública.

IntroduçãoEmbora o Estatuto da Criança e do Adolescente, que agora

completou 26 anos, tenha representado um avanço do ponto de vista do marco legal, o mesmo não aconteceu na implementação de políticas públicas eficazes de promoção da cidadania de forma a garantir a doutrina de proteção integral expressa na lei.

1 Doutora em Teoria Psicanalítica pela UFRJ (2010). Mestre em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (1992). Psicóloga do Departamento Geral de Ações Socioeducativas do Estado do Rio de Janeiro. Coordenadora de Saúde Integral e reinserção Social do Departamento Geral de Ações Socioeducativas do Estado do Rio de Janeiro, cargo assumido em janeiro de 2013. Professora substitu-ta do Departamento de Psicologia da Universidade Federal Fluminense (2011-2012). Membro do Comitê da Política Editorial (CPE) do NOVO DEGASE. Parecerista ad hoc da Revista Psicologia: Teoria e Pesquisa.

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A precariedade das políticas de prevenção, proteção e inclusão social para a juventude faz com que muitos jovens fiquem sem perspectivas de futuro. Por outro lado, é importante considerar o modo de laço social a que estamos expostos no mundo contemporâneo ocidental. Vivemos em uma época em que em que as leis simbólicas, que regem os laços sociais, não têm tido consistência para assegurar as relações do sujeito com o outro, em função do declínio dos ideais, da crise de autoridade e do empuxo ao consumo. Conseqüentemente, estamos confrontados com certos tipos de comportamentos de jovens que colocam as ações dos educadores em xeque e nos desafia a novas intervenções.

No Brasil, é através do cumprimento da medida socioeducativa que o adolescente é convocado a responder juridicamente pelo ato infracional cometido. Pela lei, o sujeito poderá responsabilizar-se por aquilo que lhe escapa e que aparece realizado em ato.

Todas as medidas socioeducativas buscam a responsabilização do adolescente respeitando sua “condição peculiar de pessoa em desenvolvimento” (BRASIL, 2012). A proposta do processo socioeducativo é trazer o adolescente para o centro de suas ações e planejar com ele todo o trabalho a ser realizado, de modo que ele possa ser protagonista, ativo no processo subjetivo de construção de seu projeto pessoal, se implique nas suas escolhas de vida e se responsabilize por elas.

Isto se dá através de um trabalho interdisciplinar. Exige metodologia, profissionalismo, políticas intersetoriais. É um trabalho dinâmico que busca, através de uma ação interdisciplinar, integrada, uma intervenção com o adolescente de promoção da cidadania. Mas, sem perder de vista que estamos lidando com sujeitos, de modo que esse trabalho deve estar sempre comprometido com a ética, com a singularidade e com a diferença para que esse sujeito possa recolher a responsabilidade diante do ato infracional cometido e seja capaz de realizar escolhas e inventar soluções diferentes daquelas que o levou a cometer o ato infracional.

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Não é uma tarefa fácil. Sabemos dos desafios da socioeducação e o quanto somos capturados pela nossa rotina e demandas institucionais, que engessam a nossa prática e nos distanciam das ações socioeducativas. Nesse sentido, desde que eu assumi a Coordenação de Saúde Integral e Reinserção Social (CSIRS) do Departamento Geral de Ações Socioeducativas em 2013, com as diversas áreas técnicas2, estamos trabalhando no sentido de promovermos ações integradas e políticas intersetoriais buscando, assim, romper com uma cultura de institucionalização e fortalecer o paradigma da atenção integral expressa na lei.

A proposta deste artigo é apresentar as ações realizadas no período de 2013 a 2015, pela Coordenação de Saúde Integral e Reinserção Social (CSIRS), para implantação e implementação das novas diretrizes da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde de Adolescentes em Conflito com a Lei – PNAISARI - e a consolidação de um modelo de gestão participativa pautada no planejamento, monitoramento e avaliação.

Um Pouco de Historia...No Estado do Rio de Janeiro, o Departamento Geral

de Ações Socioeducativas (DEGASE) é o órgão responsável pela execução das medidas socioeducativas de Internação e Semiliberdade, designadas nos arts. 120 a 125 do Estatuto da Criança e do Adolescente. Foi criado em 1993 e, atualmente, está vinculado à Secretaria de Estado de Educação.

Nos últimos anos o DEGASE vem passando por um amplo processo de reordenamento institucional reformulando conteúdo, método e gestão, com o objetivo de reposicionar o atendimento

2 A Coordenação de Saúde Integral e Reinserção Social (CSIRS) é composta pelas se-guintes divisões: Divisão Biomédica, responsável pelas áreas médica, enfermagem, odontologia, nutrição, farmácia; Divisão de Psicologia, responsável pela área da psi-cologia; Divisão de Serviço Social, responsável pela área de serviço social e Núcleo de Promoção à Saúde do Trabalhador (NUPST), com uma equipe multidiscipliar.

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socioeducativo no Estado do Rio de Janeiro visando atender as diretrizes preconizadas na Lei 12.594/2012, que institui o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE) e regulamenta a execução das medidas socioeducativas, investindo em um alinhamento conceitual, estratégico e operacional para adequar-se a essas diretrizes. (DEGASE, 2012)

Neste sentido, o DEGASE passou por uma reorganização do espaço físico das suas instalações, estabeleceu parcerias com a organização da sociedade civil, ampliou o seu quadro de recursos humanos e investiu na capacitação e aperfeiçoamento contínuo dos profissionais. (DEGASE, 2014)

Um dos parâmetros da ação socioeducativa é a garantia da atenção integral a saúde do adolescente, observando o princípio da incompletude institucional, de acordo com as diretrizes destacadas no artigo 60º da Lei 12.594/2012, bem como as Portarias GM/MS nº 1.082 e 1.083, ambas de 23/05/14, que redefinem a Política Nacional de Atenção integral à Saúde de Adolescentes em Conflito com a Lei – PNAISARI.

A PNAISARI tem como objetivo garantir a atenção à saúde do adolescente em cumprimento de medida socioeducativa em meio aberto e fechado, no que diz respeito à promoção, prevenção, assistência e recuperação da saúde, no Sistema Único Saúde; favorecer o fortalecimento de redes sociais de apoio, assim como, uma maior atuação das secretarias estaduais e municipais de saúde no aporte às necessidades de atendimento e manutenção dos serviços existentes nas unidades socioeducativas. (BRASIL, 2015)

Os desafios são enormes. Historicamente a prestação de serviços de saúde nas unidades de execução das medidas socioeducativas aplicadas aos adolescentes autores de atos infracionais sempre foi marcada pela oferta de ações pontuais, campanhas sanitárias e pelas condições de ambiência inadequadas a promoção de saúde dos adolescentes nas unidades socioeducativas.

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O “Relatório de Avaliação dos Serviços de Saúde das Unidades de Internação e Internação Provisória do Departamento Geral de Ações Socioeducativas”, elaborado em 2012, pela Área Técnica de População Privadas de Liberdade da Superintendência de Atenção Básica da Secretaria Estadual de Saúde, apresentava um panorama das condições de atendimento dos serviços de saúde das unidades socioeducativas: Ausência de protocolos e fluxos de atendimento na atenção básica, de modo que não havia critério estabelecido para o acesso dos adolescentes aos serviços de saúde; ausência de ações educativas de promoção e prevenção nas unidades de maneira continuada; não havia notificação regular das doenças de notificação compulsória; os imunobiológicos do esquema vacinal preconizado pelo Ministério da Saúde não eram ofertados de maneira regular; equipe de Saúde Mental fragmentada; necessidade de elaboração do Plano Operativo Estadual; ausência de protocolo no atendimento ao servidor.

Para mudar esse cenário era fundamental uma construção coletiva. Sistematizar as ações, construir protocolos, estabelecer fluxos e rotinas, e garantir o acesso do adolescente a todos os níveis de atenção à saúde, por meio de referência e contra-referência, no Sistema Único de Saúde (SUS), da maneira como está colocada, hoje, na Política Nacional de Atenção Integral aos Adolescentes que cumprem medida socioeducativa.

Caminhos percorridos - Avanços e Desafios na implementação da Política Nacional de Atenção Integral aos Adolescentes que cumprem medida socioeducativaInicialmente, era importante ouvir as equipes, integrar

e planejar as ações de acordo com a metas estabelecidas no Caderno de Alinhamento Estratégico do DEGASE e das diretrizes das normativas da socioeducação – ECA e SINASE – e da Saúde – Portaria nº GM/MS 687/2006 e Portarias GM/MS 1.082 2 1.083/2014.

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Promovemos, então, reuniões semanais com todas as áreas técnicas da Coordenação de Saúde Integral e Reinserção Social (CSIRS) para definirmos prioridades e estratégias de atuação. Logo ficou evidenciado a importância de descentralizarmos as ações e aproximarmos da Secretaria Estadual e Municipal de Saúde.

Dessa forma, no ano de 2013, mediada pela Secretaria Estadual de Saúde, realizamos várias reuniões com as equipes municipais de saúde dos municípios onde há um Centro de Socioeducação – Rio de Janeiro, Belford Roxo e Campos dos Goytacazes – visando a definição e pactuação de fluxos para atenção integral à saúde dos adolescentes privados de liberdade, com a oferta regular dos imunobiológicos do esquema vacinal preconizado pelo Ministério da Saúde; com ações em saúde de detecção dos agravos hepatite, sífilis e HIV por meio do teste rápido e realização de exame dermatológico nos adolescentes; teste de acuidade visual; ações de educação em saúde com palestras sobre DST/AIDS; corpo e autocuidado, saúde oral, alimentação saudável, etc.. Nesse momento, o município ofertou e realizou capacitação e treinamento em hanseníase e dermatoses para os profissionais do DEGASE.

Nas áreas de Psicologia e Serviço Social, através das respectivas Divisões, foram construídos os Cadernos com as “Diretrizes para Prática da Psicologia no Sistema Socioeducativo” e as “Diretrizes para a Prática do Serviço Social no Sistema Socioeducativo”. A metodologia proposta aos profissionais para a construção deste material de referências técnicas foi a de grupos de trabalho, formada por profissionais do campo de ação socioeducativo, com experiência nos atendimentos técnicos, nas diferentes medidas socioeducativas, na abordagem individual, grupal e familiar e que tivessem evidenciado, durante o exercício de sua prática, o compromisso ético com os adolescentes e seus familiares. O objetivo era sistematizar todas as ações e trabalhos desenvolvidos dentro da Instituição em cada área de atuação técnica.

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Ainda neste ano, as Divisões de Psicologia e Serviço Social, em parceria com a Divisão de Pedagogia, sistematizaram e implantaram o Plano Individual de Atendimento (PIA) no DEGASE com a publicação da Portaria DEGASE no. 154.

Com entrada de novos profissionais, do Concurso realizado em 2011, das áreas de Psicologia, Serviço Social e Terapia Ocupacional, reorganizamos a Equipe de Saúde Mental das Unidades de Internação e Internação Provisória, priorizando-se o trabalho em rede e voltado para a perspectiva da incompletude institucional.

O trabalho das Equipes de Saúde Mental das Unidades de Internação e Internação Provisória se desenvolve a partir do reconhecimento do sofrimento psíquico que o próprio encarceramento produz na vida dos adolescentes, onde o afastamento da família e do convívio social, a institucionalização e o padrão de rigidez das normas e regras impostas acabam acarretando ou agravando as demandas de cuidado em saúde mental. A proposta dessas equipes é desenvolver um trabalho que se volte para: a possibilidade de oferecer escuta subjetiva, a partir do reconhecimento da necessidade de atenção singular que possibilite o aparecimento do sujeito; desenvolver ações de prevenção de agravos em saúde mental aos adolescentes em sofrimento psíquico, que ali estão internados por determinação judicial, incluindo aqueles com demandas decorrentes do uso prejudicial de álcool e drogas e, ainda, favorecer o acesso desses adolescentes à rede de serviços de atenção em saúde mental de base territorial.

Em outubro de 2013 promovemos o I Seminário Interno de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas para que as Equipes de Saúde Mental das Unidades de Internação apresentassem o seu trabalho. A apresentação dos trabalhos evidenciou o alto índice de medicalização dos adolescentes atendidos.

Esse Seminário deixou, então, como missão para as Equipes de Saúde Mental a revisão de protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas, com o objetivo de fortalecer o manejo

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psicossocial e a desconstrução do fluxo inicial de acesso a este serviço, que tinha muitas vezes como primeiro ponto da atenção o médico psiquiatra, que sem os elementos necessários para uma avaliação ampliada, acabava por iniciar a abordagem dos casos com o uso de medicação.

No ano de 2014 iniciamos uma nova etapa de consolidação das ações da CSRIS com a realização de um levantamento da Atenção Integral à Saúde do Adolescente3. Inicialmente essa ação ocorreu nas unidades de privação de liberdade e, posteriormente, foi estendida às unidades de semiliberdade tendo como parâmetros de observação e análise a Portaria GAB/SAS 647/2008.

O objetivo era identificar e compreender as rotinas e procedimentos de saúde realizados nas unidades de internação, rede de serviços de saúde utilizada pelas unidades de internação e unidades de semiliberdade, as equipes de trabalho e as dificuldades e potencialidades de cada unidade socioeducativa.

Em Fevereiro de 2014 fomos convidados para participar de uma Videoconferência na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), organizado pela Coordenação-Geral de Saúde de Adolescentes e Jovens/MS e a Coordenação Geral do SINASE/SDH com a participação das Coordenações Estaduais de Saúde de Adolescentes e Jovens e do Sistema Socioeducativo, com o objetivo de discutir o processo de implantação e implementação das novas diretrizes da Política Nacional de Atenção integral à Saúde de Adolescentes em Conflito com a Lei – PNAISARI - e propor ações para esse processo. A PNAISARI redefine as diretrizes da Política Nacional de Atenção Integral à saúde do Adolescente em Conflito com a Lei, em Regime de Internação e Internação Provisória (PNAISARI), incluindo-se o cumprimento de medida socioeducativa em meio aberto e fechado e foi publicada em maio de 2014.

3 A responsável pela realização desse trabalho foi a médica do DEGASE Eliana Souza e Silva. É importante ressaltar que a partir desse momento, com o trabalho desenvolvi-do pela Dra. Eliana Silva, tivemos grandes avanços na oferta dos serviços de saúde nas Unidades Socioeucativas e na elaboração do Plano Operativo Municipal.

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Diante dessas novas diretrizes, a Coordenação de Saúde Integral e Reinserção Social (CSIRS), por meio de sua equipe de apoio técnico realizou encontros descentralizados de saúde nas unidades de socioeducação do DEGASE, envolvendo os profissionais da socioeducação visando apresentar a Portaria e realizar um diagnóstico da situação sanitária das unidades de internação, internação provisória e semiliberdade e identificar as demandas, necessidades e principais agravos à saúde desta população.

Esses encontros descentralizados ocorreram nos seguintes Pólos Regionais: Norte e Região Serrana, abrangendo os Municípios de Campos dos Goytacazes, Macaé, Nova Friburgo e Teresópolis; Região Litorânea, abrangendo os Municípios de Cabo Frio, Niterói e São Gonçalo; Médio Paraíba, abrangendo os Municípios de Barra Mansa e Volta Redonda; Baixada Fluminense, abrangendo os Municípios de Belford Roxo, Nilópolis, Nova Iguaçu e Duque de Caxias; Região Metropolitana, abrangendo o Município do Rio de Janeiro envolvendo, assim, todas as unidades socioeducativas do DEGASE.

A metodologia de trabalho utilizada pela CSIRS priorizou o enfoque da educação permanente em saúde, valorizando as experiências locais desenvolvidas pelos profissionais da socioeducação e da rede de saúde na perspectiva da promoção, prevenção, assistência e reabilitação da saúde do adolescente em cumprimento de medida socioeducativa e buscou, em articulação com os atores envolvidos neste processo, a adequação dessas ações às diretrizes e fluxos de atendimento estabelecidos nas portarias Nº 1.082 e Nº 1.083 de 23 de Maio de 2014.

As ações desenvolvidas pela CSIRS em direção a implementação da portaria e na construção dos Planos Operativos Municipais buscou além do fortalecimento da rede intersetorial de proteção do direito da criança e do adolescente, trabalhar na perspectiva de reconhecer os adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa como atores fundamentais na promoção e restabelecimento integral de sua

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saúde. Nesta direção foram realizados grupos operativos com os adolescentes visando à identificação de suas demandas de saúde e possibilitando a efetivação de um espaço de escuta e fala desses sujeitos a partir do enfoque do trabalho coletivo em saúde. (DEGASE, 2014)

Todo esse levantamento foi apresentado na Oficina PNAISARI organizada pela Coordenação-Geral de Saúde de Adolescentes e Jovens/MS realizada nos dias 29 e 30 de Abril na Secretaria de Estado de Saúde do Rio de Janeiro. Essa Oficina procurou reunir os profissionais da Atenção Básica e de Saúde Mental dos 14 (catorze) municípios onde há uma unidade socioeducativa de internação, internação provisória e semiliberdade, bem como os profissionais do Sistema Socioeducativo com o objetivo de apresentar a nova Portaria, sensibilizar esses profissionais para as questões relacionadas à saúde integral dos adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa e construir o grupo de trabalho responsável pela elaboração do Plano Operativo Municipal.

Conseguimos avançar na construção do Plano Operativo em vários municípios, entre eles: Belford Roxo, Teresópolis, Cabo Frio, São Gonçalo, Macaé, Nilópolis e aprovamos o Plano Operativo Municipal de Volta Redonda.

Outra ação importante desenvolvida no ano de 2014 foi a de Prevenção e Enfrentamento do Tabagismo, que envolveu todos os segmentos do sistema socioeducativo, mas teve as equipes de Saúde Mental e os adolescentes como principais protagonistas.

Novamente priorizando-se a perspectiva da construção coletiva, em 2014, foi criado um grupo de trabalho composto por profissionais do DEGASE, de diferentes áreas de atuação, entre eles: psicólogos, psiquiatras, assistentes sociais, enfermeiros e farmacêuticos, coordenado pela médica Dra. Eliana Souza e Silva, com o objetivo de elaborar e sistematizar o “Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas em Saúde Mental na Adolescência”. Este documento apresenta referenciais técnicos e orienta os diversos

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profissionais envolvidos no atendimento ao adolescente, que cumpre medida socioeducativa, nos cuidados em saúde mental, destacando o manejo psicossocial como o trabalho mais relevante a ser desenvolvido. Isso teve importantes efeitos no trabalho que foi a desmedicalização do adolescente.

Todas essas ações, as experiências de trabalho realizado com a rede psicossocial dos municípios, os resultados das ações de enfrentamento do tabagismo e do uso de psicofármacos e o “Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas em Saúde Mental na Adolescência” foram apresentados no II Seminário de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas e I Seminário de Atenção Integral à Saúde do Adolescente em conflito com a lei.

Investimos, ainda, na Capacitação Profissional. Implantamos a Caderneta do Adolescente e, por fim, construímos, a partir de um Grupo de Trabalho, que reuniu psicólogos, assistentes sociais, terapeutas ocupacionais, enfermeiros e agentes socioeducativos das Unidades de Internação, o “Programa de Saúde Sexual e Saúde Reprodutiva para implantação do Programa de Visita Íntima no DEGASE”.

No ano de 2015, o processo de trabalho foi realizado em três eixos: Educação Permanente; Planejamento e Metas; Rotinas e Protocolos. A Educação Permanente, desenvolvida em parceria com a Escola de Gestão Socioeducativa, é um eixo fundamental da atenção integral ao adolescente em cumprimento de medida socioeducativa para que os profissionais possam atuar nas Unidades Socioeducativas de maneira integrada, com a troca de experiência, saberes, diálogo e trabalho em equipe.

No eixo Planejamento e Metas as diversas áreas técnicas da Coordenação de Saúde organizaram o seu planejamento de 2015 e estabeleceram suas metas tendo por base o planejamento estratégico do DEGASE. Essas metas foram avaliadas em reuniões trimestrais. Isto levou a uma ampla discussão do processo de trabalho e sistematização das ações, que envolveu os profissionais e fortaleceu o trabalho interdisciplinar.

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No eixo Rotinas e Protocolos procuramos construir rotinas técnicas visando a organização funcional da Atenção Integral à Saúde do Adolescente nas unidades socioeducativas do DEGASE, com o objetivo de implementar a Política Nacional de Atenção Integral ao Adolescente em Conflito com a Lei no Estado do Rio de Janeiro (PNAISARI, 2014), atender as recomendações do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE, 2012), e atingir uma das metas do Planejamento Estratégico do DEGASE, que visa a implantação de normas, rotinas e procedimentos. Promovemos a adequação dos serviços de saúde das Unidades socioeducativas, com a compra de materiais, lotação de profissionais, construção do Regimento Interno, treinamento e capacitação.

As atividades desenvolvidas ao longo de 2014, tais como os Encontros Regionais de Saúde, as Capacitações em Saúde Integral do Adolescente e a Oficina sobre Atenção à Saúde do Adolescente resultaram na elaboração dos documentos técnicos: “Atenção Integral á Saúde do Adolescente no Sistema Socioeducativo do Estado do Rio de Janeiro”; “Rotinas e Fluxos em Saúde Integral do Adolescente em Conflito com a Lei”; “Atenção à Saúde Bucal do Adolescente em Conflito com a Lei”; “Atenção em Saúde Mental e o Adolescente em Conflito com a Lei”; “Manual de Boas Práticas em Assistência Farmacêutica” e “Manual Técnico de Avaliação Nutricional”.

Em 2015 esse material foi reunido nos cadernos Linha de Cuidado em Saúde do Adolescente: “Caderno Linha de Cuidados em Atenção Integral à Saúde do Adolescente e do Adolescente em Conflito com a Lei”; “Linha de Cuidados em Saúde Mental e o Adolescente em Conflito com a Lei” e o “Caderno de Vigilância em Saúde no Sistema Socioeducativo”. Todos esses documentos foram encaminhados para publicação digital e encontra-se em fase de revisão.

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Ainda neste ano de 2015, através das Divisões de Psicologia e de Serviço Social, tivemos importantes avanços na sistematização do trabalho com as famílias. Em abril foi instituído um Grupo de Trabalho, que reuniu profissionais das diversas modalidades de atendimento socioeducativo, profissionais da Escola de Gestão Socioeducativa e da Assessoria de Medidas Socioeducativas e ao Egresso. Esse Grupo de Trabalho elaborou o “Programa de Atenção às Famílias” que será implementado no DEGASE.

A Divisão de Serviço Social teve uma importante atuação na discussão da dinâmica do trabalho no acompanhamento socioeducativo na perspectiva da interdisciplinaridade, da humanização dos processos de trabalho e das linhas de cuidado no campo da saúde do adolescente, pois sistematizou as ações da assistência religiosa no DEGASE com a publicação no Diário Oficial do Estado do Rio de Janeiro da Carta de Princípios como ferramenta propulsora de uma nova visão de viés educativo, fortalecimento, reconhecimento e respeitabilidade institucional frente às ações dos assistentes religiosos nas Unidades socioeducativas. O resultado desse trabalho foi apresentado no encontro do FONACRIAD realizado em setembro em Vitória - Espírito Santo.

A Divisão de Psicologia esteve a frente da construção do Programa de Saúde e Sexualidade para a implantação da Visita Afetiva no âmbito do Departamento e, ao lado da Divisão de Serviço Social, na discussão da garantia da identidade de gênero de adolescentes transexuais e homossexualidade no contexto de privação de liberdade. O resultado desse trabalho, também, foi um eixo de discussão no encontro do FONACRIAD realizado em setembro em Vitória - Espírito Santo.

No campo da Saúde Mental destacamos a ampliação das equipes de referência em saúde mental, o monitoramento dos casos graves, as ações de educação continuada e a articulação com a Rede de Atenção Psicossocial dos municípios.

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Iniciamos uma ação importante no âmbito da prevenção ao uso prejudicial de álcool e outras drogas nas unidades de semiliberdade, através de uma cooperação técnica com a Secretaria de Prevenção à Dependência Química (SEPREDEQ)

No campo da prevenção e promoção à saúde do trabalhador, realizado pelo Núcleo de Promoção à Saúde do Trabalhador (NUPST), destacamos o “Encontro de Saúde do Trabalhador”; a implantação do Projeto Sentinela no CENSE DOM BOSCO; elaboração do projeto de Prevenção as Doenças Crônicas, com cronograma de visita as Unidades e ações a serem desenvolvidas; desenvolvimento do Projeto de Enfrentamento ao Tabagismo para Servidores e ações realizadas em datas comemorativas, segundo calendário da saúde.

Com esta organização conseguimos atender às demandas dos adolescentes e garantir o cuidado contínuo, diário e a implantação de ações fundamentais para melhorar a qualidade de vida desta população. Outro aspecto importante desse trabalho foi o desenvolvimento de ações voltadas para o fortalecimento dos vínculos com os dispositivos de saúde dos municípios que possuem unidades socioeducativas em seu território, fundamentais para a garantia da efetivação do atendimento aos adolescentes. Avanços vêm sendo conquistados por meio de reuniões intersetoriais, onde são feitas pactuações de ações e fluxos, que culminaram na assinatura dos planos operativos municipais em 07 (sete) municípios.

Considerações FinaisA socioeducação tem interfaces com diferentes sistemas e

políticas. A formação de uma rede integrada de atendimento é tarefa essencial para a efetivação das garantias dos direitos dos adolescentes em cumprimento de medidas socioeducativas, contribuindo efetivamente no processo de inclusão social e promoção da cidadania rompendo uma política de segregação. Assim, para garantir o acesso na Rede de Atenção à Saúde e

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uma atenção humanizada, individualizada e de qualidade aos adolescentes e seus familiares é necessário romper com a fragmentação das políticas setoriais e planejar as ações.

O planejamento das ações possibilita estabelecer estratégias, prioridades e identificar as vulnerabilidades na execução do trabalho. A falta de planejamento faz com que sejamos engolidos pela rotina e urgências institucionais atuando apenas nas demandas espontâneas. É importante realizar reuniões de equipe e visitas técnicas, que promovam a integração entre os profissionais, a discussão dos processos, a troca de experiências, estudos de casos, revisão de fluxos e rotinas, e, por conseguinte, novas invenções.

Estabelecer um processo permanente de monitoramento e avaliação do processo de trabalho é fundamental para se alcançar melhores níveis de qualificação e oferta das ações e serviços. Isso foi realizado através de reuniões trimestrais com as diversas áreas técnicas.

O trabalho desenvolvido pela equipe da Coordenação de Saúde Integral e Reinserção Social ao longo desses anos caminhou nesse sentido. Consolidou um modelo de gestão participativa com planejamento, monitoramento e avaliação. Uma gestão participativa implica todos os atores que integram a execução do atendimento socioeducativo, compartilha responsabilidades e tem compromisso com os resultados. (BRASIL, 2006)

As políticas públicas repousam sempre no universal, mas podemos pensar em políticas afinadas com a diferença e com o singular, por isso é importante que os profissionais envolvidos no atendimento ao adolescente tenham uma escuta que, fundada na ética, faça surgir o sujeito implicado nas suas ações e responsabilizado por elas. Daí a importância da capacitação permanente dos profissionais envolvidos neste trabalho, da troca de experiências e de uma gestão democrática e participativa comprometida com a execução de uma política orientada pela responsabilidade social, pela clínica e pela inclusão desses adolescentes nas políticas publicas de saúde, de modo a romper com uma cultura de institucionalização que perpetua nesse País.

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REFERÊNCIAS

BARROS-BRISSET, F. O. Por uma política de atenção integral ao louco infrator. Belo Horizonte: Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, 2010.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, Senado Federal, Brasília, 1988.

_______. Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei 8.069/90, Ministério da Justiça, Brasília, 1990.

_______. Secretaria Especial de Direitos Humanos. Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE). Brasília: CONANDA, 2006.

_______. Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes a Convivência Familiar e Comunitária. Brasília/ DF, dezembro de 2006.

_______. Ministério da Saúde. Portaria GAB/SAS 647. Brasília, 2008.

_______. Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo – Lei Federal nº 12.594, de 18/01/2012.

_______. Ministério da Saúde. Política Nacional de Atenção Integral à Saúde de Adolescentes em Conflito com a Lei – PNAISARI. Portarias GM/MS 1.082 e 1.083. Brasília: 2014.

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DEGASE. Plano de Atendimento Socioeducativo do Governo do Estado do Rio de Janeiro - PASE - Decreto nº 42.715 de 23/11/2010. Diário Oficial do Estado do Rio de Janeiro - ANO XXXVI - Nº 213. Governo do Estado do Rio de Janeiro. Secretaria de Estado de Educação. Departamento Geral de Ações Socioeducativas, Rio de Janeiro, 2010.

________. Caderno de Alinhamento Estratégico. Rio de Janeiro: Novo Degase, 2012.

Seminário de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas, 2., Seminário de Atenção Integral à Saúde do Adolescente em conflito com a Lei, 1., 2014. Prevenção e Enfrentamento do Tabagismo. Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: DEGASE. Inédito. ________. Plano Operativo Municipal de Volta Redonda. Rio de Janeiro, 2014. Inédito.

________. Manual de Boas Práticas em Assistência Farmacêutica. Rio de Janeiro, 2014. Inédito.

________. Manual Técnico de Avaliação Nutricional. Rio de Janeiro, 2014. Inédito.

________. Atenção Integral à Saúde do Adolescente no Sistema Socioeducativo do Estado do Rio de Janeiro. In: Linha de Cuidados em Atenção Integral à Saúde do Adolescente e do Adolescente em Conflito com a Lei. Rio de Janeiro: 2015. Inédito.

________. Rotinas e Fluxos em Saúde Integral do Adolescente em Conflito com a Lei. In: Linha de Cuidados em Atenção

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Integral à Saúde do Adolescente e do Adolescente em Conflito com a Lei. Rio de Janeiro: 2015. Inédito.

________. Atenção à Saúde Bucal do Adolescente em Conflito com a Lei. In: Linha de Cuidados em Atenção Integral à Saúde do Adolescente e do Adolescente em Conflito com a Lei. Rio de Janeiro: 2015. Inédito.

________. Atenção em Saúde Mental e o Adolescente em Conflito com a Lei. In: Linha de Cuidados em Saúde Mental e o Adolescente em Conflito com a Lei. Rio de Janeiro: 2015. Inédito.

________. Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas em Saúde Mental na Adolescência. In: Linha de Cuidados em Saúde Mental e o Adolescente em Conflito com a Lei. Rio de Janeiro: 2015. Inédito.

________. Linha de Cuidados em Atenção Integral à Saúde do Adolescente e do Adolescente em Conflito com a Lei. Rio de Janeiro: 2015. Inédito.

________. Linha de Cuidados em Saúde Mental e o Adolescente em Conflito com a Lei. Rio de Janeiro: 2015. Inédito.

________. Vigilância em Saúde no Sistema Socioeducativo. Rio de Janeiro. 2015. Inédito.

________. Carta de Princípios da Assistência Religiosa prestada aos Adolescentes em Cumprimento de Medida Socioeducativa. Portaria DEGASE nº 207 de 24/06/2015. Diário

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Oficial do Estado do Rio de Janeiro, p. 30. Governo do Estado do Rio de Janeiro. Secretaria de Estado de Educação. Departamento Geral de Ações Socioeducativas, Rio de Janeiro, 2015.

ZEITOUNE, C. M. “Ética, lei e responsabilidade – Considerações sobre o atendimento clínico aos adolescentes em conflito com a lei”. aSEPHallus (Online), v.IV, p.43 60, 2009. Disponível em http://www.nucleosephora.com/asephallus/numero_08/index.html. Acesso em 30/07/2016.

ZEITOUNE, C. M. A Clínica psicanalítica do ato infracional – Os impasses da sexuação na adolescência. Tese de doutorado em Teoria Psicanalítica. PPGTP/UFRJ, Rio de Janeiro, 2007. Disponível em http://www.psicologia.ufrj.br/teoriapsicanalitica. Acesso em 30/07/2016.

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Pedagogia social e sistema socioeducativo: diálogos possíveis

Margareth Martins de Araújo1

ResumoA produção da vulnerabilidade da infância e de juventude,

em nosso pais, tem sido invisibilizada e, quando percebida naturalizada, ao longo dos anos. São milhares de crianças e jovens que perdem boa parte de suas vidas ou até mesmo a totalidade delas, ao se envolverem em situação de conflito com a Lei ou de privação de liberdade. Resultado de um projeto de sociedade espoliador e excludente que faz com que lutem em tão tenra idade, pelo acesso aos bens produzidos. Se falarmos em quantitativos, trata-se de um verdadeiro genocídio. Quando na escola, essas crianças e jovens lançam diariamente, inúmeros desafios aos educadores, estabelecem novas regras, exigem diferentes posturas e imprimem múltiplas lógicas ao fazer docente daqueles que, por elas se deixam afetar, se permitem com eles aprender, para ensiná-los cada vez mais e melhor. Suas vivências e experiências, ao serem consideradas e incorporadas às dinâmicas escolares, produzem novos sentidos à pedagogia, desvelando outras possibilidades educacionais. Diante desse processo é possível dialogar com seus saberes, afirmar suas identidades e promover o sucesso escolar dos historicamente excluídos. Nesse cenário surge a pedagogia social como uma pedagogia que resgata vidas, estabelece pactos e instaura poder.

Palavras-chave: Educação, Pedagogia Social, Direitos Humanos, Inclusão. 1 Doutora em Educação – UNICAMP; Coordenadora do Grupo de Ensino, Pesquisa e Extensão em Pedagogia Social da FEUFF - Projeto PIPAS-UFF; Professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense; Coordenadora do Curso de Extensão em Pedagogia Social da FEUFF; Coordenadora do Curso de Especialização em Pedagogia Social da FEUFF; Membro da Associação Brasileira de Pedagogia Social.

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Pedagogia Social: uma pedagogia sensível

Chorei, não procurei esconderTodos viram, fingiram

Pena de mim, não precisavaAli onde eu chorei

Qualquer um chorava (Noite Ilustrada)

No presente estudo, desejo retratar a Pedagogia Social como um componente da Pedagogia que se responsabiliza diretamente pela inclusão das crianças em situação de vulnerabilidade social no universo escolar. Quanto mais a população de um país é entregue à própria sorte, maior se faz a necessidade da Pedagogia Social, que se traduz em um fazer pedagógico voltado para a realidade das crianças e adolescentes expostos a todo o tipo de dificuldades oriundas de uma educação direcionada para um público com valores e necessidades bem diferentes. Dificuldades estas que não abrangem apenas o âmbito educacional, mas também o social, o político e o afetivo, por exemplo.

Ao abraçarmos a Pedagogia Social como tema de trabalho, como foco do nosso interesse e como questão reflexiva, o fazemos por perceber o quanto precisamos aprender com os sujeitos do flagelo social brasileiro, para com eles trabalhar. São milhões de crianças e jovens que não se veem contemplados no cotidiano das escolas, que se sentem alijados de um processo do qual seus próprios pais e avós, quem sabe, também o foram e, por mais que possa parecer uma “questão hereditária”, trata-se de um processo histórico de exclusão que, ao longo dos anos, transforma em marginais seres humanos capazes, competentes e brilhantes.

Quase nada do que aprendi me auxilia para com eles lidar. É preciso me formar, me alfabetizar em uma nova forma de ser e estar educadora para construir um novo sentido para o magistério por mim exercido. Penso existir, em algum lugar, educadores que

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comunguem com minhas ideias. É para eles e com eles que abrimos um espaço de trabalho como este. As questões investigativas aqui contidas são construídas, principalmente, na dor, no calor do exercício de um fazer que se impõe a cada dia, a cada hora. Não diferente, suas respostas são oriundas do amor e do compromisso forjados a ferro e fogo no cadinho da existência humana. Apenas um educador capaz de enxergar-se em seus educandos será capaz de resgatá-los do processo de indigência educacional em que se encontram e, ao resgarem, também se resgatam.

Aproximação com o sistema socioeducativo, para alguns educadores sociais, pode se constituir a partir de um misto de alegria e de tristeza. Alegria por conseguirem um novo espaço de trabalho, e tristeza por travar contato direto com jovens em situação de privação de liberdade. Uma sensação de tempo perdido e de inoperância poderá invadi-los, mas não imobilizá-los. Dessa aproximação poderá nascer a possibilidade de construção de novas ações socioeducativas, coletivas e solidárias. Estão na fronteira, no limite de suas percepções e ações.

Por estarem imersos no limite, importa observar o que afirma Edgar Morin (1990, p.100): “No limite tudo é solidário. Se tendes o sentido da complexidade tendes o sentido da solidariedade. Além disso, tendes o sentido do caráter multidimensional de qualquer realidade”.

Para os que se dedicam à educação, é como se fosse um confronto direto com o próprio fracasso. Um fracasso que também é histórico, político e social. Um fracasso de toda sociedade que falhou ao educar seus filhos. Há um Provérbio Africano que diz: “É preciso uma aldeia inteira para educar uma criança”. Qual a ou as partes da nossa aldeia falhou ou falharam na educação dos nossos jovens? Qual foi a dinâmica que construiu aquele fato? Como chegaram até ali? Como será o futuro após uma experiência como essa que marca tão profundamente a existência humana?

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Ao participarem de encontros formadores de educadores sociais em sistema socioeducativos, alguns se questionam: Onde estarão? O que estarão fazendo nesse exato momento? Como são tratados? Quem os ampara em momentos de frio e de dor? Quais aprendizados acumulam? Por onde passa a educação que recebem? Que direitos têm os privados de direitos? São tantas as indagações que merecem ser registradas para posterior exercício de compreensão.

Visualizar jovens algemados gera, nos militantes da educação, certo impacto e indignação, capazes de funcionar como energia propulsora de um novo fazer. Para além de chorar, é preciso reagir e construir propostas de superação. Trabalhar durante todo o processo educacional, de forma preventiva, não é nada fácil, mas trabalhar com os excluídos do sistema, de forma curativa, é mais desafiador ainda. É preciso impedir que reincidam. A Pedagogia Social também deles se ocupa.

Pedagogia social e educação social

Educação é um processo social, é desenvolvimento.

Não é preparação para a vida, é a própria vida.

(John Dewey)

Reflexões acerca da educação de crianças e jovens em situação de vulnerabilidade são sempre bem vindas e nos remetem a um fazer pedagógico que, necessariamente, precisa considerar seus textos e contextos de emergência. Por contexto de emergências, compreendemos o estado de sofrência humana, no qual muitos se encontram. A pobreza, o desemprego e a fome, aliados ao descaso dos governantes para com essa parcela da população, se tornam diretamente responsáveis pela produção da desigualdade social crescente de forma desgovernada e irresponsável, matando sonhos, exterminando o futuro, tramando contra a vida e, consequentemente, contra o país.

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O contexto de emergências obriga os atores sociais com os quais trabalhamos, incluindo familiares e núcleos de convivência, a descobrir, ou até mesmo, a criar novas formas de sobrevivência. Os obriga a reinventar a vida, a viver um dia de cada vez, não por falta de planejamento ou organização, mas por falta total de perspectiva.

Creio não ser difícil, através de um breve exercício de empatia, que nos coloquemos, apenas por alguns minutos, mesmo que de forma imaginária, em seus lugares e que absorvamos a dor que emana do seu sofrimento, as emergências que atuam cotidianamente em suas vidas e a dureza da exclusão histórica, política, social, educacional e econômica. Algumas vezes pergunto-me: A escravidão acabou ou sobrevive através de múltiplas e diferentes formas? Os escravos de hoje são descendentes diretos dos ontem, os presídios, os atuais navios negreiros e os senhores de escravos, os governantes. São sucessivas gerações de abandono, uma trama macabra e violenta contra a cidadania brasileira, contra os filhos da pátria, contra a vida! Trata-se de um autêntico atentado contra a humanidade. Por mais improvável que possa parecer, como diz Cazuza: Eu vejo o futuro repetir o passado.

Fruto do flagelo humano, crianças e jovens, atualmente, se veem às voltas com formas diferenciadas de viverem suas infâncias e juventudes, de se moverem no mundo, de ser gente, pois vivem em um contexto de emergência que os obriga a descobrir ou até mesmo criar novas formas de sobrevivência. Reinventam suas vidas em contextos adversos e tentam como podem se por de pé na vida, apesar das projeções a eles destinadas. É preciso virar esse jogo, é preciso reinventar a vida, é preciso outras infâncias e outras juventudes. Volto a me questionar: Como fazê-lo juntos aos que privados estão de sua liberdade? Realmente deveriam estar privados de liberdade? Não seria o caso de colocar em ação lápis e livros? Segundo Monteiro Lobato: Um país se faz com homens e livros. Será melhor que nossos governantes aloquem verbas no presente para no futuro não precisar fazê-lo com a privação de liberdade. É preciso construir o futuro com educação!

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Vejamos alguns dados que podem nos auxiliar no aprofundamento das nossas reflexões, publicadas no site Dourados Agora: “Enquanto o país investe mais de R$ 40 mil por ano em cada preso em um presídio federal, gasta uma média de R$ 15 mil anualmente com cada aluno do ensino superior — cerca de um terço do valor gasto com os detentos”. Algo no mínimo intrigante ocorre aqui, pois verbas existem, mas quem as administra? A favor de quem administram? Não seria no mínimo coerente alocar verbas na educação – forma preventiva de administrar, do que na detenção – forma curativa de administrar? Que tal educação integral em horário integral no lugar de presídios desintegrados em horário integral? Observem: O tempo passa, mas as marcas ficam. A quem interessa esse estado de coisas? O que estão construindo nossos governantes através de suas políticas públicas equivocadas que, ao longo de décadas diz, de forma interdita que: Vale a pena roubar?

É com profunda estranheza que verifico, ao longo de décadas, em nome de uma pseudo justiça social e com narrativas justificadoras perante a sociedade, os vários programas sociais como: Bolsa Família, Auxílio aluguel, Programa Minha Casa Minha Vida, Brasil Carinhoso, Farmácia Popular, Merenda escolar (O mais antigo), entre outros; se perpetuarem, virarão regra quando deveriam ser a exceção. É evidente: quem vive em contexto de emergência tem pressa, é preciso fazer algo com urgência. Mantê-los em situação de indigência, fazendo dos programas sociais moedas de troca (voto), sem de fato existir a mínima possibilidade de geração de emprego e de renda, é no mínimo revelador do desinteresse existente por parte dos governantes, de retirar a população da situação na qual se encontra. Parece que o jogo que está sendo jogado é: dar dinheiro, mas não dar poder. Para manter a todos subservientes, dóceis, submissos e necessitados. Vale a pena ressaltar que o poder advindo do conhecimento liberta, e um povo instruído se liberta.

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Também é indispensável sinalizar que o montante individual utilizado por cada programa é inversamente proporcional aos auxílios recebidos por políticos no exercício de suas funções. Quando trocarão a política de enriquecimento ilícito por uma política governamental lícita? Parece-nos que a inversão de valores nos trouxe ao caos social em que estamos imersos. É uma construção humana passível de ser modificada através do exercício de uma justiça social pautada na criação de emprego e na geração de renda. Retirar o povo brasileiro do estado de indigência em que foi colocado, significar fazer o país crescer para todos, de forma ampla e democrática.

Outros dados do site Dourados Agora nos informa que,

na comparação entre detentos de presídios estaduais, onde está a maior parte da população carcerária, e alunos do ensino médio (nível de ensino a cargo dos governos estaduais), a distância é ainda maior: são gastos, em média, R$ 21 mil por ano com cada preso — nove vezes mais do que o gasto anual por aluno no ensino médio, R$ 2,3 mil (Mozart, 2011, p..1)

A má administração financeira gera esgotamento de verbas e colapso financeiro em qualquer gestão, e demanda tempo, muito tempo para corrigir equívocos e, em especial, na área política de uma nação. Há uma entropia, seguida de miopia, na forma pela qual nossos governantes atuam, levando ao atual quadro no qual se encontra nossa sociedade.

Hoje, a mídia escrita e televisiva anunciou que o Brasil alcançou, em três meses, a triste marca de um milhão de desempregados. Para nós o desemprego é uma das maiores formas de violência que uma população pode estar exposta, pois traz indignidade, revolta e desesperança, e é gerador de múltiplas violências, entre elas, o ingresso de jovens em sistemas socioeducativos. Muitos que ali se encontram, furtaram para se alimentar.

É evidente que, em um sistema cuja superlotação seja a tônica, a qualidade de atendimento deixa de passar apenas pela alocação de verbas. Acreditamos que deva passar, principalmente,

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pela atitude preventiva por parte de todos os profissionais que atuam no governo e no sistema. Se não reinventarmos outra concepção pedagógica para compreender os fatos e tratarmos da origem e não dos efeitos, acabaremos por ter nas mãos um sistema inadministrável. É como criar um monstro que, com o passar do tempo, se voltará contra seu criador.

Um dos sinais de maturidade encontrado no desenvolvimento humano é a condição que temos de nos responsabilizar por nossos atos. Ao olhar a situação do sistema socioeducativo, como estrangeira que sou, é muito fácil perceber a existência de algo muito errado. Não é preciso ser matemático nem realizar grandes operações para detectar que, em um sistema onde a entrada é cada vez maior do que a saída e a retenção se prolonga por muito tempo, em breve algo ocorrerá.

Observem uma fala recorrente (ouvida várias vezes de diversos servidores da área), entre profissionais do sistema coletada em situação de pesquisa- Pedagogia Social para o século XXI – Projeto PIPASUFF, 2015: “Isto aqui é uma panela de pressão pronta para estourar”. A competência de acompanhar o sistema de perto, de forma compromissada e responsável, parece-nos ser de todos. Olhando de fora, tudo nos leva a crer na inexistência de uma ação integrada entre todas as equipes e setores do governo, para que, longe da fogueira de vaidades, reflitam sobre a concretude do real e passem a trabalhar de forma integrada sobre como superar o estado atual no qual o sistema se encontra.

Dúvidas em relação à possibilidade organizativa e teórico-prática, por parte dos profissionais que compõem o sistema, não as tenho, mas habita em mim a clareza da necessidade urgente da ação integrada onde o planejamento, a execução, a avaliação e o replanejamento das ações sejam constantes sempre perpassadas pelo diálogo, pela escuta sensível (BARBIER, 1999/2000), e pelo respeito ao dito pelo outro. Dentro da perspectiva da Pedagogia Social, todos que trabalham no sistema, direta ou indiretamente, educam. Se trabalhamos em um sistema socioeducativo, lidamos

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com educadores, independente da função que assumem. Este fato nos remete ao entendimento de que nossas armas devam ser lápis, cadernos, livros, diálogos e exemplos.

Educar pelo exemplo é, permanentemente, a metodologia principal a ser trabalhada pelo educador social. Dentro de um sistema socioeducativo, cabe perguntar: quem nossos jovens têm como exemplo? Sabemos que nossas crianças e jovens precisam de valores, princípio e limites... Quais os valores, princípios e limites são passados, através dos exemplos, pela e na socioeducação? Quem se responsabiliza por eles? Privar de liberdade apenas, não adianta. A visão punitiva, e nada formativa que, ao longo dos anos trabalhamos, gerou a “panela de pressão” mencionada inúmeras vezes por profissionais da área. É preciso desconstruí-la, através de ações humanizadas e éticas que valorizam o ser humano. Cabe lembrar os versos da música “Volta por cima” de Noite Ilustrada: “Chorei, não procurei esconder /Todos viram, fingiram/ Pena de mim, não precisava/ Ali onde eu chorei/ Qualquer um chorava (...)”( Noite Ilustrada, 1962).

Eles já estão “na cruz”, inclusive com uma “coroa de espinhos”. Eles e suas famílias. Qual o seu papel? Julgar? Classificar? Excluir? Ou compreender, acolher, amparar e auxiliar no processo de superação? Olhem para eles, são como você. O que os fez desviar. Já pararam para compreender que são frutos de uma sociedade doente como a nossa que produz o infrator para penalizá-lo? Já ouviram suas angústias? Sabem sobre seus sonhos? Já se colocaram em seu lugar? Já pararam para pensar que emprestam suas vidas para que possamos olhar para esse sistema espoliador, degradante e desumano ao qual pertencemos?

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Pedagogia social, a pedagogia da superação

Dar a volta por cima que eu dei

Quero ver quem dava

(Noite Ilustrada)

Nós, da Pedagogia Social, ao olharmos para a questão do erro, trazemos a certeza de que ele pertence ao humano: “Quem nunca errou atire a primeira pedra” (Noite Ilustrada, 1962). Acreditamos que os erros podem e devem se constituir em possibilidades de acertos, através da qual aprenderemos refletindo, nos reorganizando, nos preparando para ser e estar cada vez melhor. Já diziam os gregos: “O ser humano existe em devir” (Heráclito, 1998, pag.35). Por que damos sentido de totalidade às partes? Por que não somos capazes de exercitar a compreensão, a inclusão no lugar do julgamento e da exclusão?

Concordo com a punição do erro, mas penso que o estreitamento dos limites e as organizações de novas regras possam ser mais eficientes do que a reclusão. Para John Dewey: Educação é um processo social, é desenvolvimento. Não é preparação para a vida, é a própria vida.

Sendo a educação um processo social, nos parece um desrespeito a esse princípio, a privação de liberdade. Que tipo de desenvolvimento é realizado? Para o autor, educação é vida e não preparação para a vida... Ao interromper sua vida e não prepará-la para que sejam mais, superem seus erros e evoluam. O que fazemos então?

O trabalho da Pedagogia Social nos permite afirmar a existência de um tripé que constitui um desafio permanente para o educador social: o primeiro pilar é o da construção de sua própria identidade. Uma identidade que só faz sentido atrelada ao outro, ou seja, ao aluno. O segundo é o da aceitação, ou seja, é preciso

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aceitar seu aluno como ele é, com suas histórias e memórias, com seus textos e contextos de emergências. É possível afirmar que o processo de aceitação do outro passa, principalmente, pela própria aceitação, caso contrário, não passará de mero discurso representado por palavras soltas ao vento. Falamos, portanto, do testemunho vivo de um fazer capaz de por em diálogo o binômio teórico-prático, invocando permanentemente a questão da coerência, o que nos é bastante desafiador.

E finalmente, porém não menos importante, o terceiro pilar é o da responsabilidade. Para além de se identificar com os educandos e neles se reconhecer e, aceitá-los em sua legitimidade, o educador social precisa responsabilizar-se por eles. Responsabilizar-se a tal ponto por seu fazer pedagógico que será impensável não incluir o sucesso dos educandos no rol do seu próprio sucesso. Falamos, portanto, de uma relação de pertencimento capaz de compreender educador e educando como partes integrantes de uma mesma realidade, não fazendo mais sentido a existência de um sem o outro.

Ao refletir sobre os jovens em situação de privação de liberdade muitos questionamentos são construídos e os mesmos passam a nos acompanhar por toda vida. O Rio de Janeiro obteve, nas últimas semanas, temperaturas muito baixas, algo em torno de 10-15 graus, ou seja, frio para os padrões cariocas. Dificilmente passamos ao largo dessa situação sem pensarmos como eles estarão. Terão agasalhos, calçados, meias? Terão o mínimo de conforto para passarem o frio? Era preciso, além da privação de liberdade, passarem por tanta penúria além daquelas que estiveram expostos desde a infância? É preciso colocar-se no lugar do outro, nos libertando das amarras da nossa formação, livres de conceitos e preconceitos.

A seguir, através de contextos interativos, demarcaremos fronteiras e possibilidades para o devir. Para isso, é preciso compreender o educador social reflexivo como aquele profissional que percebe o teor pedagógico existente na prática e busca com

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ela aprender. A reflexão passa a ser uma forte aliada às práticas de sucesso ao se falar em socioeducação. É com padre Antônio Vieira, ao falar sobre o modo de diagnosticar dos antigos, que aprofundaremos nossos achados agora:

sacrificavam os animais; consultavam-lhes as entranhas e, conforme o que viam nelas, assim prognosticavam. Não consultavam a cabeça, que é o assento do entendimento: senão as entranhas, que é o lugar do amor; pois não prognostica melhor quem melhor entende, senão quem mais ama. (...) Não há lume de profecia mais certo do que consultar as entranhas dos homens. De que homens? De todos? Não, dos sacrificados. (...) Se quereis profetizar o futuro, consultai as entranhas dos homens sacrificados: Consultem as entranhas dos que se sacrificaram e dos que sacrificam: e o que elas disserem, isso se tenha por profecia (VIEIRA, 1998, p..45)

Por não separar o pesquisar do viver, o educador social reflexivo parte do princípio fundamental do ensinar a todos e a cada um. É possível afirmar a inexistência de uma pedagogia que o faça abrindo mão da convivência e do diálogo. O segredo de ensinar a todos e a cada um está dentro de cada um. É preciso que o educador social reflexivo, através de movimentos de interação e de interlocução, aprenda com os educandos sociais, como ensiná-los. Cada um com um tipo de inteligência e com sua singularidade dará o tom do aprendizado.

Observar, viver e conviver, planejar, construir e reconstruir práticas alternativas de superação pedagógica para ensinar cada vez mais e melhor a todos e a cada um. Percebemos que não há receita de bolo. Cada caso é um caso, mas é possível afirmar a existência de saberes acumulados permissores de multiplicação. A partir da compreensão de práticas locais e globais, o educador social reflexivo será capaz de avançar em sua odisseia marcada pela tenacidade, disciplina e coragem. Como disse Anita, 16 anos, uma das jovens por nós pesquisada: “É preciso do nada tirar o infinito”(Relatório de Pesquisa, Projeto PIPASUFF, 2014). Eis a alquimia cotidiana do educador social: fazer fluir vida em contexto de morte. Por mais pesado que possa parecer, basta observar o cotidiano de cada um e verão que é realidade.

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Segundo Humberto Maturana (1998), realizar reflexões acerca da situação política de seu país, o Chile, nos alerta para:

A aceitação do outro como um legítimo outro na convivência constitui a convivência social como a única convivência na qual o modelo de conviver surge e se dá na aceitação, e não na negação que surge na exigência de que o outro seja diferente. Não é o medo do castigo que detém o crime na vida social – ele simplesmente não aparece. O crime surge depois que a convivência social tiver se rompido. (MATURANA, 1998, p.83)

Aceitar o outro em sua legitimidade se faz necessário, nas práticas socioeducativas não é diferente. Importa acolher o dito para resignificar práticas. Trata-se de um exercício cotidiano capaz de nos fazer paulatinamente desenvolver uma escuta sensível (BARBIE, 1999), evitando a surdez permanente que tomou conta de inúmeras instituições. É preciso considerar que, em se tratando de gente, seres humanos, há de se ter diálogo, e não monólogo. Abrir mão da hierarquia do saber-poder através do exercício permanente de humildade também contribui para o fortalecimento dos processos de aceitação. Aceitar o outro em sua legitimidade, significa, dentre inúmeras possibilidades, principalmente, aceitá-lo por inteiro, como é, sem restrições ou atitudes hierarquizadas.

Através da Pedagogia Social é possível afirmar que o ser humano aprende com o corpo inteiro, sendo necessário repetir objetivos e não as atividades. Como fica essa afirmativa diante da socioeducação? Quais as possibilidades de aprendizagens que estão expostos os jovens sem situação de privação de liberdade? Quais os ensinamentos marcarão seus corpos e mentes? Quem são os verdadeiros educadores sociais que os ensinam pelo exemplo? Quais são os exemplos aos quais estão expostos? Como ensinar com e na privação de liberdade se acreditamos que educar é vida?

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O século XX não conseguiu diminuir as diferenças entre ricos e pobres, alfabetizados e não alfabetizados, entre tantas outras situações fortemente marcadas por questões de raça, de gênero, de etnia. Os jovens em situação de privação de liberdade, em sua grande maioria, são afrodescendentes e, oriundos de famílias que tiveram seu direito à escolarização negado. Trata-se de uma construção humana, possível de ser transformada. É preciso que educadores sociais e autoridades governamentais olhem para o que está ocorrendo e se responsabilizem por mudar esse quadro catastrófico no qual esses jovens se encontram.

São crianças e jovens que não sonham com o futuro. Nem sabem que podem tê-lo. Seus sonhos foram roubados... Os sonhos dos seus familiares também. Toda família espera o nascimento de uma criança e não de um jovem em conflito com a lei. Trata-se de uma construção social. É possível afirmar que não nasceram com armas nas mãos. Quem os arma? Por que o tráfico se anuncia como um espaço promissor para a sobrevivência. Quem ou o que, joga nossos jovens para essa realidade?

O futuro ameaçado é uma categoria por, nós cunhada, para se referir ao estado de desprezo, desqualificação, desumanização e desrespeito no qual, crianças, jovens e suas famílias, em todo país, se encontram. Por incrível que pareça nossos governantes, através de políticas públicas equivocadas, tramam contra o futuro da população. São gerações após gerações entregues a própria sorte. Desconsiderar esse contexto de emergências é tramar contra o futuro.

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Eis o nosso apelo a juízes, promotores, advogados, profissionais envolvidos com a interdição humana. Olhem com solidariedade, compaixão e humanidade. Cooperem para que o bem floresça a partir da correção de condutas face ao erro. Com firmeza e sem rigidez, com ética e estática educamos jovens para uma vida melhor. Sei ser tarefa para muitos, mas é toda aldeia... Lembram?

Mais uma vez, recorro a Noite Ilustrada: “Reconhece a queda e não desanima/ Levanta, sacode a poeira e / Dá a volta por cima.” (Noite Ilustrada, 1962). Assim encerro essa reflexão afirmando ser a Pedagogia Social em espaços de privação de liberdade, a pedagogia da volta por cima! A pedagogia da Superação.

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REFERÊNCIAS

BARBIER, R. O educador como passador de sentido. Universidade de Brasília, Faculdade de Educação, cátedra UNESCO de Educação a Distancia, 3º Curso de Especialização em Educação Continuada e a Distância, 1999/2000.

DEWEY John. Educação e vida. Editora Melhoramentos, 10ª Edição, São Paulo, 1978.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: Saberes necessários à prática Educativa. Rio de Janeiro, Editora Paz e Terra, 1996.HERÁCLITO. “Fragmentos.” In: Os Filósofos Pré-Socráticos, por Gerd A. (org.) BORNHEIM, p. 35-46. São Paulo, SP: Cultrix, 1998

HERÁCLITO. “Fragmentos.” In: Os Filósofos Pré-Socráticos, por Gerd A. (org.) BORNHEIM, p. 35-46. São Paulo, SP: Cultrix, 1998

MATHIAS, Antônio Jacinto. É preciso uma aldeia inteira para educar uma criança. Cadernos CENPEC, São Paulo, 2006.

MATURANA, Humberto. Emoções e linguagem na educação e na política. Belo Horizonte, Editora da UFMG, 1998.

MORIN, Edgard. Introdução à teoria da complexidade. Lisboa, Instituto Piaget, 1996.

VIEIRA, Padre Antônio. Sermões. São Paulo, Companhia das Letras, 1998.

SITES:www. dourados agora. com.br, MOZART, pag. 1, 2011.www.vagalume.com.brwww.projetopipasuff.com.br

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A importância das diferentes vivências nos cursos de Licenciatura: a formação docente através das

experiências no sistema socioeducativo1

Stephany Petronilho Heidelmann2 Gabriela Salomão Alves Pinho 3

Maria Celiana Pinheiro Lima4

ResumoEste artigo tem por objetivo relatar e analisar a importância

de propostas curriculares, referente às licenciaturas, que propicie vivências em diferentes espaços educativos. Temos como foco deste material uma feira de ciências realizada por alunos de duas turmas do curso de Licenciatura em Química do IFRJ-CDUC1 no Centro de Atendimento Intensivo Belford Roxo (CAI Baixada) do Departamento Geral de Ações Socioeducativas (DEGASE). A partir dos resultados obtidos com a atividade, discute-se a importância da proposta para os futuros professores numa perspectiva de responsabilidade social, bem como o impacto de atividades de alfabetização científica para os jovens em cumprimento de medida socioeducativa.

1 Este artigo contou com a colaboração de Flávia de Almeida Pereira, Flávia Roberta Bezerra Balbino, Janice Cristina da Silva Luiz Cabo Verde e Luise Melo de Aguiar, licenciandas em Química pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro (IFRJ) campus Duque de Caxias.2 Licenciada em Química pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro (IFRJ) e mestranda em Ensino de Química na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).3 Graduada em Psicologia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), mes-tre em Psicologia Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro e doutora em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ). Professora, pesquisadora e extensionista do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro.4 Licenciada em Química pela Universidade Federal do Ceará (UFC), mestre em Química Inorgânica pela Universidade Federal do Ceará (UFC) e doutora em Ciência e Tecnologia de Polímeros pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Professora, pesquisado-ra e extensionista do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro.

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Palavras-chave: Socioeducação. Ensino de Ciências. Formação docente.

Não há docência sem discência, as duas se explicam e seus sujeitos, apesar das diferenças que os conotam, não se reduzem à condição de objeto um do outro. Quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao aprender. (FREIRE,1996, p. 25)

Durante a licenciatura, os alunos enfrentam diversas escolhas e empecilhos referente ao (des)caminho de formação e construção do “ser professor” (OLIVEIRA, 2007). Em muitas instituições de ensino superior, a formação de professores tem sido feita ainda em uma lógica engessada, pouco diversificada e escassa de experiências práticas. Quando se trata de educação em espaços alternativos, o processo é ainda mais excludente, visto que grande parte dos currículos de licenciatura não visa esse tipo de formação.

Na comunidade escolar ainda encontra-se uma forte tendência em estabelecer tentativas de homogeneização do ensino onde a reprodução de aulas com modelos tradicionais geralmente são altamente valorizadas, excluindo e desvalorizando a possibilidade de outras formas eficazes de construção do conhecimento e a vivência do aluno. Cria-se um discurso que prestigia a educação formal como crítica, racional e embasada teoricamente, marginalizando as possibilidades formativas de trabalhar com diferentes contextos e espaços (GARCIA, 2005).

Tal distanciamento entre metodologias que fujam ao tradicionalismo de uma sala de aula regular e os cursos de formação docente compromete também a possibilidade de, a partir do trabalho com espaços alternativos, desenvolver a formação social do educando, onde o senso comum e preconceitos sejam desconstruídos, contribuindo para a superação de fragilidades formativas e para a construção de identidades docentes pautadas pela responsabilidade social e pela dimensão ética do ser professor.

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Sendo o professor um sujeito potencialmente capaz de motivar o processo emancipatório de seus alunos, destacamos a necessidade de que este esteja desde sua formação inicial desenvolvendo sua capacidade crítica, reflexiva e criativa. Ghelli (2004, p.2) complementa ainda que “(...) o conhecimento não está pronto, ele é construído e reconstruído constantemente.” Destaca-se também a Resolução CNE/CP 01 de 2002 que estabelece em seu art. 7º que as instituições formadoras deverão manter “interação sistemática com as escolas de educação básica, desenvolvendo projetos de formação partilhados” e em seu art. 8º que a avaliação dos cursos de formação envolva a “qualidade da vinculação com escolas de educação infantil, ensino fundamental e ensino médio”.

A carreira docente é construída através das relações estabelecidas cotidianamente que promovem o desenvolvimento profissional, como aponta Pinto:

A profissão de professor é um construto social, e, como tal, está sujeita a mudanças. Não somos naturalmente professores. Construir professor envolve, muitas vezes, ter de lidar com concepções estigmatizadas, tais como missão, sacerdócio, vocação, amor, dentre outras. Envolve também, muitas vezes, uma concepção de profissão de menor status social se comparada a outras como as liberais, por exemplo. A docência não é constituída apenas pelo que está explícito em uma base curricular. É, em grande parte, o que não verbalizamos, mas significamos, que se constitui em elemento formador. (PINTO, 2010, p.111).

Grande parte desta construção social envolve diretamente as vivências as quais os licenciandos estão sujeitos ao longo da graduação. E as instituições formadoras têm um grande papel em propiciar aos alunos estas vivências, principalmente no que diz respeito aos espaços não formais de aprendizagem e o envolvimento de questões sociais.

Assim, concordamos com Arroyo (2008, apud SANTOS e SCHNETZLER, 2010) quando este destaca o equívoco cometido ao se desvincular o jogo de poder existente na sociedade, do papel da

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educação e da formação cidadã, o que acaba por contribuir para uma visão antagônica à realidade e que se aproxima do convívio social harmônico. Dentro da perspectiva de formação cidadã, destaca-se a necessidade de desenvolver nos indivíduos também um interesse pelos assuntos comunitários, para que estes compreendam as implicações de suas decisões, bem como assumam um compromisso de cooperação e responsabilidade social.

Atualmente as desigualdades sociais e o desrespeito às diferenças são naturalizados na sociedade e, por consequência, no ambiente escolar. A sociedade e a escola são atravessadas por uma lógica que produz a exclusão de determinados grupos para o favorecimento de outros, desconsiderando os valores igualitários defendidos em diferentes declarações mundiais como, por exemplo, a Declaração dos Direitos Humanos.

Diante desta problemática, a inserção dos jovens graduandos nas instituições de socioeducação possibilita a vivência com a profissão e muitas vezes a desconstrução do imaginário social e coletivo acerca da desvalorização da docência. Podemos observar que outros olhares sobre o fazer docente, sobre as escolas públicas, sobre o adolescente em conflito com a lei, sobre o papel social da escola, bem como a relação entre professor e alunos e as metodologias de ensino e aprendizagens podem ser (re)construídos, contribuindo para uma formação mais crítica, questionadora e fundamentada.

Partindo do entendimento que este trabalho contempla uma pequena parcela das licenciaturas, que é privilegiada por possuir relatos de experiências em diferentes espaços de formação docente, o presente artigo tem por objetivo problematizar a elaboração e os resultados de uma atividade de formação docente realizada no espaço Centro de Atendimento Intensivo Belford Roxo (CAI Baixada) do Departamento Geral de Ações Socioeducativas (DEGASE), que é vinculado à Secretaria Estadual de Educação e tem como missão promover socioeducação no Estado do Rio de Janeiro, favorecendo a formação de pessoas autônomas,

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cidadãos solidários e profissionais competentes, possibilitando a construção de projetos de vida e a convivência familiar e comunitária. Para tal, relatamos aqui a construção e realização de uma feira de ciências em tal espaço, como atividade avaliativa de turmas de duas disciplinas do Curso de Licenciatura em Química do Instituto Federal do Rio de Janeiro - campus Duque de Caxias, Química Geral I e Contemporaneidade, Subjetividade e Práticas Escolares.

A construção do espaço socioeducativo como possibilidade educativa para os licenciadosDurante a construção e leitura das referências bibliográficas

a serem utilizadas para elaboração da atividade, foram realizadas diversas discussões sobre as expectativas dos licenciandos com a proposta, que provocaram debate e reflexão acerca da criminalização da pobreza em nossa sociedade, o perfil dos adolescentes que cumprem medida em instituições de privação de liberdade e as suas vivências após a realização da Feira de Ciências no sistema socioeducativo.

Uma das questões abordadas foi a forma como a escola lida com os ditos alunos problemas, caracterizados por indisciplina, falta de atenção e subversão à regras, e em alguns casos a prática de delitos durante esse período. Esses alunos são marginalizados por um sistema educacional que reproduz exatamente as desigualdades da sociedade capitalista, onde os mesmos são segregados do todo por sua cor, classe social, construção cultural, entre outros fatores.

Segundo Deleuze (1987, apud SILVA, 2009), conforme repetimos em atitudes que esses estudantes não são bem-vindos na escola, nem na sociedade, ocorre a internalização da forma como é visto e passa a ser a forma como enxerga a si.

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Na medida em que o “acusado” passa a se ver como um ser integrado ao conjunto de comportamentos, enquanto representação de si próprio, que os rótulos impõem, a sua forma de estar no mundo passa a estar submetida a tais rótulos e o seu comportamento ganha outro significado. Não só aos olhos do acusador, mas principalmente, aos seus próprios olhos. Ele passa não só a ser visto como alguém rotulado, mas passa a internalizar os comportamentos que esteriotipizam uma forma de estar no mundo, como forma transgressora e desviante. Assim, o efeito de acusação de desviado e/ou transgressor provoca reações não só no campo molar, mas, também, no campo molecular (DELEUZE, 1987; apud SILVA, 2009, p. 91).

Outro ponto chave trabalhado foi o discurso meritocrata reproduzido em muitos âmbitos, que alega condições iguais, não levando em consideração o entre-lugar de onde o adolescente se coloca. Silva (2012) relata de forma clara esse massacre:

A lógica dessa sociedade é ainda mais perversa do que se apresenta, pois sempre deixa brechas para que alguns rompam as barreiras e sejam transformados em regras, e para que ela, enquanto sociedade capitalista, posse se autoafirmar democrática e manter a ideologia de que a meritocracia é uma lógica justa (SILVA, 2009, p.96).

Com isso é criada de forma massacrante a ilusão do fracasso por condições cognitivas, psicológicas e patológicas, culminando, portanto, no afastamento do objetivo da escola quanto a uma formação que não invisibilize a construção e o contexto social de cada aluno e o considere como sujeito único, enxergando suas demandas e trabalhando a partir destas para sua construção cidadã.

Partindo do entendimento de valorização da vivência e do contexto de cada aluno, as práticas contextualizadas aparecem como uma possibilidade de considerar as experiências dos alunos e aproximá-los do conteúdo, estabelecendo interações entre o estudante e professor, onde a partir de uma problemática comum a realidade dos discentes, é possível identificar a utilização/inserção prática do conhecimento no dia-a-dia, construído uma maior identificação e apropriação do conteúdo por parte dos alunos.

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Para atender a tal propósito foi pensado em utilizar uma Feira de Ciências como uma proposta diferenciada para contextualização, mediação e construção de conteúdos de uma forma ativa, participativa, criativa, com embasamento teórico e experimento ilustrativo, possibilitando o aprendizado além da tradicional prática em sala de aula. De acordo com Pavão (2006):

Do ponto de vista metodológico, as feiras de ciências podem ser utilizadas para repetição de experiências realizadas em sala de aula; montagem de exposições com fins demonstrativos; como estímulo para aprofundar estudos e busca de novos conhecimentos; oportunidade de proximidade com a comunidade científica; espaço para iniciação científica; desenvolvimento do espírito criativo; discussão de problemas sociais e integração escola-sociedade (PAVÃO, 2006, p. 2).

Levando em consideração que “As Feiras de Ciências (...) se apresentam então como um convite para abrir todas as janelas: da curiosidade e interesse do Aluno, da criatividade e mobilização do Professor, da vida e sentido social da Escola” (LIMA, 2005, p. 21) e que a mesma no ambiente escolar, independentemente de sua origem, as feiras cientificas ou culturais estimulam o aluno a um planejamento, a pesquisa detalhada e a capacidade crítica.

No entanto, para além disso, tais estratégias podem servir como agentes de promoção social se forem realizadas em ambientes não formais de ensino. Em ambientes socioeducativos de privação de liberdade, as feiras representam também um importante método de ressocialização.

A proposta elaborada consistiu então na produção de trabalhos relacionados ao ensino de ciências, com ênfase em química onde, através das bibliografias indicadas, montou-se um projeto que atendia ao contexto em que os licenciandos estavam inseridos, sempre buscando a adequação da linguagem ao público trabalhado, o estímulo do lúdico e a contextualização dos conteúdos escolhidos.

A Feira de Ciências foi realizada por 30 (trinta) alunos matriculados nas disciplinas de Química Geral I e

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Contemporaneidade, Subjetividade e Práticas Escolares (CSPE). Os estudantes foram divididos em 06 (seis) grupos com cinco a seis integrantes cada. Durante as pesquisas e elaboração das apresentações os alunos foram acompanhados pelas professoras responsáveis pelas respectivas unidades curriculares. As experiências apresentadas mostraram a preocupação de atribuir significado e sentido aos conteúdos, contextualizando os temas ao cotidiano, problematizando e discutindo as necessidades de mudanças para solucionar os problemas. Os temas abrangeram assuntos como: meio ambiente, a química das cores, sistema digestivo, reciclagem e estamparia.

Antes da data marcada para realização da feira de ciências, foi realizada com as turmas uma prévia de 10 (dez) minutos da apresentação de cada grupo, onde através da troca de experiências e orientação foram trabalhados os últimos detalhes, como por exemplo, a adaptação da linguagem.

Embora a proposta inicial fosse utilizar a quadra do DEGASE, a direção da instituição socioeducativa solicitou que fosse utilizado o pátio. Organizados em um grande círculo, cada grupo ficou com uma mesa de aproximadamente 1m2 onde o experimento/atividade foi montada e os licenciandos receberam em suas intervenções didáticas quatro adolescentes internos por vez, e estes circularam entre os grupos ao longo da realização da atividade. Cada apresentação durou em média dez minutos.

As propostas iniciavam com uma conversa descontraída, onde os futuros professores perguntavam aos internos sobre o cotidiano deles e atividades que realizavam no DEGASE e a partir disso, os grupos realizavam uma ligação entre o dia-a-dia dos internos com o tema apresentado e construíam seus diálogos considerando o relatado pelos adolescentes.

O modelo de avaliação foi construído com base nos relatos, observações e na avaliação dos licenciandos em relação à realização dos objetivos propostos com a atividade. Em alguns momentos do texto seguinte, falas dos futuros professores são transcritas, identificando-os com nomes fictícios.

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Vivências e possibilidades formativasA proposta da Feira foi um duplo desafio a ser enfrentado

pelos licenciandos, pois para muitos foi a primeira experiência com a atividade docente, mediando o conhecimento, tomando consciência de que as formas mecanizadas de ensino não alcançariam os objetivos de promoção de uma atividade lúdica, contextualizada e pensada para o espaço educativo onde estavam inseridos. Desta forma, concorda-se com Pacífico (2010) que a criação de possibilidades didáticas encontra-se relacionada à vivência de práticas, onde ocorra o estímulo à criatividade, ao aprendizado e à intervenção.

Na elaboração das metodologias que serão utilizadas é de suma importância que o professor fique atento às situações de vivência do aluno que permitam desenvolver conceitos químicos importantes para que a partir delas, com suas ações e o uso de linguagem química seja possível formar o pensamento químico do estudante constituindo situações conceitualmente ricas (MALDANER, 2000). Entretanto, estabelecer essa relação entre o cotidiano do aluno e os conteúdos a serem abordados não é tarefa simples como aponta Zanon (2008):

A problematização de uma situação real com a intencionalidade de interpreta-lá teoricamente à luz das ciências, contextualizando conceitos científicos a serem significados, é um desafio que clama outro: o de ampliar os horizontes do cotidiano, fazendo-o evoluir, complexificando-o, em interações típicas de uma aula (...) (ZANON, 2008, p. 255).

O segundo desafio enfrentado pelos discentes refere-se à desconstrução de preconceitos naturalizados na sociedade acerca do ambiente de realização da proposta, uma instituição de privação de liberdade para adolescentes em conflito com a lei. Como relatou um estudante:

A minha experiência com o DEGASE fugiu a todas as expectativas que por mim foram criadas. Primeiro porque eu moro em um raio de um quilometro do mesmo, e temi por minha segurança... A princípio eu tive

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sim esse pensamento de preconceito, eu diria mais especificamente que eu tive medo do desconhecido, por ser uma instituição pouco conhecida por mim e hostilizada pela população que mora ao redor. Depois eu tive o conflito interno de como eu iria conduzir esse trabalho, onde a proposta inicial era de realizar uma feira de ciências, para um público que eu não fazia ideia do conhecimento prévio. A linguagem foi alterada, o trabalho totalmente ajustado, combinando a ciência em química e conceitos básicos da psicologia aplicada a educação, como Piaget e Vygotsky, por exemplo. Por fim, eu sai de DEGASE totalmente encantada com o interesse dos alunos, e assim, me encontrando cada vez mais na iniciação a docência, tendo hoje uma visão totalmente diferente da que tinha antes, enxergando aqueles meninos como alunos, iguais aos que encontramos na sala de aula. (PEDRO, IFRJ campus Duque de Caxias, jan. 2016).

A experiência didática vivenciada pelos futuros docentes trouxe muitos benefícios, entre eles, conhecer e ter contato com realidades desconhecidas ou discriminadas por muitos. Promoveu uma mudança de pensamento, opinião e atitude em relação ao ambiente. Proporcionou também o crescimento pessoal e o desenvolvimento da criticidade para avaliar a função social do docente.

Eu acredito que a experiência no DEGASE tenha me servido para ver a importância do professor na formação dos alunos, ficou bem claro para mim que os meninos do DEGASE não tinham diferenciação nenhuma dos outros de fora da região, uma orientação certa de um professor poderia mudar o destino deles. (LAURA, IFRJ campus Duque de Caxias, jan. 2016).

Eu achei incrível porque você simplesmente percebe que os alunos lá são os mesmos do ensino público [...] E “dar aula” e ver eles gostando do que faziam era simples recompensador. Acho que contribuiu para eu notar que independente de eu concordar ou não em como eles levam a vida dentro de sala são como quaisquer outros alunos e devem ser tratados como tais. (ALICE, IFRJ-campus Duque de Caxias, jan. 2016).

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Outra observação benéfica para os licenciandos foi a oportunidade de trabalhar em grupo, aumentando assim capacidade de argumentação, a capacidade de comunicação oral, escrita e as relações interpessoais. Perrenoud (2001, p.128) diz que “(...) os professores que experimentam o trabalho em equipe sabem que a cooperação é uma luta: contra si mesmo, contra suas próprias ambivalências; contra os outros (...)”.

O espaço e a experiência oferecida a partir do contato com estudantes e a instituição CAI Baixada foi única e pouco visada nos cursos de licenciatura na sociedade atual. Proporcionou muitos questionamentos do porquê e para quê seguir a carreira docente. Este local gerou um misto de sentimentos, de estarmos lidando com adolescentes “normais”, que encontraríamos em qualquer sala de aula pelas quais já passamos e passaremos, e, ao mesmo tempo, com expressões e atitudes sistematizadas e reprimidas por um sistema que nos deixa a dúvida de ser de fato “educativo”.

O sistema socioeducativo atual, mesmo avançando em diversas áreas, visa em muitos momentos à punição ao invés da reeducação.

As causas da violência, como as desigualdades sociais, o racismo, a concentração de renda e a dificuldade ao acesso a políticas públicas, não se resolvem com a adoção de leis penais mais severas e sim através de medidas capazes de romper com a banalização da violência e seu ciclo perverso. (BRASIL, 2013, p.15)

Como já colocado anteriormente, é grande a dificuldade com relação ao ensino de ciências, principalmente quando envolvem questões matemáticas, visto que grande parte dos estudantes possui um censo comum de aversão a matérias relacionadas às ciências exatas. Além disso, deve-se destacar a responsabilidade por parte dos docentes quanto à metodologia utilizada em suas aulas e a permanência de um olhar positivista sobre a mesma.

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A partir da análise foi possível concluir que, dentre outros fatores, o desinteresse é motivado por uma espécie de barreira imaginária criada pelos alunos, que pode ser facilmente resolvida com aulas contextualizadas que pudessem ser chamativas a ponto de aguçar a curiosidade e podermos trabalhar em cima dos questionamentos dos mesmos.

Durante a execução da feira, foi possível observar internos bastante interessados em discutir e compreender o que estava sendo abordado. Alguns eram mais tímidos, embora ainda assim demonstrassem interesse em sua quietude. Um ponto que merece destaque foi que ao final da Feira os jovens pediram para que os licenciandos retornassem com mais experimentos/materiais didáticos, pois eles gostaram bastante da Feira e pleitearam mais espaços promotores de alfabetização científica, além de outras atividades.

Esta experiência foi para os licenciandos e não só para os adolescentes do CAI Baixada, a possibilidade de não reprodução de preconceitos e normas da sociedade onde vivemos, fazendo assim a tentativa de exercer e ter sensibilidade em fazer aquilo que os estudantes com os quais trabalham achem estimulantes. Além da possibilidade de ver no garoto marginalizado alguém que pode e quer aprender como qualquer outro.

Outro ponto importante foi a aceitação da proposta da Feira pelo diretor geral e pelos funcionários do DEGASE, visivelmente empolgados com a atividade, desejando retorno dos licenciandos para a realização de novo projetos e parcerias, ou com em suas próprias palavras, motivados por essa “rebelião universitária”.

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ConclusãoO diálogo construído entre as disciplinas de Química Geral

I e Contemporaneidade, Subjetividade e Práticas Escolares foi um facilitador para a produção dessa Feira, pois foi possível através do conhecimento do conteúdo técnico e da preocupação de formar um docente com uma linguagem facilitadora e com a perspectiva do papel social da escola instigar a curiosidade dos jovens.

A Feira possibilitou aos licenciandos constatar o interesse dos adolescentes pelas atividades através de seus questionamentos, dúvidas e interpretações dos experimentos apresentados, interligando sempre com algo das suas próprias vivências, fazendo uma troca de experiências e conhecimentos.

O apropriamento de novos conhecimentos, a troca de experiências entre os alunos do IFRJ e os internos do DEGASE, e a importância de projetos como este para a formação de todos os envolvidos nesse processo educativo que é distante das realidades apresentadas e discutidas comumente nos cursos de licenciatura.

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Relações de Poder e produção de subjetividade: desafios da contemporaneidade

Thereza Cristina da Silva Nunes1

ResumoAs questões abordadas neste artigo pretende de forma

breve possibilitar a melhor compreensão e a necessidade de aprofundar os estudos nas temáticas Relações de Poder e Produção de Subjetividade que estão presentes no cotidiano de nossas vidas, nas práticas profissionais e que se propagam em toda a sociedade, mas muitas vezes já não produzem a crítica e análise necessária para um fazer diferenciado ou a indagação que possibilita a busca de novos horizontes. Neste contexto, a intenção é desenvolver os temas abordados e relacionados com as Relações de Poder, segundo a bibliografia de Michel Foucault e com breves reflexões sobre subjetividade do livro Micropolítica: Cartografias do Desejo, de Felix Guattari e Suely Rolnik, de 1996. E, como os processos de subjetivação são constituídos e disseminados, considerando as lógicas presentes na sociedade e na realização do fazer profissional, tornando, assim, relevante num processo de reflexão sobre as práticas existentes e na construção de um novo fazer no sistema socioeducativo.

Palavras Chave: Estudo; Poder; Subjetividade, Reflexão; Práticas.

Este estudo nos oferece um campo conceitual que amplia a forma de se pensar a vida e refletir sobre várias questões para pensar as práticas profissionais, humanas, e as produções na realização das pesquisas. Além, alerta para a tendência das

1 Socioeducadora do Departamento Geral de Ações Socioeducativas, Mestranda em Políticas Públicas e Formação Humana da UERJ, Especialista em Gerência de Projetos pela FESP/UFRJ e Assistente Social pela UVA.

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pesquisas de alimentar o que está posto e não o de duvidar, problematizar e refletir o que estas práticas existentes produzem.

É produtivo o registro do estudo e a reflexão sobre subjetividade e seu processo de produção em nossas vidas, através da história, das práticas nas relações sociais da família, estado, escola, comunidade, trabalho, dentre outros, pois viabiliza o poder perceber e entender os efeitos de subjetivação destas práticas nos diversos contextos, através do modo de existir.

Desse modo, os conteúdos apresentados nos desafiam para novas formas de se pensar a vida, na perspectiva de que não há certo ou errado e sim a possibilidade de novos caminhos, através de ferramentas metodológicas efetivas que não contribuam para as formas instituídas e hegemônicas que nos atravessam de forma contínua.

O enfoque do poder por FoucaultO filósofo francês Michael Foucault, aborda a questão do

poder em diversos momentos de suas pesquisas, obras, cursos e entrevistas, sendo sua problematização amplamente discutida, de forma diferenciada da tradicional versão presente na sociedade. O autor rompe com o conhecimento do mesmo e os efeitos de dominação apenas ligados ao Estado e ao funcionamento de seus aparelhos institucionais (exército, policia, justiça), os quais mantêm a ordem social. Ainda, traz para a reflexão que este poder só funciona porque na base, em sua operacionalização, existem as “relações de poder”. Assim:

[...]. O exercício do poder não é um fato bruto, um dado institucional, nem uma estrutura que se mantém ou se quebra: ele se elabora se transforma, se organiza, se dota de procedimentos mais ou menos ajustados (FOUCAULT, 2010, p.247).

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Partindo da concepção que o poder permeia, produz, induz ao prazer, forma saber, produz discurso na sua dinâmica e vai muito além de uma noção negativa que tem, por função, reprimir, percebe-se que seus efeitos circulam de forma contínua, individual e coletiva. Isso significa mais eficazes, menos dispendiosos e descontínuos do que as técnicas utilizadas no espetáculo público e do exemplo, utilizadas pela repressão na sociedade de controle (FOUCAULT, 2005)

Foucault (2005) aponta o “Poder” como problema de todo o mundo. O autor sinaliza que, apesar dos instrumentos conceituais, teóricos do século XIX só percebem o problema do mesmo na relação com os problemas econômicos, pois havia uma promessa de que, com a resolução destes, os efeitos de poder estariam resolvidos. No transcorrer do século XX, é descoberto que todos os problemas econômicos podem ser resolvidos, porém os excessos permanecem. Ou seja, o poder possui uma dimensão mais ampla que identifica o individuo, parte de um corpo social dinâmico e relacional, portanto, em funcionamento de forma especifica e não geral.

Há efeitos de verdade que a sociedade mundial produz a cada instante. Essas produções de verdade não podem ser dissociadas de poder e dos mecanismos destes Tais mecanismos induzem essas produções de verdades e, consequentemente efeitos de poder que permeiam essas relações verdade/poder, saber/poder e tal questão preocupa o autor, que assinala: “Não tenho teoria e tão pouco tenho um instrumento certo” (FOUCAULT, 2003, p.229).

Foucault (2003) mais uma vez, apresenta a questão do poder como um objeto desconhecido e sem um método definido, mas o reconhece nas relações que existem e permeiam toda a sociedade e que mudam conforme a época e, de acordo com cada estratégia, se utiliza de métodos e técnicas diferentes. Ainda, o autor aponta que na sociedade há infinitas relações de poder entre homem e mulher, filhos e pais, professores e alunos, patrões e empregados,

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entre aquele que sabe e aquele que não sabe, dentre outras. Estas relações estão presentes onde existe vida social e coletiva.

Na vida cotidiana no interior da sociedade, “[...] há milhares e milhares de relações de poder e, por conseguinte, relações de forças de pequenos enfrentamentos, microlutas, de algum modo” (FOUCAULT, 2003, p.231). O que demonstra as diversas formas de resistências, e assim reversíveis. Não há relações de poder que sejam completamente triunfantes.

Foucault (2003) aborda a questão do sujeito sem representar uma teoria nem uma metodologia. Tem como objetivo criar uma história dos diferentes modos pelos quais os seres humanos tornaram-se sujeitos. Apresenta, então, os três modos de objetivação que transformam os seres humanos como sujeitos: modo de investigação, através da ciência; modo do sujeito produtivo, através do trabalho; e o modo de estar vivo, através da história natural ou na biologia.

Na questão do sujeito dividido em relação aos outros, Foucault (2010) chama de “práticas divisórias” e, como exemplos, “cita o louco e o são, o doente e o sadio, os criminosos e os “bons meninos” (FOUCAULT, 2010, p.231). O sujeito constitui o tema geral de sua pesquisa. Foi necessário entender as dimensões de uma definição de poder para estudar a objetivação do sujeito.

Há a necessidade de se conhecer as condições históricas da situação presente, bem como o tipo de realidade com a qual se está lidando. Ainda Segundo Focault, para compreender as relações, devemos investigar as formas de resistência e as tentativas de associá-las a estas relações.

Neste caminho, o artigo aborda a questão do poder, seus fundamentos, por quais lógicas vão se instituindo na dinâmica das relações entre os sujeitos na sociedade e como produzem o regime de verdade, bem como serão pontuados os processos de subjetivação.

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Entendendo a questão do poder e subjetividadeA pesquisa de Foucault tem a primeira fase na arqueologia

do saber, a segunda fase se preocupa com a questão do poder e a terceira fase passa para a questão da ética e da história das sociedades. Seus estudos sobre o saber, o poder e o sujeito inovaram o campo reflexivo sobre estas questões.

A questão do poder é amplamente discutida por Foucault, mas não no seu sentido tradicional, inserido na esfera governamental e de forma hierárquica, e sim inserido em todas as esferas da sociedade, nas relações sociais, nos segmentos sociais, enfim na vida cotidiana numa realidade dinâmica.

O poder foi estudado e apresentado de maneira que “(...). Ninguém se preocupava com a forma como ele se exercia concretamente e em detalhe, com sua especificidade, sua técnica e suas táticas” (FOUCAULT, 2005, p. 6), não apenas como repressor, soberano, aparelho do Estado, mas também na forma de produção, criador de verdades, de saberes e disciplina no sujeito. Presente na vida social e coletiva, agindo sobre o outro e na relação com o outro, o poder é exercido.

Esta perspectiva de poder iniciada por Foucault é bastante consistente para pensar e refletir sobre essa questão nos dias de hoje voltado para a sociedade contemporânea. O poder não é uma coisa, não é um objeto fixo, ele é um exercício, um conjunto de dispositivos em constante engrenagem de funcionamento, que circula e funciona em rede. Não tem uma sede fixa.

Para Foucault (2010) o poder se constitui de dispositivos de sujeição, os quais são, ao mesmo tempo, disposições de produção dos indivíduos. Somos fabricados pelo poder, através da família, escola, igreja, instituição, locais de convivência e de produção de subjetivação na sujeição, como o controle, domestificação, fabricação de corpos, e atos, existindo enquanto práticas na realidade da vida.

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O ser humano passou a pertencer à lógica de classificação como, por exemplo, na idade: infância, adolescência, juventude e idoso, e, em diversas formas é esquadrinhado e dividido, criando saberes que possibilitam o embasamento para a divisão de subjetividade. “Daí a necessidade de um poder politico capaz de esquadrinhar...” (FOUCAULT, 2005, p.86), e assim por definirem padrões.

Portanto, entende-se que a produção de subjetividade não é algo natural, mas uma produção que se dá a partir da relação com outro, com o acontecimento, com a descoberta, ou seja, que produz efeitos nos corpos e nas formas de viver. Logo, “(...) a subjetividade é essencialmente fabricada e modelada no registro do social” (GUATTARI & ROLNIK, 1996, p. 31).

Desse modo, o poder deve ser pensado com seus fundamentos econômicos e de classes, e entendido como um conjunto de mecanismos que produzem os indivíduos que vivem na sociedade, sem uma coordenação única. Assim, agimos na ilusão de que somos livres e com opiniões próprias, mas, na verdade, agimos em conformidade naquilo que o poder produz em nós.

O sujeito atravessa toda a obra de Foucault: Sujeito e o Saber, Sujeito e o poder, Sujeito e Sujeito de si próprio, ou seja, consigo mesmo. Com entrelaçamento dos efeitos do saber, do poder e da verdade fazendo parte da construção histórica. Não sendo algo dado, tornando-se sujeito nas relações de poder, atuando como sujeito de conhecimento, sujeito de ações sobre os outros e sujeito de ações sobre si.

Diante do estudo histórico das obras de Foucault sobre maneiras de existir do sujeito, obteve-se uma compreensão de como os modos de subjetivação são constituídos e disseminados, percebendo-se que os modos de subjetivação passam por várias transformações no caminhar da história.

Ao compreender que o processo de subjetivação nos atinge, que estes modos de subjetivação estão vinculados aos sistemas vigentes, e que o conhecimento nos permite uma reflexão sobre as

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práticas antes naturalizadas e depois compreendidas, que são produzidas intencionalmente e são fundamentais para a sujeição, relacionamos esta constatação com o apontado por Guatarri e Rolnik (1996), a seguir:

Tudo o que é produzido pela subjetivação capitalística – tudo o que nos chega pela linguagem, pela família, e pelos equipamentos que nos rodeiam – não é apenas uma questão de ideia, não é apenas uma transmissão de significações por meio de enunciados significantes. Tampouco se reduz a modelos de identidade, ou a identificações com polos maternos, paternos, etc. Trata-se de sistemas de conexão direta entre as grandes máquinas produtivas, as grandes máquinas de controle social e as instâncias psíquicas que definem a maneira de perceber o mundo. (GUATARRI E ROLNIK, 1996, p.27).

Evidencia-se ser necessário conhecer a sociedade na qual se vive fazer um diagnóstico, refletir sobre o momento presente e, assim, decidir quais as posições a serem tomadas, não existindo uma linha de conduta única. Dessa forma, geralmente, estas decisões estão entre a submissão ou as práticas de transgressões.

As práticas de transgressões podem ser pontuais, para além de inovadoras, de brechas, de resistência à denominação daquilo que é imposto pelo sistema e pelo mercado. Na realidade social existem diversas relações de poder e, consequentemente, várias relações de forças de pequenos enfrentamentos, microlutas que, de algum modo, representam resistência.

Neste sentido, Foucault (2005) apresenta uma nova interpretação em relação aos marxistas, no sentido de rebelião, revolução e através deste movimento alcançar a transformação radical de estrutura política, econômica e social. O autor apresenta um caráter historicista, isto é, a história do presente torna possível que algo aconteça através dos modos de comportamentos, mas não os determina. Considera os acontecimentos em seu tempo, história e espaço:

Não se trata de colocar tudo num certo plano, que seria o do acontecimento, mas de considerar que existe todo um escalonamento de tipos de acontecimentos diferentes que não têm o mesmo alcance, a mesma amplitude cronológica, nem a mesma capacidade de produzir efeitos. (FOUCAULT, 2005, p.5)

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Quanto ao papel do intelectual, Foucault (2005) chama de intelectual universal aquele que representa a consciência de todos, dono da verdade e fala por todos. O intelectual específico é aquele que trata de um assunto respaldado no saber cientifico, sendo garantida a última palavra sobre o saber que domina. Considera assim, o especialista com vivencias em lutas reais e cotidianas.

Vale ressaltar que Foucault, em seus trabalhos, começou a realizar meios, através das práticas ricas no nosso cotidiano profissional e que se realimentam neste processo de teoria e prática, para que as pessoas passassem a falar por si, como por exemplo, o preso falar da prisão, o doente do hospital e assim por diante.

Ressalta, ainda, que os próprios intelectuais fazem parte desse sistema, e a ideia de que eles são agentes da consciência e do discurso também faz parte do sistema. Sua posição no sistema de produção capitalista, na ideologia que é produzida ou imposta, e em outro lugar no seu próprio discurso, revelava uma determinada verdade que incomodava. Havia então o intelectual maldito e o socialista:

O papel do intelectual não é mais o de se colocar um pouco na frente ou um pouco de lado para dizer a muda verdade de todos; é antes o de lutar contra as formas de poder exatamente onde ele é, ao mesmo tempo, o objeto e o instrumento: na ordem do saber, da “verdade”, da “consciência”, do discurso”. (FOUCAULT, 2005, p.71).

Foucault, então, desafia formas de atuação nos espaços nos quais, de alguma forma, o poder é exercido pelo intelectual, na busca de um novo caminhar, muitas vezes, na decisão de cada momento, frente à situação de hegemonia do sistema vigente, que por vezes é produzida de forma banal, prática e naturalizada. Propõe o autor que se possa pensar e enfrentar de forma crítica a organização do trabalho, com atuação diferenciada da lógica instituída, através das brechas, para além do que nos é submetido.

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Breves reflexões das práticas socioeducativasNeste artigo, ressalto a questão do poder abordado por

Foucault em suas pesquisas, obras e, com os diferentes modos nos quais as relações de poder se produzem e como seus efeitos atuam na produção de verdade. Pensar na produção da verdade torna-se necessária para que, ainda de forma tímida, seja apresentada e compreendida a produção de subjetividade neste contexto do sistema socioeducativo.

Cabe destacar a importância de se observar com atenção, na prática, como estas relações de poder atuam sem aparecerem de forma clara como “poder” e de forma silenciosa movimentam a dinâmica social nas relações de diversos segmentos, como a política, a família, a igreja, a justiça e a sociedade como um todo.

Segundo Foucault (2005), talvez estas relações de poder estejam entre as coisas mais escondidas no social, por isso seu problema sempre foram os efeitos de poder e produção de verdade.

A história sempre apontou a crítica da sociedade através do caráter econômico e não se aprofundou nas questões das relações de poder, as quais possuem elementos que podem anteceder e constituir a questão econômica que, de forma mais ampla e subjetiva, faz parte deste cenário.

Nesse viés, para Foucault, o poder não existe, o que existe são as relações de poder. Ele acredita no poder como um instrumento de diálogo entre os indivíduos de uma sociedade. O poder é uma realidade dinâmica que proporciona ao ser humano manifestar sua liberdade.

Neste contexto, a ideia que Foucault apresenta é a de fugir da análise e, através do acontecimento, identificar como as condições históricas produzem verdade e criam lógicas que vão se instituindo na sociedade. O capital opera por certa lógica e esta lógica é produzida nas relações existentes no cotidiano.

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Foucault relacionou seus estudos às instituições (quartéis, fábricas, prisões, hospitais psiquiátricos e escolas), através de comportamentos humanos estabelecidos e homogêneos, proporcionando reflexões acerca dos sistemas em seus interiores instituídos.

Várias são as razões pelas quais estas questões remetem à reflexão das práticas no atendimento socioeducativo, destinados aos adolescentes em cumprimento de medidas socioeducativas, após apreensão por cometimento de ato infracional. Nestes casos, é identificado claramente o corpo sendo utilizado como estratégia de controle, por uma lógica e ordem de produção que requer uma padronização sobre estes adolescentes (Foucault, 2000), com o objetivo da ação disciplinadora na manutenção e garantia da ordem na operacionalização das ações cotidianas.

Segundo Foucault (2005 e 2010), as tecnologias de poder funcionam também como produtoras de subjetividade e representam características que podem ser utilizadas como parte da construção histórica de uma visão mecanicista e reducionista da sociedade.

Vale ressaltar que legislações não faltam para garantir a efetividade de direitos da adolescência em sistemas de privação e restrição de liberdade, como a Constituição da República Federativa, o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo – SINASE, dentre outros. As políticas estão em processo de articulação e existem movimentos direcionados, dos operadores e executores deste trabalho, para a construção de novas práticas com o compromisso éticopolitico dos diversos profissionais que atuam nesta ação de fundamental importância na sociedade, ao tratar de adolescentes em processo de formação e desenvolvimento.

Segundo (FOUCAULT, 2003, p.232) “[...], as relações de poder são relações de força, enfrentamentos, portanto, sempre reversíveis”. No entanto, as verdades produzidas na sociedade e representadas nestas unidades de atendimento socioeducativo refletem o quanto as relações de poder produzem verdades arraigadas por décadas e vem dificultando o processo de mudança de cultura nesta política, que exige novas práticas.

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Vale, nesse sentido, uma última citação de Foucault:

Não se trata de libertar a verdade de todo sistema de poder – o que seria quimérico na medida em que a própria verdade é poder – mais de desvincular o poder da verdade das formas de hegemonia (sociais, econômicas, culturais) no interior das quais ela funciona no momento. (FOUCAULT, 2005, p. 14)

Foucault ainda levanta a questão de que esse regime de verdade não é apenas ideológico ou superestrutural, mas foi uma condição de formação e desenvolvimento do capitalismo; e que, facilmente, hoje, entendemos e compreendemos a sua manutenção na sociedade contemporânea.

O grande desafio é o de desvincular o poder da verdade das formas de hegemonia já cristalizadas e produzidas da maneira tão natural com que funciona no momento, e problematizar as práticas existentes nos dias de hoje.

Diante desta temática, vale destacar o Curso de Sexualidade – Abordagem Interdisciplinar, o Curso de Saúde Mental, Subjetividade e Socioeducação oferecidos na Escola de Gestão Socioeducativa Professor Paulo Freire – ESGSE, do Departamento Geral de Ações Socioeducativa – DEGASE/RJ e o:

Curso de Identidades e Juventudes – Ementa: A proposta transita por dois temas fundamentais que atravessam as relações entre estes dois públicos, os profissionais e os adolescentes e jovens, ou seja, juventudes e diferenças. Os dois temas escritos no plural já sinalizam que a proposta parte do pressupôs que estes profissionais lidam com diversas juventudes, com trajetórias bem distintas, porém com similitudes quanto a determinados contextos de vida. Com isso pretende-se debater a experiência de ser jovem a partir da ótica da diferença, considerando as múltiplas identidades que perpassam esta condição, como a questão da territorialidade e das relações étnico-raciais (RELATÓRIO DAS AÇÕES DE FORMAÇÃO INICIAL E CONTINUADA DA ESGSE DE 2015, p.51).

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Os cursos citados demonstram uma maior aproximação das universidades, uma busca de conhecimentos e encontros com possibilidades da formação e ampliação de grupos de trabalho, além da participação das diversas áreas de atuação junto aos adolescentes na promoção de diálogos sobre as diversas temáticas, com a perspectiva de iniciativas diferenciadas das formas de intervenções no interior do sistema socioeducativo.

Enfim, este estudo proporcionou conhecimentos novos, reflexões valiosas, enriquecedoras, e, também, uma constatação de que, ao mesmo tempo, a descoberta de desconexão e o surgimento de dúvidas conseguem promover o movimento de autorreflexão, de se questionar o tempo todo.

Assim, novos saberes produzem a sensação de que tudo em torno está embaçado e embaralhado, provocando reflexões para novas ações. Questões estas que são de grande interesse e importância para nossas vidas e, principalmente, para as vidas daqueles que de alguma maneira poderão contribuir para a construção de práticas diferentes e transformadoras.

Contudo, com a necessidade de estudo permanente e o aprofundamento das temáticas e os elementos que as constituem, para que sempre se renovem e se abram novos caminhos neste processo de aprendizagem e reflexão sobre as práticas cotidianas.

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REFERÊNCIAS

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Transitando entre territórios: Modos de Subjetivação e relações de Gênero no contexto Socioeducativo

Carolina Soares da Rosa1 Juliana Damiana dos Santos Silva2

Karoline Baptista Peres3 Thiago Melicio 4

ResumoO trabalho a seguir pretende analisar a experiência

cotidiana de adolescentes em conflito com a lei no estado do Rio de Janeiro, na unidade feminina do Departamento Geral de Ações Socioeducativas. Através da cartografia psicossocial e de encontros realizados na instituição, propomos abordar temáticas que emergiram do discurso das adolescentes como gênero e iniciação ao tráfico.

Palavras-Chave: Sistema Socioeducativo, Relações de Gênero, Ato Infracional, Território Existencial, DEGASE.

IntroduçãoO presente trabalho tem como objetivo discutir e colocar em

análise questões emergentes ao longo do trabalho de campo que está sendo realizado na unidade feminina do Departamento Geral de Ações Socioeducativas (DEGASE), denominada Professor Antonio Carlos Gomes da Costa (PACGC), no Rio de Janeiro. O intuito é problematizar temáticas levantadas pelas próprias adolescentes em conflito com a lei, tais como gênero, sexualidade,

1 Graduanda em Psicologia, Psicologia/UERJ2 Graduanda em Psicologia, Psicologia/UERJ3 Graduanda em Psicologia, Psicologia/UERJ4 Doutor em Psicologia, Professor Adjunto em Psicologia/UERJ

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tráfico, entre outros, observando suas transversalidades com o sistema socioeducativo.

Nesse sentido, a pesquisa debruça-se em material produzido por encontros semanais, ocorridos desde novembro de 2015, entre um grupo de estudantes de psicologia, componentes de equipe de supervisão de estágio em psicologia da UERJ e um grupo de cerca de 8 (oito) adolescentes internas do DEGASE, com duração de 2 horas. Em função da grande rotatividade e disponibilidade, já que participam de outras atividades da unidade, o grupo de adolescentes é flutuante, variando seus membros. Os encontros, por sua vez, possuem dinâmica constantemente reorganizada, tendo intenção de uma escuta atenciosa, troca e reflexão sobre os mais diversos modos de existência e suas potencialidades.

A metodologia orientadora da pesquisa é a cartografia psicossocial bem como o referencial teórico da produção de subjetividade, pautada, entre outros, nas discussões promovidas por Kastrup, Passos e Escóssia (2009). Assim, segundo os autores, mais do que uma metodologia tradicional, que estabelece procedimentos específicos a serem realizados, a cartografia refere-se a uma postura epistemológica de produção de conhecimento, que não possui caminhos pré-determinados e que, por isso, inicia seu campo sem saber o resultado que irá alcançar, debruçada em um processo em constante movimento, tendo como objetivo a ruptura com o comum e o natural.

Kastrup e Passos (2013) afirmam que a participação dos sujeitos envolvidos na pesquisa cartográfica se dá de forma a fazer valer os protagonismos do campo e a inclusão ativa no processo de produção de conhecimento, gerando uma intervenção na realidade, já que provoca um escape aos modos de organização do conhecimento e às instituições marcadas pela hierarquia do corporativismo dos iguais. Assim, há uma mudança da posição tradicionalmente destinada ao pesquisador, que sai do lugar interpretativo da realidade que está sendo estudada, do ponto de vista da terceira pessoa, e passa a ocupar um lugar de quem se interessa, compartilha e se implica, coletivamente, na produção de dados.

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Durante a pesquisa, pautada na postura cartográfica, procura-se construir uma prática contrária às crenças positivistas e verticais, criticando as verdades absolutas e promovendo questionamentos acerca do que está sendo realizado, sem assumir o papel de técnico, especialista que irá solucionar os problemas imediatos. O intuito é colocar em análise o lugar que a pesquisa ocupa na unidade e, consequentemente, nos encontros com as adolescentes, bem como quais articulações tornam-se possíveis entre os temas levantados e os modos de viver, imbricados em pessoas que vivenciam o sistema socioeducativo.

Entre homens e mulheres: transitando pelas formas de sociabilidadeAo longo dos encontros, as adolescentes traziam diferentes

falas sobre suas experiências, tanto relacionadas ao momento anterior, como diretamente envolvidos com o cotidiano do DEGASE. Uma das questões repetidamente tratada por elas foi o tema do poder masculino, do exercício da masculinidade e dos espaços a ela conferidos. Esse processo aparece tanto nos relatos de violência que sofreram por homens (namorados, familiares, colegas e outros), quanto nos relatos em que as meninas “assumiam o papel do homem”, para poder ter os poderes e privilégios historicamente e culturalmente instituídos como deles. Assim, chama a atenção em suas histórias de vida, comportamentos que seguem preceitos socialmente conferidos, quase que exclusivamente, ao sexo masculino, como ter relações com várias mulheres, mas exigir exclusividade de todas elas.

Almeida (1996) dá destaque à chamada “masculinidade hegemônica”, que para ele é um consenso vivido, que funciona como modelo cultural ideal que, mesmo se não for conquistado por nenhum homem, exerce sobre eles e sobre as mulheres um efeito controlador, uma naturalização e uma necessidade de normatização. Cria-se um campo prático e discursivo em que, para o autor, observa-se a ocupação de espaços privilegiados de

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poder relacionados ao masculino, que controlaria os recursos, ao passo que implica na subordinação dos espaços ocupados pelo feminino, a partir da lógica de controle e naturalização.

Guacira Louro (2008), autora que discute sexualidade e gênero, defende a ideia de que ser homem e ser mulher não é algo dado naturalmente, mas sim proveniente de construção que ocorre de maneira continuada ao longo da vida. Nesse processo constitutivo, faz-se necessário destacar instâncias importantes, tais como, a família, a escola, a igreja, as instituições legais e médicas. É importante considerar que as relações sociais se dão a partir da lógica sexo/gênero, onde a sexualidade biológica é transformada, em seus sentidos e modelos complementares, pela atividade humana, criando hierarquias que promovem a continuação da diferença entre necessidade e capacidade humana de organizar progressivamente os mundos sexuais reais ou imaginários.

A construção dos gêneros e das sexualidades dá-se através de inúmeras aprendizagens e práticas, insinua-se nas mais distintas situações, é empreendida de modo explícito ou dissimulado por um conjunto inesgotável de instâncias sociais e culturais. É um processo minucioso, sutil, sempre inacabado. Família, escola, igreja, instituições legais e médicas mantêm-se, por certo, como instâncias importantes nesse processo constitutivo (LOURO, p. 18, 2008).

Judith Butler (1990), na obra Problemas de Gênero: Feminismo e subversão da identidade, considera que o gênero possui intersecções com modalidades raciais, classistas, étnicas, sexuais e regionais. As figuras homem e mulher vão além da condição de ser macho e fêmea, sendo efeitos de construções sociais e culturais de grande complexidade, modelados por regras e códigos. Desse modo, concebemos a variedade do que é ser mulher em cada contexto, destacando-se um descompasso entre padrões culturais tradicionais e a regras de postulação da igualdade presentes no contexto contemporâneo.

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Assim, quando nos debruçamos sobre o território feminino do sistema socioeducativo e vemos circular junto às adolescentes falas sobre suas imersões em atividades ilegais, observamos, por vezes, discursos que tratam da participação ativa do homem na iniciação delas nos atos infracionais, principalmente no tráfico de drogas. É comum ouvir quando relatam os casos em que foram apreendidas pelo sistema jurídico socioeducativo, situações que apontem para a presença masculina, como o transporte de drogas para namorado, armazenamento de entorpecentes em casa para um amigo, familiar ou parceiro, apreensão pela polícia por simplesmente estarem acompanhando o companheiro, entre outras. Entretanto, cabe ressaltar que, mesmo aparecendo em vários relatos, esta não é o processo totalizante dos casos. Há também os contextos em que as adolescentes são usuárias de drogas e, como dito em um dos encontros, “estava no lugar errado e na hora errada” (M. 06/05/2016), assim como meninas que ingressam no trafico de forma espontânea.

No âmbito da problematização de territórios femininos em contextos ilegais, Zaluar (1993) discute que a presença da mulher envolvida em atividades do tráfico está intimamente ligada às suas relações afetivas, dinâmica também observada no sistema socioeducativo. Barcinski (2009) ainda ressalta o fato de que muitas mulheres ligadas não apenas à esfera do tráfico, mas em atividades relacionadas a crimes no geral, costumam reproduzir estereótipos condicionados ao que é o feminino, o relacionado à necessidade de gerir o cuidado. Muitas delas procuram proteger seus relacionamentos afetivos e pessoais, ingressando ao tráfico em razão da relação amorosa ou até pela necessidade de sustentar os filhos.

Foi por tráfico, na praia. Estava eu e meu namorado quando a polícia chegou. Levaram nós dois. Na hora de assumir a droga falei que era toda minha, que ele só tinha parado para me pedir uma informação. Ele foi liberado e vim parar aqui. (Entrevistada L., PACGC, 11/12/15). Ele me ligou uns dois dias depois e nisso ele me ameaçou, dizendo que eu tinha que fazer um favor pra ele, pois se eu não fizesse ele ia matar minha família. E aí eu parei pra pensar: ‘e agora, o que eu vou fazer?’.

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Eu não tinha outra solução. Eu tive que fazer. Foi aí que ele me ligou no outro dia e falou o lugar e a hora e o dia para me pegar para fazer o favor pra ele(...) Aí que ele me disse dentro do carro que era pra mim vir pra cidade com ele para transportar droga pra ele (...) E foi aí que tudo pra mim acabou. (Entrevistada A., PACGC, 27/11/15)

Nesse sentido, torna-se necessário lançarmos um olhar para o grupo de adolescentes com o qual estamos interagindo. Primeiramente, o trabalho procura se pautar na ideia de Butler (1990) de não universalizar o ser mulher, bem como não universalizar o que é ser adolescente. A forma com que elas se expressam ao se relacionarem com essas figuras masculinas estará inevitavelmente sustentada pelos elementos de gênero, de classe e cor já mencionadas. Incluir os eixos que marcam a realidade das adolescentes é entender como se compõem suas identidades enquanto futuras mulheres e como são construídas suas posições sociais (BARCINSKI, 2009). Em nossa pesquisa podemos constatar que o grupo de internas no DEGASE é em grande parte composto por adolescentes negras, de classe econômica baixa. Esses dados são marcadores para se pensar a dinâmica das experiências que podem vir a desenvolver. Um relacionamento social e afetivo para a uma adolescente negra e periférica toma contornos diferentes se comparado ao relacionamento de adolescente branca, classe média, por exemplo.

O peso da discriminação racial vivenciado pelo negro se agrava nitidamente quando se tratam de corpos femininos negros, que, na base da pirâmide social, vivem sob a égide do patriarcado, tendo que lidar desde a inferiorização da sua estética, passando pela objetificação sexual, até o preterimento amoroso. Analisando o passado histórico de exploração e experiências vividas pelo povo negro absorvido por suas gerações, Hooks (1995) aponta os entraves que não impossibilitam, mas dificultam a forma como o negro vivencia seus relacionamentos, as distorções que essas relações podem ter causado quando se trata de expressar o amor. Os negros, tanto do gênero masculino

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como feminino, compartilham desse processo discriminatório. Ainda que tenham vivido de formas diferentes, criaram defesas e vulnerabilidades comuns entre eles, diferentemente de homens e mulheres brancas (LORDE, 1984). Portanto, enxergar as forças que agenciam o relacionamento de uma adolescente negra no tráfico nos convoca à análise de sua fala e elementos da sua experiência que não podem ser vistos isoladamente.

Retornando o campo do DEGASE, torna-se importante reconhecer que para além das hierarquias do tráfico, existem relações de poder que perpassam papéis de gênero historicamente e socialmente construído que, como mencionamos anteriormente, delineia as relações afetivas entre homem e mulher, ou entre as adolescentes e seus parceiros. Aliado a isso, observa-se que a participação feminina no tráfico existe, mas ainda é uma exceção, enquanto que a regra é uma prática reconhecidamente masculina. Além disso, essa participação é condicionada ao protagonismo do homem e subordinada ao homem, onde dificilmente elas teriam possibilidades de chegar a posições de chefia (BARCINSKI, 2012).

T., participante dos encontros, conta que a maioria começa como “fogueteiro”, posição de primeiro escalão no tráfico. Ser fogueteiro consiste em avisar aos traficantes quando a polícia chega à comunidade, soltando fogos de artifício para dar o alerta. Conforme relato, ela recebia cento e cinquenta reais do tráfico por semana para desempenhar essa função, para a qual ela pensa em retornar. Outra participante, R., relata que é comum “estar na atividade” para cuidado de um homem, mencionando a vez em que ela precisou ficar vigiando a frente da casa de um traficante para ele dormir, pronta para acordá-lo caso a polícia chegasse.

Apesar dessas adolescentes e mulheres ainda não desempenharem personagens principais na esfera do tráfico, frente às outras adolescentes e a sua própria comunidade, elas adquirirem um status de poder e visibilidade (BARCINSKI,

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2012). É notável a diferenciação hierárquica feita pelas próprias adolescentes quando algumas delas cumprem medida por roubo, por exemplo. Geralmente as oriundas do tráfico demonstram um comportamento de superioridade em relação às demais, conforme comentário: “Nós todas estamos por tráfico (se referindo ao grupo que estava no encontro) (...) Não entendo essas garotas, que vem pra cá porque roubou cordão, celular. Fica aqui dentro esse tempo todo por causa de um cordão” (Entrevistada E., PACGC, 19/02/16). É nesse contexto que Barcinski (2012) aponta a atividade do tráfico também como uma possibilidade para essas adolescentes e mulheres resistirem a uma série de invisibilidades sofridas na sociedade em que vivem.

Uma pausa conclusiva em um processo em construção

A experiência com as internas do DEGASE tem proporcionado intensas trocas. Diversas questões permanecem em aberto e estamos, a todo momento, colocando em análise, juntamente com elas, os discursos e as interações que aparecem, assim como o lugar que ocupamos neste território. Apareceu de forma persistente em todos os encontros o tema da sexualidade e todas as suas complexidades, tais como a questão da hierarquia imposta entre os homens e as mulheres no momento em que se fala de tráfico, por exemplo, as diversas formas de relacionamento que se constituem no cenário intramuros e a problemática de gênero enquanto uma construção permanente e contextual.

Adentrar na instituição e participar desse processo juntamente com elas nos abriu uma possibilidade de afetar e ser afetadas por cada historia. Considerando a singularidade da trajetória vivida por cada uma, nos aproximamos de um campo de sensibilização em que é possível acompanhar parte das paisagens psicossociais, contornadas por esses corpos femininos em

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privação de liberdade no sistema socioeducativo. Nesse período, pudemos observar o quanto as práticas no DEGASE agenciam realidades tanto de lógicas específicas ao espaço intramuros, como em alguns dos relacionamentos entre as adolescentes, como de lógicas que fazem eco dos moldes sociais e culturais vividos extramuros. A pesquisa prossegue em andamento, apostando nos desdobramentos que ainda estão por vir. Isso faz parte de utilizar a cartografia como metodologia: sabemos o ponto de partida, mas nunca sabemos aonde iremos chegar.

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REFERÊNCIAS

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BARCINSKI, M. Expressões da homossexualidade feminina no encarceramento: o significado de se “transformar em homem” na prisão. Psico-USF. Bragança Paulista. v. 17, n.3, p. 437-446, set/dez, 2012.

BARCINSKI, M. Centralidade de Gênero no Processo de Construção da Identidade de Mulheres Envolvidas na Rede do Tráfico de Drogas. Revista Ciência & saúde coletiva. Vol.14 No.5. Rio de Janeiro, 2009.

BARCINSKI, M. Mulheres no tráfico de drogas: a criminalidade como estratégia de saída da invisibilidade social feminina. Contextos Clínicos. Vol. 1 No. 5. Porto Alegre: Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, 2012.

BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro. Civilização Brasileira, 1990.

HOOKS, B. Vivendo de Amor. In: Werneck, J. O livro da Saúde das Mulheres: Nossos Passos Vêm de Longe. 2ª Edição. Rio de Janeiro, 1995.

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KASTRUP, V e PASSOS, E. Cartografar é traçar um plano comum. Fractal, Rev.Psicol. v. 25 - nº 2, p. 263-280, Maio/Ago, 2013.

LORDE, A. Age, Race, Class and Sex: Women redefining difference. Extracttaken for Sister Outsider. Berkeley, CA, 1984.

LOURO, G. Gênero e Sexualidade: Pedagogias Contemporâneas. Pro-Posições. v. 19, n.2 (56), p. 17-23, 2008.

PASSOS, E; KASTRUP, V.; ESCÓSSIA, L. Pistas do método da cartografia: pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegra: Sulina, 2009.

SCOTT, J. “Gênero: uma categoria útil de análise histórica”. Educação e Realidade. Porto Alegre, n. 16 (2), p. 5-22, jul/dez, 1990.

ZALUAR, A. Mulher de Bandido: Crônica de uma Cidade Menos Musical. Estudos Feministas. No. 1, p.135-142, 1993.

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Gênero e sexualidade: o que a socioeducação tem a ver com isso?

Jimena de Garay Hernandez1

Gabriela Salomão Alves Pinho2 Luisa Bertrami D’Angelo3

Anna Paula Uziel 4

ResumoGênero e sexualidade atravessam e constituem nosso

cotidiano em seus mais diversos aspectos. A sexualidade coloca-se enquanto importante dispositivo na construção de subjetividades, envolvendo uma série de saberes, poderes e forças que engendram e são engendrados por práticas específicas. Para compreender as íntimas conexões entre mudanças e permanências relacionadas à sexualidade dos/as jovens, sugerimos aprofundar a discussão incorporando a noção de gênero, tão cara às Ciências Sociais nas últimas décadas. Este texto relata e discute as diversas práticas que atravessam o cotidiano da socioeducação, no que tange ao gênero e à sexualidade, tais como visita familiar, relações afetivas e/ou sexuais entre internos/as, vestimenta, fotografias, refeições, vigilância, entre outras.

Palavras-chave: gênero; sexualidade; socioeducação; juventude

1 Doutoranda em Psicologia Social na Universidade do Estado do Rio de Janeiro.2 Doutora em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ). Professora, pesquisadora e extensionista do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro.3 Mestranda em Psicologia Social na Universidade do Estado do Rio de Janeiro4 Professora associada do Instituto de Psicologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e coordenadora do Laboratório Integrado em Diversidade Sexual e de Gênero, Políticas e Direitos (LIDIS/UERJ).

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Tradicionalmente os estudos sobre sexualidade e juventude 5estão focados em dois temas: gravidez e prevenção de DST/AIDS. A sexualidade das/os jovens, neste caso, torna-se praticamente reduzida a riscos, intimamente ligada ao processo de reprodução, restrita à penetração e de cunho organicista.

A associação dominante e às vezes exclusiva entre sexualidade, gravidez e prevenção de doenças sexualmente transmissíveis limita ou escamoteia a pluralidade vivenciada da sexualidade por eles/as na atualidade. A sexualidade coloca-se enquanto importante dispositivo na construção de subjetividades, envolvendo uma série de saberes, poderes e forças que engendram e são engendrados por práticas específicas (Foucault, 1988).

Para compreender as íntimas conexões entre mudanças e permanências relacionadas à sexualidade dos/as jovens, sugerimos aprofundar a discussão incorporando a noção de gênero, tão cara às Ciências Sociais nas últimas décadas, à medida que insere neste contexto a perspectiva da desigualdade, seja ela construída em torno do sexo e do gênero, da classe social, da cor da pele, da orientação sexual ou da identidade de gênero.

Diante dos efeitos que as pressões de setores religiosos têm produzido na limitação das discussões sobre sexualidade, gênero, orientação sexual e direitos sexuais e reprodutivos, sobretudo nas escolas, parece relevante apostar em discussões

5 Mesmo entendendo a importância da instauração do conceito de “adolescente” no sistema socioeducativo, em contraponto aos termos usados para se referir aos sujeitos que são atendidos por este – sobretudo o de “menor” –, gostaríamos de aproveitar este espaço e problematizar o conceito de “adolescente”, por nos parecer intimamente atrelado à perspectiva desenvolvimentista que universaliza e retira a potência dos sujeitos, ao ditar as características consideradas inerentes a essa etapa da vida (COIMBRA, BOCCO e DO NASCIMENTO, 2005). Como estas autoras, parece-nos mais interessante o uso do termo juventude, e inclusive juventudes, que, mesmo não resolvendo o impasse da cristalização de uma “fase da vida”, questão também apontada pelas autoras, parece oferecer um terreno mais aberto ao entendimento da pluralidade, diferença e desigualdade nas experiências dos sujeitos considerados jovens. O foco, então, está no entendimento dos modos de inserção dos sujeitos em suas condições de vida históricas e concretas, as quais, por sua vez, têm múltiplas formas de serem apropriadas.

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nos espaços onde crianças e jovens se encontram, de forma que se continuem os esforços de relações sociais igualitárias e justas. Daí a configuração do sistema socioeducativo como campo fértil para a pesquisa intervenção.

Primeiramente, parece importante definir alguns conceitos que têm orientado nosso percurso. Entendemos a sexualidade como um modo de constituição do sujeito, já que desempenha um papel importante nos modelos de governo de si, pois nela se articulam as regulações de populações e as disciplinas individuais do corpo (CHARTIER, 2002). Ao considerá-la como não natural, pode-se extrair o seu caráter totalizador: se a sexualidade é histórica, ela não existe a priori; ela se constrói, produzindo sujeitos através de práticas discursivas e não discursivas, o que possibilita considerá-la como dispositivo (FOUCAULT, 1999; DELEUZE, 1989) de sujeições e escapes, saberes, práticas divisórias com os/as outros/as e conosco. E é através disso que nos constituímos como sujeitos de saber, como sujeitos que sofrem ou exercem relações de poder, como sujeitos morais.

Para Gayle Rubin (1986), todo sexo é político, no sentido de que a sexualidade tem estado sempre marcada por conflitos de interesse e manobras políticas. Uma sexualidade que, ao longo da história, tem atravessado diferentes momentos de pânico moral, bem como momentos associados ao controle de vícios, atos, práticas e desejos.

Da mesma forma, o gênero, como aponta Joan Scott (1990), se insere na experiência subjetiva da construção de si, mas também se relaciona com o poder político, pois “para reivindicar o poder político, a referência tem que parecer segura e fixa, fora de qualquer construção humana, fazendo parte da ordem natural ou divina” (SCOTT, 1990, p. 17). Desta forma, feminino e masculino são entendidos como estruturas limitadas e opostas que se articulam a partir de corpos sexuados. Esse entendimento tem sustentado as instituições políticas que procuram impor limites sobre a complexidade que implica a vivência humana.

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As práticas reguladoras atuam junto com a produção de performatividades de gênero, entendidas como “ficções sociais prevalentes, coativas, sedimentadas [que geram] um conjunto de estilos corporais que aparecem como uma organização natural [...] dos corpos em sexos, em uma relação binária e complementar” (BENTO, 2003, apud JUNQUEIRA, 2007, p.9). Essas ficções “consolidam e naturalizam regimes de poder convergentes de opressão masculina e heterossexista” (BUTLER, 2003, p.59). Sobre a suposta naturalidade do sexo, Butler é categórica ao afirmar que, tal qual o gênero, o sexo é ele próprio produto de construção social, uma vez que se inscreve em um corpo generificado e discursivamente constituído (BUTLER, 2003).

Este texto pretende discutir gênero e sexualidade na socioeducação, a partir de uma pesquisa sobre sexualidade na contemporaneidade, que vem sendo desenvolvida em algumas unidades do DEGASE. Em 2014, uma equipe interinstitucional, composta por professores/as e alunos/as da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, do Instituto Federal do Rio de Janeiro, da Universidade Federal do Rio de Janeiro e da Fundação Oswaldo Cruz, começou uma pesquisa no Sistema Socioeducativo no estado do Rio de Janeiro (DEGASE). Com o tema Sexualidade, esta equipe tem procurado abordar com os meninos e as meninas suas práticas, prazer, medos, fantasias, construção ou desconstrução de identidades, experimentações, intervenções corporais, estética, relação com a pornografia, iniciação sexual, dentre outras temáticas.

O sistema socioeducativo, assim como outras instituições que recebem jovens, precisa lidar, no cotidiano, com questões referentes ao exercício da sexualidade e à produção do gênero, que interpelam a todos constantemente, ainda que nem sempre sejam reconhecidas ou nomeadas. Nesta pesquisa, buscamos explorar a perspectiva dos diversos sujeitos que circulam nas unidades, em especial as/os jovens, que raramente são consultados/as no desenho de políticas dirigidas a eles/as, e as/os funcionárias/os dos diferentes segmentos – agentes

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socioeducativos/as, corpo docente das escolas, equipes técnicas, direções, pessoal administrativo, gestão – sendo possível pensar e conversar sobre os pontos de vista e vivências desses sujeitos. No cotidiano e em espaços que nomeamos como cursos, a ideia é construir, junto com estes/as profissionais, novas possibilidades de abordar e discutir esta temática no cotidiano, levando em conta as experiências dos/as funcionários/as do sistema como sujeitos inseridos no dia a dia da instituição.

Ainda que não se pretenda resolver os impasses institucionais decorrentes da dificuldade de se inserir de forma mais presente a discussão sobre sexualidade e gênero, imagina-se que a inserção de agentes externos como os/as pesquisadores/as-extensionistas possa produzir novos deslocamentos e facilitar o diálogo sobre essas questões, que têm sido mais um fator de tensão nesses universos marcados pela violência e práticas de confinamento e exclusão.

Ao longo de 2015 e 2016, nossa equipe de pesquisa tem transitado por três unidades de internação do sistema socioeducativo: o Centro de Atendimento Intensivo Belford Roxo (CAI Baixada), o Educandário Santo Expedito (ESE) e o Centro de Socioeducação Professor Antonio Carlos Gomes da Costa (PACGC, unidade feminina). Neste trânsito, foram realizadas entrevistas individuais e em grupo com as/os jovens e com as e/os funcionárias/os, como as/os agentes socioeducativas/os, a equipe técnica, as/os diretoras/es e coordenadoras/es, bem como com professoras/es e equipes gestoras das escolas municipais que funcionam dentro das unidades. Com os/as jovens, também foram realizadas diversas atividades em grupo usando disparadores como fotografias e materiais para desenhar, assim como entrevistas em grupo e individuais.

No PACGC e no ESE, foram priorizadas as entrevistas individuais e em grupo com as jovens, nos quais foram abordadas questões relativas à iniciação sexual, vivência da sexualidade e experiências afetivo-sexuais na unidade.

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Na Unidade CAI Baixada, depois dos encontros com os jovens, foi realizado um curso de extensão – certificado pela UERJ em parceria com a Escola de Gestão Socioeducativa Paulo Freire (ESGSE) – com funcionárias/os dos diversos segmentos, intitulado “Gênero e Sexualidade nos Cotidianos da Socioeducação”, cuja proposta foi problematizar e fomentar a reflexão dos atravessamentos das questões ligadas a gênero e sexualidade na prática cotidiana da instituição. Vale ressaltar que a possibilidade de abrir brechas num cotidiano marcado pela urgência e pelo acúmulo de demandas trouxe como resultado a circulação de ideias e a promoção do diálogo entre colegas de trabalho que pouco se comunicavam. Perceber que a intervenção da pesquisa produziu a desconstrução de discursos tão cristalizados sobre o fazer cotidiano, a partir dos relatos de experiências compartilhados por membros da equipe técnica, agentes socioeducativos, estagiárias, coordenadores de plantão, cozinheira entre outras/os funcionários/as, se caracterizou como o grande ganho desses encontros.

Paralelamente, o grupo de pesquisa também foi convidado a realizar dois cursos junto à ESGSE. O curso, realizado nos meses de junho e julho de 2015, teve como proposta fornecer aportes teóricometodológicos para os profissionais do Sistema, nas temáticas da sexualidade que pudessem ser relevantes para o exercício profissional no sistema socioeducativo, principalmente no trabalho com os jovens. Para 2016, o curso “Gênero, violência e socioeducação”, partindo das experiências das pessoas que transitam pelo sistema socioeducativo, se propõe a promover debates que transformem o cotidiano, em especial no que tange a questões de gênero e violência.

Neste percurso e nos seus múltiplos caminhos, algumas questões permanecem pulsantes: Por que falar sobre gênero e sexualidade no contexto socioeducativo? De que modo estas questões aparecem no dia a dia da instituição? Como os/as jovens em cumprimento de medida socioeducativa de internação são atravessados/as por estes dispositivos? Estas foram algumas questões que nos impulsionaram a pensar e escrever sobre esta temática.

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A partir das diversas experiências aqui mencionadas, ousamos afirmar que a socioeducação é atravessada pelo gênero e sexualidade e seus atores enfrentam desafios no dia a dia da instituição, que exige respostas neste campo. Nossas experiências de pesquisa apontam gênero e sexualidade como potentes categorias de análise para a compreensão da dinâmica e da organização do sistema educativo. Além disso, o sistema socioeducativo é parte de um sistema de garantia de direitos, e os jovens, por sua parte, como sujeitos de direitos, gênero e sexualidade, se colocam como pontos estratégicos para a discussão e efetivação da garantia de direitos.

A passagem pelo sistema socioeducativo interpela de certa forma a produção das performatividades de gênero das/os jovens, pois a privação da liberdade implica intensas afetações dessas performatividades de várias formas. É importante destacar que o ingresso no sistema socioeducativo, entendido como uma instituição com suas regras, códigos, hierarquias e significados, compõe uma série de experiências de intersecção com outras instituições das quais esses sujeitos fazem ou fizeram parte, tais como escolas, famílias, abrigos, e inclusive o tráfico de drogas, cujas facções também podem ser consideradas instituições produtoras de subjetividades. Neste sentido, cabe uma profunda análise de como essas instituições se relacionam, por exemplo, no caso específico das vivências em gênero e sexualidade dos jovens.

Talvez um dos pontos em que estas questões mais se evidenciam é a forma com que a sexualidade e o gênero mobilizam profundamente as unidades de internação do DEGASE quando da visita familiar, sobretudo no caso das unidades masculinas. Um intenso labor logístico acontece nos dias de visita, exigindo uma série de regras de conduta de cada coletivo de sujeitos. Por questões de segurança, as/os familiares são revistadas/os em busca de celulares, drogas, dinheiro e outros artefatos proibidos na unidade, o que provoca momentos constrangedores para todo mundo e conflitos entre os/as familiares e as/os agentes. Vários jovens relatam que não gostam que as famílias – especialmente as

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mulheres – os visitem, pois percebem a revista como humilhante. Também escutamos relatos de momentos em que, por exemplo, uma agente teve que pedir para uma mãe tirar um piercing do clitóris, momento muito conflitante para ambas. Espera-se que este tipo de problema seja resolvido com a entrada dos scanners nas unidades, pondo fim ou, minimamente, diminuindo consideravelmente a frequência da revista íntima.

Na unidade feminina, as jovens em diversos momentos relataram seu incômodo e temor de que seus/suas companheiros/as de fora não se configurem como aptos para a visita familiar, o que pode ser resolvido com um requerimento específico à justiça para este quesito – fato que muitas delas disseram desconhecer. Cabe ressaltar que as diferentes preocupações logísticas e de segurança das unidades masculinas e feminina no que tange ao dia de visita, conforme exposto, diferem entre si não só pela quantidade reduzida de meninas em comparação aos meninos, mas também e principalmente devido a uma série de construções acerca das masculinidades e feminilidades, conforme discorreremos a seguir.

Em relação à vestimenta, várias exigências são feitas, com especiais restrições para as mulheres: decotes, roupa curta, apertada ou transparente, dentre outras características que revelem algumas partes do corpo que são entendidas como provocadoras de fantasias sexuais são proibidas. O motivo outorgado pelo sistema é a segurança, a gestão dos riscos, gerados por situações em que olhares que sugiram certa sexualização dessas mulheres – mães, irmãs, tias, esposas, namoradas – por parte de outros jovens ou dos agentes provoquem conflitos entre quem lança o olhar e os jovens familiares das mulheres que são o alvo. Sobretudo porque, em nossa sociedade, é responsabilidade dos homens manter a honra das mulheres da sua família. Os agentes masculinos relatam ter uma série de restrições nesses momentos, também provindas dessa gestão de risco, tais como não usar óculos escuros, não levantar suas camisas e inclusive não coçar a barriga. Ou seja, nada que sugira um movimento

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entendido por sexual. Os jovens, por sua vez, dependendo da unidade, colocam duas camisas ou a colocam por cima da bermuda, ao contrário do resto dos dias.

Neste mesmo sentido, foi-nos relatado inúmeras vezes que os jovens têm normas muito sólidas no que tange à masturbação – o que não impede que sejam dribladas –, normas estas que são impostas pelo tráfico e implementadas por eles, se estendendo ao alojamento: eles não podem quebrar – se masturbar – nem no dia nem um dia depois da visita familiar, já que, na lógica proposta, poderiam estar pensando em alguma das mulheres das famílias dos outros. Tampouco podem olhar as fotos das companheiras que os outros recebem, o que se torna complicado na situação atual de superlotação do sistema. A justificativa é sempre a ameaça por conta do código do tráfico, que aposta em determinada construção da masculinidade desses jovens. No entanto, chama atenção a dificuldade do sistema em enfrentar esses tipos de regras, que continuam perpetuando práticas e discursos de reificação de desigualdade e violência. Observamos e admiramos várias conquistas que o sistema tem conseguido em esforços pela desconstrução de práticas prejudiciais à saúde e bem-estar psicossocial dos/as jovens, tais como a erradicação do tabagismo, a partilha de espaços comuns entre jovens de diferentes facções e a contínua tarefa de desmontar a ideia do “bandido”, instaurada nos desejos e projetos de vida dos/as jovens. No entanto, cabe pensar sobre o que torna tão naturalizadas determinadas práticas, como as que regulam as vestimentas das visitantes.

Outra prática de controle acontece com as cartas e fotografias recebidas, que devem ser avaliadas pela equipe técnica, a qual faz um filtro do que pode ou não ser entregue aos jovens, prática condenada inclusive pelo Conselho Regional de Psicologia, considerando que a mesma fere o Código de Ética da profissão. Cartas com conteúdo erótico ou fotos das namoradas que “deixem ver muita pele” não são entregues, com a justificativa de risco de violência entre eles, o que pode provocar mortes, como relatam já ter ocorrido.

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Outra forma em que se reafirmam essas normas de gênero e sexualidade são as limitações colocadas para as técnicas e as agentes femininas. Tratadas de “dona” pelos jovens e, como algumas delas percebem, constantemente postas no lugar de “mães”, uma série de exigências e vigilâncias parecem negar qualquer tipo de expressão da sexualidade dessas sujeitas, e muito menos qualquer tipo de insinuação de que possa existir uma relação, mesmo que no imaginário, entre elas e os jovens – além de pontuar este lugar complexo habitado por elas, em que são, ao mesmo tempo, vigias e cuidadoras dos jovens. Destarte, a circulação delas nas unidades masculinas é bastante restrita em horários e espaços; as restrições da vestimenta impostas às familiares se estendem às técnicas e a outras mulheres que circulam nas unidades, incluindo nós, pesquisadoras, que em várias ocasiões fomos interpeladas. Uma das justificativas dada é que podemos, nós ou as funcionárias, provocar o interesse sexual dos jovens, propagando um medo de que os jovens enxerguem essas mulheres como possíveis parceiras sexuais; certo pânico moral relativo a um potencial envolvimento sexual com os jovens, o que justifica que o uso de palavrões ou qualquer aproximação física sejam constantemente vigiados. Inclusive, os jovens também têm regras que impedem esse tipo de contato, como não trocar de roupas na frente das funcionárias, salvo algumas exceções.

No PACGC, onde seria razoável esperar certo protagonismo por parte das agentes femininas, visto que somente elas podem ter contato físico com as jovens, bem como só elas podem retirá-las dos alojamentos, o que observamos é que elas não só se encontram em número reduzido, sendo maior o número de agentes masculinos, como também se estabelece, entre o corpo de agentes, uma relação em que o agente masculino tem, como uma de suas funções, tomar conta e cuidar das agentes femininas – o que coloca em pauta as questões de gênero. As internas tendem a enxergar as agentes femininas como “muito mais boazinhas” do que os agentes masculinos – de novo colocando em evidência as

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produções acerca das masculinidades e feminilidades e o reforço de masculinidades/feminilidades hegemônicas. Na relação dos homens adultos com as meninas, percebe-se um tom jocoso nas falas, bastante naturalizado em nossa sociedade.

O ingresso de jovens transexuais e homossexuais também evidencia a presença das questões de gênero e sexualidade. Ainda que pouco numeroso, este ingresso parece desestabilizar a operacionalidade das unidades – lembrando que, na produção e afirmação do modelo de masculinidade, a transgressão da norma heterossexual e da identidade de gênero masculina ameaça profundamente esse modelo. A maior parte dos jovens e, cabe destacar, também alguns funcionários das unidades, partilha de noções extremamente homofóbicas e transfóbicas, de cujas expressões temos sido testemunhas ao longo da pesquisa, às vezes com violentas reações ao tema e com o relato de práticas de extrema violência a pessoas LGBT. O enfrentamento da questão parece ser alocar essas pessoas no “seguro”.

No caso das mulheres transexuais, inclusive, algum avanço tem sido feito no encaminhamento destas à unidade feminina e no reconhecimento dos seus nomes sociais e suas performatividades femininas – incluindo cabelo e vestimenta –, não sem provocar desconforto e conflitos logísticos. No entanto, para quem fica nas unidades masculinas e no caso dos jovens gays, o encontro com os outros jovens está marcado por uma série de preconceitos, que vão para além da separação de alojamento: recusa a usar os mesmos talheres e copos, alegando que “a boca deles já tocou o pênis de um homem, e de um homem gay6 “.

No entanto, mesmo negado veementemente pelos jovens, já escutamos dos agentes responsáveis pelos alojamentos relatos de aproximações eróticas entre aqueles, tais como abraços “muito” carinhosos, dois jovens “demorando muito no banheiro”, alguns dormindo de conchinha, outros colocando lençóis nos beliches, um ganhando várias sobremesas e dizendo

6 Frase de um dos meninos participantes da pesquisa.

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que “está ‘fortalecendo’ os outros”, e inclusive a fabricação de um preservativo com o plástico dos talheres. Igualmente, parece interessante que um dos maiores problemas de saúde na unidade seja a epidemia de DSTs, o que pode sugerir que existem práticas sexuais entre eles ali dentro. Porém, quando se fala em distribuição de camisinha no estabelecimento, a maioria das pessoas considera isso desnecessário. É importante destacar que a existência dessas práticas sexuais entre os jovens não significa que sejam homossexuais, ou entendidos como tal, pois argumentos como a naturalização da pulsão sexual dos homens, a carência dos jovens e o estado de confinamento circulam entre os/as funcionários/as.

Na unidade feminina, parece haver uma abertura maior por parte das meninas em falar abertamente sobre os casos e relacionamentos que mantêm entre si. Muitas delas afirmam não ter tido, antes da internação, experiências com meninas. Quando perguntadas a respeito das razões que as levam a manter relações com outras jovens, aquelas que têm esta experiência pela primeira vez afirmam ser por “carência”. Para a equipe técnica, agentes e direção da unidade, é sabido que elas mantêm relações entre si, o que não é nem aceito abertamente, nem definitivamente proibido.

Nas unidades masculinas, quem divide alojamento com os jovens gays e as jovens transexuais são aqueles que entraram no sistema por terem cometido um ato infracional relacionado à sexualidade, o que os faz correr risco se ficarem em alojamento coletivo. Será que de alguma forma se equipara um estuprador a um homossexual? De que forma um estupro é considerado tão aberrante em um contexto onde a cultura da violência contra as mulheres e a culpabilização da violência sexual são tão presentes?

As masculinidades são entendidas como “configurações de práticas que são realizadas na ação social e, dessa forma, podem se diferenciar de acordo com as relações de gênero em um cenário social particular” (CONNELL e MESSERSCHMIDT, 2013, p. 250). Neste sentido, podemos explorar como as instituições de privação

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de liberdade contribuem para a construção da masculinidade. O acesso permitido pelo crime a certos bens, a certas relações com certas mulheres, a certo tratamento por parte de uma sociedade que insiste em marginalizar sujeitos com as características que eles apresentam ao mesmo tempo em que bombardeia com propagandas de consumo e nega os direitos básicos, leva necessariamente à busca de pertencimento a um modelo de masculinidade (Barker, 2008), que inclui envolvimento em práticas de risco, falta de cuidado com a própria saúde, exercício de violência contra as mulheres, entre outras práticas. Classe social e raça são marcadores importantíssimos a considerar nas análises das trajetórias desses jovens, mas também o gênero.

No caso das jovens, também está implicada uma noção de feminilidade, e tal noção, quando pensada na perspectiva de uma vida no crime, atravessa de maneira importante seus processos de subjetivação e as práticas da/na unidade de internação. Se, no caso dos jovens, esta masculinidade está sob constante olhar e controle do tráfico na construção de um sujeito-bandido e de uma masculinidade hegemônica, no caso das jovens tem-se, por parte da população em geral, certo estranhamento a partir das conjugações menina/crime, menina/violência.

Pensando nas suas inserções no mundo do crime, ainda que muitas delas nos tenham relatado ocupar posições de menos prestígio na hierarquia do tráfico, algumas disseram ocupar cargos importantes nas “bocas”, e principalmente estas relataram uma série de “cuidados” que o tráfico tem com elas, que são mulheres e, portanto, necessitariam de proteção. Fica claro que, mesmo no caso daquelas que ocupam espaços importantes no tráfico, as tensões relacionadas ao gênero e à construção “da” feminilidade e “da” masculinidade se colocam de maneira proeminente, apontando para a complexidade destes lugares sociais e da própria dinâmica das relações. Quanto às experiências da internação, se, para os meninos, a mesma tem caráter de uma fase a ser passada até a “prisão de verdade”, quando alcançarem a maioridade, parte da trajetória deste sujeito-bandido, tal

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expectativa não parece se dar para as meninas, ainda que muitas delas relatem irmãs, tias e mães presas.

A convivência com as/os agentes socioeducativos/as se apresenta como um tipo de relação diferente na vida desses/as jovens. As diferentes atribuições e performatividades de homens e mulheres que ocupam esse cargo constituem um campo tenso de relações de poder, autoridade e também afetos com as/os jovens. Por exemplo, os jovens pertencentes a algumas facções não têm permissão nem para falar com os agentes, o que revela outro requisito desse modelo de masculinidade: ser leal à corporação. Igualmente, os jovens estabelecem regras para os agentes nos dias das visitas, como já foi mencionado. Assim, neste contexto de homossociabilidade, de privação de liberdade, de patrulhamento dos corpos, se cria um território de masculinidades em disputa, onde a dominação e a subordinação também são performáticas, com múltiplos atravessamentos.

Miguel Vale de Almeida (1996) aponta que, no território de disputa masculina, acontece uma,

avaliação do comportamento [...] feita em função de um modelo, e a disputa dos atributos e da pertença ou não ao modelo provam que este é uma construção ideal. Só que, como as avaliações se fazem a partir de actos vistos e narrados, o comportamento dos homens tende a “mimetizar” as prescrições do modelo (VALE DE ALMEIDA, 1996, p.171).

Certamente, em muitas das performatividades que eles apresentam para nós, observamos essa mimetização, mas também observamos uma diversidade de brechas nesses lugares tão cristalizados. Por exemplo, em uma ocasião, um jovem relatou uma troca de cartas muito sensível com uma jovem interna na unidade feminina e pediu para uma de nós desenhar um coração. Igualmente, podemos pensar não apenas em uma disputa de masculinidades, mas em um campo tenso de regulações, transgressões e contestações que atuam ao mesmo tempo, sem se suprimir.

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Outra coisa que se vê modificada na passagem pelo sistema é o controle dos jovens sobre os corpos e as vidas das companheiras. Primeiro, porque a estabilidade econômica e o status que eles podiam fornecer nem sempre têm uma continuidade, dependendo do cargo dele na facção, e, segundo, porque, mesmo eles não querendo que a parceira esteja com outros homens e, em alguns casos, que não saia nem para os bailes, o controle deles fica bem mais restrito, mantido em uma mínima medida através de notícias que as mães ou os colegas possam trazer e das cartas que eles mandam e recebem. De todo jeito, mesmo com o controle falho, fica uma ameaça no ar, pois haverá represália caso ela tenha descumprido o combinado, mesmo que ele só venha a saber depois. As jovens que mantêm relações com outras meninas por fora do Sistema também relatam seguir algumas regras do tráfico no que tange à fidelidade da companheira. Conforme nos disseram, elas recebem informações sobre suas companheiras nos dias de visita, e duas delas descobriram, desta forma, que as companheiras as estavam traindo. Ambas disseram que, quando saírem, irão raspar o cabelo das companheiras – regra que marca o adultério – para restaurar seu respeito. Esta apropriação é particularmente interessante, visto que o “respeito” e a “honra” são questões normalmente ligadas às construções de masculinidades.

Os jovens, por sua vez, repetem constantemente a importância do “respeito”, termo usado por eles, com essas mulheres. Nesse sentido, tem sido muito interessante a nossa pesquisa, pois, desde o momento em que começamos a conhecer o campo, houve uma grande insistência por parte da direção e da equipe de que os jovens não iam falar conosco (pesquisadoras mulheres) sobre essas questões. Relatando casos de palestras sobre DSTs e outras anedotas, a instituição tinha certeza de que o tema não poderia ser abordado por mulheres com os jovens. No entanto, não é o que a pesquisa tem mostrado: os jovens estão falando conosco sobre fantasias e práticas sexuais de forma bastante fluida. Temos percebido, sim, uma censura deles mesmos no uso de palavrões e nomes da genitália.

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Quando perguntamos sobre isso, eles falaram que era por “respeito”, mas eles mesmos ponderaram que éramos nós que tínhamos levado esse tema para eles, o que abre um precedente para que a conversa aconteça. No final das contas, não somos pessoas com as quais eles convivem diariamente e nem ocupamos um lugar de poder sobre o destino deles, o que talvez ajude a criar um momento diferente de troca.

Voltando ao tema da honra, mencionado antes, podemos analisá-lo através de quatro eixos: o modelo de masculinidade, os códigos do que pode e não pode, as práticas e relações para sustentá-la e a violência como estratégia de resgate. Os jovens estabelecem códigos, como não se masturbar, com a expectativa de reificar o modelo de “guardião da sexualidade da familiar”. Já que a honra, como dispositivo, denota um posicionamento social, um status, quem transgride, contesta ou não consegue garantir sua manutenção é considerado traidor da corporação masculina e inferior socialmente. E, nesse sentido, os grandes fantasmas da masculinidade são o “viado” e o “corno”.

Foi relatado para nós um caso em que um jovem deu um chute na cabeça da namorada grávida durante a visita familiar. A instituição conteve o conflito, mas não parece ter havido maior repercussão. O que acontece no campo do gênero e da sexualidade que é considerado tão alheio ao resto das experiências de vida?

Um último ponto que gostaríamos de abordar é a implementação da visita íntima no sistema socioeducativo, denominada atualmente visita afetiva. Esta polêmica remonta às discussões na época da popularização da pílula anticoncepcional, com forte cunho moral - uma sociedade apavorada com a ideia de filhos/as gerados sem pai; pílula vista como um complô para conter o aumento populacional de grupos marginalizados. Sem falar no requisito para se ter acesso à pílula: as primeiras cartelas foram liberadas para mulheres que apresentassem receita médica e certidão de casamento, assim como regulado para a liberação da visita íntima, atrelando a relação sexual ao casamento ou

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a alguma relação estável, ou seja, à família, controlando as relações e apartando o viés do prazer, da saúde e do direito. Essa perspectiva, importante destacar, é norteada pelo SINASE.

O argumento da época da pílula anticoncepcional de que tinha a “preocupação em tornar em ato moral e lícito uma ação intrinsecamente imoral” parece bastante atual em relação à visita íntima. Estas moralidades, ainda que reeditadas no contexto socioeducativo, circulam quando o tema da visita íntima aparece. Nos corredores, circula fortemente a ideia de que o exercício da sexualidade não seria um direito, mas um privilégio. Assim, a concepção de que se poderia utilizar a visita íntima/afetiva como moeda de troca, em negociações entre equipe e jovens, vem à tona, sendo este um dos poucos vieses pelos quais o assunto pode ser debatido. Ademais, esta discussão provoca que se trate de outros assuntos sensíveis, relacionados à autonomia, monogamia, consentimento e homossexualidade, que apresentam diversos desafios éticos.

Discursos variados têm sido proferidos nos nossos encontros sobre este tema. Alguns jovens, por exemplo, aguardam ansiosos esse momento, pois expressam que o que mais sentem falta ali dentro é das mulheres. Outros consideram que não seria tão interessante, pois um dos requisitos será demonstrar uma relação estável com uma parceira e apenas uma poderia visitá-los. Os requisitos para a visita íntima/afetiva incluem: que tanto o/a jovem interno/a quanto a/o companheira/o tenham no mínimo 16 anos, que tenham autorização dos responsáveis legais – ou da equipe técnica –, que ele/a, o/a companheiro/a e a família passem pelo Programa de Saúde e Sexualidade, e que se tenha apenas um/a parceiro/a cadastrado/a por passagem. Poucos jovens poderão ser beneficiados por esta política, apesar do grande rebuliço que a discussão vem causando entre os atores da socioeducação.

No caso das/os funcionárias/os, boa parte delas/es se opõe à implantação da visita. Os/as agentes parecem ser os/as mais reticentes – ou os/as que o declaram mais abertamente,

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mas escutamos críticas em todos os segmentos. Para uma parte deles/as, o maior problema seria a estrutura das unidades, que já não contam com algumas exigências básicas de higiene e saúde, entendendo a sexualidade como um direito secundário. Igualmente, algumas técnicas consideram que é necessário muito mais maturidade dos/as jovens e da instituição para dar conta desse novo processo. Por exemplo, questionam a recusa dos jovens a usarem a camisinha, o que traria novos desafios para a instituição no caso de alguma gravidez. Circulam discursos de que não seria correto que o Estado permitisse que os/as jovens tivessem relações enquanto sob sua tutela, ignorando o SINASE. Igualmente, critica-se o fato de que essa exigência venha de pessoas que não vivem o cotidiano e os desafios das unidades. Para alguns deles, a possibilidade do exercício da sexualidade com uma mulher seria praticamente um presente – termo usado por um deles –, um privilégio, que os jovens não merecem diante do que fizeram para estarem ali. Alguns inclusive acham quase uma ofensa que uma das suas funções fosse cuidar do espaço onde os jovens teriam a visita. Outros acham que se correria o risco de os jovens acharem que eles observam as companheiras com desejo, tal como acontece na visita familiar. Outro discurso que escutamos considera inaceitável que jovens tão novos e, sobretudo as namoradas, ainda mais novas, exerçam sua sexualidade.

Desta forma, observamos que o tema da visita íntima/afetiva carrega consigo o pânico moral da iniciação sexual e da sexualidade na juventude, o que merece toda uma discussão sobre autonomia, sobre direitos sexuais e reprodutivos das/os jovens e sobre a educação para a igualdade. Ou seja, a visita pode ser um disparador para explicitar que sexualidade e gênero não são só temas importantes no cotidiano da instituição, mas são também eixos fundamentais na socioeducação, na proposta de transformação dos/as jovens, na diminuição/erradicação do machismo, da homo/lesbo/transfobia e da violência.

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Assim, com este texto e com outros desdobramentos da nossa pesquisa, comprometemo-nos com um grande desafio que tem se apresentado para nós: como visibilizar que, dentro de uma proposta de socioeducação, entendida não apenas como um exercício pedagógico de moldar a vontade política do outro, mas de promover uma plataforma de ações e de ressignificações da produção de lugares sociais, as questões de gênero e sexualidade devem ser postas em análise e em transformação?

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A visita íntima do adolescente no sistema socioeducativo: um dispositivo da sexualidade

Juraci Brito da Silva 1

Sílvia Maria Melo Gonçalves2

ResumoEste artigo é resultado de pesquisa realizada com

adolescentes do sexo masculino internados no Educandário Santo Expedito – DEGASE RJ. O objetivo é saber como os participantes percebem a possibilidade da visita íntima, em decorrência da lei 12.594 de 2012. Um dos princípios que a sustenta é a convivência familiar e a continuidade do vínculo entre o casal. Trabalhamos com a ideia de visita íntima enquanto dispositivo, pois entendemos que ela possa colocar em evidência questões relacionadas à sexualidade do adolescente que, historicamente, foram instituídas a partir de certa subjetividade, a do “menor” infrator, do delinquente, entre outras. Apesar do Estatuto da Criança e do Adolescente trazer o princípio da Proteção Integral, ainda prevalecem discursos e práticas sustentados na Situação Irregular do Código de Menores. Utilizamos como método a pesquisa-intervenção na perspectiva da análise institucional. O registro no Diário de Campo nos auxiliou na discussão sobre os efeitos da institucionalização nas subjetividades dos adolescentes privados de liberdade. Na mesma lógica, os trabalhadores são marcados e acabam respondendo ao modus operandi do encarceramento a que se submetem os adolescentes.

1 Psicólogo, Mestre em psicologia pela UFRRJ – Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (conclusão março de 2016); especialista em psicologia jurídica – AVM – 2011; psicólogo do quadro efetivo do DEGASE e da Secretaria de Saúde de Mangaratiba. Email: [email protected] Doutora em psicologia pela UFRJ (2006), Professora da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, do Programa de Pós-Graduação em Educação Agrícola (PPGEA/UFRRJ), colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia (PPGPSI/UFRRJ). Email: [email protected]

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Palavras–chave: Visita íntima, adolescente, sexualidade.

O presente artigo é parte de pesquisa realizada no Educandário Santo Expedito- ESE, unidade de internação do DEGASE – RJ, para adolescentes do sexo masculino, com idade entre 16 e 21 anos. A pesquisa de campo ocorreu entre abril de 2014 e dezembro de 2015. No período, foram selecionados 08 participantes que demonstraram perfis para a visita íntima, segundo os critérios da Lei nº 12.594/2012 (SINASE).

O estudo teve como principal objetivo conhecer a percepção dos adolescentes sobre a possiblidade da visita íntima. Portanto, foram realizados dois encontros em grupo e uma entrevista individual, com apoio de roteiro semiestruturado, nos quais se apresentavam, de forma implícita ou explícita, temáticas como: sexo, intimidade, união estável, relação com a instituição, relação homoafetiva, relação de gênero. As entrevistas foram gravadas e transcritas sempre com o consentimento do adolescente. Com vistas a fazer a análise das relações institucionais, utilizamos o Diário de Campo.

Entendemos que a obrigação legal da visita íntima colocou em movimento questões relacionadas à sexualidade. Nesse sentido, nossa questão inicial é de que a visita íntima funcione como dispositivo, ou seja, aquele que coloca em marcha ou em evidência temas relacionados à sexualidade do adolescente internado no sistema socioeducativo.

Ao apontarmos a visita íntima como dispositivo de análise dentro da pesquisa, acreditamos que a instituição produz uma subjetividade muito particular tanto para os adolescentes quanto para os trabalhadores. A análise institucional, do ponto de vista de René Lourau (1993) e de Foucault (2009), nos convoca a sair do lugar do especialista, e fazer a análise de nossas implicações no processo de pesquisa.

No levantamento bibliográfico e na revisão da literatura, foram identificados apenas dois artigos sobre a

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visita íntima de adolescente no cenário brasileiro. Por isso, optamos em utilizar outros estudos sobre visita íntima no sistema penitenciário brasileiro. A escolha de não investigar visita íntima feminina deu-se pela necessidade de um recorte metodológico e, também, por se considerar que a sexualidade feminina apresenta aspectos particulares.

O interesse pelo tema deu-se pela inserção do pesquisador no campo da socioeducação. A sua vivência e experiência nesse território possibilitou o encontro com diversos atores, resultando em embates produtivos, inventivos e desafiadores. Por isso, desejamos que esta pesquisa possa contribuir para a produção de conhecimento no campo da socioeducação, que vem tentando se afirmar enquanto uma Política Pública.

Algumas questões teóricasIdentificamos, em nossa pesquisa, diversos autores

criticando a posição do judiciário, que parece ainda funcionar com o critério menorista [da situação irregular]3, apontando os familiares como responsáveis por não darem conta de suas proles. Essa forma de entender a dinâmica familiar desresponsabiliza o Estado na implementação de políticas públicas para os adolescentes em conflito com a lei.

Em relação à prática do ato infracional, destacamos a pesquisa de Gonçalves (2005), que critica os vários estudos realizados com adolescência e juventude sob a ótica do negativismo e, com frequência, o olhar a essa categoria se volta para suas crises, seus excessos, seus conflitos e suas explosões. A autora, ainda, afirma que alguns atos dos adolescentes, tidos como violentos, deveriam ser compreendidos como busca de sentido e vontade de participação. Em última análise, uma forma desesperada de estabelecer vínculos.3 O artigo 2º do Código de Menores de 1979 destaca que o menor em Situação Irregular é aquele que está privado de suas condições essenciais à sua subsistência, saúde e instru-ção obrigatória, ainda que eventualmente em razão de: falta, ação ou omissão dos pais ou responsável; manifesta impossibilidade dos pais ou responsável para provê-las; etc.

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Esta pesquisa tem como principal referencial a análise institucional de Lourau (1993) e de Foucault (2009) a respeito da prisão e, por aproximação histórica e prática, da instituição socioeducativa onde são produzidas e forjadas subjetividades por diversos saberes, em especial, por um especialismo que se orienta por práticas marcadas e coladas numa moral na direção do certo ou errado, do bom ou mau, do culpado ou inocente.

Convocamos Lourau (1993) para compreendermos os processos institucionais e como as práticas se apresentam neste campo. Segundo o autor, são nas tensões entre o instituinte e instituído, ou seja, nas suas contradições, que a instituição se revela. Por muito tempo, defendeu-se a ideia de que o instituído era negativo e o instituinte, positivo. Porém, devemos abandonar essa polarização, posto que a instituição comporta múltiplas formas de existência e é a coexistência entre o instituinte e o instituído que faz emergir sua universalidade, em outros termos, sua contradição.

Não é demais reafirmar nossa posição teórica, um viés socioanalítico, no qual o pesquisador deve assumir uma postura ativa e política. Esse lugar não comporta a proteção da neutralidade como verdade axiológica da ciência positivista. Pesquisar funciona como um ato de intervenção e isso “significa que o pesquisador é, ao mesmo tempo, técnico e praticante” (LOURAU, 1993: 28).

A pesquisa intervenção enquanto método pretende analisar as contradições presentes na instituição, ou seja, as tensões produzidas entre/no instituído e instituinte. Agrega-se, a esse ponto, a análise das implicações do pesquisador no processo da pesquisa. E sobre isso afirma Lourau: “a história – e em particular, a história das ciências – nos mostra as implicações em situação de pesquisa como essencial do trabalho cientifico, - mesmo tais implicações sendo negadas” (LOURAU, 1993: 16).

A instituição revela-se em um campo de disputa, onde se articulam forças que não são visíveis, mas se atualizam no que Baremblitt (2002) chama de organizações e de estabelecimentos, por exemplo, um time de futebol, uma igreja, uma escola, um

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partido político, um conjunto musical, um casal, uma família. São nelas que as relações tomam forma, ganham vida, tornando visível a instituição. Complementa essa ideia, o sentido de instituição apresentado por Lourau: “a instituição não é uma coisa observável, mas uma dinâmica contraditória, construindo-se na e [em] história ou tempo. Tempo pode ser, por exemplo, dez anos para a institucionalização de crianças deficientes ou dois mil anos para institucionalização da igreja católica” (LOURAU, 1993: 11). A forma como entendemos a instituição é importante, neste estudo, para compreendermos os processos que agenciam e produzem determinadas subjetividades no campo socioeducativo.

As discussões apresentadas por Foucault (1979, 1985, 2009) sobre regime disciplinar e controle - poder e biopoder, principalmente, seu entendimento sobre a instituição-prisão -auxiliaram em nossas análises em relação às formas de sujeição, uma vez que na instituição-prisão-socioeducação são fabricados corpos para se ajustarem ao encarceramento.

Essa questão da produção de subjetividade nos levou à análise da existência de um lugar do adolescente autor de ato infracional. A produção desse lugar foi apontada por Misse (2007) através do que ele chama de sujeição criminal. Isso ocorre quando o sujeito aceita e se vê como criminoso, ou seja, incorpora um perfil, um tipo ideal que será facilmente identificado pela sociedade. Portanto, acreditamos que a subjetividade adolescente-infrator é anterior à sua entrada no sistema socioeducativo, sendo esta uma produção incessante no e pelo social.

A visita íntima como dispositivo de análise na pesquisa intervençãoAcreditamos na potência da enunciação, na palavra que

faz circular e coloca em concretude o que estava em suspensão, em níveis ainda não tão visíveis. Esta é uma das definições de

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dispositivo, no mesmo sentido dado por Foucault (2009), como uma máquina de fazer ver e fazer falar. Para Badaró (2012: 80), “o dispositivo traz em si a possibilidade de inovar, de criar”. A autora coloca que é possível inventar outros modos de se habitar a prisão, para além das formas conhecidas da disciplina, da vigilância e do controle.

O que buscamos entender foram as questões colocadas em marcha pelo dispositivo visita- íntima. Por isso, apoiamo-nos na forma de fazer pesquisa defendida por Lourau (1993). Para ele, “o método de intervenção consiste em criar um dispositivo de análise social coletiva”, e continua: “o trabalho socioanalítico é colocar em cena o dispositivo” (LOURAU, 1993: 30).

Por fim, defendemos que seja colocada em análise a sexualidade que, por ventura, venha a ser normatizada /institucionalizada sob a justificativa da visita íntima como um direito. Ou seja, o exercício da sexualidade não é apenas um conjunto de normas a serem seguidas para garantir o encontro do casal de forma disciplinada e padronizada; é preciso deixar espaço para outras formas inventivas de existir.

Sabemos, com apoio da análise institucional, que o diferente tende a ser capturado para funcionar dentro do “normal”. Assim, “a institucionalização é o devir, a história, o produto contraditório do instituinte e do instituído em luta permanente” (LOURAU, 199: 12). Nesse sentido, há de se estranhar a efetivação da visita íntima a partir de modelos rígidos e prescritivos voltados a uma intimidade sexual ideal.

Visita íntima como um direitoA socioeducação e a visita íntima fundamentam-se

na Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), na Convenção dos Direitos da Criança (1989), na Constituição de 1988, no Estatuto da Criança e do Adolescente, no Plano Nacional de Convivência Familiar e Comunitária (2006) e no SINASE lei nº 12.594, de 18 de janeiro de 2012.

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No que tange ao campo da saúde, a política socioeducativa alinha-se aos princípios do SUS, visando à articulação com a rede e atendimento no território, como sugerem o ECA e o SINASE. Nesse sentido, a mais recente Portaria do Ministério da Saúde, nº 1.082, de 23 de maio de 2014, (PNAISARI), estabelece novas diretrizes para assegurar a Saúde Integral dos adolescentes em regime de internação e internação provisória, seguindo os níveis da promoção, da prevenção, da assistência e da recuperação da saúde, nas três esferas de gestão. Isso se traduz na garantia ao exercício da sexualidade e à relação íntima.

Não basta que esses direitos estejam garantidos, é preciso entender as formas que a instituição concebe-nos. Diversos estudos apontam que a socioeducação funciona na lógica da instituição total, defendida por Goffman (1974), na qual os sujeitos são coisificados ao receberem um número, terem a cabeça raspada, dentre outras práticas. O confinamento resulta na fragmentação, despersonalização e mortificação do Eu. Nessa lógica, os adolescentes e trabalhadores passam a responder à instituição sem se reconhecerem separados dela, mas numa espécie de simbiose institucional.

Os estudos apresentados por Foucault (2009) nos ajudam a compreender os níveis de violências a que são submetidos os corpos aprisionados. Nessas instituições, eles são docilizados por discursos que forjam: “corpos-machos”, “corpos-héteros” e “corpos-úteis”. Nesse sentido, a prisão, e também a instituição socioeducativa, na atualidade, respondem aos clamores da sociedade, que podem ser traduzidos na seguinte expressão: recebam esses corpos e não os devolvam e, se devolverem, marquem-nos para que sejam sempre reconhecidos.

Essa questão toma outro contorno quando o sujeito passa a ser excluído a partir de sua invisibilidade, de um não-lugar. Considerando os ditames e as regras da “cadeia”, o corpo homossexual não tem possibilidade de ser encenado na instituição socioeducativa. Caso ele apareça, sua existência é

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marginal, sendo reconhecido como “homem investido, aquele que nega a sua natureza” (UZIEL, 2002: 38). Nessa lógica, o jeito mais imediato de lidar com o não-homem é isolá-lo, excluí-lo, tornando-o invisível. O discurso possível de ser proferido, nesse caso, é o da proteção. Afinal, nesse território, parece não haver lugar para o homem que não esteja colado à imagem ou ao signo do macho. Qualquer forma de expressão de afeto ou sensibilidade é interpretada como fraqueza, tanto entre os adolescentes quanto entre os funcionários.

As observações do pesquisador registradas no diário de campo possibilitaram trazer alguns discursos que circulam nos corredores, nas reuniões, nos bate-papos e podem ser percebidos como formas de dar vasão às angústias latentes na instituição: “Vamos servir de porteiros para os adolescentes transarem”, “isso não vai funcionar”, “É possível que os adolescentes não queiram se expor”, “isso aqui vai virar hotelzinho”. Percebe-se uma intensidade de sentimentos negativos frente à iminência desse acontecimento, o que denuncia a necessidade de um trabalho prévio de escuta e acolhimento para elaboração desses “fantasmas”.

Essas e outras evidências mostram que não será uma tarefa fácil a efetivação desse direito, pois o imaginário social tem a representação do adolescente como um ser irresponsável. Pensar a convivência da intimidade sexual do adolescente em um espaço que foi, e às vezes ainda é, palco de violação de Direitos Humanos deve ser olhado com cuidado, pois se pode esbarrar na criminalização da pobreza, conforme os apontamentos de Arantes (1995).

A visita íntima reafirma o lugar do adolescente em nossa sociedade como sujeito de direitos. Esse acontecimento fatalmente provocará que se considerem as várias formas e modos de configurações familiares e como estas são encenadas no mosaico social, a saber: as relações homoafetivas, a união estável, o casamento civil, entre outras. Nesse sentido, Uziel (2002) coloca que:

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O aumento da coabitação sem casamento põe em questão a compreensão tradicional de estabilidade familiar e torna mais fluidas as fronteiras da instabilidade, dada a dificuldade de se constatar rupturas nas outras formas de união. A complexidade das mutações familiares provém em parte da fragilidade de sua visibilidade (UZIEL, 2002, p. 6).

Talvez, a intimidade sexual do adolescente retome a urgência desse debate. A possibilidade da visita íntima, desde seu início, tem produzido burburinhos nos corredores, nas reuniões, nos almoços; o que pode ser entendido como uma forma legítima de os trabalhadores se manifestarem: “Como permitir que adolescentes irresponsáveis façam sexo!?”; “Nós, adultos, seremos coniventes em casos de gravidezes ou transmissão de doenças”; “O adolescente ainda não definiu sua escolha sexual, por isso os adultos precisam decidir por ele”; “Se um pode, todos podem; e aqueles que estão doentes?”. Esses são apenas alguns fragmentos de fala e não pretendem responder, tampouco generalizar, os possíveis impasses diante dessa questão; ao contrário, identificam a importância do tema.

Corpo e sexualidade encarceradosNão se encarcera só o adolescente, encarcera-se seu corpo, sua

sexualidade, sua subjetividade. Para Louro (2000), Almeida (2000) e Foucault (1985), o gênero é um dispositivo de poder na cultura ocidental moderna que ratifica um binarismo extremo entre o masculino e o feminino. Há consenso entre esses autores de que o sexo se refere à marca biológica, enquanto o gênero é construído no processo individual, subjetivo, cultural, histórico e social.

Boa parte dos estudos produzidos pela sociedade, em torno do sexo, tem consequências normativas visando ao seu controle. “As muitas formas de fazer-se mulher ou homem, as várias possibilidades de viver prazeres e desejos corporais são sempre sugeridas, anunciadas, promovidas socialmente e, hoje, possivelmente, de forma mais explícita do que antes” (LOURO, 2000, p. 4). Isso nos faz pensar sobre a vivência da visita íntima numa instituição marcada por regras e normas bem definidas.

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Na mesma direção, Foucault (1985) afirma que a história da sexualidade no ocidente é explicada por teorias repressivas e esclarece que o que ocorreu foi uma explosão discursiva a respeito do tema. Por isso, propõe que se pense esse investimento político na vontade de saber sobre sexo. Foi através da confissão que pôde ser dito o que ocorria, na intimidade, em relação ao sexo. O seu controle tornou-se uma questão de polícia, de saúde pública, de governo, e isso inclui a preocupação com a natalidade, a fecundidade, a morbidade, a procriação, a expectativa de vida, o aumento da população. Desse modo, na atualidade, diversas áreas assumiram a função reguladora do sexo desde a infância, a saber: a escola, a medicina, a psiquiatria, a psicologia. Essas foram, e ainda são, as tecnologias de controle que mantêm os corpos vigiados de modo que se tornem e continuem obedientes.

Constatamos, em nossa pesquisa, que o corpo adolescente, no sistema socioeducativo, é marcado, performado, por uma masculinidade hegemônica em discursos que estão próximos aos produzidos no sistema prisional, conforme os estudos de Almeida (2000). No entanto, existe a possibilidade de se tecer outras masculinidades, outras subjetividades, outros corpos e, nesse sentido, a visita íntima pode funcionar como dispositivo “fora da regra”, mexendo com os lugares (jeitos de ser) instituídos.

Algumas considerações sobre o resultado da pesquisaApresentaremos, a seguir, uma parte das análises da

pesquisa, destacando apenas alguns fragmentos devido à limitação espacial dessa publicação.

Constatamos duas questões centrais na fala dos adolescentes: um sentimento de dívida com a sociedade; esse sentimento é alimentado pela instituição, que, por vezes, os lembra (ou as suas famílias) de seu débito (através de falas afirmando seu desvio). Outro ponto é o descrédito na instituição. Em geral, os adolescentes desconfiam do tratamento que será dado às suas companheiras ao serem conduzidas à visita íntima.

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Eis a fala de um adolescente que revela o seu sentimento em relação à instituição. “Aqui sou apenas um número, sou bandido, menor, delinquente; só quero pensar no futuro quando sair desse inferno”.

Diante dessa subjetividade marcada pelo sentimento de dívida, de descrença, como é possível o adolescente fazer sexo, sentir prazer, em um lugar onde deveria pagar pelo que deve à sociedade! Talvez, isso explique o sentimento de muitos trabalhadores do sistema socioeducativo de que a visita íntima é uma regalia, de que é irresponsabilidade dos adultos permitir tal ato.

Em diversos momentos, nas falas dos adolescentes e dos trabalhadores, vimos a instituição comparecer e é, segundo Lourau (1993), na contradição que ela se faz visível. Falas do tipo: “eles precisam aprender a limpeza, não estão acostumados com isso”. Por outro lado, em muitos relatos, os adolescentes preferem que suas companheiras tragam os lençóis e outros objetos de higiene, no caso da visita íntima, pois não acreditam na limpeza da instituição.

Identificamos nos discursos dos adolescentes, preocupação com o momento da visita íntima para que não se torne algo vulgar ou desrespeitoso, tanto por eles quanto pelos funcionários da instituição. A intimidade com a companheira e seus familiares foi defendida como algo a ser protegido. Apesar de o ato sexual ser bastante valorizado pelo adolescente, ele consegue associá-lo à afetividade, à convivência, à intimidade e à privacidade.

No que tange à visita íntima de casais homoafetivos, os adolescentes mostraram-se resistentes em relação à convivência e atividade no mesmo ambiente. Muito embora caibam ressalvas a essas “resistências”, pois o gerente de boca de fumo, desde que informe sobre sua condição sexual (com a expressão: tô de ralo), pode conviver tranquilamente. Da mesma forma, esclarece-nos outro adolescente: “Pra mim seria a merma coisa, mas tem gente que bate neurose, por mim, tudo bem, pois vai trocar colchão, vai trocar lençol. Mas tem gente que como, tem preconceito”. Essas

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duas situações revelam que existe possibilidade de negociação quanto à convivência homossexual. Por outro lado, a instituição parece ter dificuldade de fazer essa negociação.

Nesta pesquisa, não tivemos a pretensão de esgotar o tema visita íntima de adolescente no sistema socioeducativo, mas entender os processos da sexualidade, do gênero e da instituição colocados em marcha a partir desse direito. Por isso, apontamos a necessidade de outras pesquisas sobre o tema, principalmente, quando a convivência íntima estiver em execução no estado do Rio de Janeiro.

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Família na política socioeducativa: uma análise dos 20 anos

Ida Motta1

ResumoO presente objetivou fazer um estudo das propostas voltadas

para o atendimento de famílias na Política Socioeducativa dentro do Departamento Geral de Ações Socioeducativas do Estado do Rio de Janeiro nos últimos 20 anos, a partir da metodologia de análise documental, tendo como marcos legais o Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA e o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo - SINASE. Contextualizou-se historicamente o processo de construção desses dois marcos e verificou-se os conceitos de Doutrina da Proteção Integral, Incompletude Institucional e Família nos programas elaborados ao longo desse período: o Programa Golfinhos (1995), o Programa de Atenção às Famílias – Espaço Golfinhos (2002) e o Programa de Atenção às Famílias (2015). Concluiu-se que os conceitos elencados estão presentes nas diferentes abordagens familiares analisadas, trazendo contribuições para o campo da prática, ultrapassando o plano jurídico (ECA e SINASE) e o político conceitual.

Palavras-Chaves: Família, Política Socioeducativa, Análise Documental

O tema central deste estudo é o trabalho desenvolvido com as famílias no DEGASE ao longo desses últimos 20 anos,

1 Assistente Social do DEGASE desde 1994, atuando na Escola de Gestão Socioeducativa Paulo Freire. Assistente Social da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro – Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social – SMDS desde 1987, lotada na 7ª Coordenadoria de Desenvolvimento Social. Graduada pela UERJ e Mestranda em Políticas Sociais pela UFF. Pesquisadora do Núcleo de Direitos Humanos e Sociais da UFF. E-mail: [email protected]

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contextualizando as propostas de intervenção junto a essas famílias antes e posterior à implementação do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE) no Rio de Janeiro.

O objetivo é analisar os conceitos que norteavam as ações técnicas dirigidas para as famílias dos adolescentes aos quais se atribuíram autoria de atos infracionais, no âmbito do DEGASE a partir de dois marcos distintos: o Projeto Golfinhos, implantado no movimento de institucionalização do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), mais precisamente em 1995 e, o Programa de Atenção às Famílias do DEGASE elaborado em 2015 e articulado à dinâmica de implantação do SINASE. Além desses dois documentos, optou-se também por considerar a versão reformulada de 2002 do Projeto Golfinhos – Programa de Atenção às Famílias – Espaço Golfinhos, como possível transição entre referenciais de um e de outro.

Coube-nos esclarecer que esse estudo só foi possível ser realizado pela inserção desta autora no Grupo de Trabalho instituído em 2015 para elaboração do Programa de Atenção às Famílias do DEGASE, considerando que o referido programa ainda se encontra em fase de análise pela equipe gestora do Departamento Geral de Ações Socioeducativas, para que posteriormente seja implantado.

Avaliou-se ser oportuno o desenvolvimento da análise proposta pelo empenho em aprofundar a importância do trabalho com as famílias dentro do sistema socioeducativo, por entender tratar-se de um direito social dessas famílias a existência de uma política de atendimento às famílias dos adolescentes aos quais se atribui autoria de ato infracional. Não obstante, puderam-se destacar outros pontos que justifiquem a importância desse estudo, como: (i) o número reduzido de estudos e pesquisas efetuados em torno desse tema no Estado do Rio de Janeiro; (ii) a importância da matricialidade sociofamiliar nas políticas sociais, como mecanismo fundamental para efetiva garantia do direito de crianças e adolescentes à convivência familiar e comunitária;

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e, por fim, (iii) o crescimento do atendimento de adolescentes e famílias na Política Socioeducativa do Estado do Rio de Janeiro, tendo em vista que no ano de 2015, cerca de 8.460 adolescentes foram atendidos em unidades do DEGASE.

O estudo tomará por base a metodologia de análise documental que consiste em verificar, identificar e analisar um determinado documento visando um objetivo específico, considerando o que CELLARD (2010, p. 295) aponta que “o documento permite acrescentar a dimensão do tempo à compreensão do social”. A escolha dessa metodologia ocorreu pela avaliação de que ela permitiria observar o processo de evolução dos conceitos dentro da documentação estudada, bem como as possíveis análises e inflexões relacionadas com o contexto em que essas documentações foram produzidas.

Elegeram-se o ECA e o SINASE por entender que estes marcos legais consagram um rompimento com a lógica repressiva e punitiva em relação ao segmento infanto-juvenil no Brasil, passando a sustentar os princípios dos Direitos Humanos. Dentro da metodologia proposta, verificaram-se os conceitos de Doutrina da Proteção Integral, Incompletude Institucional e Família, por entender que partem de concepções que delinearam mudanças numa prática política, originando um novo campo de atuação, fundamentando a hipótese do nosso objeto de estudo que indaga se ocorreu efetivamente evolução nas propostas de atendimento às famílias.

Contextos Societários e os Marcos LegaisO Estatuto da Criança e do Adolescente, instituído em 13

de julho de 1990, tem seu berço imbricado num momento onde a sociedade vivenciou a redemocratização do país, após um longo processo de lutas, com a promulgação da Constituição de 1988:

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A nova Carta proclamava o estabelecimento de um Estado democrático reconhecedor de direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais. Alcançava-se um novo patamar de cidadania, comparável à concepção clássica de Marshall, 1967: direitos civis, políticos e sociais (IPEA, volume I, p. 07).

Resgatando a história, entre 1982 e 1983, implanta-se o Projeto Alternativo de Atendimento de Meninos de Rua a partir da união do Fundo das Nações Unidas para Infância - UNICEF, Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor - FUNABEM e Secretaria de Ação Social do Ministério da Saúde e Previdência Social. Projeto este que ganha proporções enormes e avanços na participação da sociedade de forma a culminar no I Seminário Latino Americano de Alternativas Comunitárias de Atendimento a Meninas e Meninos de Rua em Brasília, em novembro de 1984. O movimento ganha força política, reforçando a ineficiência das políticas assistenciais, correcionais e repressivas, até então em prática (OTENIO; OTENIO; MARIANO, 2008, p. 06).

Em 1985, é criada a Coordenação Nacional do Movimento de Meninas e Meninos de Rua e em maio de 1986 acontece o I Encontro Nacional de Meninos e Meninas de Rua, com a tônica da violência sofrida pelos jovens e passando pelos demais temas como: saúde, sexualidade, trabalho, escola, família, dentre outros. Eclode a luta pelos direitos da infância e adolescência!

A década de 80 foi um marco na discussão da democratização das políticas sociais, delineada pela crise econômica e pela manifestação popular organizada. É nesse bojo que o ECA é promulgado, contando com a participação da sociedade civil e demais entidades como a Frente Nacional de Defesa dos Direitos das Crianças e dos Adolescentes, a Pastoral do Menor da Comissão Nacional dos Bispos do Brasil, da Comissão Nacional Criança e Constituinte, o UNICEF, além do Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua (OTENIO; OTENIO; MARIANO, 2008, p. 06).

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O Estatuto da Criança e do Adolescente traz em sua essência o produto de uma militância, refletindo o alicerce de novas concepções onde crianças e adolescentes são considerados sujeitos de direitos, na condição de pessoa em desenvolvimento e com prioridade absoluta. Um novo marco na elaboração e implementação das políticas públicas é instituído: uma doutrina baseada na proteção integral da criança e do adolescente.

Passados dezesseis anos da promulgação do ECA, a Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República e o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente apresentam o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo - SINASE:

(...)fruto de uma construção coletiva que envolveu nos últimos anos diversas áreas de governo, representantes de entidades e especialistas na área, além de uma série de debates protagonizados por operadores do Sistema de Garantia de Direitos em encontros regionais que cobriram todo o País (SINASE, 2006, p.13).

O contexto da elaboração e implementação do SINASE foi marcado por um Brasil de desigualdades sociais, onde 1% (um por cento) da população mais rica detinha 13, 5% (treze e meio por cento) da renda nacional e 50% (cinquenta por cento) da mais pobre detinham apenas 14,4% (quatorze vírgula quatro por cento) dessa renda; com uma população de adolescentes (12 a 18 anos) na casa de 25 milhões, isto é, 15% (quinze por cento) da população do país na época; a partir de dados subtraídos do CENSO do IBGE de 2004. Essa desigualdade tornava-se mais avassaladora quando considerávamos o segmento criança e adolescente e, ainda maior quando se focava na questão racial, onde a população negra conseguia apresentar um cenário de disparidades ainda maior que a população branca do país: 20,5% (vinte vírgula cinco por cento) de brancos tinham renda per capita inferior a meio salário mínimo, contra 44,1% (quarenta e quatro vírgula um por cento) dos negros, tomando por base os dados do IPEA de 2005.

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Ao serem analisados os dados sobre acesso a escolarização, confirmava-se que a população negra apresentava um quadro socioeconômico e educacional mais díspares que a população branca: a taxa de analfabetismo entre os negros era de 12, 9 % (doze vírgula nove por cento), contra 5, 7% (cinco vírgula sete por cento) da população branca nas áreas urbanas, segundo também o IPEA. Dentro dessa realidade, é importante destacar os dados de mortalidade juvenil naquele contexto: 72% (setenta e dois por cento) dessa população morreram por causas externas (acidentes de trânsito, homicídios e suicídios), sendo que 39,9% (trinta e nove vírgula nove) por homicídios (SINASE, 2006, p.17-18).

Os dados referentes aos adolescentes a quem se atribuía autoria de atos infracionais retratavam esse cenário apresentado. A questão das desigualdades era latente para essa população que não diferiria da parcela infanto-juvenil no quesito de acesso às políticas sociais básicas. De acordo com o levantamento estatístico produzido pela Subsecretaria de Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente da Secretaria Especial dos Direitos Humanos divulgando na época, o Brasil tinha cerca de 39.578 adolescentes no sistema socioeducativo, cerca de 0,2% (zero vírgula dois por cento) do total de adolescentes entre 12 e 18 anos (SINASE, 2006, p.18).

Ficou evidenciada a necessidade de se pensar uma política de atendimento que fosse integrada e articulada com as demais políticas e sistemas, a partir de uma rede integrada de atendimento e, é com essa finalidade que se elabora e implementa o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo:

A realidade dos adolescentes brasileiros, incluindo aqueles no contexto socioeducativo, exige atenção do Estado e evidencia a necessidade de uma agenda de urgências no sentido de se efetivar políticas públicas e sociais e, sobretudo, ampliar os desafios para a efetiva implementação da política de atendimento socioeducativa (SINASE, 2006, p. 19).

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O desafio é o de implantar e implementar um sistema que tem como seu princípio norteador a articulação entre as políticas sociais básicas, interagindo com demais sistemas – Sistema Educacional/Sistema Único de Saúde/Sistema Único de Assistência Social/Sistema de Justiça - de forma a garantir o atendimento socioeducativo do adolescente e de sua família; compondo o Sistema e Garantia de Direitos - SGD.

A Política Social Brasileira e a Política SocioeducativaA abordagem sobre a política social não pretendeu historiar

a mesma, nem, tão pouco, aprofundá-la, mas sim entendê-la no bojo do que se denominou Estado Moderno, a partir do capitalismo, como proteção social à coletividade e forma de intervenção estatal. Assim, tomamos por base Santos (1987), ao afirmar que o Brasil só teve a cidadania, enquanto direitos sociais, a partir dos anos 30, o que denominou “cidadania regulada” (SANTOS, 1987, p. 75). Uma cidadania que só atingia aos indivíduos que estavam inseridos no mercado de trabalho, que não incomodava às classes dominantes.

É a partir dos movimentos sociais populares, finais dos anos 70, que se estimula uma cultura democrática, de participação popular nas políticas sociais públicas, assegurando conquistas no campo da cidadania e da participação popular, agudizando a democratização da sociedade e do Estado. Essa noção de cidadania que surge nesse contexto vem embebida da concepção do direito de ter direito, de uma cultura de direitos. Essa concepção permeou o conceito de Política Social que se tomou como referência: o entendimento de Política Social a partir da visão de cidadania, entendendo como uma relação estabelecida entre a condição de ser cidadão e seu Estado, baseada na construção de direitos e deveres (FLEURY, 1985). Tendo como base a relação e articulação intrínseca entre o conceito de cidadania e os direitos civis, sociais e políticos2 (MARSHALL, 1967).2 Direitos civis (liberdade individual), sociais (desde um direito mínimo de bem-estar

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O conceito de política social estaria relacionado com a ideia de programas, planos e medidas que respondam aos direitos sociais num dado contexto social, conforme já explicitado. Entendendo essa política com objetivos conjuntos de proteção social e de promoção social, de forma a responder por esses direitos sociais e demais necessidades oriundas da desigualdade social (CASTRO, 2012, p. 1014).

Castro (2012) vai tratar da normativa da política social a partir desses objetivos, referindo-se às políticas sociais voltadas para Seguridade Social e Previdência Social - Saúde, Assistência Social e Previdência Social - com o objetivo de proteção social e, as políticas sociais cujas ações vão desde a formação e desenvolvimento do cidadão, até o que denomina de democratização do acesso a ativos - Educação, Cultura, Trabalho e Renda, Qualificação Profissional, Agricultura Familiar, Economia Solidária, Habitação e Mobilidade Urbana - com o objetivo de promoção social. Classifica como políticas de corte transversal, àquelas que podem ter tanto o objetivo de promoção social, como o de proteção social, enumerando as políticas de gênero e raciais, bem como, as políticas focadas para segmentos da população como criança e adolescente, idosos, etc.

Desta forma, a Política de Proteção Integral da Criança e do Adolescente pode ser caracterizada como uma política social com corte transversal, a partir da normativa de política social estabelecida por Castro (2012); levando-se em consideração que a política de proteção integral implica em quatro lindas de ação: políticas sociais básicas3, políticas de assistência social4, políticas de proteção especial5 e políticas de garantia de direitos6 .

econômico até o Direito de participação) e políticos (participar no exercício do poder político).3 Direito à educação, à saúde, ao lazer e à cultura.4 Voltada para estado de vulnerabilidade social permanente ou temporário.5 Violação dos direitos.6 Atuação do poder público para defesa dos direitos instituídos.

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A política socioeducativa vai estar ligada diretamente na conjugação dessas quatro linhas de ação da política de proteção integral, portanto, baseada na articulação de ações governamentais dos três entes federais – União, Estados e Municípios (SOUZA, 2008, p. 35). Evidencia-se a interface da política socioeducativa com a política de assistência social e demais políticas sociais; princípio básico do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo – SINASE7.

A Metodologia, os Conceitos e os Marcos LegaisO presente estudo pretendeu verificar se as propostas

elaboradas nos diferentes contextos societários tiveram como base os marcos legais de referência da época. Como já explicitado, a análise foi estabelecida a partir de três dos conceitos que permeiam esses marcos – Doutrina da Proteção Integral, Incompletude Institucional e Família - e que delineavam um novo campo político, baseado em concepções que fortaleceriam uma prática que poderia efetivamente propiciar oportunidades para o desenvolvimento desses adolescentes - a quem se atribuiu autoria de atos infracionais – e suas famílias, possibilitando a construção de um projeto de vida para os mesmos. Essa consistiu na nossa primeira etapa do estudo: a escolha dos conceitos. Assim, pôde-se afirmar que os conceitos elencados para análise pretendiam verificar as concepções que nortearam os programas com a metodologia de abordagem familiar, de forma a responder a problematização deste estudo que consistia em indagar, se o atual programa de atenção às famílias do DEGASE (elaborado em 2015) estaria dentro dos pressupostos do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo.

7 Essa política tem interfaces com diferentes sistemas e políticas e exige atuação dife-renciada que coadune responsabilização (com a necessária limitação de direitos deter-minada por lei e aplicada por sentença) e satisfação de direitos. Os órgãos deliberati-vos e gestores do SINASE são articuladores da atuação das diferentes áreas da política social (SINASE, 2006, p. 23).

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Posteriormente, passamos para nossa segunda etapa do estudo: identificar, a partir de um levantamento documental, os documentos relacionados com o tema que foram produzidos ao longo desses vinte anos de existência do DEGASE. Foram identificados: o Projeto Golfinhos em 1995, a versão do Programa de Atenção às Famílias – Espaço Golfinhos apresentada em 2002 e o atual Programa de Atenção às Famílias do DEGASE – 2015 - em processo de análise e implantação. Estabeleceu-se o critério de elencar os projetos e programas que foram implementados, excetuando-se o atual Programa de Atenção às famílias do DEGASE que se encontra em fase de implantação.

Num terceiro momento, avaliamos a necessidade de definir os conceitos arrolados, portanto, entendeu-se por Doutrina da Proteção Integral a concepção de que população infanto-juvenil é composta por cidadãos com plenos direitos, com proteção prioritária e em pleno desenvolvimento; a teoria da proteção integral está explicitada na Constituição Federal8.

Como Incompletude Institucional, num dos princípios básicos do SINASE, entende-se a articulação entre as políticas sociais básicas, as políticas de assistência social, as políticas de proteção especial e as políticas de garantia de direitos, isto é, as ações governamentais e também as não governamentais que compõem a política integral dos direitos da criança e do adolescente. Entende-se que a aplicação da medida socioeducativa deve perpassar pelas demais políticas públicas, não sendo alvo específico da política socioeducativa (SINASE, 2006 p. 23). Por último, estabelece-se o conceito de Família como assegurado no SINASE (2006, p. 62): “(...) aquele grupo ou pessoa com os quais os adolescentes possuam vínculos afetivos, respeitando os diferentes arranjos familiares”.8 Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adoles-cente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (EMENDA CONSTITUCIONAL nº 65, de 2010).

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Passou-se, então, para uma quarta etapa do estudo que consistiu identificar a presença ou ausência – de forma implícita ou explícita – desses conceitos, na documentação estabelecida para análise: Projeto Golfinhos (1995), Programa de Atenção às Famílias – Espaço Golfinhos (2002) e Programa de Atenção às Famílias (2015); etapa essa que se discorreu a seguir.

Análise dos conceitos e os resultadosO primeiro documento a ser analisado foi o Projeto

Golfinhos, implantado em maio de 1995, em duas unidades do Departamento Geral de Ações Socioeducativas: Instituto Padre Severino e Escola João Luiz Alves. Ambas as unidades foram herdadas da FUNABEM, possuindo, na ocasião, péssimas condições físicas e estruturais. O projeto Golfinhos foi elaborado a partir da iniciativa de dois profissionais – um psicólogo e um pedagogo, estatutários do DEGASE – ambos com especialização em terapia familiar com formação na teoria sistêmica. A proposta do Projeto era na linha terapêutica apresentando várias “modalidades de atendimento”; forma como foi denominado o trabalho com as famílias dos adolescentes.

Quando se realizou a análise dos conceitos, foram identificadas as concepções que embasavam o da Doutrina de Proteção Integral de forma implícita, sendo percebida a preocupação dos profissionais em assegurar na elaboração do Projeto Golfinhos o “exercício da cidadania” por partes dos adolescentes, como “forma de mudança na sua trajetória de vida”, atingindo uma autonomia, num processo de crescimento; assim como a falta de um “projeto de vida” em parte dos adolescentes atendidos naquela época (GOVERNO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO, 1995, p.04).

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Verificou-se que o adolescente estava sendo identificado como um sujeito de direitos, com prioridade absoluta, em fase de desenvolvimento físico, psicológico e moral. Observou-se também o registro da importância da família para o desenvolvimento dos adolescentes, reforçando esse conceito.

Em relação ao conceito de Incompletude Institucional, pôde-se perceber a preocupação com a formação de rede interna e externa, inclusive de apoio às famílias dos adolescentes, quando é registrado no projeto a “falta de uma retaguarda de atendimento” para os demais filhos daquela “matriz familiar”; como também, ao ser sinalizada a necessidade de uma “rede externa de atendimento especializado para as famílias” (GOVERNO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO, 1995, p.03 e 04).

É importante destacar a tônica de “rede de serviços” naquela época, período da implantação da assistência social como uma política, sendo fortalecida a articulação em rede e adequação aos novos marcos legais: a concepção de instituição total deixaria de existir.

Constatou-se, portanto, que a proposta de atendimento familiar não se esgotava naquela instituição fechada, sendo pensadas estratégias para construção do que foi denominado como “rede interna e externa” para atendimento dos adolescentes e suas famílias. Verificou-se que o conceito Família se apresentou de forma mais ampliada, contendo “composições variadas”- “famílias uniparentais”, “mistas de vários recasamentos”, “avôs com função parental”; sendo também identificado um número significativo de adolescentes que já haviam se tornado pais, “sem preparo e orientação”.

Evidenciou-se uma amplitude no conceito de família, bem como se delineou, nessa conjuntura, a matricialidade sociofamiliar nas políticas públicas, isto é, a importância de a família estar no foco das ações das diversas políticas sociais básicas, como mecanismo para efetiva garantia do direito de crianças e adolescentes à convivência familiar e comunitária.

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Passou-se então a análise do segundo documento, Programa de Atenção às Famílias - Espaço Golfinhos (versão de 2002). A primeira consideração é que o documento se colocava como um programa do DEGASE e não como fruto da inciativa de profissionais da instituição, apresentando em linhas gerais uma preocupação com os direitos humanos, baseado nas fundamentações das Regras Mínimas das Nações Unidas, Regras de Beijing (1990) e no ECA, isto é, baseado nos marcos legais daquela época.

Como um programa, o Espaço Golfinhos apresentava ações na área de pesquisa com a preocupação de uma retroalimentação da temática, com a ideia de formação e capacitação de profissionais para atuarem nesse trabalho, com a proposta de assessoria e supervisão das ações que deveriam ser descentralizadas nas demais unidades do DEGASE – visão de descentralização política; além da previsão de captação de recursos para execução do programa.

A proposta do Espaço Golfinhos apresentava uma linha central de intervenção terapêutica com base na teoria sistêmica, apontando para uma ampliação do trabalho com equipe interdisciplinar e com ações ligadas às artes integradas. Importante destacar o contexto da elaboração dessa proposta, pois a discussão do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo estava em plena ebulição, assim como o Sistema Único de Assistência Social, cenário de plena implementação das políticas sociais básicas e seus respectivos sistemas de atendimento. Acentuava-se no documento a importância do mesmo se pautar no campo dos direitos e um cuidado em não ser intitulado como um mero programa assistencialista.

Um dos primeiros pontos observados foi a presença explícita, no programa analisado, de dois conceitos como princípios básicos dos marcos legais: Doutrina da Proteção Integral e Incompletude Institucional. Além desses dois conceitos e princípios, pudemos identificar vários termos utilizados na

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elaboração do mesmo que reitera as concepções que baseiam esses conceitos como “sujeito social”, “cidadania plena”, “política de direito”. Em especial com o conceito de Incompletude Institucional, o programa previa a construção de uma rede de atendimento às famílias, enfatizando a necessidade de uma rede interna e externa, “articulada com as políticas básicas, de forma a garantir um atendimento integral ao adolescente e sua família” (GOVERNO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO, 2002, p. 08).

Em relação ao conceito Família, não se identificou a explicitação do mesmo, contudo, foi notório o destaque da necessidade da “ampliação de uma rede social para atender as famílias”, apresentando-se na elaboração da proposta uma abordagem baseada na terapia sistêmica como “terapia familiar”, “grupos reflexivos”, “oficinas temáticas” e “oficinas de artes integradas”; além da preocupação com a “contextualização social” (GOVERNO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO, 2002, p. 13, 16 e 17).

Passamos então para análise do último documento elencado, o Programa de Atenção às Famílias do DEGASE, elaborado em dezembro de 2015, e em processo de implantação.

Este documento foi construído por um grupo de trabalho de funcionários instituído oficialmente pela direção geral do DEGASE – através do diário oficial do estado – e como fruto de discussões entre várias categorias profissionais e propiciado a partir de um espaço de capacitação desses trabalhadores. O grupo de trabalho foi composto por profissionais de várias categorias e de “unidades de privação e restrição de liberdade” do DEGASE, produzindo um documento com base nas práticas de trabalho com famílias que vinham sendo desenvolvidas em algumas unidades. Pudemos observar que os três conceitos (Doutrina da Proteção Integral, Incompletude Institucional e Família) estão presentes no documento.

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Em relação ao conceito da Doutrina da Proteção Integral, percebemos que a concepção que norteia o mesmo já é tratada como um patamar de referência da política socioeducativa, portanto, o conceito é bastante evidenciado dentro deste documento. O Programa parte da indagação de como “garantir o direito de toda criança e adolescente de crescer em família, na comunidade e sem violência”. Sustenta a premissa de que o atendimento socioeducativo precisa focar a abordagem familiar como uma ideia de centralidade – matricialidade sociofamiliar – conceituando família amplamente e a partir dos marcos legais – Constituição de 88, ECA, SINASE, SUAS, PNCFC9.

O conceito Família foi destacado na documentação em tese, assim como o conceito de Incompletude Institucional, onde alguns objetivos específicos do Programa fortalecem esse último conceito como: “Desenvolver a articulação de rede interna e externa visando o atendimento familiar”, “Referenciar e contra referenciar as famílias para rede ampliada de serviços de seu território”, “Instituir um fórum permanente de Atenção às Famílias com a participação dos socioeducadores, da rede socioassistencial e de familiares para acompanhamento do Programa” (GOVERNO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO, 2015, p. 11,12 e 13).

O Programa de Atenção às Famílias (DEGASE, 2015), a partir da análise estabelecida, pôde-se verificar que para além desses conceitos, apresenta uma proposta pautada na socioeducação, numa prática interdisciplinar e intersetorial, com a construção do Plano Individual de Atendimento – PIA e o Plano de Atendimento Familiar.

Tal programa prevê as etapas da socioeducação como o “Acolhimento” das Famílias, a instituição de um Fórum deliberativo e como controle social da política socioeducativa, assim como a realização de pesquisas como retroalimentação do programa; além de destacar a necessidade de garantia de espaço

9 Plano Nacional de Convivência Familiar e Comunitária – PNCFC.

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físico para realização das atividades com famílias, nas projeções arquitetônicas de novas unidades do DEGASE e capacitação continuada dos profissionais à frente da abordagem familiar, na Escola de Gestão Socieoducativa Paulo Freire – Escola Socioeducativa do DEGASE.

Considerações FinaisA partir do estudo realizado com base na metodologia de

análise documental, pôde-se constatar que toda a documentação analisada (projetos e programas) foram norteadas pelos marcos legais dos diferentes contextos (ECA e SINASE), apresentando especificidades próprias e influenciadas por suas conjunturas. Identificou-se que os conceitos Doutrina da Proteção Integral, Incompletude Institucional e Família aparecem de forma explícita e implícita na documentação elencada, tomando por base as concepções que fundamentam os princípios dos direitos humanos.

Verificou-se ainda que a metodologia utilizada contribuiu para alcançar nossos objetivos, pois permitiu identificar os sujeitos sociais que construíram as propostas de intervenção, os interesses pertinentes e os contextos sociais de cada produção, bem como as concepções que permeavam os diversos cenários políticos.

As hipóteses que alavancaram este estudo foram elucidadas, considerando que traçamos um paralelo entre as diferentes abordagens familiares apresentadas, podendo ser observado que houve uma ampliação e concretização dos conceitos analisados, com base nas ações delineadas.

Observou-se que o atual Programa de Atenção às Famílias do DEGASE, elaborado em 2015, e em fase de implantação, apresenta uma proposta dentro das diretrizes do SINASE e tomando por base os preceitos da socioeducação.

Avaliou-se ser pertinente a implementação do mesmo por considerar o aspecto já evidenciado inicialmente: tratar-se de um direito social dessas famílias a existência de uma política de

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atendimento às famílias dos adolescentes aos quais se atribui autoria de ato infracional; garantindo a execução de abordagens familiares baseadas nas diretrizes emanadas por esse Programa, nas diferentes unidades do DEGASE.

Por fim, entendeu-se que estudos como esse contribuem para fortalecimento de projetos e programas da política socioeducativa, podendo trazer importantes contribuições no campo das práticas, ultrapassando o plano jurídico – ECA e SINASE e o político conceitual.

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REGRAS MÍNIMAS DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A ADMINISTRAÇÃODA JUSTIÇA, DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE (REGRAS DE BEIJING). Disponível em: Tradução ao português de Betsáida Dias Capilé. Revisão de Emílio Garcia Mendez e Lídia Galeano. Acessado em: 01 de setembro de 2016.

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Escutar é sempre um ato possível: A responsabilização no discurso da psicanálise

Maria Geni Rangel Leite 1

Paulo EduardoVianaVidal2

ResumoEscutar é sempre um ato possível. Esta é a grande lição que

Freud nos ensina. A psicanálise veio a se constituir como ciência a partir da experiência, reivindicada pelo real da clínica aonde as pacientes histéricas eram desconsideradas em seu sofrimento pelo saber médico da época. Freud toma a iniciativa de acolher e escutar esse mal-estar. Este artigo toma em consideração, portanto, a experiência freudiana para discorrer sobre a importância de se apreender o sentido da escuta dos atos de violência. Permitir ao sujeito adolescente elaborar em seu nome a sua narrativa é pertinente à psicanálise. Esta nos permitiu analisar a responsabilização do sujeito no seu próprio discurso revelando o seu próprio enigma. Refletir sobre a articulação simbólica implica questionar a responsabilização do sujeito da linguagem e o que não está ali, no ato, à vista, mas no discurso, a fim de possibilitar, a emergência da verdade do sujeito. A psicanálise, por essa via, como propriamente se trata da clínica da escuta, indica esta iniciativa sempre possível diante do sofrimento humano. Põe-se em evidência a práxis socioeducativa no que diz respeito à adolescência institucionalizada.

Palavras-chave: Práxis; escuta; psicanálise, socioeducação, discurso, responsabilização

1 Psicóloga aprovada por concurso público para o DEGASE, onde exerceu sua ati-vidade na socioeducação de adolescentes de 1998 a 2013. Atualmente aposentada. Mestre e doutoranda em Psicologia: Estudos da subjetividade pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal Fluminense.2 Paulo Eduardo Viana Vidal, Doutor em Teoria Psicanalítica pela UFRJ, Professor associado da graduação e pós-graduação do Instituto de Psicologia da UFF.

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Em sua primeira das “Cinco lições de psicanálise”, Freud (1980a) fala dos impasses provocados por aqueles pacientes, cujos sintomas não encontravam causas orgânicas. Freud observa as vaidades do saber médico, mobilizadas por esses pacientes e sua impossibilidade em dar uma resposta às suas dores, o que culmina no desinteresse por esses pacientes. Referência à qual não inclui Joseph Breuer3 que, segundo ele foi o primeiro a utilizar a psicanálise como forma de tratamento de uma jovem histérica4 no período (1880-82), interessado em escutar o que sentia e prestar-lhe auxílio.

Em toda a obra freudiana desde seus estudos sobre histeria, é evidente a preocupação de Freud com a escuta do paciente. Essa atenção se revela igualmente importante quando se toma em consideração a sua construção teórico-psicanalítica com enfoque no Inconsciente. Fato que não deixou de ter a contribuição, em particular, de uma paciente histérica de quarenta anos; Frau Emmy Von N., com a qual, Freud (1980a), aplicou pela primeira vez o método terapêutico de Breuer, que consistia, segundo ele, em fazer uso de técnica investigativa dos sintomas apresentados pela paciente, sob hipnose.

O que chama a atenção, especialmente nesse caso clínico descrito por Freud, não consiste na apresentação do relato sintomático conforme a descrição freudiana, mas a resposta da paciente que surpreende o analista. Nesse sentido, é ele, Freud, quem se dá conta que de conversa em conversa, sua paciente sob hipnose recorda-se do que foi tratado, também sob hipnose, na sessão anterior, mas nada sabe a respeito de sua vida, em vigília.

3 De acordo com Freud (1909/1980 b), p. 23) o Dr. Joseph Breuer era médico da Real Academia de Ciências, nascido em 1842, conhecido por trabalhos sobre a respiração e sobre a fisiologia do sentido do equilíbrio.4 A história clínica e terapêutica desse caso se acha minuciosamente descrita nos Estudos sobre histeria (1893-1895), volume II da Edição Standard brasileira da Coleção das Obras Completas de Freud.

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O tratamento prossegue e Freud (1980a) observa que, mesmo sem perguntas dirigidas à paciente sob o efeito da hipnose, ele é capaz de descobrir naquele dia a causa de seu mal humor. Durante uma massagem a fim de lhe aliviar as dores observa que há uma intenção no dizer dela e que o contexto de seus ditos encerra uma reprodução razoavelmente completa das lembranças e das novas impressões que a afetaram desde a conversa anterior com ele e que, de modo inesperado, frequentemente, leva Freud a observar o surgimento de reminiscências patogênicas desabafadas pela paciente sem que lhe fosse dada qualquer sugestão (pela hipnose) no sentido de expressá-las. Freud então afirma: “É como se tivesse adotado meu método e estivesse fazendo uso de nossa conversação, aparentemente não coagida e orientada pelo acaso, como suplemento a sua hipnose” (FREUD, 1980b, p. 99-100)5 .

Assim Freud percebe os conteúdos inconscientes surgidos à revelia do seu estado hipnótico e como essas elaborações repercutem na abolição dos sintomas. Trata-se do compromisso freudiano de apreender o discurso de sua paciente, de escutar o seu sofrimento pelo conteúdo da fala que o revela. E assim arriscar novas maneiras de tratar do sofrimento humano em uma época em que ele mesmo declara que esse sofrimento era desvalorizado e rechaçado por muitos do saber médico. Isso, por si só, resume o sentido que queremos introduzir no que concerne ao sentido de responsabilizar-se.

Para superar a cultura da violência, um dos maiores desafios da contemporaneidade, consiste em assumir a posição de escuta diante dos adolescentes autores de atos infracionais. Escutar a adolescênciano interior das Unidades Socioeducativas. Parcela considerável da adolescência para a qual, não raro, as políticas públicas falham em sua função de prevenção no sentido da articulação de estratégias coletivas que visem sanar as fragilidades dentro da triste realidade institucional.

5 Conforme nota de rodapé: FREUD (1893-95/1980a, p. 100); talvez seja este o primeiro aparecimento do que se tornou depois o método da livre associação.

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Lacan (1998, p. 14) afirma a práxis como “qualquer ação realizada pelo homem que o põe em condição de tratar o real pelo simbólico.”Faz-se mister, por essa via, fazer algo para que se formule e se re-formule, sobretudo na operacionalização das atividades da socioeducação onde não ocorrem, de forma regular, atividades coletivas de conversação com os internos. Se a lei federal 12.594 do ano 2012, a mais recente, conhecida por SINASE (Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo), prevê um conjunto de ações articuladas e integradas em diversos segmentos de atuação com a participação do adolescente na elaboração, análise e revisão do seu Plano Individual de Atendimento (PIA).

Como implicar o adolescente em seu planejamento de ações socioeducativas sem espaços de conversação nos quais interajam as equipes de trabalhadores sociais e os adolescentes e, além disso, sem que o devido suporte logístico facilite minimamente o desempenho das funções de trabalho? Concordamos com Lacan (1998, p. 17) de que “é preciso estar no campo da formulação”, uma vez que, segundo ele, o que faz surgir a diferença entre uma ciência definida por um objeto e a mesma definida por um campo de conhecimento ou entre campos e objetos distintos é justamente se permitir estar “aonde é preciso estar, no b.a.ba da formulação” (ibidem). Portanto, nosso objetivo neste artigo é discorrer sobre a responsabilização que implica o exercício da fala sob a perspectiva do discurso da psicanálise tendo em vista a socioeducação.

ResponsabilidadesA palavra “responsabilidade”, de modo geral, indica o

compromisso com algo ou alguém, ou é empregada em relação a algo ou alguém. Trata-se de uma noção que se subentende na relação entre a mãe e o filho, quando ele é ainda sem palavras para formular seu desejo. Pode-se subentender também no pai que assume, junto a mãe de seu filho, o seu lugar e a sua função. Ou ainda, nas formas de relacionamentos que se estabelecem entre os humanos, cujas obrigações sociais ou não, exigem o ser responsável.

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A criança, desde cedo, deve aprender a ter responsabilidade com os deveres escolares. Os pais são responsáveis por proverem o seu sustento e condições que permitam que se desenvolva dentro do que a cultura daquele lugar estabelece. Enfim, essa noção é semeada em todas as comunidades: familiar, social, econômica, política, educacional... Entretanto, não se deve desconsiderar a insistência da repetição de um discurso que revela a prática que o sustenta. Deve-se refletir, portanto, sobre o início de uma prática que pode significar uma mudança nessa cultura, no discurso dos sujeitos que dela fazem parte. O exemplo é a experiência freudiana.

Freud (1980b, p. 100), em outra época, observava sintomas novos e registrava cada experiência bem- ou malsucedida, em detalhes muito claros sobre os sintomas e a história apresentada por seus pacientes. Ignorava o pudor em confessar, se em algum momento contou ao paciente uma mentirinha (no caso de Frau Emmy, em particular, ele o afirma) e com que intuito o fez.

Ao compartilhar as suas experiências e conhecimentos e ao assumir uma posição de não saber, exatamente, para que o paciente o indicasse. Freud situa a psicanálise em um patamar de responsabilização colaborativa por tal descoberta, enquanto método terapêutico. Assim, tanto Breuer (precursor do método catártico) quanto Frau Emmy (a paciente que reivindica a fala e a escuta de Freud), têm cada um a sua cota de responsabilidade no início da experiência analítica. Naquela época, a falta de um saber médico sobre os novos sintomas que se apresentavam no real da clínica demandava do médico a busca de alternativas. Nesta perspectiva, cabe interrogar se os sintomas das psicopatologias sociais da atualidade não impõem tanto ao saber médico, assim como às outras ciências que deles se ocupam o mesmo desafio?

Considerável número de adolescentes busca a satisfação no entorpecimento por drogas que emperram o seu desenvolvimento integral, no uso de arma de fogo, na prática de atos criminosos, inclusive homicídio de pessoas a quem (supostamente; no

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caso de pai, mãe, avó, irmão) deveria amar, no ganho fácil, no “adultecimento” prematuro – entenda-se: viver pela própria conta e risco.

A idéia de intimação singular em prol de uma coletividade situa o conceito de responsabilidade no sentido do modo como cada sujeito responde à falta que deve renunciar. Como afirma Lacan (1998):

É que a uma nova verdade não podemos contentar-nos em dar lugar, porque é de assumir nosso lugar nela que se trata. Ela exige que nos mexamos. Não se pode atingi-la por uma simples habituação. Habituamo-nos com o real. A verdade nós a recalcamos. (LACAN, 1998, p. 524-5)

Situam-se aí, nesse contexto, as máscaras do sintoma (LACAN, 1999, p.330-331) que forçam a emergência da verdade do desejo do sujeito, apresentando a ele o seu próprio enigma. Para Quinet (2000, p. 25) “a resolução de se buscar um analista está vinculada à hipótese de que há um saber em jogo no sintoma ou naquilo de que a pessoa quer se desvencilhar”. O que aponta para um saber sobre o sintoma que é suposto pelo sujeito.

Conforme Alberti (2000) o sintoma é a mais humana tentativa de posicionamento frente ao mal-estar na civilização, ou seja, frente à impossibilidade. Nesta perspectiva, Freud (1980f, p. 265) aponta a eterna luta do homem para organizar os componentes libidinais, adaptá-los constantemente para transformar o mundo conforme seus anseios. De acordo com Freud se trata da eterna luta contra a agressividade e, para ele, tal obstáculo se constitui em grande desvantagem uma vez que a defesa contra ela pode causar tanta infelicidade quanto a própria agressividade, que se sustenta na relação das pulsões com a pulsão de morte. Luta em que Freud espera que o amor, o eterno Eros seja ao final o vitorioso.

Em Freud (1980c), essa ideia surge com o mito do pai totêmico que os filhos mataram. O pai tirânico que reinava como senhor absoluto da horda primitiva, pois só ele tinha o direito

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de possuir todas as mulheres, impedindo aos filhos o mesmo gozo, expulsando-os, segundo Freud, na adolescência. Ao retornarem e cometerem o parricídio tornam-se os responsáveis pelo sentimento filial de culpa, razão do esvaziamento do lugar do pai por um lado e por outro, a sua ocupação por um símbolo: o totem. Surge a lei regida pelo símbolo do pai, que impede de uma vez por todas o gozo com a mãe e as irmãs, assim como o gozo próprio. A lei: não matarás nem cometerás o incesto, inaugura a submissão à lei do pai através de sua representação simbólica, isto é, o totem, que surge como o símbolo primeiro do mundo simbólico representando o pai morto.

O pai morto, então, introduz o símbolo no lugar da falta que a morte impõe. Esse mito, segundo Quinet (2004, p. 113) “faz aparecer o gozo do Pai e seu poder de coação”. Nesse sentido, ele afirma que o parricídio do pai primitivo e o totem que o representa vêm confirmar que esse gozo está barrado para o sujeito.

Se o que primordialmente qualquer civilização exige é a garantia da lei. Todos se tornam igualmente responsáveis por seu cumprimento e se torna inadmissível que seja violada em favor de um indivíduo. Todos estão submetidos à lei na vida em sociedade. Portanto, não se pode discutir esta afirmação freudiana (1980f), pois tendo em vista o desejo e a garantia da lei nada se afeta no que diz respeito ao valor ético da lei. O estatuto legal consiste no objetivo alcançado pela civilização e todos contribuíram com a renúncia pulsional, exceto os incapazes de entrar numa comunidade.

Ao assistir o filme: “O Filho” (Le Fils, 2002), dos irmãos Dardenne (Jean-Pierre e Luc Dardene) se pode observar o dilema de um pai diante da oportunidade de vingar-se do assassino de seu filho: Um adolescente saindo em Liberdade Assistida após cinco anos. Quando a assistente social lhe pergunta se aceitaria mais um jovem aprendiz em sua oficina de carpintaria que parece funcionar no próprio educandário, percebe pelos dados da ficha cadastral de quem se trata. Decide aceitá-lo, não sem

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hesitações. O adolescente não suspeita que seu professor seja o pai de sua vítima. Nas muitas conversas entre eles, o carpinteiro tenta fazê-lo constituir, sutilmente, a cena do crime. O adolescente não parece sentir arrependimento pelo que fez no passado dizendo ter sido punido por isso. Ao final do filme, o professor de carpintaria viaja com ele para uma madeireira distante e o jovem tem a oportunidade de identificar os tipos de madeira, ocasião também em que ele convida o professor para ser também o seu tutor.

Interessante é o momento em que ele se identifica para o adolescente, que ao saber ser ele o pai do menino que ele matara, foge desesperadamente. O carpinteiro o alcança, o imobiliza, chega a colocar as mãos em seu pescoço pronto para estrangulá-lo, tal qual ele o fez com seu filho. Contudo, não consegue fazê-lo. O oficineiro, então, nessa impossibilidade de concretizar o seu plano, introduz a diferença: a castração de seu desejo.

Após esta cena, vemos o adolescente retornar e assumir o trabalho com esse mesmo homem que pouco antes havia tentado matá-lo, mas, que por não conseguir levar a cabo a tentativa, através desse mesmo ato fracassado em suas intenções, lhe transmite um limite interno: a função paterna. O lugar desejado de ser pai (no sentido simbólico) se privilegia e ao sentimento de vingança. Terá o filho (o infrator em processo socioeducativo) se emprestado, na cena como o espelho do outro que ele matara? Interessante é o momento, o qual o adolescente ocupa o seu lugar próximo ao “ideal de pai” que deseja. Afinal, não nos esqueçamos do convite que ele fizera ao professor de carpintaria. Ser o seu Tutor. Termo com o significado daquele que ampara, protege e defende.

O pai simbólico é uma metáfora. Assim garante Lacan em diversos momentos de sua obra; especialmente no Seminário cinco sobre as formações do inconsciente. Portanto, consiste em uma função que exige alguém que a encarne e a transmita. Não necessariamente coincide com o pai de carne e osso.

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Freud (1980d, p. 62) descreve as relações dependentes do eu e destaca “a relação do supereu com as alterações posteriores do eu” que “é aproximadamente semelhante à da fase sexual primária da infância com a vida sexual posterior, após a puberdade. Se o eu se submete ao imperativo categórico do supereu Freud explica que isso ocorre da mesma forma “como a criança esteve um dia sob a compulsão de obedecer aos pais” (Ibid.).

Segundo Žižek (2010, p. 99) o supereu freudiano consiste na agência ética cruel e sádica que nos bombardeia com exigências impossíveis e depois assiste “de camarote”6 nosso fracasso em satisfazê-las.

Conforme Quinet (2004, p. 112) a leitura lacaniana da obra de Freud permitiu a distinção entre o Ideal do eu e o Supereu, cujos termos, segundo ele, ficam muitas vezes confundidos em sua obra. Observa esse equívoco no artigo de Freud (1980d) O ego e o id; o qual, o autor traduz por “O eu e o isso”. Afirma que nesse artigo de Freud, o mesmo já descreve certas tarefas do supereu que dita as regras para o eu “seja assim ou não seja assim”. Nesse sentido, o autor nos esclarece que compete ao supereu a encarnação dos escrúpulos e também é o responsável pelo sentimento de culpa inconsciente.

Assim, a satisfação de nossas necessidades básicas de sobrevivência e de autopreservação não nos é suficiente. O apelo pulsional ecoa dentro de nós a partir de uma demanda. Segundo Lacan, a demanda do Outro materno que é mediada pela dimensão da linguagem. Assim, tudo o que se passa em nós, em que medida pode ser dito?

O fazer com o simbólico faz falar o real do sujeito?Articular o sentido dos discursos que se apresentam entre

os adolescentes que cumprem medida socioeducativa significa tomar em consideração os relacionamentos, que se constroem

6 Acrescentado pelos Autores.

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e constituem por si mesmos ou em conseqüência destes, “territórios” de conflito. Nem sempre perceptíveis ao cotidiano institucional, pois, pela via de Lacan (1998, p.887), se “existe fantasia, é no mais rigoroso sentido da instituição de um real que cobre a verdade.”

Consideremos essa dinâmica de grupo7 realizada com adolescentes: no quadro foram coladas diversas palavras: violência, vida, morte, saúde, doença, fome, etc. Solicitou-se aos mesmos que identificassem um problema na palavra escolhida e procurassem uma gravura nas revistas que eles vissem como a solução daquela palavra que representava o problema. Ao final, quando cada gravura-solução estivesse colada abaixo da palavra-problema, cada um justificaria a escolha feita.

Mediante as soluções concretas óbvias: alimento para a fome, remédio para a doença e assim por diante. Duas gravuras-solução sobressaíram: Um adolescente colou abaixo da palavra violência, a gravura do ator que representa o capitão Nascimento no filme “Tropa de Elite” (2007) empunhando um fuzil em posição de tiro. Ao justificar a sua escolha disse: “Só matando!”8.

Outro adolescente, tendo escolhido a palavra “vida”, colou abaixo a gravura de um cadáver sendo carregado pelos bombeiros (apelidado por eles de rabecão), os quais pareciam estar descendo um beco de uma comunidade. Ao justificar a sua escolha para o grupo disse: “Nada como ver a morte pra a gente lembrar como a vida vale”9 . O que essas frases nos sugerem em termos da responsabilidade do sujeito que fala? O que evidencia o seu discurso? O que move o olhar desses dois adolescentes exatamente para essas cenas, e a expressarem frases portadoras de apelo a algo que barre o insuportável, o impossível de tolerar? 7 O relato dessa dinâmica de grupo integra o capítulo: “O que implica falar”da se-guinte Dissertação: LEITE, Maria Geni Rangel. A responsabilização em xeque: O dis-curso do adolescente em semiliberdade no exercício da fala. Dissertação de Mestrado. Niterói:UFF, 2013.8 As expressões entre aspas se referem às falas de adolescentes no exercício profissio-nal do psicólogo no curso da dinâmica que lhes fora proposta. Não se tratava à época de um projeto de pesquisa.9 Trata-se também, conforme nota anterior, do relato da fala do adolescente sem qual-quer identificação do mesmo.

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“Por que só matando?”, foi perguntado a ele. Então, o adolescente expõe os sentimentos destrutivos que experimenta em relação a injustiça que vê e sofre. O outro adolescente declara que pensou apenas em como na sua idade já tinha visto tanta “gente morrer”. Só restara ele de um grupo de amigos. Teria comparecido ao enterro de todos eles. Então, se calou.

Como cada um responde é de sua responsabilidadeEsse modo singular de responder já concerne ao projeto de

como cada um lida com os impasses da existência. No que as palavras formulam, o Outro do sujeito é um desejo secreto ou um grande sofrimento causado por um pensamento angustiante, talvez o de vir a ser morto como os amigos, embora isso só se possa ler nas entrelinhas de seu dito. Por essa via, podemos afirmar que, de acordo com Lacan (1998, p. 105) “a ação psicanalítica se desenvolve na e pela comunicação verbal, isto é, numa apreensão dialética do sentido. Ela supõe, portanto, um sujeito que se manifeste como tal para um outro.”

Considerações FinaisA psicanálise como responsável por um discurso que se

concentra na linguagem do inconsciente nos faz vislumbrar as possibilidades de se buscar alternativas para o sofrimento humano, mesmo quando o real da clínica se apresenta tão implacável aos denominados “técnicos do saber” pelos novos sintomas contemporâneos dentre os quais é preciso destacar os atos de violência praticados por adolescentes. A adolescência aparece no contexto da hipótese freudiana da horda primitiva em “Totem e tabu”

Na concepção de Freud (1980c) a religião totêmica constituiu o resultado de uma ambivalência primordial de sentimentos para com o pai, considerando a simultaneidade de sentimentos de ódio e amor para com ele. Se o ódio foi satisfeito pelo ato de

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agressão, contudo o amor assume o primeiro plano a partir do remorso pelo ato praticado. Portanto, os filhos instituem o totem em substituição ao pai morto. Este se constitui como uma punição pelo ato de agressão, uma vez queo símbolo impõe restrições destinadas a impedir a repetição do ato. Por isso, Freud cria em sua concepção o supereu pela identificação com o pai e dá a este agente o poder paterno.

Se o sintoma, conforme afirma Alberti (2000) surge como a tentativa de o sujeito posicionar-se, diante da impossibilidade na vida na civilização. “A palavra é uma mensagem para o sujeito cujo sentido se inscreve e se oculta no sintoma” (LEITE, 1999, p.13).

Como foi mencionado anteriormente, a verdade da função paterna está na linguagem. É por isso que no dizer freudiano há uma incorporação de sua voz ditando a lei, ou seja, a voz da consciência. O supereu, como foi denominado. É nesse sentido que não precisa ser exatamente o genitor a comparecer neste lugar. Conforme pudemos observar pela ilustração do filme “O filho” (Le Fils, 2002), o pai introduz a sua função por intermédio da linguagem.

Mesmo que o discurso humano se caracterize pela lacuna, sempre haverá um vazio a solicitar a resposta, a demanda do Outro (a linguagem) que nos constitui e faz parte do nosso eu.

A responsabilização na concepção da psicanálise, portanto, visa atribuir implicação ao sujeito quando este dirige a alguém as suas demandas. Seu discurso reclama, convoca, apela à responsabilização. Assim se vislumbra a responsabilidade do sujeito falante cuja mensagem não se endereça senão a ele próprio, pois como afirma Lacan (1966, p. 873) “Por nossa posição de sujeito, sempre somos responsáveis”.

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REFERÊNCIAS

ALBERTI, S. O discurso do capitalista e o mal-estar na cultura. Berggasse 19: Espaço de psicanálise, 2000. Disponível em0http://www.berggasse19.psc.br/site/wp-content/uploads/2012/07/19133239-Sonia-Alberti-O-Discurso-Do-Capitalist-A-e-o-Mal -Estar-Na-Cultura-1.pdf. Acesso em 20 de novembro de 2013.

FREUD, S.[1910]. Cinco lições de Psicanálise. Vol. XI. Edição Standard das Obras Psicológicas de Freud. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1980a.

FREUD, S. [1893-95]. Estudos sobre histeria. Vol. II. Edição Standard das Obras Psicológicas de Freud. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1980b

FREUD, S. [1913].Totem e Tabu. Vol. XIII. Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud.Rio de Janeiro: Imago Editora, 1980c.

FREUD, S. [1923]. O ego e o Id. Vol. XIX. Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1980d.

FREUD, S. [1927].O futuro de uma ilusão. Vol. XXI. Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1980e.

FREUD, S. [1930]. O mal-estar na civilização. Vol. XXI. Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1980f.

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MANNONI, M. Educação impossível. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1988.

LACAN, J. Escritos [1901-1981]. Trad.Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

LACAN, J. [1957-58] O seminário, livro 5: as formações do inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.

LACAN, J. [1964]. O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

LE FILS (O Filho). Direção de Jean-Pierre Dardenne, Luc Dardenne. Produção de Denis Freyd, Jean-Pierre Dardenne, Luc Dardenne. Roteiro: Jean-Pierre Dardenne, Luc Dardenne. Bélgica/França: Archipel 35, 2002. (103 min.), DVD, color.

LEITE, M. G. R. Ato infracional: convocação à função paterna?Rio de Janeiro: Serviço de Psicanálise em Atenção à Infância (SEPAI), Curso de Especialização Lato Sensu em psicanálise com crianças e adolescentes: Intervenção precoce. Santa Casa de Misericórdia (Hospital São Zacharias), 2011. (monografia)

LEITE, M. G. R. A Responsabilização em xeque: O discurso do adolescente em semiliberdade no exercício da fala. Niterói: Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Universidade Federal Fluminense, 2013. (dissertação de mestrado)

MANNONI, M. Educação impossível. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1988.

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QUINET, A. As 4+1 condições da análise.Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.

QUINET, A. Um olhar a mais: ver e ser visto na psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.

TROPA de Elite. Direção de José Padilha. Produção de José Padilha, Marcos Prado. Roteiro: André Batista, Bráulio Mantovani, José Padilha, Rodrigo Pimentel. Brasil: Zazen Produções, 2007. (115 min.), DVD, color.

ŽIŽEK, S. Como ler Lacan. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.

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“Eles não sabem o que se passa aqui dentro”: problematizando o campo e o fazer da pesquisa com

adolescentes em conflito com a lei.

Andressa Melo Silva 1

Francinne Campelo 2

Raiane Barreto Teixeira3 Thiago Melicio 4

ResumoA presente pesquisa busca refletir acerca do sistema

socioeducativo e da maneira com que a metodologia de pesquisa pode ser empregada neste campo. Para tanto, aborda a análise da implicação, autoridade etnográfica e cartografia, bem como o tema da adolescência e da sistematização de resultados.

Palavras-chaves: Sistema Socioeducativo, Adolescente, Metodologia, Diversidade, Cartografia Psicossocial.

As discussões em torno do contexto socioeducativo, dos

sujeitos nele envolvidos e das práticas por ele atualizadas, trazem o debate de como as lógicas historicamente direcionadas a esse campo transversalizam modos de pesquisa e produção de dados. A presença do outro, principalmente no que tange ao adolescente, e a maneira com a qual é agenciada faz com que este trabalho pontue sobre como as transformações político sociais podem impactar na produção de conhecimento e nas possibilidades de participação deste grupo na definição de temas e criação de pautas.

1 Graduanda em Psicologia, UERJ.2 Graduanda em Psicologia, UERJ.3 Graduanda em Psicologia, UERJ.4 Professor Adjunto, Psicologia, UERJ.

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O surgimento do Código do Menor em 1927, sua modificação em 1979 e a criação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) em 1990, colocam em análise as transformações da concepção de infância e adolescência, bem como das formas de intervenção do Estado. Ao mesmo tempo, do início do século XX aos dias atuais, são colocados em evidência novas emergências e tensionamentos de concepções teórico-metodológicas da pesquisa em ciências humanas. Nesse sentido, se num primeiro momento ocorre a hegemonia das redes de sentido que buscam fragmentar a realidade, abordando cada esfera social separadamente, hoje é possível observar novas práticas que não estão centradas em avaliar, observar e classificar, mas, ao contrário, estão voltadas para a potencialização dos encontros, considerando o sujeito de maneira ativa e produzindo conhecimento COM ele e não SOBRE ele.

Para a apresentação do presente campo problemático torna-se importante destacar que no Brasil as primeiras menções à expressão “menor” estavam presentes no Código Criminal do Império, definindo as penas aplicáveis para casos de cometimento de crime “por menores de idade”. Em texto sobre o tema, Santos (2011) comenta que, na passagem para o século XX, o termo migra do campo jurídico para o social, caracterizando crianças nascidas nas camadas mais baixas da pirâmide social. Assim, ao associar um caráter discriminatório e pejorativo, passa a desempenhar uma estratégia de controle, que liga pobreza e perigo, fazendo do “menor” uma criança “potencialmente perigosa”.

Todavia, se por um lado, o Código de 1927 considerava como “menor” (que deveria passar diretamente pela intervenção e tutela do Estado) apenas os que denominavam como infratores ou abandonados com idade inferior a 18 anos, como relatado no Artigo 1º: “O menor, de um ou outro sexo, abandonado ou delinquente, que tiver menos de 18 annos de idade, será submettido pela autoridade competente ás medidas

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de assistencia e protecção contidas neste Codigo” (sic); por outro lado, o ECA aponta para uma diferença na conceitualização que agora engloba todas as crianças, independente de sua condição socioeconômica, conforme Artigo 2º: “Considera-se criança, para os efeitos desta Lei, a pessoa até doze anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade”. Tal estatuto corroborou para uma sistematização do sistema socioeducativo que proporcionou outros regimes de cumprimento de medida para o ato infracional, sendo agora: advertência; obrigação de reparar o dano; prestação de serviços à comunidade; liberdade assistida; inserção em regime de semiliberdade; internação em estabelecimento educacional.

Nessa perspectiva, procurando fazer eco a essas transformações, a presente pesquisa visa abordar o campo de maneira com que o “outro” não esteja condicionado por representações cristalizadoras e homogêneas. Partindo da experiência compartilhada entre pesquisadores e participantes, a pesquisa tem como objetivo cartografar a produção de modos de ser e estar no mundo, partindo de uma reflexão geral sobre a temática do Sistema Socioeducativo, tendo como analisador encontros junto a adolescentes que se encontram na unidade de internação feminina do Departamento Geral de Ações Socioeducativas do Estado do Rio de Janeiro, Professor Antonio Carlos Gomes da Costa. O trabalho busca a promoção de um espaço coletivo em que as referidas adolescentes possam produzir as demandas dos encontros e realizar as proposições de temas, configurando-se como um campo aberto, tal qual preconizado no 19º artigo da Declaração Universal de Direitos Humanos (UNESCO, 1948/1998, s/p), em que o direito à liberdade de expressão implica na “liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e ideias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras“. Intenta-se um espaço em que seja possível o compartilhamento, conforme apontam Sade, Ferraz e Rocha (2013) ao trazerem o tema da confiança, que derivaria de

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con-fiar (tecer com, fiar com), no sentido de descentralizar a prática de pesquisa para ampliar a potência de processos coletivos na produção de saberes.

Pensando pontos de partida: o ethos do cartógrafo e a análise da implicaçãoComo a pesquisa debruça-se tanto nas falas provenientes

dos encontros, como nos modos e posturas orientadores das produções de pesquisa, cabe apontar que um elemento importante das escolhas teóricas se refere à problematização da neutralidade científica. Busca-se colocar em análise as práticas e os lugares que ocupamos enquanto pesquisadores, valendo-se do conceito de implicação, da Análise institucional, discutido por Lourau (1993) e desenvolvido por Coimbra e Nascimento (2008) na seguinte passagem:

Opondo-se ao intelectual neutro-positivista, a Análise Institucional vai nos falar do intelectual implicado, definido como aquele que analisa as implicações de suas pertenças e referências institucionais, analisando também o lugar que ocupa na divisão social do trabalho na sociedade capitalista, da qual é um legitimador por suas práticas. (COIMBRA, NASCIMENTO, 2008, p.2)

Nesse contexto, a pesquisa aproxima-se da cartografia psicossocial e da concepção de pesquisa-intervenção, segundo a qual “intervenção sempre se realiza por um mergulho na experiência que agencia sujeito e objeto, teoria e prática, num mesmo plano de produção ou de coemergência” (KASTRUP, 2015, p.17). O processo de produção de conhecimento passa, portanto, pela ideia de que toda pesquisa é pesquisa-intervenção e que nossa implicação está na formação de um espaço aberto capaz de promover o encontro de heterogêneos.

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A Cartografia Psicossocial, tal qual pensada por Deleuze e Guattari (1997) e desenvolvida por Rolnik (1989), entre outros, aponta não tanto para uma metodologia enquanto conjunto de procedimentos, mas sim para uma postura epistemológica implicada, que visa “acompanhar processos” de produção de subjetividade (KASTRUP, 2015, p 56). Segundo afirma Tedesco, Sade e Caliman (2013), a pesquisa segundo o modelo cartográfico não diz respeito a uma pragmática, mas a um ethos cartográfico, que se estabelecerá na experiência compartilhada entre pesquisador e participantes por meio da linguagem, produzindo um conhecimento que esteja aberto à indeterminação, até que ele se rompa em um plano comum.

O principal objetivo não se baseia em “coletar” informações referentes às vivências das adolescentes, mas acompanhar as paisagens psicossociais que se formam por meio das falas nos encontros com elas. A atenção é direcionada ao que Tedesco, Sade e Caliman (2013) denominam como experiência vivida e ontológica. Segundo os autores, a experiência vivida refere-se à experiência de vida do próprio sujeito relatada com suas emoções e significações, enquanto a experiência ontológica vai se direcionar ao plano de coemergência dos conteúdos.

Tendo visto os pontos de partida, vale destacar as preparações e objetivos mais específicos nos encontros com as adolescentes

Encontro e pesquisa “com”: traçando planos comunsA revisão bibliográfica do referencial teórico-metodológico

apontou para tentativa de criação de um “plano comum” entre pesquisador e participantes da pesquisa, em que se torne possível vivenciar e descrever um campo composto de heterogeneidades. Segundo Kastrup e Passos (2013) é preciso pensar na pesquisa cartográfica como um duplo movimento, onde ao mesmo tempo em que se acessa o comum também é possível a criação do mesmo pelo processo de conhecimento. Conhecer implica a participação

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no processo de construção de mundo. Não é possível pensar nesse plano comum como algo estático, pois requer movimentos e afetações.

Assim, no exercício de construção de plano comum entre as estudantes de psicologia e as adolescentes do DEGASE, refletiu-se sobre os riscos de aproximação ou distanciamento excessivos entre pesquisadoras e participantes, visto que entre ambos os grupos haviam aquelas que vinham de locais e vivências próximas ou de situações totalmente distintas. Em discussão sobre o tema, Caiafa (2007) aponta que em ambas posições, proximidade e distanciamento, ocorre um processo de perda de força de alteridade. Para a autora, “não é questão de distanciar-se para compreender o outro, nem tampouco de tomar-se por esse outro, mas de ter algo a ver com ele, ‘alguma coisa a agenciar com ele’” (CAIAFA, 2007, p.152-153). Utilizando-se de discussões deleuzianas, Caiafa comenta que esse “algo a ver” poderia ser nomeado como “simpatia”, no sentido de ser um campo de compartilhamento que se estabelece a partir do encontro aberto à diferença, que permitiria agenciar elementos diversos, impedindo um distanciamento hierárquico da relação pesquisador-campo de pesquisa e, ao mesmo tempo, criando aproximação necessária para um afetar o outro.

Assumindo esse compromisso com a multiplicidade do campo, foram revisadas e discutidas estratégias no campo retórico de pesquisa, problematizadas na Antropologia como “autoridades etnográficas” (BRANDÃO, 2003), que se referem à legitimidade e validade atribuída ao texto acadêmico que busca representar um contexto sociocultural específico. O ponto aqui é refletir sobre as maneiras com que o texto acadêmico faz referência ao grupo que está estudando e qual política acaba por legitimar; se é uma política que o coloca na posição de quem supostamente estaria trazendo “verdades sobre” o grupo, ou se refere a políticas em que diferentes visões e problematizações são “produzidas com” o grupo.

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Em discussão acerca das autoridades experiencial, interpretativa, dialógica e polifônica, Brandão (2003) comenta a fecundidade das duas últimas, em função de assumirem, no que tange à legitimação da pesquisa, a constante negociação entre pesquisador e campo. Ressalta-se que mesmo em uma produção polifônica, objetivo deste trabalho, não se quer dizer que as vozes das adolescentes enquanto colaboradoras, e as das graduandas, enquanto autoras do texto acadêmico, não estejam condicionadas a incertezas que permeiam o trabalho de campo, de modo que “o ponto mais importante na autoridade etnográfica polifônica é a aceitação disciplinar de seu próprio não controle dos dados obtidos e também da multisubjetividade envolvida no trabalho de campo e na construção do texto” (BRANDÃO, 2003, p.8-9). No caso da presente pesquisa, há a preocupação com que os encontros com as adolescentes ocorram junto a uma postura aberta e não hierarquizada, em que haja disponibilidade para o diverso. Segundo Caiafa:

A ideia de disponibilidade para qualificar a atitude de campo pode ser retomada: é preciso estar disponível para a exposição à novidade, quer se a encontre muito longe ou na vizinhança. Trata-se de uma atitude que se constrói no trabalho de campo. (CAIAFA, 2007, p. 149)

Todo adolescente é....?: o cuidado com a não generalizaçãoA colocação em prática das discussões acima torna-se um

problematizador permanente. A criação de um plano comum nos encontros do DEGASE e a reflexão sobre a implicação dos envolvidos gerou tal mobilização que desde o início uma pergunta ganhou terreno: afinal, qual a melhor nomenclatura para se referir às participantes da pesquisa? O termo adolescente seria adequado, ou se faz necessário sua discussão? Como as participantes gostariam de ser chamadas?

Atualmente, tem-se que o período da adolescência é carregado de significações que norteiam muitos estudos e novas práticas. Basta se dedicar à revisão bibliográfica do tema para

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perceber alguns dos riscos que são depositados nos adolescentes, acentuando todos eles como próprios à sua “fase”. Para melhor compreensão, reportaremos ao que Foucault (1996, apud COIMBRA et al, 2005) nomeia como sociedade disciplinar. Nela os conhecimentos sucedem aos indivíduos na forma de vigilância constante, no intuito de determinar a forma como devem ou não agir, ou seja, os novos saberes produzidos são contornados sobre a norma, na qual se estabelecem padrões que orientam os pressupostos presentes nas teorias desenvolvimentista que falaremos posteriormente.

Observa-se que, por vezes, trabalhos realizados com adolescentes acabam por generalizar esta fase, acentuando estereótipos que delimitam esse período da vida negativamente. Como apontam Lyra e colegas (2002, p.11), essas delimitações propiciam a construção de expressões como a própria “prevenção da adolescência”, em que a pluralidade é subtraída por uma análise social que homogeneíza o grupo. Assim, procurou-se conversar junto às participantes da pesquisa, adolescentes que estão no DEGASE feminino, a respeito de como gostariam de ser chamadas.

Em encontro realizado em 06 de maio de 2016, C, 15 anos e R, 17 anos, dizem que pra elas o termo que mais adequado seria o de “mulher”, uma vez que se veem como tal pelo fato de terem filhos. Ao serem questionadas como o fato de serem mães influenciava na maneira como se veem e se esta perspectiva aparecia instantaneamente junto à maternidade, R. falou: “Não, naquela época eu tinha dez anos, tive que passar por muita coisa para amadurecer e me tornar mulher”.

Em outro encontro, ocorrido em 20 de maio de 2016, quando questionamos a outras jovens sobre como elas se veem, Y., 17 anos, relatou que “lá fora eu não quero ser chamada de adolescente. Nunca!... Porque isso me faz lembrar do DEGASE e eu não gosto”. Nesse sentido, nota-se o quanto a utilização dos termos pode ser agenciador de elementos heterogêneos, aglutinando em torno de si significados que apontam para diferentes vivências.

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Algo aparentemente do campo da discussão nominal, como pensar entre os termos “meninas, adolescentes, mulheres e outros”, é capaz de agenciar afetos e marcações simbólicas socialmente definidas, como o fato de ter experienciado a maternidade ter levado à autodenominação “mulher” e a vivência no DEGASE trazer a ideia de “adolescente” enquanto memória da privação de liberdade. Nesse sentido, no mesmo encontro, Y. complementa dizendo preferir ser chamada de “menina”, pela maior atenção ao gênero e seus efeitos: “Adolescente é menino ou menina? Quando fala menina, já se sabe que é mulher”. E continua: “Adoro quando me chama de garotinha, porque meu pai chamava assim. Me faz lembrar que na chácara da minha avó tinha um balanço e meu pai colocou o nome do balanço de garotinha”.

Coimbra, Bocco e Nascimento (2005) nos apontam a importância de discutir a noção de adolescência uma vez que ela está atrelada à lógica desenvolvimentista (a qual tem como maior pressuposto o aprimoramento racional a partir das etapas de desenvolvimento) e é vista como obrigatória e consequentemente similar a todos. Tal lógica imputa um padrão de características que faz a diferenciação do normal e anormal na adolescência, e passa a constituir uma “identidade adolescente”. Assim, direcionam à crítica de Guattari e Rolnik (1986, p.68-69) em que observam que: “a identidade é aquilo que faz passar a singularidade de diferentes maneiras de existir por um só e mesmo quadro de referência identificável”.

Na lógica desenvolvimentista, existe o jeito “certo” de ser e de existir, limitando um território específico ao adolescente. Contudo, apesar das forças homogeneizantes dificultarem movimentos, elas não são intransponíveis. Há sempre espaços para linhas de fuga, que por sua vez produzem uma ruptura na linha de formas dominantes: “nas linhas de fuga, só pode haver uma coisa, a experimentação-vida. Nunca se sabe de antemão, pois já não se tem nem futuro nem passado” (DELEUZE, PARNET, 1998, p. 36).

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Organizando a diversidade: apontamentos iniciais de cartografias e composições rizomáticas Com a emergência das falas das adolescentes, nos

encontros semanais realizados no DEGASE feminino do Rio de Janeiro, criou-se a necessidade de pensar em como sistematizar as informações que elas compartilham conosco. A organização da pesquisa, dentro da cartografia, tem demandado uma análise que abarque as diversas falas, de forma a se criar um campo de investigação que seja capaz de fazer circular reflexões sobre o contexto sem, porém, delimitá-lo em uma representação fechada. Assim, junto aos diários de campo produzidos em cada visita à unidade, começou-se a trabalhar com a concepção de rizomas.

A ideia de rizoma, proveniente da botânica (caule, em forma de raiz, com crescimento polimorfo), foi subvertida por Deleuze e Guattari (1997) e posto à luz da filosofia da diferença. Nessa ótica, os rizomas seriam linhas que se desdobram, se conectam, se desenvolvem e se multiplicam. Essas linhas não se fecham sobre si, estando abertas a experimentações, ou seja, não se encaixam em estruturas, nem seguem uma linearidade.

Assim, buscou-se nesta pesquisa trabalhar com rizomas ou composições rizomáticas enquanto um campo de conexão das falas e vivências provenientes dos encontros. Tais campos permitiriam o agenciamento dos enunciados de forma que as principais temáticas emergentes pudessem ser interligadas entre si, conforme lógica das falas ou das análises da pesquisa. Para tanto, foram levantados marcadores sociais, que denominamos de dispositivos, que nos pareciam ser importantes elementos de agenciamento dos modos de subjetivação. Os dispositivos são criados de acordo com a proporção de falas acerca de um tema/vivência e, principalmente, da forma com que cria uma densidade das falas em torno de si.

De certa maneira, em uma perspectiva ainda em formação, esses dispositivos seriam disparadores que se sobressaem provisoriamente nas linhas de produção de subjetividade.

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Como exemplos de dispositivos poderíamos apontar: (i) família e as reflexões provenientes da culpabilização ou não pelo ato infracional e/ou do aprofundamento da sensação de privação de liberdade; (ii) participação no tráfico de drogas e a maneira com que isso agencia um ethos específico, regulando as decisões cotidianas; (iii) a vida no DEGASE e o quanto a rotina intramuros possibilitam uma vivência sexual diferenciada das vivências anteriores à institucionalização; etc. Desse modo, cada dispositivo poderia gerar linhas de produção de subjetividade que poderiam, a todo instante, criar linhas de conexão com outros dispositivos, ou seguir em uma direção específica, que não gera repetição. Essas linhas foram nomeadas como ramificações. Por exemplo, dentro do dispositivo DEGASE, encontram-se ramificações que abordam a relação com a instituição, com os agentes, com as internas, a rotina, violência, entre outros.

O processo de levantamento e identificação dos dispositivos é constante, estando aberto a reconfigurações. A emergência dos mesmos, e de suas ramificações, ocorrem a partir dos encontros e discussões ocorridos no DEGASE. Ao falarmos da rotina das adolescentes no âmbito da internação, apareceram falas como:

Tem várias coisas pra gente fazer aqui, pra ficar fora do alojamento, tia. Tem biscuit, tem oficina de artesanato... Eu gostava da aula de Ioga, era um guarda que dava. (T., 14 anos, 26/02/16).

Nós ficamos muito presas, a rotina é muito chata. (S., 16 anos, 27/11/15).

Todavia, ao aprofundar mais o tema em questão, observou-se que as falas se direcionaram por outra linha de desenvolvimento. Ao passo que a experiência no DEGASE tornou-se um disparador em destaque, um dispositivo, diferentes ramificações tornaram-se presentes, como os efeitos das visitas de familiares na experiência de solidão vivenciada na instituição.

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Cabe ressaltar o caráter mutável e transitório dos dispositivos/ramificações e das falas. A nomenclatura de uma composição rizomática, assim como da ramificação, pode mudar, ser excluída e/ou associada a outro dispositivo/ramificação. Com o andamento da pesquisa é possível também que se criem novos dispositivos. Desse modo, destaca-se que o processo cartográfico é pensado e feito coletivamente, enquanto grupo, de forma dinâmica, onde as discordâncias e concordância são registradas a fim de serem utilizadas como material de análise.

Considerações finaisO presente trabalho procurou abordar e refletir, mesmo

que de maneira inicial, tanto sobre o contexto do sistema socioeducativo, como sobre o modo com que a pesquisa nessa área pode ser realizada. Nesse sentido, o intuito foi o de problematizar a neutralidade acadêmica por meio da análise da implicação e da postura da cartografia psicossocial. Ao passo que esses referenciais foram trazidos, a temática em torno da homogeneização e generalização da adolescência ganhou terreno, indicando o debate que perpassa toda a produção aqui mencionada: como fazer com que as vicissitudes, especificidades e potências do campo não sejam silenciadas por uma retórica acadêmica comumente legitimada na esfera social?

Longe de querer esgotar a discussão, a pesquisa procurou trazer e compartilhar justamente os seus pontos de inquietação, como no último tópico em que indica a sistematização do material produzido em torno de dispositivos e ramificações rizomáticas. Ciente dos limites e alcances de sua empreitada, este trabalho procura aqui trazer à tona os seus processos constituintes para que, por meio de sua exposição, possa se enriquecer com a discussão decorrente.

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Por fim, mais que um apontamento conclusivo, a pesquisa procura trazer e compartilhar justamente os seus pontos de inquietação, como os desafios em se produzir uma escrita acadêmica que não subtraia as riquezas e singularidades do campo. Visa, assim, fazer eco às transformações sociais que colocam em xeque as lógicas de esquadrinhamento e classificação reducionista e cristalizadora, que historicamente demandam intervenções de caráter individualizante e de culpabilização da diferença. Busca, portanto, fomentar práticas de produção coletiva, trazendo as adolescentes dentro de sua pluralidade e diversidade.

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A representação social do psicólogo do DEGASE e a importância da fala e da escuta durante o acompanhamento a partir de um caso de

cumprimento de liberdade: o caso Luna

Letícia Montes Penha1

ResumoO presente artigo apresenta alguns dos dados obtidos em

pesquisa realizada junto a adolescentes em cumprimento de Medidas Socioeducativas no DEGASE2 , que teve como objetivo conhecer as representações sociais do psicólogo que atua no referido órgão, relacionando tais subsídios a um caso de execução da medida de Semiliberdade e enfatizando a importância da fala e da escuta na ação do profissional de psicologia na socioeducação.

Palavras-chaves: Ajuda. Adolescente. Fala. Psicólogo. Socioeducação.

Partindo da exposição de um caso de uma adolescente do sexo feminino durante o cumprimento de MSE3 de Semiliberdade, o caso Luna, o artigo visa ilustrar a ideia de que o psicólogo que atua na socioeducação é de ajuda aos adolescentes, conforme os elementos descobertos durante a pesquisa. Participaram da referida investigação, adolescentes em Internação Provisória e Internação em unidade do DEGASE em Belford Roxo e em Semiliberdade no CRIAAD4 Ricardo de Albuquerque, unidade que, no momento da pesquisa, era responsável pela execução da medida em regime semiaberto

1 Mestre em Psicologia UFRRJ, Psicóloga no DEGASE2 DEGASE Departamento Geral de Ações Socioeducativas3 Medida Socioeducativa4 Centro de Recursos Integrados ao Adolescente

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aplicada a adolescentes do sexo feminino. O estudo contou com a participação de 102 (cento e dois) adolescentes, sendo relevante ressaltar que nenhum deles se recusou a contribuir.

O estudo de campo acerca das representações dos psicólogos, além de mostrar que os adolescentes entendem que o psicólogo que trabalha no DEGASE é um profissional que representa ajuda, possibilitou também a descoberta de que para os sujeitos participantes do estudo, a fala e a escuta são fundamentais no processo socioeducativo. Novamente, o caso Luna reitera e fortalece estes dados que, além de outras coisas, demonstram conformidade com os marcos legais que regem a socioeducação e o fazer do psicólogo neste campo de ação, assim como com os embasamentos teóricos psicanalíticos.

O caso Luna5

Luna foi encaminhada ao CRIAAD para o cumprimento de medida socioeducativa de semiliberdade e, no momento da execução da medida, seus pais já estavam separados há um tempo considerável. Após a separação, os cuidados de Luna e de seu irmão mais velho ficaram inicialmente a cargo da mãe. Posteriormente, os cuidados dos filhos se alternavam em períodos em companhia materna e paterna, sendo que a maior parte do convívio aconteceu em junto á mãe.

Durante os atendimentos realizados pela equipe e conforme anotações feitas no PAS6 da adolescente, o pai de Luna sempre pontuava a falta de juízo da ex-companheira, que segundo ele, “vivia em bagunças” e criava os filhos desta maneira. Usava o dinheiro da pensão que ele dava para o sustento dos filhos

5 Adolescente atendida no ano de 2015 no CRIAAD Ricardo de Albuquerque.6 PAS – Prontuário de Atendimento Socioeducativo. Prontuário onde constam os re-gistros dos atendimentos, encaminhamentos e documentos feitos pelos psicólogos, as-sistentes sociais, pedagogos, médicos e enfermeiros, dentre outros profissionais, assim como informações processuais jurídicas, dados e documentações pessoais dos adoles-centes e de sua família.

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irresponsavelmente, bebendo e indo a festas na comunidade onde residiam e, diante desta situação, os filhos vivenciavam privações financeiras constantes. O pai de Luna, Sr. N, resolveu ele mesmo comprar alimentos e comprar roupas para os filhos, não mais contribuindo com dinheiro. As considerações do pai eram escutadas por Luna, que o fazia calada, vez por outra dando sorrisinhos e confirmando os relatos de seu pai quando este o pedia.

Segundo o Sr. N, a separação do casal aconteceu porque “não combinavam” e “ela é maluca e irresponsável”. Havia também a desconfiança de que a ex o havia traído e, no que se refere à paternidade de Luna, a mãe dizia que ele não era o pai dela. Diante disso, Sr. N não reconheceu legalmente a paternidade da adolescente, apesar de afirmar que sabia que ela era sua filha, pois se pareciam fisicamente, tinham pensamentos parecidos e que a ex mulher quando disse o contrário, era para irritá-lo.

Sr. N. posicionou-se como o responsável legal e de referência de Luna junto à justiça e ao CRIAAD. Era ele que comparecia aos encontros com os responsáveis, aos acompanhamentos individuais junto à equipe, o familiar que buscava e levava Luna para os finais de semana em família, com quem a equipe fazia contatos telefônicos. Sempre se apresentando como pai da adolescente. Sua mãe só compareceu uma vez ao CRIAAD para levar a filha para o fim de semana em família, do qual Luna não retornou para continuar a cumprir a medida.

O pai avaliava que as orientações fornecidas pela mãe aos filhos, não eram adequadas tanto quanto a conduta da mesma não era. A mãe não exercia nenhuma atividade laborativa, usava álcool e outras drogas, assim como o irmão de Luna. A adolescente usava eventualmente maconha.

Aos 15 anos, a adolescente teve um filho. Quando a criança estava com aproximadamente um ano e meio, adoeceu e, não conseguindo se recuperar, faleceu. Segundo a adolescente, o filho não foi bem atendido nas unidades de saúde em que

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ela procurou ajuda. Não houve um diagnóstico do que ele realmente tinha e a gravidade do estado de saúde do mesmo não foi percebida. Foi liberada com o filho para casa e a doença se agravou. Quando novamente retornou, já não havia muito que fazer. Relatava com constância o quanto esperou pelo atendimento do filho, o acolhimento médico pouco minucioso e sua atitude de esperar calada. Não ter sido atendido e tratado adequadamente quando ela buscou ajuda médica, segundo ela, foi o motivo da perda de seu filho. Culpava os médicos que o atenderam e também a si mesma, pois deveria ter “gritado” e feito um “escândalo” para que a escutassem e para que seu filho tivesse mais cuidados durante os atendimentos.

Luna considerava-se explosiva. Falava que se percebesse que estava sendo discriminada por sua cor ou condição social, brigava e lutava por seus direitos, fazia escândalo. Aos poucos, descobre que o início desta postura se deu após a perda do seu filho, que segundo ela não teria acontecido se tivesse adotado uma posição menos passiva e gritado, reclamado por um atendimento melhor para o bebê. Na ocasião em que o filho adoeceu e veio a falecer, Luna e seu irmão estavam residindo com a mãe. Seu pai dizia que teria tentado impedir que ela e o bebê retornassem à casa materna, pois inicialmente ela, o bebê e o namorado residiam com ele, mas ele impunha regras no convívio familiar, que Luna não queria atender, preferindo a moradia da mãe, que segundo ele, dava liberdade demais e não colocava limites em Luna.

Assim como no momento do falecimento de seu filho, na ocasião em que se envolve em situação de risco que culmina com o cometimento do ato infracional, a adolescente residia com a mãe e o irmão. Luna assassinou um homem mais velho, com quem às vezes se relacionava sexualmente em troca de dinheiro e presentes. Segundo ela, sua mãe foi quem os apresentou e intermediou a relação dois, incentivando Luna a se envolver com ele, que era conhecido dela.

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Como já pontuado, a adolescente considerava-se muito explosiva e acreditava que esta era a maneira de alcançar seus objetivos e reivindicar e lutar por seus direitos. Segundo ela, o cometimento do ato infracional tinha o intuito de defender sua honra, pois a vítima estava denegrindo a sua imagem, espalhando pela comunidade em que viviam as coisas que faziam na intimidade, chamando-a de vagabunda, vadia e prostituta. Ao tomar conhecimento do que o homem estava dizendo a seu respeito, e acreditando não ter ele o direito de fazer isso, sentiu-se desrespeitada e aborrecida e foi procurá-lo, orientada por sua mãe a fazê-lo e a dizer de seu descontentamento com o mesmo. Queria que ele se desculpasse, mas durante o encontro, ao contrário do que ela desejava, ele repetia o que havia dito na comunidade, reafirmando que a considerava uma “vadia”. Tomada pela raiva, Luna pega uma faca e, durante o conflito, o fere. Acreditou que, por ter desferido um só golpe e por ter saído do local deixando-o de pé, não o havia ferido gravemente. No entanto, o ferimento foi fatal e mesmo sendo socorrido e levado ao hospital, ele não resistiu e faleceu.

Após o ocorrido, Luna teve que deixar a comunidade, já que havia o risco de ser morta pelo cometimento de ato infracional em local liderado pelo narcotráfico. A mãe e irmão também tiveram que deixar o local pelos mesmos motivos. Luna foi para a casa do pai que, ao saber do acontecido, a repreendeu e afirmou que ela deveria se responsabilizar por seus atos, apresentando-a à delegacia. Diante do delegado comprometeu-se a ficar com ela sob seus cuidados e a apresentar sempre que solicitado. E assim, Luna ficou com o pai até a decisão judicial de que cumprisse a MSE de Semiliberdade, e sua residência foi o local de referência familiar durante todo o período em que a adolescente esteve no CRIAAD.

Sempre disponível aos atendimentos, Luna se mostrava falante, pontuando sempre seu comportamento explosivo e sua enorme inclinação para lutar por seus direitos e defender suas ideias. Aos poucos, conectou o início desta característica à culpa

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sentida por não insistir em um atendimento mais cuidadoso para seu filho. Além de explosiva, Luna era questionadora. Questionava as regras da unidade e as decisões tomadas pelo grupo de adolescentes.

Apresentava-se, por vezes, queixosa de que era discriminada por outras adolescentes: tinham cabelo louro e/ou liso, possuíam condições financeiras melhores que a sua e se achavam superiores por isso. Seu comportamento diante de situações em que se sentia desmerecida era tempestuoso, sendo necessário muito trabalho da equipe para contê-la, já que tendiam a culminar com violência verbal e ameaças proferidas enquanto andava de um lado para o outro no pátio da instituição, seguidas de cenas choro. “Parece uma louca”, diziam. Com o tempo, ao se perceber prestes a “estourar”, Luna pedia para ser ouvida. Segundo ela, falar a ajudava a aliviar suas angústias. Principalmente as advindas da perda do filho e da culpa de não o ter defendido.

Outra questão que se apresentava como fonte de sofrimento para a adolescente era o fato de não possuir o nome de seu pai em seu registro de nascimento, circunstância que permaneceu até a saída de Luna da unidade, pois, apesar de se comprometer a registrar a filha, por diferentes motivos, não o fez. A adolescente possuía planos e, apesar da pouca escolaridade, sonhava em ser advogada e lutar pelos direitos das pessoas, assim como inserir-se no mercado de trabalho, ou projeto em que pudesse receber alguma ajuda financeira.

Em atendimentos, falava das discriminações que algumas pessoas sofriam na vida por causa da aparência, do sexo, da cor da pele, assim como por suas vestimentas, e refletia acerca de sua postura, por vezes agressiva e violenta, diante de frustrações e de conflitos, e das possíveis consequências da mesma no ambiente de trabalho. Uma das preocupações de Luna era de como compraria novas roupas para trabalhar, pois sabia que as suas eram curtas, justas e decotadas demais.

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O pai sempre reclamava e apesar dela gostar de andar assim, sabia que no ambiente de trabalho precisaria usar outro estilo de vestimentas.

Durante um atendimento em que falava sobre estes assuntos, sua mãe comparece pela primeira vez ao CRIAAD. Foi para buscar a filha para o fim de semana em família. O pai, desgastado, decidiu que não ia mais responsabilizar-se pela filha aos finais de semana, já que ela não atendia suas orientações e passou a frequentar bailes e bares, fazendo uso de álcool e outras drogas em companhia materna. Quando sua mãe chegou para levá-la, Luna ficou bastante constrangida com as roupas que ela usava e reclamou. Orientou que a mãe se sentasse direito, pois sua saia estava muito curta e apertada. A mãe riu de Luna, fazendo pouco caso do que a filha dizia. A adolescente se calou a partir de então, baixou a cabeça e visivelmente constrangida, não participou mais do atendimento e ficou somente ouvindo a sua mãe. Levada pela mesma para o fim de semana, não mais retornou para cumprir a medida a ela aplicada. Alguns meses depois foi novamente apresentada pelo pai, quem novamente se responsabilizou por acompanhar Luna no cumprimento da medida socioeducativa a ela aplicada.

As representações sociais do psicólogo do DEGASE, suas relações com o caso Luna e a importância da fala e da escuta no processo socioeducativoRepresentações sociais são conhecimentos que circulam

socialmente e que surgem da necessidade de compreensão de conceitos, situações, ou fenômenos desconhecidos por determinado grupo de pessoas, mas que fazem parte do cotidiano das mesmas. São conhecimentos fundamentais para que determinada sociedade se situe diante de determinadas situações, tomando decisões e fazendo escolhas.

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As representações sociais podem ser compreendidas como:

Um conjunto de conceitos, proposições e explicações originadas da vida cotidiana no curso de comunicações interpessoais. Elas são o equivalente, em nossa sociedade, dos mitos e sistema de crenças das sociedades tradicionais; podem também ser vistas como a versão contemporânea do senso comum. (MOSCOVICI, 1981 apud VALA; JORGE, 2000, p. 458).

Assim como Luna verbalizava que o atendimento da psicóloga a ajudava, os resultados da pesquisa realizada junto a adolescentes em cumprimento de Medidas Socioeducativas no DEGASE, a fim de conhecer as representações sociais do Psicólogo da referida instituição, também apontam para tal entendimento acerca do profissional em questão. Durante a pesquisa, os adolescentes foram convidados a responderem um questionário contendo duas tarefas de evocação livre, uma delas com o termo indutor PSICÓLOGO DO DEGASE. Após as evocações, os adolescentes responderam ainda a três perguntas abertas, também relacionadas ao fazer do psicólogo no DEGASE.

A análise das evocações livres obtidas durante a coleta de dados, mostra resultados em que os elementos ajuda, atendimento, bom, conversar e o nome do profissional (psicólogo que o acompanha na instituição), aparecem como principais integrantes das representações dos adolescentes sobre os Psicólogos. Porém, o elemento com o maior número de evocações e o mais prontamente dito pelos adolescentes ao ouvirem a expressão “psicólogo do DEGASE” é ajuda.

A palavra “ajuda” possui como alguns sinônimos: “1 Ação ou efeito de ajudar. 2 Auxílio, assistência, socorro”7. Sendo assim, é cabível a interpretação de que o fato do referido elemento ser o mais evocado significa que há um entendimento de que o psicólogo do DEGASE é de auxílio durante o período de permanência do adolescente no DEGASE.

7 http://michaelis.uol.com.br, acesso em 09 julho de 2016

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O elemento ajuda é seguido por atendimento no que tange à prontidão que foram evocados, o que sugere uma percepção de psicólogo como um profissional que atende, o que demonstra um saber em consonância com a literatura legal que no que diz respeito às dimensões básicas do atendimento socioeducativo e especificamente ao acompanhamento técnico ensina que:

Os programas de atendimento socioeducativo deverão facilitar o acesso e oferecer – assessorados ou dirigidos pelo corpo técnico – atendimento psicossocial individual e com frequência regular, atendimento grupal, atendimento familiar, atividades de restabelecimento e manutenção dos vínculos familiares, acesso à assistência jurídica ao adolescente e sua família dentro do Sistema de Garantia de Direitos e acompanhamento opcional para egressos da internação (SINASE, 2010, p.53).

O outro elemento integrante do núcleo central das representações acerca do psicólogo do DEGASE junto aos adolescentes é “bom”. É a segunda expressão mais evocada. No entanto, a palavra “atendimento”, apesar de ter um número menor de evocações, foi mais prontamente dito pelos sujeitos entrevistados do que o elemento “bom”.

Na presente pesquisa, a expressão “ajuda” é seguida pelas expressões “atendimento”, “bom”, “conversar” e o nome do profissional (o nome próprio da(o) psicóloga(o) que atende o entrevistado), no que se refere à prontidão da evocação. Diante de tais dados, é possível transformar estas evocações em uma frase: “ajuda através do bom atendimento, onde converso com o profissional tal”.

A evocação da palavra “conversar” e o nome do profissional indicam a compreensão de que a ajuda através dos atendimentos tem como viés a conversa com um profissional específico, que é reconhecido pelo adolescente, pelo nome. A evocação do nome próprio do psicólogo que o acompanha no DEGASE sugere ainda, a existência de uma ligação de trabalho entre adolescentes e profissionais, sinalizando a importância da manutenção desta vinculação para que a ajuda aconteça. A este

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respeito, no que se tange a composição do quadro de pessoal em cada modalidade de atendimento socioeducativo, o SINASE assinala a relevância da consolidação do vínculo e que para que o mesmo ocorra, se faz necessário o acompanhamento regular:

Para a composição do quadro de pessoal do atendimento socioeducativo nas entidades e/ou programas deve-se considerar que a relação educativa pressupõe o estabelecimento de vínculo, que por sua vez depende do grau de conhecimento do adolescente. Portanto, é necessário que o profissional tenha tempo para prestar atenção no adolescente e que ele tenha um grupo reduzido destes sob sua responsabilidade (SINASE, 2010, p.43).

Algumas pesquisas acerca da Representação Social do psicólogo, também apontam para o entendimento de que o psicólogo é um profissional que ajuda. Dentre elas, as realizadas por Lahm e Boeckel (2008), e por Sobral e Lima (2013), que em suas averiguações se depararam com “ajuda” integrada ao núcleo central das representações sociais acerca do psicólogo. Cenci (2006) cita as investigações de Sarriera e Ribeiro feitas em 1997, em que já que sinalizam o entendimento do psicólogo como um profissional que auxilia,

Na pesquisa realizada por Sarriera e Ribeiro (1997), o psicólogo é percebido como um solucionador de problemas individuais, tanto de ordem interna (psíquica) quanto externa (relações). Ele é procurado pelas pessoas entrevistadas para que “ajude, auxilie, oriente, analise, aconselhe, interprete” (p. 69). O trabalho deste profissional é descrito como aquele que ajuda as pessoas e orienta o comportamento humano. Ainda, segundo os mesmos autores, o psicólogo é considerado um profissional muito importante, necessário e indispensável no âmbito da saúde. (CENCI, 2006, p.45).

Importa salientar que, mesmo não fazendo parte do grupo primeiramente evocado que integra o centro das representações acerca do Psicólogo do DEGASE, o elemento que estrutura o segundo quadrante é “alívio”. Apesar de único, este componente carrega em si a capacidade de fortalecer e empoderar

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consideravelmente os integrantes do núcleo central. A ajuda através de conversas com um profissional, reconhecido pelo nome, e com o qual os sujeitos estabelecem um vínculo, é entendido como uma possibilidade de ficar bem e de aliviar as possíveis angústias inerentes da privação total ou parcial da liberdade.

A compreensão de que o Psicólogo do DEGASE ajuda a tranquilizar, a acalmar e aliviar, se verifica não somente na apreciação das evocações, mas também na análise de conteúdo das respostas obtidas através das perguntas abertas feitas aos adolescentes. De acordo com as respostas fornecidas por adolescentes do sexo feminino que cumpriam semiliberdade, a ajuda recebida vem da possibilidade de se expressar, de aliviar através da fala suas angústias: “Tem um papel muito importante, faz muita diferença. Quando estou nervosa eu converso com a psicóloga e ela me dá vários conselhos bons e me acalma”, “Tira um pouco do seu peso, tira seus problemas”. E ainda: “Fico mais calma quando converso com eles”, “Ajuda a manter o psicológico centrado”8

Na internação, onde a pesquisa foi realizada junto a adolescentes do sexo masculino, surgiram respostas tais como: “Ajuda o menino a ficar tranquilo aqui dentro, para ele sair mais rápido. Ajuda se não tiver se sentindo muito bem”, “Ajuda o próximo a organizar suas ideias, acalma muito. Dependendo de uma atitude que a pessoa quer tomar, a psicóloga acalma ela”, “Ajuda a ficar tranquilo”, “Acalma a gente”, “Nos faz por pra fora tudo o que está guardado, nos ajuda a trabalhar com a mente”9 .

No caso apresentado, Luna demonstrou a necessidade de ser ouvida durante os atendimentos e em sua demanda contínua para que os mesmos acontecessem, e que estes, de acordo com ela, a deixavam “mais calma, mais tranquila”. Durante os mesmos, podia, dentre outras coisas, falar de sua enorme tristeza por ter perdido seu filho e da culpa que sentia diante de tal perda, pois 8 Respostas dos adolescentes em cumprimento de semiliberdade, quando pergunta-das sobre o que faz o psicólogo do DEGASE.9 Respostas surgidas na internação, dadas pelos adolescentes quando perguntados sobre o que faz o psicólogo do DEGASE.

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acreditava que poderia ter brigado para que o mesmo tivesse sido melhor socorrido. Durante os atendimentos, esvaziava a sua raiva e dava sentido a ela através da fala.

De acordo com Quinnet (2000), o que “caracteriza a demanda não é apenas a relação do sujeito com o outro sujeito, mas o fato de que essa relação se dá por intermédio da linguagem através do sistema de significantes. (...) toda fala é uma demanda” (QUINNET, 2000, p.89). A fala de Luna era demanda de sentido, de significado e, quando falava, se sentia ajudada, pois “não há fala sem resposta, mesmo que depare apenas com o silêncio, desde que ela tenha um ouvinte” (LACAN, 1998, p.249). “Psicólogo bom é aquele que ouve mais e fala menos”10 , ensinou um dos adolescentes participantes da pesquisa.

ConclusãoAssim como Lacan destaca a importância de um ouvinte,

os adolescentes participantes da pesquisa, com suas ideias a respeito do trabalho do Psicólogo do DEGASE e Luna, fortalecem o entendimento de que a ajuda pelo atendimento deve primar pela escuta, pois ser ouvido alivia e fornece importantes saberes referentes aos adolescentes; saberes estes que deverão, dentre outras coisas, subsidiar a elaboração dos Pareceres Psicológicos e Planos Individuais de Atendimento, sendo uma das atribuições do Psicólogo do DEGASE, como abaliza a literatura legal.

Os dados da pesquisa e o caso Luna indicam ainda que há um entendimento dos adolescentes de que, no cotidiano socioeducativo, o alívio das angústias através dos atendimentos, auxilia no cumprimento da medida socioeducativa: “Ajuda o próximo a organizar suas ideias, acalma muito. Dependendo de uma atitude que a pessoa quer tomar, a psicóloga acalma ela”11, revela um adolescente em sua resposta.

10 Resposta fornecida por um adolescente que se encontrava em internação provisória no momento da entrevista e elencada no subtópico nove. 11 Resposta surgida na internação, quando perguntado sobre o que faz o psicólogo do DEGASE.

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Concluo o presente trabalho assinalando que, diante da realidade socioeducativa do Rio de Janeiro, na vivência da superlotação de suas unidades (conforme matéria de 05 de agosto de 2016, publicada no Extra Notícias12 e o artigo de Uchoas, de 31 de julho de 2016, no Le Monde Diplomatique Brasil13 ), a possibilidade de que o trabalho do psicólogo possa se concretizar como “de ajuda” se esvai diante da dificuldade de escutar os adolescentes periodicamente, reconhecer cada um pelo nome e ser reconhecido pelo seu, oferecendo um espaço que atenda a demanda de falar e ser ouvido, dando sentido a sua história, a sua trajetória de vida e em vida.

12 http://glo.bo/2aZ0QLw, acesso em 05 ago.de agosto de 201613 Uchoas, L. Superlotado e desumano, 2016.

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O que eles falam sobre o jovem não é sério? Mídia, Violência e Direitos Humanos

Maira Bruna Monteiro Santana1 Ingrid Monteiro Siss Braga2

Loise Lorena do Nascimento Santos3 Thiago Melicio4

ResumoEste estudo apresenta uma análise qualitativa das notícias

de três portais online, onde pesquisamos termos como “menor”, “adolescente”, “maioridade penal”, entre outros. O trabalho, tendo a cartografia como método, procura problematizar processos de alteridade por meio de articulações entre as formas de agenciamento da mídia e as falas de adolescentes que estão na unidade feminina do DEGASE-RJ.

Palavras-Chave: Sistema Socioeducativo, Mídia, Alteridade, Subjetividade.

Introdução Estamos informados! E parece não haver muitos meios de

fugir dessa condição, pois a todo instante uma nova informação chega até nós. Ao que pese a reflexão sobre o que representa o estado de estar ou não informado e o risco de totalização reducionista que a expressão pode trazer, observa-se, por outro lado, justamente o constante fluxo informativo que emerge e circula junto às vivências contemporâneas e que impede

1 Graduanda em Psicologia,UERJ2 Graduanda em Psicologia,UERJ3 Graduanda em Psicologia,UERJ4 Professor Adjunto, Psicologia, UERJ

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que reflexões como essas sejam realizadas. Diferentemente do tempo em que o sujeito precisava “buscar informação”, atualmente ocorre o bombardeamento das mesmas, que chegam através de notificações, mensagens, notícias e emails, entre outras infinidades de recursos midiáticos. Acostumamos-nos a essa relação acelerada e instantânea, fazendo com que, em uma progressiva naturalização desse processo informativo, precisemos cada vez mais estarmos cientes dos trending topics de cada dia. É amplamente compartilhada a necessidade de atender todas as vibrações e toques que nossos aparelhos celulares emitem. Há um mundo acontecendo e sendo atualizado, que gera a urgência de não se perder nenhuma dessas atualizações. Basta realizar alguns movimentos simples e a informação está ali, atualizando-nos sobre o mundo, revelando seus prazeres e seus perigos.

Todavia, enquanto um trabalho que, aqui, pretende problematizar maneiras com que grandes portais de notícias no Brasil, em recortes específicos, abordaram casos em que adolescentes em conflito com a lei figuraram como protagonistas, alguns questionamentos se tornam presentes: qual ou quais entendimentos e informações de mundo estão sendo atualizados? O constante bombardeamento de informações tem produzido um cenário de diversidade e pluralidade de concepções ou tem alavancado uniformizações de opinião em larga escala? Como a informação instantânea se articula à proximidade e ao afastamento de outrem? Quais implicações esses processos podem ter no debate sobre a juventude, desigualdade social e as políticas de socioeducação?

Assim, a discussão aponta, de maneira embrionária, à alteridade e suas formas de emergência, bem como às suas mediações (do encontro com outrem), ora no que tange à divulgação difusa, descentrada e isolada da informação, presentes na sociedade contemporânea; ora na maneira com que a informação organiza e (re)apresenta grupos sociais específicos, em especial os de adolescentes em conflito com

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a lei. Não se intenta uma revisão extensiva do tema, mas sim colocações que lançam luz à produção de uma alteridade, por um lado, mais próxima e plural, que abre espaços para diferentes entendimentos de pessoas e grupos e, por outro, a alteridade radical, em que há uma cisão profunda entre “eu” e o “outro”, produzindo generalizações e estereótipos (JODELET, 2002).

Agenciando Enunciados: Mídia e Alteridade nos processos de produção de subjetividadeOs avanços realizados na área da tecnologia da informação

são notórios. Podemos não só acessar a informação com poucos toques, como podemos produzi-la em poucos passos. A troca se tornou instantânea. Mas, que troca é esta que se dá através de sujeitos virtuais e não por meio de contatos pessoais? Nessa discussão, Guareschi (2006) alerta sobre a perda do locus histórico da política, a partir do momento que ela deixa de acontecer nos locais públicos e passa a se efetivar cada vez mais por veículos de comunicação e aparatos virtuais. Ao mesmo tempo em que precisamos reconhecer a facilidade e praticidade de poder ter em mãos e em tempo real toda informação necessária, é preciso também refletir sobre quais possibilidades foram eliminadas, como a proveniente do encontro e troca de idéias com o outro.

Notamos, nessa primeira aproximação, o quanto os avanços tecnológicos agenciam outras formas de relações humanas, transformando alguns dos processos produtores de subjetividade. Guattari e Rolnik (1995, p.36) ressaltam que “a produção de subjetividade constitui matéria prima de toda e qualquer produção”. Segundo os autores, a subjetividade refere-se aos modos de expressão que passam não só pela linguagem, mas também pelos níveis semióticos. A marca dessa produção é que ela comporta componentes heterogêneos de poder, agenciando o corpo, o espaço urbano, os componentes de mídia e de linguagem. Como o autor arremata:

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ao invés de sujeito, de sujeito de enunciação ou das instâncias psíquicas de Freud, prefiro falar em ‘agenciamento coletivo de enunciação’. O agenciamento coletivo não corresponde nem a uma entidade individuada, nem a uma entidade social predeterminada (GUATTARI; ROLNIK, 1995, p.39).

Pensando, não em indivíduos fechados, que manifestariam um psiquismo de ordem particular e isolada, mas em composições coletivas de modos de subjetivação, que acarretam em efeitos específicos no âmbito do sujeito, cabe observamos como a transformação das relações humanas implicam em um rearranjo nas possibilidades de agenciamento dos enunciados, seja produzindo campos de diversidade, seja produzindo homogeneização. Se vivemos na era da informação e a mesma pode ser encontrada em um dispositivo de bolso, não é mais necessário circular em busca dela. Ir até a banca de jornal pela manhã, por exemplo, é um hábito que tem perdido espaço em boa parte da população. Por mais simples que este exemplo possa parecer, ele retrata como a deterioração de meios tradicionais de informação por vezes passam pela associada diminuição de interação e trocas sociais. Conforme aponta Abreu (2003), são em universos como os das bancas, bares, botecos e outros espaços eminentemente coletivos, em que ocorrem as imbricações das redes de sociabilidade e da produção dos modos de ser, fazendo com que a circulação de informações passe pelo crivo dos sotaques, gestos e diferentes corporeidades. Uma ida ao jornaleiro não é um ato tão individualizado quanto pegar o celular e deslizar por sua tela. Ela envolve contato tanto com o jornaleiro, como com os clientes da banca, transeuntes e outros personagens, que dão contornos diferenciados à margem de possibilidades de agenciamentos.

Fausto Neto (1999 apud NJAINE, MINAYO, 2002, p. 286), também aponta para a questão da editoração, afirmando que “nunca é demais repetir que há várias maneiras de sofrer e morrer dentro das páginas e hierarquias editoriais dos jornais. Sujeito sem voz, ou voz assujeitada à voz-leitora dos jornais, esse

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é o mecanismo que caracteriza a moderna narrativa jornalística”. São esses sujeitos e grupos sociais, assujeitados no discurso midiático, aqueles que sentem o impacto do mundo em seus corpos e em seus trânsitos. Desse modo, percebemos um processo avesso à alteridade aberta, descrita por Deleuze (2007), que afeta e é afetada pela diferença. Segundo o autor, no encontro em que se agencia pela capacidade de afetação, o outro é capaz de nos apresentar um novo mundo possível, atualizando nossa maneira de ser e de compreender o que está a nossa volta a partir dos elementos que ele traz para nossas percepções.

Estamos informados e isolados. Refletimos, assim, acerca das subjetividades que estão sendo produzidas a partir do fluxo extremamente acelerado de informações. Se o outro é aquele que me apresenta um mundo possível, me atualiza e me faz questionar, como pensar as subjetividades presentes neste contexto fomentador do individualismo e ávido por acompanhar o fluxo acelerado das informações?

Deleuze (2007) pontua que a eliminação do outro é aquilo que dá abertura para o surgimento dos “duplos do mundo”, o que favorece a repetição do mesmo. Nessa perspectiva, acabando com a diferença, com a existência de outros elementos marginais na percepção, a pessoa é capaz de estender seu mundo existencial a tudo que a rodeia, o quanto lhe for necessário. Nesse sentido, cabe observar nas circulações dos discursos midiáticos o quanto são disparadores de tensão, contradição e diversidade ou de formação de “duplos”, eliminando e homogeneizando as diferenças.

Njaine e Minayo (2002, p. 287) defendem que a mídia, além de “narrar as notícias do dia, procurando cumprir sua função informativa (...) configura e expressa um sistema de valores, associado ao lugar do jornal como sujeito de enunciação”. Sobre isso, Conde (2009) pontua que a forma como nos posicionamos sobre os fatos com os quais nos deparamos no nosso cotidiano está intimamente ligada à forma como são veiculados na mídia, pois a última, em muitos momentos, confere contornos bem definidos e fechados sobre os temas.

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Isto vai de encontro às quatro afirmativas de Guareschi (2006), quem descreve que a mídia: constrói a realidade, dá valor a ela, aponta qual é a agenda de discussão social e, por fim, se apresenta como um novo personagem com o qual dialogamos, mais até do que com os personagens em questão. Tudo isso se articula, também, com Belloni (1998, p. 46), quando este diz que ao difundir amplamente a informação para os públicos, “com a mesma abordagem sensacionalista, os privilégios e ações das classes dominantes e as ocorrências violentas, a ação da mídia pode ter um efeito generalizador e provocar uma espécie de naturalização da violência como uma volta da barbárie”.

No tocante aos efeitos desses processos nos grupos de adolescentes, tema deste trabalho, Njaine e Minayo (2002, p. 296) pontuam que “a ideologia que os discrimina e os desconhece como sujeitos de direitos e os substantiva como ‘menores’ se produz na sociedade e se retrata na imprensa por meio do estigma de marginalidade”. Tal reflexão pode ser articulada a Goffman (1988) e seu conceito de estigma, em que determinado sujeito é destituído de sua potência de vida:

[o sujeito estigmatizado] tem um atributo que o torna diferente de outros (...) sendo, até [considerado], de uma espécie menos desejável - num caso extremo, uma pessoa completamente má, perigosa ou fraca. Assim, deixamos de considerá-lo criatura comum e total, reduzindo-o a uma pessoa estragada e diminuída. (GOFFMAN, 1988, p.06)

Nesse sentido, procuramos articular a problematização da mídia às falas de adolescentes que se encontram em conflito com a lei. Para tanto, nossas atividades se desenvolvem no PACGC (Professor Antônio Carlos Gomes da Costa), unidade de internação feminina do DEGASE (Departamento de Ações Gerais Socioeducativas). Neste campo, a postura orientadora da pesquisa refere-se à cartografia social e ao modelo rizomático que análise, em que diferentes composições podem derivar das falas e encontros, tal qual o “uno que se torna dois, depois dois que se tornam quatro” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p.12).

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Sendo assim, entre algumas das ramificações da ação do nosso trabalho (sempre contextualizadas pelas questões surgidas das atividades na unidade), foi conferido foco à mídia online, por sua capacidade ostensiva de alcance e facilidade de acesso, e às narrativas das adolescentes acerca do tema.

O encontro com as adolescentes na mídia e no DEGASEDemos início às nossas atividades no DEGASE em agosto

de 2015, época em que se discutia a proposta de redução da maioridade penal. Assim, procurou-se observar o quanto as notícias circulantes desse momento alimentaram ou não representações historicamente conferidas aos adolescentes em atos infracionais, discutidas em estudos anteriores, como “’pequenos predadores’, ‘pivetes’, ‘futuros bandidos’” (VOLPI, 1999 apud NJAINE & MINAYO, 2002, p.287). Buscou-se refletir sobre quais elementos estavam sendo agenciados para territorializar a figura do adolescente, e quais posturas seriam daí decorrentes. Deleuze e Parnet (1998, p.43) propõem que o “enunciado é o produto de um agenciamento, sempre coletivo, simbólico, real, sempre adiado para amanhã. Que põe em jogo, em nós e fora de nós, populações, multiplicidades, territórios, devires, afetos, acontecimentos”.

Levantamento na mídiaPara iniciarmos a discussão referida, nos direcionamos

à pesquisa de matérias e notícias através dos mecanismos de buscas de três diferentes portais de notícias web: G1, UOL e BBC. Utilizamos as seguintes palavras-chave: “adolescente”, “menor”, “crime”, “roubo”, “furto”, “maioridade penal”, “RJ”, que foram consultadas separadamente, ou em conjunto de duas ou três palavras, tendo como recorte temporal o mês de maio dos anos de 2015 e 20165 .

5 A pesquisa encontra-se em andamento. Outros portais e recortes temporais estão

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Foram analisadas, no total, 105 matérias. As palavras “adolescente”, “menor” e “RJ”, combinadas, apresentaram no portal G1, notícias acerca de superlotação no DEGASE, estatísticas de apreensões, notícias sobre tráfico, mortes no tráfico, porte e arma e roubo. Já no BBC, essas mesmas palavras-chave retornaram notícias acerca o debate sobre a redução da idade penal, cobertura da votação e a consequente aprovação da PEC 171. No portal UOL, com a mesma pesquisa, verificamos notícias de violências tanto cometidas como sofridas por adolescentes. Foi verificada também certa distinção entre esses enunciados, em que “menores” são (em sua maioria) aqueles que comentem atos infracionais (cujos portais de notícias atribuem erroneamente o status de crime) e “adolescentes” são aqueles que sofrem as violências.

Destaca-se que no início das pesquisas foi observado grande destaque conferido à morte do médico na Lagoa Rodrigo de Freitas, zona sul do Rio de Janeiro. Em discussão sobre esse tipo de acontecimento, Ramos e Paiva (2007, p. 99) dizem que “a maior expressão da hierarquização, que culmina na definição de valores diferenciados para a vida, é o destaque concedido pela mídia à morte de pessoas dos setores médios ou dominantes, ao lado da naturalização do massacre cotidiano de moradores da periferia”, fazendo com que ocorra certa “holofotização” do acontecimento.

No tocante a outros termos, buscas realizadas com as palavras “adolescente” e “menor” retornaram no G1, resultados como morte de adolescente em instituição socioeducativa, fuga de centros de internação, roubos, homicídios e estupros cometidos por “menores”. A busca no BBC, além de propostas e debates acerca da redução, forneceu notícias como uma entrevista com Coronel Telhada (deputado estadual-SP, que se posiciona a favor da redução da idade penal), aprovação pela Câmara dos Deputados da PEC 171, denúncias de pedofilia, ameaças a deputado que votou contra a aprovação da PEC e relatos de ex-

sendo levantados. Os materiais aqui destacados são trazidos em função de uma maior problematização em relação aos demais, mesmo também se encontrando em momento embrionário de análise.

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internos de instituições destinadas ao acolhimento de adolescentes em privação de liberdade. Já no UOL, foram constatadas matérias sobre atos infracionais, notícias acerca do ECA e seus 25 anos, debate da redução da maioridade penal com pais de ”jovens mortos por adolescentes”, e casos de adolescentes vítimas de estupros coletivos.

Demais buscas efetuadas no portal UOL, com utilização das palavras “crime” e “adolescente”, retornam notícias que situam o adolescente como aquele que sofre o crime (não mais como o agente do “crime”), além de matérias sobre puberdade, educação sexual, cognição do adolescente, ou seja, uma abordagem que agencia elementos médico-pedagógicos e não somente os jurídicos.

Discussão no campo: a mídia e as percepções sobre si e sobre o mundo Pensando sobre a afirmativa de que “não há subjetividade sem

uma cartografia cultural que lhe sirva de guia; e, reciprocamente, não há cultura sem certo modo de subjetivação que funcione segundo um perfil” (ROLNIK, 1989), podemos, por meio do método da cartografia psicossocial, nos debruçar sobre a questão posta anteriormente: de que forma as lógicas apontadas são vivenciados pelas jovens?

Nesse intuito, propusemos atividades no DEGASE nas quais procurou-se problematizar a mídia junto às adolescentes, mostrando a elas imagens resultantes das buscas das mesmas palavras que usamos para procura das notícias. Tal discussão produziu falas tais como a de C., de 17 anos, em atividade no PACGC, em 20/05/16: “para a mídia nós somos marginais... se a lei diz que nós somos adolescentes, somos adolescentes!”. Questionando: “Vai mandar pra Bangu por quê?”, fazendo uma alusão ao interesse de redução da idade penal.

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Nos encontros foi comentada distorção que programas televisivos realizam ao discorrerem sobre como seria a vida no sistema socioeducativo. Nas palavras de G., 15 anos:

Dizem que estamos num spa. Não é isso! Será que iam querer passar as férias aqui?!... olha, aqui não tão é ruim? Pode não ser como uma cadeia tipo Bangu, mas ninguém quer vir pra cá!Eu não quero voltar. Ninguém quer... O que eles querem (TV) é que a gente suma, seja exterminado. Mas quanto mais eles falarem isso, pior vai ser, pois isso revolta! (Entrevistada adolescente G., PACGC, 27/05/2016)

Considerações finaisO presente trabalho procura abordar a temática da mídia,

da produção de subjetividade e de como esses processos agenciam elementos ligados aos adolescentes, em especial aos que se encontram em conflito com a lei. Cabe ressaltar que se trata de uma pesquisa em andamento. Muitos dos pontos abordados ainda se encontram em fase inicial de análise, como a sistematização dos dados levantados nos portais eletrônicos de notícias, bem como as falas e dinâmicas ocorridas nos encontros no DEGASE. O que se procura apresentar aqui são indícios de alguns substratos estéticos, políticos e econômicos que transversalizam as vivências do grupo em questão. No primeiro contato com as matérias, destacam-se a relação entre a abordagem criminológica, que agencia os termos “menores”, “futuros bandidos”, “perdidos”, com um tipo de alteridade em que o outro, no caso o(a) adolescente, se mostra distante do contexto daquele que noticia e daquele que lê. Nesse tipo de agenciamento, o território que ganha consistência, é aquele que promove a individualização da análise, projetando a culpa do acontecido sobre o jovem. Já nas matérias em que há uma maior problematização do tema e que o personagem não ocupa apenas o lugar do infrator, mas também o de vítima ou de cidadão (que também “enfrenta os problemas da cidade” e não simplesmente “é um dos problemas da cidade”) a alteridade apresenta-se mais aberta, enriquecendo o debate.

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Por fim, no tocante aos encontros no DEGASE, percebeu-se a importância da participação no debate daquelas que são as principais interessadas, as adolescentes em conflito com a lei, como também da reflexão sobre como os elementos estigmatizantes que por vezes circulam na mídia dão formas e corroboram atitudes de descaso e desrespeito a esse grupo, incluindo profissionais de segurança e da comunicação que acabam por dificultar a obtenção da garantia dos Direitos Humanos.

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