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Diana Zacca Thomaz A Categoria do Refugiado Revisitada: Transformações na Soberania Estatal e o Caso da Migração Haitiana para o Brasil Dissertação de Mestrado Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais do Instituto de Relações Internacionais da PUC-Rio. Orientador: Prof. João Franklin Abelardo Pontes Nogueira Rio de Janeiro Abril de 2015

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Diana Zacca Thomaz

A Categoria do Refugiado Revisitada:

Transformações na Soberania Estatal e o Caso da Migração Haitiana para o Brasil

Dissertação de Mestrado

Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais do Instituto de Relações Internacionais da PUC-Rio.

Orientador: Prof. João Franklin Abelardo Pontes Nogueira

Rio de Janeiro Abril de 2015

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Diana Zacca Thomaz

A Categoria do Refugiado Revisitada: Transformações na Soberania Estatal e o Caso da Migração Haitiana para o Brasil

Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais do Instituto de Relações Internacionais da PUC-Rio. Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada.

Prof. João Franklin Abelardo Pontes Nogueira Orientador e Presidente

Instituto de Relações Internacionais – PUC-Rio

Profa. Carolina Moulin Aguiar Instituto de Relações Internacionais – PUC-Rio

Profa. Julia Bertino Moreira Universidade Federal do ABC - UFBAC

Profa. Monica Herz

Vice-Decana de Pós-Graduação do Centro de Ciências Sociais – PUC-Rio

Rio de Janeiro, 13 de Abril de 2015

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Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total

ou parcial do trabalho sem autorização do autor, do

orientador e da universidade.

Diana Zacca Thomaz

Graduou-se em Relações Internacionais pela Universidade

Federal Fluminense em 2012. Atuou entre 2013 e 2014

como pesquisadora e assistente de elegibilidade na Cáritas

Arquidiocesana do Rio de Janeiro, em convênio com o

Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados

(ACNUR).

Ficha Catalográfica

CDD: 327

Thomaz, Diana Zacca A categoria do refugiado revisitada: transformações na soberania estatal e o caso da migração haitiana para o Brasil / Diana Zacca Thomaz ; orientador: João Franklin Abelardo Pontes Nogueira. – 2015. 120 f. : il. (color.) ; 30 cm Dissertação (mestrado)–Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Instituto de Relações Internacionais, 2015.. Inclui bibliografia. 1. Relações internacionais – Teses. 2. Refugiados. 3. Soberania. 4. Demarcações. 5. Migração haitiana. 6. Humanitarismo. I. Nogueira, João Franklin Abelardo Pontes. II. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Instituto de Relações Internacionais. III. Título.

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Para minha mãe e para Fernando,

pelos belos caminhos que construímos.

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Agradecimentos

Ao João Pontes Nogueira, pela orientação cuidadosa e pelas conversas que

expandiram os horizontes da pesquisa. Suas provocações intelectuais e reflexões

foram fundamentais para o meu amadurecimento enquanto pesquisadora e

certamente me acompanharão ao longo dos anos. Minha gratidão igualmente pelo

apoio e confiança para seguir adiante na vida pós-mestrado.

Aos professores e funcionários do IRI que tanto contribuíram para minha

formação intelectual e por tornarem estes dois anos ainda mais prazerosos. Em

especial, aos professores Nicholas Onuf e Rob Walker pelas conversas atentas e

sugestões valiosas sobre os rumos da pesquisa. À Carolina Moulin por ter me

acolhido nesta jornada no IRI, pelo apoio mesmo à distância e por ser sempre uma

grande inspiração para mim. Ao Roberto Yamato, pela enorme generosidade e

pelas conversas e aprendizados. À Lia, pela paciência e sorrisos em todas as

etapas e a Peterson e Lutiene pela simpatia e leveza.

Minha gratidão à professora Julia Bertino por aceitar participar da avaliação da

minha pesquisa.

À PUC-Rio, ao CNPq e à FAPERJ pelo apoio institucional que viabilizaram este

trabalho.

Aos amigos de mestrado, por compartilharem os momentos de alegria e de tensão

e por terem me ensinado tanto; em especial a Luisa, Ana Clara, Isabel, João,

Anelise e Aline. Aos amigos que fiz em Brown University, por tornarem a escrita

menos solitária. Aos meus amigos de outras origens que sempre me deram força e

momentos incríveis, em especial à Natália, Lulu e Clari.

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Aos meus familiares e à família estendida de Daisy, Jügen, João e Tatiana, por

todo o carinho e todos os momentos gostosos.

À minha mãe, por ser tão amiga e parceira e me dar todo apoio e amor possíveis

para que eu pudesse atingir meus objetivos. Minha gratidão por sempre acreditar

em mim, por ser um exemplo de pessoa, por aturar minhas inquietações, e por me

estimular a sempre ir mais longe.

Ao Fernando, pelo amor e parceira, pelas pipocas e passeios, e por me fazer rir

mesmo quando a vida aperta. Pelos finais de semana ao meu lado enquanto

estudava, pelas aventuras inusitadas e por sempre oferecer um ouvido atento e um

coração aberto.

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Resumo

Thomaz, Diana Zacca. Nogueira, João Franklin Abelardo Pontes. A

Categoria do Refugiado Revisitada: Transformações na Soberania

Estatal e o Caso da Migração Haitiana para o Brasil. Rio de Janeiro,

2015. 120 p. Dissertação de Mestrado - Instituto de Relações

Internacionais, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

A dissertação analisa as mudanças sofridas pela categoria do refugiado no

mundo contemporâneo, explorando-as empiricamente a partir do caso da

migração haitiana para o Brasil desde 2010. À luz de um debate teórico amplo

relacionado à rearticulação de práticas soberanas estatais em um mundo entendido

como crescentemente “em movimento”, o objetivo principal do trabalho é

entender como este processo de mudança impacta a categoria do refugiado e como

se reflete na experiência dos migrantes haitianos no Brasil. Para tanto, o trabalho

analisa a literatura crítica sobre refúgio nas Relações Internacionais, de modo a

empreender uma crítica aos limites da mesma. Argumenta-se que esta literatura

assenta sua argumentação nas demarcações dominantes do Estado soberano, ao

entender que a categoria do refugiado é pautada pela sua oposição à subjetividade

política da cidadania e pela sua inserção no campo do humanitarismo. Partindo de

uma perspectiva teórica pós-estruturalista representada principalmente pelo

trabalho de Rob Walker, o trabalho argumenta que as demarcações dominantes do

Estado soberano vêm se rearticulando na política contemporânea e que tais

mudanças implicam em uma complexificação da categoria ou figura do refugiado,

tornando-a contingente e não necessariamente atrelada ao campo do

humanitarismo. A migração haitiana para o Brasil é analisada como um estudo de

caso que permite vislumbrar tal complexificação, discutindo as implicações de sua

definição enquanto “imigrantes humanitários” no país e as diferentes estratégias

de negociação/resistência dos migrantes a este enquadramento.

Palavras-chave

Refugiados; soberania; demarcações; migração haitiana; humanitarismo.

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Abstract

Thomaz, Diana Zacca. Nogueira, João Franklin Abelardo Pontes. The

Refugee Category Revisited: Transformations in State Sovereignty

and the Case of the Haitian Migration to Brazil. Rio de Janeiro, 2015.

120 p. MSc. Dissertation - Instituto de Relações Internacionais, Pontifícia

Universidade Católica do Rio de Janeiro.

The thesis analyses the changes undergone by the refugee category in the

contemporary world, exploring them empirically through a case study on the

Haitian migration to Brazil since 2010. By taking into account a broad theoretical

debate on the transformations undergone by sovereign practices in a world

understood as increasingly “on the move”, the main objective of the research is to

understand how this process of change impacts the refugee category and how it is

reflected in the experience of Haitian migrants in Brazil. To that end, it analyses

the critical literature on refugees in International Relations, so as to point out its

limitations. It argues that this literature builds its argument on the dominant

boundaries of the sovereign state, once it perceives the refugee category as based

on its opposition to the political subjectivity of citizenship and as inserted in the

humanitarian field. By relying on a poststructuralist theoretical framework,

represented mainly by Rob Walker’s work, the thesis argues that the dominant

boundaries of the sovereign state are being rearticulated in contemporary politics

and that such changes lead to a complexification of the refugee category or figure,

which becomes more contingent and not necessarily attached to the humanitarian

realm. Haitian migration to Brazil is analyzed as a case study that allows for the

empirical understanding of this complexification, as the work discusses the

implications of these migrants’ definition as “humanitarian immigrants” in the

country and the migrants’ different strategies of negotiation/resistance to this sort

of framing.

Keywords

Refugees; sovereignty; boundaries; Haitian migration; humanitarianism

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Sumário

1. Introdução 13

2. A categoria do refúgio vis-à-vis a soberania estatal 18

2.1. O refugiado e o internacional: desafio, liminaridade e

reprodução

22

2.1.1. Desafio 22

2.1.2. Liminaridade 27

2.1.3. Reprodução 31

2.2. Alternativas (à lógica soberana) 41

2.3. Considerações finais 44

3. A Rearticulação das demarcações modernas e seu

impacto sobre a categoria do refugiado

46

3.1. Mobilidade, fluxo e questionamentos acerca das

demarcações modernas

47

3.2. As limitações da soberania estatal em primeiro plano 50

3.3. Problematizações do ideal regulador das demarcações

do Estado

55

3.3.1. Demarcações como produtivas, como instâncias de

disputa política e em proliferação

56

3.4. A categoria estatal do refúgio revisitada 61

3.4.1. Uma categoria ou figura migratória contingente 63

3.4.2. Rearticulações das demarcações soberanas e as

disputas políticas que as perpassam

65

3.5. Considerações finais 71

4. Os haitianos como “imigrantes humanitários” no Brasil: as

demarcações articuladas e resistidas na experiência

migratória

75

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4.1. A migração haitiana para o Brasil desde 2010: contexto

e perfil migratórios

76

4.2. O status migratório para além da questão legal 83

4.3. A Resolução Normativa 97 do CNIg e a proliferação de

fronteiras

87

4.4. O enquadramento humanitário da migração haitiana e

suas negociações/resistências

92

4.5. Brasileia: a politização do enquadramento humanitário

no cotidiano

96

4.6. Do Acre para São Paulo: tensionamento do

enquadramento humanitário em escala nacional

103

4.7. Considerações Finais 106

5. Conclusão 108

6. Referências Bibliográficas 112

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Lista de Figuras Figura 1 – Principais Rotas da Migração Haitiana para o Brasil 81

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Abreviaturas e Siglas

ACNUR – Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados

CNIg – Conselho Nacional de Imigração

CONARE – Comitê Nacional para os Refugiados

MINUSTAH – Mission des Nations Unies pour la stabilisation en Haïti

ONU – Organização das Nações Unidas

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Introdução

O presente trabalho oferece uma análise teórica da categoria do refugiado e

sua complexificação no mundo contemporâneo, explorando-a empiricamente a

partir do caso da migração haitiana para o Brasil verificada desde 2010. O

trabalho se insere em um debate teórico amplo relacionado à rearticulação de

práticas soberanas estatais em um mundo entendido como crescentemente “em

movimento”, buscando entender como este processo de mudança impacta a

categoria do refugiado e como se reflete na experiência dos migrantes haitianos no

Brasil.

A questão do refúgio vem sendo bastante discutida no âmbito das

Relações Internacionais (RI) nas últimas décadas, não apenas pela sua relevância

prática – dados o contingente crescente destes migrantes no mundo e os dilemas

éticos e impasses políticos que geram –, mas principalmente pelas reflexões

teóricas sobre a ordem internacional que este migrante convida.

Não se trata de negar ou diminuir a relevância prática do tema ou a

necessidade de se buscarem maneiras de se garantir que estes migrantes tenham

acesso a uma vida digna. De fato, em 2014 o número de pessoas forçadas a se

deslocar por motivos alheios a sua vontade atingiu seu maior nível desde a

Segunda Guerra Mundial, totalizando cerca de 50 milhões de pessoas1. Ao passo

que este quadro demanda pesquisas voltadas à busca de alternativas capazes de

informar as políticas voltadas a esta população e resolver as “crises humanitárias”

de refúgio em eclosão, para além da perspectiva da solução de problemas, também

se faz necessário o entendimento das condições que tornam possível o fenômeno

do refúgio e as implicações dos enquadramentos convencionais dos refugiados

para a conformação de suas subjetividades políticas. Ou seja, a complexidade do

refúgio exige um olhar “crítico” capaz de ir além de julgamentos imediatistas, a

fim de não reproduzir os discursos e práticas de uma ordem (internacional) que

justamente torna a existência do “problema do refugiado” possível.

1 Dado disponível em: http://www.unhcr.org/53a155bc6.html Acesso em 7 fev. 2015.

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Partindo deste pressuposto, a dissertação engaja-se com a literatura crítica

sobre refúgio no campo de estudos das RI, analisando seus argumentos e

contribuições principais. Pode-se afirmar que um dos objetivos centrais desta

literatura é refletir sobre como o refugiado se situa em meio à vida política

moderna articulada a partir da soberania estatal e do sistema de Estados. Assim,

estes autores demonstram que a condição de possibilidade do refugiado reside na

forma de pertencimento político particular da modernidade pautada pelo Estado

soberano. O discurso político moderno compreende a vida política como sendo

contida pelo Estado, tanto em termos espaço-temporais (o âmbito doméstico)

quanto em termos de subjetividade (os cidadãos como os sujeitos políticos

autênticos), conformando, assim, a tríade Estado-cidadão-território como o ideal

regulador da comunidade política.

Os refugiados, enquanto pessoas que rompem radicalmente com esta

tríade, impõem um desafio à ordem internacional. Estes migrantes habitam os

interstícios desta ordem e demonstram seu caráter particularista e violento ao

excluir todos aqueles não atrelados e devidamente representados por um Estado

soberano. Ao mesmo tempo, esta literatura argumenta que a lógica do Estado

soberano é capaz de reverter este desafio colocado pelos refugiados ao representar

estes migrantes como vítimas passivas e sem voz política situadas no campo do

humanitarismo, em uma imagem oposta àquela do cidadão ativo e autônomo.

Assim, a categoria do refugiado, inserida no espaço apolítico do humanitarismo,

acabaria servindo para reafirmar o primado da cidadania como a subjetividade

política autêntica. Com isso, as demarcações do internacional, que delimitam os

sujeitos políticos (cidadãos) e o espaço político (a ordem interna aos Estados)

seriam reafirmadas através da construção da categoria do refugiado a partir da

perspectiva do humanitarismo.

Reconhecendo a relevância das contribuições desta literatura, o trabalho

busca empreender uma crítica aos limites da mesma a partir da consideração de

reflexões teóricas acerca das mudanças incorridas pela soberania estatal na

política contemporânea. O trabalho buscará examinar como a categoria do

refugiado é transformada uma vez que as demarcações do internacional vêm

sendo crescentemente problematizadas sob as condições políticas contemporâneas

marcadas pelo fluxo e pela mobilidade. De forma concisa, se o refugiado é um

resultado da ordem internacional e suas demarcações (territoriais e de

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subjetividade), como as transformações contemporâneas nesta ordem impactam

esta categoria?

O trabalho de Walker (2010) fornece uma das principais referências para a

discussão acerca das transformações contemporâneas da soberania estatal e suas

demarcações. Diante dos maiores fluxos e mobilidades globais atuais, o autor vai

além dos debates polarizados entre a perspectiva de que estaríamos vivendo ou

uma abolição de todas demarcações e fronteiras dos Estados ou uma obstinação

destas como as formas predominantes de contenção do político. Superando estas

visões dicotômicas, o autor afirma a necessidade de se entender que estas

demarcações e fronteiras vêm se rearticulando e desagregando dos marcadores

convencionais do Estado (em termos territoriais e de subjetividade) e proliferando

para além destes, consistindo em instâncias relevantes de engajamentos políticos.

Considerando estas reflexões, o trabalho busca investigar como este

processo de desagregação e proliferação de demarcações influencia a categoria do

refugiado, enfatizando como é crescentemente difícil capturar este migrante

dentro de um espaço humanitário oposto ao campo da cidadania a partir da lógica

da soberania estatal. Ao invés disso, uma hipótese central da dissertação é a de

que a categoria do refugiado seria atualmente pautada pelo traçado de uma série

de demarcações contingentes que produzem formas de subjetivação diversas e

passíveis de serem contestadas – sendo, assim, instâncias de politizações e

despolitizações. Carecendo de um enquadramento a priori¸ a categoria do

refugiado encontra-se sujeita a sua fragmentação em uma série de outras

categorias e representações discursivas que classificam estes migrantes de formas

diversas, ao ponto de ser possível se separar a categoria do refúgio do campo do

humanitarismo.

A fim de explorar estas reflexões teóricas, o trabalho analisa a migração

haitiana para o Brasil verificada desde 2010, quando o Haiti foi atingido por um

terremoto de alta magnitude. Ao longo dos últimos cinco anos, esta migração

transformou-se em uma das mais relevantes e desafiadoras para a política

migratória brasileira, suscitando debates acerca dos direitos dos migrantes no país,

o tipo de acolhida que recebem e sua inserção no mercado de trabalho brasileiro.

Para os objetivos do presente trabalho, o caso da migração haitiana fornece um

campo rico para a análise das mudanças nas práticas de categorização e

representação do refugiado na contemporaneidade, uma vez que exemplifica a

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separação da categoria do refugiado do campo do humanitarismo. Apesar de

solicitarem refúgio, os migrantes haitianos foram definidos legal e

discursivamente como “imigrantes humanitários” no país. Não se busca especular

sobre as possíveis intenções e planos das autoridades brasileiras ao delimitar os

migrantes haitianos como humanitários, mas entender o que esta demarcação

produz em termos de politizações, despolitizações e subjetividades, assim como

compreender como esta demarcação é negociada e/ou resistida pelos migrantes

em questão. Além disso, o trabalho também busca identificar as diferentes

fronteiras territoriais que se impõem na experiência dos migrantes para além das

linhas geopolíticas formais delimitando o Estado brasileiro.

A fim de elaborar esta discussão aqui resumida, a dissertação se divide em

três partes principais. No segundo capítulo, a literatura crítica sobre refúgio é

analisada, de modo a salientar seus argumentos principais acerca da relação entre

a categoria ou figura do refugiado e a soberania estatal e suas demarcações. Esta

análise é guiada pelo entendimento de que esta literatura aponta basicamente para

como o refugiado constitui um desafio à ordem internacional e suas demarcações,

habita os interstícios desta ordem e, uma vez inserido em um discurso

convencional informado pela lógica estatal, acaba por reproduzir a soberania

estatal e suas demarcações.

Já o terceiro capítulo apresenta reflexões teóricas acerca das relações

soberanas em mutação e busca entender como estas rearticulações na soberania

estatal impactam e redefinem a categoria do refugiado. Em outras palavras,

utilizando-se do trabalho de Walker como um guia para o raciocínio traçado, o

capítulo apresenta uma discussão teórica sobre a soberania estatal, as formas de

discriminação que esta traça e autoriza e sua rearticulação e questionamento atual,

procurando sinalizar para como as transformações sofridas atualmente pela ordem

internacional impactam a categoria estatal do refúgio.

O quarto capítulo apresenta e analisa a migração haitiana para o Brasil,

focando-se na forma como foram enquadrados enquanto imigrantes humanitários,

mas também discutindo as diferentes fronteiras que encontram e resistem em sua

experiência migratória. Esta análise conta com contribuições de um trabalho de

campo realizado em fevereiro de 2014 na cidade de Brasileia, no Acre, onde um

se situava um abrigo para acolher os migrantes. Além deste trabalho de campo,

que se utilizou de um enfoque metodológico etnográfico, a análise desta migração

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também se utiliza de relatórios, demais trabalhos acadêmicos sobre este caso,

pronunciamentos oficiais de autoridades governamentais e material midiático

acerca desta migração para o Brasil.

Por fim, na conclusão, são retomados sinteticamente os argumentos

principais apresentados ao longo dos capítulos, buscando-se reforçar a hipótese

apresentada pelo trabalho acerca das mudanças sofridas pela categoria do

refugiado e suas consequências epistemológicas para os estudos deste tema.

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2 A categoria do Refúgio vis-à-vis a soberania estatal

A questão do refúgio e o sistema moderno de Estados são tradicionalmente

entendidos como tendo surgido no mesmo momento histórico (Betts; Loescher;

Milner, 2012). Em um contexto no qual monarcas europeus buscavam assegurar a

unidade de seus territórios então delimitados, uma série de minorias religiosas foi

alvo de perseguições. A Paz de Vestfália de 1648, tida como o documento que

oficializa a emergência do Estado soberano moderno, previa a existência de

pessoas que teriam perdido a proteção de seus Estados de origem e que

mereceriam proteção nos países nos quais buscassem refúgio. O termo

"refugiado", porém, foi efetivamente empregado logo a seguir, em 1685, quando o

governo francês, em um contexto nacional predominantemente católico, revogou

o Édito de Nantes, que reconhecia um rol de direitos aos huguenotes franceses. A

revogação do Édito levou à expulsão de um grande contingente de pessoas

pertencentes a este grupo, que passaram a buscar proteção e acolhida em outros

países, e que, a partir de então, seriam referidas como "refugiés" (Haddad, 2008).

Apesar de sua origem ser encontrada no século XVII, o fenômeno do

refúgio veio a ser considerado como uma questão significativa para as RI somente

no século XX, quando ganhou uma escala efetivamente massiva (Nyers, 2006).

De fato, nos séculos anteriores a questão do refúgio não figurava dentre os tópicos

das negociações multilaterais e o próprio termo “refugiado” se confundia e

misturava a uma série de outros termos referentes a pessoas deslocadas, tais como

“exilados” e “émigrés”, sem que uma distinção clara entre estas categorias fosse

estabelecida (Soguk, 1999). Já o século XX ficaria conhecido com o “século dos

refugiados” devido à escala que o fenômeno atingiu no continente europeu – o que

já denota o caráter marcadamente eurocêntrico das narrativas históricas sobre a

questão do refúgio nas RI, que descrevem as origens e a importância do tema a

partir do contexto particular deste continente.

A Revolução Russa, a Primeira Guerra Mundial, o colapso dos impérios

otomano e austro-húngaro causaram o deslocamento forçado de milhões de

pessoas, principalmente na Europa, e teriam sinalizado para a necessidade de

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elaboração de mecanismos multilaterais capazes de gerir um fenômeno entendido

como de “crise” (Betts; Loescher; Milner, 2012). Entretanto, entre a Primeira e a

Segunda Guerra Mundial, apenas organismos provisórios, de caráter ad hoc e

baixo orçamento foram estabelecidos para lidar com a questão do refúgio,

entendida como um “problema” passageiro. Após a Segunda Guerra Mundial,

porém, foram criados mecanismos duradouros para lidar com a questão do refúgio

internacionalmente e estabeleceu-se um Direito Internacional específico para a

questão. Assim, o entendimento contemporâneo legal do termo “refugiado” é

definido pela Convenção das Nações Unidas Relativa ao Estatuto dos Refugiados

de 1951 (doravante denominada Convenção de 1951), que o reconhece como todo

o indivíduo que:

(...) devido a fundados temores de perseguição por motivos de raça, religião,

nacionalidade, por pertencer a determinado grupo social ou por suas opiniões

políticas, se encontre fora do país de sua nacionalidade e não possa ou, por causa

dos ditos temores, não queira recorrer à proteção de tal país; ou que, carecendo de

nacionalidade e estando, em consequência de tais acontecimentos, fora do país

onde tivera sua residência habitual, não possa ou, por causa dos ditos temores,

não queira a ele regressar (ONU, 1951).

A Convenção de 1951 foi elaborada a partir de um escopo temporal e

geográfico restrito ao contexto do imediato pós-Segunda Guerra, de modo que

apenas permitia a concessão do status de refugiado a migrantes que se

originassem do continente europeu e de eventos ocorridos até 1951. Entretanto o

Protocolo de 1967 manteve a definição do status de refugiado da Convenção de

1951 citada acima e extinguiu as limitações espaço-temporais do documento

original, ou seja, permitindo que pessoas de todas as partes do globo pudessem

passar a legalmente solicitar e receber refúgio.

O Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR),

também surgiu neste contexto e foi igualmente concebido para ter uma duração

temporária. Seu mandato prevê a responsabilidade do órgão pela proteção

internacional aos refugiados e pela busca de “soluções permanentes para o

problema dos refugiados” (Ênfase da autora, Assembleia Geral das Nações

Unidas, 1950). O Estatuto do ACNUR também estabelece o “caráter totalmente

apolítico”, “humanitário e social” do órgão (Id.). Sua atuação inicial foi restrita à

proteção dos refugiados da Segunda Guerra Mundial na Europa e daqueles que se

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opunham aos regimes comunistas da Europa Central e Oriental, contando com um

mandato inicial de 3 anos, uma equipe de 34 funcionários, um escritório em

Genebra e um orçamento anual de US$300.000 (Betts; Loescher; Milner, 2012).

Assim como a Convenção de 1951 se expandiu com o Protocolo de 1967 e a

constatação de que a questão do refúgio não era temporária, o ACNUR se tornou

uma agência permanente, contando atualmente com uma equipe de cerca de 7.000

funcionários, atuando em mais de 120 países e com uma verba de cerca de US$

1,9 bilhão (Id.).

Uma vez esclarecido brevemente este quadro histórico-legal da questão do

refúgio – que ajuda a situar as discussões sobre este tipo particular de migrante – o

propósito do presente capítulo é o de analisar a literatura crítica de RI sobre o

tema, buscando ressaltar como esta entende conceitualmente a inserção dos

refugiados em meio à política contemporânea.

O tema do refúgio vem sendo largamente discutido dentro do campo de

estudos das RI. Sobretudo desde o final do século XX, uma vasta literatura vem

buscando investigar e compreender esta forma de deslocamento humano tanto

empírica como conceitualmente. No campo empírico, os desdobramentos políticos

internacionais que geram grandes contingentes de refugiados suscitam questões

pragmáticas acerca da necessidade e formas de proteção das pessoas em fuga e do

impacto de sua chegada em massa nos países de acolhida2. Como salientam Betts

e Loescher (2010), pensar a história da "política mundial" envolve considerar os

movimentos de refugiados que marcaram e estiveram no centro dos considerados

"grandes eventos" desta esfera:

From the creation of the state system at the Peace of Westphalia in 1648, to the

consolidation of the European state through the revolutions and state unifications of

the nineteenth century, to the changing balance of power between the late nineteenth

century and the two world wars, to the decolonization and the creation of the post-

2As estatísticas históricas fornecidas pelo ACNUR apontam para um aumento significativo no

número de refugiados sob o mandato da agência desde o início dos registros em 1960. Entre 1960

e o final da década de 1970, o número de refugiados teria aumentado gradualmente de 1,5 milhão

para cerca de seis milhões. De 1980 a 1992, verificou-se igualmente um aumento significativo: de

aproximadamente 8.5 milhões pra quase 18 milhões. De 1993 em diante verificou-se uma queda

relativa e estabilização neste montante global, tendo passado de cerca de 19 milhões em 1993 para

10,5 milhões em 2012. Já em 2014, último ano que consta nas estatísticas oficiais da agência, o

número global de refugiados sob o mandato da agência teria atingido 13 milhões, representando

um aumento com relação à década anterior e atingindo o maior montante desde 1996. Dados

disponíveis em: http://data.unhcr.org/dataviz/#_ga=1.222742941.74221990.1418833155 e

http://www.unhcr.org/54aa91d89.html . Acesso em 9 fev. 2015.

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Second World War international society, to the bipolarity of the Cold War, to the

post-Cold War era, to globalization, and to 9/11 and the emergence of new

transnational threats linked to terrorism and the environment, refugees have been a

central feature of world politics. (Id., p.2)

Porém, para além destas questões relacionadas ao campo histórico-

empírico, o tema do refúgio recebe uma atenção particular pelos autores de RI

pela sua importância teórica. Como foi mencionado anteriormente e fica explícito

no trecho supracitado, os refugiados são entendidos como um fenômeno em si

desde a Paz de Vestfália, justamente a ocasião dada como o grande marco

histórico da emergência do moderno sistema de estados segundo o mainstream

das RI. De fato, na base da existência deste tipo de migrante, tal como ilustrado na

definição da Convenção de 1951, encontra-se a premissa de que o mundo se

divide em jurisdições territoriais mutuamente excludentes chamadas "Estados" e

que cada indivíduo deveria pertencer politicamente a este Estado enquanto

cidadão, sendo representado e tendo sua vida resguardada pelo mesmo. A tríade

Estado-cidadão-território, ao mesmo tempo em que constitui a fundação do

sistema internacional, conforma também a condição de possibilidade dos

refugiados. Ou seja, se não fosse este enquadramento da vida política moderna, a

existência dos refugiados, tal como é concebida, não seria possível.

Repensar o "lugar" dos refugiados em meio ao internacional é o que boa

parte da literatura de RI crítica sobre o assunto procura fazer. Assim, o presente

capítulo busca analisar como tal literatura interpreta a construção da categoria ou

"figura do refugiado" a partir das demarcações do Estado soberano que a

caracterizam pela sua oposição à subjetividade política da cidadania. Para tanto, o

capítulo se divide em quatro seções principais. As três primeiras (“desafio,

liminaridade e reprodução”) debruçam-se sobre os principais argumentos traçados

por esta literatura acerca da relação entre o refugiado e a ordem internacional. A

seguir, é apresentado como esta literatura busca interpretar os refugiados como

sujeitos capazes de transcender os limites do político estabelecidos pela lógica do

Estado soberano e afirmar sua subjetividade política. Esta análise bibliográfica

será retomada no capítulo seguinte, que busca empreender uma crítica aos limites

desta literatura, levando em consideração as condições políticas contemporâneas

em que as demarcações do internacional e da categoria do refugiado vêm sendo

problematizadas.

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2.1. O refugiado e o internacional: desafio, liminaridade e reprodução 2.1.1. Desafio

"People have always moved – whether through desire or through

violence." (Malkki, 1992, p. 24). O que torna a categoria do refugiado possível,

juntamente com seu entendimento predominante como um "problema" ou uma

"aberração", não é seu deslocamento impulsionado por motivos alheios a sua

vontade, mas a compreensão particularmente moderna de que a vida política

ocorre exclusivamente dentro de jurisdições territorializadas mutuamente

excludentes: os Estados soberanos. Como afirmou originalmente Malkki, não

fosse a "metafísica sendentarista" da "ordem nacional das coisas", os refugiados

seriam entendidos como pessoas comuns, e não um campo específico de

intervenções humanitárias ou "terapêuticas" e especializadas da “comunidade

internacional”.

Neste sentido, pensando a partir das formas de discriminação em jogo, não

fossem as demarcações, fronteiras e limites3 da concepção moderna da vida

política, os refugiados não seriam uma questão à parte, alvo de intervenções

políticas e interesse acadêmico especializado. Como Walker (2010) explica, traçar

linhas de discriminação é uma prática inerentemente humana que permite que as

pessoas se situem e ajam no mundo. Sem estas linhas, não temos como nos

distinguir dos demais ou fazer sentido do que nos rodeia. Na vida política

moderna, a soberania estatal funciona como o parâmetro básico a partir do qual

fazemos as discriminações cruciais e as autorizamos. Segundo o autor, as linhas

reproduzidas pela soberania estatal podem ser entendidas enquanto demarcações

(termo genérico para as linhas de discriminação), que se manifestam tanto em

relação ao território físico, enquanto fronteiras, e como limites de princípio,

jurisdição e subjetividade. Estas práticas de discriminação (ou boundary

practices), que invocam território (fronteiras) e autoridade/subjetividade (limites)

3 Optou-se aqui pela tradução de boundaries, borders e limits como, respectivamente,

demarcações, fronteiras e limites. De tradução direta menos evidente, o termo demarcações foi

escolhido por transmitir uma noção mais ampla acerca do traçado de linhas de discriminação e por

também evocar uma prática, uma ação, tal como indicado pela definição e boundaries oferecida

por Walker (2010).

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são reproduzidas pela soberania estatal e tornam possível a concepção do

refugiado enquanto uma anomalia.

A "ordem nacional das coisas" implica, assim, na concepção moderna da

identidade política autêntica que se expressa no princípio da soberania estatal

(Walker, 2013 [1993]). Este princípio pode ser entendido como a boundary

practice fundamental da modernidade, ao traçar simultaneamente o limite que

confere a subjetividade política aos cidadãos, e a fronteira que restringe as

relações políticas ao espaço-tempo da ordem interna aos Estados. Assim, o

discurso moderno da soberania estatal, reproduzido fielmente pelas teorias do

mainstream das RI, proporciona, em última instância, uma versão específica para

a questão de “quem somos”, e, automaticamente, de quem “podemos ser”

politicamente no mundo. Este discurso, portanto, atua no sentido de marginalizar

outras possibilidades de subjetividades políticas (para além da cidadania) e

instâncias onde relações políticas possam ocorrer (para além dos Estados).

Com isto, Walker (Id.), alertou para como, dentro do discurso político

moderno, a universalidade só é possível dentro da particularidade dos Estados e

"as alegações à universalidade dentro dos Estados" dependem paradoxalmente do

"reconhecimento explícito, mas muitas vezes silencioso, de que tais alegações à

universalidade são, de fato, particularistas, feitas em nome de um grupo restrito de

cidadãos" (Id., p. 106). Em outras palavras, ainda que este discurso político se

apresente como universal e capaz de a todos representar, ele de fato se baseia em

uma "ética da exclusão absoluta" (Id., p. 110), ao não se referir ao humano em

geral, mas ao cidadão em particular. O limite entre a cidadania e a humanidade,

assim, juntamente com a fronteira entre o inside e o outside, são as demarcações

que baseiam o claim do Estado de ser uma fonte de identidade política e ordem

(Bartelson, 1998).

Refletir sobre o "lugar" dos refugiados em meio ao internacional e suas

demarcações excludentes é, assim, o que boa parte da literatura de RI crítica sobre

o assunto procura fazer4. As reflexões de Hannah Arendt, sobretudo aquelas

presentes no capítulo intitulado O Declínio do Estado-Nação e o Fim dos Direitos

do Homem de seu livro Origens do Totalitarismo (1998[1951]), são comumente

citadas por esta literatura, sendo a autora considerada a "legitimadora carismática"

4 Segundo Owens (2009), os "estudos críticos sobre refúgio" compreenderiam trabalhos de

orientação teórica feminista, pós-colonial, pós-estruturalista, marxista e da Escola de Frankfurt.

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dentro dos estudos críticos de refúgio" (Owens, 2009, p. 567). Tendo ela própria

vivenciado a condição de refugiada, enquanto judia alemã perseguida pelo regime

nazista, Arendt foi capaz de articular uma crítica profunda ao Estado-nação e ao

sistema internacional a partir da realidade vivenciada por aqueles forçados a sair

de seus países de origem. A autora salientou as contradições inerentes à forma

moderna de pertencimento político, argumentando que esta viabiliza a completa

negação de direitos a todos aqueles não representados por um Estado – sejam eles

os refugiados, os apátridas ou pertencentes às minorias nacionais no pós-Primeira

Guerra.

Referindo-se ao contexto histórico do entre guerras (1918-1939), a autora

demonstra como os refugiados trazem à tona justamente esta lógica da exclusão

absoluta que subjaz a soberania estatal e que estabelece o cidadão como "o"

sujeito da vida política. Arendt chama atenção para o fato de que "Só com uma

humanidade completamente organizada, a perda do lar e da condição política de

um homem pode equivaler à sua expulsão da humanidade" (Id., p. 329). Os

refugiados, expulsos da trindade Estado-povo-território, abalariam a legitimidade

do Estado enquanto entidade capaz de conciliar a particularidade (cidadania) e a

universalidade (humanidade) através da afirmação de que os direitos dos cidadãos

se justificam a partir da existência de direitos humanos universais, essenciais e

inalienáveis.

Segundo o raciocínio da autora, se estes direitos humanos inerentes de fato

existissem, os refugiados teriam seus direitos respeitados e sua voz política

garantida. Em outras palavras, os refugiados seriam privados de seus direitos

humanos justamente por carecerem do pertencimento a uma comunidade que

tornasse sua existência política efetiva, sendo o Estado soberano a forma moderna

dominante. Com isto, a autora revertia a equação, apontando para como os direitos

humanos se baseiam nos direitos dos cidadãos e não vice-versa, refutando a

existência de qualidade inerentes e universais a todos os seres humanos que lhes

garantiriam direitos e agência política em qualquer tempo e espaço (Balibar,

2007). Os refugiados revelariam a existência de um "direito a ter direitos", que

não é dado a priori a todos os seres humanos independentemente de seu

pertencimento a uma comunidade política. Por demonstrarem este "paradoxo dos

direitos humanos" e colocarem em xeque a legitimidade do Estado enquanto

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guardião de direitos universais, os refugiados abalariam a ordem internacional,

demonstrando sua lógica excludente.

Em suma, os refugiados, expulsos da trindade Estado-povo-território e,

consequentemente, da humanidade (no sentido politicamente efetivo do termo),

trariam à tona este "paradoxo" dos direitos humanos – segundo Arendt – ou do

internacional – segundo Walker. A ordem internacional se veria, assim, abalada

pela existência de pessoas que não podiam ou não queriam ser representadas e

contar com a proteção de Estados, e às quais não se aplicavam "as regras do

mundo que as rodeava" (Arendt, 1998[1951], p. 329), rompendo com a aparente

normalidade e bom funcionamento deste mundo. A condição de falta de direitos e

excepcionalidade vivenciada por estes grupos não seria uma mera exceção a uma

regra, mas um fenômeno crucial que perturbaria a suposta estabilidade, ordem e

possibilidade de justiça do mundo político moderno.

Ainda segundo Arendt, ao habitarem o limite entre a humanidade e a

cidadania, não pertencendo a nenhum dos dois âmbitos, os refugiados são

"privados não do seu direito à liberdade, mas do seu direito à ação; não do direito

de pensarem o que quiserem, mas do direito de opinarem" (Ibid.). Direitos civis,

humanos e voz política são assim inerentemente atrelados ao Estado soberano

enquanto entidade capaz de concedê-los aos seus cidadãos. Os refugiados são

excluídos destes atributos e revelam sua falsa universalidade.

É a partir destas premissas que diferentes autores do campo das RI vão

entender os refugiados enquanto sujeitos portadores de uma ameaça ou desafio à

sustentação da "ordem internacional". A tríade Estado-cidadão-território –

enquadrada pela sequência demarcação-limite-fronteira predominante na

modernidade – é desafiada por estes migrantes que rompem radicalmente com

esta forma territorial de pertencimento. Ao fazê-lo, os refugiados justamente

trazem à tona os limites das possibilidades políticas da configuração internacional

moderna, assim como a violência e particularismo que a sustentam. Como resume

Soguk, os refugiados:

[are] constantly reminding others of the arbitrariness and contingencies of

identity border and boundaries. In this way, refugees help remake the

conventional language in which the tales of the so-called citizenry, national

community, and territorial state are told. (Soguk, 1999, p. 15).

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Neste sentido, o "escândalo do refugiado" (Dillon, 1998) consiste

justamente na sua capacidade de trazer o "inter" do internacional ao primeiro

plano, romper com sua normalidade, e revelá-lo como um espaço da negação da

política (já que a política foi limitada ao inside), minando a possibilidade se

pensar o sistema de Estados enquanto provedor de ordem e capaz de abarcar a

todos de forma universal. Desta forma, os refugiados distinguem-se das demais

categorias migratórias, pois seu desafio à soberania estatal e ao sistema de Estados

não se limita à transgressão das demarcações políticas, socioeconômicas e

culturais deste sistema. Como lembra Neocleous (2003, p. 115), o Estado

reivindica para si não apenas o monopólio do uso da violência legítima, mas

também o monopólio sobre “os meios legítimos de movimento”. Os refugiados,

além de frequentemente transgredirem este monopólio – uma vez que uma parcela

significativa destes migrantes cruza fronteiras internacionais sem o porte da

documentação exigida –, também abalam a legitimidade do Estado enquanto a

entidade representativa e protetora, tornando explícita a “ética da exclusão

absoluta” por trás de suas demarcações. Isto é, o desafio colocado pelos

refugiados à soberania estatal e suas demarcações consiste justamente no fato de

estes migrantes politizarem estas linhas de discriminação, impedindo sua

concepção enquanto naturais, neutras ou essencialmente justas.

Além disto, sendo construídos legal e territorialmente pelas demarcações

da soberania estatal, os refugiados vão justamente habitá-las: o intervalo "entre

soberanos" (Haddad, 2008), o "inter" do internacional (Dillon, 1998), sendo sua

identidade entendida como um "limit-concept that occupies the ambiguous divide

between the binary citizenry-humanity” (Nyers, 2006, p. 3). Por desafiar a

concepção moderna de comunidade e pertencimento políticos e denunciar o

caráter excludente do internacional, abalando seus alicerces, a produção do

refugiado moderno distingue-se da de outras categorias de migrantes existentes

por ser definida “in terms of the wholesale devastation of the ontological horizons

of their worlds” (Dillon, 1998 p. 32). Ao não se situarem nem dentro nem fora das

entidades soberanas estatais que povoam o internacional, mas em um espaço "in-

between", estes migrantes são relegados a um campo apolítico e abjeto, oposto à

cidadania.

Ao apontarem para como a subjetividade do refugiado é representada

como marcada pela sua falta de pertencimento ao Estado, estes autores afirmam

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que isto não significa uma exclusão pura e simplesmente. O tipo de exclusão

crucial à qual estes migrantes são expostos pela lógica da soberania atua no

sentido de domar a contingência do refúgio e seu desafio à ordem internacional,

transformando-os em sujeitos que acabam contribuindo para a reprodução do

Estado soberano enquanto lócus da comunidade política. Portanto, pensando em

termos das demarcações do internacional, os refugiados se relacionam a elas em

três sentidos principais e entrelaçados: (i) desafiando-as via não-pertencimento;

(ii) habitando-as enquanto conceito-limite entre o cidadão e o humano; (iii) e

contribuindo para sua reprodução ao serem relegados a um campo apolítico

oposto à cidadania. Enquanto o primeiro ponto já foi explorado, cumpre agora

aprofundar o segundo e o terceiro.

2.1.2. Liminaridade

In her liminal position, the refugee is part of the system yet excluded from it, an

integral element of international society but denied full access to it. In this way

she is both an insider and an outsider, existing at the borders and between

sovereigns. (Haddad, 2008, p. 8)

Em termos de sua ontologia, ainda que a ordem internacional constitua a

condição de possibilidade dos refugiados, ou seja, apesar da existência do

refugiado depender da prevalência das demarcações do internacional, ele não é

incluído nesta ordem tal qual os cidadãos, que dependem das mesmas

discriminações para sua existência. Porém, o refugiado tampouco é

completamente excluído desta ordem, mas, como salientado no trecho

supracitado, relegado a uma zona intermediária de inclusão e exclusão ao mesmo

tempo. Segundo Haddad (Id.), o refugiado, ao romper o laço cidadão-Estado e

cruzar a fronteira internacional, é situado simultaneamente no exterior da

comunidade política doméstica e nos intervalos entre Estados, onde “indivíduos

não deveriam existir” (Id., p. 58).

A autora concebe a situação dos refugiados como pautada por uma

exceção dupla: tanto doméstica quanto internacional. Enquanto que

domesticamente o Estado de origem do refugiado não cumpre com seu papel de

proteção e representação primordial, internacionalmente não há qualquer tipo de

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autoridade responsável por garantir sua aceitação e proteção. Haddad ilustra esta

situação a partir do Direito Internacional. De um lado, para ser reconhecido como

um refugiado, o individuo precisa, em primeiro lugar, cruzar uma fronteira

internacional e, a seguir, solicitar refúgio. De outro lado, não há mecanismos

normativos internacionais para o refúgio que obriguem os Estados de destino a

reconhecerem sua situação e se responsabilizarem por sua proteção. A Convenção

de 1951 não vincula os Estados a esta responsabilidade e a própria Declaração

Universal dos Direitos Humanos apenas versa, em seu Artigo XIV, sobre o direito

de todo ser humano de “procurar e de gozar asilo em outros países”, sem haver

um dever dos Estados de destino de conceder esta proteção (Assembleia Geral das

Nações Unidas, 1948).

Neste sentido, segundo Haddad, o refugiado encontra-se no limite entre o

inside e o outside, e seu caráter “in between” é produzida pelo descompasso entre

a soberania positiva do Estado (a responsabilidade de representar e proteger seus

cidadãos) e a soberania negativa (ou anarquia) do sistema internacional (em que

não há uma autoridade superior responsável por indivíduos que rompem com o

pertencimento ao Estado de origem). Assim, o refugiado é incluído no sistema

internacional a parti de sua exclusão; é uma parte integral deste sistema, mas não

encontra um lugar para si nele, configurando-se em uma figura liminar.

Outra perspectiva que também destaca a posição liminar dos refugiados na

ordem do Estado soberano e do sistema internacional e que aponta para como

estes são inseridos em uma zona de inclusão e exclusão simultânea é informada

pela noção defendida por Agamben (1998) do "estado de exceção". Há uma vasta

literatura que se debruça, criticamente ou não, sobre a noção do "estado de

exceção" para pensar a condição à qual os refugiados são submetidos (Squire,

1999; Edkins, Pin-Fat, 2004; Nyers, 2006; Owens, 2009). Porém, em primeiro

lugar, cumpre salientar o que significa afirmar que a identidade do refugiado é

pautada pela "relação soberana da exceção", que implica na condição liminar

deste sujeito diaspórico. Afirmar que refugiados são enquadrados por uma

"exclusão inclusiva" pelo Estado soberano está diretamente entrelaçado a afirmar

que este enquadramento contribui para a reprodução do próprio Estado enquanto

locus par excellence da comunidade política. Ou seja, os três aspectos do "desafio,

liminaridade e reprodução" delineados são indissociáveis na leitura aqui

apresentada, como deve ficar claro a seguir.

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Baseando-se em Schmitt, Agamben (1998) concebe como o fator definidor

da soberania a sua capacidade de proclamar o estado de exceção, o que significa a

suspensão da validade da ordem jurídica. No entanto, aquilo que é alvo da

exceção soberana, ou seja, que é excluído da ordem geral, não é completamente

aparatado desta ordem, mas mantém com a mesma a relação de consistir na sua

suspensão. Para o filósofo, a exceção soberana consiste na zona liminar

(threshold) entre o inside e o outside, entre a inclusão e a exclusão (não estando

exatamente nem dentro nem fora, mas nos dois ao mesmo tempo), que torna esta

separação possível em primeiro lugar. Isto é, trata-se de uma zona de co-produção

do que se encontra em cada lado. A exceção é incluída na ordem normal

justamente por não pertencer a ela, mas mostrar seus limites.

Assim, aquilo que é aprisionado pela relação soberana da exceção é nela

incluído somente através de sua exclusão, sendo, em outras palavras, alvo de uma

"exclusão inclusiva". A relação de exceção também é definida por Agamben

como uma relação de "banimento" (conceito desenvolvido por Jean-Luc Nancy),

na qual a lei se aplica a algo justamente pela sua não-aplicação, e o que é banido

habita a zona de indistinção entre o interior e o exterior da ordem jurídica. A

forma de vida produzida pela lógica soberana da exceção é o que o autor chama

de "vida nua", uma vida que não é nem meramente biológica (zoē) nem política ou

qualificada (bios), mas que é banida das instituições políticas e legais às quais os

cidadãos têm acesso.

O cidadão, por sua vez, como o sujeito soberano por excelência da

modernidade, tem esta condição assegurada pela inscrição da sua vida natural à

ordem do Estado moderno. Ou seja, o que determina a condição do cidadão é a

inscrição de sua vida natural, seu nascimento, na ordem de um Estado soberano e

não uma vida marcada pela liberdade e agência política a priori. Nesta

perspectiva, o refugiado, por ter rompido seu laço com o país de origem, tem sua

condição enquanto "vida nua" trazida para o primeiro plano, demonstrando ser

este tipo de vida o que sustenta o Estado soberano. Isto é, o refugiado demonstra

que por trás do sujeito-cidadão não há uma vida política qualificada apriorística,

mas apenas vida nua: perde-se a cidadania, perde-se o status enquanto sujeito

soberano capaz de ter uma vida política. Com isto, Agamben retoma e reforça o

argumento apresentado originalmente por Hannah Arendt discutido anteriormente.

O impacto do refugiado sobre a ordem do Estado-Nação é assim, profundamente

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perturbador, constituindo-se como um conceito limite: "The refugee must be

considered for what he is: nothing less than a limit concept that radically calls into

question the fundamental categories of the nation-state, from the birth-nation to

the man-citizen link (…)” (Id., p. 134).

"Exceção", "zona de indistinção entre o inside e outside", "banimento" e

"vida nua" são noções interdependentes que podem ser entendidas como

denotando o traçado de demarcações pela lógica do Estado soberano, já que a

exceção consiste justamente na zona de indistinção entre o que é incluído e o que

é excluído. O refugiado insere-se neste vocabulário excepcional pelo seu caráter

liminar. Não estando nem dentro nem fora dos Estados, mas "entre", ele configura

a exceção à regra da cidadania, habitando o espaço do limite entre o humano e o

cidadão. A zona de indistinção na qual ele se situa, por sua vez, ao mesmo tempo

em que abala a ordem do Estado-nação, demonstrando seus fundamentos, torna

esta separação possível e a determinação do que constitui a ordem interna

(cidadania) possível.

É a partir deste raciocínio que Nyers (2006), por exemplo, afirma que a

relação entre o refugiado com a ordem política do Estado soberano não é de mera

oposição, mas que ela:

(...) can be described as a kind of “inclusive exclusion”. Refugees are included in

the discourse of “normality” and “order” only by virtue of their exclusion from

the normal identities and ordered spaces of the sovereign state. As an object of

classification, the refugee is trapped within the sovereign relation of the exception

(…) (Id., p. xiii).

Ainda que Agamben visse na figura do refugiado a possibilidade de

superar a ordem do Estado-nação baseada na biopolítica (na inscrição da vida

natural no centro dos cálculos e intervenções do poder estatal) justamente por eles

demonstrarem seus fundamentos e não se inserirem nesta ordem (Agamben, 1995,

2008), uma série de autores preocupados com a construção da "figura do

refugiado" busca explorar de que forma o refugiado enquanto uma "exceção" ou

"conceito-limite" também contribui para a demarcação da ordem interna da

cidadania. Eles demonstram como o discurso convencional que constrói a

categoria ou figura do refugiado explora a condição liminar deste sujeito como

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uma instância que contribui para a reprodução do Estado soberano e do sistema de

Estados, como será exposto a seguir.

2.1.3. Reprodução

A experiência do refúgio e a subjetividade daqueles que migram de

maneira forçada não podem ser subsumidas a uma fórmula universal. Como

afirma Soguk (1999, p.4), não há nenhum ponto em comum às múltiplas

experiências do refúgio, “save the experience of displacement”. Não há como se

comparar a condição de um refugiado iraniano vivendo em Nova York à de uma

refugiada congolesa vivendo no subúrbio do Rio de Janeiro, ou à de uma família

de refugiados sírios habitando precariamente um campo improvisado na fronteira

com a Jordânia, por exemplo. Suas trajetórias migratórias são distintas, assim

como o são a qualidade de sua acolhida, os novos laços que estabelecem, os

engajamentos políticos nos quais se envolvem ou não, as relações que mantêm

com o país de origem, a maneira como lidam com o passado e imaginam seu

futuro. Em suma, as experiências de cada refugiado são extremamente diversas e

sua subjetividade é tão múltipla e contingente quanto a do não-refugiado, sendo

sempre “mobile and processual, partly self-construction, partly categorization by

others, partly a condition, a status, a label, a weapon, a shield, a fund of memories,

et cetera. It is a creolized aggregate composed through bricolage”. (Malkki, 1992,

p. 37).

Em meio a esta contingência, e mantendo em mente o desafio que o

refugiado traz à ordem internacional, a maneira como este migrante é enquadrado

pelo discurso convencional – por governos e seus órgãos burocráticos, ONGs,

mídia, organizações internacionais e agências humanitárias – o reduziria a uma

figura homogênea caracterizada pela sua falta de voz e agência política, inserida

no campo humanitário, e traduzida em discursos que expressam sua

vulnerabilidade, invisibilidade, e dependência (Zetter, 1991; Malkki, 1992, 1996;

Soguk, 1999, Hyndman, 2000; Nyers, 2006; Haddad, 2008; Johnson, 2011; Scheel

& Ratfisch, 2014). Cumpre ressaltar que isto não significa que a subjetividade dos

refugiados em si é simplificada desta forma, mas que a "figura" ou a categoria do

refúgio são assim construídas pelo discurso predominante.

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Pode-se dizer que a literatura que analisa criticamente a construção da

categoria ou "figura” do refugiado tem como ponto de convergência o

entendimento de que a questão crucial envolvendo o refugiado é a sua

classificação ou categorização, ou seja, o desenho de uma linha de discriminação

(demarcação) capaz de domar sua contingência e aprisioná-lo dentro de um campo

humanitário e apolítico específico. O rótulo "refugiado" não pode ser entendido,

assim, como uma mera categoria burocrática e legal supostamente neutra, mas

como uma boundary practice, que submete este migrante a percepções

"institucionalizadas" de uma identidade pautada pela crise e que demanda

medidas específicas (Zetter, 1991), o que impacta diretamente sobre sua

subjetividade e possibilidade de agência política.

The label connotes humanitarianism, yet it creates and imposes an

institutionalized dependency; it assigns an identity, yet this identity is

stereotyped, it is benevolent and apolitical, yet at the same time highly politicized

(…). But perhaps most importantly, the term “refugee” automatically conjures up

an assumption of change in ‘normal’ and accepted global, national and regional

structures. Since the application of the term ‘refugee’ is imposed on the forced

migrant by bureaucratic activity, the concept can be seen as a form of control.

The refugee ‘client’ is obliged to conform to the stereotype that the term conjures

up, forgoing any distinctiveness or exclusivity. (Haddad, 2006, p. 36-7).

Assim, longe se ser trivial, pensar a classificação de um migrante enquanto

refugiado e o que esta categoria implica em termos de subjetividade política é

crucial uma vez que o ato de classificar "gives order to the world by marking off

limits, assigning positions, and policing boundaries” (Nyers, 2006, p. 7). Neste

caso, portanto, pode-se considerar o discurso convencional que informa a

categoria do refugiado como uma boundary practice que atua no sentido de

despolitizar sua existência e reivindicações. A literatura aqui analisada se

posiciona criticamente a esta vitimização, ao mostrar que esta figura específica do

refugiado não condiz necessariamente com as experiências e subjetividades destes

migrantes (que são múltiplas e contingentes como mencionado anteriormente),

mas que esta é uma figura imposta pela lógica da soberania estatal e veiculada nos

discursos dominantes sobre refúgio. Em outras palavras, esta literatura não

defende uma perspectiva sobre os refugiados enquanto vitimas, mas demonstra

como um discurso pautado pela soberania problematiza a questão do refúgio e

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representa estes migrantes desta forma, o que impacta em sua posição social e

política vis-à-vis o campo da cidadania.

Segundo Hyndman (2000), representar os refugiados como vítimas

apolíticas sem voz constitui uma "semio-violência", uma vez que cala suas vozes

e capacidade de expressar seus próprios significados. A autora critica

particularmente a maneira como os refugiados são representados sempre por

“outros” e não por si mesmos, sejam estes outros constituídos pela mídia

internacional, por ONGs ou por agências humanitárias que trabalham diretamente

com os refugiados. Nestas representações, e respondendo a demandas midiáticas

ou de arrecadação de recursos, estes “outros” frequentemente traduzem os

refugiados como dados estatísticos ou os retratam como uma massa

homogeneizada de vítimas sem voz. Seja através destas práticas de representação

ou através da simples ausência de qualquer representação, os refugiados são

submetidos a uma espécie de violência pautada pela lógica humanitária que,

segundo Hyndman, precisa ser questionada e subvertida. A autora busca

justamente refutar estas imagens convencionais sobre os refugiados, apresentando

outras perspectivas sobre as histórias de vida destes migrantes em campos de

refugiados precários, ressaltando as constelações assimétricas e até mesmo

coloniais de poder que permeiam estes espaços e que abafam as vozes dos

refugiados, atuando no sentido contrário dos objetivos de inclusão e proteção

oficialmente difundidos pela agenda humanitária.

Ao silenciar os refugiados e encobrir a riqueza, multiplicidade e caráter

político de suas experiências, estas representações convencionais podem ser

entendidas como despolitizando o campo do refúgio através da sua

"problematização" (Soguk, 1999). Soguk refere-se a "problematização" a partir da

noção foucaultiana segundo a qual "problematizar algo" significa converter suas

complexidades e caráter potencialmente perturbador em um problema passível de

soluções, ou seja, transformar uma prática desafiadora e contingente em algo que

pode ser administrado e normalizado. Como Soguk destaca das palavras de

Foucault, a problematização:

Transforms the difficulties and obstacles of a practice into a general problem for

which one proposes diverse political solutions. It is problematization that

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responds to these difficulties, but by doing something quite other than expressing

them or manifesting them: in connection with them it develops the conditions

under which responsible responses can be given; it defines the elements that will

constitute what the different solutions attempt to respond to. (Foucault, 1984, p.

389 apud Soguk, 1999, p. 17)

Portanto, segundo Soguk, a problematização dos refugiados atua no

sentindo de contribuir para a reprodução do Estado soberano enquanto a entidade

capaz de representar os cidadãos e inscrever a vida política. Esta problematização

seria operada a partir de três mecanismos: da incitação de um discurso particular

sobre os refugiados; da estatização da questão do refúgio, ou seja, da inscrição do

refúgio como um problema para o Estado soberano; e da arregimentação do

refúgio através da formulação de soluções a partir da perspectiva estatal.

A problematização operada a partir da lógica estatal estaria por trás da

concepção convencional do refugiado como um indivíduo caracterizado pela

ausência de tudo aquilo que constaria no cidadão. Sem poder contar com os laços

que o cidadão tem com sua comunidade ou a proteção de um Estado, o refugiado

é tido como uma aberração, suspenso em um vácuo. Segundo Soguk, a

representação convencional do refugiado contribui para a reprodução do Estado

soberano e do sistema de Estados, uma vez que corrobora a figura do cidadão

como o sujeito capaz de incorporar e dar sentido à subjetividade política. Assim,

reverte-se o desafio primordial que o refugiado impõe ao Estado soberano e à

ordem internacional. Afinal, segundo o autor, o problema mais fundamental do

estado é o de “inscribe, stabilize, and render effective a certain figure of the

citizen that the modern state would claim to effect its sovereignty (…).” (Id., p.

39). Ao contribuir para a sustentação desta concepção do sujeito-cidadão, o

discurso dominante sobre o refúgio que constrói a categoria do refugiado

problematiza as dificuldades e contingências apresentadas por este migrante em

prol da reprodução do Estado e suas demarcações excludentes.

Neste sentido, as caracterizações convencionais dos refugiados são

capazes de neutralizar o desafio que estes impõem à sustentação e legitimidade da

ordem internacional, ao mesmo tempo em que são capazes de transformá-los em

figuras que contribuem para a reprodução desta ordem. Segundo autores como

Soguk (1999), Nyers (2006), Haddad (2008) e Scheel (2014) dentre outros, a

representação dos refugiados enquanto sujeitos abjetos diametralmente distintos

dos cidadãos contribuem para sustentar a posição do cidadão enquanto o sujeito

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político autêntico. Características associadas ao campo da cidadania, tais como

voz, capacidade de articular suas próprias demandas, agência política, pró-

atividade e autonomia estariam, assim, conspicuamente ausentes no refugiado

enquanto vítima desamparada que necessita de intervenções humanitárias

especializadas para se manter.

Assim, uma lógica estatal perpassa o discurso convencional do refugiado

que é capaz de "capturar" (Deleuze e Guatari, 1987) sua contingência e

mobilidade, domando-as de modo a delimitar o campo autêntico da vida e

comunidade políticas ao âmbito interno aos Estados. Como afirmam os autores,

It is a vital concern of every State not only to vanquish nomadism but to control

migrations and, more generally, to establish a zone of rights over an entire

"exterior"(...). If it can help it, the State does not dissociate itself from a process

of capture of flows of all kinds, populations, commodities or commerce, money

or capital, etc. (Id., p. 385-6)

Nyers (2006) questiona a fundo a “captura” pelo Estado do refugiado, a

inserção deste migrante no campo humanitário, assim como a construção deste

campo como apolítico e transcendente à ordem do Estado soberano. Segundo o

autor, o discurso predominante sobre os refugiados os retrata como um problema

técnico, inserido num cenário de “crise” e que necessita de soluções humanitárias

emergenciais. Porém, encarar os movimentos de refugiados apenas por esta ótica

de “solução de problemas” (Cox, 1986) impede que se analisem os fundamentos

da questão do refúgio, o que torna este fenômeno uma “aberração” em meio à

ordem internacional e sua inserção no campo do humanitarismo.

Assim, em primeiro lugar, Nyers busca demonstrar como atribuir aos

movimentos de refugiados um caráter humanitário não permite que se escape da

lógica do Estado soberano. Isto é, o autor contraria o entendimento de que a lógica

humanitária seria apolítica e transcenderia aos padrões de inclusão e exclusão do

sistema de Estados. Nyers busca problematizar a oposição entre humanitarismo e

política, que se sustenta sobre a afirmação de que práticas humanitárias são

puramente éticas e motivadas por um comprometimento com a humanidade e não

com pessoas pertencentes a um grupo ou nacionalidade específicos. Os refugiados

seriam abarcados pelo humanitarismo justamente por não contarem com a

condição da cidadania, mas apenas com sua humanidade ou sua “vida nua”.

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Porém, o autor retoma os raciocínios discutidos anteriormente Hannah

Arendt, Giogio Agamben e Rob Walker para argumentar que a lógica da

humanidade não seria alheia à soberania estatal, pelo contrário, mas seria

justamente construída a partir desta. Arendt (1998 [1951]) mostrou como para ser

considerado como um ser humano político e detentor de direitos é preciso que se

seja primeiramente considerado um cidadão. Ou seja, a lógica que permeia a

humanidade é uma lógica de exclusão que apenas garante espaço para aqueles

representados por um Estado. Já segundo Agamben (1998), não há como se

desvencilhar a humanidade da política, uma vez que a vida humana nua está na

base do Estado, garantindo-lhe legitimidade e seu poder soberano. Ou ainda,

seguindo Walker (2013[1993]), o discurso político moderno já provê uma

concepção de humanidade (universal) atrelada à soberania estatal que a coloca em

posição hierarquicamente inferior à particularidade da cidadania. Isto é, somos

primeiramente cidadãos, porém mantemos uma relação com a humanidade a partir

do nosso pertencimento ao sistema de Estados. A partir destas perspectivas, Nyers

afirma que longe se se situar em um campo ético, neutro e apolítico, o

humanitarismo tem uma ligação imanente com a política ao compartilhar os

códigos de inclusão e exclusão da soberania estatal e, assim, sua lógica política

excludente e violenta.

Ademais, Nyers critica a “geografia moral” que representa os refugiados

como constituindo um campo oposto àquele da cidadania. Segundo esta geografia

moral veiculada pelo discurso dominante sobre refúgio, os cidadãos são situados

dentro do espaço supostamente protetor do Estado territorial, contam com o

pertencimento a uma comunidade política composta por seus concidadãos e

apresentam uma vida política plenamente qualificada (bios), podendo expressar-se

politicamente no espaço público. Já os refugiados são alocados a um espaço

exterior à esfera segura do Estado, pertencem ao espaço humanitário –, ou seja,

podendo apenas reivindicar pertencimento à comunidade moral da humanidade –

e são silenciados e assegurados apenas a vida nua e seus requerimentos básicos de

sobrevivência. (Id., p. 98).

A partir deste tipo de representação, Nyers argumenta que ser um

refugiado envolve, para além da obtenção do status legal, a demonstração de uma

série de atributos subjetivos (vitimização, passividade, falta de voz política,

invisibilidade) relacionados a esta representação. A própria Convecção de 1951

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corroboraria esta “geografia moral” ao determinar como elegível ao status de

refugiado toda a pessoa que apresente um “fundado temor de perseguição”. Esta

definição estabelece o medo como a característica a ser demonstrada pelos

refugiados. Porém, como lembra Nyers, pessoas definidas pela emoção do medo

costumam estar sujeitas a práticas que as colocam em uma posição social de

hierarquicamente inferior. Ao mesmo tempo, cabe a um representante do Estado

de destino (um cidadão) avaliar (através do uso da razão e da análise da “situação

objetiva” do caso) o quão “fundado” é o medo apresentado pelo solicitante.

Considerando esta “lógica soberana da exceção” que bane os refugiados

do espaço político, Nyers chama atenção para a necessidade de se elaborar outros

enfoques capazes de perceber a riqueza política que perpassa as experiências

destes migrantes e suas promessas em termos de alternativas de ação e

pertencimento políticos no mundo contemporâneo, rompendo com o enfoque

humanitário e da vitimização dominante. “Once we no longer expect to hear

silence from refugees, then perhaps we will be ready to listen to how they are

asserting themselves as political subjects, thereby recasting the terms on which the

sovereign political relation has relied.” (Id., p. 129).

Cumpre destacar que esta percepção do refugiado como um sujeito

apolítico, sem voz e vitimizado emergiu no contexto histórico específico em que

refugiados do Sul Global passaram a buscar proteção nos países do Norte – o que

legalmente se tornou possível graças ao Protocolo de 1967 à Convenção de 1951,

expandindo o reconhecimento do status de refugiados para migrantes provindos

de países não europeus. Estes "novos refugiados" já não desempenhavam o

mesmo papel político relevante que seus pares europeus advindos do bloco

soviético vinham desempenhando desde o pós-Segunda Guerra. Enquanto que

estes refugiados europeus de regimes comunistas eram bem aceitos nos países

capitalistas de acolhida por supostamente confirmarem a "superioridade moral"

dos regimes do Oeste sobre os do Leste no contexto bipolar da Guerra Fria, estes

novos refugiados advindos do então "Terceiro Mundo" não ofereciam a mesma

vantagem política. Sua chegada aos países do Norte levou à criação do "mito de

diferença" (Chimini, 1998), segundo o qual estes refugiados seriam distintos dos

europeus recebidos até então, cristalizando uma nova "figura do refugiado"

enquanto uma pessoa desamparada do Sul Global. Como salientam Squire e

Scheel (2014, p. 194), “‘the myth of difference’ implied a reimagination of the

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figure of the ‘refugee’, who was now imagined as a poor and helpless person from

the global South. A lack of political agency became the defining feature of the

‘figure of the refugee’ during this period”.

Justamente por se originarem de locais interpretados como marcados por

pobreza extrema e violência endêmica, este “novo refugiado” passou a ser visto

com crescente suspeita de que, na verdade, seria apenas um migrante econômico

"abusando" da possibilidade de entrada via a solicitação de refúgio. Desta forma,

o "refugiado genuíno", pertencente a um campo humanitário e visto como sem

agência política, passa a ser contrastado com o "bogus asylum seeker", "o

solicitante de refúgio falso" que não apresenta uma real necessidade de proteção,

mas se utiliza do sistema de refúgio para conseguir acesso a um país no qual busca

melhores condições de vida. A figura deste "farsante" corrobora a separação

dicotômica entre o refugiado e o migrante econômico, ao mesmo tempo em que

contribui para justificar medidas restritivas à recepção de refugiados. Além disto,

sobretudo a partir dos ataques de onze de setembro de 2001, a suspeita da

autenticidade do refugiado em termos de suas motivações econômicas somou-se à

suspeita de suas motivações terroristas (Huysmans, 2000; Squire, 2009; Bigo,

2007), contribuindo para consolidar a "figura do refugiado genuíno" enquanto

vítima apolítica, ao mesmo tempo em que se dificultava a comprovação desta

autenticidade.

Um importante ressalva a se considerar é a de que, ao se referirem aos

“novos refugiados” do Sul Global, esta literatura tem como ponto de referência

aqueles advindos principalmente do continente africano, não discutindo, por

exemplo, a situação daqueles que se opunham aos regimes ditatoriais da América

Latina. Durante a Guerra Fria, principalmente nos anos 1970 e 1980, uma série de

países do subcontinente era governada por regimes ditatoriais alinhados aos

Estados Unidos, tendo vivenciado graves conflitos armados de natureza política.

Os países que se destacaram neste contexto foram El Salvador, Nicarágua,

Guatemala e Chile. Segundo Moreira (2005), este contexto regional deu origem a

um fluxo de mais de dois milhões de refugiados provenientes somente da América

Central, sedo que a maioria daqueles que buscaram refúgio nos EUA tiveram seu

status negado (dada disputa geopolítica e ideológica da época). A esta questão

soma-se a dos exilados do Cone Sul, que eram forçadamente banidos de seus

países de origem pelas suas atividades, efetivas ou supostas, de oposição aos

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regimes autoritários. Outros mecanismos de banimento político, similares ao

exílio, foram empregados na região, sendo que estes cidadãos expulsos, longe de

se adequarem a uma imagem apolítica e passiva, tiveram importante papel em

articular um movimento de oposição aos regimes vigentes a partir da diáspora,

como destaca Marques (2011) no caso brasileiro.

O ACNUR, enquanto principal agência internacional responsável por atuar

pela proteção dos refugiados, costuma ser apontado pela literatura aqui discutida

como um dos principais atores responsáveis pela produção do discurso em torno

do refugiado que o insere no campo do humanitarismo, assim como contribuindo

para o enquadramento da questão do refúgio a partir de uma perspectiva

estadocêntrica. As chamadas "soluções duradouras" para os refugiados

promovidas pela agência consistem em sua repatriação, sua integração local no

país de acolhida ou seu reassentamento a um terceiro país capaz de recebê-lo.

Nota-se que as três soluções são elaboradas a partir do ponto de vista do

restabelecimento da relação Estado-cidadão-território rompida, de modo que elas

também contribuem para a conversão dos refugiados em uma figura que contribui

para a legitimidade e reprodução da ordem internacional.

Em termos da representação destes migrantes, Johnson (2011) demonstra

como a criação da figura dos refugiados advindos do Sul Global – e que

prevaleceria atualmente – teria emergido a partir do seu contraste com o discurso

dominante anterior que prezava os migrantes que se opunham aos regimes

comunistas europeus. A transição da representação do refugiado europeu anti-

regime comunista pra a figura do refugiado do Sul Global teria sido traduzida

como a passagem "from the heroic, political individual to a nameless flood of

poverty-stricken women and children” (Id., p. 1016). Fazendo um estudo

genealógico do regime de refúgio através das representações visuais destes

migrantes veiculadas principalmente pelo ACNUR, a autora demonstra que estas

colaboram para a formação de um discurso que conforma a figura do refugiado a

partir de três padrões básicos: sua racialização, sua vitimização e sua feminização

(quando a figura imaginada deixou de ser um homem cruzando fronteiras, mas

uma mulher e seus filhos). Assim, a agência exploraria imagens de mulheres e

crianças de modo a capitalizar sobre os pressupostos tradicionais de gênero e

etários que as relacionam a vulnerabilidade e inocência, de modo a angariar

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fundos e apoio para as políticas que implementa, ao mesmo tempo em que

consolida a representação do refugiado como uma questão despolitizada5.

A partir destas considerações, constata-se que a mobilidade dos refugiados

e seu não pertencimento à ordem territorial-estática do Estado – o que, como

destacado, constitui um risco à sustentação da ordem internacional – são

"capturados" pela lógica da soberania estatal e, assim, convertidos, através do

discurso convencional sobre o refúgio e práticas institucionais, em uma

oportunidade para a reprodução desta mesma ordem. Lembrando que, segundo

Agamben (1998), o refugiado enquanto conceito-limite da política moderna habita

o espaço excepcional no qual o inside e o outside são indistintos, justamente seu

caráter liminar vem a viabilizar esta distinção, com isto demarcando o campo da

cidadania.

Portanto, desafio, liminaridade e reprodução são indissociáveis na forma

particular como o refugiado se insere na "ordem nacional das coisas". Seu não

pertencimento à tríade Estado-cidadão-território implica em sua liminaridade que,

por sua vez, é capturada ou banida pela lógica soberana da exceção de modo a

reproduzir as demarcações da ordem estatal/internacional. Portanto, o cidadão e o

refugiado compartilham uma relação mutuamente constitutiva; isto é, enquanto

sujeito liminar, o refugiado desempenha um papel crucial na definição dos limites

da cidadania e da comunidade política ao mesmo tempo em que estas determinam

seu caráter liminar.

É neste sentido que Soguk (1999) afirma que a existência dos refugiados é

ao mesmo tempo perturbadora e recuperativa à prática do statecraft. Se seu não

pertencimento à tríade Estado-cidadão-território consiste em um desafio à

sustentação do Estado soberano e do sistema de Estados, o discurso convencional

sobre o refúgio:

5Soguk, Haddad (2008), dentre outros autores da literatura crítica sobre refúgio, referem-se ao

migrante em questão no feminino, como "a refugiada". Haddad explicitamente justifica esta

manobra pelo fato de: (i) a maioria dos refugiados globalmente ser composta de mulheres e

meninas (justamente pela existência de formas de perseguição e violência que afetam pessoas do

gênero feminino especificamente); (ii) porque, ao inverter o gênero tradicional atrelado a este

migrante, esta mudança chamaria atenção para a sua identidade, levando o leitor a refletir sobre a

mesma e não assumi-la de antemão como algo neutro e universal. Neste trabalho, porém, optou-se

por não se utilizar o gênero feminino porque, apesar da intenção contrária, a forma feminina pode

acabar reforçando a imagem feminizada e despolitizada deste migrante, tal como ressaltado por

Johnson (2011). Ou seja, uma vez que a representação predominante deste migrante costuma

veicular imagens de mulheres e crianças retratadas como indefesas e sem agência política,

empregar "a refugiada" pode acabar contribuindo para este entendimento que justamente se

pretende questionar.

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(...) articulating and circulating a specific historical figure of the refugee (by way

of concrete governmental and intergovernmental activities attendant upon refugee

events), serves as one of many boundary-producing, normality-constructing

discourses instrumental in the expression, empowerment, and institutionalization

of a certain territorialized figure of the citizen-subject – the presumed

foundational subject on the basis of which the sovereign state has historically

been, and continues to be, articulating as an agent of representation. (Id., p. 49).

Segundo Ashley (1988, p. 256), o problema fundamental do statecraft

moderno é o de "estabilizar os fundamentos soberanos da violência legítima na

política moderna ao enquadrar e inscrever o domínio doméstico dos "homens

soberanos" os quais o estado pode ser entendido como representando". O

problema do statecraf, assim entendido como a tarefa de garantir que as

demarcações do Estado soberano e do sistema internacional de fato se sustentem

na delimitação de onde a vida política pode ocorrer, nunca é efetivamente

resolvido, mas depende de uma série de práticas capazes de produzir (craft) ou

(re)fundar o Estado constantemente. O discurso do refúgio, assim, consistiria em

uma destas práticas, capazes de inscrever o campo interno aos Estados e seus

cidadãos como respectivamente o espaço-tempo e a subjetividade autênticos da

modernidade. A produção do refugiado (refugeecraft) e do Estado (stecraft) são,

portanto, indissociáveis, com o a categoria do refugiado reproduzindo as

demarcações do Estado moderno e vice-versa.

2.2. Alternativas (à lógica soberana)

A análise apresentada até o momento acerca da relação entre o refugiado e

o Estado soberano pode ser resumida como expressando como este migrante é ao

mesmo tempo funcionalmente perturbador e necessário à ordem internacional.

Ao desafiar, habitar os limites e, ao ser enquadrado por um discurso excepcional,

reproduzir as demarcações do internacional, o refugiado parece ontologicamente

preso a um campo despolitizado e abjeto.

Entretanto, uma literatura crescente vem, sobretudo desde o início dos

anos 2000, buscando pensar os refugiados e solicitantes de refúgio, assim como

migrantes irregulares – dentre outras categorias de migrantes "abjetos" (Nyers,

2003) ou "indesejáveis" (Squire, 2009; Fassin, 2012) – para além da lógica

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soberana. Buscando superar a perspectiva pautada pela "política excludente do

refúgio" (Squire, 2009), estes autores questionam como o limite cidadão-humano

pode ser renegociado por estes migrantes ao se mobilizarem politicamente e

contestarem a lógica violenta que os nega voz e agência política.

Assim, pode-se dizer que os autores que investigam estes engajamentos

políticos de refugiados reconhecem que há, em primeiro lugar, o traçado de uma

demarcações pela lógica do Estado soberano que opõe, de um lado, o campo

político habitado pelos cidadãos e, de outro, "pessoas fora do campo do político"

(Moulin, Nyers, 2007, p. 357), sejam estes refugiados ou demais migrantes

abjetos. No entanto, ao mobilizarem-se politicamente, questionando esta lógica

excludente, estes migrantes seriam capazes de experimentar e constituir novas

formas de se ser político (Nyers, 2012). Isto é, os engajamentos políticos destes

migrantes abririam espaço para possibilidades do ser e fazer político que não

reproduzem a lógica soberana que os relega a um campo despolitizado e abjeto,

refutando sua transformação em uma prática de statecraft. No caso dos refugiados

e solicitantes de refúgio, tidos como vítimas sem voz, ao reivindicarem seu espaço

e intervirem na política de proteção, eles conformariam uma espécie de

"cosmopolitismo abjeto", capaz de colocar o que conta e quem pode ser político

em questão (Nyers, 2003).

O enfoque dos atos de cidadania (Isin, 2008) costuma ser empregado por

estudos voltados à mobilização política de não-cidadãos. Esta abordagem permite

que se pense a cidadania não como pertencimento legal a um Estado – um status

jurídico – ou como práticas que são mobilizadas por aqueles considerados como

cidadãos, mas como atos através dos quais, mesmo aqueles não reconhecidos

como atores políticos legítimos, constituem-se enquanto cidadãos, ou melhor,

como aqueles que têm o "direito a ter direitos" (retomando a expressão

aredntiana). Assim, é possível se pensar a cidadania não a partir dos sujeitos-

cidadãos, mas dos atos capazes de produzir outros sujeitos que têm este direito a

ter direitos, que compõem e constituem o espaço político de uma cidadania "por

vir" não atrelada ao Estado. Estes atos de cidadania, diferentemente das práticas

repetitivas normalmente relacionadas ao campo da "ação cidadã" – como o voto,

ou o pagamento de impostos, por exemplo – têm um caráter perturbador capaz de

chamar atenção para novas formas criativas de se intervir politicamente e fazer

reivindicações.

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McNevin (2011), focando-se no caso dos migrantes irregulares argumenta

que estes têm emergido como novos atores de uma política local/global – como,

por exemplo, através do movimento dos Sans Papiers na França – ao contestarem

seu posicionamento enquanto "outsiders" e reivindicarem acesso à cidadania a

partir de geografias políticas que não têm sua legitimidade fundamentada no

Estado-soberano. Squire (2009), por sua vez, discute a política migratória

securitizadora e despolitizante na União Europeia, demonstrando como

solicitantes de refúgio são cada vez mais passíveis de se tornarem "imigrantes

ilegais" em meio a esta política excludente, ao mesmo tempo em que ressalta

como os engajamentos políticos destes migrantes em movimentos como No One

is Illegal e No Borders são capazes de contestar a lógica soberana da exclusão.

Na mesma linha, Nyers (2010) buscou investigar, através do conceito de

atos de cidadania, de que maneira as manifestações políticas de migrantes e

refugiados sem status legal no Canadá seriam capazes de desafiar formas

tradicionais de se conceber comunidade e subjetividade políticas. Para tanto, o

autor parte do entendimento de que pessoas sem status legal reconhecido não

apenas não têm acesso a uma série de direitos, mas são expulsas da esfera política

e conspicuamente silenciadas. Por outro lado, suas mobilizações políticas são

capazes de romper com a ordem exclusivista da cidadania e transformá-los em

atores políticos para além da concepção territorialista moderna da subjetividade

política.

Por fim, Rygiel (2014) também busca contribuir para esta literatura crítica

sobre migração e cidadania ao analisar a mobilização de grupos de migrantes e

outros ativistas que protestam contra a morte daqueles que tentaram cruzar

irregularmente a fronteira da Turquia com a Grécia, buscando entrada na Europa.

Segundo a autora, as principais demandas desta mobilização giram em torno do

esclarecimento sobre as mortes e desaparecimentos na região da fronteira, assim

como do direito de velar os mortos de maneira digna. A autora argumenta que, ao

insistir que os migrantes mortos devem ser reconhecidos como pessoas com suas

histórias e famílias próprias que devem ser respeitadas, e também como sujeitos

políticos com direitos a ter direitos (dentre os quais, um enterro apropriado), estas

mobilizações contestam a banalização destas mortes e reivindicam que a vida dos

não-cidadãos seja considerada tão importante quanto a dos cidadãos. O tipo de

"cidadania transgressora" que emergiria de tais movimentos teria a capacidade de:

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Disrupt the readily accepted equations of who is and who is not and should not be

a citizen and the ontological borders underpinning modern citizenship of whose

lives should count, that is of who should be recognized as a political subject with

the right to have rights. (Id., p. 70)

Assim, esta literatura retomada aqui brevemente, reconhecendo que

refugiados, migrantes irregulares e outros migrantes tidos como "indesejáveis"

são, silenciados e excluídos do campo político pela lógica soberana, aponta para

como este quadro territorial da comunidade política pode ser contestado.

Pensando no caso específico dos refugiados, ela salienta como a dinâmica

cidadão-humano pode ser reformulada a partir da mobilização política destes

migrantes, expandindo as possibilidades de se pensar comunidade e agência

política para além dos limites previstos pelo discurso moderno. Portanto, ela

aponta para uma alternativa importante à lógica do desafio-liminaridade-

reprodução apresentada anteriormente. Ou seja, para como os refugiados, não

agindo como o esperado – como vítimas sem voz –, mas engajando-se em atos de

cidadania, são capazes de reverter sua posição abjeta e apolítica e, ao invés de

representarem uma prática de statecraft, abrirem novas possibilidades políticas

não limitadas ao âmbito dos Estados.

2.3. Considerações finais

A literatura revisada neste capítulo discute questões centrais ao se pensar

os refugiados, sua inserção na ordem internacional e as potencialidades de seu

engajamento político. Por um lado, o entendimento de que os refugiados

desafiam, ocupam os limites e reproduzem as demarcações do Estado soberano

permite que se perceba criticamente a lógica excludente e violenta que pauta a

chamada "ordem" internacional. Por outro lado, a literatura que vem procurando

destacar as mobilizações políticas e reivindicações dos refugiados e outros

migrantes tidos como "indesejáveis", possibilita se pensar formas de ser e agir

político que não se limitam à ordem territorial da comunidade política moderna.

Ou seja, ao se conceber a cidadania a partir dos atos que reivindicam o "direito a

ter direitos", os refugiados que não aceitam a subjetividade passiva e apolítica que

lhes é imposta, podem justamente romper com sua condição abjeta e constituir-se

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enquanto cidadãos, porém no sentido de agentes políticos não limitados pela

lógica exclusivista do Estado soberano.

O objetivo deste trabalho não é o de refutar as reflexões aqui expostas ou

desvendar qualquer tipo de incongruência teórica nesta literatura, porém de

empreender uma crítica a seus limites à luz de considerações teóricas sobre as

condições políticas contemporâneas. Recapitulando, esta leitura entende que, em

primeiro lugar, os refugiados são ao mesmo tempo funcionalmente perturbadores

(desafiadores) e reprodutores (necessários) em relação ao Estado soberano e ao

sistema de Estados, sendo que este caráter reprodutor do sistema se dá via a

mobilização de um discurso humanitário que constitui sua categoria ou "figura" a

partir de uma série de omissões ontológicas com relação à subjetividade autêntica

do cidadão. Em segundo lugar, estabelece-se que estes migrantes podem romper

com sua subjetividade imposta e reformular a dinâmica cidadão-humano ao

engajarem-se politicamente e reivindicarem o "direito a ter direitos", negando as

limitações políticas impostas pelo discurso moderno da soberania estatal6.

No próximo capítulo, será apresentada uma discussão teórica acerca da

soberania estatal e suas demarcações e como estas vêm sendo desafiadas,

problematizadas e rearticuladas no mundo contemporâneo. Assim, de forma

concisa, uma pergunta que se busca responder no próximo capítulo é: se o

refugiado é resultante das demarcações da ordem internacional, como

transformações em curso nesta ordem impactam o refugiado? Ao considerar uma

literatura recente que argumenta que estaríamos testemunhando uma proliferação

de demarcações, fronteiras e limites para além das linhas internacionais, busca-se

investigar como este processo redefine a categoria ou a figura do refugiado,

enfatizando como é crescentemente difícil se capturar este migrante dentro de uma

categoria humanitária delimitada oposta ao campo da cidadania.

6 O entendimento do “direito a ter direitos” aqui empregado aproxima-se daquele explicitado por

Squire e Darling (2013) ao interpretá-lo não como uma reivindicação legalista para que os direitos

reconhecidos aos cidadãos sejam expandidos de modo a contemplar também aqueles excluídos do

campo da cidadania, mas como uma reivindicação de caráter político que demanda por justiça e

direitos a estes excluídos, para além das limitações do Estado moderno. No lugar de propor uma

nova comunidade política (por exemplo, a humanidade) a tarefa de reconhecer e garantir estes

direitos, a expressão “direito a ter direitos”, assim, tem a função de explicitar o caráter excludente

da comunidade política dominante na modernidade e as limitações que esta apresenta em suas

pretensões de universalidade.

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3 A rearticulação das demarcações modernas e seu impacto sobre a categoria do refugiado

A partir da literatura analisada no capítulo anterior, percebe-se que uma

premissa central dos estudos críticos de refúgio em Relações Internacionais é a de

que as demarcações do Estado soberano e do sistema de Estados estão na base da

configuração da categoria ou figura do refugiado, determinando seu caráter

apolítico e abjeto. A possibilidade de os refugiados reformularem a dinâmica

cidadão-humano na qual se situam reside em sua capacidade de recusar este

caráter abjeto e apolítico, de modo a transcender a lógica territorial da

comunidade política estatal. Em outras palavras, esta literatura entende que os

refugiados são basicamente definidos pelo limite que separa sua subjetividade da

cidadania, ainda que possam romper este limite a partir de sua mobilização

política e a negação da subjetividade imposta pela lógica soberana.

Desta forma, pode-se inferir que esta literatura parte do pressuposto de que

as demarcações mais significativas da vida política contemporânea são aquelas do

Estado moderno e do sistema de Estados. Ou seja, ela afirma a capacidade da

lógica soberana de, em primeiro lugar, domar a contingência do refúgio e capturá-

la dentro de um regime de classificação que os relega a um espaço humanitário e

despolitizado, ainda que esta captura possa ser contestada e superada pelo

engajamento político destes migrantes. Porém, se considerarmos como o ideal

regulador das demarcações do Estado soberano tem sido problematizado na vida

política contemporânea marcada por fluxos e mobilidade, podemos entender como

a própria categoria ou figura do refugiado, enquanto um rótulo e um campo

estabilizado, vem se fragmentando e se mostrando contingente, de modo que a

concepção do refugiado pautada pela oposição à cidadania também precisa ser

revista.

A fim de consubstanciar esta afirmação, o presente capítulo debruça-se

sobre uma literatura teórica que argumenta que a vida política contemporânea é

caracterizada por uma proliferação de demarcações para além daquelas

constituídas tradicionalmente pela soberania estatal, no sentido de que as

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principais formas de discriminação não se concentrariam mais – se um dia de fato

já se concentraram efetivamente – ao redor das demarcações dos Estados,

entendidas tanto em termos de suas fronteiras territoriais quanto a partir de seus

limites em termos de lei e subjetividade política. Se levarmos esta literatura em

consideração, então, a categoria do refugiado perde seu caráter necessariamente

oposto à subjetividade política do cidadão e se torna passível de uma série de

outras formas de discriminação que esvaziam este rótulo migratório de

pressupostos fixos com relação à subjetividade política das pessoas assim

categorizadas. Isto é, a figura do refugiado não necessariamente vai se constituir a

partir de um conjunto de omissões ontológicas com relação à figura do cidadão.

Com isto, uma série de outras demarcações (como de gênero, classe social, raça,

nacionalidade, sexualidade, religião, saúde, etc.) pode ser entendida como

desempenhando um papel crucial na conformação do que constituem as várias

"figuras do refugiado" observadas na atualidade.

A fim de embasar e construir esta argumentação, as próximas sessões do

capítulo discutem, sobretudo a partir do pensamento de Walker (2010), as

rearticulações contemporâneas da soberania estatal e suas demarcações a fim de

trazer uma abordagem alternativa para a investigação crítica da categoria do

refugiado. Assim, após apresentar uma discussão teórica acerca da soberania

estatal, das formas de discriminação que esta traça e autoriza e da sua

rearticulação e questionamento atual, são analisadas contribuições

contemporâneas relacionadas ao campo migratório que assimilam esta

rearticulação das práticas soberanas. Por fim, procura-se sinalizar para como as

transformações sofridas atualmente pela ordem internacional redefinem a

categoria estatal do refúgio.

3.1. Mobilidade, fluxo e questionamentos acerca das demarcações modernas

Desde o final dos anos 1980 e início dos 1990, autores advindos de

diferentes disciplinas têm chamado atenção para as acelerações, disjunções e

transformações estruturais que estariam modificando a vida política

contemporânea ao redor do mundo. Estes processos dinâmicos, comumente

agrupados sob o termo "globalização", são relacionados a uma maior mobilidade

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global, manifesta em fluxos crescentes e mais velozes de bens, informação,

capital, pessoas, ideias e lealdades políticas e religiosas, que impactam e alteram

qualitativamente o sistema internacional de Estados, a soberania estatal e a

concepção do sujeito moderno (Held; Mcgrew, 1993; Sassen, 2010; Brown,

2014).

Como argumenta Lapid (2001), a mobilidade, o fluxo e as mudanças

transformadoras que estes impõem à vida política em escala global forçariam

principalmente os autores de Relações Internacionais a repensarem seus

paradigmas e conceitos. Se as RI se consagraram como um campo de estudos

pautado pela premissa de uma ordem constituída por entidades estatais

demarcadas territorialmente, então, um grande desafio se apresenta a partir do

momento em que uma realidade percebida como móvel (marcada pela

temporalidade) parece sobrepor-se à estaticidade de uma ordem espacialmente

delimitada.

Como destacam Mezzadra e Nielson (2013, p. 63), a literatura do início

dos anos 1990 cunhou conceitos e imagens que buscavam capturar o caráter dos

processos contemporâneos globalizantes - sendo “fluxos”, “hibridização”,

“flatland” e “pós-nacionalismo” alguns dos termos emergentes – em um contexto

em que muitos acreditavam na prevalência de um movimento rumo a um mundo

sem fronteiras.

Neste contexto, Lapid (2001, p. 17) chamou atenção para como os debates

acadêmicos sobre a realidade contemporânea pareceriam cada vez mais

polarizados entre os partidários da "invariância modal" (que negam a existência de

mudanças transformadoras e afirmam a obstinação do Estado e do sistema de

Estados) e os defensores do fluxo (capazes de enxergar apenas mobilidade e de

decretar a obsolescência do Estado soberano). A esta compreensão de que os

Estados e suas demarcações permaneceriam obstinadamente imutáveis ou seriam

iminentemente abolidos soma-se o entendimento de que o mundo contemporâneo

seria marcado por uma série de paradoxos, dentre os quais a prevalência

simultânea de processos de abertura e bloqueio (Brown, 2014).

Assim, esta linha de raciocínio ressalta como os fluxos crescentes

observados ao redor do globo contestam as demarcações territoriais e

jurisdicionais dos Estados ao mesmo tempo em que estes respondem a estas

dinâmicas através de asserções de sua soberania, como vislumbrado, por exemplo,

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na construção de muros vultosos ao longo das fronteiras nacionais (o mais notório

entre EUA e México) e em políticas migratórias altamente restritivas. As

dinâmicas contemporâneas, nesta perspectiva, seriam marcadas simultaneamente

por fluxos e tentativas de contenção soberanas, porém, a própria composição desta

maior mobilidade é sujeita a qualificação. Mezzadra (2004) argumenta que a

agenda da globalização busca explicitamente a remoção de obstáculos à livre

circulação de bens e capital, ao mesmo tempo em que multiplica e reforça as

fronteiras enfrentadas pela mobilidade de certas pessoas. Isto é, ao se discutir

como as demarcações políticas se articulam no mundo contemporâneo, uma

pergunta relevante seria justamente “fronteiras para quem?”.

Neste sentido, Balibar (2002) aponta para a natureza polissêmica das

fronteiras, o que significa que estas têm um aspecto subjetivo importante e são

experimentadas de formas distintas dependendo do gênero, idade, raça, país de

origem, sexualidade, religião, etc. da pessoa em movimento. Assim, é importante

destacar que um migrante altamente qualificado, um turista, um solicitante de

refúgio e um migrante irregular vão experimentá-las de maneiras bastante

diversas, tanto em termos espaciais (o bloqueio, a impossibilidade da entrada

física em um território) como temporalmente (nos atrasos e demoras em salas de

inspeção, filas, interrogatórios, procedimentos burocráticos de solicitação de visto,

etc.).

Em meio à miríade de considerações e formulações teóricas elaboradas na

tentativa de lidar com a complexidade e contingência das dinâmicas políticas

contemporâneas esboçadas brevemente aqui, este trabalho é guiado

principalmente pela perspectiva apresentada por Walker (2010). O autor oferece

uma perspectiva mais complexa ao considerar as rearticulações contemporâneas

das práticas soberanas, pois vai além dos questionamentos apresentados acima

acerca da obstinação e/ou obsolescência dos Estados, assim como critica os

limites de se qualificar que tipos de fluxos e mobilidades são promovidos e quais

são contidos atualmente. Segundo o autor, estas questões são:

(...) undoubtedly important; indeed, they speak to much of what is at stake in

claims about the need to reimagine where and what political life might be. They

are nevertheless easily swamped, or kept within the boundaries of established

accounts of where and what politics must be in a world of sovereign states (…).

(Id., p. 28)

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Destacadamente, o autor “dá um passo atrás” e formula sua análise sobre a

política contemporânea a partir da problematização do ideal regulador das

demarcações modernas que as estabelece como linhas de separação neutras e que

convergem ao redor das fronteiras e limites dos Estados. Ao invés disto, o autor

afirma a necessidade de se entender a produtividade das demarcações, fronteiras e

limites, como estas constituem instâncias de engajamentos políticos e como

estariam se desagregando e proliferando para além das linhas de discriminação

convencionais do Estado soberano e do sistema de Estados na atualidade. Sem

contemplar estas questões, segundo o autor, nossa análise é necessariamente

limitada a uma forma particularmente moderna de contenção da vida política e

será incapaz de prover imaginações políticas alternativas.

É neste sentido que Walker postula a importância, em meio à incerteza e

complexidade que abalam a ordem internacional, de se atentar para o que ocorre

justamente nas e às demarcações desta ordem, e que tipo de politizações e

despolitizações estão em jogo na reconfiguração da vida política na atualidade. As

reflexões do presente trabalho serão guiadas por estas elaborações de Walker, que

se sintonizam a de outros autores classificados como “pós-estruturalistas” no

campo das RI, aos quais igualmente se recorre.

Ainda que haja uma grande pluralidade dentro desta corrente teórica e que

parte significativa dos autores identificados com ela se recuse a ser inserida em

qualquer tipo de categorização, o pós-estruturalismo apresenta como um de seus

pontos centrais o questionamento da soberania estatal como algo dado e estável.

Este enfoque teórico se mostra apto a pensar a vida política contemporânea

justamente ao defender que a soberania estatal consiste em uma prática

contingente e ao encorajar uma ênfase crítica nos atos políticos que se dão nas

demarcações (Devetak, 1996). Ao invés de questionar no que consistiria a

soberania estatal, buscando seus possíveis atributos essenciais, esta literatura

investiga como a soberania funciona, o que ela produz, o que permite sua

reprodução e como ela pode estar se alterando sob as condições contemporâneas.

3.2. As limitações da soberania estatal em primeiro plano

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Em seu livro After the Globe, Before the World (2010), Walker questiona

como podemos imaginar a vida política contemporânea, em um contexto no qual

as demarcações convencionais do Estado moderno e do sistema de Estados são

entendidas como cada vez menos capazes de dar conta dos processos políticos que

se desenvolvem através do planeta. A atualidade é marcada por constatações

recorrentes acerca de uma maior conectividade entre diferentes partes do globo;

por reivindicações de agendas políticas e de direitos que se articulam para além

das fronteiras nacionais (como as redes transnacionais de advocacy de causas

globais ou locais); pela grande relevância política que as grandes cidades ganham

cultural, socioeconômica e politicamente no mundo; por novas formas de

regionalismos que geram reconfigurações geopolíticas; pelas inquietações trazidas

pela percepção de que as condições ambientais do planeta estão passando por

mudanças drásticas que precisam ser encaradas globalmente; dentre outras.

Estas constatações levariam a um entendimento cada vez mais claro e

difundido de que os Estados e o sistema de Estados, definidos a partir de suas

demarcações territoriais e de subjetividade/autoridade convencionais, seriam

limitados em sua capacidade de determinar onde a política ocorre. Como o autor

enfatiza, “The most challenging problems of our time express an urgent need to

reimagine where, and therefore what, we take politics to be” (Id., p. 19). Para que

esta “reimaginação” seja possível, faz-se necessário investigar como as

demarcações soberanas vêm se rearticulando na política contemporânea e se

reproduzindo a partir de novas práticas.

A compreensão de que as demarcações do Estado soberano determinam

onde a política ocorre (no âmbito doméstico) e quem são os sujeitos políticos (os

cidadãos) tem sua emergência convencionalmente datada a partir da Paz de

Vestfália de 1648, e esta compreensão teria dominado o panorama e a imaginação

política nos últimos séculos. Metaforicamente, este imaginário político concebe as

discriminações políticas cruciais como se concentrando ao redor das linhas dos

mapas, tais como em um livro de colorir (Kopper, 2012). Neste tipo de livro, as

linhas demarcam espaços homogêneos e isolados, tais como aquelas dos mapas,

produzindo uma identificação dos espaços coloridos e delimitados com Estados

internamente homogêneos, independentes, habitados por seus cidadãos e

territorialmente definidos. Kopper destaca que, apesar de a realidade política

nunca ter efetivamente se conformado a esta concepção esquemática, atualmente

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este imaginário se mostra cada vez mais inadequado para dar conta da maneira

como as relações políticas se desenvolvem.

O autor propõe que obras de arte modernistas como as de Cézanne se

mostram mais apropriadas enquanto metáforas capazes de capturar o

entendimento contemporâneo das demarcações e espaços sócio-políticos, dada a

indeterminação dos contornos presente nestas obras. Este tipo de reflexão aponta

para como as condições contemporâneas impõem um novo e “não estático mapa

planetário” (Shapiro, 1996, p. 3) diante daqueles que buscam analisar a política,

instigando-os a elaborar novos imaginários cartográficos, traduzidos em discursos

políticos alternativos, capazes de abarcar os fluxos e a mobilidade.

Sobretudo na transição do século XX para o XXI, as limitações da

soberania estatal em sua capacidade de conter o político se tornam mais aparentes

graças às dinâmicas globais que insistentemente minam a credulidade na “camisa

de força de Vestfália” (Kopper, 2012, p. 279), ou seja, na capacidade da soberania

estatal de conter a vida política espaço-temporalmente. Em outras palavras, o

contexto contemporâneo favorece o entendimento da soberania estatal como uma

forma particular e contingente de contenção do político ao invés de como a

consagração de um destino inelutável das formas de pertencimento e comunidade

políticas. Nas palavras de Soguk:

The modernist conceptions and taxonomies of people, ideas, identities, and

subjectivities are becoming increasingly ineffective in controlling/disciplining the

flow of phenomena and in fixing the boundaries of “the meaningful” words,

vocabularies and libraries, and proper presents and histories (SOGUK, 1996, p.

285).

Assim, a soberania estatal vê sua autoridade crescentemente questionada e

as demarcações que ela autoriza são transgredidas, enfraquecidas e

problematizadas em sua capacidade de “governar e conter o político” (Brown,

2014, p. 83). A dimensão do desafio em questão é ressaltada por Walker, como no

trecho abaixo:

To contemplate the implications of various claims about the speed, acceleration

and temporal contingency of contemporary political practices is to generate

questions about how such practices can be contained and organized within the

spatial boundaries of a particular somewhere. To claim that the boundaries of the

modern state and the modern system of states are being displaced is to provoke

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uncertainty about where we are or what we might be as political subjects.

(Walker, 2010, p. 25)

Neste contexto de incerteza e questionamentos, Walker (2010) ressalta que

antes de buscarmos reimaginar a vida política devemos prestar atenção ao caráter

inerentemente problemático da soberania e à complexidade envolvida nas

demarcações da ordem internacional, que tão comumente entendemos como

meras linhas de demarcação entre campos opostos. Em sua crítica às perspectivas

bastante difundidas que postulam a obstinação e/ou obsolescência do Estado e

suas demarcações, Walker argumenta que estas são pautadas por uma

compreensão simplista acerca do que consistira a soberania, suas demarcações e a

relação entre estes dois elementos. Afinal, para se pensar a soberania a partir de

sua presença ou ausência é preciso que, em primeiro lugar, se tenha um

entendimento da soberania como uma coisa ou uma condição, algo estável, que,

uma vez desafiado em sua essência, já não se sustenta mais.

Entretanto, segundo Walker, a soberania consiste em um problema ou em

uma prática que envolve a autorização e delimitação da autoridade. De acordo

com o raciocínio do autor, mesmo a soberania podendo se desvencilhar do Estado,

ela dificilmente desapareceria enquanto um problema, pois envolve origens,

limites, “discriminations enabled by accounts of origin and limits” e

“authorizations authorized to discriminate” (Id., p 197/198). Em outras palavras, a

soberania envolve a fundação da autorização de discriminações, do traçado de

demarcações entre o que é tido como interno e externo, político e apolítico,

presente e passado ou futuro, inteligível e ininteligível, normal e excepcional,

possível e impossível, etc.

Neste sentido, a soberania é articulada na política moderna a partir da

soberania do Estado, assim como do sujeito moderno e do sistema de Estados, que

conjuntamente compõem uma acomodação particular de quem somos e que

podemos ser politicamente. Porém, um caráter particular e curioso do

problema/prática da soberania é que ela é capaz de gerar sua própria aparência

enquanto uma "coisa" que delimita espaço-temporalmente onde a política ocorre,

ao mesmo tempo em que oculta o sentido de sua própria produção (Id., p. 196).

Isto é, ainda que seja impossível conceber uma política que não esteja centrada em

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como somos capazes de fazer discriminações e autorizá-las7, é igualmente

impossível se imaginar uma forma de vida política em que as condições sob as

quais estas discriminações são feitas não sejam ocultadas, de modo a naturalizar

as distinções cruciais entre o que é importante ou não, o que é incluído ou

desejado ou não, etc.

Pensando no caso da soberania dos Estados modernos, esta envolve a

delimitação e autorização de formas de discriminações espaciais e temporais a

partir das quais compreendemos quem somos politicamente e onde a política pode

ocorrer. Nas palavras de Xenos (1996, p. 238), “The development of the nation-

state (…) came to be all about borders. These demarcations were inscribed both

on maps and in the souls of citizens”. Assim sendo, a soberania estatal consiste

em uma prática que deve ser constantemente reafirmada de forma a ser capaz de

delimitar e autorizar as demarcações da política moderna, tanto em termos

territoriais (enquanto fronteiras) como em termos de limites de princípio, que

delimitam os campos da lei, da ética, da cultura, da subjetividade, etc.. Como

explica Walker:

Modern forms of sovereignty express and reproduce very specific ways of

drawing the line, both literally and metaphorically. They do so both through

claims to physical territory and through institutional expressions of (legal)

principle. Boundaries are articulated as both borders and limits, as lines upon

physical terrain and lines inscribed as limits of principle, jurisdiction and identity.

Limits in space, place and territory express limits in law, and limits in law

express limits in power, authority, community, responsibility and liberty. (Id., p.

101)

As linhas traçadas e autorizadas pela soberania estatal, assim, fornecem

um sentido de estabilidade e segurança à experiência humana. Como destaca

Brown (2014), uma miríade de autores advindos de campos como a literatura, a

psicanálise e a filosofia apontam para um paralelo entre a soberania religiosa

(atribuída a deus) e a subsequente soberania moderna (atribuída ao Estado), no

sentido de que ambas buscam saciar um desejo humano de proteção, contenção e

orientação diante das vicissitudes, contingências e enormidade de um universo

para além de seu controle.

7Afinal, como lembra Devetak (1996, p. 176), “There is no political space in advance of boundary

inscription.”

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Como complementam Ashley (1989) e Campbell (1996), a problemática

da soberania consiste justamente na articulação, através de uma metafísica da

presença e do primado da razão, de uma forma de domar estas incertezas e perigos

ao postular uma oposição hierárquica entre um campo tido como o ideal regulador

investido no Estado (correspondente à unidade, a uma narrativa de progresso, a

uma ordem racional, homogênea e bem delimitada) e um campo marcado pela

negação deste ideal e relegado ao externo ao Estado (descrito como anárquico, um

campo do equívoco e da incerteza, de uma falta de centro, fronteiras ou

linearidade temporal). A “prática heroica” capaz de mobilizar esta oposição

garante também o ideal regulador do sujeito-cidadão, assegurado pela soberania

estatal, e que se faz também soberano, um sujeito autônomo capaz de expressar o

que é racional e significativo.

3.3. Problematizações do ideal regulador das demarcações do Estado

Uma vez já contemplado o caráter problemático e não essencializado da

soberania e sua relação com o traçado de demarcações na vida política moderna,

Walker chama atenção para como também as próprias demarcações devem ser

reconsideradas conceitual e politicamente se quisermos ter melhores condições de

fazer sentido da política no mundo contemporâneo. Suscintamente, o autor nos

alerta para a necessidade de se repensar o ideal regulador das demarcações

modernas. De um lado, este ideal nos diz que estas seriam justamente as linhas

inativas e marginais que vemos em mapas políticos e que também separam o self

moderno/Estados modernos do Outro e outros Estados, o aqui do lá, o normal do

excepcional, e assim por diante. De outro lado, este ideal nos apresenta as

demarcações da vida política moderna como convergentes ou sobrepostas: as

separações entre as categorias de política, sociedade, cultura, segurança,

economia, etc. seriam todas operacionalizadas ao longo de uma mesma linha, seja

esta territorial ou em termos de princípio/autoridade/subjetividade.

Walker argumenta que este ideal regulador (em seus dois aspectos de

neutralidade e convergência) é crescentemente problematizado sob as condições

contemporâneas e que tanto o caráter produtivo e político das demarcações quanto

a sua proliferação e desagregação se tornam mais claros atualmente. Afinal, a

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concepção moderna da vida política nunca foi uma realidade histórica e

empiricamente observável, sendo muito mais efetiva em termos aspiracionais. Sob

as condições contemporâneas, apenas se tornaria mais perceptível a dissonância

entre, de um lado, as dinâmicas políticas e práticas de discriminação operantes e,

de outro, as demarcações previstas pelo discurso político moderno. Assim, a

subseção a seguir discutirá as duas principais críticas de Walker acerca do ideal

regulados das demarcações modernas.

3.3.1 Demarcações como produtivas, como instâncias de disputa política e em proliferação

Com relação ao ideal regulador das demarcações neutras do Estado,

Walker defende sua reconsideração de forma a retirá-las das margens do político e

entendê-las como centrais para a configuração do mesmo. Ao invés de enxergá-las

como meras linhas de isolamento nas quais nada ocorre além da separação de uma

condição ou de uma comunidade política de outra, deveríamos entendê-las como

momentos de engajamento político e compreender como elas "work to produce

very specific political possibilities of necessity and possibility on either side” (Id.,

p. 32). Assim, Walker defende a necessidade de se prestar atenção às politizações

e despolitizações que ocorrem nestas linhas de discriminação e de perceber seu

caráter produtivo de imaginários, espaços, tempos e subjetividades políticos. É

atentando para o aspecto produtivo destas linhas que Vaughan-Williams (2009)

faz uma analogia entre a demarcação8 do Estado e um compasso, uma vez que

esta:

(...) orients the convergence of people within a given territory and notions of a

common history, nationality, identity, language and culture. In this way, it [the

boundary] is a pivotal concept that opens up – but can also close down – a

multitude of political and ethical possibilities. (Id., p. 3)

8 Em seu livro, Vaughan-Williams utiliza-se do termo fronteira (border), porém não no sentido

territorial do termo, mas como uma forma de discriminação mais ampla que também abarca

subjetividade e autoridade. Por isso, e considerando a tipologia de demarcação, fronteira e limite

empregada neste trabalho seguindo Walker (2010), o termo border/fronteira empregado pelo autor

foi aqui substituído por boundary/demarcação. O mesmo ocorre com relação às referências aos

trabalhos de Balibar (2002) Mezzadra e Nielsen (2013) e Anderson, Sharma e Wright (2009), dado

o fato de se referirem a linhas de discriminação mais amplas.

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Desta forma, as demarcações do Estado soberano não apenas separam um

Estado territorialmente de outro, cidadãos de estrangeiros ou a ordem doméstica

da anarquia internacional, mas produzem estas demarcações de “belonging and

nonbelonging and authorize a distinction between norm and exception” (Rajaram;

Grungy-Warr, 2007, p. ix), permitindo a dominância de uma espacialidade,

temporalidade e agência política particulares. Ao invés de separarem entidades

políticas preexistentes, as demarcações modernas as precedem e justamente

possibilitam a construção das entidades que se situam de cada lado seu. Como

pontuam Anderson, Sharma e Wright (2009):

While they are presented as filters, sorting people into desirable and non-

desirable, skilled and unskilled, genuine and bogus, worker, wife, refugee, etc.,

national borders are better analyzed as moulds, as attempts to create certain types

of subjects and subjectivities. (Id., p. 6)

É partindo deste mesmo raciocínio que Rancière (2004) afirma que a

política consiste no traçado da border (no sentido de limite na tipologia aqui

empregada) entre o cidadão e o “Homem” ou a humanidade. Segundo o autor,

onde se traça a linha entre uma forma de vida e a outra é a questão central para

determinar quem é considerado e autorizado como o sujeito político na

modernidade. Se lembrarmos da formulação de Hannah Arendt discutida no

capítulo anterior, a autora explicita como a ordem moderna do Estado-Nação

implica na figura do cidadão (aquele representado pelo Estado) como o sujeito

político e de direitos, afirmando esta figura como precedente à humanidade e

esvaziando esta última de conteúdo político. Agamben, por sua vez, – também

abordado no capítulo precedente -, igualmente discute a centralidade política de se

traçar esta linha ao afirmar que o Estado soberano determina quem são seus

cidadãos (os sujeitos políticos, a forma de vida zoē) a partir da inscrição da vida

nua de todos aqueles nascidos no seu território delimitado. Portanto, é o traçado

deste limite que determina e produz o sujeito político e aqueles banidos da ordem

política. Sem o traçado deste limite, estas duas formas de vida não se sustentam, e

na modernidade a soberania estatal consiste na prática que traça e autoriza a

demarcação entre a cidadania e a humanidade.

Uma ilustração do caráter produtivo das demarcações é trazida pelos

autores Mezzadra e Nielson (2013) que, partindo de uma perspectiva marxista,

discorrem sobre o poder de ‘construção do mundo’ presente na representação

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cartográfica das demarcações modernas. Retomando a expressão fabrica mundi

empregada por filósofos da Renascença e presente no título de atlas produzidos à

época (como o de Gerardus Mercator), os autores demonstram como a cartografia

moderna teve um papel crucial em produzir o imaginário político moderno

pautado nos limites do Estado.

O termo fabrica mundi, assim, sinaliza o sentido produtivo da

representação das fronteiras modernas, denunciando como não apenas a

cartografia emergente representava um mundo, mas contribuía para sua

construção. Em sintonia com o argumento de Walker (2010) de que a soberania

estatal opera no sentido de traçar e autorizar demarcações ao mesmo tempo em

que oculta esta produção e naturaliza as distinções feitas, os autores chamam

atenção para como a abstração do termo fabrica mundi – com as noções de

perfeição, ordem e proporção que implica – opera no sentido de obscurecer os

processos violentos de apropriação e subjugação envolvidos na expansão

capitalista da época que possibilitou a dominância do Estado-Nação europeu e o

desenvolvimento de uma cartografia e concepção política de mundo particular.

Walker (Id.) questiona a neutralidade das demarcações tanto neste sentido

de seu papel de construir mundos políticos particulares como pela consideração

das mesmas enquanto instâncias onde disputas políticas ocorrem. Estas disputas

têm a capacidade de politizar ou despolitizar as separações feitas, ou seja, elas

podem resultar tanto na naturalização das demarcações traçadas como na

demonstração e seu caráter excludente, abrindo caminho para outras formas de se

definir o campo político e seus sujeitos.

Seguindo Edkins (1999, p. 2), parte-se do entendimento de que o político

refere-se à constituição “of the very social order which sets out a particular,

historically specific account of what counts as politics and defines other areas of

social life as non politics.” Ou seja, é dentro do campo do politico que práticas e

sujeitos diversos têm seu status político reconhecido originalmente. As

demarcações do Estado definem o campo político, ao mesmo tempo em que

obliteram a violência, particularidade e arbitrariedade envolvidas na fundação da

ordem soberana capaz de domar e circunscrever a vida política e suas

subjetividades, despolitizando esta delimitação ou momento fundador. Assim,

“despolitizar” significa confinar sujeitos e práticas “within the boundaries set by

existing social and international orders” (Id., p.9), naturalizando as demarcações

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feitas e tirando de cena “o político”, enquanto a possibilidade de se estabelecer

ordens sociais alternativas. A politização, por sua vez, é capaz de interromper e

desafiar a delimitação do que é tido como uma ordem natural e normal,

questionando e desestabilizando as linhas traçadas e trazendo o político à tona

novamente, e consigo a possibilidade de uma redefinição do que conta como

política.

Portanto, as demarcações, sejam estas expressas como fronteiras ou

limites, constituem instituições sociais complexas que conjugam os polos de

bloqueio/reforço/imposição/despolitização e

cruzamento/transgressão/resistência/politização (Shapiro, 1996). Por serem palco

do embate entre, de um lado, as tentativas da lógica da soberania estatal de conter

o político e, de outro, das mobilidades que frequentemente desrespeitam e

resistem a esta lógica, estas linhas constituem justamente locais cruciais para se

refletir sobre a política contemporânea e os novos horizontes possíveis.

Além disso, Walker também problematiza o ideal regulador moderno das

demarcações convergentes do Estado, que determinariam as categorias de

sociedade, economia, política e liberdade, apontando para como a superimposição

de todas estas distinções em um mesmo terreno espacial e legal é uma fonte de

complicações para a vida política contemporânea. Reconhecendo que as formas

modernas de vida política nunca foram efetivamente observáveis no campo

empírico, o autor busca ressaltar o quanto as demarcações fundamentais da

modernidade mobilizadas pela soberania estatal são crescentemente desagregadas

no mundo contemporâneo.

A mesma perspectiva é defendida por Balibar (2002) ao mencionar a

“ubiquidade” das demarcações na política contemporânea. Cumpre enfatizar que

ao referirem-se a uma multiplicação de demarcações, estes autores estão fazendo

referências especificamente às demarcações do Estado soberano e ao

entendimento de que estas não se articulam de forma convergente sobre as linhas

geopolíticas de demarcação entre Estados ou sobre a demarcação do limite entre o

humano e o cidadão, tal como estabelece seu ideal regulador. Balibar, assim,

aponta para:

(…) the fact that the tendency of borders, political, cultural and socioeconomic, to

coincide – something which was more or less well achieved by nation-states, or,

rather, by some of them – is tending today to fall apart. The result of this is that

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some borders are no longer situated at the border at all, in the geographico-

politico-administrative sense of the term. They are in fact elsewhere, wherever

selective controls are to be found (…). The concentration of all these functions

(for example, the control of goods and people – not to mention microbes an

viruses – administrative and cultural separation, etc.) at a single point – along a

single line which was simultaneously refined and densified, opacified – was a

dominant tendency during a particular period of the nation state (…), but not an

irreversible historical necessity. For quite some time now, it has been giving way,

before our very eyes, to a new ubiquity of borders. (Ênfases no original. Id., p.

84.)

Mezzadra e Nielsen (2013) também sinalizam uma atual proliferação de

demarcações no mundo contemporâneo. Vislumbrando os desafios trazidos pela

globalização à soberania estatal, os autores reconhecem que o Estado ainda

representa um ponto de referência importante para a vida política e para o

capitalismo contemporâneo, mas que o mesmo já não mais seria capaz de

determinar subjetividades políticas e restringir a mobilidade do trabalho a partir

do primado da cidadania e da figura do cidadão-trabalhador. Neste quadro

contemporâneo, “The multiple (legal, cultural, social and economic) components

of the concept and institution of the border tend to tear apart from the magnetic

line corresponding to the geopolitical line of separation between nation-states”.

(Mezzadra; Nielson, 2013, p. 2/3).

Walker afirma que devemos compreender esta reconfiguração e possível

proliferação atual das demarcações do político, partindo da premissa de que estas

constituem-se em instâncias e práticas ativas e produtivas daquilo que

aparentemente apenas separam, e que constituem instâncias de politizações e

despolitizações. A partir deste raciocínio, o autor argumenta que análises sobre a

política contemporânea são mais persuasivas se elas forem capazes de prestar

atenção às formas de discriminação em jogo e de conceber "boundaries, borders

and limits becoming further disaggregated, dislocated from territorial

topographies, articulated in novel topological forms, laid out more obviously as

zones and fields of practice” (...) (Id., p. 252).

O argumento do presente trabalho assenta-se justamente nestas

elaborações de Walker acerca das demarcações modernas e suas rearticulações em

curso. Estas reflexões são empregadas para formular uma leitura alternativa da

categoria do refugiado tal como entendida pela literatura crítica de refúgio nas

Relações Internacionais discutida no capítulo anterior. Se o refugiado é

ontologicamente definido pelas demarcações do Estado moderno e do sistema de

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Estados, a desagregação destas demarcações implica não somente na necessidade

geral de uma nova imaginação política, mas também, mais especificamente, na

necessidade de se articular novas formas de se entender esta categoria migratória.

Com isso, porém, não se tem a pretensão de elaborar um novo enquadramento

teórico totalizante acerca da figura do refugiado, ou seja, de se prover uma

resposta universal para a questão da subjetividade política deste migrante, mas

apenas de levantar questões e ressaltar a complexidade e contingência desta figura

migratória, sujeita a uma miríade de boundary practices.

3.4. A categoria estatal do refúgio revisitada

Dois pontos teóricos acerca das demarcações desenvolvidos por Walker e

demais autores de orientação pós-estruturalista merecem ser recapitulados a fim

de pensarmos suas implicações para a categoria ou figura do refugiado. A

literatura discutida aponta para como devemos, a fim de entender a política no

mundo contemporâneo, perceber o caráter ativo e produtivo das demarcações e

como estas estão se proliferando na atualidade.

Assim, em primeiro lugar, ao invés de se conceber as demarcações como

linhas marginais e inertes de separação, devemos enxergá-las como práticas ativas

que produzem possibilidades políticas específicas e que são passíveis de

politizações e despolitizações. Como Kumar Rajaram e Grungy-Warr (2007, p. ix)

enfatizam, é importante entender como uma linha de discriminação trabalha como

uma “paradoxical zone of resistance, agency, and rogue embodiment” que

estabelece a dominância de uma ordem política particular.

Em segundo lugar, ao invés de conceber as principais demarcações da vida

política contemporânea como convergindo ao redor dos marcadores territoriais e

de subjetividade convencionais do Estado soberano, devemos ser capazes de

compreender sua atual proliferação ou seu caráter ubíquo. Os mecanismos e

categorias capazes de discriminar pessoas politica, cultural e

socioeconomicamente não mais se concentrariam nas demarcações do Estado

moderno. Estes mecanismos estariam agora mais claramente sendo articulados em

outros locais além das linhas oficiais que demarcam as divisões geopolíticas entre

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Estados, assim como atuando para além da oposição cidadão/humano ou

cidadão/estrangeiro característica do discurso político moderno.

A presente pesquisa busca desenvolver o desdobramento destes dois

argumentos centrais de Walker acerca das demarcações do político no mundo

contemporâneo, de modo a entender as implicações das rearticulações de práticas

soberanas em curso para a categoria do refugiado. Propõe-se a possibilidade de se

repensar a categoria do refugiado e sua subjetividade política, uma vez que as

demarcações convencionalmente traçadas e autorizadas pela soberania estatal

mostram-se crescentemente incapazes de determinar onde a vida política ocorre.

Assim, uma argumentação central desta pesquisa é a de que não somente as

fronteiras dos Estados já não concentram os mecanismos de controle da

mobilidade humana, mas que o limite entre a humanidade e a cidadania pode não

mais constituir a linha de discriminação fundamental definindo a categoria do

refugiado, tal como proposto pela literatura crítica de refúgio nas Relações

Internacionais analisada no segundo capítulo. Tendo-se reconhecido as

contribuições desta literatura, aponta-se aqui para suas limitações, uma vez a

categoria do refugiado estaria sujeita a outras formas de inscrição/delimitação

passíveis de politizações e despolitizações, que impactariam inclusive na

fragmentação desta categoria e sua separação do campo do humanitarismo.

A fim de embasar esta argumentação, as próximas sessões analisam

contribuições contemporâneas relacionadas ao campo migratório que assimilam as

rearticulações das demarcações do Estado e do sistema de Estados abordadas por

Walker. Em um primeiro momento, são analisados trabalhos que apontam para a

atual complexidade da categoria ou figura do refugiado, que já não mais se

inseriria necessariamente em um campo humanitário, apolítico e passivo, aposto à

imagem do cidadão. A seguir, são consideradas contribuições dos estudos

migratórios e de segurança que apontam para a desagregação e proliferação de

boundary practices para além dos marcadores convencionais do discurso político

moderno e para como as novas linhas traçadas constituem-se em instâncias de

engajamentos políticos relevantes.

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3.4.1. Uma categoria ou figura migratória contingente

Em sintonia com a argumentação aqui proposta, alguns trabalhos recentes

apontam para como a "figura do refugiado", pautada pela lógica soberana, vem se

complexificando, o que se espelha na proliferação de rótulos ou "figuras da

migração" que não necessariamente reproduzem a relação refugiado-

humanitarismo-apolítico delineada no capítulo anterior. A atualização que Zetter

(2007) faz de suas reflexões sobre o rótulo do refugiado é particularmente

ilustrativa desta complexificação.

Em 1991, o autor publicou um artigo (Zetter, 1991) que ao longo das

décadas subsequentes se tornou altamente influente nos estudos sobre refúgio.

Neste trabalho, o autor discutia a formação da identidade do refugiado a partir de

práticas institucionalizadas de governos, ONGs e agências intergovernamentais

que lidavam com este migrante a partir da perspectiva do humanitarismo. A

"imagem conveniente" do refugiado que emergia de tais práticas seria baseada em

uma percepção de crise, de falta de poder e de dependência que urgiria um

programa prescritivo de como atender a suas necessidades.

Quase duas décadas depois da publicação deste trabalho, porém, o autor

(Zetter, 2007) afirma que o rótulo do refugiado havia sido fracionado em várias

outras classificações – desde categorias de proteção temporária por motivos

humanitários até categorias de solicitantes de refúgio suspeitos de apresentar uma

ameaça à segurança dos países de destino sujeitos a encarceramento – e que este

fracionamento teria se dado por uma necessidade de administrar padrões de

migração forçada muito mais complexos do que se verificava anteriormente.

Segundo o autor, ao mesmo tempo em que, na melhor das hipóteses, este

fracionamento poderia permitir uma visão mais matizada das razões para o

deslocamento forçado, esta proliferação também estaria relacionada à intenção

restritiva de governos do Norte Global, no sentido de reduzir o acesso à proteção

enquanto refugiado a milhares de migrantes - uma hipótese defendia por Chimini

(2000). Seja como for, o autor destaca como a categoria do refugiado havia se

tornado mais turva e menos automaticamente indexada ao campo do

humanitarismo como ele havia notado em seu artigo anterior.

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Squire e Scheel (2014) retomam este raciocínio a partir de sua discussão

das "figuras da migração" e buscam demonstrar a necessidade de se pensar como

as diferentes categorias emergem historicamente, levando em consideração a

contingência das relações que estabelecem. Notadamente, os autores retomam o

contexto histórico específico da Guerra Fria em que migrantes do Sul Global

passaram a buscar refúgio no Norte e como, nesta conjuntura específica, forjou-se

uma figura do refugiado distinta daquela prevalecente anteriormente relacionada

aos refugiados europeus de regimes comunistas (o “mito da diferença"

identificado por Chimini e discutido no capítulo precedente).

Segundo Squire e Scheel, esta representação historicamente determinada e

veiculada no discurso prevalecente à época dos refugiados como pessoas

desamparadas do Sul já não seria mais a concepção predominante na atualidade.

De acordo com os autores, em meio à proliferação de rótulos contemporânea,

percebe-se uma crescente criminalização da migração, que leva uma série de

solicitantes de refúgio a serem enquadrados como migrantes irregulares – apesar

da Convenção de 1951 estipular que os Estados de destino destes migrantes não

devem puni-los por sua entrada ou presença irregular em seus territórios. Neste

sentido, os autores enfatizam a necessidade de se desnaturalizar estas "figuras" ou

"rótulos" (como o refugiado ou o migrante irregular) e encará-los como "figuras

historicamente contingentes". Com isso, eles defendem o argumento de que

encarar estas "‘figures of migration’ as objects of enquiry in themselves reveals

more about the conjunctures in the politics of mobility in which they flourish, than

about the people they label” (Id., p. 191).

Por fim, a fim de ilustrar esta complexificação da "figura do refugiado",

cumpre mencionar os trabalhos de Fassin (2012) e Rivetti (2014). Fassin,

referindo-se ao caso francês, descreve como uma lógica humanitária e de

compaixão costuma ser dissociada de, e mesmo prevalecer sobre, o direito ao

refúgio no país europeu. Neste caso, os campos do humanitarismo e do refúgio

seriam separados, de modo que migrantes aos quais fora negada a proteção

enquanto refugiados, mas que apresentassem algum tipo de doença grave teriam

maiores chances de conseguir documentação e permanência na França. Este tipo

de política seria pautada por uma lógica humanitária de provê-los com tratamento

médico ao qual não teriam acesso no seu país de origem. A categoria do "visto por

motivos médicos" seria uma alternativa ao status de refugiado, crescentemente

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restritivo, configurando uma separação e substituição da proteção do refúgio por

uma racionalidade humanitária.

Riverti, por sua vez, enfatiza como nem sempre a identidade do refugiado

está associada a pressupostos de passividade e falta de voz política. No caso

específico dos refugiados iranianos, a autora mostra como, independentemente de

sua participação no "movimento verde" ou no ativismo de direitos humanos no

seu país de origem, eles encontravam tanto na Itália como na Turquia a

expectativa de que sua subjetividade enquanto refugiados fosse pautada pela

agência política. Assim, neste caso, apresentar a subjetividade de refugiado

significava participar de movimentos anti-Ahamadinejad no país de acolhida e

demonstrar seu comprometimento com esta causa política. Inclusive no processo

de avaliação de sua elegibilidade enquanto refugiados, esperava-se que eles

mobilizassem uma imagem de plena agência política anti-regime iraniano, ao

invés da imagem de vítimas passivas e apolíticas.

A partir destas considerações, a presente pesquisa argumenta que esta

transformação pela qual vem passando a categoria ou figura do refugiado a partir

de sua complexificação e o fracionamento do rótulo está relacionada à condição

da vida política contemporânea cada vez menos pautada pelas demarcações

convencionais do internacional. Isto é, se a categoria do refugiado não é mais

necessariamente pautada pela sua oposição à subjetividade política do cidadão e

relegada ao campo humanitário, sendo cada vez mais difícil demarcá-la

claramente – o que se reflete em múltiplas categorias e na contingência do que

constitui a "figuras do refugiado" –, isto pode ser entendido a partir da percepção

de que há uma proliferação de demarcações na vida política contemporânea para

além dos marcadores do Estado soberano e do sistema de Estados. Assim, a figura

do refugiado seria atualmente menos pautada pela sua oposição à cidadania, e

mais por uma série de outras formas de discriminação que impactam sua

subjetividade política. Em outras palavras, sob as condições políticas

contemporâneas, a rearticulação da soberania estatal implicaria também em uma

rearticulação da categoria e subjetividade política relacionada ao refúgio.

3.4.2 Rearticulações das demarcações soberanas e as disputas políticas que as perpassam

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Trabalhos críticos recentes voltados para as práticas de segurança das

demarcações e fronteiras dos Estados costumam salientar uma reconfiguração das

mesmas e como estas impactam e são resistidas por migrantes considerados

“indesejáveis”. McNevin (2014), analisando a pequena ilha indonésia de Bintan,

argumenta que estudos de segurança e mobilidade humana veem-se

constantemente desafiados em sua capacidade de interpretação se estes se

mantiverem atrelados aos marcadores prevalecentes de espaço (território nacional)

e de subjetividade (cidadão/migrante) baseados no sistema moderno de Estados –

ou seja, se se mantiverem atrelados epistemologicamente às demarcações

convencionais deste sistema. Em outras palavras, a autora argumenta que

atualmente tanto a política da migração quanto a articulação da segurança das

fronteiras transcendem as categorias convencionais previstas pelo discurso

político moderno e se articulam a partir de uma complexidade muito maior do que

aquela permitida pelas demarcações espaciais e de subjetividade prevalecentes

neste discurso.

Ao estudar o caso específico de Bintan, a autora nota como as práticas de

segurança das fronteiras na ilha indonésia adentram seu território e se articulam

com as de outros países próximos, tanto no sentido de controlar as rotas de

migração irregular rumo à Austrália, como no sentido de administrar os cidadãos

indonésios que foram deportados da Malásia. A complexidade das práticas em

questão resulta numa clara rearticulação da fronteira para além da linha

geopolítica oficial, assim como um ofuscamento do limite entre cidadãos e

migrantes, uma vez que tanto migrantes (rumo à Austrália) quanto cidadãos

indonésios (deportados da Malásia) são submetidos a condições igualmente

degradantes de encarceramento que buscam controlar sua mobilidade. É neste

sentido que a autora defende a necessidade de se pensar com as categorias

prevalecentes do Estado soberano, mas também além delas, abrindo caminhos

para a investigação da mobilidade humana e da segurança das fronteiras que não

se alinhem automaticamente com as premissas territoriais e de subjetividade do

sistema de Estados moderno.

Bigo (2014) igualmente questiona se a noção das fronteiras do Estado

ainda é relevante para se pensar o controle da mobilidade humana atualmente,

porém no contexto da União Europeia (UE). O autor argumenta que, apesar desta

noção ainda se fazer presente a partir da atuação de membros das forças armadas

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nas áreas de fronteira, ela não mais protagoniza a maneira como este controle é

feito no bloco, sendo este muito mais complexo e muito menos pautado pelas

linhas geopolíticas oficiais. Além do “universo social” militar e estratégico

convencional baseado no imaginário das fronteiras como sólidas, Bigo destaca a

existência de mais dois outros universos sociais nos quais a segurança das

fronteiras é articulada: a partir da imaginação destas como líquidas e como

nebulosas.

Traduzidas metaforicamente como líquidas, as fronteiras são

administradas por oficiais da UE e entendidas como “filtros” ou “canais” capazes

selecionar a qualidade dos migrantes e, assim, gerir os riscos no cruzamento da

fronteira. A ideia não é a do fechamento da fronteira, da construção de um

inimigo ou de movimentações ofensivas ou defensivas como na lógica militar da

fronteira sólida, mas a da manutenção da abertura a partir do controle da

passagem, do policiamento e filtragem do fluxo migratório, inclusive via a

detenção de migrantes irregulares e considerados como “farsantes” em suas

solicitações de refúgio. Cumpre notar que, como destacam Gerard e Pickering

(2013), os centros de detenção destinados a “filtrar” a qualidade dos migrantes

acessando o território da UE também se encontram em países de trânsito no Norte

da África, como é o caso da Líbia. Assim, “border sites seemingly radiate back

from Europe and further into Africa” (Id., p. 342), uma vez que os centros de

detenção na Líbia são financiados diretamente por países da UE, notadamente a

Itália, e se destinam a deter a mobilidade de solicitantes de refúgio e migrantes

irregulares para o bloco. Estes locais, portanto, constituem-se em práticas de

fronteirização da UE que ultrapassam a marcação territorial clássica de suas

fronteiras.

Por fim, Bigo enfatiza a crescente importância das “fronteiras nebulosas”,

construídas por informações conectadas através de “networks of computerized

databases constantly exchanging information about the traces left by the

individuals when they travel, and constantly updating them in order to be able to

anticipate what may happen.” (Id., p. 217). Esta forma de se articular a segurança

das fronteiras distingue-se marcadamente da lógica territorial convencional do

Estado soberano. A partir da velocidade na transmissão de informações e o

compartilhamento de dados entre agentes de segurança, órgãos governamentais e

companhias privadas, a fronteira “nebulosa” se articula de maneira não espacial,

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mas como uma “linha do tempo” que constrói perfis contingentes de indivíduos

normalizados (confiáveis) e “anormalizados” (potencialmente perigosos).

Espacialmente inexistente, esta fronteira articula-se temporalmente antes do

indivíduo cruzar a fronteira sólida, se antecipando ao movimento das pessoas ao

controlar a emissão de documentos de viagem. Assim, a lógica que emerge para a

segurança das fronteiras, segundo o autor, é pautada pela indiferença com relação

às pessoas que buscam chegar à UE, uma vez que elas são entendidas como

números que compõem ou não um certo perfil desejável.

As reflexões de Vaughan-Williams (2009) também sugerem uma

concepção das fronteiras do Estado como mais difusas. Baseando-se

principalmente em Agamben, o autor entende os limites do poder soberano como

sendo definidos a partir da decisão soberana que determina que tipo de vida é

politicamente qualificada (convencionalmente a dos cidadãos) e qual é meramente

vida nua (o outside constitutivo da cidadania). Esta decisão que define as

fronteiras (na tipologia de Walker, também os limites) da comunidade política

seria agora feita em ocasiões e locais e através de métodos cada vez menos

atrelados às fronteiras formais dos Estados e seus mecanismos de controle

convencionais. Estas decisões soberanas seriam agora tomadas de forma

instantânea e potencialmente em qualquer lugar, não apenas nas margens dos

territórios estatais. O caso do assassinato de Jean Charles de Menezes é utilizado

como um exemplo pelo autor, por ilustrar uma prática de reprodução das

fronteiras e limites do poder soberano que se opera de maneira repentina e num

local pertencente ao cotidiano do centro do Estado (no metrô da capital da

Inglaterra), ao determinar que a vida deste migrante fosse banida da lei e da

política e sujeita a práticas excepcionais. Estas novas práticas de articulação dos

limites do poder estatal são denominadas por Vaughan-Williams como

constituindo uma “fronteira biopolítica generalizada”.

Neste sentido, uma literatura cada vez maior vem apontando para como as

demarcações, fronteiras e limites definidos convencionalmente pelo Estado

moderno não bastam para dar conta dos marcadores e instâncias diversas que

delimitam sujeitos e espaços no mundo político contemporâneo e que

transcendem o simplismo inside/outside e insiders/outsiders previsto pelo

discurso político moderno. Assim, ao pensar as demarcações que impactam as

experiências de migrantes “abjetos”, Anderson, Sharma e Wright (2009) apontam

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para como as fronteiras (porém no sentido de demarcações, uma vez que os

autores não as consideram como meramente territoriais) “seguem” os migrantes e

os cercam ao tentarem acessar serviços e atividades da vida cotidiana, tais como

emprego remunerado, benefícios sociais, saúde, proteções laborais, educação e

justiça. (Id., p.6). Para migrantes irregulares, a ida a um posto de saúde ou a

insubordinação a um emprego explorador podem resultar em uma denúncia de seu

status indocumentado e uma consequente deportação, o que pode ser entendido

como momentos de mobilização das demarcações do Estado.

Doty e Wheatley (2013) discutem como o complexo industrial imigratório

dos Estados Unidos constitui uma economia de poder extremamente complexa

que se reproduz via instrumentos legais restritivos à imigração, pela atuação de

corporações do ramo carcerário e também pela difusão de uma visão de mundo

pautada pela criminalização da migração. Notadamente, este entendimento do

caráter ilegal da migração indocumentada seria internalizado pela própria

subjetividade dos migrantes irregulares. Assim, as autoras argumentam que as

consequências deste complexo industrial imigratório são sentidas em práticas

soberanas de border enforcement mais tradicionais, através da detenção e

deportação de números significativos e crescentes de migrantes irregulares, mas

também através de um poder disciplinar que atua sobre os corpos dos migrantes

indocumentados. Mesmo aqueles que não chegam a ser detidos ou deportados, os

riscos relacionados à sua “ilegalidade” influenciam atividades cotidianas de suas

vidas, que são impedidas pelo temor da descoberta de sua irregularidade e

consequente penalização, resubjetivando-os como sujeitos que se governam a

partir dos objetivos restritivos do Estado.

Inda (2011) explora a fundo como locais de trabalho podem se tornar

instâncias de articulação das demarcações do Estado a partir da implementação de

incursões de órgãos fiscalizadores do governo americano em empresas onde se

suspeita haver trabalhadores indocumentados. Porém, o autor ressalta que a partir

do momento em que as “boundaries of immigration policing have migrated

inwards” (Id., p. 75), não apenas a dinâmica do policiamento se instala na vida

cotidiana dos migrantes, mas também uma série de contestações ou

“contracondutas” dos migrantes se fazem presentes, transformando estas

demarcações igualmente em momentos de disputa política. Isto é, ao serem

desterritorializadas, estas demarcações tornam locais da vida cotidiana dos

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migrantes em boderzones tanto de aplicação do policiamento como de

engajamentos políticos cruciais dos migrantes irregulares e sua transformação em

sujeitos políticos. Assim, o autor interpreta os protestos e contestações em cortes

judiciais contra a ilegalização e marginalização dos migrantes como uma

conversão destas borderzones em locais de disputa entre, de um lado, a lógica

policialesca e excludente empregada contra estes migrantes e, de outro, suas

resistências e mobilizações de “atos de cidadania” (Isin, 2008), capazes de

expandir o campo dos sujeitos políticos para além do marcador da cidadania.

Da mesma forma que as demarcações vêm se proliferando e instalando-se

em diferentes marcadores territoriais e de subjetividade para além daqueles

previstos pela narrativa convencional do sistema de Estados, autores como Nyers

(2013) e Squire e Darling (2013) vêm mostrando como a abolição destas

demarcações também pode se articular de forma independente dos marcadores

convencionais do Estado. Squire e Darling demonstram como o movimento

Cidade de Santuário (City of Sanctuary) na cidade britânica de Sheffield pode ser

entendido para além de uma perspectiva baseada apenas na hospitalidade por parte

dos habitantes da cidade, mas como uma reivindicação de “presença legítima”

(rightful presence) daqueles que ativamente tomam (take) santuário na cidade. A

lente analítica da presença legítima permite, assim, que se ultrapasse, ainda que de

forma ambígua, o enquadramento soberano de inclusão e exclusão, mostrando

seus limites e concedendo aos migrantes na cidade a capacidade de reivindicar seu

direito de presença para além dos limites do Estado, como uma questão de justiça.

Assim, suas reivindicações pela legitimidade de sua presença na cidade seriam

feitas de forma a questionar as limitações de pertencimento, hospitalidade ou

proteção legal previstas pela lógica do Estado moderno, passando por cima dos

marcadores de “hóspede” e “anfitrião” ou “cidadão” e “estrangeiro” que

convencionalmente pautam a lógica da hospitalidade.

Já Nyers, ao analisar a campanha da Sanctuary City em Toronto, discute a

relevância política da capacidade desta em “retake the spaces and times of the city

away from the control and surveillance of border enforcement” (Nyers, 203, p.

47), ou seja, a capacidade da mobilização dos migrantes de combater a lógica

excludente das demarcações do Estado em sua articulação desterritorializada nas

suas vidas cotidianas na cidade. Desta forma, reconhecendo que as demarcações

do Estado impactam diretamente a vida cotidiana dos migrantes com status legal

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precário no Canadá (em seu cesso a trabalho e serviços sociais públicos em geral),

a campanha busca abolir justamente estas múltiplas linhas de discriminação em

suas vivências e, com isso, dissolvendo igualmente na cidade as linhas de

discriminação entre migrantes com status e sem status e entre cidadãos e não

cidadãos. Ao mesmo tempo, para que esta abolição ocorra, outras boundary

practices precisam ser instaladas, tais como aquelas que impedem a atuação de

oficias da Canada Border Services Agency (CBSA) em suas intervenções nas

vidas dos migrantes sem status legal. Assim, a reivindicação por uma abolição de

fronteiras (“no borders”) têm como resultado: “a world with borders, territories,

and autonomous subjectivities that are not synonymous with those of the modern

political imagination based on state sovereignty and national citizenship.” (Id., p.

50).

Portanto, seguindo o argumento de Walker (2010) e dos demais autores

aqui brevemente discutidos, pensar no tipo de disputas políticas que perpassam as

demarcações da vida contemporânea permite que se vislumbre a produção de

novas subjetividades políticas e espaços que não são contidos pelos marcadores

previstos convencionalmente pela lógica da soberania estatal. Não se restringindo

aos movimentos migratórios que cruzam e desafiam as fronteiras convencionais

dos Estados, estas disputas podem ser observadas nas práticas diárias de migrantes

que têm de lidar com os efeitos difusos das demarcações, negociando-as e

resistindo-as de múltiplas maneiras.

3.5. Considerações finais

A partir das reflexões teóricas discutidas neste capítulo, a formulação

central a que a pesquisa buscou elaborar é: se o refugiado é resultado da ordem

internacional e do primado da soberania estatal, como transformações

contemporâneas nesta ordem impactam esta categoria? Em outras palavras, se o

refugiado desafia, ocupa os limites e reproduz as demarcações do internacional,

como esta categoria ou figura é alterada uma vez que estas demarcações se

reconfiguram? Se as linhas de discriminação do Estado soberano e do sistema de

Estados estão na base da construção da figura ou categoria do refugiado,

determinando seu caráter apolítico, humanitário e abjeto primordial, rearticulações

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e complexificações no traçado destas demarcações impactam esta categoria e a

redefinem. Ou ainda, se “the most basic categories through which we claim to

make sense of modern political life feel disconcertingly sloppy” (Walker, 2010, p.

20), cumpre investigar como a categoria do refúgio se situa neste quadro de

mudanças.

A resposta que aqui se propõe a esta pergunta é a abertura para mais

perguntas. Isto é, ao invés de propor um novo entendimento sobre que tipo de

subjetividade política corresponderia à categoria do refugiado no mundo

contemporâneo, argumenta-se que seria cada vez mais difícil capturar este tipo de

migrante dentro de uma categoria específica e delimitada, seja esta a humanitária

e apolítica oposta ao campo da cidadania prevista pelos estudos críticos de refúgio

ou qualquer outra. Em outras palavras, se o limite entre a cidadania e a

humanidade já não mais resume a discriminação fundamental realizada e

autorizada pela soberania estatal, mas esta se articula em outras formas de

discriminação contingentes e multiplicadas, então a própria categoria e

subjetivação política do refugiado se complexificam e fragmentam. A partir da

compreensão de que os limites do político já não mais se situam nos marcadores

previstos pelo discurso político moderno, entende-se que a figura do refugiado

não necessariamente vai se constituir a partir de um conjunto de omissões

ontológicas com relação à figura do cidadão. Com isso, abre-se espaço para

investigar a miríade de “figuras do refugiado” presentes na atualidade, definidas

por uma série de outras demarcações particulares (como de gênero, classe social,

raça, nacionalidade, sexualidade, religião, saúde, etc.). Cria-se, assim, espaço para

novas indagações com relação a esta categoria, a partir de uma análise das

diferentes demarcações que se impõem e são resistidas/negociadas pelos

migrantes em questão.

Enquanto alguns autores enfatizaram o caráter contingente da categoria do

refugiado que enquadra estes migrantes como vítimas humanitárias sem voz

(Squire; Scheel, 2014) e como atualmente a categoria do refúgio vem sendo

fraturada e separada de migrantes entendidos como meramente “humanitários”

(Zetter, 2007), a pesquisa busca entender estes processos à luz das transformações

que a soberania estatal vem sofrendo em um mundo marcado por fluxos e

mobilidades. Concordando com Squire e Sheel (2014) que cada figura da

migração é “relacionada a enquadramentos particulares de agência” (Id., p.189) e

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que se faz necessários desnaturalizar as categorias migratórias e entendê-las como

figuras historicamente contingentes, a pesquisa busca contribuir para o

entendimento da contingência da figura do refugiado na atualidade ao aliá-la às

reflexões sobre as relações de soberania em transformação.

Assim, pode-se afirmar que a categoria do refugiado sob as condições

políticas contemporâneas não necessariamente habita o limite entre a cidadania e a

humanidade, um espaço de exclusão inclusiva que necessariamente os insere na

sociedade de acolhida a partir de sua oposição ontológica ao campo da cidadania,

relegando-os a uma subjetividade vitimizada, humanitária e passiva. Ao invés

disso, a categoria do refúgio seria pautada pelo traçado de uma série de

demarcações contingentes que produzem formas de subjetivação diversas e

passíveis de serem contestadas – sendo, assim, instâncias de politizações e

despolitizações. Carecendo de um enquadramento a priori¸ a categoria do

refugiado encontra-se sujeita a sua fragmentação em uma série de outras

categorias e status que classificam estes migrantes de formas diversas, desde

como potenciais ameaças à segurança do país de acolhida até a como vítimas

desamparadas que merecem proteção a partir de um status especial.

O caso da migração haitiana para o Brasil ajuda a explorar empiricamente

esta discussão. Atualmente, estima-se que haja cerca de 50 mil migrantes

haitianos no país (Ferandes, De Castro, 2014B) e estes já constituem o maior

grupo dentre as diferentes nacionalidades de migrante no mercado de trabalho

brasileiro9. Entretanto, para além de seus números significativos, uma

característica particularmente relevante consiste no fato destes migrantes terem

sido incluídos na categoria de “imigrantes humanitários” no Brasil. Com isso, as

autoridades brasileiras fizeram da migração haitiana um caso excepcional na

política migratória do país, oferecendo a eles um tipo especial de visto que os

retrata como sujeitos vulneráveis em meio ao quadro humanitário instalado em

seu país após a ocorrência de um terremoto de alta magnitude em 2010.

Neste sentido, pode-se entender que este caso migratório reflete a atual

complexificação da categoria do refugiado. Ao se operar uma separação entre o

“imigrante humanitário” e o refugiado, abala-se o discurso convencional ao redor

9Esta informação foi divulgada recentemente na mídia, como em:

http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2014/10/1531134-haitianos-ja-sao-imigrantes-mais-

contratados-no-brasil.shtml. Último acesso em dez. 2014

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do refúgio que justamente o inseria no campo do humanitarismo, demonstrando

sua contingência. Isto é, este caso reflete a inadequação das categorias modernas

de subjetividade e pertencimento político para lidar com o contexto de mobilidade

e acelerações contemporâneo. Afinal, como foi argumentado, se a tríade Estado-

cidadão-território já não é mais capaz de circunscrever o político e vem se

rearticulando em novas demarcações, fronteiras e limites, as atuais transformações

pelas quais passa a categoria ou a figura do refúgio podem ser entendidas a partir

deste contexto.

O próximo capítulo busca analisar este caso empírico à luz das discussões

teóricas apresentadas até o momento. Ao considerar o caso em tela, busca-se

atentar para a produtividade do traçado do limite, pelas autoridades brasileiras, do

“imigrante humanitário”, no sentido de que tipo de “migrantes haitianos” se

articula nesta demarcação, assim como que tipo de politizações ou despolitizações

estão em jogo. Assim, o foco neste estudo de caso situa-se nos migrantes

haitianos, examinando como eles são governados enquanto “imigrantes

humanitários” e como eles negociam e resistem a estas práticas de traçado de

demarcações (boundary practices), sobretudo em sua acolhida no país.

De forma aliada a esta discussão acerca da categoria do imigrante

humanitário, a pesquisa também contemplará a forma como as fronteiras

territoriais se articulam na vivência destes migrantes, em sua trajetória até o

Brasil, mas particularmente a partir de uma análise da acolhida destes em um

abrigo improvisado na cidade de Brasileia, no Acre. Concordando com os autores

mencionados anteriormente de que os marcadores territoriais convencionais do

Estado soberano não mais concentram os controles da mobilidade humana, mas

situam-se crescentemente em outros locais, a pesquisa indagará como esta

fronteira pode ser entendida como atuando e sendo resistida nas experiências

destes migrantes.

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4 Os haitianos como “imigrantes humanitários” no Brasil: as demarcações articuladas e resistidas na experiência migratória

O presente capítulo oferece uma análise da migração haitiana para o Brasil

desde 2010 a partir de um enfoque na definição destes migrantes como

“humanitários” pelas autoridades brasileiras. Busca-se entender as implicações

políticas do traçado de um limite entre a categoria do refugiado e do “imigrante

humanitário” em termos das (des)politizações e subjetivações que produzem,

assim como atentando para as diferentes estratégias e mecanismos adotados pelos

migrantes no sentido de negociar o enquadramento recebido e resistir ao mesmo.

Para além da discussão jurídica acerca da adequação ou não destes

migrantes à definição do refúgio, defende-se que a decisão acerca de seu status

legal consiste em um ato iminentemente político. Ao deliberar acerca da definição

destes migrantes, o Estado reafirma sua condição soberana de monopolizar as

decisões de inclusão e exclusão de seu território delimitado. Ao mesmo tempo,

todo reconhecimento da condição de refúgio também implica no reconhecimento

de uma falha do país de origem do migrante em sua capacidade de proteger e

garantir os direitos fundamentais de seus cidadãos. Assim, argumenta-se que a

concessão de “vistos humanitários” aos migrantes haitianos – traçando uma

demarcação entre o refúgio e o humanitarismo – atua no sentido de despolitizar a

vinda destes migrantes e suas reivindicações de proteção, ao resumir sua

mobilidade a uma tragédia natural e preterir questões políticas profundas

relacionadas à situação do Haiti diante do regime humanitário internacional e o

envolvimento do Brasil neste regime.

Analisa-se igualmente que tipo de subjetivação é produzido a partir da

classificação dos migrantes haitianos como “imigrantes humanitários” à luz do

paradigma da resiliência predominante no discurso humanitário desde a década de

2000. A partir deste paradigma, os migrantes haitianos são entendidos como

sujeitos vulneráveis (seja a desastres ambientais, à pobreza extrema ou à ação

inescrupulosa de coiotes) e que precisam não de proteção, mas de terem seu fluxo

para o Brasil administrado, de modo que possam desenvolver sua resiliência e

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buscar oportunidades no país. Este tipo de lógica pautaria a forma como os

migrantes vêm sendo acolhidos e inseridos na sociedade brasileira, o que se torna

evidente nas situações precárias que encontram nos abrigos da cidade de Brasileia,

no Acre, mas também na vulnerabilidade destes migrantes a empregos de caráter

degradante e explorador no mercado de trabalho brasileiro.

Analisam-se igualmente diferentes instâncias nas quais os migrantes haitianos

foram capazes de resistir e tensionar o enquadramento humanitário recebido, seja

no cotidiano do abrigo em Brasileia, seja a partir de sua chegada em centenas e

repentina a São Paulo. Por fim, também são consideradas as diferentes instâncias

nas quais as fronteiras do Estado brasileiro se apresentam e são contornadas em

sua experiência migratória para o país.

A fim de desenvolver estas análises, a próxima seção discorre sobre o contexto

migratório brasileiro no qual a migração haitiana se insere e oferece um perfil da

mesma. A seguir, é discutido o enquadramento legal dos haitianos, a partir do

indeferimento de suas solicitações de refúgio e a concessão dos chamados “vistos

humanitários” a estes migrantes. A resolução normativa que estabelece a

concessão destes vistos e suas implicações imediatas para os migrantes haitianos

são analisadas mais a fundo na seção seguinte. Em seguida, é considerado o

enquadramento humanitário dos migrantes haitianos a partir do paradigma da

resiliência dentro do discurso contemporâneo do humanitarismo, atentando para

as despolitizações e produção de subjetividades que esta definição implica. Por

fim, são discutidas duas instâncias a partir das quais os migrantes haitianos são

capazes de explicitar as contradições do enquadramento recebido e politizá-lo,

tanto a partir do cotidiano do abrigo em Brasileia como a partir da chegada de

grupos destes migrantes a São Paulo.

4.1. A migração haitiana para o Brasil desde 2010: contexto e perfil migratórios

O Brasil vem atraindo a atenção internacional na última década pelo seu

crescimento econômico e devido à percepção de uma posição promissora como

uma “potência emergente” em um cenário global altamente interconectado e

dinâmico. Um aspecto importante desta nova posição do país na política mundial,

porém ainda pouco explorado na academia, é o fato de o Brasil vir atraindo

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também números crescentes de migrantes e solicitantes de refúgio de diferentes

continentes.

Como destacam Fernandes e de Castro (2014a), a crise econômica iniciada

em 2008 teve um impacto importante na reconfiguração das migrações de e para o

Brasil. Ao passo em que principalmente desde a década de 1980, o perfil

migratório do país era marcado pela emigração de trabalhadores brasileiros para

os países do Norte Global, o quadro pós-crise seria marcado por uma acentuada

migração de retorno destes emigrados e também por um aumento da imigração de

trabalhadores dos países do Norte afetados pela crise, com destaque para cidadãos

espanhóis e portugueses. A este contingente, somam-se os migrantes latino-

americanos que desde a década de 1990 vêm se dirigindo de forma crescente ao

Brasil, em meio aos acordos migratórios costurados no âmbito do MERCOSUL,

com destaque para os paraguaios, além daqueles que vêm irregularmente para o

país (Patarra, Baeninger, 2006).

Segundo dados do Censo Demográfico de 2010 do Instituto Brasileiro de

Geografia e Estatística (IBGE), haveria 268.295 imigrantes internacionais

residindo no Brasil naquele ano, sendo este contingente 86,7% maior do que o

verificado em 2000, registrado em um total de 143.644 imigrantes10

. Do total

verificado em 2010, 175.766 indivíduos teriam nascido no Brasil, o que siginifica

que 65,5% dos imigrantes internacionais do período seriam de retorno. Já com

relação à migração irregular para o Brasil, em 2008 estimava-se que o Brasil

contaria com um total de 600 mil migrantes nesta condição, segundo o Serviço

Pastoral dos Migrantes, sendo a maioria composta por bolivianos, paraguaios,

peruanos, chilenos, argentinos e colombianos11

.

Ao mesmo tempo, nos últimos quatro anos, o número de novas

solicitações de refúgio feitas a cada ano no Brasil cresceu 1.366% enquanto que o

número de pessoas que anualmente recebem o status de refugiado no país cresceu

aproximadamente 1.240% (UNHCR/ACNUR, 2014). Em termos absolutos, isto

significa que o Brasil atualmente conta com 7.289 refugiados reconhecidos

oriundos de 81 países diferentes, enquanto que em 2010 o país apresentava 4.357

10

Dados disponíveis em:

ftp://ftp.ibge.gov.br/Censos/Censo_Demografico_2010/Resultados_Gerais_da_Amostra/errata_mi

gracao.pdf. Acesso em 20 jan. 2015. 11

Dados disponíveis em:

http://www.bbc.co.uk/portuguese/reporterbbc/story/2008/03/080320_imigracaobrasililegais.shtml.

Acesso em 20 jan. 2015.

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destes migrantes. Ainda que estes números não sejam consideráveis se

comparados com, por exemplo, aos mais de um milhão de refugiados sírios

vivendo atualmente no Líbano ou mesmo se contrastados à população total

brasileira, eles sinalizam que o Brasil vem crescentemente se tornando um destino

na América do Sul para migrantes forçados originados de regiões diversas, como

o Oriente Médio e a África. O perfil da população de refugiados no Brasil tem se

tornando menos vinculado à proximidade geográfica do que costumava ser nos

últimos anos, uma vez que os refugiados sírios agora representam a maioria de

refugiados no país, seguidos por colombianos, angolanos e congoleses.

Entretanto, um grupo que se destaca neste contexto presente, mas que não

consta nas estatísticas sobre solicitantes de refúgio e refugiados no Brasil é o dos

migrantes haitianos. Desde 2010, quando o Haiti foi atingido por um terremoto de

alta magnitude, habitantes deste pequeno país caribenho passaram a migrar pra o

Brasil de forma significativa e em contingentes crescentes. Cumpre destacar que

antes do terremoto já se observava a migração de haitianos para países sul-

americanos e para o Brasil, porém numericamente inferior e motivada tanto pela

crise política de 2004 (que levou à renúncia do então presidente Aristide e a

instalação de uma missão da ONU), como pela existência dos Programas de

Estudantes-Convênio de Graduação (PEC-G) e de Pós-Graduação (PEC-PG), que

viabilizavam os estudos de haitianos em instituições de ensino superior no Brasil

(Télémaque, 2012).

Vale igualmente enfatizar que a migração haitiana para o Brasil verificada

desde 2010 pode constituir um fator novo e particular para o contexto imigratório

do Brasil, porém, do ponto de vista do contexto emigratório haitiano, não constitui

qualquer tipo de excepcionalidade. De fato, a emigração constitui um aspecto

relevante da realidade haitiana desde o início do século XX e consiste em uma

estratégia central da população do país para lidar com as crises políticas e

dificuldades socioeconômicas vivenciadas no país caribenho.

As quase três décadas ditatoriais da Era Duvalier12

(1957-1986), marcadas

pelo agravamento das condições de vida no país e pela generalização da violência

e perseguição política, geraram um êxodo massivo de haitianos de todas as classes

12

A Era Duvalier correspondeu aos governos autoritários de François Duvalier (1957-1971) –

também conhecido como “Papa Doc” - e seu filho Jean-Claude Duvalier (1971-1986), apelidado

“Bébé Doc”.

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sociais, consolidando a estratégia da emigração no país e formando uma diáspora

significativa em países como Estados Unidos, República Dominicana, França,

Canadá, Bahamas, dentre outros (Dubois, 2012). Desde então, as remessas

enviadas pelos haitianos da diáspora têm um papel central na economia haitiana,

tendo sido responsável pela maior parte da redução da pobreza no país nas duas

últimas gerações e tendo historicamente ultrapassando o montante enviado pela

chamada “Ajuda Oficial ao Desenvolvimento” (AOD) (Murray; Williamson,

2011). Segundo estimativas do Banco Mundial, as remessas atualmente

representam 21.1%13

do PIB do país, com cerca de dois milhões de haitianos

vivendo no exterior diante de uma população total de aproximadamente 10

milhões.

Assim, a “novidade migratória” após o terremoto de 2010 não consistiu no

grande volume de haitianos que passaram a buscar uma alternativa de

sobrevivência ou uma melhoria de suas condições de vida a partir do cruzamento

de fronteiras internacionais, mas o fato de o Brasil passar a figurar claramente

com um dos destinos para esta migração. O terremoto de 12 de janeiro de 2010

teve seu epicentro próximo à capital Porto Príncipe, afetou cerca de 3,5 milhões

de pessoas, levou à morte de estimados 220 mil e deixou cerca de 1.5 milhão de

pessoas sem casa, passando a habitar campos para deslocados internos (IDPs, na

sigla em inglês)14

. Dez meses após o terremoto, houve a eclosão de uma grave

epidemia de cólera no país, agravando ainda mais a precariedade da conjuntura.

Neste quadro, muitos buscaram em outros países uma alternativa, porém

enfrentando posturas altamente restritivas em países do Norte Global aos quais

costumavam se dirigir, como Estados Unidos e França (Thomaz, 2013b; Fernades,

Ribeiro, 2015).

A escolha do Brasil como um novo destino para estes migrantes costuma

ser atribuída à aproximação política entre Brasil e Haiti, principalmente via a

atuação do exército brasileiro no comando do componente militar da Missão das

Nações Unidas para a Estabilização no Haiti (MINUSTAH, na sigla em francês)

desde 2004, mas também através de projetos de cooperação técnica entre os dois

países e a crescente atuação de ONGs brasileiras no país caribenho desde o início

13

Dados disponíveis em: http://data.worldbank.org/indicator/BX.TRF.PWKR.CD.DT. Acesso em

20 jan. 2015. 14

Dados oferecidos por Disasters Emergency Committee (Haiti Earthquake Facts And Figures).

Disponível em: http://www.dec.org.uk/haiti-earthquake-facts-and-figures. Acesso em 20 jan. 2015.

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da Missão (Patarra, 2012; Da Silva, 2013; Cogo, 2013; Fernandes; De Castro,

2014a). Segundo esta interpretação, as ações diplomáticas, militares e aquelas

costuradas por entidades da sociedade civil brasileira no Haiti teriam contribuído

para a criação de um imaginário junto à população local de destino migratório

promissor.

(...) entendemos que a recente presença da diáspora haitiana no contexto

brasileiro não pode ser compreendida senão no marco de um caminho que indica

a existência de vinculações geopolíticas anteriores entre Brasil e Haiti. Tais

enlaces, que não remetem a relações coloniais entre as duas nações, se

constituem, especialmente, a partir da ação do exército brasileiro e de

organizações não governamentais (ONGs) no Haiti prévia e posteriormente ao

terremoto que atingiu o país em 2010. (Cogo, 2013, P. 26).

Sejam quais forem as motivações iniciais da escolha do Brasil como um

destino migratório no contexto haitiano pós-terremoto, desde 2010 cidadãos do

país caribenho passaram a chegar de maneira mais notória no território brasileiro.

Ainda em 2010, verificaram-se pequenos grupos de haitianos dirigindo-se ao

Brasil pela fronteira com o Peru que totalizariam menos de 200 pessoas

(Ferandes; De Castro, 2014b). Desde então, o número de haitianos no Brasil vem

crescendo rapidamente: ao final de 2011, estimava-se haver cerca de 4.000

haitianos no país, ao final de 2013 este número havia subido para cerca de 20.000,

e no fim de 2014 as estimativas dão conta de 50.000 migrantes haitianos no Brasil

(Id.). Já dados da Polícia Federal divulgados pelo ACNUR apontam para a entrada

de 39.000 migrantes haitianos no Brasil entre 2010 e setembro de 2014

(UNHCR/ACNUR, 2014).

O perfil destes migrantes assim como suas rotas migratórias vem se

alterando desde 2010. Porém, um aspecto que se manteve constante ao longo

destes anos foi o fato de a maior parte destes migrantes se dirigem ao Brasil via

um trajeto irregular, chegando ao território brasileiro através da fronteira noroeste

amazônica, em jornadas que envolvem redes ilegais de atravessadores ou

“coiotes”. Inicialmente, duas rotas principais se desenvolveram: partindo

diretamente do Haiti ou a partir do cruzamento para a República Dominicana, os

migrantes dirigem-se de avião para o Equador com escala no Panamá; a partir do

Equador se deslocam por vias terrestres até o Peru e então cruzam a fronteira

brasileira na cidade de Tabatinga no Amazonas ou na cidade acreana de Assis

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Brasil (Pimentel, Cotiguiba, 2014). Além destes dois caminhos feitos de maneira

irregular, há também uma parcela minoritária de migrantes haitianos que chegam

ao Brasil regularmente, através de voos que conectam o Haiti a grandes cidades

brasileiras como São Paulo, Brasília e Belo Horizonte. Estes trajetos encontram-se

representados na Figura 1 abaixo. Os gastos incorridos pela viagem guiada pelos

coiotes são altos e podem chegar a US$ 4.000 (Ferraz; Prado, 2014). Atualmente,

dada o acúmulo de experiência e crescente sofisticação das redes de

atravessadores, o tempo despendido no trajeto pode levar menos de uma semana,

em contraste como as semanas e até meses despendidos nos primeiros anos desta

migração (Fernandes; De Castro, 2014b).

O caminho irregular com entrada no território brasileiro pelo estado do

Acre acabou se consolidando nos últimos anos como a principal rota dos

migrantes haitianos que se dirigem ao Brasil. A cidade acreana de Brasileia

tornou-se, entre 2010 e abril de 2014, o principal local de recepção destes

migrantes, de modo que diferentes abrigos foram improvisados na cidade para

acolhê-los15

. Em abril de 2014 o abrigo de Brasileia foi fechado e uma nova

estrutura foi designada como local de acolhida destes migrantes na cidade de Rio

Branco, capital do Acre, o que será explorado de forma mais aprofundada adiante.

A maioria dos migrantes haitianos são homens, porém a proporção de

mulheres e crianças vem crescendo desde 2010, sendo que a maioria destas migra

com o intuito de encontrar familiares que já estejam trabalhando no país (Terra,

2013). Na maior parte dos casos, a vinda destes migrantes, sobretudo no caso dos

homens jovens, envolve um investimento e mesmo endividamento familiar. Os

demais membros da família depositam no migrante a responsabilidade de obter

um emprego no Brasil e enviar remessas de volta, de modo a contribuir para o

sustento do grupo e saldar possíveis dívidas (Pimentel, Cotiguiba, 2014).

A qualificação profissional dos migrantes vem mudando, sendo que entre

2010 e 2011 verificaram-se migrantes homens com maior qualificação e nos anos

subsequentes predomínio de migrantes que ocupavam cargos de baixa

qualificação antes de vir ao Brasil, principalmente na construção civil.

Independentemente do nível de ensino ou ocupação no país de origem, a maioria

15

A maior parte dos migrantes que chegavam à Brasileia consistia em cidadãos haitianos, mas

também outras nacionalidades minoritárias vêm utilizando a entrada pelo Acre para acessar o

território brasileiro e instalando-se igualmente nos abrigos improvisados, sobretudo migrantes

senegaleses.

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dos migrantes haitianos tem sido empregada no setor da construção civil e na

indústria de alimentos, em cargos de baixa remuneração, o que gera frustração em

grande parte deles no que concerne seus planos iniciais de enviar dinheiro à

família que ficou no Haiti (Ferandes; De Castro, 2014b). A situação das mulheres

haitianas tem sido ainda mais delicada, pois estas têm recebido muito menos

ofertas de emprego do que os homens migrantes. Dentre as poucas ofertas

recebidas pelas mulheres, grande parte destas é para atuar em serviços domésticos

(Bertolotto, 2012).

Figura 1. Principais Rotas da Migração Haitiana para o Brasil. Fonte: Projeto “Estudos sobre a Migração Haitiana ao Brasil e Diálogo Bilateral” – Duval Fernandes (Org.) e Maria da Consolação G. de Castro

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Entretanto, para além das questões numéricas e do perfil destes migrantes,

uma caraterística particularmente importante deste caso é o fato de os migrantes

haitianos terem sido incluídos na categoria de “imigrantes humanitários” no

Brasil, uma categoria que se situa nos interstícios do sistema de refúgio. Com isso,

as autoridades brasileiras fizeram da migração haitiana um caso excepcional na

política migratória do país, oferecendo-lhes um tipo especial de documentação

que os retrata como sujeitos vulneráveis em meio ao quadro humanitário instalado

em seu país após a ocorrência de um desastre natural em 2010. Esta forma

particular de governar esta migração levanta questões sobre o status político

destes migrantes e tem implicações em termos de sua posição social no país, o que

será discutido nas próximas sessões.

4.2. O status migratório para além da questão legal

Desde 2010, ao chegarem ao Brasil pela região amazônica através de rotas

irregulares, os migrantes haitianos vêm optando por solicitar refúgio junto à

delegacia da Polícia Federal mais próxima do ponto de cruzamento da fronteira

(Patarra, 2012), sendo Epitaciolândia no Acre (cidade conturbada à Brasiléia) o

principal local em que estes migrantes fazem o pedido de refúgio. Como ressalta

de Godoy (2011), as autoridades brasileiras inicialmente apresentaram dúvidas

com relação à adequação legal dos migrantes haitianos à categoria do refugiado,

questão que foi tema de uma audiência pública conduzida pelo Ministério Público

Federal do Acre em 201116

.

A definição da legislação brasileira para refúgio contempla não somente

aquela proposta pela Convenção de 1951 e seu Protocolo de 1967 (que considera

pessoas vítimas de perseguição individualizada), mas também considera as

contribuições da Declaração de Cartagena de 1984, expandindo a determinação do

refúgio da questão individual para o contexto do país de origem do solicitante de

refúgio17

. Assim, a lei brasileira para refúgio, além de considerar o migrante que

16

Como foi noticiado em:

http://www.prr4.mpf.gov.br/site/index.php?option=com_content&view=article&id=254:audiencia-

publica-discutira-situacao-juridicade-haitianos-em-solo-brasileiro&catid=10:noticias&Itemid=58.

Acesso em 10 jan. 205. 17

Como destaca Moreira (2005), durante a Guerra Fria um novo contexto de migração forçada

emergiu na América Latina, quando muitos países da região (destacadamente Chile, Guatemala, El

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apresente um fundado temor de perseguição por motivos de raça, nacionalidade,

religião, pertencimento a um grupo social ou opiniões políticas, também prevê o

reconhecimento como refugiado no Brasil de todo o indivíduo que “devido a

grave e generalizada violação de direitos humanos, é obrigado a deixar seu país de

nacionalidade para buscar refúgio em outro país” (Lei Nº 9474, inciso III, 1997).

Apesar do caráter amplo da definição de refugiado prevista na legislação

brasileira, o Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE), órgão colegiado

presidido pelo Ministério da Justiça e responsável pela deliberação acerca das

solicitações de refúgio no país, chegou à conclusão de que os migrantes haitianos

não poderiam ser reconhecidos como refugiados no Brasil. Segundo Renato

Zerbini Ribeiro Leão (2011), coordenador geral do CONARE à época da decisão

pelo indeferimento das solicitações dos haitianos:

(...) à luz do Direito Internacional dos Refugiados, o atual drama humanitário do

Haiti, fincado em pilares naturais (terremoto) e econômicos (pobreza extrema),

não é capaz de levar aos haitianos a serem reconhecidos como refugiados. Eis que

nem a Convenção das Nações Unidas sobre o Estatuto dos Refugiados de 1951 e

tampouco o seu Protocolo de 1967 estabelecem os desastres naturais e/ou a

violência econômica como fatores capazes de ensejar o refúgio.

A Lei brasileira de refúgio 9.474/97 (...) também não contempla a possibilidade

de ser reconhecido como refugiado em decorrência de desastres naturais e/ou de

violência econômica. (ênfase da autora, Leão, 2011, p. 88)

Uma vez negadas as solicitações de refúgio dos haitianos, reconhecendo,

porém, o caráter “humanitário” da migração em questão, o CONARE decidiu por

encaminhar as solicitações de refúgio dos migrantes haitianos para o Conselho

Nacional de Imigração (CNIg), o qual passou a conceder-lhes vistos de

permanência por razões humanitárias (comumente referidos como “vistos

humanitários”).18

Com isso, as autoridades brasileiras tornavam o caso haitiano

Salvador e Nicarágua) suportaram décadas de regimes ditatoriais e disputas políticas internas que

geraram milhões de refugiados no subcontinente. A definição legal da categoria do refugiado

prevista na Convenção de 1951 foi considerada muito restrita para lidar adequadamente com esta

realidade e, como resultado, a Declaração de Cartagena de 1984 – contando com o exemplo da

Convenção da Organização da Unidade Africana de 1969 – abriu caminho para a expansão da

proteção aos refugiados no sistema interamericano recomendando a inclusão daqueles que:

[...] tenham fugido dos seus países porque a sua vida, segurança ou liberdade tenham

sido ameaçadas pela violência generalizada, a agressão estrangeira, os conflitos

internos, a violação maciça dos direitos humanos ou outras circunstâncias que tenham

perturbado gravemente a ordem pública. (Declaração De Cartagena, 1984) 18

A Resolução Normativa Nº 13 de 2007 do CNIg prevê a possibilidade de concessão de vistos de

residência permanente por razões humanitárias aos migrantes cujas solicitações de refúgio não

atendam aos requisitos de elegibilidade da lei brasileira, mas que sejam considerados pelo

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“especial” dentro da política migratória do país, uma vez que os migrantes desta

nacionalidade constituem os únicos a receberem enquanto grupo este status

específico que permite sua regularização no país apesar da vinda por meios

irregulares.

Esta “solução jurídica” dada à migração haitiana foi comemorada por

alguns atores, como o ACNUR (UNHCR, 2011b, p. 145), e também

pesquisadores (Fernandes, Milesi, Farias, 2011; Da Silva, 2013;), como um caso

ímpar no país em que se buscou, a partir de uma perspectiva humanitária, permitir

a presença de migrantes vulneráveis no país. Por outro lado, atores como a ONG

Conectas e outros pesquisadores (Thomaz, 2013a; Pimentel, Cotinguiba, 2014;

Seixas, 2014) se posicionaram criticamente com relação a esta decisão legal,

apontando para como a situação no Haiti poderia ser considerada como de “grave

e generalizada violação de direitos humanos” tal como previsto na Lei Nº 9.474.

Entretanto, não é o objetivo do presente trabalho especular acerca da

adequação legal dos migrantes haitianos à categoria do refugiado, uma vez que,

para além da questão técnico-jurídica, a decisão de um Estado sobre a concessão

ou não do refúgio consiste em um ato iminentemente político em dois sentidos

principais. De um lado, como lembra Nyers (2003), o momento em que um

Estado considera uma solicitação de refúgio constitui um episódio político de

grande relevância do ponto de vista da soberania estatal. Isto se dá porque este

momento não apenas marca a realização de uma determinação humanitária, mas,

acima disso, constitui-se em uma ocasião em que o Estado reproduz sua

capacidade de decidir sobre questões de inclusão e exclusão de seu território

delimitado, “refundando”, assim, sua soberania neste ato frequentemente tido

como meramente técnico e apolítico. Ao concentrar a capacidade de decisão sobre

quem é autorizado ou não a permanecer em seu território sob uma justificativa

humanitária, assim, o Estado “(re)founds its claim to monopolise the political”

(Nyers, 2003, p. 1071).

De outro lado, como destaca Haddad (2008, p.2), “(...) in granting refugee

status a host state automatically makes a statement about the country of origin,

recognizing a failure that could have serious political or economic repercussions

between states”. Ou seja, pensando no caso da migração haitiana para o Brasil,

CONARE como dignos de permanência no país por casos não previstos (omissos) na Lei Nº 9.474.

Dentre os casos omissos, constam aqueles de natureza humanitária (CNIg, 2007).

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caso as autoridades brasileiras reconhecessem os migrantes haitianos enquanto

refugiados, estaria reconhecendo também a incapacidade do Estado haitiano de

garantir a proteção dos direitos mais fundamentais de seus cidadãos. Este

reconhecimento, por sua vez, implicaria em um reconhecimento de uma falha ou

falta de sucesso nos esforços internacionais de “ajuda” ao Haiti, o que envolve a

própria MINUSTAH na qual o país tem forte implicação diplomática e militar.

Assim, não apenas a decisão de indeferir as solicitações dos migrantes

haitianos apresenta um caráter político no sentido de que “(...) for every refugee

there is always a non-refugee who could be a refugee were the political

circumstances and priorities different” (Id., p. 5), mas também no sentido de que

negar estas solicitações, mas conceder aos migrantes haitianos “vistos

humanitários” - traçando um limite entre o refúgio e o humanitarismo – atua no

sentido de despolitizar a vinda destes migrantes e suas reivindicações de proteção.

Para além da presença de uma intencionalidade, o enquadramento dos migrantes

haitianos como “imigrantes humanitários”, portanto, resume este caso migratório

a uma “tragédia natural” e um quadro de “pobreza extrema” que teriam colocado

estes indivíduos em uma posição vulnerável e os teria feito buscar alternativas em

outros países. Esta forma de se interpretar a migração haitiana pretere as questões

políticas mais profundas que vêm à tona com esta migração, como a precariedade

do processo de reconstrução do Haiti após o terremoto e o regime de state

building implementado no país a partir da MINUSTAH, o que compromete o

próprio envolvimento do Brasil enquanto ator do regime humanitário.

Como exposto no segundo capítulo, a categoria ou figura do refugiado

seria intimamente relacionada ao campo do humanitarismo, uma vez que

migrantes assim reconhecidos seriam, de forma dominante, inseridos neste campo

a partir de sua representação – pautada na lógica do Estado soberano – enquanto

vítimas apolíticas que necessitam de intervenções especializadas da “comunidade

internacional”. A literatura crítica sobre refúgio analisada aponta para como este

tipo de representação do refugiado atua no sentido de convertê-lo em uma figura

útil à reprodução do Estado e do sistema de Estados, uma vez que opõe a

subjetividade do refugiado àquela do cidadão, um sujeito atrelado à

territorialidade estatal e reafirmado como sujeito político autêntico. Sendo

resultado das formas de discriminação territorial e de subjetividade do imaginário

político moderno – articuladas pela tríade Estado-cidadão-território –, estes

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migrantes seriam enquadrados representativamente de maneira a contribuir para a

sustentação desta ordem soberana a partir de sua inserção em um espaço

humanitário, abjeto e apolítico. Porém, como discutido no terceiro capítulo,

práticas soberanas vêm se rearticulando na política contemporânea, o que se

converte em uma multiplicação e complexificação das demarcações, fronteiras e

limites do Estado para além das linhas territoriais oficiais e das distinções entre

cidadãos e não-cidadãos, o que impacta a categoria do refugiado e a problematiza

também.

Este tipo de complexificação se espelha no caso dos migrantes haitianos

no Brasil, que têm seu enquadramento marcado pela separação da categoria do

refugiado do campo do humanitarismo, e que encontram, em sua experiência

migratória, fronteiras para além daquelas vislumbradas nos mapas políticos.

Entendendo que estas demarcações encontradas pelos haitianos são instâncias de

disputas políticas, onde politizações e despolitizações ocorrem, este capítulo

busca analisá-las, de modo a entender como os migrantes haitianos negociam e

resistem às linhas traçadas.

4.3. A Resolução Normativa 97 do CNIg e a proliferação de fronteiras

Segundo Pimentel e Contiguiba (2014, p. 81), em dezembro de 2011, o

governo brasileiro teria anunciado a “possibilidade de fechamento das fronteiras

na região das rotas de entrada dos haitianos ou o controle do número de entrada”.

Rumores passaram a circular no Haiti de que o Brasil não permitiria mais a

entrada de migrantes haitianos no ano de 2012, e isso teria levado cerca de 500

haitianos a entrarem no Brasil no final de dezembro de 2011 pela cidade de Assis

Brasil no Acre, temendo o fechamento iminente. Manchetes de caráter xenofóbico

como “Acre sofre como invasão de imigrantes do Haiti”19

abriram o noticiário

nacional no ano de 2012, trazendo a migração haitiana, ainda que

momentaneamente, para o centro das atenções políticas e midiáticas.

No dia 12 de janeiro de 2012, justamente na data em que se completavam

dois anos da concorrência do terremoto no Haiti, foi estabelecida a Resolução

Normativa (RN) Nº 97 do CNIg que, até certo ponto, vinha a consolidar os

19

Disponível em: http://oglobo.globo.com/brasil/acre-sofre-com-invasao-de-imigrantes-do-haiti-

3549381 Acesso em 22 jan. 2015.

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temores de fechamento das fronteiras brasileiras para migrantes haitianos, uma

vez que a implementação da mesma implicava na impossibilidade da entrada

destes migrantes no país caso não obtivessem previamente visto na embaixada

brasileira em Porto Príncipe. A Resolução previa a continuidade da política de

emissão de vistos permanentes por razões humanitárias a estes migrantes, sendo

estas razões referidas como “aquelas resultantes do agravamento das condições de

vida da população haitiana em decorrência do terremoto ocorrido naquele país em

12 de janeiro de 2010” (CNIg, 2012).

A partir da entrada em vigor da resolução, o número de vistos

humanitários concedidos aos migrantes haitianos seria limitado a 1200 por ano

(uma média de 100 por mês), sendo concedidos exclusivamente pelo Ministério

das Relações Exteriores (MRE) através da embaixada do Brasil em Porto

Príncipe. Isto é, a partir de então se impunha um limite numérico para a concessão

destes vistos e impedia-se que os mesmos fossem obtidos no território brasileiro

como vinha ocorrendo até então. Um aspecto relevante que decorre desta

resolução, portanto, é que os migrantes haitianos se viram efetivamente impedidos

de solicitar refúgio no país, uma vez que, segundo o Direito Internacional para

refúgio, esta solicitação só pode ser feita no território do país em que se busca

acolhida. Como destacou Omar Ribeiro Thomaz (2012), esta foi a “primeira vez,

desde a 2ª Guerra, que se impede a uma nacionalidade específica solicitar a

proteção do refúgio [no Brasil]”.

Além disso, a RN 97 estabelecia que, para obter este visto, o nacional

haitiano deveria pagar a taxa de US$ 200,00 e apresentar três documentos à

embaixada brasileira: um passaporte atualizado, um comprovante de residência e

outro de ausência de antecedentes criminais. Os vistos têm validade prevista de

cinco anos, após os quais o migrante haitiano deve comprovar situação laboral a

fim de obter a permissão para estender sua permanecer no país.

A resolução veio acompanhada do anúncio de um reforço no patrulhamento

nas fronteiras setentrionais, e do estabelecimento de uma cooperação com países

vizinhos para tanto. A chamada “Operação Sentinela” da Polícia Federal foi posta

em ação a partir da entrada em vigor da resolução, com o intuito de impedir a

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entrada em solo brasileiro de migrantes haitianos que não estivessem munidos dos

vistos emitidos pela embaixada em Porto Príncipe20.

Ao mesmo tempo, as autoridades brasileiras passaram a pressionar o Peru e o

Equador, dois países de trânsito dos haitianos em rota para o Brasil, para que

exigissem vistos destes migrantes. Como resultado, o Peru passou a exigir tais

vistos, ao passo em que o Equador esboçou uma tentativa de restringir a entrada

de haitianos em 2013, mas não pôs em prática tal política (Ferandes; Ribeiro,

2015).

Passados três dias do estabelecimento da RN 97, um pronunciamento conjunto

dos então ministros da Justiça José Eduardo Cardozo e das Relações Exteriores

Antônio Patriota foi divulgado, relembrando os esforços de cooperação e

solidariedade brasileiros para com o Haiti e justificando a resolução do CNIg.

Segundo o discurso dos ministros, o que teria motivado a decisão de estipular uma

cota na emissão dos vistos seria a preocupação do governo brasileiro com os

cidadãos haitianos que, em seu trajeto para o Brasil, tornavam-se vulneráveis à

ação de “intermediários inescrupulosos” (os atravessadores ou “coiotes”), sendo

extorquidos e estando sujeitos a violências e abusos (Patriotia; Cardozo, 2012). Os

ministros, assim, explicitam a preocupação do Brasil com relação a estes

migrantes advindos de um “país irmão” e justificam a RN 97 com base no

“repúdio à exploração de imigrantes vulneráveis” (Id.).

Verifica-se, assim, que mais uma vez os haitianos são retratados na posição de

sujeitos vulneráveis (desta vez à ação de coiotes e não só a desastres naturais e à

pobreza extrema) e que as medidas tomadas então para restringir sua entrada (via

o patrulhamento e reforço da fronteira do Estado brasileiro) tinham o objetivo não

de impedir ou diminuir sua entrada no país, mas de garantir o “respeito à

dignidade e aos direitos humanos dos migrantes” (Id.). Pode-se dizer que ao se

resumir a justificativa da RN 97 a uma questão de caráter humanitário mais uma

vez se despolitizava a mobilidade e as reivindicações dos haitianos, assim como a

decisão soberana de restringir a entrada legal destes migrantes.

20

Consta no Relatório de Prestação de Contas Anual da Superintendência da Polícia Federal do

Acre: “Realização de barreiras policiais nos principais pontos de entrada de imigrantes no estado

do Acre, quais sejam: Ponte do município de Epitaciolândia (fronteira Bolívia), Ponte Wilson

Pinheiro, no município de Brasiléia (fronteira Bolívia) e Ponte de Assis Brasil (fronteira Peru).

Toda a coordenação deste trabalho esteve a cargo do Chefe da Operação Sentinela”. Disponível

em:https://contas.tcu.gov.br/econtrole/ObterDocumentoSisdoc?codArqCatalogado=4361493&seA

brirDocNoBrowser=1. Acesso em 14 jan. 2015.

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Os resultados da RN 97 se desdobraram em várias frentes. Pode-se afirmar

que ao condicionar a entrada dos migrantes haitianos no Brasil à obtenção de visto

na embaixada brasileira em Porto Príncipe, a fronteira do Estado brasileiro passou

a se fazer presente também na capital haitiana, proliferando-se para além da linha

oficial de demarcação territorial do país, o que não se verificava anteriormente. A

quantidade estipulada de vistos (cerca de 100 por mês) não foi capaz de dar conta

da demanda apresentada, de modo que em novembro de 2012 todos os

agendamentos para o ano seguinte já estavam completos e se criou uma lista de

espera.

Além disso, o Peru, que passou a exigir vistos aos haitianos sob pressão das

autoridades brasileiras, também se tornou uma instância de reprodução da

fronteira do Estado brasileiro. Pode-se entender que esta mobilidade da fronteira

brasileira, que se manifesta no Haiti, no Peru e, como se verá a seguir, também no

interior do estado Acre, expressa as contradições políticas produzias pelo status do

“imigrante humanitário”, que não conta com as mesmas prerrogativas e direitos

que os refugiados (por exemplo, um solicitante de refúgio, segundo o Direito

Internacional, não poderia ter sua entrada em um país de destino impedida pela

falta de documentação). A resposta do Estado brasileiro expressa na RN 97,

assim, corresponde a uma “solução” jurídica dada a uma questão política

complexa cujas demarcações não se limitam à fronteira oficial do Estado

brasileiro ou à definição do refugiado, sendo que estas demarcações múltiplas

manifestam-se nas experiências dos migrantes aqui analisadas, seja em sua

mobilidade para o Brasil seja em sua acolhida no país.

Contrariamente ao que se supunha no discurso oficial dos ministros

mencionado acima, a imposição do visto obtido exclusivamente em Porto Príncipe

sob o regime de cotas teve o efeito de aumentar a exposição dos migrantes a

extorsões no caminho, sobretudo de policiais peruanos. Como destacam Vásquez,

Busse e Izaguirre (2013), autoridades policiais peruanas submetem os migrantes a

roubos, golpes, procedimentos irregulares de intervenção nos ônibus onde viajam,

solicitam o pagamento de subornos, dentre outras ações, cujas consequências são,

por exemplo, “Pérdida parcial o total del dinero del viaje, que acarrea condiciones

de vulnerabilidad extrema (hambre, sed, imposibilidad de solventar un hotel)

(Idem, s. 8).

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No curto prazo, a política de “fechamento” das fronteiras levou à retenção e

acúmulo de centenas de migrantes haitianos que já estavam a caminho do Brasil

quando da entrada em vigor da resolução. Estes migrantes ficaram retidos na

cidade de Inãpari no Peru, fronteiriça à cidade acreana de Assis Brasil. Nesta

situação os migrantes se viram desassistidos e expostos a uma situação

extremamente precária na fronteira brasileira, dependendo do auxílio de uma

igreja da cidade. Como lembra Seixas (2014) estas circunstâncias levaram os

migrantes haitianos a redigir um manifesto às autoridades brasileiras e peruanas

reivindicando seu direito de entrada e denunciando a situação à qual foram

submetidos:

Reunidos, todos os cidadãos haitianos, no templo paroquial da Igreja Católica da

cidade de Iñapari, no dia 25 de Janeiro de 2012, (...); depois de uma longa

assembléia, onde se manifestaram vários de nossos compatriotas, homens e mulheres,

alguns com lágrimas nos olhos, expressamos o seguinte à opinião pública: 1. Que

neste momento nos encontramos 280 cidadãos haitianos retidos, nesta cidade

fronteiriça de Iñapari, sem poder passar ao Brasil, desde o dia 12 de janeiro. Muitos

de nós já não temos recursos econômicos para pagar hotel, alimentação e para gastos

pessoais. Por este motivo, caridosamente, o Pároco de Ibéria nos forneceu o local do

templo para lá nos instalarmos. (...). 2. Nós não tínhamos conhecimento da decisão

humanitária que havia tomado o governo do Brasil, de outorgar vistos de trabalho

para cidadãos haitianos em sua embaixada no Haiti; neste momento já estávamos no

caminho viajando para o Brasil. (...) 3. Solicitamos encarecidamente ao governo do

Brasil que nos permita ingressar a seu país, por um Ato Humanitário, para oferecer

nosso trabalho, sobretudo, como mão de obra em suas grandes construções e mega-

projetos; porque nós somos gente de trabalho e não temos a nenhum tipo de trabalho.

4. Ao estar fechada a fronteira do Brasil e não podermos passar, somos conscientes

que estamos expostos ao tráfico de pessoas (...).Portanto, gostaríamos de pedir ao

governo do Brasil que nos permita ingressar por sua fronteira de Assis-Brasil, para

evitar o tráfico e ação de coiotes. 5. Solicitamos ao governo do Peru que conceda

anistia para vários de nossos concidadãos que já tenham vencidas as permissões de

estadia no Peru (...). Esperando que através do presente documento nosso grito de

auxílio seja escutado pela opinião pública do Peru, Brasil e Haiti, abaixo assinados.21

No manifesto, os migrantes revertem o sentido do humanitarismo

anteriormente empregado pelas autoridades brasileiras, afirmando que um ato

humanitário consistiria em deixá-los entrar e não impedir sua entrada irregular.

Como destacado pelos migrantes, nos pontos 4 e 5, a política de fechamento da

fronteira os torna mais e não menos suscetível à ação dos coiotes. Ou seja, os

migrantes desafiam o reforço da fronteira do Estado brasileiro e suas justificativas

21

O Manifesto foi divulgado pelo jornal “A Tribuna” do Acre e encontra-se disponível em:

http://www.interjornal.com.br/noticia_impressao.kmf?cod=13161665&pdf=.1 Acesso em 10 jan

2015.

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ao reivindicarem sua entrada no país, e, com isso, politizam esta demarcação, ao

mostrar seus resultados arbitrários e excludentes.

No dia 10 de abril de 2012, os migrantes tiveram suas reivindicações atendidas

e sua entrada foi permitida no território brasileiro22

. A partir deste dia, a entrada

indocumentada dos migrantes haitianos não foi mais contida pela Polícia Federal e

sua documentação passou a ser processada normalmente a partir de suas

solicitações de refúgio, como vinha acontecendo antes da entrada em vigor da RN

97 (Seixas, 2014). No dia 16 de abril foi publicada a RN Nº 102 do CNIg que

suspende o sistema de cotas para a emissão e vistos e que também permite que

outras embaixadas, além da de Porto Príncipe, emitam os vistos humanitários. A

última alteração da RN 97 se deu em outubro de 2013, quando seu prazo de

vigência foi estendido para janeiro de 2015, permitindo a continuação do acesso

dos haitianos aos vistos humanitários.

A próxima sessão debruça-se mais pontualmente sobre o enquadramento dos

migrantes haitianos como humanitários e o traçado do limite entre esta categoria e

a do refugiado, buscando analisar as implicações de se governar estes migrantes

enquanto humanitários e as estratégias de negociação ou resistência a estas

práticas desenvolvidas pelos migrantes.

4.4. O enquadramento humanitário da migração haitiana e suas negociações/resistências

A fim de analisar o enquadramento humanitário dos migrantes haitianos no

Brasil, vale retomar o pronunciamento conjunto dos ministros das Relações

Exteriores e da Justiça quando da entrada em vigor da RN 97 do CNIg. Além de

justificarem a restrição no número de vistos emitidos aos cidadãos haitianos, os

ministros destacaram os projetos de cooperação e a postura de solidariedade nos

engajamentos do Brasil com o Haiti, referindo-se aos “laços de fraternidade” que

pautariam as relações entre os dois países. Uma declaração à imprensa proferida

pela presidente Dilma Rousseff logo a seguir, no dia 2 de fevereiro de 2012, após

uma reunião com o presidente haitiano Michel Martelly, também retoma a tônica

22

Como noticiado em:

http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2012/04/120410_haitianos_entrada_brasil_jp.shtml

Acesso em 10 jan. 2015.

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fraternal e não hierárquica do posicionamento brasileiro com relação ao Haiti. A

presidente destacou que “No Haiti, como em outras partes do mundo – na África,

na Ásia e no Oriente Médio -, no passado e no presente, o Brasil procura formar

parcerias solidárias e encontrar fórmulas simétricas e mutuamente respeitosas de

cooperação” 23

.

Este tipo de posicionamento já vinha sendo demonstrado na política externa

brasileira para com o Haiti, sobretudo através da liderança brasileira no

componente militar da missão. Como Moreno, Braga e Gomes (2012) salientam, a

MINUSTAH foi constituída a partir de um contingente militar

predominantemente latino-americano, e esta característica pós-colonial da missão

permitira que esta se mostrasse mais empática com a realidade haitiana,

minimizando os sentimentos de imposição e neocolonialismo que normalmente

são atrelados a este tipo de intervenção. Considerando a liderança brasileira no

componente militar da missão, esta seria capaz de mobilizar discursivamente o

passado colonial compartilhado entre os dois países de modo a dirimir o caráter

hierárquico da missão e dar-lhe maior legitimidade na perspectiva da população

local.

Entretanto, as noções de fraternidade e simetria empregadas pelas autoridades

brasileiras também podem ser interpretadas a partir da rearticulação da prática

humanitária internacional nos anos 2000 que atua no sentido de elidir a

responsabilidade daqueles que promovem as intervenções. Segundo Chandler

(2012), houve uma mudança na lógica das intervenções nesta década,

abandonando o enquadramento discursivo que dominou os debates sobre

intervenção humanitária dos anos 1990 (denominado por ele de “intervencionismo

liberal”), baseado na responsabilidade dos agentes interventores pela proteção de

vítimas.

Em substituição a esta lógica, nos anos 2000 verificou-se a emergência do

paradigma da resiliência que transferia a agência daqueles que promovem a

intervenção para aqueles que precisam de assistência, não mais vistos como

vítimas, mas como sujeitos vulneráveis. Este paradigma propõe um programa de

“empoderamento” e “construção de capacidades” de modo a auxiliar no cultivo da

23

A declaração dada pela presidente na coletiva de imprensa pode ser acessada em:

http://g1.globo.com/mundo/noticia/2012/02/estamos-abertos-receber-cidadaos-haitianos-diz-

dilma-no-haiti.html. Acesso em 23 jan 2015.

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resiliência das populações ou indivíduos envolvidos, em um enquadramento

menos marcadamente hierárquico. Este paradigma entende que a incerteza, a

complexidade e a contingência são predominantes na experiência humana e

biológica (Chandler, 2014; Duffield, 2013), o que impede que intervenções ou

práticas de governo em geral possam prever os resultados a serem atingidos e,

assim, se responsabilizar pela garantia da segurança de populações. Neste

entendimento, a responsabilidade é conferida aos indivíduos e comunidades que,

dado este quadro de incertezas e alta complexidade, devem se mostrar resilientes,

no sentido de serem capazes de lidar com choques externos e de se adaptar a

situações potencialmente desastrosas.

Neste sentido, pode-se entender o enfoque humanitário brasileiro para com o

Haiti como inserido em uma lógica não necessariamente pós-colonial, mas pós-

intervencionismo liberal, uma vez que busca reduzir o teor hierárquico impositivo

de seu engajamento e encarar a população haitiana não como vitimizada e passiva,

mas como um “igual” (irmão) apenas mais vulnerável com o qual se deve

cooperar. Pode-se ainda afirmar que a mesma lógica humanitária pauta as práticas

das autoridades brasileiras com relação aos migrantes haitianos, encarando-os

como pessoas vulneráveis (a desastres ambientais, à pobreza extrema, aos coiotes)

e que precisam não de proteção, mas de terem seu fluxo para o Brasil

administrado, minimizando os riscos que incorrem no caminho, de modo que

possam “buscar oportunidades” 24

no país.

Portanto, a demarcação estabelecida entre a categoria do refugiado e do

“imigrante humanitário” efetivamente atua no sentido de despolitizar sua

mobilidade e motivações – como mencionado anteriormente –, ao mesmo tempo

em que, a partir da lógica da resiliência, diminui a responsabilidade das

autoridades brasileiras no sentido de prover proteção a estes indivíduos uma vez

situados em seu território. Autores como Moreira (2012) argumentam que o Brasil

conta com uma regulation policy para a temática da migração forçada, mas que o

país carece de uma immigration policy; ou seja, o país foca sua atuação na

regulação, na criação de regras e procedimentos para a questão, mas não se engaja

de fato na constituição de uma estrutura capaz de acolher e integrar os migrantes

24

Segundo Declaração de Dilma à imprensa: “Deixei claro, no entanto, que como é da natureza dos

brasileiros, estamos abertos a receber cidadãos haitianos que optem por buscar oportunidades no Brasil".

Disponível em: http://g1.globo.com/mundo/noticia/2012/02/estamos-abertos-receber-cidadaos-haitianos-

diz-dilma-no-haiti.html. Acesso em 24 jan. 2015.

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forçados no país. Porém, para além deste entendimento, pode-se interpretar a

situação dos haitianos a partir das práticas humanitárias contemporâneas e sua

eficácia na área de governo, ao incutir no migrante a agência em resolver sua

situação, apenas cabendo ao Estado (mas também às ONGs, empresas e demais

atores do espaço humanitário) o papel de auxiliar – porém sem se responsabilizar

– no enfrentamento das condições de risco e na construção da resiliência.

Neste ponto, cumpre destacar que não se entende aqui a existência de uma

intencionalidade por parte das autoridades brasileiras na criação dos “imigrantes

humanitários” no que tange os efeitos deste enquadramento legal e discursivo para

sua subjetividade a partir do marco da resiliência e vulnerabilidade. Ferguson

(2006), ao tratar de projetos de desenvolvimento, afirma a importância de se

considerar a lógica por trás do emprego do aparato do “desenvolvimento” e como

esta racionalidade transcende a questão das intenções dos planejadores, uma vez

que está envolto em estruturas desconhecidas e resultados imprevisíveis. Ou seja,

ao se delimitar algo como pertencendo ao campo do desenvolvimento ou, no caso

em tela, ao campo do humanitarismo, não necessariamente se tem controle ou a

intenção de atingir os resultados e subjetificações que se desenvolvem de fato,

mas o discurso destes campos circula, é ressignificado, e assim, produz

subjetividades para além de possíveis intenções iniciais. O mecanismo resultante,

segundo o autor, é uma mistura “of the discursive and the non-discursive, of the

intentional plans and the unacknowledged social world with which they are

engaged” (Id., p. 284).

Assim, cumpre focar não nas possíveis intenções e planos das autoridades

brasileiras ao delimitar os migrantes haitianos como humanitários, mas entender o

que esta boundary practice produz em termos de politizações, despolitizações e

subjetividades, assim como compreender como esta demarcação é negociada e/ou

resistida pelos migrantes em questão. A fim de prosseguir na investigação destes

pontos, as próximas sessões discutirão as experiências dos migrantes no abrigo de

Brasileia no Acre e o posterior envio repentino de grupos destes migrantes para o

estado de São Paulo, atentando para como eles lidam com as demarcações,

fronteiras e limites que se impõem, sobretudo via o tensionamento de seu

enquadramento humanitário.

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4.5. Brasileia: a politização do enquadramento humanitário no cotidiano

Antes de prosseguirmos para uma análise das experiências dos migrantes

haitianos no abrigo em Brasileia, cumpre elucidar que as reflexões aqui

apresentadas sobre o abrigo para migrantes são informadas principalmente por um

trabalho de campo realizado na cidade entre os dias 3 e 14 de fevereiro de 2014. O

enfoque metodológico utilizado foi etnográfico, uma vez que este permite o

engajamento com as capilaridades do social e oferece espaço para as vozes

daqueles situados às margens (Das; Poole, 2004). Entretanto, também é

importante reconhecer que a etnografia não implica em uma correspondência

perfeita entre a realidade observada e a sua representação textual, mas que ela é

permeada por relações de poder assimétricas (notadamente aquela entre a

pesquisadora ou o pesquisador e seus informantes) e que todo trabalho etnográfico

é informado por vieses teóricos e subjetivos (Clifford, 1983). O trabalho de campo

envolveu o acompanhamento diário da rotina do abrigo, com conversas informais

e entrevistas com os migrantes, além de visitas esporádicas a funcionários da

cidade que prestavam serviços aos mesmos, tais como trabalhadores de saúde, da

Polícia Federal, da prefeitura, da agência dos Correios, do Banco do Brasil, dentre

outros.

Brasileia é uma pequena cidade do interior do Acre, com uma população

total e cerca de 20.000 habitantes25

e que faz fronteira com a Bolívia pela cidade

de Cobija. Desde 2010, os migrantes haitianos cruzam a fronteira brasileira pelo

Peru (Iñapari), chegando à cidade de Assis Brasil no Acre. O posto da Polícia

Federal mais próximo a Assis Brasil situa-se em Epitaciolândia, cidade contígua à

Brasileia, onde, por sua vez, diferentes abrigos foram improvisados para receber

os migrantes de 2010 até abril de 2014, quando o último abrigo da cidade foi

fechado e transferido para Rio Branco. Assim, o itinerário dos migrantes ao

cruzarem a fronteira brasileira comumente consiste em: pegar táxis de Assis Brasil

para Brasileia, solicitar refúgio junto á delegacia da Polícia Federal de

Epitaciolândia e alojarem-se no abrigo de Brasileia.

25

Informação disponível em:

http://www.cidades.ibge.gov.br/painel/painel.php?lang=&codmun=120010&search=%7C%7Cinfo

gr%E1ficos:-dados-gerais-do-munic%EDpio. Acesso em 5 jan. 1015.

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Desde 2010, grande parte dos custos incorridos na manutenção de abrigos

para os migrantes foram arcados pelo governo do estado do Acre, sendo que no

início de 2012 e início de 2013, dois períodos críticos de superlotação das

estruturas da cidade, houve repasses e assistência por parte do governo federal

(Seixas, 2014). Inicialmente, os migrantes foram acolhidos no anexo de uma

igreja local, posteriormente, foram realocados para o ginásio de esportes da

cidade, onde dormiam sobre pedaços de papelão. A seguir, no início de 2012, os

migrantes passaram a ser encaminhados para o Hotel Brasileia que também não

foi suficiente para acomodar os números crescentes de migrantes que chegavam à

cidade. Segundo Pimentel e Cotiguiba (2014), o hotel teria capacidade para 80

pessoas, mas chegou a hospedar 1.100, com migrantes dormindo sobre papelões

no quintal do prédio. No final de 2012, o abrigo foi transferido para uma casa

abandonada da cidade com oito cômodos, sem água ou luz, e que igualmente não

se mostrou capaz de comportar o contingente de migrantes. Logo a seguir, os

migrantes foram instalados no último abrigo da cidade, um antigo clube local que

se encontrava desativado e que teria capacidade para cerca de 200 pessoas.

Em todos os casos, os abrigos improvisados para receber os migrantes

haitianos mostram-se precários e insuficientes para alojar os números de

migrantes que aumentaram significativamente a cada ano. Dos cerca de 20 mil

que se estimava haver no Brasil em 2014, cerca de 16 mil teriam passado pelo

abrigo de Brasileia até a segunda quinzena de fevereiro daquele ano. Segundo

Relatório Situacional fornecido pelo governo estadual do Acre (Estado do Acre,

2014), em 2010 apenas 37 migrantes haitianos dirigiram-se à cidade. Nos anos de

2011 e 2012 os números foram de 1.175 e 2.225 migrantes haitianos

respectivamente. O pico de entrada foi o ano de 2013 quando 10.779 haitianos

instalaram-se na pequena cidade. Somente em janeiro e metade de fevereiro de

2014, quando da realização do trabalho de campo, 1.921 haitianos já teriam

chegado à cidade, um montante próximo ao número total dos anos de 2011 e

2012.

Na segunda quinzena de fevereiro de 2014 havia 1.142 migrantes no

abrigo no total, sendo 996 homens e 146 mulheres. Dentre estes migrantes, havia

24 crianças e adolescentes, duas mulheres grávidas e 29 idosos. Além dos

migrantes de nacionalidade haitiana, havia também cerca 100 senegaleses e 10

dominicanos. As condições do abrigo eram extremamente precárias e já haviam

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sido alvo de críticas por parte da ONG Conectas, cuja equipe visitara o abrigo em

agosto do ano anterior26

. A superlotação do abrigo era crônica dada chegada diária

média de 50 migrantes à cidade, ao passo em que a maioria dos migrantes

encontrava dificuldades em seguir viagem para os grandes centros urbanos do

país, onde pretendiam conseguir empregos.

As condições sanitárias do abrigo eram particularmente precárias, com

apenas dez latrinas e oito chuveiros para todos os migrantes, sendo que havia

esgoto correndo continuamente a céu aberto. Homens, mulheres, crianças e

idosos compartilhavam o mesmo espaço, dormindo sobre colchões velhos e

deteriorados que ocupavam toda a área coberta do abrigo. A distribuição das

refeições era marcada por tensão, sendo realizada em duas filas: uma para homens

e outra para mulheres. A fila dos homens se formava cerca de duas horas antes da

distribuição das marmitas e era marcada por brigas entre os migrantes na tentativa

de garantir uma refeição. Dada a recorrência destas brigas, policiais militares

foram designados a montar um posto em frente ao abrigo na hora do almoço.

Quando da distribuição das refeições, os politicais se posicionam ao longo da fila

brandindo cassetes com a intenção declarada de “conter a desordem”. Grande

parte dos migrantes sofria de diarreia após a ingestão da comida, e outras doenças

como dermatite e infecção respiratória eram comuns entre os migrantes alojados

no abrigo.

Os procedimentos burocráticos relacionados à documentação dos

migrantes eram feitos em um trailer estacionado dentro do clube, onde os

funcionários permaneciam a maior parte do tempo. Os funcionários permanentes

do abrigo eram apenas dois: o coordenador do abrigo e um técnico administrativo

responsável pelo controle estatístico dos migrantes. Além destes dois, de dois a

três funcionários de Rio Branco, capital do Acre, se revezavam e passavam uma

semana no abrigo auxiliando os migrantes no preenchimento de formulários. Não

havia quaisquer outros funcionários no abrigo e nenhum daqueles que ali atuavam

26

As observações e avaliações do abrigo feitas pela ONG podem ser encontradas em:

http://www.conectas.org/pt/acoes/politica-externa/noticia/brasil-esconde-emergencia-humanitaria-

no-acre. Acesso em 24 jan. 2015. Após visita ao abrigo, a ONG fez um Apelo Urgente ao relator

especial da ONU sobre os direitos humanos dos migrantes, ao especialista independente para os

direitos humanos no Haiti, enviou documentação sobre o caso para a Organização dos Estados

Americanos (OEA), juntamente com Missão Paz (ONG da Igreja Católica de São Paulo).

Disponível em: http://www.conectas.org/pt/acoes/politica-externa/noticia/veja-as-recomendacoes-

enviadas-ao-brasil-e-orgaos-internacionais-sobre-a-crise. Acesso em 24. Jan 2015.

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dominava o creole ou francês para a comunicação com os migrantes

majoritariamente haitianos ali instalados.

Ao chegarem ao abrigo, muitos migrantes relatavam sentirem-se chocados

e desesperados, afirmando repetidas vezes que se soubesses que a situação

encontrada no Brasil seria aquela não teriam migrado para o país. Dentre as falas

mais frequentes dos migrantes também constavam queixas de que se sentiam

tratados “pior que animais” ou “como cachorros”. Assim, a partir do momento da

chegada à cidade, o objetivo dos migrantes é o de sair o quanto antes e chegar a

um dos grandes centros urbanos do país, onde pudessem encontrar com familiares

e/ou trabalhar, pagar a dívida que assumiram para arcar com os custos da viagem

com os coiotes, e enviar remessas aos familiares que ficaram no país de origem.

Porém, os entraves à saída se mostravam grandes, fazendo com que muitos

ficassem por meses no abrigo.

A maioria dos migrantes chegava ao Acre sem dinheiro restante, dadas as

extorsões e roubos no trajeto até o Brasil. Aqueles poucos que podiam contar com

o envio de dinheiro por parentes encontravam dificuldades em receber a quantia

na agência bancária local que se encontrava constantemente superlotada dada a

demanda extra dos migrantes. A opção mais palpável para a maioria dos

migrantes no abrigo era a de aguardar para que uma empresa – normalmente do

Sul ou Sudeste do país – enviasse ônibus à cidade para contratar mão-de-obra

barata, principalmente para ser empregue em funções fisicamente exaustivas nos

ramos da construção civil ou da indústria de alimentos (notadamente em

frigoríficos). Assim, na maioria das vezes, os representantes das empresas

buscavam por homens jovens, de modo que a minoria de mulheres, crianças e

idosos (que em fevereiro de 2014 compunham 17% dos migrantes no abrigo)

frequentemente tinham de ficar por mais tempo no abrigo, aguardando que algum

parente no Brasil ou no Haiti enviasse auxílio para que pudessem seguir viagem.

Além disso, os critérios de contratação eram frequentemente feitos com

base em uma avaliação visual pelos representantes das empresas (contratadores)

acerca da força física dos migrantes e possíveis sinais de seu costume ao “trabalho

pesado” (a grossura das canelas e da pele das mãos, por exemplo, costumavam ser

características procuradas), o que traz paralelos explícitos como tráfico de

escravos. Outros pesquisadores igualmente observaram este paralelo na dinâmica

de contratação do abrigo. Em relatório elaborado em abril de 2013 a partir de um

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trabalho de campo em Brasileia, Travessini et. al. referem-se à situação dos

migrantes no abrigo a um “de senzala em pleno século XXI”. Andrade (2013)

também destaca esta dinâmica observada no abrigo no início de 2013:

While some [recruiters] did not feel comfortable with the hiring situation, “As if

they were at a slave trade market”, as one of them put it, others laughed

embarrassedly. One of the recruiters, for instance, told us during a dinner that he

was advised (…) on how to look for good workers among Haitians: “You have to

look at the thinness of their ankles” (…) (Id, p. 28).

Neste sentido, e apesar de terem livre trânsito de entrada e saída do abrigo,

pode-se entender que este constitui mais uma fronteira presente na experiência

destes migrantes haitianos, sobretudo para aqueles não considerados como

desejáveis pelas empresas que buscavam trabalhadores migrantes na cidade. Ou

seja, nesta fronteira, por sua vez, também se articulavam as demarcações de

gênero, saúde e idade que influenciam as possibilidades dos migrantes de saírem

do abrigo, uma vez que mulheres, crianças, idosos e doentes são expostos mais

claramente a esta linha. O abrigo delimita temporal e espacialmente a mobilidade

dos migrantes no país, inclusive, de forma mais significativa do que a fronteira

formal entre Brasil e Peru desde a revogação do sistema de cotas.

O estabelecimento desta fronteira no abrigo não se dá por uma decisão

soberana direta, por qualquer tipo de determinação formal, mas pela conjunção de

uma série de fatores, sobretudo pela ausência de auxílio para sua integração no

país, que fica a cargo de empresas privadas, ou seja, pelas próprias contradições

do tratamento humanitário dispensado aos migrantes haitianos no país. Não

obstante o fato de a situação dos migrantes no abrigo ter sido denunciada repetidas

vezes como uma “emergência humanitária”27

, esta condição de precariedade e

invisibilidade apontada e a articulação de mais esta fronteira podem ser entendidas

como fruto da própria lógica humanitária vigente, que não se responsabiliza pela

proteção dos migrantes, mas atribui a eles a agência para se adaptarem à realidade

brasileira28

.

27

A ONG Conectas foi a principal entidade da sociedade civil que buscou divulgar nacional e

internacionalmente a “emergência humanitária” que constatou no abrigo. Disponível em:

http://www.conectas.org/pt/acoes/politica-externa/noticia/brasil-esconde-emergencia-humanitaria-

no-acre. Acesso em 25 jan. 2015. 28

Além disso, os migrantes haitianos, munidos de seus protocolos de solicitação de refúgio, têm o

direito de acessar os serviços públicos no Brasil, porém enfrentavam uma série de entraves em seu

dia a dia na cidade para receberem atendimento em instituições públicas. A população local da

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Diante da precariedade e insalubridade da situação que encontram no

abrigo e do tipo de tratamento humanitário que encontravam, os migrantes

haitianos desenvolviam uma série de estratégias e mecanismos para contestar e

resistir a uma condição que encaravam como humilhante e para pressionar por

melhorias imediatas. Estas estratégias e mecanismos faziam parte da rotina do

abrigo, sendo articuladas individualmente ou por grupos de migrantes. A

recorrência destas levava o coordenador do abrigo a frequentemente afirmar que

os migrantes eram “ingratos” e que não valorizavam os esforços dispensados para

assisti-los.

As estratégias se manifestavam, por exemplo, no fato de muitos migrantes

mentirem com relação a sua ocupação profissional anterior no Haiti, de modo a

tentar maximizar suas chances de conseguir um emprego no Brasil que os

possibilitassem saudar dívidas e enviar remessas a familiares. Além disso, dada a

má qualidade das refeições servidas no abrigo e os problemas intestinais que

repetidamente acarretavam aos migrantes, alguns destes as jogavam fora em uma

atitude de desafio aos funcionários do abrigo e como uma maneira de protestar

contra a qualidade do “auxílio” oferecido. Outro exemplo podia ser observado na

recusa dos migrantes em cooperar com os funcionários públicos presentes no

abrigo. Uma vez que estes servidores não dominavam idiomas além do português,

recorriam a migrantes haitianos que soubessem falar espanhol ou que já tivessem

noções de português para traduzir comunicados aos demais migrantes no abrigo.

Porém, frequentemente os migrantes haitianos se recusavam a contribuir para este

ou outros serviços solicitados pelos funcionários sem que fossem remunerados

pelos mesmos.

cidade vinha sentindo diretamente o impacto da chegada dos migrantes, e a disputa por serviços

gerada pela demanda extra deste grupo vinham sendo respondida através da limitação do

atendimento aos migrantes a uma série de serviços. A unidade de saúde mais próxima ao abrigo,

por exemplo, muito requisitada pelos migrantes que adoecem pelas próprias condições de viagem

e do abrigo, destinou um de seus três médicos para atender aos migrantes. O Banco do Brasil e os

Correios também passaram a impor uma limitação ao acesso de estrangeiros para, alegadamente,

não prejudicar o atendimento à população local e gerar mais ressentimentos. Não se trata aqui da

mesma manifestação da fronteira tal como descrita por Nyers (2013) no capítulo anterior, quando

o autor descreve como a tentativa de acessar serviços em uma cidade pode levar à deportação de

migrantes irregulares que têm sua condição denunciada. O tipo de demarcação em questão atua

não no sentido de excluir (via expulsão do território), mas de hierarquizar, dando prioridade aos

cidadãos locais e limitando o acesso dos migrantes, sendo, portanto, mais próxima à noção de

“inclusão diferencial” desenvolvida por Mezzadra e Nielson (2013).

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Ademais, grupos de migrantes haitianos constantemente cercavam o

coordenador do abrigo (quando este saía do trailer da administração) para

reclamar acerca das condições no abrigo ou da demora na liberação de

documentos e pressionar por melhorias imediatas. Os migrantes também

reivindicavam frequentemente pelo pagamento de passagens de ônibus para que

pudessem se dirigir a cidades do sudeste e sul do país onde pudessem trabalhar.

Por exemplo, na segunda semana de fevereiro de 2014, as carteiras de trabalho

dos migrantes estavam demorando semanas para ficarem prontas, o que gerava

muita ansiedade nos migrantes. Em diferentes ocasiões eles se reuniram em

grupos e pressionaram o coordenador pela emissão dos documentos, ameaçando

organizar um protesto em frente à Polícia Federal caso não tivessem sua demanda

atendida.

Portanto, no que tange a ação política destes migrantes, esta pode ser

vislumbrada em dois sentidos principais até o momento. Em primeiro lugar, há o

fato de estes migrantes imporem sua presença e cruzarem fronteiras soberanas de

forma irregular (tanto as peruanas quanto as brasileiras) e crescente desde 2010,

ao ponto de inviabilizar os planos iniciais de “fechamento” das fronteiras

brasileiras previsto na Resolução Normativa Nº 97 do CNIg. Entretanto, as

demarcações do Estado, como foi discutido, se faziam presentes também no

abrigo em Brasileia, a partir das dificuldades dos migrantes de seguirem viagem

(o abrigo enquanto manifestação da fronteira), e a partir do tratamento que

recebiam no abrigo a partir de sua subjetivação (estabelecimento de limite)

enquanto migrantes humanitários, e não como sujeitos dignos de proteção e de

uma acolhida estruturada. Portanto, pode-se afirmar que estas diferentes boundary

practices atuam no sentido de despolitizar a lógica soberana que pauta as

experiências dos migrantes em Brasileia e sua mobilidade.

Em segundo lugar, pode-se entender que estas posturas “ingratas” dos

migrantes no abrigo em Brasileia desafiavam a maneira como vinham sendo

enquadrados enquanto “imigrantes humanitários”, invisibilizados e virtualmente

desassistidos em sua tarefa de “adaptação” e “resiliência” no Brasil. Na esfera

cotidiana do abrigo, as estratégias e mecanismos de resistência que articulavam

contribuíam para questionar e, assim, politizar a maneira como foram

enquadrados e subjetivados enquanto imigrantes humanitários.

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4.6. Do Acre para São Paulo: tensionamento do enquadramento humanitário em escala nacional

Em abril de 2014, o governo do estado do Acre anunciou que o abrigo para

migrantes da cidade de Brasileia seria fechado e transferido para Rio Branco. Os

futuros migrantes a ingressar pela fronteira acreana passariam, a partir de então, a

se dirigir até a capital do estado para receber acolhimento no Parque de

Exposições da cidade, onde um abrigo definitivo seria providenciado. Já os

migrantes que se encontravam no abrigo de Brasileia quando do fechamento do

mesmo seriam levados a Rio Branco, a seguir, encaminhados para Porto Velho,

capital de Rondônia e, por fim, receberiam passagens de ônibus para irem a outras

cidades do país, principalmente São Paulo.

Estas decisões foram anunciadas em meio à pior crise de superlotação que

o abrigo de Brasileia já passara. Superlotação e precariedade já constituíam as

características definidoras do abrigo improvisado como descrito anteriormente.

Porém, este quadro se agravou fortemente com a cheia do Rio Madeira e o

consequente fechamento da BR-364 no final de fevereiro de 2014, pois, com isso,

o estado do Acre ficou isolado por terra. Com a grande chegada diária de

migrantes à Brasileia e a saída por terra impedida, aproximadamente 2500

migrantes chegaram a ocupar o restrito espaço nas últimas semanas, culminando

em um quadro insustentável. Segundo a ONG Conectas:

(...) nas últimas semanas, mais de 2.500 pessoas chegaram a se amontoar no local

[abrigo de Brasileia], projetado inicialmente para receber 300 albergados. Só no

dia do anúncio [do fechamento do abrigo], mais 108 haitianos chegaram ao local.

De acordo com Damião [coordenador do abrigo], todos os novos imigrantes serão

informados de que o abrigo foi transferido para Rio Branco. A partir de então, o

traslado entre Brasileia e a capital será feito por conta do imigrante, que pode

ainda optar por dar entrada no pedido de documentos na própria fronteira, sem

direito a alimentação, abrigo ou qualquer outro apoio das autoridades locais, de

acordo com Damião. (Conectas, 2014)

Estas medidas anunciadas e tomadas pelo governo do Acre levaram a

migração haitiana para o centro das atenções políticas e midiáticas do país,

sobretudo devido à chegada “inesperada” de cerca de 800 migrantes haitianos à

capital paulista. A cidade de São Paulo, apesar de ser a principal receptora de

migrantes do país, demonstrou não contar com uma estrutura capaz de acolher os

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migrantes recém-chegados. A Missão Paz, braço da Igreja Católica que presta

apoio aos imigrantes e refugiados na cidade, teve de improvisar ajuda a cerca de

400 destes migrantes que chegaram repentinamente29

. A entidade contou com o

apoio de voluntários, muitos dos quais migrantes, como bolivianos e chilenos que

se solidarizaram com a situação30

.

Ao mesmo tempo, uma “crise política” se instalou entre os governos do

Acre e de São Paulo, com este último acusando de irresponsável o envio dos

migrantes sem aviso prévio, ao passo em que o primeiro adjetivava as autoridades

paulistas de “racistas” e higienistas” por não mostrarem-se hospitaleiras aos

migrantes haitianos31

. Para além das disputas interestaduais, o fato é que os

migrantes haitianos deixaram a condição de invisibilidade que vivenciavam no

Acre e a questão “humanitária” de sua vinda passou ao centro a agenda política do

país. É esta mudança no escopo da questão haitiana com a chegada de centenas de

migrantes a São Paulo que leva Pimentel e Cotiguiba (2014, p. 84) a questionar:

“Por que a imigração haitiana, que está em curso desde 2010 para o Brasil, só

ganha contornos nacionais de repercussão agora, no momento em que

desembarcam centenas desse povo no centro do capitalismo brasileiro?”.

A partir de então, tornam-se mais comuns notícias jornalísticas que traçam

perfis e contam as narrativas migratórias de haitianos individualmente, abrindo

espaço, ainda que por vezes pequeno, para que as percepções dos migrantes sobre

sua experiência sejam apresentadas nos textos; o que contrasta com foco anterior

em que os migrantes eram retratados mais como uma massa amorfa que se situava

no Acre32

. Neste momento verificou-se também uma maior visibilidade para a

maneira como os migrantes haitianos eram desassistidos tanto no Acre como em

São Paulo, uma vez que as instituições da sociedade civil e da prefeitura não

29

Como noticiado em: http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2014/04/paroquia-em-sp-vira-

referencia-para-centenas-de-haitianos-vindos-do-acre.html Acesso em 26 jan. 2015. 30

Notícia relatando este episódio pode ser encontrada me: http://g1.globo.com/sao-

paulo/noticia/2014/04/voluntarios-estrangeiros-preparam-almocos-para-haitianos-em-sp.html

Acesso em 27 jan. 2015. 31

Exemplo de notícia retratando o episódio pode sem encontrada em:

http://g1.globo.com/ac/acre/noticia/2014/05/tiao-viana-rejeita-reuniao-com-alckmin-para-tratar-

sobre-haitianos.html. 32

Exemplos de matérias deste novo tipo podem ser encontrados em: http://g1.globo.com/sao-

paulo/noticia/2014/04/propostas-de-emprego-mobilizam-haitianos-em-patio-de-igreja-em-sp.html

; http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2014/05/01/a-espera-de-emprego-haitianos-

sonham-em-trazer-familias-para-o-brasil.htm ;

http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2014/08/1504777-a-realidade-aqui-e-outra-diz-

trabalhador-haitiano-resgatado-em-sp.shtml .Acesso em 1 fev. 2015.

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contavam com estrutura suficiente para acolher o contingente de migrantes, e a

disputa política entre os dois estados (Acre e São Paulo) evidenciou esta situação.

Uma questão particular que veio à tona neste período foi o fato de os migrantes

haitianos serem frequentemente procurados por empregadores para a execução de

trabalhos análogos à escravidão. A seguinte declaração do Padre Paolo Parise,

diretor do Centro de Estudos Migratórios da Missão Paz e que se engajou

diretamente na tentativa de acolher os migrantes recém-chegados, foi bastante

simbólica da nova perspectiva que se abria para o entendimento da situação dos

migrantes haitianos no país: “Ligam [empresários] dizendo que têm uma fazenda

e podem pagar 300 reais, sem carteira de trabalho. Eu respondo que a escravidão

acabou”33

.

Pode-se dizer que este episódio da chegada de centenas de migrantes

haitianos a São Paulo marcou um tensionamento do enquadramento humanitário

que os migrantes haitianos vinham recebendo no país, no momento em que suas

reivindicações e mobilidade passaram a figurar nas discussões políticas brasileiras

em âmbito nacional. Além da mudança no enfoque midiático dado à questão,

organizações da sociedade civil – com destaque para a Missão Paz, a mais

diretamente envolvida na acolhida dos migrantes em São Paulo – passaram a

reivindicar mudanças na política migratória em nome dos migrantes haitianos,

apontando para a insuficiência de se dar um visto por razões humanitárias aos

migrantes sem que qualquer tipo de assistência significativa fosse fornecido para

sua acolhida e integração no país34

. Ou seja, a maneira como os imigrantes

haitianos vinham sendo enquadrados enquanto humanitários foi problematizada

em termos das contradições que gerava: migrantes documentados e retratados

como um caso “especial” no país dada sua alegada vulnerabilidade, mas que

tinham de adaptar-se à situação brasileira por conta própria e mostrarem-se

resilientes. Veio à tona, assim, a problemática presente no fato de estes migrantes

33

Notícias que reproduziram a fala do padre encontram-se disponíveis em:

http://www.diariodocentrodomundo.com.br/somos-tratados-como-animais-diz-haitiano-em-sp/ ;

http://www.dw.de/no-centro-de-disputa-pol%C3%ADtica-haitianos-vivem-incerteza-em-

s%C3%A3o-paulo/a-17603711. Acesso em 1 fev. 2015.

34 Padre Paolo Parise, direitor do Centro de Estudos Migratórios da Missão Paz, expressa esta

crítica de forma explícita em entrevistas à imprensa como a seguinte:

https://www.youtube.com/watch?v=VLWjtvCXPjw. As demandas por uma política de acolhida

efetiva aos migrantes transformou-se em uma petição online, que pode ser acessada em:

http://campaigns.walkfree.org/petitions/diga-nao-ao-abandono-dos-haitianos-em-sao-paulo-e-sim-

por-uma-gestao-migratoria# . Acesso em 1 fev. 2015.

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serem definidos retorica e legalmente como humanitários, mas encontrarem-se

efetivamente desassistidos e passíveis de exploração pelo empresariado nacional,

em busca de taxas de exploração do trabalho mais altas.

A partir de sua mobilidade e cruzamento crescente das fronteiras

brasileiras, os migrantes haitianos, portanto, geraram mais uma vez uma

politização da demarcação humanitária que recebiam, evidenciam as contradições

politicas desta classificação, porém desta vez observada em escala nacional. Sua

chegada persistente ao Acre aliada ao isolamento do estado por terra levaram-nos

da invisibilidade e marginalidade em termos nacionais para a centralidade nos

debates públicos no país sobre política migratória e acolhida humanitária,

problematizando a postura supostamente solidária que estes migrantes estariam

recebendo no país.

4.7. Considerações Finais

A breve análise da migração haitiana para o Brasil aqui apresentada

buscou salientar as múltiplas formas de demarcação traçadas e resistidas na

experiência migratória deste grupo. Particularmente, buscou-se destacar as

implicações do fato dos migrantes haitianos terem sido enquadrados legal e

discursivamente como “imigrantes humanitários” no país, questionando tanto as

implicações desta linha traçada entre a categoria do refúgio e o campo do

humanitarismo, como as diferentes maneiras pelas quais os migrantes, seja por sua

mobilidade, seja pelas suas práticas cotidianas no abrigo em Brasileia, negociam,

resistem e tensionam o enquadramento recebido e as fronteiras que se apresentam.

O caso da migração haitiana, assim, permitiu uma exploração no campo

empírico da complexidade do fenômeno do refúgio no mundo contemporâneo, no

qual as demarcações, fronteiras e limites do Estado soberano e do sistema de

Estados vêm se rearticulando para além dos marcadores territoriais e de

subjetividade convencionais. De um lado, esta rearticulação pode ser entendida a

partir da atual complexificação da categoria ou figura do refugiado, entendida

convencionalmente como inserida no campo do humanitarismo a partir da lógica

estatal. A atual proliferação de categorias relacionadas ao refúgio (Zetter, 2007) e

a percepção da contingência desta figura (Squire; Scheel, 2014) estariam, assim,

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relacionadas com reconfigurações soberanas e se fazem presentes na experiência

dos migrantes haitianos no Brasil, sobretudo ao serem negados o status de

refugiados, mas receberem “vistos humanitários”.

Argumentou-se que a categoria do imigrante humanitário produz, ainda

que não necessariamente de maneira intencional, uma despolitização da

mobilidade e das reivindicações dos migrantes haitianos. Considerando o

paradigma da resiliência dominantes no campo humanitário desde os anos 2000,

esta forma de classificação migratória implica em uma representação dos

migrantes enquanto sujeitos vulneráveis (no caso, dadas as consequências do

terremoto de 2010 e o quadro de “pobreza extrema” no Haiti, posteriormente

somadas às ações de coiotes) e que devem se engajar em aprimorar sua resiliência

para lidarem com as adversidades. Neste enquadramento, aos agente do espaço

humanitário (Estado, ONGs, empresas, etc.) não reside qualquer tipo de

responsabilidade pela proteção destes migrantes, apenas desempenhando o papel

de auxiliar na situação transitória e na gerência de possíveis riscos.

O trabalho explorou como os migrantes haitianos negociam e tensionam

este enquadramento humanitário, politizando-o principalmente a partir de suas

práticas não-cooperativas e reivindicatórias constantes no abrigo em Brasileia.

Ademais, a chegada repentina destes migrantes a São Paulo também constituiu um

momento importante na problematização do seu enquadramento humanitário, uma

vez que expôs as implicações do mesmo em escala nacional e levou à emergência

de reivindicações em seu nome. A linha traçada ao redor destes migrantes,

demarcando-os como “imigrantes humanitários”, portanto, mostrou-se como uma

instância dinâmica de engajamentos e disputas políticas.

Por fim, foi explorado como as fronteiras se apresentam e são contornadas

por estes migrantes para além da fronteira formal brasileira demarcada nos mapas.

Foi apontado como instâncias distintas, tais como a embaixada brasileira em Porto

Príncipe, o Peru e o próprio abrigo em Brasileia podem constituir-se em fronteiras

ainda mais significativas em sua tentativa de conter espaço-temporalmente a

mobilidade dos haitianos do que a fronteira formal do país.

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5 Conclusão

Na conclusão de seu livro “Rethinking Refugees Beyond States of

Emergency”, Peter Nyers (2006, p. 130) aponta para a necessidade de se explorar

“the ways in which the citizen-human dynamics of sovereignty is being recast by

global-local practices”. O autor entende esta reformulação como sendo articulada

por refugiados que se engajam em movimentos políticos de modo a negar a

subjetividade passiva, vitimizada e apolítica que lhes é imposta, com isso

desestabilizando o limite entre o cidadão e o humano.

Pode-se dizer que o presente trabalho procurou empreender esta

exploração sugerida por Nyers, porém por um caminho distinto. Buscou-se

mostrar como práticas locais-globais vêm provocando uma rearticulação da

soberania estatal e suas demarcações, o que necessariamente influencia e altera a

dinâmica cidadão-humano na qual se insere o refugiado. Argumentou-se que os

fluxos, mobilidades e acelerações do mundo contemporâneo desafiam a

compreensão da vida política como contida em jurisdições territorializadas

habitadas por cidadãos, expondo o caráter contingente da soberania estatal. Ou

seja, estes processos impõem uma rearticulação das práticas soberanas, que vão

passar a traçar linhas de discriminação para além daquelas previstas pelo ideal

regulador da política moderna, isto é, para além das fronteiras oficiais dos Estados

demarcadas em mapas políticos e para além da separação entre cidadãos e não

cidadãos ou entre a cidadania e a humanidade.

Enquanto que no discurso político moderno as linhas demarcando

sociedade, economia, progresso, subjetividade, etc. concentravam-se em torno das

demarcações territoriais (as fronteiras) e de subjetividade (o campo da cidadania)

do Estado, estas linhas estariam agora se desagregando destes marcadores e se

articulando de novas formas. Seguindo Walker (2010), estas demarcações devem

ser acompanhadas de perto se quisermos entender e reimaginar a vida política

contemporânea, pois constituem instâncias de engajamentos políticos importantes,

onde politizações e despolitizações são operadas.

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Levando estas reflexões em consideração, a presente dissertação buscou

desenvolver a hipótese de que as transformações pelas quais passam a soberania

estatal e suas demarcações impactam e complexificam a categoria ou figura do

refugiado. Para além de reformular a dinâmica cidadão-humano, cabe agora a

estes migrantes negociar e resistir uma série de outras linhas de discriminação. A

categoria ou figura do refugiado mostrou-se contingente, não sendo mais contida

atualmente em um campo humanitário oposto à subjetividade política da

cidadania. A categoria legal vem se fragmentando em uma série de outros status

migratórios (Zetter, 2007), ao mesmo tempo em que a “figura” do refugiado como

uma vítima passiva se mostrou uma “figura historicamente contingente” (Squire;

Scheel, 2014).

Assim, reconhecendo a importância de estudos que chamam atenção para a

agência política de refugiados e migrantes abjetos em sua capacidade de “ir além

do quadro territorial da comunidade política” (Squire, 2009, p. 146), o trabalho

procurou dar um passo atrás e problematizar o próprio quadro territorial da

comunidade política, abrindo espaço para a investigação da agência política destes

migrantes na contestação e resistência a uma miríade de demarcações que se

apresentam em suas experiências.

A fim de propor esta linha de argumentação, o trabalho analisou, no

segundo capítulo, a literatura crítica sobre refúgio, focando-se na relação que esta

traça entre o refugiado e as demarcações da ordem internacional. Mostrou-se

como este migrante é ontologicamente atrelado à soberania estatal, ao não

pertencer e ao desafiar esta forma de comunidade política, expondo seu caráter

arbitrário, excludente e particularista. Também foi discutido como a categoria ou

figura do refugiado é informada pela lógica soberana que os situa em uma

exclusão inclusiva vis-à-vis a comunidade política territorializada. O discurso

predominante sobre os refugiados atuaria no sentido de domar o desafio que estes

migrantes impõem à sustentação da ordem internacional, ao retratá-los como

carecendo de tudo que se assume como presente nos cidadãos (agência, voz

política, autonomia), o que contribui para a reprodução da cidadania enquanto a

subjetividade política autêntica e o Estado soberano como o lócus político por

excelência.

A seguir, foram apresentadas, no terceiro capítulo, reflexões teóricas

acerca das rearticulações da soberania na política contemporânea. Seguindo o

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raciocínio de Walker (2010), destacou-se como a soberania estatal e suas

demarcações nem se tornaram irrelevantes nem se mantiveram intocadas pela

dinâmica de fluxos e mobilidades globais, mas rearticularam-se em novas linhas

para além das fronteiras dos Estados e da divisão entre cidadãos e não cidadãos.

Procurou-se argumentar que, uma vez que o refugiado é resultado da ordem

internacional e suas demarcações e tem sua subjetividade informada pelas

mesmas, mudanças nesta ordem igualmente o impactam. Assim, a categoria do

refugiado perde seu caráter necessariamente humanitário e oposto à subjetividade

política do cidadão e se torna passível de uma série de outras formas de

discriminação que esvaziam este rótulo migratório de pressupostos fixos com

relação à subjetividade política das pessoas assim categorizadas. Uma série de

outras demarcações (como de gênero, classe social, raça, nacionalidade,

sexualidade, religião, saúde, etc.) pode ser entendida como desempenhando um

papel crucial na conformação do que constituem as várias "figuras do refugiado"

observadas na atualidade.

Estas reflexões foram, por fim, no quarto capítulo, aplicadas à análise da

migração haitiana para o Brasil, um caso particularmente relevante no contexto

contemporâneo da política migratória brasileira e teoricamente intrigante sob a

perspectiva dos estudos sobre refúgio. O caso da migração haitiana possibilitou

uma análise empírica da complexidade do fenômeno do refúgio no mundo

contemporâneo, no qual as demarcações, fronteiras e limites do Estado soberano e

do sistema de Estados vêm se rearticulando para além dos marcadores territoriais

e de subjetividade convencionais. Ao serem negados o status de refugiado no país,

mas serem concedidos “vistos humanitários”, os migrantes haitianos constituem

um caso que reflete uma separação do refúgio do campo do humanitarismo,

demarcação esta que tem efeitos de despolitização, como foi argumentado. Ao

mesmo tempo, a mobilidade, as reivindicações e as práticas cotidianas destes

migrantes desafiam o tratamento “humanitário” recebido, politizando a

classificação feita e expondo as contradições do enquadramento humanitário sob o

paradigma da resiliência. Além disso, foi discutido como, em sua experiência

migratória, estes migrantes enfrentam e contornam uma série de fronteiras para

além daquelas demarcadas nos mapas.

Neste sentido, o trabalho procurou contribuir para os estudos de refúgio

nas Relações Internacionais e para a análise da migração haitiana para o Brasil.

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Do ponto de vista epistemológico, espera-se que o trabalho possa abrir novas

lentes analíticas para se interpretar a questão do refúgio e da migração de maneira

mais ampla, ao atentar para as diferentes demarcações articuladas e resistidas na

experiência migratória. No contexto da academia brasileira, esta dissertação

intencionou contribuir ao trazer um novo olhar sobre estudos sobre refúgio no

país; estudos estes que ainda estão se desenvolvendo, mas prometem ganhar cada

vez mais destaque. Com o país emergindo como um receptor de refugiados e

migrantes do Sul Global faz-se necessária a construção de um arcabouço crítico

capaz de analisar as migrações em curso para além dos limites do quadro

territorialista do Estado soberano e da lógica imediatista de solução de problemas

e formulação de políticas públicas.

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