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DIALOGUS, Ribeirão Preto, v.5, n.1, 2009. 1 CENTRO UNIVERSITÁRIO “BARÃO DE MAUÁ” Departamento de História e Geografia DIALOGUS Revista das Graduações em Licenciatura em História e Geografia ISSN 1808-4656 DIALOGUS Ribeirão Preto v.5, n.1 p.1-367 2009

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DIALOGUS, Ribeirão Preto, v.5, n.1, 2009. 1

CENTRO UNIVERSITÁRIO “BARÃO DE MAUÁ”Departamento de História e Geografia

DIALOGUSRevista das Graduações em Licenciatura em

História e Geografia

ISSN 1808-4656DIALOGUS Ribeirão Preto v.5, n.1 p.1-367 2009

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CENTRO UNIVERSITÁRIO “BARÃO DE MAUÁ”Chanceler

Prof. Nicolau D. Spinelli

ReitorProf. João Alberto de Andrade Velloso

Vice-reitorSr. Carlos Cesar Palma Spinelli

Pró-Reitoria de Acompanhamento e Registro AcadêmicoProfa. Dra. Dulce Maria Pamplona Guimarães

Pró - Reitoria de Pós - Graduação, Extensão e Práticas InvestigativasProfa. Dra Joyce Maria W. Gabrielli

Pró- Reitoria AcadêmicaDr. Valter de Paula

Pró-Reitoria de Ensino Profa. Ms. Maria Celia Pressinatto

Pró - Reitoria AdministrativaSr. Paulo Sérgio C. Zucoloto

Diretores de EnsinoProf. Ms Marcelo Zini e Prof. Dr. Ricardo Miranda Lessa

Diretor AdministrativoSr. Antônio Augusto Dinamarco

Comissão PedagógicaProfa. Ms. Dulce Aparecida Trindade do Val e Profa. Sara Maria Campos Soriani

Coordenadora das Graduações em Geografia e HistóriaProfa. Ms. Lílian Rodrigues de Oliveira Rosa

Comissão EditorialProf. Ms. Humberto Perinelli Neto, Prof. Dr. Paulo Eduardo Vasconcelos de Paula Lopes,

Profª. Ms. Lílian Rodrigues de Oliveira Rosa, Prof.Ms. Gabriel Vendruscolo de Freitas

Conselho Editorial

Publicação Anual/PublicationSolicita-se permuta/Exchange desired

DIALOGUSRua Ramos de Azevedo, n. 423, Jardim Paulista

CEP: 14.090-180 – Ribeirão Preto / SP

DIALOGUS (Departamento de História e Geografia – Centro Universitário “Barão de Mauá”) Ribeirão Preto, SP – Brasil, 2009.2009, 5 – 1ISSN 1808-4656

Capa: “Estação Barracão” - Ribeirão Preto - SP - 2009. Arquivo Pessoal de Michelle Cartolano de Castro Ribeiro.

Andrea Lastória Coelho (USP/Ribeirão Preto)Antônio Carlos Lopes Petean (CEUBM) Antonio Aparecido de Souza (CEUBM) Beatriz Ribeiro Soares (UFU)Cenira Maria Lupinacci Cunha (PUC/MG)Charlei Aparecido da Silva (UFGD/Dourados)Cicero Barbosa de Freitas (CEUBM)Dulce Maria P. Guimarães (UNESP/Franca)Edvaldo Cesar Moretti (UFGD/Dourados) Fábio Augusto Pacano (CEUBM)Fábio Kazuo Ocada (CEUBM/UNESP/Araraquara) Francisco Sergio B. Ladeira (Unicamp) Ivan Aparecido Manoel (UNESP/Franca) Jorge Luis Silva Brito (UFU)

José Luís V. Almeida (UNESP/S.J.Rio Preto)Lélio Luiz de Oliveira (UNESP/Franca)Marcos Antônio Silvestre Gomes (UFA/Arapiraca) Maria Lúcia Lamounier (USP/Ribeirao Preto)Nainora Maria Barbosa de Freitas (CEUBM)Robson Mendonça Pereira (UEG/Anápolis)Ronildo Alves dos Santos (USP/Ribeirao Preto)Sedoval Nardoque (UFGD)Silvio Reinod Costa (CEUBM)Silvia Aparecida de Sousa Fernandes (CEUBM/CUML)Taciana Mirna Sandrano (UFMT/Cuiabá)Vera Lúcia Salazar Pessoa (UFU)

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Apresentação

Apresentar mais um número da revista DIALOGUS é sempre motivo de satisfação e orgulho para o Centro Universitário Barão de Mauá. Não só porque continua revelando o trabalho primoroso da coordenação e dos docentes dos cursos de História e Geografia, capazes de levar a cabo com eficiência e dedicação esta empreitada como também por fazer circular novamente um periódico de relevância social e científica.

As entrevistas que abrem a publicação contemplam autores con-temporâneos consagrados da Geografia e da História.

Os artigos publicados carregam em si temáticas diversas e de interesse indiscutível para todos nós educadores das Ciências Humanas e Sociais.

O dossiê de religião e religiosidade discorre sobre questões do período colonial e da atualidade. A educação é discutida nas dimensões da imprensa e da família. Questões da epistemologia e da historiografia são apresentadas por intermédio de dois estudiosos F. A. Von Hayek e Júlia Lopes de Almeida, em artigos separados. Estudos geográficos e históricos, regionais e locais se fazem presentes nas abordagens do clima, propriedade da terra, espaços públicos / espaço urbano, café e indústria, o caipira e o rural.

Um ensaio sobre literatura e três resenhas (de Antonio Carlos Lopes Petean, sobre “O racismo explicado aos meus filhos” de Nei Lopes; de Douglas Macedo sobre “O Atlas da mudança climática: o mapeamento completo do maior desafio do planeta” de Kistin Down e Thomas Downing e de Luis Guilherme Maturano e Vera Lúcia Santos Abrão sobre “Para onde vai o pensamento geográfico? por uma epistemologia crítica de Ruy Moreira)” encerram esta publicação que esperamos não só trazer um repertório instigante de trabalhos já concluídos ou em andamento, como também estimular a reflexão, a curiosidade e a necessidade de ampliar conhecimentos.

Reitoria do Centro Universitário Barão de Mauá

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Apresentação do quinto volume

Com enorme satisfação apresentamos mais um número da re-vista DIALOUS, o quinto, buscando manter a tradição de apresentar uma gama de trabalhos que versam nas mais variadas temáticas e concepções teorico-metodológicas.

A revista foi assumindo, de forma gradativa, o caráter em que se encontra hodiernamente, sempre apresentando como traço definidor o interesse interdisciplinar e a preocupação com os problemas sociais. Nesse sentido, no cumprimento de sua vocação, a DIALOGUS continua a acolher artigos, resenhas e ensaios que delineiem as divisões acadêmicas, científicas e humanísticas.

Este periódico opta pelo desenvolvimento de cunho social ético, exigindo assim um exame idôneo da realidade que se deseja transformar. Daí o cuidado na construção dos dossiês, visando sempre uma temática relevante, utilizando critérios objetivos na escolha dos mesmos.

Deixamos consignado um agradecimento aos professores José Willian Vesentini e Pedro Paulo Funari pelas entrevistas concedidas sobre temáticas polêmicas da sociedade e sua cultura neste começo de século.

A DIALOGUS se prepara para uma reformulação necessária à adequação aos novos critérios de qualidade estabelecida pela Capes, uma vez que sempre notabilizamos pela busca incessante de aprimoramento no intuito de alcançar, para este periódico, a mais alta qualidade.

Comissão Editorial

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SUMÁRIO/CONTENTS

Entrevista/Interview

Geografia, política e educação: Diálogos contemporâneos com José Willian VesentiniGeography , policy & education : dialogs contemporary with Joseph Willian Vesentini

Paulo Eduardo Vasconcelos de Paula LOPES p.15Andreza França PIRONI

Um percurso, uma história: entrevista com o Prof. Dr. Pedro Paulo FunariA course , a history : interview with the Prof. Dr. Peter Paul Funari

Suzana Barretto RIBEIRO p.35Ana Carla VANNUCCHI

Dossiê “Religião e Religiosidade”

SACRIFICIUM LAUDIS: breve análise do rito de São Pio V e do Novo Ordo Missæ de Paulo VI (1969-2007)Sacrificium Laudis: An analysis of the Saint Pius V Rite and the New Ordo Missæ of Paul VI (1969-2007)

Juliano Alves DIAS p.57

Os fundamentos religiosos da pequena propriedade no pensamento católico: uma perspectiva históricaThe fundamental religious from small property into the Catholic thought: A historical perspective

Sérgio Campos GONçALVES p.81

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Música protestante em Ribeirão Preto: a experiência presbiteriana (1977-1989)Music protestant in Ribeirao Preto: the presbyterian experience

Sérgio Paulo de Andrade PEREIRA p.95

Pestes e penúrias nos relatos jesuíticos do século XVIPestilences in 16th century Jesuit reports

Felipe Ziotti NARITA p.119

Artigos/Articles

Educação/Education

Inserção social pela educação: Panorama sócio-histórico da imprensa negra paulistaSocial insertion for the education: Partner-historical panorama of the black press of São Paulo

Sabrina Rodrigues Garcia BALSALOBRE p.133

A relação família-escola na sociedade contemporânea: Considerações teóricasThe Family-School Relationship in Contemporaneous Society: Theoretical Considerations

Taciana Mirna SAMBRANO p. 153Paulo Eduardo Vasconcelos de Paula LOPES

Epistemologia/Epistemology

Sobre “o caminho da servidão”, de Friedrich August Von Hayek: uma filosofia da história e da liberdade no pensamento liberal neoclássicoOn “o caminho da servidão”, by Friedrich August Von Hayek: a philosophy of history and freedom of thought in the liberal neoclassical

Caio Graco Valle COBÉRIO p.175

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Julia Lopes de Almeida: acaso ou descaso da historiografia?Julia Lopes de Almeida: fortune or carelessness from historiografia

Deivid Aparecido COSTRUBA p.197

Geografia/Geography

Proposta de elaboração do gráfico de eventos climáticosProposal of preparation of the graph of climatic events

André Geraldo BEREZUK p.207João Lima SANT´ANNA NETO

Desmandos e disputas no extremo noroeste paulista: Revisão dos episódios relevantes na luta pela terraMalpractice and disputes in the far (extreme) northwest of Saint Paul: review of relevant episodes in the struggle (fight) for land

Paulo Henrique de SOUZA p.225Marta Maria Pereira de SOUZA

Ribeirão Preto-SP: A dinâmica dos espaços públicos na produção do espaço urbanoRibeirão Preto-SP: the public spaces in the urban space production

Marcos Antônio Silvestre GOMES p.255

História/History

O rural e a nação na repúblicaRural and Nation In the Brazilian Republic

Marcus DEZEMONE p.277

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O universo caipira: Permanências e pluralidades na região de Ribeirão Preto/SP (1930/1970)The universe caipira: pluralidades stays in the region of Ribeirão Preto / SP (1930 / 1970)

Rodrigo de Andrade CALSANI p.299Tiago Silva GIORGIANNI

Café e indústria em Ribeirão Preto: O caso da electro-metallúrgica brasileira S.A. (1921 – 1931)Coffee and industry in Ribeirão Preto e indústria em Ribeirão Preto: the case of “Electro-Metallúrgica Brasileira S.A.” (1921 – 1931)

Paulo Henrique Vaz LARA p.319Lilian Rodrigues de Oliveira ROSA

Ensaio/Analysis

FILHO, Domício Proença. Pós-modernismo e literatura. São Paulo: Ática, 1995.

Debora Luiza MESQUITA p.339

Resenha/Review

LOPES, Nei. O Racismo Explicado aos meus Filhos. São Paulo: Editora Agir, 2007.

Antonio Carlos Lopes PETEAN p.345

DOW, Kirstin; DOWNING, Thomas. O Atlas da mudança climática: o mapeamento completo do maior desafio do planeta. São Paulo: Publifolha, 2007.Douglas MACEDO p.349

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MOREIRA, Ruy. Para onde vai o pensamento geográfico? : por uma epistemologia crítica. 1ª ed., São Paulo: contexto, 2008.

Luis Guilherme MATURANO p.353Vera Lúcia Santos ABRÃO

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ENTREVISTA / INTERVIEW

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GEOGRAFIA, POLÍTICA E EDUCAÇÃO: DIÁLOGOS CONTEMPORÂNEOS COM JOSÉ WILLIAN

VESENTINI.

Paulo Eduardo Vasconcelos de Paula LOPES1*

Andreza França PIRONI2**

Contextualizar o espaço no seu sentido mais amplo, abarcando seus aspectos político, econômico e social, hodiernamente, torna-se uma tarefa extremamente complexa, uma vez que, ancorados no processo de globalização e na efemeridade social, concepções são construídas, destruídas e reconstruídas em uma velocidade nunca presenciada antes.

Com efeito, para discutir este momento convidamos o professor José Willian Vesentini a compartilhar suas visões acerca da Ciência Geográfica, política e dos processos educacionais atuais.

José William Vesentini é Livre Docente em Geografia Política e Professor de Pesquisador no Departamento de Geografia da FFLCH da Universidade de São Paulo. É autor de vários livros didáticos (todos editados pela Ática e que representam uma renovação neste setor) e acadêmicos (publicados por várias editoras), entre os quais “A Capital da Geopolítica” (Ática, 1987), “Novas Geopolíticas” (Contexto, 2000), “Nova Ordem”, “Imperialismo e Geopolítica Global” (Contexto, 2003), “O ensino da Geografia no século XXI” (coletânea de textos de vários autores, editora Contexto, 2003).

* Geógrafo, Especialista em Política e Estratégia, Doutor em Educação Escolar pela UNESP, campus de Araraquara. Professor Titular do Centro Universitário Barão de Mauá. Pesquisador do GPESPE (Grupo de Pesquisa e Estudo em Estado, Sociedade, Política e Educação – IE/UFMT).**Graduanda em Geografia pelo Centro Universitário Barão de Mauá.

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DIALOGUS: Estamos diante de um mal-estar em relação ao (plano) pensamento em geral, mais especificamente, daquele dotado da razão iluminista enquanto base de fundamentação da dinâmica do mundo contemporâneo. Tal crítica é comumente denominada de pós-modernidade. Desse modo, qual a sua visão a respeito desse contexto?

Vesentini: Confesso que não vejo a situação cultural hodierna como mal-estar. A idéia de um “mal-estar da civilização” [qual? como se só existisse uma!], foi uma temática muito freqüente no início do século passado; ela contribuiu para o clima de pessimismo que possibilitou o advento dos totalitarismos. Tampouco vejo o final da razão iluminista, que a meu ver prossegue mesmo tendo sido reformulada em pelo menos dois aspectos. Primeiro, pela enorme presença de outras racionalidades, que ganharam espaço – ou deixaram de se retrair – no mundo atual: a religiosidade e no extremo os fundamentalismos, os misticismos (hipertrofiados pelo cinema e pela mídia) e os dogmatismos de vários matizes. Elas sempre existiram. Mas ganharam uma maior aceitação com a crise do marxismo e do socialismo real, com o avançar da globalização e com o não equacionamento de velhos problemas – tais como a situação do povo palestino, as desigualdades internacionais e a miséria, que apesar de ter diminuído na escala mundial em termos absolutos e relativos nas últimas décadas continua sendo um tema estratégico exatamente pela globalização e formação embrionária de uma sociedade mundial –, fatos que engendraram um vazio de ideologias e um clima de pessimismo. Segundo, pela mudança de telos, de objetivos. O racionalismo atual não está mais ligado ao mito de um progresso infinito, ao menosprezo pela natureza. Tampouco a um ideal único para a humanidade – seja a sociedade positiva, seja o socialismo mundial. Existe agora a incorporação da questão dos Outros, de outras racionalidades, outros ideais quanto ao futuro. Ipso facto, não entendo a pós-modernidade como superação da racionalidade iluminista e sim como certa continuidade. Não uma continuidade linear, evidentemente, mas talvez a única possível após a descoberta da biosfera com os seus limites tangíveis, após a falência da ideologia do progresso,

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após os horrores dos totalitarismos (nazista e stalinista) no século XX. Enfim, após a derrocada daquilo que Hannah Arendt denominou “substituição da política pela história”, operada tanto por Hegel como por Marx, ou seja, a crença [o uso deste termo aqui é proposital] numa lógica da história, numa teleologia consubstanciada seja pela Razão seja pelo desenvolvimento das forças produtivas. Encaro o pensamento pós-moderno como pluralista e por esse motivo democrático, ao contrário do iluminismo clássico, pelo menos em algumas de suas vertentes (as mais populares), que era unívoco e acreditava numa progressiva “iluminação” das trevas (religião, ideologias, mitos e até o senso comum) pela ciência moderna. Era cientificista enfim, algo que o pensamento pós-moderno não é. Mas isso não significa que a ciência tornou-se secundária e sim que se deixou de lado aquele mito do “progresso” – ou qualquer tipo de evolução linear – reproduzida pelo positivismo e também pelo marxismo, a crença numa cientifização da sociedade e da cultura. Assim sendo, não compartilho aquela desconfiança – até mesmo denúncia – da razão iluminista nos moldes da Escola de Frankfurt [embora os seus herdeiros nos dias de hoje, como Habermas, sejam intransigentes defensores da racionalidade moderna e da democracia], isto é, daqueles autores que vivenciaram de perto o totalitarismo e a Segunda Guerra Mundial (Adorno, Horkheimer, Marcuse). Penso que o ideal kantiano de uma racionalidade que conduza os indivíduos e a humanidade à autonomia – a idéia de crítica como realização do Aufklärung, como superação com subsunção e ao mesmo tempo engajamento num projeto de libertação – continua atual. Nesse sentido, faço minhas as seguintes palavras do escritor Francis Wheen:

“A nova batalha será entre o melhor do legado do Iluminismo (racionalismo, empirismo científico, separação da Igreja e do Estado) por um lado e, do outro, várias formas de obscurantismo e relativismo destituído de valores, freqüentemente mascarado como ‘antiimperialismo’ ou ‘antiuniversalismo’ - para dar um verniz atraente radical a atitudes profundamente reacionárias”.

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DIALOGUS: Nessa linha, acerca dos problemas do mundo contemporâneo, a crítica pós-moderna também emergiu a concepção de um “novo paradigma”, uma nova forma de observar a realidade. Desse modo, em sua opinião, isso afetou a Geografia no que tange aos conceitos de lugar, região e organização espacial?

Vesentini: Não sei se o pensamento pós-moderno tem ou pretende constituir um “novo paradigma”. Creio que isso é mais uma idéia meio jornalística ou de propaganda científica, engendrada no rastro da história da ciência pensada por Thomas Khun com os seus juízos de “ciência normal” e rupturas revolucionárias que dão origem a um novo paradigma. Determinados autores – como Fritjof Capra, por exemplo – que reproduzem essa idéia de um “novo paradigma” na verdade nem são de fato pós-modernos, são mais jornalistas científicos, pessoas preocupadas com a divulgação de uma visão holística da natureza, do sistema planetário. São importantes sim, com trabalhos relevantes na área da difusão da ciência – e da necessidade de preservar o meio ambiente – para o grande público, mas dificilmente poderíamos rotulá-los de pós-modernos. A pós-modernidade na cultura, na filosofia e nas ciências humanas [pois só aqui ela tem relevância; isso não existe nas ciências naturais] é antes de tudo pluralista. Admite múltiplas verdades – embora, diferentemente do relativismo puro e simples, essas verdades podem ser confrontadas, podem ser complementares ou opostas, podem ser falseadas ou confirmadas provisoriamente pelo confronto com a realidade.

No que toca à questão do lugar, na geografia, existe mesmo um quase predomínio da fenomenologia, do lugar enquanto espaço de vivência e de percepção. Isso é relativamente novo e importante, mas não é necessariamente pós-moderno (a não ser que seja complementado por outros olhares, outras formas de enxergar o lugar). Por sinal, não compartilho com aqueles que, na trilha do antropólogo Marc Augé, enxergam “não-lugares” nos shopping centers, aeroportos, determinados bairros (superquadras) etc. Uma visão preconceituosa. São lugares sim,

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com história e principalmente sociabilidade: basta ver a importância de determinados shopping centers para os jovens, ou pelo menos para um determinado tipo deles, e basta ver a importância social dos aeroportos para quem trabalha por lá.

Quanto à região sem dúvida que existe hoje uma leitura pós-moderna do tema. Exemplificando com o Nordeste brasileiro, podemos dizer, simplificando, que existem três leituras. A primeira, tradicional e lablachiana, encara a região como um “dado” (da natureza e também da cultura, da interação de uma comunidade com o seu meio, deixando marcas: obras, estradas, campos de cultivo, cidades, uma certa economia regional e um certo modo ou gênero de vida). A segunda, eminentemente moderna, vê a região como produto da divisão territorial do trabalho, uma economia regional também [a cultura aqui é tão-somente um subproduto] embora forjada não propriamente por elementos internos e seculares (a comunidade e seu meio ambiente) e sim pela propagação do capitalismo, que se expande e reorganiza a região. E a terceira, pós-moderna, entende que região Nordeste é uma “invenção” ou uma “construção”, não no sentido de construção econômica ou apenas material e sim como projeto de dominação. Em suma, é um ponto de vista como diria Hartshorne, mas não um ponto de vista meramente subjetivo e sim norteado por relações de poder – daí a influência de Foucault. A pós-modernidade enfatiza mais a política – ou melhor, as relações de poder – do que a economia, do que o modo de produção. Ela vem se expandindo na geografia, embora nesta exista a coexistência do tradicional com o moderno e com o pós-moderno. Não existe um paradigma único e tampouco apenas um “novo paradigma”. Existe a meu ver complexidade e não uma dicotomia simplista entre um velho e um novo paradigma.

DIALOGUS: À medida que adentramos no século XXI, quais os aspectos mais significativos que você constatou em termos de políticas educacionais?

Vesentini: De forma bem resumida podemos dizer que vivemos a transição de uma escola conteudista para outra cujo escopo não é

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reproduzir conteúdos (nem mesmo conceitos) e sim contribuir para desenvolver nos educandos determinadas competências, inteligências múltiplas, habilidades e atitudes democráticas. Isso não significa que os conteúdos (e no seu interior os conceitos) sejam dispensáveis e sim que eles deixam de ser a finalidade da atividade educativa (o saber isto ou aquilo, o assimilar este ou aquele conceito ou informação) para se tornarem um meio, um instrumento. Muitos equivocadamente vêem essa mudança como a implementação de uma escola construtivista, ou sócio-construtivista, ou perrenoldiana, ou outra coisa qualquer ligada a algum autor ou corrente de pensamento. Puro idealismo. Sem dúvida que educadores como Piaget, Vygotsky, Gardner ou Perrenoud, dentre outros, são importantes e deram cada um à sua maneira contribuições para esta nova escola. Mas ela vai além de suas idéias. Não é rigorosamente piagetiana (embora incorpore certos ensinamentos deste), nem vygotskiana (idem), nem gardneriana (idem) e muito menos perrenoldiana (idem), mas algo que vai além do conjunto deles todos mesmo os subsumindo (ao menos parcialmente). No fundamental, esta nova concepção de escola deriva das mudanças históricas da nossa época, das necessidades do nosso tempo. É a escola para o século XXI. Em outras palavras, é a escola para a terceira revolução industrial – que reordena de forma radical o mercado de trabalho, exigindo agora pessoas que saibam pensar por conta própria, que se reciclem constantemente, que saibam trabalhar em equipe, que sejam criativas, sendo secundários o diploma e os macetes de uma dada profissão. É o sistema escolar apropriado ao mundo globalizado, no qual se expande as idéias de “direito ambiental” e principalmente de “direitos do homem” – não confundir com “direitos do cidadão” [nacional] –, isto é, de todos os seres humanos independentemente do lugar onde nasceram. Também é a escola para o mundo no qual quase todas as sociedades se tornam cada vez mais multiétnicas e multiculturais (daí a necessidade de as pessoas aprenderem a conviver com os Outros), advindo disso tudo a necessidade de uma nova democracia. Talvez a obra que melhor retrate isso, pelo menos até o momento, é o trabalho coletivo organizado pela Unesco, Educação, um tesouro a descobrir.

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DIALOGUS: Qual é a relação entre cultura, poder e economia na educação e na sociedade em geral? Existe, em sua opinião, uma relação entre pobreza e educação?

Vesentini: É óbvio que existe essa relação. Isso nem é mais uma questão de opinião e sim algo já exaustivamente demonstrado por inúmeras pesquisas empíricas. Nada é mais importante para o futuro de uma sociedade – isto é, para o seu “desenvolvimento” – do que a qualidade do seu sistema escolar. Vários especialistas de inúmeras áreas da filosofia ou das ciências asseguraram que o ensino é a chave para o desenvolvimento econômico e social sustentável. Não cabe aqui uma série de citações para comprovar essa obviedade. Todavia, não se pode negligenciar que até mesmo alguns eminentes economistas – sempre estereotipados como aqueles que só enxergam a produção material independentemente de suas conseqüências ambientais ou sociais! – concluíram que um ensino de qualidade amplamente generalizado, direcionado para a formação de cidadãos ativos, é o elemento essencial para um desenvolvimento efetivo. Para mencionar apenas dois exemplos, podemos lembrar que Amartya Sen, prêmio Nobel de economia em 1998, reiterou que o desenvolvimento não apenas pressupõe, como se imaginava, mas “é um processo de expansão das liberdades” [liberdades democráticas, isto é, cívicas, políticas, sociais, culturais, ambientais, dentre as quais o direito à educação de qualidade]. Outro prêmio Nobel de economia (em 1973), Douglass North, já havia concluído de forma taxativa que “inovação, economias de escala, educação de qualidade, acumulação de capital, etc., não são causas do crescimento. Eles são o desenvolvimento”.

Quanto ao poder, é evidente que na sociedade moderna, mesmo no Brasil atual, ele não decorre apenas – por sinal, nem principalmente – da riqueza material. Ele decorre do status [é por isso que políticos e outras autoridades quase sempre se enriquecem e principalmente adquirem maior poder de influência através da posse de meios de comunicações], que em grande parte vem da educação no sentido amplo do termo (não confundir com diploma). Os gregos da antiguidade, que inventaram a

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política, já sabiam que o “saber falar”, o saber se expressar corretamente – por favor, não confundam isso com regras de gramática –, isto é, saber convencer, é condição primordial para o exercício do poder.

DIALOGUS: Qual sua opinião acerca dos currículos nacionais sobretudo o que preconiza a LDB e o proposto pelos PCNs, em especial, o de Geografia?

Vesentini: Acho que na média – isto é, apesar de determinados problemas ou lacunas aqui ou acolá – eles são bons, constituem um avanço. Não podemos nem devemos ser idealistas ou platônicos naquele sentido – muito comum no Brasil e na América Latina, especialmente entre os que se autointitulam esquerda – segundo o qual só o perfeito (o ideal) é que serve, sendo que todo o resto é um retrocesso, é algo execrável e estereotipado como “capitalista”, “neoliberal”, “reformista” ou qualquer outro rótulo em voga no momento. Em função da realidade brasileira – uma sociedade (e não apenas Estado) profundamente autoritária, diga-se de passagem –, bem ou mal, apesar dos pesares, essas legislações constituem avanços a serem defendidos e implementados (algo que ainda não existe de fato). Devem sim ser aperfeiçoadas, mas antes de tudo colocadas na prática, generalizadas, o que – repito – ainda não ocorreu. Não existem ainda vários itens que a LDB preconiza, tais como um mínimo de 12% do orçamento da União e 20% de cada Município como gastos obrigatórios com educação, ou a generalização do ensino elementar obrigatório para crianças com até 14 anos de idade. Quanto aos PCNs, são no fundo quase uma cópia das diretrizes da Unesco para o ensino do século XXI: preocupações mais com competências e atitudes do que com conteúdos, interdisciplinaridade, temas transversais etc. São relativamente semelhantes aos Standards norte-americanos elaborados durante o governo Clinton, que em parte servia de inspiração para o governo FHC no Brasil. [O governo Clinton elaborou esses Standards, ou parâmetros, após alguns anos de discussões “de cima para baixo”, a partir de escolas, professores, representantes de comunidades locais e associações de profissionais (geógrafos, matemáticos, historiadores).

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Depois as sugestões locais, através de representantes eleitos, foram para deliberação em órgãos estaduais e finalmente federal. Apesar disso, existe uma clara influência de certos escritos da Unesco nos Standards de geografia, por exemplo, o único que conheço.] A LDB dá mais autonomia para os Estados em detrimento das diretrizes federais. A princípio, levando-se em conta as diversidades regionais do Brasil, isso é positivo. Mas sem dúvida que os PCNs federais são muito melhores do que a atual proposta da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo, por exemplo, que é extremamente conservadora (e conteudista, embora os conteúdos que importem de fato sejam apenas os de matemática e português) e, mesmo de forma talvez inconsciente, uma reprodução grotesca da proposta educacional do governo George W. Bush nos Estados Unidos. Considero muito bem feitos os PCNs de geografia para o ensino médio. Eles dão orientações pertinentes e não trazem aquele rol de conteúdos que eram usuais em nossas propostas curriculares federais ou estaduais. Já os PCNs de 5ª à 8ª séries, elaborados por outra equipe, são bem tradicionais e até mesmo destoam da orientação geral dos PCNs. Eles dão listas e até detalhes de temas ou conteúdos a serem abordados em cada uma das séries, algo ridículo frente a um ensino não conteudista e completamente alheio à nossa realidade com grandes diversidades regionais. Mas já notei, entrando no site do MEC na net, que deram um jeito de reformular esses PCNs de geografia, que agora são de 6ª à 9ª séries, tirando aquelas listas de temas ou conteúdos obrigatórios para esta ou aquela série e colocando no lugar preocupações com o desenvolvimento do raciocínio geográfico (algo que inicialmente não existia), com determinadas competências ou habilidades etc. Ficou bem melhor.

DIALOGUS: Neste sentido, a nova alteração que objetiva condensar as disciplinas em quatro amplas áreas de conhecimento significa um avanço ou um retrocesso em relação ao contexto educacional e à geografia escolar em especial?

Vesentini: No fundo, tudo depende de como isso será operacionalizado. Existem apenas interrogações sobre essa pretensa

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alteração. Mas vejo essa proposta – pois felizmente não passa disso – com preocupação. Seriam quatro áreas: matemática, idiomas, ciências naturais e ciências humanas. Entretanto, na medida em que não existem nem podem existir cursos superiores de “ciências naturais” ou de “ciências humanas” ou mesmo de “línguas” em geral (mas apenas de inglês, português, alemão etc.), os professores são obrigatoriamente formados em física, biologia, história, geografia, letras (com licenciatura em inglês, francês ou espanhol), artes e por aí afora. Assim, como vai ocorrer na prática essa suposta unificação dentro de cada área? O professor de geografia vai lecionar “ciências humanas”? Ou será que ele vai lecionar “ciências naturais”? E o professor de história (ou o de sociologia) vai lecionar algo chamado “ciências humanas” ao invés de história? E como fica nesse enquadramento esdrúxulo o professor de filosofia, já que esta não é uma ciência humana e tampouco uma “ciência exata ou biológica”, para usarmos a polêmica rotulagem oriunda do MEC? E o professor de artes? E o de educação física? Como se vê, é uma divisão arbitrária que não corresponde minimamente à complexidade das ciências ou mesmo – o que é algo diferente – das disciplinas escolares.

Ao invés de uma reunião das disciplinas escolares em quatro áreas – teoricamente para simplificar e incentivar a interdisciplinaridade –, o ideal seria nortear o ensino para que ele seja menos conteudista e mais voltado para desenvolver inteligências múltiplas, competências, atitudes democráticas. Desenvolver a interdisciplinaridade, minimizar a compartimentação entre as disciplinas, sem dúvida que é algo necessário. Mas esse reagrupamento das disciplinas escolares em quatro áreas não é a melhor forma de se fazer isso. Enfim, não creio que a simples reorganização curricular em quatro áreas seja um avanço. Nem mesmo que isso facilite a interdisciplinaridade. É mais uma idéia excêntrica destinada ao fracasso e a uma vida curta, se é que vai ser implementada, tal como tantas outras experiências malucas e perniciosas que já foram tentadas – seja no nível federal ou estadual – nas últimas décadas no Brasil.

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DIALOGUS: Neste contexto, a Geografia, enquanto ciência e, mais especificamente, no âmbito escolar, poderá desaparecer?

Vesentini: Não creio nisso, pelo menos não no curto prazo. Na verdade, esse “desaparecimento” – o uso das aspas logo será justificado – das disciplinas escolares (e não apenas da geografia escolar) é algo possível para um futuro relativamente distante, digamos de no mínimo umas quatro décadas. Mas será um desaparecimento formal e não real, pois os alunos talvez deixem de ter aulas de disciplinas separadas (matemática, história, geografia, ciências) e passem a ter atividades interdisciplinares do tipo “pensem em despoluir o rio que corta a sua cidade”, “reflitam sobre as causas da criminalidade e as medidas para reduzi-la”, “projetem um roteiro de férias com viagens pela Europa” etc. Mas para realizarem essas atividades eles vão contar com a orientação de professores (de geografia, matemática, história...), com mapas (sejam de papéis ou interativos nos monitores), com computadores e suas redes, com estudos do meio programados e com a supervisão de vários professores ao mesmo tempo etc.

DIALOGUS: O senhor escreveu diversos livros didáticos. Atualmente, o que pensa sobre os livros didáticos utilizados nas escolas, em especial o que foi distribuído pelo poder público no Estado de São Paulo, neste ano de 2009?

Vesentini: Na verdade o que foi distribuído nas escolas no Estado de São Paulo não foram livros e sim apostilas. Apostilas com o formato (e o papel) de jornais, que por sinal foram impressas em gráficas de alguns jornais, digamos, estratégicos. Estratégicos para a futura campanha eleitoral do atual governador de São Paulo. O Estado pagou dezenas de milhões de reais para cada um desses jornais – inclusive um em Minas Gerais, talvez avesso à virtual campanha do candidato à Presidência da República na medida em que ele poderá ser escolhido no lugar do atual governador de Minas. (São do mesmo partido e disputam a indicação deste). Numa época de evidente diminuição de assinantes e

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compradores (nas bancas) dos jornais impressos, que em grande parte estão endividados, foi uma dádiva para eles. Será que vão agradecer promovendo o governador?

Entrando agora no mérito didático e científico dessas apostilas, não há como deixar de notar que são de péssima qualidade, feitas visivelmente às pressas e por equipes formadas por pessoas que possuem orientações díspares. Isso por si só não é algo ruim, desde que existisse um mínimo consenso sobre o tipo de ensino que se quer, para que educar, que atividades devem ser implementadas etc. O problema é que daí – e também da pressa – adveio textos atrapalhados e sem coerência, alguns até com graves equívocos conceituais. Além disso, existe nessas apostilas – não só nas de geografia – uma filosofia educacional neoconservadora, que lembra bastante – talvez tenha sido a inspiração – a política implementada desde 2001 nos Estados Unidos pelo catastrófico governo de George W. Bush com a sua proposta consubstanciada na legislação No Child Left Behind Act, a partir da qual todas as demais disciplinas escolares foram relegadas a um segundo plano em prol da supervalorização da matemática e do inglês. O atual e novo governo norte-americano já está modificando essa orientação pedagógica neoconservadora – no fundo, voltada somente para os estudantes se saírem bem em testes nacionais e internacionais de matemática e escrita –, mas aqui no Brasil, como sempre, vivemos alguns anos de atraso. Nessas apostilas distribuídas este ano pela Secretaria Estadual de Educação de São Paulo todas as demais disciplinas escolares tornaram-se auxiliares para ensinar matemática e língua portuguesa. Isso foi uma orientação que veio de cima, da Secretaria, e os professores universitários [sic] convidados para redigirem as apostilas, vergonhosamente, assumiram essa tarefa sem nenhuma forma de rebeldia, sem discordarem minimamente dessa orientação deformadora. Parece que existem certos intelectuais que desde que recebam algum pagamento fazem ou escrevem qualquer coisa para qualquer finalidade. Nessas apostilas a disciplina escolar história virou apenas leitura de textos, ou seja, auxiliar da língua portuguesa. Não importam os raciocínios históricos (memória, construção dos fatos, processos, lutas sociais) e sim

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a interpretação formal (gramatical e semântica) de um texto. A geografia virou auxiliar da matemática: os três primeiros meses do ano letivo foram preenchidos apenas com cálculos de fusos horários e escalas cartográficas – e isso em todas as séries finais do ensino elementar (5ª à 8ª) e no ensino médio! E o mesmo ocorreu nas demais disciplinas. A estrutura conceitual – os conteúdos e conceitos sugeridos, os temas e o seu encadeamento – da disciplina escolar geografia nessas apostilas parece o “samba do crioulo doido” de Sérgio Porto. Uma mistura de fenomenologia (mal entendida) com marxismo (idem), com geografia tradicional e com uma caricatura da geografia quantitativa, e tudo isso direcionado fundamentalmente para tornar a geografia uma auxiliar no aprendizado da matemática (em primeiro lugar) e da língua portuguesa. Alguns equívocos grosseiros já foram denunciados pela mídia: por exemplo, mapas absurdos (um da América do Sul no qual existem dois Paraguais, um no lugar do Uruguai e o outro no lugar da Bolívia!). Provavelmente quem elaborou esses mapas nem se importou de fato com a geografia e sim com a escala e a possibilidade de os alunos fazerem cálculos de distâncias no mapa (evidentemente que sem a menor preocupação que os cálculos tenham alguma correspondência com a realidade). Outro é a confusão conceitual. Só para mencionar um exemplo, existe um tema a ser abordado chamado “Choque de civilizações” – de nítida inspiração huntingtoniana –, mas o conteúdo sugerido para ele é “Geografia das religiões”! Ou seja, os autores sequer sabem a diferença entre civilização (como a Ocidental ou a Sínica) e religião, algo que faria o finado Huntington se revirar na cova.

DIALOGUS: Uma outra proposta polêmica surge este ano em relação à forma de ingresso nas instituições públicas de ensino superior, em especial nas universidades federais, uma vez que se preconiza a unificação do ENEM aos vestibulares. O que pensa a respeito?

Vesentini: Pode ser uma alternativa melhor do que os atuais vestibulares. Examinei os exames do Enem durante vários anos e concluí que indiscutivelmente eles são melhores (ou menos ruins) do que todos os vestibulares, sejam os da Unicamp, da UFRJ, da USP ou de qualquer outra

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universidade. Em geral, salvo exceções (e infelizmente parece que estas vêm aumentando nos últimos anos, no governo Lula, com os avaliadores progressivamente fazendo questões que “cobram” mais conteúdos populistas, isto é, certo posicionamento ideológico, identificação com o MST, por exemplo, críticas ao agrobusiness etc.), as questões do Enem demandam mais raciocínio e menos informações ou conteúdos, ao contrário dos vestibulares. Além disso, são questões em geral interdisciplinares, que unem a geografia com a física, com a história, com a matemática e assim por diante. São muito comuns no Enem questões com mapas, tabelas ou gráficos nas quais a própria resposta já está implícita neles. Elas exigem mais raciocínio, atenção, capacidade de interpretar tabelas, mapas ou gráficos. Mas a imensa maioria dos candidatos erra esse tipo de questões porque está acostumada com conteúdos, com respostas prontas que apenas devem ser memorizadas. Por isso considero que colocar exames como os do Enem, desde que não desvirtuados, no lugar dos atuais vestibulares massificadores e conteudistas, representa um avanço educacional. Não é a melhor solução, mas é um passo adiante. O problema que vejo é que já estão falando em “reformar o Enem para adaptá-lo à função dos vestibulares”. Uma idiotice. Ou ele fica tal como foi idealizado – isto é, um exame para avaliar mais competências e raciocínios (lógica, espírito crítico – que não deve ser confundido com opiniões panfletárias –, competência na interpretação de gráficos, tabelas ou mapas, capacidade de tirar conclusões a partir de certos dados etc.) – ou é melhor manter os vestibulares. Pois se o Enem for reformulado dessa maneira – isto é, segundo a mídia, para “cobrar conteúdos necessários” (sic!) para o vestibular –, então ele nada mais será que um novo vestibular massificador e conteudista. Neste caso, por que mudar? Só para ter um exame ao invés de vários? Isso seria um retrocesso.

Vamos repisar o óbvio. Qual é o problema dos vestibulares? Um vestibular (o termo vem de vestíbulo) nada mais é que um exame (seja ele qual for), ou um complexo de exames, entrevistas, análise de currículos, provas orais etc., para selecionar os alunos que podem ingressar num determinado curso. Entendido dessa forma, o vestibular em si – isto é

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o processo de seleção para os candidatos a tal ou qual curso – não é o problema, mas sim a sua forma atual, os vestibulares que existem hoje em dia no Brasil. De fato, o atual formato do vestibular para o ensino superior no Brasil é obsoleto e inclusive inadequado para a finalidade a que se propõe. É massificador e foi inspirado no fordismo, na linha de montagem com produção estandardizada. Ele se iniciou no final dos anos 1960, pois até esse período existiam no país vestibulares com formatos diversos. O aluno fazia um vestibular no curso que queria ingressar, e os exames eram diferentes conforme a instituição de ensino. Existiam poucas questões de múltipla escolha, muitas questões abertas ou discursivas, redações ou dissertações e até mesmo outras atividades (desenho de um projeto nos cursos de arquitetura e engenharia, provas orais nos cursos de história, geografia, sociologia, filosofia etc.). Era um vestibular descentralizado, inclusive dentro da mesma universidade. Cada departamento da USP, por exemplo, realizava o seu vestibular com os seus critérios e dando maior ou menor peso a determinadas disciplinas escolares e a determinados tipos de provas. No final dos anos 1960, em plena ditadura militar, iniciou-se a formação de instituições centralizadoras para unificar os vestibulares de dezenas de faculdades diferentes. Um ótimo negócio para alguns. O pretexto para isso foi o crescente número de candidatos e também a existência dos “excedentes” comuns nos anos 1960, ou seja, aqueles que alcançavam a média mínima – geralmente 5,0 (cinco) – para ingressar num determinado curso superior, mas não podiam se inscrever porque havia um excesso de candidatos aprovados em relação ao número de vagas disponíveis. Foram eliminados os “excedentes” com o final da média mínima: passaram a ser aprovados apenas aqueles candidatos que tiveram as maiores médias – mesmo que apenas 1,5 (um e meio), por exemplo – para ingressar num determinado curso, no número exato da disponibilidade de vagas, e ponto final. Também ocorreu uma ampliação do número de vagas em geral e mais ainda do número de vestibulandos, algo concomitante e decorrente da expansão quantitativa do ensino médio no Brasil. Daí se pensou numa simplificação – e centralização – dos vestibulares pela via de uma correção automatizada, feita por computadores [ou por máquinas que rapidamente

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processavam cartões perfurados, antes da expansão dos computadores], o que implicou numa supervalorização das questões de múltipla escolha e iguais para todas as carreiras. Mas isso gerou uma perda qualitativa. No lugar de avaliar as aptidões, as competências dos candidatos para os cursos X ou Y (que podem ser bastante diferentes), como bem ou mal se procurava fazer até então, foi implantado um processo único e centralizado, massificador, que trata todas as carreiras e todos os candidatos como se fossem iguais, como se o aluno N, que tirou a nota mais alta no vestibular unificado, tivesse habilidades e competências para entrar em qualquer curso, independentemente das características específicas deste. Um absurdo na medida em que os indivíduos têm aptidões ou potencialidades diferentes e cada profissão, cada curso superior demanda competências e habilidades diversas. Por exemplo, não é porque um candidato obtém uma média elevada em matemática e português (disciplinas com maior peso nos vestibulares) que ele está apto para fazer medicina, por exemplo, curso no qual ele poderá esquecer sem nenhum prejuízo para a profissão quase tudo que estudou para o vestibular (principalmente daquelas duas disciplinas) e que na verdade deveria avaliar outras coisas. Imagine esse indivíduo depois se tornando um cirurgião, atividade que demanda certas habilidades manuais que a maioria não tem. Há alguns meses uma amiga, professora de graduação e pós-graduação num curso de odontologia, me afirmou que tem pena dos pacientes de inúmeros alunos, que estão se tornando cirurgiões dentistas especializados neste ou naquele ramo, pois apesar das elevadas notas que tiraram no vestibular não têm sequer uma mínima habilidade manual e conseguem arruinar os dentes daqueles que caem sob seus cuidados. Outro exemplo seria o curso de arquitetura, que exige criatividade por parte dos candidatos, ou de psicologia, que demanda inteligência social e emocional, competências ou aptidões que nem de longe são medidas nos exames vestibulares. Poder-se-ia ainda mencionar vários outros cursos e profissões – direito, por exemplo, que necessita basicamente raciocínio lógico e inteligência lingüística; ou geografia, que reclama capacidade de observação e de síntese – que exigem competências e habilidades específicas que são totalmente

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negligenciadas nesses exames. Essa aparente digressão que realizamos no parágrafo anterior

serviu para mostrar que o correto seria a existência de vestibulares (no plural) diferentes de acordo com o curso, com a carreira que o candidato escolheu. E não de acordo com a universidade, como se todos os cursos pudessem ter um processo seletivo em comum. Isso é o que existe nos Estados Unidos, por exemplo, onde cada curso ou departamento tem autonomia para selecionar os candidatos que vão ser aceitos a cada ano letivo. E eles usam de diferentes critérios dependendo da carreira e suas características. No curso de direito, por exemplo, que naquele país só pode ser feito depois que o candidato tenha completado algum outro curso superior (geralmente na área de letras ou ciências humanas), é comum nas melhores universidades existirem apenas provas orais e escritas de lógica e de inglês. E nada mais, nem matemática, nem química, nem biologia etc. No curso de medicina (idem: ele só pode ser cursado depois que a pessoa tenha algum outro curso superior, geralmente de biologia, química ou física), normalmente existem provas de biologia, principalmente, e de ciências (bioquímica e biofísica). E assim por diante. Não estou propondo alguma cópia do modelo norte-americano, mas apenas realçando que cada curso ou carreira exige aptidões específicas e não podemos ter um único exame massificador e igual para todos (nem mesmo dando maior peso a esta ou aquela disciplina de acordo com a área – ciências exatas, biológicas ou humanas –, algo que só ameniza um pouco essa aberração). Em todo o caso, o Enem com a sua proposta original, repito, é melhor ou menos ruim do que os atuais vestibulares conteudistas.

DIALOGUS: Qual o papel da universidade na realidade atual brasileira? E da Geografia?

Vesentini: As principais funções da universidade, em síntese e tal como aparece nos documentos oficiais delas próprias, são o ensino, a pesquisa e o apoio à comunidade. Ensino no sentido de formar profissionais (médicos, engenheiros, geógrafos, historiadores, pedagogos, economistas etc.) capacitados, atualizados com os conhecimentos – como também com

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as competências, habilidades e atitudes (inclusive éticas) – próprios de sua carreira. Pesquisa no sentido de gerar um conhecimento – e também outros produtos: obras artísticas (por exemplo, nas áreas das comunicações ou das artes), tecnologias (por exemplo, nas engenharias), obras culturais etc. – avançado ou de vanguarda, mesmo que eventualmente especulativo e/ou experimental. E apoio à comunidade ou à sociedade (que afinal de contas custeia a universidade) no sentido não apenas de formar profissionais capacitados e futuros líderes, mas também através de seus serviços (como hospitais universitários ou incubadoras que dão origem a novas atividades), de seus cursos extra-curriculares e abertos (por exemplo, para a terceira idade, para as comunidades ou associações que praticam a autoconstrução, para camponeses ou pequenos proprietários no sentido de praticarem uma agricultura mais sustentável, e por aí afora), de seus meios de comunicações (toda universidade que se preze deveria ter um canal de televisão, um ou mais jornais e rádios, além do portal na net, informativos, educativos e acessíveis a toda sociedade, tal como ocorre por exemplo nos Estados Unidos).

Isso é o ideal, ou melhor, a teoria. Na prática e especificamente no caso brasileiro, entretanto, as coisas não são bem assim. Temos algumas boas universidade – embora todas elas meio capengas, com maior ou menor carência de verbas para pesquisas, com maior ou menor carência de infra-estrutura até mesmo para o ensino – e um enorme número de universidades e faculdades precárias, algumas delas até mesmo vergonhosas. Certo número mal cumpre a função do ensino, fabricando profissionais de baixa qualidade; ao mesmo tempo praticamente não realiza nenhuma pesquisa a sério e muito menos apoio à comunidade.

Quanto à geografia, ou melhor, aos cursos ou departamentos de geografia, eles deveriam contribuir para formar bons professores e bons profissionais (para planejamento, análise ambiental, geocartografia, sistemas de informações geográficas etc.), pessoas com espírito crítico bem desenvolvido e que fossem líderes intelectuais, além de gerar pesquisas avançadas em suas áreas e contribuir ou subsidiar a sociedade – ou determinadas comunidades específicas – nos setores ambiental,

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cartográfico, de moradia, de planejamento urbano ou municipal etc. Assim como em geral os demais cursos – ou talvez até mais na medida em que há uma visível distribuição desigual de verbas nas universidades, com as humanidades (e dentro delas a geografia) ficando apenas com migalhas – os departamentos de geografia via de regra desempenham precariamente todas essas funções. Formar bons professores de geografia é algo raro; quando existem, eles se formaram de fato na prática, em geral até mesmo contestando ou contrariando muito do que aprenderam nos cursos superiores. Isso porque a licenciatura normalmente é mal vista nos cursos de geografia, é tida como a “prima pobre” [e que não necessita de uma sólida formação] da atividade do geógrafo. Espírito crítico é algo que existe sim, embora predomine aqui certa mesmice panfletária e pseudocrítica. Não é incomum em nosso meio a ampla presença das “maria-vai-com-as-outras”, isto é, pessoas que só repetem clichês ou autores (não lidos) que estão na moda, que “todo o mundo repete” (como dizem), sem de fato estarem atualizados com aquele assunto. O setor de pesquisas – em forma de teses, dissertações, artigos para revistas, livros, contribuições para congressos e encontros científicos – talvez seja o mais desenvolvido, pelo menos nos departamentos de geografia das grandes universidades. É o setor ou o aspecto do qual nossos cursos de geografia em geral mais podem se orgulhar. Existem excelentes trabalhos [embora também muitos medíocres], provavelmente o maior cabedal na América Latina e no chamado Sul geoeconômico. Mesmo assim ele ainda é insuficiente e até precário em relação tanto às necessidades do Brasil como em comparação à (inegável) maior produção de outras disciplinas que como a nossa também carecem de verbas (história, sociologia, ciência política, filosofia). No que se refere ao apoio à sociedade, infelizmente é também um dos pontos extremamente falhos e, em grande parte, justificado devido ao grande número de alunos e disciplinas a serem ministradas a cada semestre por professor nos departamentos de geografia (ao contrário do que ocorre nas faculdades de medicina, engenharia, economia etc.).

Todavia, pensando-se numa perspectiva evolutiva, das mudanças ocorridas nas últimas décadas, não há dúvidas que bem ou mal, aos trancos

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e barrancos, a geografia brasileira vem se desenvolvendo bastante. Ela se encontra numa fase profícua, bem melhor do que anteriormente (os anos 1970, por exemplo, época em que fui aluno de graduação). Ela avançou, deixou para trás, pelo menos em grande parte, o tradicionalismo – o descritivo, os esquemas pré-determinados e invariáveis (“a Terra e o Homem”), a rígida compartimentação entre geomorfologia e climatologia, entre geografia urbana e rural (ou da população), entre geografia física e humana, entre cartografia e geografia – e se tornou mais holística e integrada (embora não suficientemente), mais pluralista, mais crítica e muito mais voltada para pensar – e até propor soluções – os grandes problemas do Brasil e do mundo.

LOPES, P. E. V, PIRONI, A. F, Geography ,Policy & Education : dialogs contemporary with Joseph Willian. DIALOGUS. Ribeirão Preto, vol.5, n.1, 2009, p 15- 34.

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UM PERCURSO, UMA HISTÓRIA: ENTREVISTA COM O PROF. DR. PEDRO PAULO FUNARI

Suzana Barretto RIBEIRO1*

Ana Carla VANNUCCHI2**

Numa conversa de quase duas horas, em um aconchegante café nos arredores da Unicamp, Pedro Paulo Funari, Professor Titular daquela Instituição, falou sobre sua trajetória profissional. Um migrante acadêmico que mostra paixão e generosidade, pela História e pelo leitor de seus tantos livros, artigos e textos. Foi com essa intensidade que respondeu às perguntas de uma aluna de primeiro semestre do Curso de História e uma historiadora experiente, em Abril deste ano. Ambas fotógrafas, ambas curiosas. Uma aula para historiadores, de agora e amanhã.

RV – Você é do Paraná?PPF – Não. Por causa do “r”?

RV – É.PPF – É porque eu vivi muito tempo na Espanha e o “r” ficou.

* Cientista Social, fotógrafa e historiadora. Dra. em História Social pela Unicamp. Autora dos livros “Imagens e memórias dos italianos do Bráz”, Brasiliense, 1994;”Aparecidas: tem-po D’Imagem”, 2002; “Percursos do olhar”, Annablume/FAPESP, 2006;”Na linha da preser-vação: o leito férreo Campinas-Jaguariúna, Direção Cultura, 2007;”Jaguariúna no curso da História”, PMJ, 2008. Parecerista da FAPESP.** Graduanda em História, Departamento de Geografia e História – Centro Universitário Ba-rão de Mauá, Ribeirão Preto – SP, Brasil. Fotógrafa e Articulista de jornais como o “Correio Popular”, de Campinas. Membro da Associação dos Amigos do Arquivo Público e Histórico de Riberião Preto – SP. Entrevista feita sob a orientação do Prof. Dr. Wlaumir Donizeti Souza.

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RV – Podemos fazer a primeira pergunta? Podemos começar?PPF – Vamos lá.

RV – A primeira questão, até numa forma bastante cronológica, lemos que você fez a graduação em história, o mestrado em antropologia social e na sequência o doutorado em arqueologia. Ficamos curiosas e gostaríamos de saber um pouco sobre esse seu percurso. Como você ingressou no curso de história? Um pouco antes, como surgiu o interesse pela história e como foi a sua trajetória acadêmica?PPF –Na verdade eu já tinha interesse por humanidades em geral e, em particular, pela filosofia. Porém, eu pensei que àquela época, 1975, 1976 não havia filosofia na escola e havia história. Ainda havia história, estavam querendo tirar, mas ainda havia. Então decidi fazer história porque era uma coisa sobre a qual eu poderia dar aulas. Se eu fizesse filosofia não teria perspectivas acadêmicas, de trabalho. Eu fui levado pra a história por gostar de humanidades.

RV – Você teve alguma influência anterior?PPF – Sim, dos professores de humanas em geral e de história em particular. Eu fui aluno do Heródoto Barbeiro, que era um bom professor, e de outros professores que eram também muito bons. Eu era aluno do Objetivo. Tinha professores que davam aulas, não naquelas salas grandes, os vaticanos, mas nas salas menores, que falavam muito de coisas concretas, da revolução de 64. Eu já tinha muito interesse. Os Professores de português do Objetivo eram também muito bons nas aulas nas salas menores. Eu tinha aulas boas no cursinho, mas as aulas melhores eram as do colégio.

RV – Na Paulista?PPF – É, na Paulista. Eu tinha um professor de história que era reacionaríssimo, mas que era ótimo porque falava muito sobre como tinha participado do golpe de 64. Ele era reacionário, mas pra quem gosta de

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história, era uma maravilha. O professor de português também era muito bom. Meu pai é professor de português, então eu já gostava. De literatura, o Professor José Antônio Pasta Jr. Isso me direcionou pra humanas. Especificamente história porque achei que era mais realista que a filosofia. Entrei na história, tive aquele choque natural, que acho que você deve ter.

RV – Estou chocada! PPF – Na faculdade não é exatamente o que a gente pensava que era história. Por exemplo, a primeira coisa que me chocou é que havia fontes, que tinha que estudar fontes. Documentos e, apesar de já gostar de história, nunca tinha tido a idéia de que teria que estudar documentos. Então, na universidade comecei a ter essa idéia de documentos. Tive também bons professores na universidade, na USP. Fiquei interessado por diversos temas. Cada disciplina me interessava por causa de uma coisa e o meu interesse era Brasil, coisas contemporâneas, ditatura, essas coisas.

RV – Era 77?PPF – Eu entrei em 77 e aí teve uma greve logo em seguida. Então, eu estava bem mobilizado. Porém, não consegui fazer iniciação científica nessa área. Tentei também teoria, não deu certo porque não surgiu oportunidade, mas surgiu oportunidade em história antiga. Com a professora de antiga. Entrei pra a antiga – não que eu não gostasse de antiga – eu digo assim, não que eu tenha ido de imediato.

RV – Por acaso?PPF – Exatamente. Eu fui agarrando as oportunidades que foram surgindo. Então a professora de antiga me ofereceu uma oportunidade de trabalhar com a Dácia Romana, ela trabalhava com a Dácia Romana, que é a Romênia atual e aí me indicou umas pessoas, uns temas, isso na graduação. Com isso, eu entrei no mestrado, fui na indicação dela. Que era outro tema, não era sobre a Romênia, era sobre a Espanha, o marido dela era espanhol. Ela tinha conhecidos na Espanha. Me indicou um tema,

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eu fui atrás do tema, o tema era “Azeite no mundo Antigo”. Azeite espanhol. Ela disse: “Vai, é um tema importante” e era realmente importante, muito importante naquele momento. Então eu fui atrás disso que ela falou. Entrei em contato com um professor espanhol que se tornou meu orientador e meu grande amigo e que estava em Madrid naquela ocasião. Fui pra história antiga assim. Nesse meio tempo, o que aconteceu? Essa minha professora que se chamava Glória Alves Portal, teve um câncer fulminante e morreu logo em seguida. Eu estava no mestrado ainda. Aí eu me trensferi pra uma outra professora que foi minha orientadora no mestrado e no doutorado que é a Haiganuch Sarian, que é arqueóloga. Porque a ligação era, pra esse tema que eu estudava - o azeite -, tinha que estudar arqueologia. Minha primeira orientadora faleceu e eu me direcionei pra a arqueologia. Aí é que eu passei pra a antropologia. Porque na USP não havia arqueologia, a arqueologia estava dentro da antropologia. Entrei em história no mestrado e me transferi automaticamente pra a antropologia. Fiz o mestrado em antropologia, pra mim foi muito bom, embora na época eu tenha achado muito ruim porque tive que fazer aquelas disciplinas da antropologia que eu não tinha feito na graduação, ler autores de antropologia. Então, acho que foi bom pra minha formação. Logo que terminei o mestrado, fiz um concurso na Unesp, em Assis, como mestre. Eu estava terminando o mestrado, mas já pude fazer o concurso como mestre. Entrei como professor em 85 e comecei a dar aulas em 86. Entrei no doutorado sendo professor da Unesp. Fiz 4 anos de doutorado com a mesma orientadora só que aí mudou o programa. Criou-se o programa de arqueologia na USP, por isso meu título é em arqueologia.

RV – Você foi migrando?PPF – Fui migrando. Creio que o meu doutorado tenha sido o primeiro em arqueologia pela USP. O programa foi institucionalizado em 90 e eu optei por ele. Foi quando defendi. Eu já era professor e tive muitas oportunidades. Eu ia todos os anos pra Europa fazer pesquisa. Era

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professor e então conseguia afastamento remunerado, bolsa CAPES, FAPESP, enfim, consegui fazer o doutoramento nessa situação. Foi um formato bastante favorável, porque eu consegui ir pra lá muitas vezes pra pesquisar. Essa foi minha trejetória até o doutorado.

RV – E depois, 6 pós-doutorado.PPF – É, fiz o doutorado em 90. Logo depois fiz muita escavação, trabalho de campo com os espanhóis. Itália, Inglaterra. Meu pós-doc foi na Inglaterra. Criei muitas relações na Inglaterra. Comecei, a partir daí, na realidade, continuei a ir pra lá todos os anos em diferentes universidades da Inglaterra e da Espanha. Entrei na Unicamp em 90, o que foi muito importante pra mim, porque tive mais oportunidades aqui que na Unesp. Não que as condições na Unesp não fossem boas, mas eram melhores aqui por ser uma universidade mais concentrada. RV – Como era, logo na pós-ditatura, trabalhar numa área nova com pesquisas completamente desvinculadas da realidade brasileira da época? Ao mesmo tempo, sabemos que você sempre teve muita preocupação com a atuação do professor de história, e você já era professor. Era uma realidade tranquila, conflitante?PPF – A pesquisa que eu fiz, tanto no mestrado quanto no doutoramento, era, apesar da grande parte teórica, bastante técnica, arqueológica, mas vocês têm razão: não tinha uma ligação direta nem com o Brasil ou mesmo questões políticas. Eu acho importante uma pessoa ter suas pesquisas, independente de suas conotações políticas, suas implicações. Agora, desde que eu entrei na Unesp, antes até de ser professor lá, eles me convidaram pra fazer uma palestra na Semana de História sobre cultura alternativa. Aí me fiz a pergunta: “O que eu posso falar sobre antiguidade e cultura alternativa?”. Foi aí que fui levado a estudar os grafites de Pompéia, que gerou meu primeiro livro “Cultura popular na antiguidade”. Esse livro fala de questões políticas, o que as pessoas escreviam, se eram analfabetas, se o povo tinha cultura. É de 1986 e era uma resposta a uma demanda política que me foi posta. Me perguntei,

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também, como é que convidam um professor de antiga pra falar de um tema que é dos anos 60. Alternativo eram os hippies, essas coisas. Essa foi a primeria demanda. Depois, estando lá como professor, comecei a orientar os alunos na iniciação científica, porque ainda não podia orientar mestrandos. Cada ano eu tinha 3 alunos de iniciação pelo CNPQ. Isso foi me ajudando com essa questão politica da formação do historiador, do professor de história, mais ampla, sabendo que a antiguidade tem alguma relevância pra o estudo da história hoje. Essa foi sendo minha trajetória. Agora, quando do meu doutoramento, eu ia todos os anos pra a Europa, houve lá um série de outras demandas, por exemplo: “Você é brasileiro e arqueólogo. Venha falar numa mesa-redonda sobre arqueologia no Brasil”. Eu fui sendo jogado, claro que eu gostava dos temas. Perguntavam se eu não poderia falar de tais temas e comecei, gradativamente, a falar de temas da antiguidade. Escrevi sobre arqueologia durante a ditadura. Em 89 tive um artigo publicado na Inglaterra sobre esse assunto. Comecei a participar de congressos internacionais na área de arqueologia, mais da arqueologia como uma ciência social e politica e aí saí um pouco da antiguidade pra responder o que se fazia na arqueologia brasileira. Tínhamos o quê? Os índios? Então, vamos lá. Comecei a estudar, até por essa pressão, outros temas que não são da antiguidade stricto-senso. Fui caminhando assim, pude resolver essa minha demanda original em relação à eduação, à politica. E uma coisa importantíssima: me pareceu, desde sempre, que o estudo da história e da antiga em particular, é um estudo em si. “Vou estudar antiguidade porque é bonito! É uma coisa maravilhosa, os gregos viviam tão bem! Eu gostaria de ter nascido na Grécia!”; então, existe esse idealismo, sim, hoje em dia. Existe muito isso.

RV – Entre os professores?PPF – Entre os alunos, seguramente, mas mesmo entre professores existe isso. A idealização da antiguidade como “uma maravilha, uma coisa linda, as pessoas filosofavam na rua”. Desde cedo, eu achava que, ao contrário, havia luta de classes,

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contradições, conflitos. Essa questão política estava presente desde o início.

RV – Vamos fazer uma pergunta que estava programada pro final, mas tem muito a ver com artes visuais, com os grafites de Pompéia, já que essa questão da contemporaneidade vem desde os seus tempos de colégio. A gente imagina que essa idealização da história está ainda muito presente. Como você lida com arte contemporânea? Porque o historiador, pela própria erudição, acaba não tendo, no geral, uma visão mais real da arte contemporânea?PPF – Não tem. Primeiramente, preciso dizer que, do lado estético, não tive uma formação mínima sobre isso no colégio. O que eu sempre gostei foi de literatura. Eu gostava de ler. Era meu lado mais artístico, assim também como a música. Artes plásticas ou visuais, menos. Isso no colégio, não tinha contato com isso. Quando entrei na faculdade, duas coisas me chamaram a atenção: a primeira coisa era a questão dos documentos, os documentos escritos. O estudante, o jovem historiador, ante essa questão diz “Realmente, é preciso documentos escritos”. Eu tive sorte de ter no curso da graduação professores que usavam evidências tanto artísticas quanto materiais. Tive um professor de pré-história, Afonso Bueno de Moraes Passos. Falar de pré-história é falar de material, de materialidade. O Jonas Batista Neto e a Aline Pereira de Queiroz de medieval, começaram a usar slides, não existia isso, era dificílimo. Era revolucionário. Foi a primeria vez que, na vida, eu vi slides serem usados em aulas de história. Nas aulas de moderna, contemporânea não tinha isso. Achei ótimo, era uma grande novidade pra mim. Então, desde aquela época até hoje, e hoje digo isso como professor, no geral o historiador não é formado pra ver nada além de documentos escritos. A não ser aqueles que têm professores, como era no meu caso o Jonas e a Aline, que usam slides, imagens. São professores que trabalham com isso e, portanto, vão levar à sala de aula outros tipos de documentos. Boa parte da carreira do historiador aqui é feita de história do Brasil. De história do Brasil, nunca vi nenhuma ilustração, o que usam é

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coisa chocante. As imagens entraram no Renascimento, basicamente. Na Idade Média e no Renascimetno. Voltando à pergunta; quando fui levado à cultura alternativa, e ao grafite, comecei me perguntando o que é cultura alternativa. Hippies? Só hippies? Pensei na cidade de São Paulo que está cheia de grafites. Uns grafites artísticos, outros que não são. Comecei a atinar que havia grafites na antiguidade, que havia diferenças e semelhanças. Fui pela minha cabeça. Comecei a comprar livros sobre grafites contemporâneos, comecei a ler muito sobre isso. Fui ver do que se tratava. Depois, o seguinte: na arqueologia, embora meu objeto de estudo sempre tenham sido as ânforas e no mestrado tenha feito uma análise semiótica, uma análise das imagens – o objeto tem uma forma que passa uma mensagem – nele, quis demonstrar que os antigos conseguiam, pela imagem, diferenciar o que era uma ânfora de azeite, de vinho ou de salação. Que, dentro delas, o vinho era vindo de um lugar ou outro. Mostrar que a forma tem uma mensagem. Isso ficou em mim. No dissertação, em 1986, na última página, coloquei uma coisa que, na USP, seguramente não gostaram. Minha orientadora disse que eu não deveria ter colocado. Coloquei a imagem de uma capa da revista Time da época que mostrava um chinês com uma garrafa de Coca-cola. Não me lembro se havia alguma mensagem escrita, o que seria menos importante que a imagem.

RV – Nem precisaria, a forma da garrafa já dizia o que havia lá dentro.PPF – Exatamente. Já criticaram muito. Voltando à pergunta: acho que esse problema da relação da imagem com a informação continua na formação do historiador.

RV–(Ana Carla) Estou no primeiro ano do curso de história, ainda não tive muito tempo pra ver como as coisas funcionam, mas acredito ter uma sorte grande com os professores. Não há um só professor que fique preso aos documentos escritos. Todos fazem questão de tratar da questão das imagens. Lembra que, outro dia por email, conversamos sobre imagens do Egito e Mesopotâmia pra um trabalho de antiga? Eu precisava de uma

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imagem que complementasse o conteúdo de um livro didático pra preparar uma aula completa. A questão era: o que o aluno de história pode fazer para - usando uma imagem – mudar o conteúdo chato ou tacanha de um livro didático.RV – Isso porque melhorou muito a formação das pessoas. Existe hoje muito mais gente que trabalha com imagens: quadros, fotografias, objetos, história da arte, arqueologia. Melhorou muito, mas ainda há problemas porque, muitas vezes, o documento iconográfico entra apenas como ilustração. Pra quem não tem um conhecimento prévio, fica só como ilustração.RV – Há que se saber explorar. O que significa aquele material.PPF – Qual informação ele dá a mais ou no que é diferente de um documento escrito. Acho que, ainda, isso nem sempre ocorre.

RV–(Suzana) Usando as minhas indagações enquanto pesquisadora, queria saber como você trabalha numa pesquisa? Qual a sua metodologia de trabalho? Quando te encomendam um artigo, um livro .... como você começa?PPF - No momento atual, ou seja, depois de uma trajetória longa, pra algumas coisas, posso começar sem cumprir etapas prévias, como fazia antes. Atualmente, como faço? Definido o tema de, por exemplo, um livro, como o que acabei de escrever com um colega pra a Editora Brasiliense, chama-se “Jesus Histórico”; primeiro defino o que quero pôr no livro e em qual ordem. Isso depende muito do livro. Nos mais genéricos, pra divulgação, por exemplo, tem que ser na ordem em que o leitor receba as informações que ele não conhece e, muitas vezes, em ordem cronológica. Por exemplo, no caso do “Jesus Histórico”: costumo começar com fontes, depois uma apresentação da vida de Jesus em ordem cronológica e depois uma discussão, o que os autores dizem sobre o tema. Quais são as problematizações que autores dos séculos XIX, XX colocam. Uns dizem que ele era assim ou assado, outros dizem que ele era um camponês etc. Uma apresentação do tema, uma discussão e a conclusão dizendo o que o autor, os autores acham sobre isso.

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RV – À mesma maneira de um TCC.PPF – É e não é! Nas áreas em que eu mais trabalho, arqueologia e antropologia, e porque escrevo muitas vezes em inglês, pra revistas de língua inglesa; há uma tradição de se começar com uma parte teórica e um estudo de caso, depois a conclusão. Então apresenta-se o problema teórico, o estudo de caso pra se perguntar se a parte teórica está correta ou não e a conclusão mostrando que está correto. Essa não é a lógica da história feita no Brasil. Por isso disse que é e não é: depende do ambiente, da revista, do público. Eu gosto muito de fazer nessa ordem: teoria, caso, comentário. No caso da história, acredito que muitos colegas acham isso escolar. Mas acho que isso explica bem sobre o que você está falando, de qual lugar você está falando, há duas ou três teorias e eu vou defender tal. Depois o caso: você tem que mostrar que existem documentos e aí você diz que a análise que está sendo proposta funciona.

RV – Isso é bondade acadêmica. Está sempre presente nos seus textos, essa fluência, a preocupação com qualquer tipo de leitor entendendo o que está escrito. Termos técnicos, citações em outras línguas funcionam pra alguns leitores e ensinam a outros. Essa forma escolar é importante pra se mergulhar no universo dos textos acadêmicos sem sustos.PPF – Eu tenho essa preocupação, sim, mas eu aprendi isso. Por exemplo, no mundo da língua inglesa onde atuei muito no início, se é um artigo científico, não pode ter coisas obscuras, tem que estar tudo ali. Frase que não se entende, conceitos que não se sabe o que são. Trabalho na antiguidade muito com latim ou grego. Quando comecei na Inglaterra, me diziam que poderia colocar alguma coisa em grego, por exemplo, mas que deveria, no mínimo, traduzir. Ninguém tem obrigação de saber grego ou latim. Aqui tem muito esse uso da erudição, colocar uma frase em grego ou latim e não traduzir de propósito, pra mostrar que se tem conhecimento, que o leitor não vai ter. Acho que existe um pouco no Brasil, essa tradição francesa que é mais rebuscada, textos muito mais longos, e que aqui tenha sido levada mais

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seriamente que na França. Lá ja é difícil ler um texto de Foucault, ele não queria ser fácil, de qualquer maneira. Não se pode supor que os leitores que estão lendo um texto dele sejam os melhores do mundo. No nosso caso é pior, uma pessoa que está escrevendo um texto a la Foucault - a gente desculpa, entre aspas, que Foucault tenha feito isso, mas aqui não dá. Uma outra pessoa, que não ele, é mais problemático, na minha avaliação. RV – Seu pai ter sido professor de português e esse seu vínculo com a literatura influenciou na sua narrativa?PPF – Com certeza. Primeiro porque, qualquer literatura sempre me atraiu por si mesma. Gosto de livros, textos, poesia. É prévio. Me atrem os textos mais diretos. Gosto de poesia, mas as mais tradicionais, mais abstrusas - não é que eu não veja beleza, mas ter que olhar no dicionário pra poder acompanhar, não. Não que eu não leia, mas acho que perde muito do encanto na leitura. Outro dia estava ajudando minha filha a ler o “Auto da barca do inferno”. Não se pode ler um só verso sem parar e recorrer ao dicionário! Como é que uma menina vai gostar de um texto assim? A minha formação literária foi fundamental pra eu pensar em como escrever. Escrever de maneira clara, fazer um texto curto. Aprendi muito com os ingleses porque eu tinha uma tendência natural pra escrever frases longas. Acho que o texto tem que ser curto. Acho importante ler, incentivo meus filhos, que lêem Harry Potter!

RV – Quando estava preparando a minha parte na entrevista, um de meus professores, sugeriu que usasse uma visão foucaultiana, mas que sabia eu de Foucault? Tentei ler um pouco de sua biografia e o que mais encontrei foram frases atribuídas a ele. Uma delas diz: “Todo sistema de educação é uma maneira política de manter ou de modificar a apropriação dos discursos, com os saberes e os poderes que eles trazem consigo”. Acho que muitos dos textos acadêmicos são opressores e por vezes chegam a ser pedantes. Há muito pedantismo na narrativa, não só na história, na música etc. Isso é muito forte, afinal de contas, estamos num

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país de maioria analfabeta ou semi-analfabeta.PPF – Quantas pessoas não devem ter sido afastadas de um livro ou artigo por coisas assim?

RV – Se salvam quando se encantam por um bom texto ou professor.PPF – Exatamente.

RV – Essa condição de não saber o que está realmente acontecendo é bem antiga por aqui. A música erudita, por exemplo, foi “enfiada” no Brasil goela abaixo, num terreno despreparado culturalmente, sem qualquer traço de memória social no assunto. No final do XIX, as pessoas iam às casas de ópera no Brasil, trajadas elegantemente, mas sem saber do que tratava aquela música, sem saber sobre o compositor, da origem, sem sentimentos de memória coletiva relacionados àquela música. Hoje, ainda se faz à mesma meneira. As salas de concerto estão cheias de gente bem vestida e sem informação musical. Óperas e música erudita são “textos” que acabam afastando o público em geral.PPF – O brasileiro adora isso!

RV – Vamos falar sobre instituições de guarda? Queria que você desse um exemplo de um arquivo histórico modelo e saber como você pensa um arquivo histórico ideal.PPF – A minha experiência com arquivos históricos é bastante limitada. A minha atuação aqui na Unicamp nesse campo é relacionada ao Arquivo Central da Universidade (SIARQ). Não é um arquivo histórico, é administrativo. Vamos falar especificamente de arquivos no que se refere a arquivos administrativos – que são importantíssimos, mas menos valorizados pelo historiador, que parte do pressuposto que num arquivo histórico os documentos têm que ser preservados, claro. A minha preocupação é que a maior parte dos arquivos, antes de serem históricos, são administrativos que nunca chegaram a ser históricos. O que eu quero dizer com isso? Por exemplo, os arquivos municipais. A maior parte das cidades no Brasil não têm arquivo histórico,

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têm arquivos administrativos que jamais chegarão a ser históricos. Os documentos acabam sendo destruidos, não preservados. Há arquivos históricos só em algumas cidades como Rio de Janeiro, São Paulo, mas a maior parte é de arquivos administrativos e que se não forem pensados como históricos, acabarão destruindo toda a memória. São arquivos vivos, toda a documentação jurídica, de terrenos, plantas, são documentos históricos. E isso é pro historiador, pra que ele saiba que não existe só arquivo histórico, daqueles que sabem que estão lá em Portugal, no Vaticano. Sabe-se que está tudo lá, guardado. Agora, o que está sendo produzido, é uma preocupação que, muitas vezes, o historiador não tem. Outra coisa é que, há quinze anos, a documentação gerada é digital, e já está perdida em grande parte.

RV – É muita informação num tipo de mídia efêmera.PPF – Não existe uma preocupação e quando ela aparece, os aparelhos já não podem mais ler as tais mídias digitais. Lembram do .... como é que chamava?

RV – Viu? Já esquecemos! Ah! O zip drive!PPF – É isso. Significa que o que vem sendo produzido há quinze anos ou menos já está se perdendo. Nós estamos preocupados com a memória, mas não precisa ser stricto-senso, qualquer pessoa preocupada com a memória precisa pensar nisso. O que já foi perdido desses quinze anos e os dez próximos anos vai ser questionado mais tarde. “O que se fazia em 2005? As imagens. Onde é que estão?”. Não há políticas de preservação. Agora, tem empresas como a Rede Globo, que têm essa preocupação, essa política de preservação e condições pra reproduzir essas mudanças. No cotidiano de um departamento qualquer, o que estava no computador há dez anos, não existe mais. Nunca foi impresso e já não existe mais. Antes havia o papel. Reuniões de 1950 ainda estão no papel. Isso tudo em relação a arquivos. À respeito de memória, centros culturais, outras instituições de memória. Há muitas instituições importantes como museus, centros

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de memória propriamente ditas, mas não há a preocupação de ligá-las à comunidade. As nossas instituições, até pela tradição do que são instituições acadêmicas, museus, casas de memória, têm que lutar pra serem preservadas, pra preservarem seu material, pra não deixarem de existir. Elas têm que sobreviver. Qual a relação disso com as pessoas da comunidade? É pequena. O que acontece é que essas pessoas não se identificam com as instituições. Ao não haver essa identificação entre as pessoas e as instituições, é criada uma fragilidade na preservação. Vou dar um exemplo bem violento, bem importante: o Museu Paulista, o Museu do Ipiranga. É da USP, tem muito dinheiro, tem cargos políticos, tem um staff grande. É uma maravilha, uma potência. Agora, o que tem lá? Uma exposição que é dos Bandeirantes, dos Heróis de 1932. Uma realidade que é completamente diferente das pessoas que vivem em 2009. Devem se perguntar o que são aqueles quadros, aqueles bandeirantes, as águas dos rios conquistados por eles. Elas não se identificam com aquilo. O problema da não identificação é que as pessoas podem até agredir o monumento, a memória. Nas ruas, martelam, derrubam, modificam.

RV – Como com a estátua na praça Oswaldo Cruz, no bairro do Paraíso em São Paulo. Tiraram a lança indígena e colocaram uma roda na mão da estátua e a prederam com uma corrente!PPF – Pois é. Acho que hoje o grande desafio das pessoas que trabalham com memória é fazer com que essas instituições tenham não só a necessária preocupação consigo mesmas – fundamental -, têm que fazer com que essas instituições sobrevivam e, se possível, progridam. Isto é, fazer com que essas instituições sejam relevantes pra grupos sociais. Quero dizer com isso, diversidade da sociedade. Numa cidade como Campinas, onde há um milhão de habitantes, e isso significa que poucos são de Campinas, boa parte é de outras partes do estado, do país; então, como se lida com isso? Com essa diversidade? Aqui em Campinas há uma Associação de Mineiros que é fortíssima. Tem comunidades de portugueses etc. Outro dia fui colocar a placa do meu carro e, como tenho um apartamento aqui em Campinas, dei

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o endereço daqui. O camarda perguntou se eu era bambi. Eu disse que não, e isso porque eu não havia dito uma palavra. Porque estou dizendo isso? É um exemplo de como as pessoas não se identificam com o lugar onde vivem. Ele não é daqui, com certeza.

RV – E como vão se interessar em preservar qualquer coisa da cidade? Não vão.PPF – É exatamente isso que estou dizendo. Não adianta dizer que tal coisa é passado, a glória de Campinas. Se as pessoas não se identificam.... Então, o que acontece? A instituição precisa mostrar que o que é de fora também está lá. “Olha, você que é de Minas também está aqui na cidade, na nossa instituição”. Se a pessoas tem características próprias, também têm que estar presente na instituição de memória. A pessoa precisa se reconhecer.

RV – Como se faz isso?PPF – Existem experiências internacionias e o grande aconselhamento da Unesco pra essas instituições de patrimônio é que sempre façam, na gestão do bem cultural que está nas suas mãos, uma conexão com os grupos que representam a comunidade do local onde esse museu ou centro de memória atuam. Isso num sentido amplo, pode ser um bairro, os visitantes. Depende do lugar. Tem que mostrar que essas pessoas interagem na gestão do órgão. Não é tarefa fácil, porque nossa estrutra administrativa não dá muito campo pra isso. Por exemplo, eu digo que incluamos os índios na tal gestão. Isso eu trouxe da vivência na Inglaterra, onde, num congresso, por exemplo, numa mesa redonda, havia, vamos supor, um doutor, um mestre, um graduando e um catedrático. Se se vai falar sobre vestígio arqueológico, precisa ter um índio à mesa que fale o que ele acha daquele vestígio. Ele pode dizer que a pintura rupestre é do avô dele. Essa é a visão dele e é importante. Isso está pouco desenvolvido no Brasil. Tem que incluir pessoas diferentes e perguntar o que é, pra ela, arte e memória. O que ela gostaria de ver representado ali.

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RV – No Centro Cultural São Paulo, na Rua Vergueiro, tentaram levar o pessoal do hip-hop pra lá, dar um espaço. Eles foram, tomaram conta do espaço e ultrapassaram esse espaço. Os representantes de outras manifestações culturais se sentiram invadidos, incomodados coma bagunça, a instituição acabou retrocendendo. Foi a tentativa de uma pessoa, não de uma gestão.PPF – Vocês têm razão. As politicas estruturais têm que tornar essas tentativas viáveis, porque senão, qualquer funcionário que não se sinta parte do negócio pode reclamar. Você tem numa mesma reunião um representante da comunidade negra, dos mineiros e outras e, se não está tudo claro e estruturado, os funcionários podem achar que eles é que devem decidir questões. Isso é natural que ocorra. Tem que haver uma estrutura de Conselho, por exemplo. Não pode ser uma decisão só da instituição, porque pode até ajudar, mas também pode não dar certo. Tem que haver um órgão gestor com pessoas da comunidade. Não pode ser uma vontade individual, é uma questão de política pública. Não posso ser pessimsita, acho que já houve uma melhora grande nessa questão, no mundo e no Brasil. A gente sempre tem a tendência de ver os problemas do momento, mas em relação há 30 anos atrás, já melhorou muito. A questão de preservação patrimonial e ambiental, no mundo, melhorou muitíssimo. Na época da ditadura não havia nenhuma preocupação com a preservação ambiental nem cultural. Quando o final da ditadura foi se aproximando, começaram a vigorar as leis que obrigavam a fazer levantamento ambiental e cultural, que está dentro do ambiental. Por exemplo, vai ser feita uma estrada. Certo, o que precisa ser feito? Um levantamento ambiental. Onde vai passar essa estrada? O que vai ser afetado? É uma política compensatória. Ora, isso não existia aqui! Tanto é que se pode ver, lá em Angra dos Reis, no Rio de Janeiro, fizeram a estrada Rio-Santos. Expulsaram pessoas, comunidades indígenas, comunidade quilombola. Não havia absolutamente nada que os protegesse. Não havia nenhum tipo de política nesse sentido. Hoje, não. Hoje se vai ser feita

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qualquer estrada, qualquer obra, tem que fazer levantamentos antes, em nível federal, estadual e municipal. São legislações separadas. Cada cidade pode decidir as coisas de um jeito ou outro, pode fazer propostas, sugerir que os órgãos públicos incluam pessoas da comunidade nas decisões. Isso é possível hoje em dia. Já melhorou muito, mas acho que o caminho, o grande desafio, é incluir nos órgãos de gestão a diversidade de grupos sociais. Porque assim, você consegue fazer com que as pessoas se envolvam e façam as coisas, não é uma só pessoa tomando decisões.

RV – E muitas vezes o próprio gestor discorda da opinião desses representantes sociais.PPF – Seguramente. Até por que cada um pensa de uma maneira.

RV – Em Ribeirão, o Arquivo Público e Histórico esta em uma casa alugada, sem infraestrutura. Precisa pedir cada pasta, cada grampo pra a prefeitura. Não tem autonomia e não está vinculado a uma instituição, como, por exemplo, uma Universidade. Parece que a Associação de Amigos do Arquivo vai ser reativada depois de um período curto de estagnação. Você sugere então, que convites sejam feitos aos diversos grupos sociais da cidade pra que haja envolvimetno da comunidade nos interesses de conservação e preservação do Arquivo. Maravilha! E isso não gera brigas demais? PPF – Chamar representantes dos evangélicos, umbandistas, católicos, negros.

RV – Isso é, à primeira vista, interessante, mas pode ser bem dificil chegar a um consenso.PPF – Tem que ser criada uma estrutura com bases legais. Um Arquivo pode ter um Conselho no lugar de uma Associação. O Brasil tem uma das sociedades mais desiguais do mundo. Essa desigualdade gera uma separação. Por exemplo, numa associação de arquivo, pode ser que só participe uma pequena elite. A classe média não tem condições econômicas de estar muito preocupada com o assunto. Essa distânica

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faz com que só a elite se preocupe, mas não por serem da elite. Outras comunidades menores – quilombola, indígena etc -, não partcipam e quem acaba representanto a comunidade toda são os “donos da cidade”, os “quatrocentões”, os fazendeiros. É um problema que, no Brasil, é mais grave que em outros lugares e torna a resolução mais difícil. Se não houver políticas públicas com mecanismos obrigatórios, a elite não sai desses lugares de representação. RV – Falando agora sobre produção de conhecimento técnico, de pesquisa, feita por parte do corpo de funcionários de casas de guarda, museus? Isso praticamente não existe, não faz parte dessas instituições na maior parte das vezes.PPF – Eu sempre fiquei mais perto da arqueologia, mas o que vejo por ai é que só algumas têm esse incentivo, essa possibilidade de ter funcionários com tempo pra, além das tarefas do dia a dia, investigar o material que está perto dele, na própria instituição. São só as grandes instituições e que, na maioria das vezes, estão ligadas às Universidades. Na USP, no Rio de Janeiro, há museus que são estuturas paralelas, mas ao mesmo tempo, junto das Universidades.

RV – O que mais se vê são pessoas especializadas, poucas, que acabam fazendo o trabalho braçal, tirando o pó, sem tempo ou incentivo pra a função primeira pra qual está ali.PPF – Esse é um ponto, o outro é o seguinte: além de ter que fazer o trabalho braçal, não ter incentivo pra pesquisar, só em algumas instituições os funcionários sem especialização são levado a fazer, pelo menos, a graduação, o mestrado, o que for. Mas tem que ter incentivo, se a pessoa não ganhar mais por isso ou não tiver o curso pago, não vai ter interesse em ter menos tempo, mais cansaço e nenhuma mudança prática e rápida de melhora, vai se perguntar qual a vantagem nesse aprimoramento. Nenhuma. Não vai querer e essa é a realidade em quase todos os estados. As instituições de guarda deveriam ter em comum os critérios de produção de conhecimento sobre seus materiais e com capacitação da mão de obra

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dos próprios funcionários. Só as grandes instituições têm isso. Você pode dizer que esse incentivo é uma idéia irrealista. Eu digo que não, pelo seguinte: nas instituições públicas, a cada cinco anos, há um aumento de, por exemplo, 5 por cento. Isso depõe contra o incentivo. Estão dizendo com isso que o funcinário não precisa ser capacitado, ampliar seus conhecimentos. Mas isso é reversível, tem que mudar as políticas. As pessoas precisam perceber que se beneficiarão com essa capcitação. É difícil, mas não impossível.

RV – Vai dizer pra o funcionário que ele não vai ganhar aqueles 5 por cento daqui a cinco anos, porque, na verdade, antes, ele precisa estudar. É uma mudança na mentalidade.PPF – Não pode ser uma escolha. Tem que vir da estrutura. É a capacitação que vai permitir a mobilidade, não o tempo. Sendo uma questão cultural, precisa afetar todo mundo, sem excessão.

RV – Tem que ser lei, tem que poder cobrar multa até que a mentalidade seja mudada e o próprio funcionário queira ser capacitado. Pra isso, vão anos!PPF – A administração pública não faz isso porque não vai ser multada!Lembrei de uma coisa: estive outro dia com a Amanda Tojal, da Pinacoteca do Estado. Ela trabalha muito com exposições viáveis pra pessoas com deficiências diferentes. Falou sobre objetos que podem ser tocados, pra descoberta pelo tato. Isso é nessa instituição. Agora, voltando à questão de fundo, que é a inclusão das pessoas que não enxergam, que não andam, essa pessoas também têm que estar incluídas no tal Conselho, na Associação.

RV – Hoje há dispositivos instalados em certas exposições em alguns poucos museus que liberam cheiros, umidade, som do vento, a sensação de vento em corredores, cabinas. As pessoas vivem a sensação da exposição. Há sistemas foto-sensíveis que acionam um áudio que, quando alguém para diante de uma obra, pode ouvir uma descrição da obra. Isso

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tem muito em sites, blogs que têm em seu público os deficientes visuais.PPF – Nos esquecemos das crianças às vezes. A altura em que é colocada uma obra, por exemplo. Se estiver acima do campo de visão das crianças, elas nem conseguem ver as obras. RV – Pra cadeirantes, a mesma coisa.PPF – E não cabe a mim, a vocês decidirem tudo. É colocar pessoas de cada grupo pra trabalhar essas questões das diferenças, das diferentes necessidades de acesso, de identificação. A diversidade está lá na constituição. Não se pode permitir manifestações de intolerância. Admite-se a diversidade, com quanto não agrida o outro. Esse é o critério.

RV – Pra viabilizar a normalização. Ficamos todos juntos, mas “sem morder o amiguinho”! É cidadania.PPF – A antropofagia era boa noutra época! Admitimos a diferença da antropofagia, mas não aqui!!!

RV – Pode morder, mas não mastiga!

RIBEIRO, Suzana Barreto; VANNUCCHI, Ana Carla. A trajectory, a history: interview with of Th. Dr. Pedro Paulo Funari. DIALOGUS, v.5, n.1, 2009, p.57-79.

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DOSSIê “RELIGIÃO E RELIGIOSIDADE”

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SACRIFICIUM LAUDIS:BREVE ANÁLISE DO RITO DE SÃO PIO V E DO NOVO

ORDO MISSÆ DE PAULO VI (1969-2007)

Juliano Alves DIAS*

RESUMO: Por este artigo pretende-se lançar luzes sobre a recente ação do papa Bento XVI que, por meio do Motu Proprio Summorum Pontificum, deu plena liberdade à forma ritual tridentina que fora sufocada pelas inovações litúrgicas geradas após o Concílio Vaticano II. Ao longo deste esboço é traçado, brevemente, a raiz histórica das formas litúrgicas tridentina e moderna comparando-as de forma a entender os motivos da publicação deste Motu Proprio.

PALAVRAS-CHAVE: Liturgia Católica; Rito Tridentino; Concílio Ecumênico Vaticano II.

No dia 07 de julho de 2007 o papa Bento XVI publicou o Motu Proprio1 Summorum Pontificum2 sobre a liturgia romana anterior à reforma de 1970, por meio do qual deu liberdade a todos os padres do mundo, independente de autorização de seus superiores hierárquicos, para celebrarem a Missa no chamado rito tridentino. Tal fato foi noticiado pela

1 Motu Proprio é um documento elaborado por uma papa que expressa sua vontade pes-soal.2 Summorum Pontificum é o título do referido Motu Proprio, que em latim significa “dos Su-mos Pontífices”, palavras que iniciam o documento, numa referência a preocupação com a liturgia (culto divino) que os Sumos Pontífices apresentaram em seus pontificados.

* Mestrando em História pela UNESP - Campus Franca, sob orientação do Prof. Dr. Ivan Aparecido Manoel.

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imprensa como um retorno à Missa em latim; no entanto, faltou qualquer formulação histórica sobre tal ato da Santa Sé e das questões envolvidas sobre essa temática.

Por meio das linhas que se seguem busca-se fazer um breve esboço sobre as questões suscitadas diante da atitude do atual Pontífice. Para tanto, primeiro buscar-se-á as raízes históricas que conduziram Roma a esta ação; num segundo momento procurar-se-á mostrar a construção gradual do processo que culminou com o referido Motu Proprio; e por fim, fazer-se-á uma breve comparação entre o rito tridentino e o atual seguido pela Igreja Católica Romana.

As raízes históricas

O ritual de adoração a Deus foi, desde os tempos primitivos do cristianismo, o ponto culminante da vida cristã. Ao fluir da História o culto se configurou em um Sacrificium laudis3, formou-se a Missa. Além de servir ao propósito de agradar a divindade, a Missa serviu, ao longo dos séculos, como fator de unidade e identidade para o catolicismo; mas é também em torno dela que grandes e significantes cismas surgiram no seio da Igreja Católica Apostólica Romana.

Herdeiro do Templo e das Sinagogas4 o culto cristão primitivo tinha já em seu centro a oferta de um sacrifício a Deus (JUNGMANN, 1962)5. Tal sacrifício era feito em diversos ritos regionais durante a Idade Média; fato que foi suplantado com o advento do Concílio de Trento

3 Sacrifício de louvor4 O Templo e as Sinagogas eram, respectivamente, os locais de oferecimento de Sacrifício de animais a Deus e de meditação das Escrituras na religião judaica.5 Em seu livro “A liturgia da Igreja”, Jungmann, padre jesuíta, traça um histórico da liturgia romana explorando suas mudanças ao longo do tempo, permitindo assim, a abertura de caminhos para certas inovações que se dariam no Concílio Ecumênico do Vaticano II ini-ciado no ano de publicação de seu livro, 1962.

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(1543-1565), quando o rito foi unificado em um único Cânon6 compilado e outorgado pelo papa Pio V (1566-1572) com o intuito de consolidar a fé católica e combater o protestantismo que surgira no período em questão e que tinha uma outra visão do culto cristão, não como sacrifício, mas como memória (XXXIX ARTIGOS DE RELIGIÃO)7.

O rito católico, o Cânon Romano, surge unificado8 em meados do século XVI com fins de manter inalterada a doutrina cristã-católica, preservando-a de interpretações não ortodoxas. Para tanto, o latim, língua oficial da Igreja Católica, permaneceu como fator de preservação contra elementos estranhos e a proibição de alterar qualquer mínima parte do rito foi imposta sob o peso de possíveis sansões (PIO V, QUO PRIMUM TEMPORE)9. Antes do Cânon, o sacerdote oferecia a Deus pão e vinho, frutos do trabalho humano e depois, segundo a fé católica, rezava o Canôn, Versus Deum10, oferecendo a Deus in persona Christi11 o corpo, o sangue, a alma e a divindade de Cristo, confirmando assim, a fé na Transubstanciação12 (CIC, 1951). 6 Uma regra geral donde se inferem regras especiais. O modelo único para a realização da Missa.7 Para o protestantismo a missa é apenas um memorial da paixão de Cristo e não um sacri-fício como entendem os católicos, tal fato é bem elucidado nos XXXIX Artigos de Religião, obra protestante do século XVI que explana a nova fé anti-papal do período citado.8 Vale ressaltar que sua origem remonta ao tempo de São Gregório Magno (590-604), e que no século XVI este rito de Roma foi imposto a todo o mundo católico.9 Na bula papal, Quo primum tempore, o papa Pio V impõe o Cânon Romano e proíbe que a Missa seja celebrada de outra forma, condenando com excomunhão quem o deso-bedecesse. 10 Versus Deum, de frente para Deus, dando as costas à assembléia reunida para signifi-car que ele, o padre, ia à frente do povo para oferecer em seu nome, do povo, um sacrifício a Deus.11In persona Christi, o sacerdote oferece o sacrifício de Cristo, como se o próprio Cristo o oferecesse; naquele momento, para a fé católica, o sacerdote é mero instrumento da graça, Jesus Cristo se faz presente como vítima, cordeiro e sacerdote durante a Missa (CATECISMO DA IGREJA CATÓLICICA, CIC, 1993).12 Doutrina Católica, segundo a qual o pão e o vinho antes oferecidos como fruto do trabalho humano, por meio da efusão da terceira pessoa da Trindade, o Espírito Santo, uma das três manifestações de Deus (Pai, Filho e Espírito Santo), mudam sua substância,

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Dessa forma o culto cristão-católico encerra em si o centro da vida do fiel. A Missa adquire um patamar de instrumento para manter imaculada a fé e agradar a divindade por meio de um sacrifício, além de conter em seu seio toda a essência da filosofia da história da Igreja Católica, na qual a Humanidade, criada por Deus, cai em desgraça frente ao seu Criador, por meio do pecado, e é resgata por meio do sacrifício divino de Cristo, para pagar a dívida do pecado. Em cada celebração da Missa, o católico revive essa interpretação da História, na qual se refaz o sacrifício que Cristo fez na cruz, no altar, uma História teleológica, pois se oferece esse sacrifício até que o próprio Cristo retorne e julgue o mundo, pondo fim a ele (Concílio de Trento, 1545-1563).

Assim, o culto expressa o adágio: lex orandi, lex credenti, “a lei da oração é a lei da fé” (CIC, 1993); ou seja, aquilo que se professa no ritual religioso é aquilo que se crê. Portanto, a Missa sempre foi também a exterioridade da fé católica, na qual se coloca em símbolos, gestos, palavras e ações a representação daquilo que se acredita.

A Missa de São Pio V, institucionalização do culto já existente, permaneceu inalterada em sua essência, com poucos acréscimos até

1969, quando, após o Concílio Ecumênico Vaticano II (1962-1965), entrou em vigor, de forma experimental, uma nova forma para a

celebração do culto católico, promulgada pelo papa Paulo VI (1963-1978).

Passados quarenta anos daquele Concílio e mais de três décadas do novo Ordo Missæ, “Ordinário da Missa” de 1969, observa-se a quantidade e as significantes mudanças processadas no final do breve século XX no mundo e no interior da Igreja Católica Apostólica Romana.

Nesse sentido, nota-se que o novo ritual não foi plenamente aceito e muito menos o referido Concílio Vaticano II, as inovações de ambos trouxeram discordâncias internas e o novo Ordo Missæ tornou-se para sempre, em carne, sangue, alma e divindade de Cristo, segunda pessoa da Trindade (CIC, 1993).

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o epicentro do último cisma da Igreja no século passado. O Vaticano II com suas pretensões ecumênicas e o novo ritual com suas simplificações trouxeram separação e conflito, onde se pretendia união gerou-se divisão, onde se pretendia facilidades gerou-se dificuldades (DIAS, 2005)13.

Um grupo de bispos e padres liderados por Mons. Marcel-François Lefebvre (1905-1991)14 quis permanecer fiel ao rito de São Pio V e assim se manteve, não celebrando a Missa no novo ritual. Mas, com o passar do tempo, o peso da idade recaiu sobre o referido bispo, e sem ter um sucessor no grau do episcopado para comandar a Fraternidade São Pio X (1969)15, que formara com os padres fiéis ao rito antigo, pretendeu ordenar novos bispos.

Nesse ínterim, é importante destacar que o bispo, de acordo com o direito canônico (art. 377) é eleito e nomeado pelo papa, portanto, um outro bispo não pode sagrar um padre para fazê-lo bispo sem que o papa o determine. Um acordo foi feito em meados de 1988 entre Lefebvre e o Vaticano quando João Paulo II (1978-2005) era papa. Receando uma reviravolta no acordo, Mons. Marcel Lefebvre junto a outros bispos e padres, dentre eles Dom Antônio Castro Mayer, bispo brasileiro, sagrou quatro novos bispos sem o consentimento de João Paulo II.

A reação de Roma foi manter a autoridade da Sé Petrina, com

13 Com o apoio da FAPESP desenvolvemos em 2005 um Trabalho de Conclusão de Curso por meio do qual foi estudada a proposta ecumênica católica feita no Concílio Vaticano II, o que obrigou-nos a detalhar todos os seus dezesseis documentos pastorais e ecumê-nicos, que pretendiam fazer a Igreja mais próxima do mundo moderno e um retorno dos cristãos separados ao seio da Igreja Romana. No entanto, constata-se que novas divisões processaram-se antes mesmo de qualquer retorno a unidade, muito devido ao abuso de interpretações tendenciosas dos documentos conciliares e das inovações feitos na nova Missa (DIAS, 2005).14 Arcebispo francês que por suas convicções e desobediência a Roma foi excomungado em 1988.15 O nome da fraternidade é uma referência a São Pio X, papa que lutou fervorosamente contra o Modernismo, que segundo os tradicionalistas teria entrado na Igreja com o Con-cílio Vaticano II.

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uma carta apostólica intitulada Ecclesia Dei, Igreja de Deus, por meio da qual, o papa João Paulo II, excomungava em 2 de julho de 1988 os bispos sagrantes e os ordenados em 17 de junho do mesmo ano: Mons. Lefebvre, Bernard Fellay, Bernard Tissim de Mallerais, Richard Williamson e Alfonso de Galarreta (Ecclesia Dei, 1988).

Os bispos em questão acreditavam que o Vaticano II constituiu uma quebra na Tradição da Igreja, e que o novo Ordo Missæ de Paulo VI representava uma protestantização da Missa, ignorando o sacrifício e a transubstanciação, transformando-os em memória. (30 GIORNI, nº4, 1996). Suas intenções, portanto, eram permanecerem fiéis à Igreja, ao papa e à doutrina católica, mesmo que para isso fosse necessário desobedecer às ordens de Roma.

Desde o processo de excomunhão, inúmeras tentativas foram realizadas para uma reunificação dos seguidores de Lefebvre, hoje liderados por Mons. Fellay, com Roma. O atual Pontífice Bento XVI (2005- ) foi um dos líderes do processo de reaproximação entre as partes em questão quando era o prefeito da Congregação para Doutrina da Fé. O então cardeal Ratzinger junto a outros membros da Cúria romana demonstraram suas restrições ao rito de Paulo VI e suas afeição pelo rito de São Pio V (RATZINGER, 1996)16. O cardeal prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, celebrou inúmeras vezes e em diversas comunidades ligadas aos ideais de Lefebvre a Missa no Ritual de São Pio V, quando o mesmo já estava quase esquecido pelo restante do mundo católico que, por sua vez, transformara o rito de Paulo VI em regra.

Ratzinger e outros bispos da Cúria conseguiram fazer com que muitos lefebvristas retornassem à comunhão com Roma, dando-lhes o direito de celebrar a Missa no Rito Tridentino e fazendo com que aceitassem alguns documentos do Vaticano II, como o que aconteceu no Brasil com

16 Em seus livros, Der Geist der Liturgie (Introdução ao espírito da liturgia) (1999) e O sal da Terra, (1996) o Cardeal Ratzinger expressa sua admiração pelo Rito de São Pio V, pleiteando para ele um lugar de destaque na Igreja Romana.

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a Administração Apostólica São João Maria Vianney, reintegrados à Sé vaticana por meio de um acordo entre o papa João Paulo II e Dom Licínio Rangel, sucessor de Dom Antônio Castro Mayer17 em Campos no Rio de Janeiro.

O fato que se coloca então é o processo que teve início no final do pontificado de João Paulo II, quanto este escreveu sua carta encíclica Ecclesia de Eucaristia (2003), por meio da qual ressaltou o sentido sacrificial da Missa e junto à encíclica encomendou à Congregação do Culto Divino um documento que combatesse os abusos da Missa de Paulo VI e impusesse restrições a este rito, o Redemptionis Sacramentum (2004). Já com o início do Pontificado de Bento XVI em abril de 2005 um novo horizonte se abriu para os chamados tradicionalistas, de modo particular para a Fraternidade Sacerdotal São Pio X, pois o papa Ratzinger já fizera inúmeras demonstrações de sua afeição pelo alcunhado “rito antigo”.

Assim que eleito, um novo ânimo assolou os seguidores de Lefebvre, e poucos meses após a Missa de abertura de seu pontificado, o papa reunira-se em Castel Gandolfo, a residência de verão dos papas, longe dos muros do Vaticano, com Mons. Bernard Fellay, sucessor direto de Lefebvre, e uma nova fase de acordos se abriu, gerando grandes expectativas das alas mais conservadoras da Igreja Católica18.

Diante de tal perspectiva histórica pretende-se estudar os dois ritos católicos, comparando-os e procurando entender os motivos do cisma, se o rito usado desde 1969 contraria de fato a tradição católica e se é um perigo para a fé romana, se realmente detém elementos protestantes.

Para tanto, usar-se-á como fonte o Missal Tridentino de 1570, e o novo Ordo Missæ de Paulo VI de 1969; bem como, os catecismos

17 Um dos bispos sagrantes unidos a Mons. Lefebvre que também fora excomungado por João Paulo II. 18 Em 29 de agosto de 2005, o porta-voz da Sala de Imprensa da Santa Sé, Joaquín Navarro-Valls anunciou que no mesmo dia o papa Bento XVI se encontrou com Bernard Fellay no Palácio Apostólico de Castel Gandolfo.

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formulados após os Concílio de Trento (1545-1563) e o Vaticano II (1962-1965), tendo por objetivo comparar suas notificações sobre o culto católico e seu significado. Servem de auxílio nessa pesquisa diversos documentos como a carta do Cardeal Ottaviani19 a Paulo VI por ocasião da promulgação do novo ritual da Missa; bem como, os documentos conciliares de Trento e do Vaticano II que tangem a questão litúrgica e suas respectivas reformas. Uma vasta bibliografia ainda oferece o respaldo histórico e teórico para este trabalho.

Um processo gradual

Somente no terceiro ano do pontificado de Bento XVI é que foi publicado o Motu Proprio Summorum Pontificum dando plena liberdade à liturgia romana anterior à reforma de 1970; o que expressa bem como uma instituição de cerca de dois mil anos procede em relação ao tempo. Diante disso alguns dados foram coletados e são apresentados abaixo.

Até o momento, foi possível destacar em nossos estudos algumas ações recentes por parte da Santa Sé que lançam luzes sobre tal problemática. Uma primeira atitude diz respeito à Congregação para o Culto Divino, com seu então prefeito Cardeal Francis Arinze que em 17 de outubro de 2006 escreveu a todas as conferências episcopais do mundo ordenando uma mudança, na tradução do Novus Ordo:

Em julho de 2005, esta Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, por acordo com a Congregação para a Doutrina da Fé, escreveu a todos os Presidentes das Conferências Episcopais para requisitar sua opinião ponderada acerca da tradução, para os diversos vernáculos, da expressão pro multis na fórmula para

19 Na referida carta o cardeal Ottaviani, na época prefeito do Santo Ofício, que após o Concílio Vaticano II passou a se chamar Congregação para Doutrina da Fé, posiciona-se contrariamente ao novo rito da Missa e elenca ao papa Paulo VI as possíveis falhas do novo rito.

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a consagração do Preciosí ssimo Sangue durante a celebração da Santa Missa (ref. Prot. N. 467/05/L de 9 de julho de 2005). As respostas recebidas das Conferências Episcopais foram estudadas pelas duas Congregações e um relato foi feito para o Santo Padre. Sob a direção dele, esta Congregação agora escreve a Sua Eminência/Excelência nos seguintes termos:1. Um texto correspondente às palavras pro multis, transmitido pela Igreja, constitui a fórmula em uso pelo Rito Romano em Latim desde os primeiros séculos. Nos últimos 30 anos aproximadamente, alguns textos em vernáculo aprovados contiveram a tradução interpretativa “por todos”, “per tutti”, ou equivalentes. [...] De acordo com a Instrução Liturgiam Authenticam, deve haver o esforço para uma maior fidelidade aos textos latinos contidos nas edições típicas.As Conferências dos Bispos daqueles países onde a fórmula “por todos” ou sua equivalente está atualmente em vigor são, portanto, requisitadas a realizar a catequese necessária aos fiéis sobre essa questão nos próximos um ou dois anos, para prepará-los para a introdução de uma tradução vernacular precisa da fórmula pro multis (ou seja, “por muitos”, “per molti”, etc.) na próxima tradução do Missal Romano que os Bispos e a Santa Sé aprovarem para uso em seu país. (MONTFORT, 18 de novembro de 2006).20

Uma segunda ação, por parte da Santa Sé, vem da Congregação para o Clero com a ereção do Instituto Bom Pastor, que tem por meta celebrar exclusivamente a Missa Tridentina:

Na manhã do dia 8 de setembro de 2006 [...] o cardeal Dario Castrillon Hoyos, prefeito da Congregação para o Clero e encarregado da Comissão Ecclesia Dei, assinou o decreto de ereção do instituto de direito pontifical do Bom Pastor. Trata-se de uma sociedade de vida apostólica dependendo ao mesmo tempo da Comissão Ecclesia Dei e da Congregação para os Institutos de Vida Consagrada e as Sociedades de

20 A fonte aqui citada está disponível no site da Associação Cultural Montfort, que consti-tui-se como um grupo de intelectuais católicos, pro-tridentidos e ardentes críticos do Con-cílio Vaticano II com suas diversas inovações.

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Vida Apostólica. Nesse decreto, o cardeal Hoyos aprovou os estatutos do novo instituto que tem por superior geral um padre excluído da Fraternidade São Pio X, o radiante padre Philippe Laguérie. Para fontes do Vaticano, a novidade reside no fato de que “o próprio Bento XVI desejou esse procedimento” no qual “o missal tradicional de São Pio V não é um missal a parte, mas, uma forma extraordinária do único rito romano”. O Vaticano, como entre os membros do novo instituto, insiste em dizer que “este acordo corresponde às solicitações outrora feitas por Dom Lefebvre”, separado de Roma em 1988. (MONTFORT, 08 de setembro de 2006).

Já, mais recentemente, uma nova ação do papa Bento XVI chamou atenção da impressa internacional, quando o mesmo divulgou em 13 de março de 2007, a Exortação Apostólica pós-Sinodal Sacramentum Caritatis, na qual o pontífice recomendou o uso do latim e do canto gregoriano na liturgia:

[42] [...] em liturgia, não podemos dizer que tanto vale um cântico como outro; a propósito, é necessário evitar a improvisação genérica ou a introdução de géneros musicais que não respeitem o sentido da liturgia. Enquanto elemento litúrgico, o canto deve integrar-se na forma própria da celebração; consequentemente, tudo — no texto, na melodia, na execução — deve corresponder ao sentido do mistério celebrado, às várias partes do rito e aos diferentes tempos litúrgicos. Enfim, embora tendo em conta as distintas orientações e as diferentes e amplamente louváveis tradições, desejo — como foi pedido pelos padres sinodais — que se valorize adequadamente o canto gregoriano, como canto próprio da liturgia romana. (S.C. n. 41)[62] [...] A fim de exprimir melhor a unidade e a universalidade da Igreja, quero recomendar o que foi sugerido pelo Sínodo dos Bispos, em sintonia com as directrizes do Concílio Vaticano II: exceptuando as leituras, a homilia e a oração dos fiéis, é bom que tais celebrações sejam em língua latina ... (S.C. n.62)

Por fim, algo ocorrido no Brasil, na V Conferência Episcopal

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da América-latina e do Caribe, vem de encontro a este estudo. Uma intervenção do cardeal. Darío Castrillón Hoyos, presidente da Pontifícia Comissão Ecclesia Dei, em 16 de maio de 2007 deixou claro as intenções do papa atual no que tange a questão litúrgica, pois, segundo Hoyos, foi constatado em todo o mundo, de um modo particular na juventude, um aumento de interesse pelo rito tridentino:

Por estas razões o Santo Padre tem a intenção de estender a toda a Igreja latina a possibilidade de celebrar a Santa Missa e os Sacramentos segundo os livros litúrgicos promulgados pelo Beato João XXIII em 1962. Por esta liturgia, que nunca foi abolida, e que, como dissemos, é considerada um tesouro, existe hoje um novo e renovado interesse e, também por esta razão o Santo Padre pensa que chegou o tempo de facilitar, como o quis a primeira Comissão Cardinalícia em 1986, o acesso a esta liturgia fazendo dela uma forma extraordinária do único rito Romano. Há algumas boas experiências de comunidades de vida religiosa ou apostólica erigidas pela Santa Sé recentemente que celebram em paz e serenidade esta liturgia. Em torno delas se congregam assembléias de fiéis que freqüentam estas celebrações com alegria e gratidão. As criações mais recentes som o Instituto de São Felipe Neri em Berlim, que funciona como um Oratório e se fez presente também, com boa acolhida, na Diocese do Tréveris; o Instituto do Bom Pastor de Burdeos que reúne sacerdotes, seminaristas e fiéis, alguns saídos da Fraternidade São Pio X. Estão muito adiantados os trâmites para o reconhecimento de uma comunidade contemplativa, o Oásis de Jesus Sacerdote, de Barcelona. (V CELAM, 2007)

Esses acontecimentos tornam-se claros e interligados apenas quando se tem em mente a promulgação do referido Motu Proprio. Sendo assim, constata-se que a primeira questão favorece este estudo no sentido de que se propõe uma “reforma da reforma”, o trabalho realizado pela Congregação para o Culto Divino elucida a realidade litúrgica da Igreja Católica, em que, no ímpeto das reformas conciliares oriundas do Vaticano

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II, houve uma perda de referência, pois, nota-se, que algumas traduções tornaram-se traições à tradição.

O fato de ter-se traduzido pro multis (por muitos) para uma versão não-literal: por todos, trouxe consigo um novo sentido interpretativo da Doutrina da Salvação, dando a entender que todos serão salvos por meio do sacrifício de Cristo, o que abre margem para ignorar qualquer ação pessoal na busca pela graça salvífica.

Tal questão evoca o adágio: lex orandi, lex credenti, ao rezar de uma determinada forma abriu-se caminho para uma nova forma de interpretação e de crença. De modo significativo, este, tornou-se o ponto culminante para a ação de Arinze, o que parece ser o início de uma reforma da reforma.

Quanto ao segundo ponto, a ação de Bento XVI em criar o Instituto Bom Pastor preservando o direito de se celebrar a Missa Tridentina, percebe-se uma continuação da reaproximação com os discidentes Lefebvristas e mais uma crítica ao atual rito paulino, pois mantém-se a aqueles que desejarem assistir o rito Católico sem as reformas conciliares.

Já o terceiro ponto, as recomendações de Bento XVI, apoiadas no Sínodo dos Bispos que decorreu de 2 a 23 de Outubro de 2005 no Vaticano e na interpretação oficial do II Concílio Ecumênico do Vaticano, esboçam a vontade pessoal do atual Pontífice. Ao recomendar o Canto Gregoriano e o Latim na liturgia recupera-se duas características marcantes do rito tridentino que praticamente desapareceram no Novus Ordo.

Por fim, o quarto aspecto levantado nesse breve esboço expressa bem em que sentido Bento XVI e a Cúria Romana vinham trabalhando, o que comprova as intenções de um papa preocupado com as questões internas da Igreja. Sua experiência, por anos, como principal defensor da fé transparece em suas atuações no campo da liturgia, a liberação do rito tridentino para qualquer padre que nele queira celebrar sem consentimento de seu bispo expressa medidas que num passado não muito distante

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seriam chamadas de “ultramontanas”.

Ivan Manoel lembra que de 1800 a 1960 a Igreja Romana assumiu uma política de centralização e tradicionalismo, onde Roma figurava como a solução para os problemas enfrentados pela Igreja. Segundo Manoel tal postura caracterizava-se por:

Em uma definição bastante esquemática, entende-se por catolicismo romanizado ou ultramontano aquele catolicismo praticado de 1800 a 1960, nos pontificados de Pio VII a Pio XII, informado por um conjunto de atitudes teóricas e práticas, cujo eixo de sustentação se apoiava em: 1) reforço do tradicional magistério, incluindo-se a retomada do tomismo como única filosofia válida para o cristão e aceitável pela Igreja; 2) condenação à modernidade em seu conjunto (sociedade, economia, política, cultura); 3) centralização de todos os atos da Igreja em Roma, decretando-se para isso, a infalibilidade do Papa, no Concílio Vaticano I, em 1870, de modo a reforçar a hierarquia, onde o episcopado foi bastante valorizado, submetendo todo o laicato ao seu controle; 4) adoção do medievo como paradigma de organização social, política e econômica. O objeto dessa política era, de imediato, preservar a instituição em face das ameaças do mundo moderno e, a médio e longo prazo, recristianizar a sociedade, de modo a recolocar a Igreja como centro do equilíbrio mundial (MANOEL, 2004, p.45).

O que se processou após o Vaticano II, de modo particular no pontificado de Paulo VI gerou o rompimento de tal política. No entanto, as recentes atitudes oriundas da Santa Sé expressam características que tendem a um retorno de aspectos ultramontanos, como é o caso da permissão que se pretende a dar a qualquer padre para celebrar no rito tradicional sem autorização especial do bispo local.

Dessa forma, é necessário destacar que tais fatos enriquecem este estudo, na medida em que iluminam o caminho seguido por Roma na questão litúrgica atual, ao mesmo tempo em que propiciam uma visualização prévia do conflito existente na Igreja Católica Apostólica

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Romana no que tange às interpretações e aplicações do Vaticano II.

Um breve olhar sobre os dois ritos

Diante desses acontecimentos, há de se ressaltar que na reforma litúrgica pós-Vaticano II veio a tona outras versões para a “Oração Eucarística”21 entre elas, uma conhecida como “número II”, mais curta e simples, sendo mais utilizada pelo clero, o que acabou suplantando o uso da antigo Cânon romano, doravante chamado “Oração Eucarística I”.

O rito tridentino destaca o caráter sacrificial do culto cristão-católico, no qual, o sacerdote celebra a Missa oferecendo a Deus, pelo povo, um sacrifício; tal ato é expressado por uma postura, gestos e símbolos próprios, como o fato do celebrante estar à frente do povo, como seu guia, dando-lhes as costas e se voltando para um crucifixo, com o altar preso à parede em direção ao oriente.

Já no rito pós-conciliar o sacerdote está voltado para o povo ao redor de uma mesa e não de um altar sacrificial, transparecendo muito mais uma idéia de ceia, de refeição e de assembléia reunida, conceitos vistos em celebrações protestantes da memória da última ceia feita por Cristo.

Frente a tal mudança de simbologia na prática litúrgica, nota-se uma variação de significado. Um dos pontos que se destaca é a possível contradição entre o sacrifício e a ceia dos dois ritos e suas conseqüências para o mundo católico e a história da Igreja. A ceia era apenas mais uma parte do rito, expressada no momento da comunhão, mas não a essência do ritual.

As inovações litúrgicas oriundas do Concílio Vaticano II parecem

21 Parte principal da Missa, na qual há a chamada consagração, por meio da qual os católicos acreditam que a substância do pão e do vinho se convertem em corpo e sangue de Cristo. (CIC, 1993)

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estar em sintonia com certos ideais que ultrapassam as linhas do ecumenismo, quando, no anseio de manter diálogo com os não-católicos, de modo particular os protestantes, buscou-se introduzir elementos estranhos ao culto de então, como a prioridade dada ao sentido de ceia.

Abaixo, imagens das duas missas, a primeira, de São Pio V, que evoca o caráter sacrificial, a segunda, de Paulo VI, que enfatiza o sentido de ceia:

FIGURA I22 FIGURA II23

A carga simbólica destas imagens vai além da produção e do consumo humano de símbolos, pois estas trazem dentro de si um significado para uma postura de vida. Mais uma vez o princípio católico da lex orandi, lex credenti se impõe para a interpretação dos imaginários que circundam as duas formas do rito latino da Igreja Católica. O imaginário oriundo do Concílio Ecumênico Vaticano II resignificou o centro da identidade do catolicismo romano. Diante de tais circunstâncias deve-se levar em conta o que pensa Baczko sobre o imaginário social, pois é possível ser aplicado aqui ao que poderíamos chamar de “imaginário católico”:22 Missa tridentina rezada em Campos, na Administração Apostólica São João Maria Vianey, disponível em: http://www.adapostolica.org/modules/xcgal/displayimage.php?pid=436&album=lastup&cat=6&pos=69.23 Missa celebrada em Franca – SP, pelo então Bispo Diocesano, dom Diógenes Silva Matthes, disponível em: http://www.diocesefranca.org.br/boletim/ago2004/bd-noticia2a.html

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O imaginário social é, deste modo, uma das forças reguladoras da vida coletiva. As referências simbólicas não se limitam a indicar os indivíduos que pertencem à mesma sociedade, mas definem também de forma mais ou menos precisa os meios intelegíveis de suas relações com ela, com as divisões internas e as instituições sociais [...]. O imaginário social [...] torna-se o lugar e o objecto dos conflitos sociais. (BACZKO,1985, p.310).

Dessa forma, num sentido de troca as práticas são guiadas pelas representações (lex orandi, lex credenti) e as ações, por sua vez, geram novas representações. O Vaticano II e a nova forma ritual oriunda dele podem ser entendidas como uma nova representação na busca de aproximação com o mundo, agora chamado de moderno, e com os cristãos não-católicos: Mons. Annibale Bugnini, Secretário da Comissão para elaborar o Novo Ordinário, declarou o seu “desejo de eliminar [do futuro Rito em elaboração] cada pedra que pudesse se tornar ainda que só uma sombra de possibilidade de obstáculo ou de desagrado aos irmãos separados”24 (BUGNINI, 11, março de 1965).

A questão que se coloca então é: quais as conseqüências de se abrir mão de símbolos católicos, considerados como pedras pelo então secretário Bugnini, e injetar na nova forma ritual significados não-católicos? A resposta parece óbvia: crise e perda de identidade. Se se queria aproximação e unidade com os não-católicos, isso não se realizou na prática, mas o resultado foi divisão interna, divisão esta oriunda de uma nova cultura religiosa.

Baseando-se em Geertz é possível entender cultura como comportamento humano, visto através de ações simbólicas, constituindo, então, teias de relações e, sua análise, uma “...procura do significado” (GEERTZ, 1978, p.15), Diante disso, pode-se constatar uma nova rede

24 “Irmãos separados” é uma expressão que teve origem no Vaticano II para se referir aos ortodoxos e protestantes oriundos de cismas no passado da Igreja Católica.

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de significado em antigos símbolos. A Missa, Eucaristia, é abundante em significados, o que gera o problema de se aderir a um em detrimento de outro, anulando, dessa forma, os demais. Ao se enfatizar o caráter de ceia obscureceu-se o sentido sacrificial.

Tal perspectiva simbólica fez da Missa uma reunião de fiéis para um banquete, o sacerdote já não se volta para a divindade, mas para o povo e descobre no presbitério uma espécie de palco e atrás de uma mesa se depara com um público ansioso por novidades. A Missa atual é, também, a expressão dessa ansiedade característica do mundo moderno, do mundo que gerou o Concílio Vaticano II.

“Uma vez que o comportamento humano é visto como ação simbólica...” (GEERTZ, 1978, p.20), a Missa, antes a lei da oração que moldava a prática, passou também a ser reflexo, ser moldada por uma nova teia de significados. Na busca de diálogo com não-católicos e com o mundo moderno a Igreja se apropriou de elementos que geraram conflitos. Nesse sentido, entende-se por apropriação, o que propõe Chartier: esta “[...] visa a elaboração de uma história social dos usos e das interpretações, relacionados às suas determinações específicas que os constroem.” (CHARTIER, 1995, p.185).

É possível notar que ao longo de sua existência a Igreja incorporou e manipulou símbolos, como é o caso do disco solar, símbolo do Sol Invíctus em Roma, resignificado como símbolo de santidade nos cristãos canonizados, a aréola na cabeça das imagens dos santos católicos; o mesmo não se pode dizer da Missa atual, esta por sua vez é expressão de uma manipulação simbólica interna. Se houve apropriação de símbolos externos à Igreja nos últimos quarenta anos, o movimento parece ter sido inverso: não se manipulou o símbolo alheio em benefício próprio, resignificando-o, mas, manipulou-se o patrimônio interno para uma aproximação com o externo, por meio de um hibridismo.

Uma luta de representações feita de forma inversa em que a hibridação, “[...] processos socioculturais nos quais estruturas ou práticas

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discretas, que existiam de forma separada, se combinam para gerar novas estruturas, objetos e práticas” (CANCLINI, 2005, p.XIX), conduziu a um limite: a identidade, antes construída de forma híbrida, agora em crise por negar um centro norteador mantido intacto por quase dois mil anos. Embora a história da Igreja Romana seja marcada por uma constante hibridação, o caráter sacrificial da Missa nunca havia sido negociado nas relações de troca com outras culturas.

Ao se considerar que a “[...] história dos movimentos identitários revela uma série de operações de seleção de elementos de diferentes épocas articulados pelos grupos hegemônicos em um relato que lhes dá coerência, dramaticidade e eloqüência” (CANCLINI, 2005, p.XXIII) chega-se próximo à origem da crise: uma falta de coerência entre os elementos simbólicos incorporados, pois, aquilo que fora combatido por séculos foi imposto em décadas.

O esquecimento e o abandono da língua latina nas celebrações litúrgicas católicas expressam bem essa crise. A busca por um melhor entendimento popular do rito através do uso da língua nacional no culto católico conduziu a Igreja a um fenômeno de perda do sentido de unidade que fazia do latim uma espécie de língua “nacional” do catolicismo e ao mesmo tempo de perda do sentido místico, pois a liturgia deixou de conduzir a um mistério, a algo não racional.

Independente do fator religioso vale ressaltar que essa crise identitária refere-se a uma crise simbólica, cultural que não se restringe à Igreja Católica, mas ao próprio homem moderno, muito arraigado à vida cotidiana, material, rotineira e acelerada, mas ansioso por produzir e consumir símbolos, gerar cultura, pois:

Não dirigido por padrões culturais – sistemas organizados de símbolos significantes – o comportamento do homem seria virtualmente ingovernável, um simples caos de atos sem sentido e de explosões emocionais, e sua experiência não teria praticamente qualquer forma. A cultura, a totalidade acumulada de tais padrões, não é apenas um

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ornamento da existência humana, mas uma condição essencial para ela – a principal base de sua especificidade. (GEERTZ, 1978, p.58).

Passados quarenta anos do Concílio Vaticano II e mais de três décadas de utilização do novo rito da Missa é raro qualquer menção específica na historiografia recente da Igreja sobre o andamento de tal tema. A maioria dos livros de História da Igreja traça um levantamento de fatos até o Vaticano II (1962-1965), o apresentam como uma espécie de revolução interna da estrutura eclesiástica25 sem, contudo, aprofundar o tema ou mostrar as crises da Igreja decorrentes deste.

Frente às questões levantadas, procurou-se, nesse esboço, fazer uma breve introdução a um estudo analítico para esclarecer as nuanças das duas formas do rito latino, suas possíveis disparidades e as conseqüências disso para cristandade católica e para o mundo que acompanha com atenção o que propõe e sugere uma instituição que sobreviveu aos séculos e se tornou o legado de uma grande parcela da história da humanidade.

As reflexões sobre as formas rituais aqui presentes não são novidade dentro do seio do catolicismo como foi possível observar nas raízes históricas das mesmas. O ato de Bento XVI, ao promulgar o Motu Proprio Summorum Pontificum parece estar ligado diretamente com essa crise de identidade. Nesse ínterim, é salutar destacar que no intervalo de três dias após a liberação do Rito Tridentino a Santa Sé, por meio da Congregação para Doutrina da Fé, veio a público reafirmar alguns dogmas católicos, como a afirmação de que a única Igreja de Cristo é a Igreja Católica Apostólica Romana e que os protestantes constituem “comunidades eclesiais”, mas não são “Igreja”26.

25 Isso acontece principalmente quando o(s) autor(es) dos livros são seguidores de algum movimento pós-conciliar, pois tentam fazer do referido Concílio a justificativa para susten-tar suas idéias e ideais, dando ao Vaticano II as mais diversas interpretações.

26 O documento completo da Congregação Para a Doutrina da Fé está publicado no site

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O Pontificado de Bento XVI parece caminhar nesse sentido: num resgate da identidade católica, sem, contudo, reviver o ultramontanismo.

DIAS, Juliano Alves. Sacrificium Laudis: An analysis of the Saint Pius V Rite and the New Ordo Missæ of Paul VI (1969-2007). DIALOGUS, Ribeirão Preto, v.5, n.1, 2009, p. 57 - 79.

ABSTRACT: This article want analyze the new action of pope Benedict XVI: the Motu Proprio Summorum Pontificum giving liberty to the Tridentine rite choked since the inauguration of the new liturgy of Vatican II. This sketch to do the presentation of the starting-poit historical of liturgy in the forms tridentine and modern doing the comparison to understand the motive of publication of Motu Proprio.

KEYWORDS: Catholic liturgy; Tridentine Rite; Second Ecumenical Concil Vatican.

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OS FUNDAMENTOS RELIGIOSOS DA PEqUENA PROPRIEDADE NO PENSAMENTO CATÓLICO: UMA

PERSPECTIVA HISTÓRICA

Sérgio Campos GONçALVES*

RESUMO: Este artigo visa a fornecer uma explicação histórica para a fundamentação religiosa da pequena propriedade no pensamento católico. Isto é, o nosso objetivo é observar panoramicamente a evolução histórica da fundamentação católica da pequena propriedade privada articulando-a a ascensão da sociedade moderna desde o século XIX e ao desenvolvimento da Doutrina Social da Igreja Católica.

PALAVRAS-CHAVE: História das religiões; Pequena propriedade; Pensamento católico

Este artigo visa a fornecer uma explicação histórica para a fundamentação religiosa da pequena propriedade no pensamento católico. Isto é, o nosso objetivo é observar panoramicamente a evolução histórica da fundamentação católica da pequena propriedade privada articulando-a a ascensão da sociedade moderna desde o século XIX e ao desenvolvimento da Doutrina Social da Igreja Católica.

Como se verá, a fundamentação da propriedade no pensamento católico originou-se no contexto das modificações sociais e econômicas resultantes da Revolução Industrial e, também, como resposta à solução socialista que advogava o fim da propriedade privada.

• Historiador, Jornalista e Mestrando em História e Cultura Social na Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP-Franca), sob a orientação do Prof. Dr. Jurandir Malerba.

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Rerum Novarum e a questão Social

De meados do século XIX ao início do século XX, várias questões sociais se tornaram mais sensíveis devido, entre outros fatores, à consolidação da sociedade industrial e à conseqüente proletarização da força de trabalho. Enquanto o triunfo dos industriais fez crescer o número de oportunidades de emprego em fábricas e manufaturas, houve um deslocamento substancial das áreas rurais para as urbanas. O resultado foi o surgimento de uma nova situação trabalhista em que a farta mão-de-obra disponível se submetia a horas de trabalho em compania de máquinas. A situação precária de trabalho não dispensava o trabalho infantil e não dava suporte aos trabalhadores viverem dignamente. Esse contexto foi o ambiente social das transformações da Revolução Industrial nascente. Daí em diante, a organização e as relações de trabalho, o estilo de vida, as formas de pensar, tudo caminhava para a modernização que caracteriza as sociedades que conhecemos hoje (HOBSBAWM, 2003).

O novo ambiente social, econômico e político cristalizava-se paralelamente aos parâmetros sociais que vinham se firmando com o advento da modernidade e com a crise da cosmologia cristã e do poder da Igreja Católica (STEARNS, 1998).

Diante desse quadro incômodo que as “novas coisas” colocavam ao catolicismo, o papa Leão XIII promulgou a encíclica Rerum Novarum em 15 de maio de 1891. A encíclica acusava que uma das grandes causas dos problemas que a sociedade vivenciava eram decorrentes da falta de princípios morais que a nova sociedade moderna e laica cultivava.

Além disso, Leão XIII observou que os problemas da desigualdade e dos conflitos sociais são inevitáveis nas economias capitalistas. Mas, ainda assim, a Rerum Novarum recusava a solução socialista que advogava extinção da propriedade privada e o uso coletivo da força de trabalho. Pois, ao contrário da proposta socialista, Leão XIII afirmou o direito à propriedade, argumentando que se trataria de um direito natural, pois “o exercício deste direito é coisa não só permitida, sobretudo a quem vive em

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sociedade, mas ainda absolutamente necessária”. Dessa maneira:

[...] o remédio proposto [pelo comunismo] está em oposição flagrante com a justiça, porque a propriedade particular e pessoal é, para o homem, de direito natural. Há, efetivamente, sobre esse ponto de vista, uma grandíssima diferença entre o homem e os animais destituídos de razão. [...] Deus concedeu a terra a todo o gênero humano para o gozar, porque Deus não a concedeu aos homens para que a dominassem confusamente todos juntos (LEÃO XIII, 1891).

Para justificar o direito à propriedade e fundamentá-lo de acordo com a perspectiva cristã, Leão XIII recorre ao livro Gênesis da Bíblia, o qual observa que, em seguida ao ato divino da criação da terra, foi dado aos homens a permissão para dominar e usufruir dos recursos.

Leão XIII também argumentou que a conversão da propriedade particular em coletiva, preconizada pelo socialismo, não acarretaria outro efeito senão tornar a situação dos operários ainda mais precária, dado que isso lhes retiraria “a livre disposição de seu salário e roubando-lhes [...] toda a esperança e toda a possibilidade de engrandecerem o seu patrimônio”. A razão intrínseca do trabalho, destarte, seria conquistar a posse de um bem próprio e assegurar a existência material e o provimento das necessidades da vida. Por tudo isso, a regulamentação exercida pelo Estado deveria proteger e assegurar a propriedade particular “por meio de leis sábias”.

A encíclica Rerum Novarum representa o primeiro passo em direção à sistematização do pensamento social católico, normalmente nomeado de Doutrina Social da Igreja Católica. Além disso, outras importantes encíclicas posteriores sancionaram e enfatizaram o posicionamento da Igreja Católica sobre a questão social diante das alternativas entre o capitalismo e o comunismo e, notadamente, sobre os critérios e a justificativa cristã da propriedade privada.

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Propriedade e Doutrina Social

Após a promulgação da Rerum Novarum, várias encíclicas retomaram questões sociais, ora como tentativas de reagir às transformações oriundas do processo de longa duração do advento da modernidade, ora como tentativa de se ajustar e de responder às demandas do presente. É dentro desse processo que ocorre a elaboração da Doutrina Social da Igreja Católica, e que, também, melhor se pode compreender historicamente o posicionamento católico sobre a propriedade. Entre as encíclicas que seguiram a Rerum Novarum, cabe destacar a Quadragésimo anno (1931), a Divini Redemptoris (1937), a Mater et Magistra (1961), e a Centesimus annus (1991).

Ao comemorar o aniversário de quarenta anos da Rerum Novarum, na encíclica Quadragésimo anno, o Papa Pio XI prescreveu que o aperfeiçoamento da ordem social aconteceria quando esta estivesse em conformidade com o Evangelho. Além de criticar o problema da acumulação de recursos e de poder nas mãos de uma minoria, o pontífice observou que a missão da Igreja Católica é encaminhar os homens rumo à felicidade eterna, e não à felicidade terrena, a qual seria caduca e transitória. Defendeu, também, a posição assumida por Leão XIII contra “as aberrações dos socialistas do seu tempo”.

O cerne da Quadragésimo anno foi responder aos ataques dos críticos à Rerum Novarum de Leão XIII, reafirmando-a:

Mas como não falta quem com flagrante injustiça calunie o Sumo Pontífice e a Igreja de ter zelado e zelar somente pelos interesses dos ricos contra os proletários, e os mesmos católicos não concordam na interpretação do genuíno e verdadeiro modo de pensar de Leão XIII, pareceu-Nos bem vingar de tais calúnias a sua doutrina que é a católica e defende-la de faltas interpretações (PIO XI, 1931).

Seis anos depois, o Papa Pio XI promulgou a encíclica Divini Redemptoris, na qual versou sobre qual deveria ser a resposta da Igreja

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Católica perante o comunismo ateu. Nesta encíclica, Pio XI advogou que o comunismo acarreta a perseguição anti-cristã, como atestariam – segundo ele - os “horrores do comunismo em Espanha”. O comunismo representaria a luta contra tudo que é divino e, assim, Pio XI evocava o apelo de “todos aqueles que crêem de Deus” e os deveres “do estado cristão”. Desse modo, a encíclica Divini Redemptoris manifestava que seria um dever religioso de todos aqueles que professam o cristianismo sob a cruz católica ajudar a Igreja contra o comunismo.

Em 15 de maio de 1961, aos setenta anos da publicação da Rerum Novarum, o Papa João XXIII tratou da “recente evolução da questão social à luz da Doutrina Cristã” na encíclica Mater et Magistra. Nesta, João XXIII recordou quando Leão XIII afirmou que a “propriedade privada, mesmo dos bens produtivos, é um direito natural que o Estado não pode suprimir”. Também acrescentou que a propriedade privada comporta uma função social, visto que ela seria um direito a ser exercido para o bem próprio e o bem dos outros. Além disso, João XXIII lembrou uma radiomensagem proferida por Pio XII em 1941, na qual afirmou que “a propriedade privada dos bens materiais deve ser considerada espaço vital para a família”.

Dessa maneira, a encíclica Mater et Magistra defendeu e reafirmou o direito à propriedade privada, justificando-a através do argumento de que se trata de um “direito natural fundado sobre a prioridade ontológica e finalista de que cada ser humano em relação à sociedade”.

No que toca à função social da propriedade, a Mater et Magistra observa que o Estado é incapaz de remediar todos os problemas sociais e, assim, mediante a posse da propriedade particular, estaria aberto um “vasto campo à sensibilidade humana e à caridade cristã dos indivíduos” – a qual apenas seria possível com o direito de propriedade assegurado.

Em 1991, o Papa João Paulo II comemorou o centenário da Rerum Novarum advogando que, mesmo depois de passados cem anos e com tantas transformações sociais nesse ínterim, ainda prevalece o “direito a possuir as coisas necessárias para o desenvolvimento pessoal e da própria família”. João Paulo II observou também que à luta de classes as quais foram o mote da encíclica Rerum Novarum “o cristão deve muitas

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vezes tomar a posição decidida e coerentemente”.No centenário do pontificado de Leão XIII sobre a propriedade

privada, João Paulo II asseverou que o direito à propriedade é fundamental para a autonomia e desenvolvimento da pessoa e que, sem dúvidas, este direito continua a ser defendido pela Igreja. Além disso, o Papa ponderou que “a Igreja ensina que a propriedade dos bens não é um direito absoluto, mas, na sua natureza de direito humano, traz inscritos os próprios limites”. Isto é, o uso do direito à propriedade seria em benefício da indispensável autonomia pessoal e familiar e, ademais, seria considerado como uma extensão da liberdade humana. A propriedade deveria estar de acordo com a medida justa que propicie a sobrevivência e a existência terrena em comunhão com os preceitos do Evangelho.

João Paulo II reafirmou, claramente, os ideais que sintetizam e que são justificativas do direito à propriedade no pensamento católico. A raiz do destino universal dos bens da terra estaria escrita no livro de Gênesis: que Deus deu a terra ao gênero humano para o sustento de todos, sem privilegiar e nem excluir ninguém. Em outras palavras, “a origem primeira de tudo o que é bem e o próprio acto de Deus que criou a terra e o homem, e ao homem deu a terra para que a domine e com o seu trabalho goze dos seus frutos”.

Além das encíclicas, também é possível encontrar a fundamentação da propriedade no pensamento religioso social católico fora do círculo oficial do clero da Igreja Católica. Exemplo disso é o conteúdo do livro Três Alqueires e uma Vaca, escrito por Gustavo Corção. Nesta obra, o ideário de Doutrina Social católica é baseado no humanismo do inglês G. K. Chesterton.

Assim como as encíclicas que se seguiram à publicação da Rerum Novarum, a idéia de Chesterton assimilada por Corção entende a propriedade como um direito dado ao homem por Deus. O domínio e a posse sobre a terra e seus recursos não teriam sido revogados com a expulsão do homem do paraíso. Ao contrário, após a expulsão, a invenção da economia política seria um resultado imediato da necessidade do trabalho humano para conquistar os recursos imprescindíveis à existência.

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Assim, a meta da felicidade presente em Chesterton, conforme o livro Três Alqueires e uma Vaca, seria trabalhar em função de alcançar o suficiente para uma vida terrena em acordo com as preceitos religiosos católicos postulados no Evangelho (CORÇÃO, 1946, p.235).

Da mesma maneira que a encíclica Rerum Novarum e suas sectárias trataram de responder ao impasse social diante do dilema entre capitalismo e socialismo, a reflexão presente em Corção, embasada por Chesterton, apresenta uma solução que garante o direito à propriedade, devida à tese do homem ser herdeiro de Deus. Corção argumenta que, se o pensamento católico discorda da defesa socialista do fim da propriedade privada, isso não significa, de maneira alguma, que o católico deve entender que se trata automaticamente de um parecer favorável ao capitalismo: o catolicismo é a favor da propriedade e contra o capitalismo, visto que o uso desmedido e extravagante do direito à propriedade proporciona a falsa idéia de domínio que romperia com as medidas do homem (CORÇÃO, 1946, 236-237). Contra tal desatino do capitalismo, Corção defende que:

nada há que tenha uma feição tão anticapitalista como a ascese cristã que, nos seus mais variados aspectos, consiste sempre num exercício de restauração da integridade perdida e na reconquista do paraíso. [...] Ora, nessa ordem de idéias, se o exercício de santificação se parece com alguma coisa, é antes com o regime da pequena economia, com o distributivismo de Chesterton, por exemplo, cuja principal finalidade é a recuperação de um patrimônio (CORÇÃO, 1946, p.237).

Contra o abuso da desigualdade absurda e na falta de limites morais flagrantes no capitalismo, Chesterton recomenda o que ele próprio nomeia de distributivismo, o qual não seria mais do que um sistema econômico em que a propriedade privada estaria justamente distribuída, tornando possível a propriedade da terra ao maior número possível de indivíduos (STORCK, s/d).

Além disso, fica patente que o “caminho à santificação” não estaria desprovido de interesse ou finalidade, pois, ao contrário, a virtude

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residiria no “interesse do bom objeto”. Nessa perspectiva, a posse seria o prêmio. O fundamento do cristianismo católico é a idéia de posse e de recompensa. Nesse sentido, Corção observa que o próprio vocabulário cristão estaria impregnado de pragmatismo, de herança e de posse, pois haveria a noção de lucro e de recompensa extraterrena no ideário católico. A cena do dia de prestação de contas, do juízo final, ilustra a ânsia por recompensa pela vida devotada ao cristianismo, cujo prêmio seria a posse de um lugar no paraíso.

Logo, o interesse e o direito cristão católico em torno da posse terrena estariam acompanhados de um interesse escatológico de propriedade, visto que o sentimento de posse sobrenatural estaria apoiado em um sentimento de posse natural (CORÇÃO, 1946, p.241). Corção defende que, ao contrário da idéia franciscana de pobreza e de não-posse, é necessário “possuir pouco para possuir realmente”, isto é, existiria uma “perfeição da posse” que seria a justa medida da propriedade. Aqui residiria a razão da crítica ao capitalismo, pois este, segundo Corção, privilegia uma minoria ao mesmo tempo em que impõe à maioria a miséria. Contrário ao capitalismo e também ao socialismo, o pensamento católico defende o direito à pequena propriedade, dado que a idéia de posse seria inseparável da vida cristã, mesmo na ordem natural.

Nesse contexto, a prática da esmola seria um importante recurso para despojar o excesso, em busca da justa medida da posse. É possível observar que o que entendemos por Doutrina Social da Igreja Católica é edificada pelos fundamentos do Evangelho. Assim, no plano natural, o jejum e a esmola representam práticas de uma doutrina social-religiosa de distribuição e dignificação, de acordo com o pensamento católico. O distributivismo de Chesterton, comentado por Gustavo Corção, seria então um modo de apresentar a Doutrina Social da Igreja; assim, defende-se a pequena propriedade e a pequena empresa contra o gigantismo e a falta de limites morais e cristãos do capitalismo. Chesterton combate o capitalismo, dado que a hipertrofia da posse e a falta de compromisso moral fez a propriedade tornar-se um recurso de dominação, assim como teria degenerado a livre competição em privilégio (CORÇÃO, 1946,

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p.251).Em outras palavras, de acordo com o raciocínio de Chesterton

presente em Corção, enquanto o capitalismo insiste na propriedade privada, mas esquece-se de seu uso social, o socialismo insiste no uso social, mas ignora o direito à propriedade privada. Nos termos de Corção (1946, p.266), “o verdadeiro equilíbrio da socialização de certas coisas [...] só pode ser obtido pela consolidação da pequena propriedade privada”. O equilíbrio entre a moral cristã e a socialização estaria, então, na pequena propriedade privada.

Ao afirmar qual deve ser a medida da propriedade, Corção cita a encíclica Rerum Novarum do Papa Leão XIII, ressaltando que o pontífice afirmou que a riqueza deve ser distribuída em função de promover o bem comum e que, destarte, o uso coletivo da propriedade privada representa uma frutífera ação contra o individualismo. Sendo, pois, o homem criado à imagem e semelhança de Deus, a medida da necessidade humana seria sagrada e, assim, a medida que justifica a pequena propriedade privada, em seu parâmetro religioso católico, seria a medida que garante a existência terrena do homem, e nada além disso.

Portanto, conforme observamos nas principais encíclicas responsáveis pelo pensamento social católico e em Chesterton/Corção, a fundamentação da pequena propriedade encontra-se no direito de posse e de domínio do homem sobre a terra e os animais, conforme escrito no Evangelho cristão. Além disso, a medida da justa posse fundamentar-se-ia na oposição às respostas do socialismo e do capitalismo para a questão do conflito social pertinente à sociedade moderna.

Conservadorismo A-histórico

É possível apontar que a fundamentação religiosa da pequena propriedade no pensamento católico, bem como a sua Doutrina Social, representa uma reação ao advento da modernidade e de suas

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conseqüências sociais, visto que o ideário e o conjunto de valores morais prescritos no Evangelho cristão ignoram a temporalidade do social. Isto é, os preceitos religiosos que são os pilares do pensamento social católico, no que tange à pequena propriedade privada, ignoram as transformações históricas desde o final da Idade Média.

O pano de fundo da fundamentação da pequena propriedade privada é a cosmologia cristã medieval. Assim, diante da crise de poder instalada nos tempos modernos, a resposta à questão do conflito social de Leão XIII na encíclica Rerum Novarum que deu a direção e o sentido da Doutrina Social da Igreja, bem como seu posicionamento acerca da propriedade privada fundamentado na cena da criação do mundo e do homem no livro de Gênesis, revelam um apego à cosmologia da época medieval em que houve a preponderância do poder da instituição católica do ocidente.

Conforme explica Ivan Manoel (1982), a Igreja Católica compreende as transformações históricas desde o final da Idade Média como o abandono maléfico de princípios morais e o conseqüente surgimento do caos social. Daí caberia à Igreja resgatar a humanidade decaída através de sua ação pedagógica. Nas palavras de Ivan Manoel:

O a-historicismo do pensamento católico revela-se a cada momento. [...] Em suma, o que a Igreja propôs como condutores de análise são princípios morais (que de resto deverão nortear a própria vida dos homens). [...] Assim, a sua análise sobre o surgimento das idéias comunistas não se insere no contexto de uma análise histórica da sociedade, mas permanece no limiar de uma atitude moralista, que tem por finalidade apenas o julgamento moral dos aspectos exteriores dessa proposta política. E esse julgamento transforma-se em condenação, exatamente porque a análise católica está impedida de transpor o limiar do moralismo (1982, p.91-92).

A fundamentação religiosa católica da pequena propriedade privada, a qual se encontra inserida no contexto moderno da crise da

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influência da Igreja Católica, não se assenta no tempo histórico. Ao contrário, o ideário sobre o qual se baseiam tanto a Doutrina Social quando a justificativa da pequena propriedade privada situa-se no tempo eterno.

Considerações Finais

O pensamento da Igreja Católica que verificamos através das encíclicas e da obra Três Alqueires e uma Vaca, de Gustavo Corção trata-se de um movimento conservador em reação à cristalização da sociedade moderna que ocorreu principalmente desde o século XIX. A partir de 1891 com a encíclica Rerum Novarum de Leão XIII, conforme entende Ivan Manoel (2004), tal movimento conservador1 da Igreja Católica manifesta um “indisfarçável saudosismo da Idade Média”, dado que preconiza restaurar a razão cristã cujo modelo é o auge da Escolástica do século XIII.

GONçALVES, Sérgio Campos. The fundamental religious from small property into the Catholic thought: The historical perspective DIALOGUS. Ribeirão Preto, vol.5, n.1, 2009, p. 81 - 93.

ABSTRACT: This article is intended to provide a historical explanation for the religious foundations of small property in the Catholic though. Our objective is to observe panoramically the historical evolution of the Catholic’s 1 Utilizamos a reflexão de Roberto Romano como referência do conceito de conservador: “O que é ‘conservador’? O medo de que a população estrague a festa do poder, destruin-do a segurança, a propriedade, os vínculos da tradição, as inovações técnicas que só beneficiam alguns. Trata-se de conservar o social e o Estado, produto histórico como nos românticos, engenho técnico como em Hobbes, mas sempre no horizonte do pavor e do medo, da guerra, do soldado, da polícia, do carrasco. Por isso a imagem do dilaceramento, junto com o medo da subversão da ordem, é onipresente nas falas conservadoras. Nelas acentua-se a harmonia como fim político, não importa o preço” (ROMANO, 1994).

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foundations of private and small property, articulating it with the rise of modern society since the Nineteenth century and with the development of the Social Doctrine of the Catholic Church.

KEYWORDS: History of religion; Small property; Catholic though

REFERêNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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MÚSICA PROTESTANTE EM RIBEIRÃO PRETO: A EXPERIÊNCIA PRESBITERIANA (1977-1989)*

Sérgio Paulo de Andrade PEREIRA**

RESUMO: Análise histórica da música na Igreja protestante em Ribeirão Preto. O foco principal é a entrada do repertório de cunho popular e as formações instrumentais e vocais surgidas no período de 1977 a 1989, na Igreja Presbiteriana desta cidade.

PALAVRAS-CHAVE: música, protestantismo, Ribeirão Preto.

Tal como a da arquitetura, das artes plásticas ou da literatura, a história da música é indissociável da história geral. Da história política e, mais ainda, da socioeconômica, cultural e religiosa [...]. (MASSIN, 1997).

Desde as primeiras notas musicais escritas por um protestante, provavelmente o próprio Martinho Lutero (1484-1546), houve discórdia a respeito da música litúrgica reformada, o que não poupou cisão entre os próprios protestantes desde o início por este e outros motivos relacionados à forma que deveria ser empregada no culto. (FREDDI JÚNIOR, 2002).

Discussões foram surgindo ao longo dos séculos seguintes à Reforma, sobre o que devia ou não ser executado musicalmente no culto protestante, até a chegada do século XX e a utilização dos “corinhos” ou “música cristã contemporânea”, onde estilos e instrumentos de cunho * O conteúdo deste texto foi extraído da monografia homônima apresentada como requisito para obtenção do diploma de licenciado em História, pelo Centro Universitário Barão de Mauá, sob orientação da Profª. Drª. Nainôra Maria Barbosa de Freitas.** Licenciado em História pelo Centro Universitário Barão de Mauá, Ribeirão Preto (SP). Educador e escritor de materiais didáticos na área musical (desde 1992), dentre eles destaque para “Acordes para Contrabaixo” (ed. Irmãos Vitale, 2007). Contato: [email protected].

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“secular” e “popular” davam a tônica das novas composições. (BÁGGIO, 1997).

Segundo o historiador Michel Certeau (1997): “A história não deixa de manter a função que exerceu no decorrer dos séculos [...] a de ser uma crítica. [...] Simboliza o limite e por isso, torna possível uma ultrapassagem.” Trazemos a discussão da entrada de um repertório “popular” na Igreja de denominação presbiteriana, a fim de conseguirmos uma “ultrapassagem” no que tange os debates e conflitos gerados por esta novidade músico-litúrgica nas últimas décadas do século XX e início do século XXI no protestantismo brasileiro. Sobre o conflito, declara Lima (1991):

[...] devido ao fato das Igrejas locais serem terrenos fecundos para esses conflitos, pois nelas as divergências surgem em diferentes pontos, como nas questões etárias – jovens x adultos -, nas preferências estilísticas, tendências tradicionais ou renovadoras, como também inclinações eruditas ou populares [...].

Nesta pesquisa, associado à bibliografia estão documentos da Igreja Presbiteriana do Brasil: digestos, manual presbiteriano e legislação. Especificamente sobre a Igreja Presbiteriana de Ribeirão Preto, pesquisamos nas Atas do Conselho, nos Relatórios de Atividades e nos Boletins Informativos.

Nos Boletins Informativos, constam as atividades semanais desenvolvidas pela Igreja. Os Relatórios de Atividades trazem um balanço do trabalho desenvolvido pelos pastores e liderança das sociedades internas (sociedade auxiliadora feminina, união presbiteriana de homens, união da mocidade presbiteriana, união presbiteriana de adolescentes, relatórios das congregações, entidades sociais como o Lar das Crianças e Lar dos Velhos, corais e outros grupos musicais) assim como o planejamento para o ano seguinte. Além destes documentos, realizamos dez entrevistas através

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de questionários (que variaram as perguntas conforme a atuação do entrevistado na Igreja, no período abordado nesta pesquisa), sendo metade delas, respondidas via e-mail, uma vez que esses entrevistados se localizavam fora de Ribeirão Preto ou até do país. A escolha destas pessoas não foi aleatória.1 Buscamos aqueles que serviram ativamente formando grupos instrumentais e vocais, seja na liderança ou não, além de membros do Conselho (dois presbíteros e um pastor2).

Raízes musicais protestantes no Brasil

A partir de 1808, com a Coroa portuguesa dependente da Inglaterra Reformada, o protestantismo tomou novo fôlego no Brasil. (BRAGA, 1961). Em 1810, o Tratado de Comércio e Navegação concedeu liberdade religiosa aos imigrantes protestantes, mas com várias restrições. Desta data até a Proclamação da República brasileira, aos poucos os reformados foram obtendo mais liberdade religiosa conforme a situação

1 Os entrevistados são: Haroldo A. Araújo, integrante do Grupo Kérigma, Coral Jovem, Ministério Load e Banda Brilho; Sonia M. R. Banks, regente do Coral e Coral Jovem; Marta L. Del Monte, integrante do Coral, Coral Jovem e Grupo Kérigma; Hebert dos S. Gonçal-ves, integrante do Coral Jovem, Ministério Load e Banda Brilho; Éder C. Martins, regente do Coral, Grupo Kérigma e Cantores do Rei; Sandro M. Paiva, integrante da Banda Brilho; Carlos E. Pereira, presbítero; Lucas de P. Pina, pastor; Cláudio A. de Souza, integrante do Cantores do Rei e presbítero; Marildete S. Emerick Teixeira, integrante do Grupo Kérigma, Coral Jovem, Ministério Load e uma das regentes do Coral Infantil.2 No sistema de governo da Igreja Presbiteriana, o “pastor”, “também chamado de ‘pres-bítero docente’, é necessariamente bacharel em Teologia, com poucas exceções para a regra; não é membro das igrejas, mas dos presbitérios, onde tem direitos plenos – votar, ser votado, representar, etc, podendo tomar assento nos concílios superiores se for eleito. Já, o termo ‘presbíteros’, ou ‘presbíteros regentes’, são leigos das Igrejas que, eleitos por ela, passam a fazer parte do Conselho da Igreja local e por eleição, podem fazer parte dos concílios superiores nesta ordem ascendente: Conselho – Presbitério – Sínodo – Supremo Concílio. Importante notar que os presbíteros podem exercer as mesmas funções conci-liares dos pastores, exceto na ministração dos sacramentos, batismo e eucaristia, que somente podem ser ministrados pelos pastores. (TAVARES NETO, 1997).

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lhes permitia.3 No início celebravam seus cultos nos navios ingleses atracados nos portos brasileiros e em suas casas particulares. (TAVARES NETO, 2001).

Entretanto, até meados do século XIX a prática protestante no Brasil era restrita apenas aos imigrantes estrangeiros. (PAULA, 2006). Foi só a partir dos missionários Robert R. Kalley (1809-1888) ligado à Igreja Congregacional escocesa e Ashbel G. Simonton (1833-1867), ligado à Igreja Presbiteriana do Norte dos Estados Unidos, que os nascidos no Brasil passaram a ser visados no evangelismo reformado. Em relação à música protestante executada no Brasil em 1850, Braga (1961) declara que:

Da segunda metade do século XIX em diante é que surgiram no Brasil movimentos missionários evangélicos duradouros, em vernáculo, permitindo a criação de um patrimônio hinológico sacro na língua do país. Até então, as manifestações musicais evangélicas haviam sido nos idiomas de origem dos fiéis estrangeiros aqui aportados em caráter temporário ou permanente [...]

Este “patrimônio hinológico sacro” a que Braga se refere teve início com o hinário Salmos e Hinos compilado pelo casal de missionários Robert e Sarah Kalley. A hinódia dos Kalley era utilitarista, pois visava suprir partes litúrgicas, colaborar na sua didática na escola dominical e pregar mensagens e temas doutrinários. (CARDOSO, 2005). A utilização dos Kalley de modelos músico-litúrgicos internacionais em cultos protestantes, mesmo que em português, era justificada até o final do século XIX pelo fato da Igreja reformada brasileira ainda ser bastante nova e carente de recursos humanos. (FREDDI JÚNIOR, 2002). Porém, tal prática foi se enfraquecendo ao longo do século XX, principalmente a partir

3 Apesar de, desde 1808, se admitir a presença protestante, a Constituição de 1824 esta-beleceu o catolicismo como religião oficial causando entraves ao desenvolvimento refor-mado. (ALENCAR, 2005).

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do final da década de 1950, devido à introdução de novos instrumentos (violão, por exemplo), compositores nacionais e o novo estilo músico-litúrgico: a “música cristã contemporânea”. (LIMA, 1991).

Música cristã contemporânea

Os compositores da música cristã contemporânea utilizavam blues, country, soul, jazz, gospel4 e principalmente o rock, entre outros estilos populares em contraste com a música tradicional das Igrejas protestantes, executada principalmente com órgãos, pianos e hinários. (BÁGGIO, 1997).

Uma das primeiras expressões da nova música da adoração foi a Missa Folclórica do Século XX, de Geoffrey Beaumont, de 1960. [...] Ele declarou que a adoração deve incluir não apenas a música “atemporal” dos mestres compositores, mas também os estilos populares da época, que fazem parte da vida do povo de maneira tão notável. Logo depois disso, conjuntos musicais de jovens começaram a aparecer entre os protestantes na Inglaterra, estabelecendo um estilo semelhante ao dos Beatles e outros grupos de rock. [...] Não demorou muito tempo, e as Igrejas litúrgicas e os grupos denominacionais tradicionais nos Estados Unidos já estavam seguindo esses exemplos, em uma tentativa de tornar os cultos de adoração mais expressivos e festivos. (HUSTAD, 1986).

Esta música, no início chamada de “Jesus Music”, nasceu em

4 O termo “gospel” se refere à expressão que designa “canção religiosa do movimento evangelizador norte-americano do final do século XIX, que sucedeu ao spiritual”. O spiritual é um tipo de canção folclórica que também teve origem com uma prática evangelizadora protestante, porém entre 1740 e final do século XIX. O termo deriva de “spiritual songs”, designação inicialmente utilizada para distinguir estes cantos dos hinos e salmos métri-cos tradicionais. Estão ligados em especial às Igrejas afro-americanas do extremo sul dos EUA. (SADIE, 1994).

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meio a um reavivamento da Igreja Protestante, que ocorreu no final dos anos 1960 e início da década de 70 nos Estados Unidos e Inglaterra, conhecido como “Movimento Jesus”. (BÁGGIO, 1997). Milhares de jovens se converteram através desse movimento, que nasceu como uma resposta à tradição institucionalizada das Igrejas históricas (Luterana, Anglicana, Presbiteriana, Batista, Metodista entre outras) onde não havia lugar para os jovens se expressarem e ao movimento que privilegiava “sexo, drogas e rock and roll”, o Movimento Hippie. (BÁGGIO, 1997). A música cristã contemporânea do Movimento Jesus foi “exportada” para o Brasil ainda no final da década de 1960, através, principalmente de missões como Palavra da Vida, Mocidade Para Cristo, Jovens da Verdade, entre outras. (FREDDI JÚNIOR, 2002). Após essa breve explanação sobre o surgimento da música cristã contemporânea, propomos algumas questões em relação ao objeto de nossa pesquisa: qual é a relação que a Igreja Presbiteriana do Brasil manteve com o novo formato musical? As características eclesiásticas da Igreja Presbiteriana do Brasil dificultaram a entrada da música cristã contemporânea em seu espaço litúrgico?

Forma de governo da Igreja Presbiteriana

Para Weber (1967), a Igreja Presbiteriana, único grupo religioso que se manteve fiel aos princípios calvinistas desde seus primórdios era aristocrática, individualista e intelectualista. Desde 1830 os presbiterianos se achavam teologicamente divididos: eram fiéis ao governo calvinista, mas sua evangelização era a “conversionista dos avivamentos”, mais ligada a John Wesley (fundador da Igreja Metodista), do que a Calvino, o que representa um grande paradoxo entre governo e práxis de culto. (MENDONÇA & VELASQUES FILHO,1990). Essa problemática afasta a Igreja Presbiteriana do Brasil dos

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problemas políticos e sociais do país, uma vez que toda atenção é dada para reverter possíveis quadros de divisão e discussão a respeito de seus dogmas. (MENDONÇA & VELASQUES FILHO, 1990).

A estrutura da Igreja Presbiteriana do Brasil é extremamente burocratizada, funcionando tudo de maneira fortemente centralizada nos concílios, tribunais, autarquias, juntas etc., que são elitizados devido a dificuldade de acesso e desconhecimento da estrutura da grande maioria dos fiéis a ela filiados. [...] As decisões presbiterianas, com raríssimas exceções, são tomadas de cima para baixo, com pouca ou nenhuma participação da comunidade. (TAVARES NETO, 1997).

O instrumento utilizado para dar aval ao conservadorismo é a Constituição da Igreja Presbiteriana do Brasil e seus anexos (código de disciplina, princípios litúrgicos e regimentos internos dos concílios), criados em 1950, e que até hoje contam com pouquíssimas alterações. Para Tavares Neto (1997),

[...] são os instrumentos mais eficazes para gerar e manter a elitização do poder, sua manutenção e continuísmo. Não sendo reformada, ela mantém a Igreja conservadora e ultrapassada, preservando os poderes e os personagens históricos institucionais.

Devido às muitas disputas internas, nasceram vários ramos dissidentes da Igreja Presbiteriana do Brasil, como por exemplo, a Igreja Presbiteriana Independente, Igreja Presbiteriana Unida do Brasil, Igreja Presbiteriana Conservadora, Igreja Presbiteriana Fundamentalista, Igreja Presbiteriana Renovada entre outras. (MENDONçA & VELASQUES FILHO, 1990).

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Possíveis causas do conflito musical

Parece que essa ambigüidade está no cerne do protestantismo: ao mesmo tempo que conduz idéias libertárias e proclama o livre exame, tende a enrijecer-se no dogmatismo. (MENDONÇA, 1995).

Vários aspectos (divisão quanto à teologia e forma de culto, individualismo, poder aristocrata associado ao poder eclesiástico, intelectualismo, as muitas disputas políticas internas, forma de governo, conservadorismo e divisões) levaram a Igreja Presbiteriana do Brasil a não se envolver muito em discussões sobre sua prática músico-litúrgica. Supomos que seja esse o porquê de não constar nos digestos, filosofia, manuais, artigos e pareceres do Supremo Concílio, definições claras a respeito de sua prática musical. Nos inúmeros pareceres do Supremo Concílio e de sua Comissão Executiva, desde sua fundação em 1957 até 1989, os únicos assuntos relacionados à música, quando aparecem, são sempre de cunho relacionado à música erudita (ou seja, “hinários, pianos e órgãos”), diferentemente de outras denominações protestantes históricas como a Igreja Batista, que acrescentaram músicas cristãs contemporâneas de compositores brasileiros em seus hinários no início da década de 1990. Segundo Mendonça (1995), “[...] a Igreja Presbiteriana do Brasil fechou-se e isolou-se cada vez mais nos redutos ultraconservadores do presbiterianismo mundial”, o que nos leva a supor que em sua prática músico-litúrgica, isolou-se junto. Mendonça e Velásquez Filho (1990) declaram que “[...] a pesada sombra sentimental dos Salmos e Hinos paira sobre as Igrejas como nuvem que obscurece todas as saídas.” Essa “pesada sombra sentimental” está provavelmente ligada diretamente ao desejo da liderança eclesiástica mais ortodoxa de manter

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a forma musical que Calvino previa para o culto5, ou pelo menos próximo a ela; ou manter a tradição dos primeiros missionários presbiterianos no Brasil como Simonton e o ex-padre José Manuel da Conceição, de utilizar o hinário como referência doutrinária e meio evangelístico. Outra hipótese seria tentar não se parecer com as músicas da Renovação Carismática Católica, surgida no Brasil em 1972 (GONZALES, 2004) ou com o pentecostalismo, que tomava novo fôlego no Brasil a partir da década de 1950, no surgimento de denominações como a Igreja do Evangelho Quadrangular (1953) e O Brasil Para Cristo (1956), a neopentecostal Universal do Reino de Deus (1977), entre outras. Os pentecostais e neopentecostais utilizavam novas estratégias evangelizadoras, mais em sintonia com a sociedade urbana, investindo em grandes concentrações públicas, no uso do rádio, além de instrumentos musicais como guitarras e baterias. (ALENCAR, 2005). As “saídas” para uma contextualização musical estavam fechadas em praticamente todo o universo presbiteriano brasileiro; o choque entre os líderes e membros mais tradicionais e aqueles que buscavam uma revitalização dos modelos músico-litúrgicos foi inevitável. Como exemplo destas “saídas fechadas”, temos a Igreja Presbiteriana de Ribeirão Preto, onde a música cristã contemporânea inicia sua jornada, timidamente, a partir de 1977.

A experiência musical da Igreja Presbiteriana de Ribeirão Preto entre 1977 e 1989

Um pequeno histórico da passagem dos principais pastores da Igreja Presbiteriana de Ribeirão Preto – Lúcio G. Sahtler, Josenir G. da Silva, Wilson de S. Lopes e Lucas de P. Pina – no período de 1977 a 1989, e a utilização da música de forma litúrgica indicam parte das dificuldades

5 Calvino previa para o culto protestante apenas a música vocal, sem divisão vocal, com letras extraídas dos Salmos da Bíblia. (SADIE, 1994).

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encontradas por aqueles que desejavam executar um repertório de música cristã contemporânea nesta igreja.

Os pastores e sua relação com a música litúrgica O Pastor Lúcio Gomes Sahtler, que pastoreou a Igreja Presbiteriana de Ribeirão Preto em 1977, era jovem e portanto, aderiu com mais facilidade à música cristã contemporânea. A Igreja, no final de 1977, estava sempre cheia por conta de sua liturgia “moderna” e das suas “boas pregações”. Segundo os registros disponíveis que pesquisamos, provavelmente foi o Pastor Lúcio o responsável pela introdução da música cristã contemporânea na Igreja Presbiteriana de Ribeirão Preto. Em contraste, segundo alguns entrevistados - Carlos E. Pereira, Sonia M. R. Banks, Éder C. Martins, Marta L. Del Monte e Cláudio A. de Souza - e registros nos Boletins Informativos, pode-se afirmar que o Pastor Josenir G. da Silva (1978-1979), pastor seguinte ao Pastor Lúcio, não apreciava “culto jovem”, nem música cristã contemporânea (há apenas uma menção sobre ela no Boletim Informativo de 28 de out. 1979). Em 1981, Wilson de S. Lopes tornou-se o pastor titular da Igreja Presbiteriana de Ribeirão Preto – onde trabalhou até 1990 - que já se encontrava praticamente dois anos sem presbítero docente. Em relação à música, desde seu mandato pastoral na Igreja anterior (na cidade de Presidente Soares), o Pastor Wilson de Souza Lopes já era aberto aos instrumentos musicais “populares”, como constata sua filha, Marildete S. Emerick Teixeira:

Papai sempre foi muito aberto a estas inovações desde que, fossem feitas com critério e certa moderação. Naquela época estávamos em Presidente Soares, Minas Gerais, cidade bem pequena, mas tínhamos na igreja: bateria, guitarra, baixo e já havíamos passado pelo contra-balde, afoxé e pandeiro.

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As músicas cristãs contemporâneas eram executadas quando a mocidade passou a ter a chance de dirigir a liturgia constantemente aos terceiros domingos do mês: era o “culto jovem”. O emprego da nova música e a abertura que o Pastor Wilson estava oferecendo à juventude da Igreja Presbiteriana já no seu primeiro ano de mandato, incentivou a criação de outros grupos musicais, além dos já existentes Coral e Cantores do Rei. Surge então o Coral Jovem (com a regência de Sonia M. Banks), e o Grupo Kérigma. Uma das músicas cantadas pelo Grupo Kérigma em 1981 era Você pode Ter , gravada no disco Tanto Amor, dos Vencedores por Cristo:

Você pode ter a casa repleta de amigos,Paredes e pisos cobertos de bens, Ter um carro do último tipo,E andar conforme der na cabeça

Ou pode até ser um cara que vive apertadoAté mesmo dentro de um lotação,Curtindo assim mesmo um fim de semanaAo andar conforme der na cabeça [...]

A letra de Você Pode Ter possui um vocabulário bastante diferenciado (“der na cabeça”; “cara”; “lotação”, “curtindo”) do que era geralmente cantado nos hinários. Grandioso és Tu foi um dos hinos mais tocados nos anos de mandato do Pastor Wilson e contrasta, em vocabulário, com Você Pode Ter:

Senhor meu Deus, quando eu, maravilhado,Contemplo a Tua imensa criação,A terra e o mar, e o céu todo estrelado Me vêm falar da Tua perfeiçãoEntão minh’alma canta a Ti Senhor:“Grandioso és Tu! grandioso és Tu!”

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Quando as estrelas, tão de mim distantesVejo a brilhar com vívido esplendor,Relembro, ó Deus, as glórias cintilantesQue meu Jesus deixou, por Seu amor [...]

Em outubro de 1984, uma série de meditações sobre “a importância musical litúrgica da Igreja” foram impressas no boletim. Nenhum dos membros do único grupo de música cristã contemporânea da Igreja na época, o Grupo Kérigma, foi convidado para escrever sobre a música que executava, apesar do Pastor Wilson ter escrito no Boletim Informativo de 19 de set. de 1984:

Durante todo o mês de outubro nossas meditações abordarão a importância teológica e litúrgica da vida musical da Igreja, quando diferentes pessoas focalizarão o sentido prático desta dimensão cúltica e evangelística que envolve corais, conjuntos e congregação. Compartilhemos!

É nítida a preferência de quem escreveu estas meditações para com a música tradicional executada na Igreja, além de serem ligados diretamente à liderança dos Corais e ao Conselho: uma das escritoras, Dra. Lília Jane M. S. Gonçalves, era regente do Coral Jovem e esposa do Pastor Antônio Carlos; outra, Clarice Zamonaro Cortez era coralista; ela citou em seu texto, três hinos do Hinário Evangélico, dentre eles Castelo Forte, de Lutero (nº. 206) além do maestro João Wilson Faustini, um dos compositores encontrados no mesmo hinário, e nenhuma música que utilizasse ritmos ou instrumentos de cunho popular. Sonia Maria R. Banks (esposa de um dos membros do Conselho, regente dos corais e organista), sem citar qualquer tipo de música cristã contemporânea e seus instrumentos, desenvolve seu texto apenas sobre o formato coral:

O coro enriquece os cultos normais e contribui para a educação e maturidade dos membros da Igreja. Ele está apto a apresentar um

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louvor mais elaborado e bem cantado, além de fornecer um ambiente mais adequado ao louvor. (Boletim Informativo de 07 de out. de 1984).

Segundo outra escritora, Ana Maria Coquejo de Souza (auxiliar da regente do Coral e organista), “[...] a música mais própria para a Casa de Deus é aquela que se caracteriza por: 1) ritmo reverente [...] 2) dignidade e expressão na melodia, na letra, na harmonia. 3) Não provocar associações mentais seculares.” (Boletim Informativo de 28 de out. de 1984). Em 1984, o Grupo Kérigma estava justamente cantando sobre playbacks com instrumentos (bateria, percussão, guitarra, baixo elétrico, teclado) e estilos musicais (rock, samba, baião, etc.) que lembravam o meio “secular”. Não queremos com isso afirmar que as escritoras citadas eram completamente avessas à música cristã contemporânea. Sonia M. R. Banks, por exemplo, ao formar o Coral Jovem, trabalhou um repertório de música cristã contemporânea com músicas, por exemplo, do Grupo ELO. Ana Maria C. de Souza, ao assumir a regência do Coral, em vários momentos convidou bateristas, baixistas e guitarristas para comporem apresentações de cantatas de natal. Mas, sem dúvida, foi um período de dificuldades para consolidação deste novo formato musical na liturgia dominical presbiteriana de Ribeirão Preto, em especial da utilização do repertório dos grupos de vanguarda, mais novos, como Vencedores Por Cristo, Grupo Semente e Rebanhão. Teixeira revela que desde a introdução da nova música, vários membros, por vezes, se aborreciam:

Alguns levantavam na hora do louvor e iam para a calçada da igreja e reclamavam em altos e bons tons do absurdo que era toda aquela “barulheira” e não aceitavam especialmente o estilo, o ritmo e os movimentos que fazíamos com o corpo.

Segundo Teixeira, com o intuito de “segurar, frear e [...] disciplinar a situação”, várias reuniões do Conselho foram feitas. Supomos que um

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dos mecanismos desta disciplina tenha sido uma comissão de música criada em 1982. Esta comissão organizava as escalas de utilização do som e instrumentos e horários de ensaios e apresentações semanais. Um dos meios para “driblar” as proibições à música cristã contemporânea, era tocar a nova música fora da “área santa” do templo presbiteriano. Para Pereira,

[...] O Pastor Wilson era “meio liberal”, sem ser indulgente, no que tangia ao louvor musicado: admitia, além do órgão e piano, a guitarra, desde que sob seu controle e dentro dos “preceitos bíblicos”. Geralmente dava mais espaço para os estilos populares nos acampamentos.

É então nos “retiros” ou “acampamentos” que a mocidade tinha mais liberdade para tocar e cantar músicas cristãs contemporâneas. A participação dos jovens nos cultos dos domingos seguintes e outros eventos era bastante ativa. O último pastor pesquisado foi Lucas de Paiva Pina, que pastoreou os jovens entre 1986 e 1988. Missionário da missão Mocidade Para Cristo, o Pastor Lucas tinha uma grande facilidade de mobilização e comunicação com jovens, pois tinha uma maneira diferenciada de comunicar o Evangelho. Guardadas as devidas proporções (Lucas era o pastor de jovens e não o pastor titular desta Igreja, que na época ainda contava com o Pastor Wilson), podemos comparar a grande movimentação que o Pastor Lucas proporcionou junto à Igreja Presbiteriana de Ribeirão Preto no ano de 1987 com a chegada do Pastor Wilson, em 1981. No segundo semestre de 1988, o Pastor Lucas pediu desligamento da Igreja Presbiteriana de Ribeirão Preto por dois motivos: em primeiro lugar queria ter mais tempo para trabalhos itinerantes com a missão Mocidade Para Cristo; em segundo lugar, vinha sofrendo muita pressão:

No ano de 1988 a pressão sobre mim e o meu ministério estava maior. A pressão não era somente dentro da Igreja, mas também no presbitério.

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Eu me lembro de quando eu era o secretário presbiterial da Mocidade e organizei eventos com Expresso Luz, Banda Azul e Vencedores Por Cristo, de ter sido boicotado por algumas Igrejas. Eles simplesmente não enviavam os jovens para as reuniões. Isto e outras coisas foram minando minha efetividade à frente do jovens da Igreja. [...] a pressão chegou a tal ponto que eu me senti sem outra alternativa a não ser pedir para sair.

Os grupos musicais

Grupo vocal criado em 1982 por Éder C. Martins (regente) e Marildete S. E. Teixeira, o Grupo Kérigma - o termo significa “proclamação do Evangelho” - foi um trabalho voltado para louvor e evangelização, ou seja, para dentro e fora da Igreja. Cantavam acompanhados por playback (em fitas-cassete). Além da participação em quase todos os “cultos jovem”, participavam das reuniões de oração às terças-feiras, de eventos e cultos em outras Igrejas protestantes de Ribeirão Preto e região. O Grupo Kérigma era formado por jovens influenciados por Vencedores por Cristo, Grupo Semente, Logos entre outros grupos de música cristã contemporânea. O grupo esteve em atividade até, aproximadamente, 1987. O Ministério Load - o termo significa “louvor e adoração”-, formado em setembro de 1985 era o grupo responsável pelo louvor6 nos cultos vespertinos. Observa-se nas decisões da liderança da época, ao mesmo tempo, uma abertura para grupos de música como o Ministério Load, e também o “temor” de afastar as lideranças mais tradicionais e idosos da

6 “Grupo de louvor” é um conjunto musical formado por adolescentes, jovens e adultos, que trabalha um repertório de música cristã contemporânea com instrumentos populares (guitarra, baixo elétrico, bateria, teclado, violão, percussão entre outros). O objetivo é exe-cutar esse repertório em determinada parte do culto, com a participação ativa da congre-gação cantando a letra impressa no boletim informativo, hinário ou projetado em um telão ou na parede, através do retro-projetor (e hoje, datashow).

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Igreja por causa da música adotada pelo grupo. O Pastor Wilson resolveu o impasse colocando o Ministério Load e suas músicas “modernas” na programação litúrgica antes do início do culto. Segundo Haroldo A. de Araújo, um dos integrantes do Ministério Load, “[...] no culto “solene” de domingo à noite havia muito preconceito, ao ponto de, em algumas vezes, termos o momento de louvor antes de começar o culto”. O Ministério Load durou apenas dois anos; a última vez que aparece nos boletins é em fevereiro de 1987. Na seqüência surge a Banda Brilho. Nos Boletins Informativos, aparecem pela primeira vez no primeiro domingo de maio de 1988. No repertório, além de versões sobre músicas gravadas de outros grupos musicais como Rebanhão e Banda Azul, músicas próprias mais ligadas aos estilos da música cristã contemporânea que despontavam (rock, reggae, soul, etc.). Havia muita resistência da liderança sobre esse formato musical utilizado pelo grupo, como por exemplo, o veto de execução em um culto vespertino pelo Pastor Wilson de S. Lopes da música A Bússola, composta no estilo rock e rap. Havia um paradoxo: a liderança vetava músicas “inapropriadas”, mas, ao mesmo tempo, praticamente todos os cultos de 1988 contavam com “cânticos através da União da Mocidade Presbiteriana” ou “Banda Brilho”. O Pastor Wilson e o Conselho entendiam que a música e a participação da mocidade nos cultos era uma forma de manter os jovens na Igreja, além de atrair outros, mas ainda eram reticentes quanto ao emprego dos novos estilos musicais. Segundo o Pastor Lucas;

[...] Os mais tradicionais viam os grupos jovens como alguma coisa que não pertencia à Igreja, algo “do mundo”. Isto sempre trazia reações, comentários, e atitudes que não ajudavam os jovens a se envolverem mais na Igreja.

O problema relacionado aos estilos musicais e instrumentos “populares” em 1984 ainda persistia em 1988. Paiva constata que muito

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debate ocorria por conta dos novos instrumentos e músicas que os jovens estavam executando, levando alguns a saírem do rol de membros da Igreja:

[...] Pessoas saíram da Igreja e culparam os instrumentos no interrogatório subseqüente. Ninguém sai da Igreja sem explicar os motivos; vai gente na sua casa em busca de respostas sólidas.[...]

A Banda Brilho durou dois anos, encerrando suas atividades em 1989. Além do compositor e músico Gilberto Bueno de C. Filho, ex-integrante do Ministério Load, que continuou em um trabalho solo na Igreja junto à música cristã contemporânea, um novo grupo de louvor, formado por adolescentes e influenciado pelos grupos musicais da Igreja Presbiteriana de Ribeirão Preto da década de 1980 e por aqueles que visitaram a Igreja, passou a ser a nova equipe de louvor da Igreja. Com Gilberto Bueno de C. Filho e este grupo de adolescentes, a música cristã contemporânea continuaria na Igreja Presbiteriana de Ribeirão Preto na década de 1990.

Considerações Finais

Segundo Tavares Neto (2001):, “[...] O tratamento da problemática da religião cresce na academia, indicando novos desdobramentos de sua importância como elemento de integração social, uso político, segmento social, e outros.” Este crescimento de pesquisa acadêmica sobre as religiões, e mais especificamente sobre o cristianismo, se deve provavelmente à quantidade de fiéis que cresce nas últimas décadas, principalmente entre os protestantes, que somam hoje em todo o país, segundo pesquisa em

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conjunto realizada em 2005 e 2006, pelas universidades federais de São Paulo (UNIFESP) e de Juiz de Fora (UFJF), 24% da população.7

Segundo pesquisa da revista Cenário Musical, voltada para o mercado de instrumentos e equipamentos musicais,

Em 2005, havia 150 mil templos protestantes espalhados por todo o Brasil; seis redes de televisão, com transmissão em tempo integral; mais de 20.000 rádios com programação 100% cristã, algumas entre as cinco mais ouvidas nas maiores cidades; mais de 100 veículos impressos, entre jornais e revistas, com tiragens de até 2 milhões de exemplares mensais; mais de 30.000 sites na internet de instituições cristãs; mais de 200 mil grupos de louvor, algo em torno de um milhão de pessoas envolvidas com música nas Igrejas. (COSTA, 2004).

Apesar da arte musical ser constante em toda história do culto protestante, ela é ainda hoje, apesar dos dados de pesquisa acima, motivo de discórdia entre a liderança eclesiástica presbiteriana e os membros desta denominação que apreciam música popular. Como exemplo, na liturgia que antecede as reuniões do Supremo Concílio, só foi liberada a execução de música cristã contemporânea em 1994. (TAVARES NETO, 1997).

No entanto, desde o final da década de 1960, com a chegada das missões estrangeiras como Mocidade Para Cristo e Palavra da Vida, tem ocorrido uma abertura lenta e gradual para esse novo formato musical. Segundo Tavares Neto (1997), estas missões serviram como um meio de abertura na mentalidade presbiteriana: muitos membros passaram a aceitar que existem outras formas de governo eclesiástico que também “funcionam”; que as mulheres podem ser líderes religiosas; que para ser pastor, não é necessário ser formado em teologia; que a verdade não se encontra apenas nos concílios etc.

7 VEJA ONLINE, 11% dos brasileiros têm mais de uma crença, 04 de maio 2007, Disponível em <http://vejaonline.abril.com.br/notitia/servlet/newstorm.ns.presentation.NavigationServlet?publicationCode=1&pageCode=1&textCode=126317&currentDate=1178311200000>. Acessado em 23 de set. 2007.

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Esta abertura é lenta devido a uma possível resposta histórica: ser convertido ao protestantismo, desde a chegada dos primeiros reformados no Brasil, era não apenas aceitar a nova religião, mas também mudar os hábitos antigos e passar a ter novos valores, semelhantes aos dos missionários estrangeiros. (MENDONÇA & VELASQUES FILHO, 1990). Quando se examina o hinário Salmos e Hinos, observa-se que a quase totalidade dos hinos provém de autores europeus e estadunidenses. Os ritmos e instrumentos brasileiros eram considerados indignos de se utilizar no culto à Deus. Essa visão de mundo criou duas esferas: a do sagrado e do profano, além de afastar o novo convertido brasileiro de sua cultura nativa. Esta divisão entre sacro e profano estava no final da década de 1980, ainda muito ligada à liderança da Igreja Presbiteriana do Brasil em relação à música. Em 1988, o Supremo Concílio decidiu julgar como “problema doutrinário” um artigo de autoria do pastor presbiteriano Luís Longini Netto, publicado no jornal Contexto, onde lemos: “Entendo que a divisão entre música sagrada e profana, não existe. Para nós cristãos tudo é sagrado”. Ao fazer referências à música do compositor popular Ivan Lins, intitulada “Bandeira do Divino”, afirmou: “Tenho pensado muito nesta canção, por isso resolvi tentar uma análise para resgatar o conteúdo bíblico ao lado das formas populares de religiosidade”.8

Interpretamos com esta decisão do Supremo Concílio, que os pastores atrelados ao presbiterianismo não devem nem ao menos “tentar uma análise” sobre composições musicais de origem não protestante, ligando-as a suas atividades evangelistas ou eclesiais, o que denota o conservadorismo da principal liderança da denominação e um afastamento da realidade brasileira contextual. Pesquisando sobre “sacro” e “profano”, encontramos a discussão sendo feita recentemente em alguns dos principais meios de comunicação oficiais da Igreja Presbiteriana do Brasil: jornal Brasil Presbiteriano e

8 IGREJA PRESBITERIANA DO BRASIL, Digesto das decisões do Supremo Concílio e de sua Comissão Executiva (1981-1990). CE -88-093.

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na revista Servos Ordenados, condenando, em parte, a utilização de instrumentos e ritmos populares. Baseando-se neste conservadorismo, supomos então, que as “permissões” da liderança eclesiástica presbiteriana de Ribeirão Preto para as mudanças estilísticas musicais, principalmente a partir da década de 1980, tanto em seu formato poético como na adoção de instrumentos “populares”, apontam para a necessidade da manutenção dos fiéis atrelados à denominação (em especial às camadas jovens). Se a liderança não permitisse a entrada do formato musical popular em seus cultos, poderia ocorrer uma saída em massa da juventude em busca desta liberdade religiosa, oferecida, por exemplo, pelas denominações pentecostais, como a Igreja do Evangelho Quadrangular, que já utilizava instrumentos musicais populares em seus cultos desde 1953. (ALENCAR, 2005). Provavelmente existam outras causas de conflito, mais amplas e polêmicas sobre a música executada na Igreja Presbiteriana de Ribeirão Preto, no recorte temporal proposto, não abordadas nesta pesquisa. Nosso compromisso como historiadores é com a ética (BLOCH, 2001 ). Pautados nela elaboramos o presente trabalho que não pretendemos como a única resposta à problemática. Como incentiva Le Goff (1993), propomos uma história: [...] não automática, mas problemática. E, mais do que nunca, os problemas de uma história para o tempo presente, para nos permitir viver e compreender num mundo em estado de instabilidade definitiva. [...].

Music protestant in Ribeirao Preto: the presbyterian experience. DIALOGUS. Ribeirão Preto, v.5, n.1, 2009, p. 95 - 118.

ABSTRACT: Historical analysis of music in protestant Church in Ribeirao Preto. The main focus is the entrance of the repertoire of popular stamp and the formations instrumental and vocal arising in the period from 1977 to 1989, the Presbyterian Church of this city.

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KEYWORDS: music, protestantism, Ribeirao Preto.

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ENTREVISTASARAÚJO, Haroldo A de. Depoimento [11 de set de 2007]. Ribeirão Preto.BANKS, Sonia Maria R. Depoimento [26 de set. de 2007]. Ribeirão Preto.DEL MONTE, Marta L. Depoimento [30 de set. de 2007]. Ribeirão Preto. GONçALVES, Hébert dos S. Depoimento [12 de set. de 2007]. Ribeirão Preto.

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PESTES E PENÚRIAS NOS RELATOS JESUÍTICOS DO SÉCULO XVI

Felipe Ziotti NARITA*

RESUMO: Este artigo pretende analisar o cotidiano missionário jesuítico no Brasil colônia do século XVI. Por meio do estudo das cartas escritas por jesuítas, na colônia, esta pesquisa expõe as inúmeras adversidades à ação missionária nas novas terras. Pestes, fome, conflitos indígenas e a precariedade do cotidiano colonial formaram uma série de imagens construídas nas cartas jesuíticas que corroboram a representação de uma colônia como local de destino malfadado.

PALAVRAS-CHAVE: Brasil colônia; Jesuítas; Pestes.

No final do século XVI, o Padre Fernão Cardim (1980, p.25) registrava que “o Clima do Brasil geralmente he temperado de bons, delicados, e salutiferos ares, donde os homens vivem muito até noventa, cento e mais annos”, de modo que “os céos são muitos puros e claros, principalmente de noite”. Apresentar a colônia a partir da imagem de uma natureza exuberante em uma terra sadia, dotada de boa temperança e de caudalosos rios, corroborava a projeção de um horizonte de deleites para as aventuras lusitanas nas terras d’além mar. O cronista quinhentista

* Graduando em História pela Universidade Estadual Paulista (UNESP) – Faculdade de História, Direito e Serviço Social – campus de Franca. Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). Membro do grupo de pesquisa do CNPq intitulado “Políticas públicas e democratização do ensino no Brasil: a implementação das propostas educacionais: mudanças e permanências”, sob orientação do Prof. Dr. Ivan Apa-recido Manoel.

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Pero de Magalhães Gandavo (1980), na História da Província Santa Cruz, descreve a colônia como terra de “bons ares e fertilissima”, aprazível de tal forma que era “salutifera e livre de enfermidades”. A partir dos relatos de Gandavo, Sérgio Buarque de Holanda (1985) argumenta que houve uma ressonância daquela visão do Paraíso que, em fins do século XV e início do XVI, norteou os descobrimentos marítimos em torno da idéia do Éden. Visão de um Paraíso que se tornou cada vez mais difuso e temeroso. Se a colônia apresentava as inúmeras virtudes naturais que povoavam o horizonte cultural europeu, ela também era um destino abominável, tal como na passagem do Auto da Barca do Purgatório, peça escrita por Gil Vicente, dedicada à muito devota e catholica Rainha D. Leonor e datada de 1518, em que um dos versos exprime a repulsa pelas novas terras: “Ora assim me salve Deos / E me livre do Brazil” (1965, p.261). Geraldo Pieroni (2000, p.250) observa que:

[...] se por um lado esse vasto território foi um maravilhoso Paraíso, um mundo fantástico para o explorador português, por outro foi também comparado ao Inferno: a colônia brasileira constituía lugar assustador, onde a natureza humana freqüentemente se identificava com o Diabo em pessoa.

Uma vez que há uma série de documentos que apóia a construção de imagens de uma terra de bem-aventurança, onde podem ser encontradas as referências a um destino malfadado? Alguns apontamentos, nesse sentido, podem ser tecidos a partir de análises das cartas escritas por jesuítas1 que, no Brasil colônia, realizaram incansavelmente sua obra ad majorem Dei Gloriam, de modo que, para concretizá-la, tiveram que contornar um cotidiano sempre ameaçador, seja pelas agressões à moral

1 Referência aos membros da Companhia de Jesus, considerada uma das mais importan-tes ordens religiosas do século XVI. A Companhia teve origem em 1534, com a reunião de estudantes – dentre eles, Inácio de Loyola –, e foi oficializada por Roma por meio da bula Regimini Militantis Ecclesiae, em 1540. O desembarque da primeira missão jesuítica no Brasil colônia ocorreu em 1549, sob chefia do Padre Manuel da Nóbrega, juntamente com a chegada do primeiro governador-geral.

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e aos valores da civilidade cristã ou pelas penúrias e pestes que assolavam a nova terra.

Paraíso e Inferno. É justamente nesse dualismo que reside a riqueza da documentação compreendida pelas cartas jesuíticas: elas condensam expressões que contornam um painel de sensibilidades e de representações da paisagem2 colonial. No afã de edificar uma obra educacional – cujo eixo era a formação religiosa – e de projetar sobre aqueles rudes transeuntes da colônia os alicerces de uma vida cristã, os jesuítas deixaram relatadas nas cartas uma parcela significativa de suas experiências, carregadas de visões de mundo construídas a partir da religiosidade católica. Se os colonizadores chegaram imbuídos pela imagem do Éden, que evidenciou dois modos diversos de colonização3, é com a experiência colonial desenvolvida a partir da segunda metade do século XVI que os relatos começam a mostrar a outra face da vida na colônia. Era uma vida que escancarava as hostilidades: o trabalho jesuítico em solo colonial era desgastante. Tal era o regime de penúrias enfrentado pelos abnegados Padres e Irmãos da Companhia que, em 1555, uma discreta lamúria ecoou no registro de José de Anchieta: afinal, havia um sem número de dificuldades para conduzir a Palavra àquela terra “onde o Senhor se digna colher algum fruto entre espinhos e cardos” (LEITE, 1954b, p.193).

Já em junho de 1551, o Irmão Pero Correia exprimia-se, em carta aos seus pares de Coimbra, nos seguintes termos: “há quá tanta miseria que se as ouvesse todas d’escrever, sei que lhe porião grande magoa em seu coraçaum” (LEITE, 1954a, p.223). Lamento profundo de um jesuíta que se deparava com a imensa obra espiritual que a terra 2 Paisagem, neste trabalho, é entendida nos termos conceituais desenvolvidos por Nor-bert Elias (1985), que indica que a paisagem não se restringe aos contornos naturais, mas, sobretudo, faz referência a um horizonte cultural marcado por um jogo de representações da natureza, da arquitetura, dos gestos e das atitudes de uma formação social.3 Para conferir a célebre tese de Sérgio Buarque de Holanda acerca do estabelecimen-to de duas formas de colonização (portuguesa e espanhola) a partir de duas formas de apropriação do mito edênico: HOLANDA, S. B. de. Visão do Paraíso. São Paulo: Nacional, 1985.

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demandava sem, necessariamente, haver um contingente satisfatório de missionários para realizá-la: “em tamanha vinha bem á hi que cavar, mas faltão cavadores” (LEITE, 1954a, p.223). A escassez de missionários na colônia era um tópico constante nas cartas jesuíticas do século XVI: sem um número significativo daqueles operarii evangelici, homens zelosos pelo amparo espiritual, o sucesso da missão jesuítica, centrada na catequese, mecanismo fundamental que conferiu unidade às práticas religiosas defendidas pela Companhia, permanecia comprometido. O jesuíta pedia atenção ao trabalho de catequese, já que este extirparia os males da colônia apartando aquela sociedade dos costumes malfazejos que tanto escandalizavam a vida no trópico.

Se o número de missionários era insuficiente para tão laboriosa missão, os poucos eclesiásticos em atividade na colônia deixavam os compromissos de fé à revelia. Não foi à toa que Manuel da Nóbrega, em setembro de 1551, durante sua passagem pela capitania de Pernambuco, denunciou a vida de excessos e de desregramentos que governava a confusa moral daquela terra pouco afável à sobriedade e à retidão do missionário:

Hos eclesiasticos que achei, que são cinquo ou seis, viviam a mesma vida e com mais escândalo, e alguns apostatas; e por todos asi viverem nam se estranha pecar. Há ignorância das cousas de nossa fé catholica hé quá muta e parece-lhes novidade há pregação delas (NÓBREGA, 1955, p.98).

Os males que a vida colonial expunha não eram somente identificados em meio à vida de pecados e de escândalos. Havia as temidas pestilências que afetavam os habitantes. Assim, o sucesso para a cura dos males físicos perpassava, sobretudo, pela projeção dos preceitos cristãos sobre as mais singelas atitudes da vida colonial. Quando, em carta datada de março de 1562, José de Anchieta fala das enfermidades e da necessidade de efetuar sangrias para curá-las, sua mensagem também tangencia uma cura que era, sobretudo, espiritual, uma vez que os males

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físicos eram acudidos “en las cosas espirituales como en las corporales, curándolos y sangrándolos” (LEITE, 1954c, p. 454).

Ambiente pouco afortunado para a penetração dos valores cristãos, a colônia mantinha vivo o semblante do passado pagão. Os “feiticeiros”4 e as suas técnicas de cura eram motivos de preocupação para a empreitada jesuítica. O Irmão Vicente Rodrigues, em maio de 1552, registrou a morte de cristãos, na Bahia, após envolverem-se com os ditos “feiticeiros”. O jesuíta indica que “ai muchos hechiceros que lhe mettieron en la cabeça muchas imaginaciones del demonio” (LEITE, 1954a, p.304), de modo que “de aí a quatro dias murió de uma muerte terrible” (LEITE, 1954a, p.304). No final da carta, Vicente Rodrigues relata que “en la misma Aldea estando un ninno quasi muerto, recibió salud con ser baptiçado” (LEITE, 1954a, p.305). Os alertas sobre as atitudes condenáveis, bem como sobre o batismo e a conversão ao cristianismo, tornaram-se artifícios pedagógicos. Como se comportar frente à degradação? Era necessário se preservar. Para tanto, a chave para sanar os sinais de debilidade, tanto física quanto moral, estava na Bíblia. Com efeito,

A doença para o jesuíta, como também para a maioria da população européia, era oriunda não de uma debilidade do organismo humano, mas sim de uma debilidade ético-moral. Dentro dessa perspectiva, na maioria dos casos, as doenças e a mortandade são consideradas influência do Diabo, e portanto devem ser curadas principalmente no âmbito espiritual (ASSUNÇÃO, 2000, p. 217).

Ao trabalho missionário cabia parcimônia, sobretudo porque 4 As referências aos feiticeiros e à feitiçaria aparecem registradas nos manuais de demo-nologia, que proliferaram na Europa nos séculos XV e XVI – sobretudo na França e na Espanha. Na América Portuguesa, a demonologia apresentou traços muito pálidos – em contraste com a sistemática tradição demonológica na América Espanhola –, tal como Ronaldo Vainfas (1995) e Laura de Mello e Souza (1993) demonstraram. Desse modo, neste texto, nas referências aos ditos “feiticeiros”, optou-se por utilizar aspas a fim de evitar analogias imprecisas do “feiticeiro” que aparece em algumas cartas jesuíticas do Brasil colônia com a imagem do feiticeiro que se construiu no saber demonológico transportado ao Novo Mundo, sobretudo, pela colonização espanhola.

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era preciso estar atento aos sinais dos céus. A cólera divina acometia a vida colonial, que, não raramente, se fustigava em misérias. José de Anchieta (LEITE, 1954c, p.379), em julho de 1561, expressava o estado de inquietação que assolava os habitantes de São Vicente:

Este año nos castigó la divina justitia com muchas enfermedades, principalmente con cámaras de sangre, las quales díeron máxime por los esclavos de que murieron muchos, en tanto que parescía pestilentia; dos, tres, quando mucho quatro dias duravan com ellas que no muriessen, aunque otros an escapado.

Todos estavam expostos às pestes5. Assim, amparar a vida dos habitantes era tarefa sempre penosa, que exigia o máximo de diligência, já que a via direta para a salvação daquelas almas estava em “ayudar a los próximos con doctrinas y confessiones, aunque com assaz trabajo” (LEITE, 1954c, p.380). Ainda conforme o testemunho de Anchieta, os membros da Companhia eram incansáveis nos trabalhos que lhes eram designados:

Esto nos a dado mucho trabajo, porque de dia y de noche no cessávamos de lês confessar y acudir con los remedios que podíamos [...] Y por la mucha diligentia que los Hermanos em esto ponían, no murieron alli tantos como en otros lugares onde esto les faltava, en los quales murieron muchos sin confessión por lãs poblationes ser muchas y nosotros pocos y no poder socorrer a todas (LEITE, 1954c, p.380).

Fome, pestes e guerras estavam, muitas vezes, associadas. Formavam uma combinação funesta: presságio de calamidades que

5 Alguns surtos eram verdadeiras calamidades para os habitantes, de modo que, freqüen-temente, os órgãos administrativos manifestavam grandes preocupações. Luís Soares de Camargo (2007), ao analisar a irrupção da varíola (popularmente conhecida como “bexi-gas”), em 1563, na Vila de São Paulo, demonstrou que “para justificar o estado de penúria instalado por conta da epidemia, explicaram os vereadores naquela ocasião que ‘... as doenças foram muitas e as bexigas mataram muita gente e os que escaparam estão ainda que não podem trabalhar’ ”.

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horrorizavam os jesuítas e a sociedade colonial. John Manuel Monteiro (1994, p.39), ao analisar relatos jesuíticos no Brasil colônia do século XVI, sublinha que “às vezes assolando diversas capitanias de uma só vez, as epidemias mortais tornaram-se cada vez mais freqüentes na segunda metade do século [...] Surtos consideráveis de sarampo e varíola irromperam em São Vicente durante a guerra de 1560-3”. O Irmão Antonio Rodrigues (LEITE, 1954a, p.471), em maio de 1553, em uma carta na qual relatou suas experiências, anos antes, quando percorrera as margens do Rio da Prata, informa que uma grande fome vitimara os homens. Além da fome, as incursões indígenas eram perigos constantes para a expedição:

Luego N. S. por castigar nuestra codicia y pecados que soldados comúmente hazen, permittió venir tal hambre al real que no davan a comer cada uno cada dia sino 6 onças de pan [...] aunque no dexó N. S. a estos que castigavan a los otros sin castigo, porque venieron los gentiles um dia de Corpus Christi y mataron 40 de los más nobles e esforçados.

Como ler os sinais que abatiam e flagelavam aqueles homens? Eram sinais da vontade divina. A principal alternativa para apartar-se da condição de pecadores estava em recorrer aos signos cristãos. Conforme registrou Pero Correia (LEITE, 1954b, p.70), em 1554, a mortandade abatera “tres Principales y muchos otros yndios y yndias”. Segundo o mesmo jesuíta, a melhor forma encontrada para extirpar aqueles males que assolavam os homens encontrava-se nas procissões, sempre acompanhadas pela cruz e pelas ladainhas, compondo uma espécie de encenação em que as súplicas e a misericórdia representavam o êxito alcançado pela tarefa espiritual de atenuar as chagas que irrompiam na vida colonial:

Hizimos nueve procisiones a los nueve coros de los Angeles contra todo el ynfiermo, y luego la muerte cesó. Esta procisión hazíamos a uma cruz que tenemos en una cierta parte. Alli yvan los niños solamente de los Yndios diciplinándose, y los yndios y yndias con candelas encendidas

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diziendo ora pro nobis; y preguntavan las diferencias de las letanías que querían dezir.

Como um eco daquelas aflições reportadas pelo Irmão Pero Correia, o recurso à misericórdia também aparece registrado em meio às penúrias enfrentadas pelo Irmão António de Sá, em 1559, na capitania do Espírito Santo. Segundo o jesuíta, a “mortindade começou no certão e pella costa des o Rio de Janeiro com ramo de peste; e chegando a Tapemiri, que serão daqui 20 legoas, cortando a espada da ira de Deos por alguns e matando corpos e almas” (LEITE, 1954c, p.19).

Impressões sobre o meio natural também alimentaram as penas dos jesuítas. Se a terra possuía vastos campos para a criação de animais que abasteciam os Colégios e as Casas dos Padres e Irmãos da Companhia, aquela mesma terra escondia ameaças. A natureza e a imensa fauna da colônia escondiam um perigo sempre iminente. Os principais relatos, nesse sentido, foram produzidos por José de Anchieta, que descreve inúmeros animais sem esconder uma espécie de “deslumbramento contido” (ASSUNÇÃO, 2000) que, timidamente, transparece nas suas letras não sem mostrar um gosto pelo exótico e pela fauna tão diferente e curiosa daquela que habitava a Europa.

O ambiente que deslumbrava também assustava. Como representar os perigos naturais da colônia? Em carta enviada a Roma, em maio de 1560, Anchieta (LEITE, 1954c, p.215) dedica boa parte de seu relato à descrição das inúmeras cobras venenosas que povoavam aquela terra incógnita (nonnulla sunt animalia isti orbis incognita, ac primo quidem colubrorum diversa genera venenosa). O contato com aqueles animais venenosos era tão freqüente e temido que, em tom de alerta, Anchieta (LEITE, 1954c, p.217) argumenta que perambular pelas aldeias e vilas sem algum perigo era tarefa impensável (ita frequentes sunt, ut non sine magno periculo possit iter fieri).

Pestes, penúrias e um sem número de precariedades da vida colonial marcaram profundamente a missão jesuítica nas novas terras. Todas essas adversidades não se tornaram, entretanto, entraves para o

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próspero labor missionário: afinal, os jesuítas permaneceram por mais de dois séculos na colônia, de modo que lograram o sucesso da missão com a edificação de uma obra educacional que ocupou proeminência no ensino colonial. Aquelas dificuldades enfrentadas pelos tenazes inacianos eram, antes, desafios dos primeiros tempos, somente contornados pela flexibilidade dos seguidores de Inácio de Loyola em se adaptar às condições de terra tão hostil. Deixemos Anchieta (LEITE, 1954c, p.217) com a palavra, pois todo o fardo da tarefa missionária se justificava pelas incumbências do ofício (quod nobis ex officio incumbit). Tarefa desenvolvida a duras penas: se os contratempos da obra de conversão do gentio evidenciavam, sobretudo, os contrastes culturais entre europeus e índios, as dificuldades da missão jesuítica no Brasil colônia não se restringiram a isso: havia uma natureza contornada por um vasto sertão, misterioso e perigoso, que muito atraía o olhar dos jesuítas, a exemplo de Manuel da Nóbrega (LEITE, 1954a, p.354): em 1552, o jesuíta registrou que “muito desejosos andamos todos de hir pollo certão” a fim de conseguir “lugar para ir ganhando terra adiante, porque temos novas de gentios onde acharemos alguns escolhidos pera o reino dos ceos”. O mesmo sertão que arrebatava o alento missionário impunha-se no horizonte da empreitada jesuítica com uma dubiedade bastante particular: se era um instigante espaço para a conversão de inúmeras almas, ele também era o lugar onde a natureza se mostrava mais feroz e bestial, mais próxima da danação do que do jardim do Éden.

NARITA, Felipe Ziotti. Pestilences in 16th century Jesuit reports. DIALOGUS. Ribeirão Preto, vol.5, n.1, 2009, p. 119 - 129.

ABSTRACT: This paper intends to analyze the missionary everyday life in 16th century colonial Brazil. By the study of letters written by the Jesuits, this research shows several opposite ways to missionary action at the colony. Pestilences, hunger, Indian wars and a poor colonial everyday life made images built in Jesuit letters which point out a colony as a horrifying

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place, where the adversities made a precarious way of life.

KEYWORDS: Colonial Brazil; Jesuits; Pestilences.

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ARTIGOS / ARTICLES

EDUCAÇÃO / EDUCATION

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ISERÇÃO SOCIAL PELA EDUCAÇÃO: PANORAMA SÓCIO-HISTÓRICO DA IMPRENSA NEGRA PAULISTA

Sabrina Rodrigues Garcia BALSALOBRE*

RESUMO: A Imprensa Negra Paulista caracterizou-se por ser um movimento jornalístico feito por negros e dedicado a essa população, no início do século XX. Este artigo se propõe a traçar um panorama do momento histórico em que ocorrem esses jornais, exemplificando com a análise de três periódicos. A partir desses dados, é estabelecida uma relação entre a tentativa de inserção social da população negra e a importância do combate ao analfabetismo.

PALAVRAS-CHAVE: Imprensa Negra Paulista; movimento negro; escolarização.

A imprensa negra no Brasil ha de surgir um dia, grande na sua liberdade, poderosa na sua acção.

(LEITE, O Clarim d’Alvorada, 1 de abril de 1928)

A Imprensa Negra paulista representa um privilegiado meio de informações sobre a situação linguístico-social da população afrobrasileira do período pós-abolição da escravatura no Brasil. Esse material revela dados valiosos acerca da tentativa de reconhecimento social dessa população também por meio da aquisição da norma linguística de prestígio da época.

* Mestre em Lingüística pelo Programa de Pós Graduação em Lingüística e Língua Portu-guesa da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras – Campus de Araraquara, SP, Brasil. O presente artigo baseia-se na pes-quisa de mestrado intitulada “Língua e sociedade nas páginas da Imprensa Negra paulista: um olhar sobre as formas de tratamento”, defendida em 08/05/2009.

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A proposta deste artigo é apresentar o contexto histórico e enfatizar a situação sócio-econômica da população negra no início do século XX e os motivadores do surgimento da Imprensa Negra. A partir desse panorama é possível depreender alguns dados acerca dessa parcela da população que, majoritariamente, emprega a língua portuguesa em sua variedade popular e tem a educação como ponto fundamental para a inserção social. Nesse estudo ainda está em foco a discussão acerca das características fundamentais da Imprensa Negra e dos jornais selecionados para análise.

A Imprensa Negra paulista caracterizou-se por ser um movimento jornalístico organizado por negros e dedicado a essa população, nos anos iniciais do século XX, ou seja, num período imediatamente posterior à abolição da escravatura no Brasil. Nesse momento, a comunidade negra tinha a necessidade de buscar um espaço na sociedade paulistana e, com essa finalidade, os jornais publicados funcionavam como um estandarte de inserção social, uma vez que os redatores desses jornais aconselhavam os membros da comunidade ao trabalho, ao abandono de vícios, além de exaltarem a importância de seus eventos e agremiações sociais.

Em função da conjuntura política e econômica – a passagem do regime servil para a contratação de mão-de-obra assalariada de imigrantes – a população negra foi colocada em desleal competição com os trabalhadores brancos. De forma que, lentamente, os negros passaram a ser absorvidos no mercado de trabalho nas profissões mais humildes e mal remuneradas. Consequentemente, essa parcela da população de São Paulo ficou às margens do grande surto comercial e industrial que ocorreu na cidade na primeira metade do século XX.

Nesse sentido, Fernandes (1978) defende que foram três os fatores que mais prejudicaram a integração do negro na sociedade paulistana: o primeiro fator está diretamente ligado ao modo como se deu o processo de expansão urbana de São Paulo, que não reproduziu o padrão típico das cidades brasileiras ao não se desenvolver em conexão com o progresso agrário; outro fator essencial mencionado pelo autor é a competição desleal com o imigrante europeu, que absorveu as melhores

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oportunidades de trabalho; e, como último fator, Fernandes coloca uma questão ideológica, ao classificar São Paulo como o primeiro centro brasileiro marcadamente burguês, baseado em uma concepção de mundo tradicionalista e de dominação patrimonialista.

De maneira geral, a condição de homens livres provocou nos negros uma nova percepção de seus papéis sociais e status na sociedade. Essa nova compreensão originou dois tipos de comportamentos contraditórios, segundo ressaltam Bastide e Fernandes (1959):

De um lado, alimentava ela uma atitude de reação latente entre a associação de côr de pele e uma situação social degradante. Mas de outro, sublinhava a excelência dos valores da camada racial dominante, à medida que os transformava em símbolo de dignidade e de independência, e desencadeava sentimentos de inferioridade, que compelia as pessoas de côr livres a evitar o convívio com os brancos (BASTIDE; FERNANDES, 1959, p.125).

Em depoimento fornecido a Cuti (1992), José Correia Leite (1900-1989) – um dos grandes militantes negros do século XX e fundador do jornal O Clarim d´Alvorada – comenta a mácula deixada pelo longo período de escravidão no Brasil:

Esse meu depoimento espero que possa ser um ponto de referência para as pessoas interessadas em saber o que houve, o que fez uma minoria preocupada em apontar os erros e injustiças da tal abolição da escravatura. Só o negro pode advogar essa questão. As conseqüências ainda estão aí. É uma carga muito forte e negativa dos 400 anos de retardamento não só físico, mas também mental e espiritual. Então, um grupo mais ou menos esclarecido entendia que o negro devia ir a campo para se conscientizar e combater com a mesma arma do branco: cultura e instrução, o que o negro não tinha nem se preocupava em ter.

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E nós tínhamos de enfrentar também o meio branco. Para uma boa parte dele, o negro estava muito bem aqui no Brasil, tinha liberdade para morrer de beber cachaça, de tuberculose... Mas havia brancos que se preocupavam humanamente, dentre os quais alguns conheciam o problema melhor que a gente. Mas, de maneira geral, os brancos viam no negro uma raça inferior, achavam que nós não tínhamos necessidade de subir, e que o mínimo para a sobrevivência era o bastante (LEITE, 1992, p.21).

A formação da Imprensa Negra se deu, de acordo com Ferrara (1986), pela necessidade dos negros de veicularem as reivindicações por melhores condições de vida e as propostas de inserção na sociedade brasileira. Dessa forma, esses jornais tiveram um papel fundamental na elaboração de uma identidade afrobrasileira.

De modo geral, os editores dos jornais representavam um conjunto de intelectuais negros, que pertenciam a um restrito grupo de alfabetizados. Ainda assim, dentro desse grupo de intelectuais, pouquíssimos pertenciam de fato à grande burguesia, pois atuavam, em geral, como funcionários públicos de baixo escalão, motoristas particulares, cozinheiros etc. Apesar do fato de que esses jornalistas não estavam inseridos numa classe social bem favorecida, eles ainda constituíam uma pequena ‘elite’, uma vez que, nas primeiras décadas do século XX, era limitado o número de pessoas que dominava a leitura e escrita.

É nesse sentido que Garcia (1997) defende que os negros que compunham essa elite sofriam um processo de ‘aburguesamento’, por defenderem avanços culturais e materiais para a comunidade negra, sobretudo por meio do incentivo à educação e adequação desses negros aos valores da sociedade majoritária paulista, particularmente burguesa.

É perceptível que o trabalho dos militantes da Imprensa Negra se dava em função da luta por um ideal, por acreditarem na imprensa como um meio legal para tentar melhorar a vida de seus iguais. Por essa razão, grande parte dos jornais tinha vida curta ou periodicidade inconstante,

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por serem os próprios redatores que bancavam os custos da impressão e quase sempre acabavam em prejuízo. A luta por esse ideal fica clara nesse relato de Leite:

Toda preocupação era aquela: unir os negros para uma luta de reivindicação junto aos governos, para que eles ouvissem nosso apelo. Naquele tempo o negro ainda pensava nisso. Porque o 13 de maio ainda não estava longe. Não era como hoje que está há quase cem anos passado. Naquele tempo era questão de menos de quarenta anos, trinta e poucos anos de distância, de modo que muitas daquelas pessoas de idade eram netos ou filhos de escravos (LEITE, 1992, p. 74).

No entanto, apesar da nítida noção de que a escravidão ainda estava, temporalmente, muito próxima, os redatores do jornal não buscavam promover um resgate de suas raízes africanas. Isso não acontecia em razão de se negar a ancestralidade, mas de constituir uma identidade afrobrasileira – ou seja, perpetuar a ideia de que o negro nascido no Brasil é brasileiro. Outro ponto defendido pelos estudiosos da Imprensa Negra acerca da pouca alusão à África nesses periódicos é a falta de informação sobre esse continente no Brasil da época.

Uma vez que os intelectuais responsáveis pelos jornais tinham o objetivo maior de conclamar a atenção dos negros para a necessidade de reconhecimento social, alguns ideais eram transmitidos incessantemente pelos jornais da Imprensa Negra, sobretudo no que concerne à educação, ao incentivo ao trabalho e à união:

Aos leitores

Digam o que quizerem, mas é uma verdade, estamos convencidos que a maioria dos nossos homens de cor, pouco ou nada fazem para sahirem do triste estado de decadencia em que vivem! É lastimável!Nós precisamos unirmo-nos, porque é da união que nasce a

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força. Empunhando o nosso estandarte em pról d’um idéal elevado, como seja: o combate ao Analphabetismo, essa praga que nos fazem mais escravos, do que quando o Brazil era uma feitoria; é que não recuamos perante os ataques e zombarias dos pessimistas e dos que vivem sómente para lançar a desharmonia no seio da nossa classe. Vamos, meus amigos, um pouco de bôa vontade, porque combater o Analphabetismo é dever de honra de todo do brazileiro.1

Para nós vencermos essa difficuldade, precisamos trazer os livros didacticos da nossa terra na dextra e na outra os utensílios do trabalho que representam os formidaveis progressos do nosso glorioso estado de S. Paulo, expoente maximo da União.2

Além desse caráter instrutivo, os jornais também se dedicavam a noticiar a vida social da comunidade negra, visando uma divulgação de sua organização social. Nesse sentido, eram publicadas nos jornais, tal qual comumente ocorria com a imprensa da época, notas que divulgavam aniversários, casamentos, batizados e falecimentos. Havia também um destaque às notícias que divulgavam os próximos eventos das associações e aos comentários dos bailes realizados. Nesses comentários, havia um cuidado por parte dos redatores em enfatizar a boa organização e o status atingido pelas festividades:

O baile esteve animadíssimo e foi até alta madrugada, dentro de um respeito admiravel e na maior ordem possivel, o salão estava adornado com a presença das mais distinctas famílias do nosso meio social, por este facto veio esta festa relembrar aos innumeros cavalheiros que lá se encontraram: – As pomposas festas promovidas pelas respeitáveis sociedades de outr’ora. 3

1 O Alfinete. Ano I, número 8. Março de 1919.2 O Clarim d’Alvorada. Ano I, número 1. Fevereiro de 1928.3 O Clarim d’Alvorada. Ano I, número 7. Agosto de 1928

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Uma surprezaNum dos intervallos do ensaio do “Barão do Rio Branco”, no dia 13 do mez passado, foi o sr. Adolpho Lima, digno presidente do mesmo, surprehendido com a entrega de um ramalhete de flores artificiaes e de um officio enviado pelo centro R. Araraquarense, em sinal de congratulação com o Gremio.4

Pic-nic em CampinasEsteve concorridissimo o convescote organizado pela Directoria do “Club dos Alliados”, no dia 29 de Outubro p.p. na visinha cidade de Campinas. No primeiro trem da manhã, seguiram muitas senhoritas e cavalheiros do nosso meio social, para áquella localidade (...).5

Em termos gerais, é também por meio dessa Imprensa que os negros paulistanos buscavam fazer com que sua voz tivesse o devido espaço e reconhecimento na cidade de São Paulo. É nesse sentido que Ferrara caracteriza o advento da Imprensa Negra como uma ferramenta, utilizada por parte da comunidade negra, para promover a inserção social:

Neste período o negro tenta sua integração à sociedade brasileira; para tanto procura identificar-se com a sociedade dominante, assimilando ou copiando valores brancos, pressupondo a união do grupo negro e o desenvolvimento da solidariedade, através de apelos, o que levará a uma coesão do grupo negro, sendo a imprensa o veículo para essa integração (FERRARA, 1986, p.199).

4 O Kosmos. Ano I, número 3. Agosto de 1922.5 O Kosmos. Ano I, número 6. Novembro de 1922.

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Periódicos selecionados

Para cumprir o objetivo desse trabalho de se estabelecer relações interdependentes entre a contextualização histórica e social do período e a produção dos periódicos da Imprensa Negra, fez-se necessário um recorte metodológico que privilegiou três periódicos para análise: O Alfinete, O Kosmos e O Clarim d’Alvorada. A escolha desses periódicos, entre outros fatores, dá-se pela disponibilidade desse material microfilmado no Arquivo Edgard Leuenroth (AEL) do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e no Arquivo Público do Estado de São Paulo.

Cada um desses jornais conta com peculiaridades de objetivos que reflete a história dos negros nas diferentes décadas iniciais do século XX e a história pessoal dos redatores. De forma geral, essa escolha se alicerçou no fato de que esses jornais são particularmente representativos da própria história da Imprensa Negra paulista e na história de militância do negro do início do século.

O primeiro jornal escolhido, O Alfinete, foi editado pela primeira vez em 1918 e perdurou até 1921, com o subtítulo “Órgão literário, crítico e recreativo dedicado aos homens de cor”. O diretor de O Alfinete era A. Oliveira, mas esse periódico contava com muitos outros colaboradores, sobretudo porque se ressaltava que o jornal era um espaço aberto para a expressão de ideias da comunidade. Foi um periódico da primeira fase da Imprensa Negra, portanto com objetivos de estabelecer um certo padrão para o comportamento dos negros (cf. Figura 01).

Leite define O Alfinete como um jornal que continha fofocas, mas não de cunho ideológico e político: “As alfinetadas [eram] no sentido de corrigir a moral, denunciar pessoas que aparentemente tinham dignidade, mas escorregavam” (LEITE, 1992, p.33).

Esse jornal contava com três colunas que foram recorrentes ao longo de sua história: a seção “Alfinetadas” é definida por Garcia (1997) como contendo “matérias de opinião do jornal em referência aos

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procedimentos sociais dos ‘homens pretos’” (GARCIA, 1997, p.80); em “Reparando” havia “dicas sobre como os negros deveriam comportar-se nas sociedades dançantes onde o jornal era divulgado e expunha sua crítica” (idem); e por fim, na coluna “Aos leitores” o jornal “chamava a atenção da classe para a importância de se desenvolver intelectualmente” (idem).

Figura 1: O Alfinete Figura 2: O Kosmos

O outro jornal escolhido para esse trabalho, O Kosmos (cf. figura

2), conta com um valor bastante significativo para a história da Imprensa Negra paulista devido a algumas peculiaridades. Seu lançamento se deu no dia 07 de setembro de 1922, tendo como redator-chefe Abílio Rodrigues. Apesar de tanto O Alfinete quanto O Kosmos serem classificados como pertencentes à primeira fase dessa imprensa, o diferencial entre os dois jornais é atribuído à diferença de propósitos: enquanto o primeiro

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se propunha a discorrer sobre a vida social e pessoal dos membros da comunidade negra, o segundo era o jornal oficial do Grêmio Recreativo Kosmos, que tinha como objetivo a função social de prestar serviços à comunidade negra.

Com esse intuito, logo no cabeçalho, O Kosmos se diferenciava dos demais jornais por não trazer como subtítulo os dizeres “dedicado aos homens de cor”, e sim “Orgam Official do Gremio Dramático e Recreativo Kosmos”. Essa diferença se justifica pelo fato de que o grêmio Kosmos tinha um programa educativo dirigido à comunidade negra, que contava com atividades culturais e profissionalizantes. De forma que, nessa associação, a comunidade, além de usar o espaço para se relacionar socialmente, também encontrava um ambiente favorável para leituras em conjunto, saraus para leitura do jornal e de literatura, oficinas de corte e costura, aulas de alfabetização, e reuniões para comemoração de aniversários, batizados e outras festividades.

Além disso, outro diferencial do Kosmos é seu projeto na área da dramaturgia, por contar com uma escola efetiva de teatro, que mantinha vários integrantes do movimento negro reunidos em torno dessa atividade cultural. Esse grupo representava peças criadas pelos próprios integrantes e peças já consagradas no cenário artístico.

Leite (1992), ao fazer uma menção respeitosa a essa sociedade e a esse jornal, atribui o sucesso do Kosmos aos bons atributos de seu presidente:

Todas elas [as sociedades negras] promoviam bailes, embora tivessem nascido com a idéia de serem beneficentes para ajudar negros. Entretanto, uma das poucas que mantinham esse objetivo era o Kosmos. Havia nessa sociedade um corpo cênico e um jornal. O presidente era funcionário da Faculdade de Direito, um grande homem chamado Frederico Baptista de Souza (LEITE, 1992, p.33).

O último material escolhido para ser analisado foi o importante

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jornal O Clarim d’Alvorada. Seu lançamento se deu na significativa data de 13 de maio de 1924 com a manchete ‘A nova abolição’. Esse jornal teve como responsáveis o jornalista Jayme de Aguiar e o militante José Correia Leite. Inicialmente, os idealizadores desse jornal o nomearam de O Clarim, mas logo descobriram que havia um jornal homônimo e foram ameaçados de serem colocados na justiça por plágio. Com isso, o jornal foi rebatizado com o nome de O Clarim d’Alvorada.

Os dois responsáveis pelo jornal inauguraram a segunda fase do movimento da Imprensa Negra, em fevereiro de 1928. Nessa ocasião, os redatores deixam claro no jornal que a partir daquele momento ocorria uma mudança na concepção do jornal e, por conseguinte, no movimento da Imprensa Negra e, por isso, enfatizam a inauguração da segunda fase. Como marco de entrada desse novo momento, é simbólico o fato de que esse jornal inaugural recebeu o número 01 (cf. Fgura 03) – muito embora houvesse quatro anos de publicações anteriores do jornal – e, a partir de então, começou-se a contar o número de edição.

A transição da primeira para a segunda fase ocorreu, sobretudo, pelo fato de esses redatores acreditarem que a união da comunidade negra não deveria se restringir à organização de sociedades dançantes, para fins simplesmente de entretenimento, tampouco deveria envolver partidos políticos na luta militante. Os dois acreditavam na possibilidade de organizarem uma associação com uma finalidade reivindicatória de fato, que garantisse aos negros a busca por um lugar justo na sociedade. Com um propósito ilustrativo, seguem o cabeçalho e alguns excertos do jornal inaugural dessa segunda fase:

Figura 03: O Clarim d’Alvorada

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Vida Nova!...O clarim d´Alvorada, o pequeno e único porta-voz dos homens pretos desta capital, hoje, após fazer um involuntário descanço, reapparece com novo programma de acção... quer tudo fazer para o bem estar da nossa gente; não olvidará num só instante do seu (?) e assim sendo, será o porta-voz noticioso, literario e de combate; (...).6

Verdadeiras verdadesReapparece, agora, o nosso jornal, na segunda phase; apoz um descanso involuntario fomos obrigados acceitar. Portanto, vamos entrar de novo, no terreno das opiniões, em se tratando de tão fallada questao racial; que, é o principal ponto do nosso programma.7

Nesse sentido, o objetivo desse jornal foi o de desenvolver o ideal de união e solidariedade entre os negros e, também, o de se posicionar em relação à necessidade de conscientização, educação e contra o preconceito. Com esse fim, em todas as edições da segunda fase de O Clarim d’Alvorada apareciam textos relembrando os leitores dos princípios de união, educação e trabalho:

O negro para o negroSi há quem pense que o negro ainda não tratou da sua educação, e para tal é necessário o apoio de gregos e troyanos: nós outros achamos que se torna preciso antes de qualquer ajuda tratarmos da nossa UNIÃO, para evitarmos as innumeras divergências que por certo surgirão: isto é o que tem acontecido até a data presente. 8

6 O Clarim d’Alvorada. Ano I, número 1. Fevereiro de 1928.7 O Clarim d’Alvorada. Ano I, número 1. Fevereiro de 1928.8 O Clarim d’Alvorada. Ano I, número 6. Julho de 1928.

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A questão racial deve ser ventilada com a máxima precisão: deixando-se de parte o interesse politico e, credo religioso, as phantasias de uns e o despeito de outros. O negro deve labutar até que lhe permitta o Creador, com toda a grandeza do seu coração, instruindo-se, educando-se, principalmente.9

O incentivo à educação em jornais da Imprensa Negra

Muito embora seja comum em O Alfinete a publicação de notícias que expõem comportamentos considerados indesejáveis para a comunidade – “as alfinetadas” – a fim de que os homens negros se adequassem aos padrões comportamentais da sociedade majoritária, os redatores desse jornal também estão preocupados, sobretudo nas edições iniciais, com questões mais amplas de ordem social que afetam diretamente a população negra, como o analfabetismo.

Nas edições de setembro de 1918 e março de 1919, os redatores expõem o analfabetismo como um problema que atinge diretamente a população negra:

“Esta antithese completa de tudo o que é orgânica tem como cousa principal o analphabetismo que predomina em mais de dois terço de tão infeliz raça”. 10

Essa iniciativa de expor o analfabetismo como problema social não é encontrada nos exemplares de O Kosmos. No entanto, há informações de pesquisadores da Imprensa Negra de que os dirigentes desse grêmio adotavam ações efetivas de combate a esse problema, como por exemplo, a manutenção de aulas de alfabetização, uma escola de dramaturgia e a realização efetiva de saraus literários.

9 O Clarim d’Alvorada. Ano I, número 7. Agosto de 1928.10 O Alfinete. Ano I , número 3. Setembro de 1918.

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As atividades do Grêmio Kosmos são noticiadas por vários outros jornais da Imprensa Negra, por se constituir em um exemplo para as demais sociedades. O Kosmos foi uma das poucas instituições que conseguiu aliar o entretenimento à prestação de serviços à comunidade negra. O Alfinete¸ em outubro de 1921, chama a atenção a esse mérito do grêmio Kosmos:

O vicio está tão enraigado que verdadeiramente, não se preoccupam em preparar o intellecto e rarissimas são as sociedades que levam a effeito um sarau litterario. E se alguma tentar levar uma sessão solemne, um entre-acto, poucos são os que comparecem e isso com muito empenho dos directores.Sò uma conheço que é frequentada nessas occasioes: é o “G.D.R. Kosmos” porque desde a sua fundação vem incutindo no seu meio social, os saraus litterarios.11

Entretanto, mesmo a organização exemplar dos dirigentes do Kosmos não é capaz de sensibilizar plenamente a comunidade na direção das práticas educativas. Ambos os periódicos mencionam o fechamento de uma biblioteca, inaugurada por iniciativa do Grêmio Kosmos:

O Grêmio possuio por alguns mezes, uma pequena bibliotheca, funccionando na residência do socio Anésio Mendes, que foi um dos primeiros bibliothecarios, - conjuntamente com os socios José Martinho de Moura Baptista e Frederico Baptista de Souza, sendo por estes, a titulo de emprestimo fornecido livros para a mesma; infelizmente teve logo que desapparecer, visto a pouca concurrencia.12

É prática comum tanto dos responsáveis de O Alfinete quanto

11 O Alfinete. Ano IV , número 76. Outubro de 1921.12 O Kosmos. Ano I , número 6. Novembro de 1922.

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de O Kosmos incentivarem seus leitores a publicarem nos jornais, no entanto, ressaltam a necessidade de manterem bons padrões de língua escrita. São exemplos:

Preferimos que os nossos socios tomem assignaturas para assim poderem collaborar juntamente comnosco apresentando ao publico os seus escriptos, suas idéias, e assim mostranto o seu talento e cultura ao meio social em que vivem, e uma vez isso realizado seria para nós motivo de incomparavel satisfação.13

Nós, homens de cór, conscientes dos nossos deveres, para com a nossa muito amada patria, desejamos que os homens, mulheres e crianças da nossa raça aprendam a lêr para obterem um lugar digno no seio da sociedade brazileira.O nosso modesto jornalzinho é uma pequena amostra da bôa vontade de alguns homens de côr, que tem por escopo unico, estimular o cultivo das bellas letras no nosso meio social.Avante! Pois todo o nosso successo depende do apoio moral e material dos nossos dignos amigos e leitores.14

É interessante a história pessoal de um dos redatores de O Clarim d’Alvorada, José Correia Leite. Em seu livro ele relata que teve uma infância pobre e, embora se interessasse muito pelo ensino formal, teve raras oportunidades de frequentar escola, sem conseguir completar convencionalmente a sua alfabetização. Sua história de aprendizado se pauta em um autodidatismo e em aulas de português que o próprio Jayme de Aguiar, redator-chefe do mesmo jornal, ministrava-lhe. História parecida é a de um grande colaborador de O Clarim d’Alvorada, o orador Vicente Ferreira. Esse grande homem do movimento negro era analfabeto, mas dedicava a sua vida a discursar em eventos públicos acerca da causa

13 O Kosmos. Ano I , número 8. Janeiro de 1923.14 O Alfinete. Ano I , número 8. Março de 1919.

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negra. Os artigos publicados em jornais eram ditados por Vicente para os redatores. A respeito de seu semianalfabetismo, Correia Leite faz a seguinte reflexão reveladora, por conseguinte, da situação de grande parte dos redatores da Imprensa Negra:

Eu precisei lutar com essa timidez de sujeito semi-analfabeto. Um dos que me ajudou nesse sentido foi Vicente Ferreira, porque ele também tinha essa deficiência. O Vicente Ferreira falava muito bem, sabia muita coisa, mas não escrevia. Ele só ditava e a gente tinha de interrompê-lo pra colocar uma vírgula, ver uma concordância ou qualquer coisa. Ele ficava danado e dizia que o pensamento dele nada tinha a ver com a gramática. O que ele queria é que a pessoa pegasse as idéias, o que prevaleciam eram as idéias. E dizia que não tinha nada a ver com a vírgula e a concordância. Então eu fui começando a dar mais valor as minhas idéias do que a qualquer erro de gramática. Fui perdendo aquela bitola de Jayme de Aguiar e outros muito preocupado com a gramática. Mas quando me chamaram a primeira vez intelectual, fiquei espantado. Uma porque eu não tinha essas veleidades, e outra, eu não tinha os conhecimentos para tão alto título. Intelectual do quê? Eu não sei nada, eu não tenho título de nada! Eu apenas leio. Compro livros e leio, mas eu não sou intelectual (LEITE, 1992, p.196-97).

Interinfluências entre o jornalismo e a literatura na Imprensa Negra

A imprensa produzida no início do século XX era fortemente influenciada pela literatura, uma vez que as profissões de jornalista e literato não tinham fronteiras muito bem definidas. É nesse sentido que Pimentel (1986), ao estudar a língua escrita produzida no Brasil, afirma que “a língua na imprensa, considerada antigamente como literatura de segunda ordem, acabou por soltar os laços que, na época de sua constituição – os anos 20

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do século XIX – a prendiam à literatura” (PIMENTEL, 1986, p.47). Ao tratar dessa influência literária, Sodré (1966) chama a atenção

para a maneira como eram compostos os textos: “O noticiário era redigido de forma difícil, empolada. [...]. As chamadas informações sociais – aniversários, casamentos, festas – aparecem em linguagem melosa e misturam-se a correspondência de namorados [...]” (SODRÉ, 1966, p.323). Essa situação só é modificada no moment em que os eventos políticos do país ganham decisivamente destaque para o jornalismo, neutralizando, assim, a influência dos literatos.

Alguns redatores da Imprensa Negra paulista, na tentativa de buscarem espaço e reconhecimento na comunidade negra e na sociedade em geral, também são influenciados pelos resquícios do estilo literário do jornalismo da época, produzindo textos com traços marcadamente preciosistas, como se observa no seguinte texto de O Clarim d’Alvorada:

[...]Os dois 13 de maioA alvorada de fé e de civismo surgiu radiante na manhã fresca de treze de Maio. No seio da raça não temos lembrança de outra aurora palpitante. Felizmente, foi entoado com galhardia, nas ruas de S. Paulo, o hynno de resistencia Palmarina, que veio servir de lenitivo e desafogo aos esperançados de hoje. E por este facto, o Centro Civico Palmares, está de parabens pela edificante victoria que conquistou na maior data histórica do Brasil, e pelo formidavel passo que conseguiu dar na largueza do seu vasto programma da sociedade de cultura cívica. [...]15

Considerações Finais

As páginas da Imprensa Negra paulista trouxeram à tona uma história de luta, de perseverança e de defesa de um ideal. Entretanto, a análise específica dos propósitos de cada um dos jornais colaborou para se traçar o panorama da importância da Imprensa Negra paulistana. Cada

15 O Clarim d’Alvorada. Ano I, número 5. Junho de 1928.

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jornal revelou os anseios de sua comunidade específica. O Alfinete, por exemplo, – um jornal pertencente ao início desse movimento de Imprensa Negra – indicou a preocupação dos militantes negros em garantir bons padrões de comportamento para a sua comunidade.

Os textos publicados no jornal oficial do Grêmio Dramático e Recreativo Kosmos demonstram o propósito dos membros dessa associação em promoverem a integração dos negros na sociedade, por meio, sobretudo, de sua instrução. Dessa forma, os redatores favoreciam o bom uso da escrita, o incentivo à leitura e, de acordo com o intuito da primeira fase desse movimento em que O Kosmos estava inserido, os bons exemplos de comportamento e etiqueta social.

Já em O Clarim d’Alvorada – um jornal em que esses propósitos iniciais do movimento da Imprensa Negra são intensificados, para propagar de fato a união do povo negro – é interessante reconhecer uma tentativa de exaltar os membros importantes para a história de militância,

De forma geral, este estudo contribui com o esboço de um panorama, por meio dos jornais da Imprensa Negra paulista, dos anseios da comunidade negra do início do século XX , referentes à busca por um espaço de circulação de sua voz na sociedade. Uma das formas encontradas por essa população foi a de observar os prestigiados padrões sociais vigentes – e, por conseguinte, os padrões do jornalismo da época – e tentar se adaptar a eles, visando a garantia da sua legitimidade enquanto cidadãos brasileiros.

ABSTRACT: The São Paulo “Imprensa Negra” is a journalistic movement carried through by blacks and destined to this population, at the beginning of 20th century. This article is engaged to show a historical period where these periodicals occur, from the three newspaper analysis. With these data this paper establishes a relationship between the attempt of black

BALSALOBRE , S. R. G, Social insertion for the education: Partner-historical panorama of the black press of São Paulo. DIALOGUS. Ribeirão Preto, vol.5, n.1, 2009, p. 133-152.

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population social insertion and the importance of the fight against the illiteracy.

KEYWORDS: “Imprensa Negra”, black moviment; scholarship.

REFERêNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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A RELAÇÃO FAMÍLIA-ESCOLA NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA: CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS*

Taciana Mirna SAMBRANO**

Paulo Eduardo Vasconcelos de Paula LOPES***

RESUMO: No presente artigo objetiva-se abordar a relação família-escola como um processo inserido no contexto contemporâneo caracterizado pela pós-modernidade, apresentando-se, inicialmente, considerações relativas ao conceito “família”, seguidas por discussões referentes à relação entre as duas instituições enquanto alvo de políticas públicas que conclamam a participação familiar no universo escolar, sobretudo por meio de mecanismos que visam a substituição da função do Estado para com a educação.

PALAVRAS-CHAVE: Família; Relação família-escola; Pós-modernidade.

* Este trabalho constitui parte de uma pesquisa integrada empreendida pelo GPESPE (Grupo de Pesquisa e Estudo em Estado, Sociedade, Política e Educação – IE/UFMT) que visa analisar a introdução do ideário neoliberal e pós-moderno no Brasil, em especial na educação, e suas conseqüências sociais.** Pedagoga, Doutora em Educação Escolar pela UNESP, campus de Araraquara. Profes-sora Adjunta do Departamento de Ensino e Organização Escolar, Instituto de Educação – Universidade Federal de Mato Grosso, campus de Cuiabá. Pesquisadora do GPESPE (Grupo de Pesquisa e Estudo em Estado, Sociedade, Política e Educação – IE/UFMT) e do GPEI (Grupo de Pesquisa em Educação Infantil – FCLAr/UNESP).*** Geógrafo, Especialista em Política e Estratégia, Doutor em Educação Escolar pela UNESP, campus de Araraquara. Professor Titular do Centro Universitário Barão de Mauá. Pesquisador do GPESPE (Grupo de Pesquisa e Estudo em Estado, Sociedade, Política e Educação – IE/UFMT).

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Muito se tem produzido acerca das relações estabelecidas entre a instituição familiar e a escolar, uma vez que, na sociedade ocidental, estes dois contextos constituem-se espaços privilegiados para a humanização e socialização das novas gerações, com vistas à inserção destas em um meio social mais amplo.

No entanto, contextualizar este espaço social mais amplo nos seus aspectos políticos, hodiernamente, torna-se uma tarefa extremamente complexa, uma vez que, ancorados no processo de globalização e na efemeridade da concepção político-cultural comumente denominada pós-modernidade, concepções são construídas, destruídas e reconstruídas em uma velocidade nunca presenciada antes.

Desse modo, o antiessencialismo pós-moderno profetiza que teorias não devem se apegar a determinantes que não tenham sido percebidos empiricamente.

Se é impossível a descoberta de um sentido no processo histórico-social, que possa ser racionalmente apreendido, instaura-se o império da incognoscibilidade com a relativização de todo conhecimento, permitindo uma multiplicidade inesgotável de interpretações, todas válidas. A realidade teria como característica essencial seu caráter fragmentário, que impede qualquer possibilidade de síntese ou totalização, que apreenda o real. (EVANGELISTA, 1997, p. 31).

O único caminho seria explorar as qualidades abertas do discurso humano, tornando-as fundamento e, a partir daí, utilizar (e interferir na sua construção) o conhecimento constituído nos lugares particulares, prevalecendo sempre um discurso localizado de poder. Sua ênfase aponta para projetos em pequena escala. É a representação de um mundo antagônico e de intensa alteridade.

Na presente proposta, toma-se o contexto familiar enquanto um lugar particular, objetivando apresentar a relação família-escola inserida no contexto contemporâneo caracterizado pela pós-modernidade.

Conceituar a família não é algo natural e espontâneo como pode

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pressupor uma análise preliminar sobre o tema, sobretudo pela dificuldade de nos estranharmos em relação as nossas próprias referências e pela diversidade de conceituações e caracterizações sobre esta instituição social, todas válidas, mas igualmente questionáveis.

A literatura da área tem enfocado a família como instituição fundamental na constituição do sujeito, produtora de pessoas saudáveis, emocionalmente estáveis e equilibradas ou geradoras de inseguranças, desequilíbrios e desvios de comportamento, na medida em que não conseguem cumprir satisfatoriamente suas tarefas básicas de socialização.

Para Sawaia (2007), o conceito “família” aparece e desaparece das teorias sociais e humanas, ora enaltecida, ora demonizada, por ser acusada como gênese de todos os males, especialmente da repressão e da servidão, ou exaltada como provedora do corpo e da alma.

No entanto, a família segue sendo agente de proteção social de seus membros, independentemente de alterações e mudanças substantivas ocorridas na sua composição e arranjos familiares. Nessa medida,

A família como expressão máxima da vida privada é lugar da intimidade, construção de sentidos e expressão de sentimentos, onde se exterioriza o sofrimento psíquico que a vida de todos nós põe e repõe. É percebida como nicho afetivo e de relações necessárias à socialização dos indivíduos, que assim desenvolvem o sentido de pertença a um campo relacional iniciador de relações includentes na própria vida em sociedade. É um campo de mediação imprescindível.” (CARVALHO, 2007, p.271)

Em se tratando de funções atribuídas à família, esta instituição “determina as dimensões das práticas educativas direcionadas às crianças e, antes disso, é o primeiro ambiente no qual se desenvolve a personalidade do ser humano e o primeiro contexto de aprendizagem para as pessoas”.

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Sua função socializadora continua, portanto, inquestionável, na medida em que é nela que a maior parte das crianças vive a situação inicial de aprendizagem, de internalização e assimilação de regras e normas do contexto familiar, de introjeção de padrões e valores sociais e de inserção gradual na vida do grupo e em um meio social mais amplo.

A possibilidade de caracterizar a família como um contexto de desenvolvimento e considerá-la como uma instituição potencialmente capaz de promover, ou não, a inserção e adaptação dos seus membros à vida social, política, econômica e cultural – para além da promoção de aquisições infantis como autonomia alimentar, locomoção, controle de esfíncter e linguagem, dentre outras – tem sido atribuída à qualidade das relações estabelecidas e mantidas entre estes membros. Dessa forma, torna-se ineficaz qualificar a família a partir da maneira como esta se organiza ou se estrutura, ou seja, se está configurada por pai, mãe e filhos, mãe e filhos, avós e netos ...

Nessa esteira, depreende-se que o momento atual não encontra precedentes históricos no que tange aos abalos internos sofridos pela família, para além das intermitentes interferências externas sobre esta instituição vista como a mais naturalizada de todas as esferas sociais.

As transformações sociais que ocorreram na sociedade brasileira, especialmente no século XX, afetaram de maneira decisiva as instituições familiares no que diz respeito aos padrões de comportamento, caracterizando a família como um grupo social que apresenta movimentos de organização-desorganização-reorganização, relacionadas ao contexto sociocultural em que estão inseridas (TORRES; DESSEN, 2008).

Nesse sentido, de acordo com Sarti (2007, p.23)

As mudanças são particularmente difíceis, uma vez que as experiências vividas e simbolizadas na família têm como referência, a respeito desta, definições cristalizadas que são socialmente instituídas pelos dispositivos jurídicos, médicos, psicológicos, religiosos e pedagógicos, enfim, pelos dispositivos disciplinares existentes em nossa sociedade, os quais têm nos meios de comunicação um veículo fundamental,

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além de suas instituições específicas. Essas referências constituem os “modelos” do que é e como deve ser a família, ancorados numa visão que a considera como uma unidade biológica constituída segundo leis da “natureza”, poderosa força simbólica.

Assim, a realidade das mudanças abala de tal maneira o modelo idealizado – pai, mãe e filhos com funções familiares definidas – que se torna difícil sustentar a idéia de um modelo “correto” ou natural, já que não se pode definir o que seja adequado ou inadequado relativamente à família que comporta, na atualidade, uma enorme elasticidade. Vale ressaltar que as mudanças familiares têm sentidos diversos para os diferentes segmentos sociais, na medida em que seu impacto os atinge de maneira distinta em uma sociedade de classes onde o acesso a recursos sociais é eminentemente desigual.

De acordo com Petrini (2003, p.82), a família passa por um intenso processo de des-institucionalização, uma vez que se identifica uma “tendência a considerar a família como uma realidade privada, relevante apenas para o percurso existencial dos próprios membros”, atribuindo-se maior importância aos aspectos subjetivos da afetividade.

A partir do exposto, embora seja consenso entre os pesquisadores da área que as famílias permanecem como a forma predominante da vida em grupo na maior parte das sociedades ocidentais, cabendo aos familiares o papel de agentes socializadores, estes não são os únicos adultos significativos para as crianças e jovens, atualmente, na medida em que outras agências sociais têm se tornado extremamente fortes no que diz respeito à educação e socialização das novas gerações. Dentre elas, ocupam lugar de destaque as instituições escolares que têm promovido a socialização de maneira complementar à família ou, ainda, têm por finalidade atender às necessidades infantis por uma família em processo de mudanças e transformações.

Hodiernamente, a família e a escola são tomadas como responsáveis pelo desenvolvimento físico, intelectual, moral, afetivo e social das crianças e jovens. Nesse sentido, por compartilharem

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objetivos comuns, embora com papéis e obrigações diferenciados pela especificidade de cada instituição, a relação entre os dois contextos tem de ser encarada como complementar e não forças distintas e separadas.

Os padrões de relacionamento entre a família e a escola também sofreram alterações ao longo do tempo, na medida em que as inter-relações são determinadas por valores e práticas que apresentam naturezas distintas quando considerado o momento histórico, econômico e social de uma sociedade, mas elas sempre existiram, mesmo que de forma pouco freqüente e intensa.

A relação entre a escola e a família sofre transformações tanto no âmbito nacional como internacional. Nessa medida, podemos citar o estudo de Berger (1991) que apresenta, brevemente, a forma como aconteciam essas relações desde as culturas antigas até início dos anos 1990, evidenciando que os pais sempre estiveram envolvidos na educação de suas crianças, mas um envolvimento que se transformou ao longo do tempo.

Especialmente nos anos de 1960-70, pesquisadores americanos demonstraram que a educação em instituições para as crianças pequenas proporciona benefícios sobre o desenvolvimento infantil e favorece a participação dos pais no processo educacional. Os anos de 1980 reafirmam a necessidade do envolvimento dos pais na educação de seus filhos, o que se evidencia através de programas que demonstram ser a família capaz de complementar a escola no desenvolvimento das habilidades infantis referentes às áreas curriculares educacionais (BERGER, 1991).

Berger (1991) afirma que, nos anos de 1990, para continuar existindo um trabalho conjunto entre família e escola, os pais devem prosseguir se envolvendo com a instituição escolar e esta, por sua vez, deve continuar buscando os pais. Em síntese, a autora afirma que a colaboração entre pais e professores pode proporcionar caminhos que auxiliam a criança a encontrar sucesso dentro e fora da escola, mas, em contrapartida, pais e professores devem reconhecer suas responsabilidades e não esperar que um realize suas tarefas sem o outro, visto que se trata de um esforço de colaboração entre as duas instâncias responsáveis pelo

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cuidado e educação de crianças.Nesse sentido, a pesquisa de Cochran e Dean (1991) demonstra

o valor do envolvimento positivo dos pais sobre a educação das crianças, evidenciando que este processo beneficia as crianças, seus pais e professores. A interação com a família envolve um respeito mútuo, uma reestruturação dos papéis e uma mudança no equilíbrio do poder entre pais, professores, administradores escolares e demais profissionais.

Greenwood e Hickman (1991) pontuam que o cerne das relações entre escola e família encontra-se nos eventos que ocorrem na esfera familiar e influenciam o desempenho das crianças na escola. Apresentam as formas mais freqüentes de envolvimento dos pais, que incluem desde modelos passivos – como os pais que simplesmente relatam os progressos infantis e participam de eventos escolares, até os mais ativos – como os pais que se envolvem ensinando e tomando decisões junto à escola. Os autores enfatizam, ainda, o papel da própria criança nessa dinâmica de envolvimento, pois freqüentemente elas levam mensagens e bilhetes de uma instituição à outra.

De acordo com Greenwood e Hickman (1991), várias podem ser as barreiras que interferem nesse envolvimento, sendo que as principais são atitudes dos próprios pais frente à escola de seus filhos e à própria educação, e as atitudes de professores e diretores, que geralmente não sabem como envolver os pais ou acreditam que isso não traz benefícios aos atores educacionais envolvidos.

Na sociedade brasileira, a aproximação dessas duas instâncias sociais, fundamentais na socialização infantil, evidencia-se quando a família destaca os processos escolares dos filhos como um aspecto relevante para a própria dinâmica familiar que, de acordo com Nogueira (1998, p.96), caracteriza-se como uma evolução nas relações entre a família e a escola, com o “aparecimento de uma nova zona de interação entre as duas instâncias, em que tanto a casa como a sala de aula, que eram espaços privados, hoje se tornam espaços abertos onde pais e educadores realizam trocas”. E vai um pouco mais além quando afirma que a família vem cada vez mais invadindo os espaços escolares e este

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último, por sua vez, expandiu acentuadamente o terreno das interações possíveis com a primeira.

Isto posto, Nogueira (1998) ainda revela que, com o intuito de encontrar uma coerência entre as atitudes da família e da instituição escolar, a fim de melhor conhecer o aluno e aperfeiçoar a ação pedagógica, os educadores têm buscado a ciência de acontecimentos que ocorrem no íntimo da vida familiar, justificando que esse procedimento é necessário para que se conheça a criança.

Ao analisar as práticas de relacionamento entre as famílias de classe média e as escolas, Nogueira (1995) afirma que essas aderem intensamente aos valores escolares e fazem da experiência dos filhos freqüentarem uma instituição de ensino um elemento central de seus projetos; as relações entre os pais da classe média e os professores são mais freqüentes e descontraídas, centradas em questões pedagógicas.

Ainda nessa pesquisa, a autora conclui que, invariavelmente entre os países e as classes sociais analisados, a mãe é a responsável pelo trabalho pedagógico doméstico, mantém um sistema de informações sobre a sala de aula e a escola, bem como se mantém atualizada através de uma rede de relações e contatos com as outras mães (NOGUEIRA, 1995).

De acordo com Bhering e Siraj-Blatchford (1999), a família, prioritariamente a mãe, está disposta a contribuir de alguma forma com a escola e, nessa medida, necessita de apoio e instruções quanto ao que fazer, como e quando colaborar. Em relação à dinâmica escolar, os professores relatam que quando incluem a família no trabalho se sentem mais valorizados, vistos como mais competentes e dignos de confiança, enquanto as crianças melhoram em comportamento e rendimento na escola e interagem mais com os pais em casa.

Utilizando a tipologia de Epstein para demonstrar o envolvimento dos pais, as autoras afirmam que o relacionamento escola e família apresenta algumas similaridades entre a situação brasileira e a americana, o que torna possível a utilização de tipologias internacionais, na medida em que tanto as famílias brasileiras quanto as de outros países desejam um

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“acesso maior à informação, um diálogo mais aberto com os professores e uma confiança maior naquilo que a escola faz para preparar as crianças para um futuro melhor” (BHERING; SIRAJ-BLATCHFORD, 1999, p.202).

Os dados advindos da pesquisa dessas autoras demonstram que as formas de relacionamento família-escola preponderantes são o envolvimento, a ajuda e a comunicação; as autoras concluem que existem diferentes níveis de envolvimento dos pais na escola, que são determinados por variáveis como disponibilidade, capacidade intelectual, situação psicológica e vontade da criança, mas que a participação familiar continua muito limitada e restrita a poucos contatos durante o ano escolar, fato que pode ter sua origem na falta de conhecimento das possibilidades de tornar a relação família-escola mais produtiva.

A pesquisa de Carvalho (2000) corrobora o papel da mãe como principal participante da vida escolar da criança e afirma que, diferentemente do Brasil, onde a relação família-escola tem sido pouco estudada, a pesquisa educacional americana vem focalizando o envolvimento dos pais como um recurso para o sucesso escolar de seus filhos desde a década de 1960.

Atualmente, os pesquisadores e educadores enfatizam o “empowerment”, ou “empoderamento” de acordo com a autora, dos pais como uma estratégia para estimular a participação destes no âmbito escolar, promovendo uma relação produtiva entre, e para, a escola, a família, os estudantes e a sociedade.

De acordo com a autora, a fórmula da relação família-escola é a mesma no Brasil e Estados Unidos, ou seja, uma maior “participação dos pais na escola resulta em melhores escolas”, enquanto um maior aproveitamento dos alunos na escola está relacionado com um maior envolvimento dos pais em casa (CARVALHO, 2000, p.148). Em contrapartida, este relacionamento também pode apresentar problemas, como por exemplo, ao desconsiderar as mudanças familiares, a escola pode requerer uma mãe em tempo integral e uma família como extensão escolar, ou ainda, ao sugerir que as mães atuem como professoras em casa, pode diminuir o status profissional e acentuar as divergências entre

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professores, diretores e mães.Autores como Gomes (1993), Griffith (1998) e Perrenoud

(2000) têm destacado que a relação família-escola é marcada pela sua complexidade e assimetria. Neste sentido, há de se considerar que, subjacente a essa interação, podem estar escondidas atitudes e valores calcados sobre relações de poder, temores e respeito pelo desigual, pelo superior em relação ao inferior.

Romper com essa condição assimétrica requer uma consciência de igualdade e respeito mútuo, como afirma Gomes (1993, p.86), mas que envolve “responsabilidades diversas, porque, sem dúvida, uns são profissionais, outros são simplesmente pais”. Por outro lado, além do interesse e vontade em manter os pais afastados do que acontece no interior das escolas, os professores podem expressar uma reação de defesa pela falta de confiança no seu próprio trabalho, evitando serem confrontados por suas próprias dificuldades, os profissionais da instituição escolar pouco se relacionam com as famílias, segundo Perrenoud (2000).

Nesse sentido, Griffith (1998) demonstra que os pais revelam-se capazes de se relacionarem com a escola e seus profissionais à medida que professores e diretores rompem as barreiras da desigualdade, convidando, estimulando e providenciando oportunidades de envolvimento aos pais, mostrando-lhes que são bem vindos ao ambiente escolar.

Depreende-se, até o momento, que a literatura nacional e internacional têm demonstrado a importância da relação família e escola, tanto para as crianças, como para os próprios pais, professores e demais educadores envolvidos no processo de escolarização infantil, especialmente em se tratando de crianças menores de seis anos.

Considerada como primeira transição da família para a escola, a entrada das crianças na educação infantil tem sido caracterizada como um momento de extrema importância para as experiências infantis e merecedor de atenção, participação e envolvimento dos pais, de forma mais acentuada nesse primeiro nível da educação básica, em relação às etapas subseqüentes.

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Ramey et al. (1998) apresentam a educação infantil como a principal transição que acontece na vida das crianças e das famílias, uma vez que estas utilizam recursos para promover uma mudança de ambiente satisfatória para as crianças, como demonstrando interesse pela instituição, conversando sobre as experiências que vivenciarão, encorajando amizades e envolvendo-se com o contexto escolar.

Enfatizando o papel dos pais como educadores de seus filhos e pares indispensáveis num processo de educação infantil, Seefeldt et al. (1998) afirmam que o envolvimento parental traz benefícios não só para as crianças, como também para os pais e professores e, mais do que isso, o envolvimento familiar pode significar um aspecto chave no processo de ingresso das crianças em ambiente educacional, uma vez que geralmente beneficia a aprendizagem infantil e o conseqüente êxito nas atividades escolares.

Nessa pesquisa em que as autoras analisam a percepção dos pais sobre o ambiente institucional, suas características pessoais e envolvimento na educação das crianças durante o último ano do jardim-de-infância, os resultados revelam que, se por um lado a instituição apresenta práticas que desencorajam os pais a se relacionarem – como crenças negativas de professores, diretores e demais profissionais acerca dos pais; clima escolar impessoal com burocratização excessiva de procedimentos e regras – os pais, por seu turno, também podem dificultar a relação quando se mostram intrusivos e “super envolvidos” ou acreditam que o envolvimento não proporciona qualquer benefício, por exemplo (SEEFELDET et al., 1998).

No estudo cujo objetivo era investigar a natureza da relação estabelecida entre a família e uma instituição de educação infantil, bem como o grau e a eficácia do envolvimento dos pais, Homem (2000) revela que a existência de um grande número de contatos – como momentos de entrada e saída, conversas informais, reuniões, entrevistas iniciais – não garantem uma participação efetiva dos pais na instituição. A autora mostra que a existência desses momentos enquanto oportunidades de participação podem representar uma estratégia dos profissionais para

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evitarem excessivas interferências dos pais, uma vez que não se fecham a esses, mas não apresentam oportunidades de debates sobre crenças, valores, meios e fins da instituição de educação, encarando-os, nessa medida, como clientes ou consumidores, não como parceiros do processo de desenvolvimento infantil.

Focalizando um programa de envolvimento parental na educação infantil, Brink (2002) afirma que a falta de confiança dos pais e familiares em relação aos educadores prejudica a avaliação que fazem acerca da qualidade do ambiente para as crianças pequenas, incluindo as atividades conduzidas através de brincadeiras e as interações que a criança estabelece no contexto escolar.

Nessa medida, o autor afirma que os pais precisam sentir-se envolvidos no processo de aquisição de conhecimentos da criança e é responsabilidade dos profissionais envolvê-los na educação infantil, sobretudo porque são os pais que conhecem as crianças em profundidade, como história de vida, comportamentos em diferentes ambientes e componentes culturais que norteiam a vida familiar (BRINK, 2002).

Bruckman e Blanton (2003), ao analisarem as perspectivas de mães presentes em um programa de envolvimento parental durante a freqüência de seus filhos na educação infantil, relatam que quando os professores oferecem à família uma variedade de formas de envolvimento, as mães engajam-se satisfatoriamente em atividades que pressupõem sua participação, o que traz como conseqüência uma relação pautada no respeito mútuo entre profissionais e familiares, bem como uma relação entre as mães e as crianças baseadas em afeto positivo.

Ao desenvolverem uma pesquisa objetivando identificar as barreiras para a efetivação de um relacionamento entre família-escola-comunidade, baseado nas percepções dos pais, profissionais e líderes comunitários, McBride, Bae e Blatchford (2003) afirmam que, dentro de um mesmo programa de Educação Infantil, cada um dos envolvidos – professores, diretores e pais – têm percepções e expectativas muito diversas sobre o envolvimento dos pais e da relação entre a família e a instituição.

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Na mesma pesquisa, enfatizam que os pais precisam encarar os convites, demandas e oportunidades propostas pela escola como convocações para que se envolvam. Da forma como encaram esses recursos da instituição, os pais não se relacionam e desconhecem outras formas propiciadoras de envolvimento, um desconhecimento que, somado às experiências negativas e sentimentos de intimidação vivenciados em diferentes momentos, configuram barreiras potenciais para a relação entre os contextos familiar e escolar (MCBRIDE, BAE, BLATCHFORD, 2003).

Em síntese, a relação entre estes dois contextos tem sido focalizada como indispensável ao processo de escolarização das novas gerações e, nessa medida, a literatura da área demonstra a escassez e a falta de tradição em estudos que tratam das interações entre os ambientes familiar e educacional em diferentes âmbitos da escolaridade básica – da educação infantil ao ensino médio – e enfatizam a necessidade de se estudar as situações escolares articuladas com outras dimensões sociais, como a família.

Não obstante, esta preocupação apresentada pelas produções acadêmicas relativa à parceria necessária entre família e escola encontra eco nos documentos oficiais que se referem às reformas educacionais empreendidas especialmente a partir da década de 1990 e que encontram intrínseca relação com o pacote de medidas propostas pelo Banco Mundial.

Dentre as reformas educacionais preconizadas por estas agências internacionais multilaterais, explicita-se a necessidade de haver convocação para uma maior participação dos pais e da comunidade nos assuntos escolares enquanto “condição que facilita o desempenho da escola como instituição (mais que como um fator de correção e como uma relação de mútuo benefício entre escola/família e escola/comunidade)” Esta relação pode ser garantida por meio da contribuição econômica para a sustentação da infra-estrutura escolar, dos critérios de seleção da escola e de um maior envolvimento na gestão escolar. (TORRES, 2000, p.136).

Nessa esteira, o Ministério da Educação vem conduzindo programas educacionais que objetivem a participação das famílias,

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atendendo às diretrizes dos organismos internacionais e, dentre eles, assume destaque o Dia Nacional da Família na Escola, promovido no ano de 2001. Esta ação contou com suporte instrumental às escolas caracterizado pelo envio de materiais explicativos, além de apoio da imprensa na divulgação e cobertura do evento que acontecia em dias específicos, previamente determinados, com pronunciamento do então ministro, Paulo Renato Souza. Nestes, o ministro convidava a população para o evento, exortando os pais a se envolverem nas atividades escolares dos filhos a fim de que o bom desempenho escolar seja garantido, o que pode ser vislumbrado no excerto de entrevista abaixo.

[...] a melhor escola é aquela onde os pais estão presentes, e a participação da família se traduz imediatamente em melhor desempenho dos alunos. Quando os pais conhecem os professores e a direção da escola, a nota dos alunos em português e matemática sobe vários pontos. (SOUZA, 2001 apud KLEIN, 2005, p.42)

De forma similar, iniciativas como Amigos da Escola, veiculadas pela Rede Globo de televisão, objetivam envolver a comunidade no desenvolvimento de ações educacionais que promovam o “fortalecimento da educação e da escola pública de educação básica”, conforme divulgado no site oficial do programa.

Nesta perspectiva o Estado utiliza o trabalho voluntário, normalmente da família dos estudantes, além de utilizar-se dos recursos da sociedade civil e incentivar a atuação do terceiro setor, como forma de suprimir a falta da atuação pública e das condições estruturais dos espaços públicos escolares.

Considerações Finais

A família está presente em todas as sociedades, embora com diferentes estruturas e modelos, com diversas configurações e modos

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de se organizar, de acordo com suas formas históricas, mas com uma importância inegável na vida de seus membros, visto que estes encontram na instituição familiar seu ponto de referência.

Na família não se transmite somente a vida, mas seu significado e sentido; no seu interior, as pessoas aprendem a se relacionar, estabelecem identificações e se desenvolvem, integram um contexto permeado de valores e crenças culturais que caracterizam e determinam a natureza dos relacionamentos intra e extrafamiliar, as concepções sobre a criação dos filhos, as práticas educativas utilizadas, a organização diária, as redes de apoio nos momentos de transição e crise. Enfim, a família constitui-se em um contexto de desenvolvimento tanto para as crianças, por ser agente socializador responsável por complexas aprendizagens, como para os adultos, pois resulta em um contexto de realização pessoal ligado à vida adulta e velhice.

A família tem sido considerada como base estratégica para a condução de políticas públicas, e, nesse sentido, sendo chamada a adentrar o universo educacional através da substituição da função do Estado para com a educação pela atuação da comunidade no tão celebrado micro-espaço.

Atualmente, sob o prisma neoliberal/pós-moderno, alguns pesquisadores e educadores, como retro citado, enfatizam o “empowerment”, ou “empoderamento” dos pais como uma estratégia para estimular a participação destes no âmbito escolar, promovendo uma relação produtiva entre, e para, a escola, a família, os estudantes e a sociedade.

Nesta perspectiva

[...] o empoderamento é o processo – e o resultado do processo – mediante o qual os membros sem poder ou menos poderosos de uma sociedade ganham maior acesso e controle sobre os recursos materiais e o conhecimento, desafiam as ideologias da discriminação e subordinação, e transformam as instituições e estruturas através das quais o acesso e controle desiguais sobre os recursos são sustentados e

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perpetuados (SRILATHA BATLIWALA apud CARVALHO, 2000, p.146).

No excerto acima a autora apresenta a perspectiva neoliberal e pós-moderna em educação, uma vez que tal concepção considera que a simples participação comunitária leva a romper com as desigualdades, conseguindo assim, no âmbito educacional, fazer com que alunos desprovidos materialmente consigam prosperar academicamente apenas pela participação comunitária nas decisões das unidades escolares.

Desse modo, levanta-se, como exposto acima, a concepção da análise de poder local, onde o indivíduo se relaciona apenas no micro espaço, tão celebrado na pós-moderninade, edificando a concepção de que apenas aquilo que acontece empiricamente em seu cotidiano possa ser considerado. Com efeito, tal percepção distancia a análise do problema de seu significado maior, apontando para problemas e soluções únicas em suas especificidades, determinadas em cada localidade, tornando assim, muitas vezes, o cotidiano alienado.

No entanto, a noção de família traz consigo uma dimensão que não pode ser ignorada: sua determinação social, histórica e cultural que pode ser a porta de entrada para crítica da atual conjuntura contemporânea, fato este a ser abordado em um novo trabalho.

SAMBRANO, Taciana Mirna; LOPES, Paulo Eduardo Vasconcelos de Paula. The Family-School Relationship in Contemporaneous Society: Theoretical Considerations. DIALOGUS, p. 153-171.

ABSTRACT: The objective of this paper is to approach the family-school relationship as a process inserting in the contemporaneous context characterized by post modernity, initially to show up considerations in relation to the concept “family”, followed by discussions concerning relationship between the two institutions while public political aim that to clamor the family participation in the scholar university, over all by means of mechanisms to aim at the substitution of state function in view with the education.

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KEYWORDS: Family, family school relationship, post modernity.

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EPISTEMOLOGIA / EPISTEMOLOGY

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SOBRE “O CAMINHO DA SERVIDÃO”, DE FRIEDRICH AUGUST VON HAYEK: UMA FILOSOFIA DA HISTÓRIA

E DA LIBERDADE NO PENSAMENTO LIBERAL NEOCLÁSSICO

Caio Graco Valle COBÉRIO*

RESUMO: Uma das raízes do pensamento econômico hegemônico atual tem sido identificada nos escritos do austríaco Friedrich August von Hayek. Portador de uma fé arrebatadora na superioridade dos princípios liberais para o encaminhamento das questões econômicas, políticas, sociais, éticas e morais do futuro, faz uma crítica eloquente ao socialismo enquanto promessa de realização humana. Em seus escritos a polêmica é uma arte, a certeza uma desmedida e a lógica um sofisma.

PALAVRAS-CHAVE: Governo; liberalismo; individualismo; planificação; coletivismo.

O fato de ter iniciado as apresentações sobre História e Economia Política do Tempo Presente com o livro “O Caminho da Servidão”, de F. A. Hayek, caracteriza uma investigação das bases do pensamento liberal contemporâneo, já na primeira metade do século XX. Mostrando atenção especial ao futuro do liberalismo, Hayek é considerado um dos pensadores neoclássicos e sua obra discute fundamentalmente o embate

* Mestrando do Programa de Pós-Graduação em História da UDESC. Sem financiamento, texto realizado para seminário na disciplina ministrada pelo professor Dr. Maurício Aurélio dos Santos, no Curso de Mestrado em História do Tempo Presente, da UDESC, Florianó-polis/SC, Brasil.

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com as correntes que criticaram o pensamento liberal, destacando-se o marxismo. Para Hayek, no entanto, tudo que não é liberal parece caminhar para o totalitarismo, cujas bases se encontram nas experiências práticas e teóricas dos socialistas desde o século XIX. O trabalhismo, resultante da maior organização dos trabalhadores, apresenta-se como o meio do caminho entre uma sociedade livre e uma sociedade coletivista, que não reconhece o indivíduo. A planificação econômica é o instrumento privilegiado que o Estado se utiliza para impor o projeto de uma minoria, responsável pelo planejamento das atividades econômicas consideradas mais necessárias do que outras. Nas atuais circunstâncias onde os problemas da humanidade se tornam mais marcantes, é mister identificá-los com as formas de organização econômica que a sociedade vêm empregando nos últimos tempos. Antes de querer defender um ou outro modelo que já tenha sido colocado em prática, é fundamental a reflexão sobre o andamento das idéias econômicas para que através de uma análise coerente e, provavelmente, por meio de uma crítica radical, seja percebido o percurso pelo qual as relações econômicas predominantes se desenvolveram até o atual estágio e porque geraram as conseqüências que assolam o mundo de hoje. A história econômica tem este papel a desempenhar, relacionando as práticas às idéias, dissolvendo qualquer vestígio de espontaneísmo nas relações produtivas e de consumo ou na geração e distribuição da riqueza, entre outros aspectos. A leitura do livro de Hayek nos leva a essas questões. O objetivo principal é apresentar o desenvolvimento da argumentação realizada por Hayek, identificando aí qual é o seu eixo analítico, em torno do qual os argumentos vão se construindo. Também se buscará analisar o contexto histórico do qual parte o raciocínio do autor, para que sejam identificadas possíveis limitações. As contradições teóricas que ficam implícitas e sugeridas na obra, serão explicitadas, na formação da contra-argumentação dos fundamentos do pensamento liberal. Em “O Caminho da Servidão”, buscou-se captar as diversas faces das críticas do autor contra o anti-liberalismo, assim como as inúmeras

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outras que se mostraram para defendê-lo. Também se somou no corpo do trabalho, além de algumas citações retiradas do texto de Hayek, outras informações e comentários sobre intelectuais e pensadores citados pelo autor em seu livro, assim como opiniões diversas sobre temas levantados e percebidos com relevância durante a leitura. “O Caminho da Servidão” de F. A. Hayek pode a princípio parecer soar ao leitor como um dos mais brilhantes manifestos sobre a liberdade. Ou ainda, lembra talvez a defesa de um percurso da humanidade, no conflito entre emancipação e trabalho. Em uma última versão, poderia manifestar o receio sobre as relações de dominação que se instalam nas sociedades e a criação de uma hipótese libertária, a partir da análise do feudalismo até os dias atuais. Mas engana essa primeira visão. O livro de Hayek não contempla nenhum dos aspectos acima citados, apesar de querer fazê-lo, sob um ponto de vista bastante peculiar: a defesa intransigente e muitas vezes absurda, do regime liberal. Escrevendo no período final da 2ª Guerra Mundial, entre 1940 e 1943, o austríaco Friedrich August von Hayek, vivendo na Inglaterra que adotara como país natal, é completamente absorvido por aquele contexto explosivo, de violento choque ideológico (e consequentemente militar), que atingiu as principais potências econômicas do globo: Inglaterra, França e Estados Unidos representando as democracias liberais capitalistas; Alemanha, Itália e Japão como representantes do totalitarismo nazi-fascista; a União Soviética comunista sob o peso da ditadura stalinista. Qualquer leitor de história pode encontrar uma veracidade nesta relação de forças, mas Hayek não. Ele apresenta uma versão completamente diferente dos fatos e sua análise surpreende pelo modo como expõe os fatos. Tudo começa quando Hayek se mostra preocupado com os rumos que estavam sendo tomados pela sociedade inglesa. Berço do liberalismo clássico, a Inglaterra parecia não mais se satisfazer com esses ideais e caminhava para buscar um outro caminho. Hayek então adverte que, quanto mais se afastasse do liberalismo que originalmente havia gestado, mais próxima da servidão estaria à sociedade inglesa, numa

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situação semelhante à vivida pela Alemanha. Entende–se que servidão aqui não se refere ao regime de trabalho propriamente medieval, mas a um estado extremado de coerção que recai sobre o indivíduo, cerceando sua liberdade pessoal e submetendo-o ao controle de outrem. Na verdade, os caminhos são bastante tortuosos. O argumento decisivo de Hayek é que qualquer tipo de controle da economia ou intervenção por parte do Estado nela, significa automaticamente perda da liberdade individual. Somente o regime liberal é verdadeiramente livre, pois permite a possibilidade de escolha e de empreendimento por parte dos indivíduos dos seus projetos pessoais. Assim, o autor desmerece toda e qualquer forma de planificação econômica, caminho inexorável ao totalitarismo, onde a liberdade individual estaria extinta por conta da organização econômica planejada pelos governos. O individualismo e o humanismo ocidentais são bases para um raciocínio que demonstra a primazia dos regimes políticos que defendem a liberdade do indivíduo sobre a da comunidade. Neles, seja por fatores ligados às capacidades pessoais ou pelos infortúnios, a própria desigualdade se justifica desde que seja um preço a ser pago para a manutenção de um sistema mais próximo da perfeição, que sempre garantirá ao indivíduo a possibilidade de dispor livremente de seus recursos materiais e mentais, para consagrar sua dignidade: é a verdadeira teoria do capitalismo. A história é movida por forças impessoais, os indivíduos são regulados economicamente pelo mercado, através da concorrência e da competição, que levam ao constante aperfeiçoamento. Numa visão estreita da pobreza e da riqueza, Hayek acredita que os homens (inclusive trabalhadores) haviam alcançado no início do século XX, um grau de desenvolvimento material jamais visto. Mostra-se a favor da distribuição das riquezas e contra o controle excessivo que os monopólios exercem sobre a economia. Para ele, o verdadeiro Estado liberal deve garantir aos indivíduos as condições mínimas de subsistência para as pessoas, se colocando como defensor dos mais fracos e pobres. As flutuações da economia capitalista e o desemprego em massa são os grandes desafios do Estado liberal. Hayek não percebe que seu projeto teórico é contraditório e

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não se realiza na prática. O que ele busca é uma sociedade perfeita, onde todos os indivíduos, contando com uma liberdade limitada pela lei para buscarem seus objetivos, seriam resguardados pelo Estado de alguns direitos. E assim, superando dificuldades, a humanidade alcançaria a felicidade. O que importa é de forma alguma não abrir mão da liberdade individual, o valor supremo do homem. E mais interessante ainda, a liberdade individual é fundamentalmente econômica. Daí deriva todos os padrões éticos e morais mais elevados já alcançados na história da humanidade. Em oposição a estes valores da civilização ocidental, o coletivismo é uma verdadeira aberração. Poder dado à comunidade é sinônimo de escravidão do indivíduo. Portanto, as nações que buscam pela planificação econômica como alternativa ao liberalismo, são depositárias de uma moral e ética coletivistas, ou seja, querem por fim à liberdade individual. E pior ainda, transferem o poder para um grupo de indivíduos, uma comissão planificadora, que acabará manipulando as pessoas de acordo com os fins que desejem alcançar. Para que nada impeça que esses planos sejam executados, submetem-se a uma ditadura que é inconciliável com a democracia. Somente o regime liberal pode ser democrático. Hayek é eurocêntrico e poder-se-ia dizer, “britânicocentrista”. Seu modelo de análise é sempre inglês e, presume-se daí, que para ele é o modelo da escola liberal inglesa o mais aperfeiçoado. O grande perigo que ameaça a Inglaterra é o avanço político do Partido Trabalhista, que para Hayek é socialista. E o socialismo está na origem do nazismo e do fascismo. Socialismo e totalitarismo são duas coisas inseparáveis. A partir de referências em uma horda de pensadores liberais clássicos e contemporâneos, lordes e outros nobres, Marx, Engels e Lênin se tornam obsoletos nas mãos deste monstro do pensamento liberal. Ele acaba com o movimento socialista desde o século XIX, cuja única herança para a sociedade segundo Hayek, foi a de ter lançado as bases do regime totalitário. Ele nega a luta de classes, mal fala em burguesia e diz que são os socialistas privilegiados que semeiam a discórdia dentro do

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proletariado. Ele afirma o poder policial contra as reivindicações operárias e faz da propriedade privada o alicerce da civilização racional. Certamente Hayek foi um daqueles homens que, por pura dureza de espírito e um frio apego ideológico ao sistema capitalista, pôs abaixo as esperanças de transformação social geradas em séculos pelo homem, afirmando que o socialismo termina no totalitarismo. O liberalismo, no entanto, é um sistema infindável no seu aperfeiçoamento, mesmo que passe por séculos de destruição e espera. A proposta de análise implantada por Hayek não é em nada simplista e de certa forma é até complexa, apesar de seus raciocínios serem passíveis de contra-argumentação. Não é uma obra absoluta, mas uma defesa absoluta e completamente parcial. A obra se enquadra no campo da Política e da Filosofia Social, servindo para a reflexão sobre o futuro das políticas econômicas e também como uma advertência a intelligentsia socialista inglesa. Seu método é antes de tudo, fazer uma crítica ao socialismo denominado radical, entendido como “[...] um movimento estruturado, que visava uma organização premeditada da vida econômica pelo Estado transformado em principal proprietário dos meios de produção” (HAYEK, 1990, p.13). O controle econômico é o oposto da sociedade livre. Socialismo, comunismo e fascismo andam lado a lado, quando se quer comprovar que quanto às liberdades humanas fundamentais, esses regimes são iguais, pois o planejamento econômico é totalitarismo, posição de que está próximo o trabalhismo inglês, impregnado de autoritarismo burocrático. A vantagem da imprevisibilidade dos acontecimentos contemporâneos é que as leis históricas são ignoradas. A repetição impossível da história só pode ser percebida quando vivências de dois períodos históricos remetem às fases análogas de um processo intelectual, por exemplo, o receio de que a experiência da Alemanha durante e após a Primeira Guerra se repita na Inglaterra pós-Segunda Guerra, significando que “[...] o propósito de que a organização introduzida no país para fins defensivos seja mantida para fins produtivos” (HAYEK, 1990, p.32). O ambiente intelectual de desprezo pelo liberalismo não pode se figurar como

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algo puramente alemão. John Stuart Mill1 escrevera sob a inspiração de Goethe e Wilhelm von Humboldt, assim como o escocês Thomas Carlyle2 e o inglês Houston Stewart Chamberlain foram antepassados intelectuais do nacional-socialismo. Desse modo, a ascensão do nazi-fascismo se deu como resultado do desenvolvimento das tendências socialistas. Corroboram para essa hipótese os argumentos: 1) trata-se de “[...] Opinião enganosa e superficial de que o nacional-socialismo é meramente uma reação fomentada por aqueles cujos interesses ou privilégios estavam ameaçados pelo avanço do socialismo” (HAYEK, 1990, p.36); 2) o liberalismo fora alijado pelo socialismo; 3) o aferramento dos refugiados às idéias socialistas coopera com o caminho [nazista] da Alemanha; 4) há um forte parentesco entre prussianismo e socialismo, que encontra-se na hierarquização; 5)Alemanha, Itália e Rússia tinham em comum as idéias socialistas; 5) o nacional-socialismo surgiu auxiliado pelas massas. Dessa forma, segundo Hayek, “[...] seria um erro acreditar que foi o elemento especificamente alemão, e não o elemento socialista, que produziu o totalitarismo” (HAYEK, 1990, p.36). A criação dos sistemas totalitários é produto de uma evolução de idéias da qual nós mesmos participamos. Eles são resultados de mudanças de idéias e também da força da vontade humana. Antes da 1ª Guerra o

1 Filósofo inglês (1806-1873), discípulo do utilitarismo de Bentham, defensor do libera-lismo político. Dentre as suas idéias, está a de que os governos se adaptam aos povos, pois estes, ao mesmo tempo em que permitem a existência do governo, devem consentir em aceitá-lo. O governo de um país é aquilo que as forças sociais o obrigam ser, somente quando estas favorecem uma escolha racional entre todas as formas de governo praticá-veis na condição existente da sociedade. O utilitarismo de Mill supunha que o homem é capaz de escolher entre o prazer e a dor, sendo a utilidade de suas ações medida pela quantidade de felicidade proporcionada. O princípio da felicidade máxima serve para testar todas as instituições, morais e legais, provocando melhorias.2 Historiador, ensaísta e pensador inglês (1795-1881), dedicou-se aos estudos germanis-tas, escreveu um livro sobre Schiller, traduziu obras de Goethe. Reconheceu a Revolução Francesa como um castigo de Deus pelos pecados da França, condenou o liberalismo econômico, recomendou o retorno ao passado medieval, defendeu a escravidão nos EUA, biografou a vida de Cromwell e Frederico II da Prússia.

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mundo era realmente liberal. Mas foram ocorrendo desvios que acarretaram em novas condutas, “[...] fomos nos afastando progressivamente das idéias básicas sobre as quais se erguera a civilização ocidental [...] fomos abandonando aquela liberdade de ação econômica sem à qual a liberdade política e social jamais existiu no passado” (HAYEK, 1990, p.40).3 Dentre essas novas condutas, o socialismo, inaceitável para os liberais, que como Tocqueville e Lord Acton, consideravam que o socialismo é escravidão. O socialismo marca a ruptura com a evolução da civilização ocidental, ao renunciar ao liberalismo e ao individualismo clássicos. O individualismo é oposição ao socialismo, mas nem por isso pode ser confundido com o egoísmo, pois há um percurso de desenvolvimento do individualismo ao longo da história, desde a Antigüidade clássica, passando pelo cristianismo e reafirmado na Renascença.4 Ele caracteriza-se no respeito pelo indivíduo como ser humano, reconhecendo a supremacia das preferências e opiniões na esfera individual, gerando um clima de liberdade e tolerância.

Foi no desenvolvimento do comércio que se permitiu a transformação de um sistema hierárquico organizado rigidamente em um sistema no qual os homens podiam dirigir a própria vida, conhecendo e escolhendo novas formas de existência. Esse sistema se aperfeiçoou nos séculos XVII e XVIII, com a missão de “[...] libertar o indivíduo das

3 HAYEK, F. A O Caminho da Servidão.Rio de Janeiro, Instituto Liberal, 1990, p.40. Nesse ponto, o autor parece aceitar a premissa que o desenvolvimento econômico determinou a prática política.4 Segundo Tocqueville, pensador francês (1805-1859), “Individualismo é uma expressão recente, que nasceu por causa de uma idéia nova. Nossos pais apenas conheciam o ego-ísmo. O egoísmo é um amor apaixonado e exagerado por si mesmo, que leva o homem a nada relacionar senão a ele apenas e a preferir-se a tudo. O individualismo é um sentimen-to refletido e pacífico, que dispõe cada cidadão a isolar-se da massa de seus semelhantes e a retirar-se para um lado com sua família e seus amigos, de tal sorte que, após ter criado para si, dessa forma, uma pequena sociedade para seu uso, abandona de bom grado a própria grande sociedade. (...) o individualismo decorre mais de um juízo errôneo que de um sentimento depravado. Tem a sua fonte nos defeitos do espírito, tanto quanto nos ví-cios do coração”. TOCQUEVILLE, A. A Democracia na América. Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/EdUSP, 1987, p.386.

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restrições que o mantinham sujeito a padrões determinados pelo costume ou pela autoridade no que dizia respeito às suas atividades ordinárias” (HAYEK, 1990, p.41).5

A defesa da liberdade econômica é produto não planejado da liberdade política.6 A liberação das energias individuais levou ao desenvolvimento da ciência e de setores da economia como a mecânica, a indústria extrativa e a relojoaria. A liberdade industrial possibilitou os grandes passos dados pela ciência nos últimos cento e cinqüenta anos. Indo contra as idéias positivistas de Auguste Comte7, um totalitário do século XIX, o individualismo neste século trouxe a todas as classes a consciência da liberdade. Os benefícios foram gerais e “[...] não houve classe que não se tenha beneficiado de modo substancial com o progresso geral. [...] Em princípios do século XX, o trabalhador do mundo ocidental havia alcançado um grau de conforto material, segurança e independência que pareceria impossível um século antes” (HAYEK, 1990, p.42).8 Isso devido ao fato de que o princípio básico do liberalismo não é estacionário, utilizando ao máximo as forças espontâneas da sociedade e recorrendo o menos possível a coerção.

5 A passagem refere-se à servidão, que sujeitava todos os lavradores de um domínio ao poder do senhor.6 Após afirmar que a liberdade política adveio de uma maior liberdade econômica, parece que a defesa desta enquanto teoria liberal só se deu após a afirmação daquela. De certa forma, respalda o argumento marxista de que as idéias dominantes de cada época são as idéias das classes dominantes.7 Filósofo francês (1789-1857), opondo o cientificismo ao liberalismo, estabeleceu a autori-dade e a ordem pública contra os abusos do individualismo da escola liberal.8 Afirmação surpreendente e muito contraditória. Há abundância de relatos sobre a dis-crepância entre as condições de vida das diferentes classes sociais, devido à excessiva exploração do trabalho. Na segunda década do século XIX, enquanto os primeiros in-dustriais viviam em vistosos palácios, andavam de carruagem, tinham criados e caçavam nos bosques, os trabalhadores tinham jornadas das cinco da manhã às nove da noite, alimentavam-se de sopa de aveia, bolo, batatas e bacon. Achar que em um século de história foram abolidas as contradições do capitalismo pelos próprios capitalistas, melho-rando confortavelmente a qualidade de vida dos trabalhadores, mostra desconhecimento da matéria.

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Mas o desenvolvimento do liberalismo encontrou uma série de obstáculos. O progresso lento das idéias liberais levou à vulgarização, por parte dos interessados na emergência do progresso industrial. O pensamento liberal necessita criar um aperfeiçoamento do sistema monetário e agir no controle sobre os monopólios, se quiser continuar a combater os privilégios anti-sociais e a ilimitada ambição. A aplicação aos problemas sociais, da estrutura de pensamento dos problemas tecnológicos, levou a imposição de ideais organizacionais, opondo a velha atitude liberal a um modo atual de abordar os problemas da sociedade. Iniciou-se um “controle social”, de acordo com Mannheim, em parte gerado pelo papel que a Alemanha desempenhou como centro intelectual do século XX. Lá surgiu o socialismo e, devido ao grande progresso material que vinha passando, a Alemanha se inseriu de vez na civilização ocidental, mas acreditando que os valores desta, como o liberalismo, a democracia, o capitalismo, o individualismo, o livre comércio, o internacionalismo e a paz, não passavam de interesses ingleses.

As conseqüências da nova atitude coletivista e socialista se manifestariam posteriormente num autoritário e forte governo ditatorial, na reorganização da sociedade em moldes hierárquicos e num “poder espiritual” coercitivo. Senão pela influência das revoluções liberais que precederam os movimentos de 1848, é que se pôde forjar o conceito de “socialismo democrático”, que se apropriou da idéia de liberdade antes difundida. Tocqueville considera que a igualdade tem significados diferentes no socialismo e no liberalismo: no primeiro, significa repressão e servidão. No segundo, liberdade.

O “Reino da Liberdade” dos socialistas não representa nada mais que a distribuição eqüitativa da riqueza, de modo que o socialismo torna-se herdeiro aparente da tradição liberal. Mas não é assim, pois na verdade, o anti-liberalismo que apregoa torna o socialismo democrático irrealizável. A grande proximidade é entre o comunismo e o fascismo. Max Eastman afirma que o stalinismo é superfascista, F.A. Voigt que “na essência, marxismo é fascismo e nacional-socialismo” e Peter Drucker, que “o fascismo é o estágio atingido depois que o comunismo se revela

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uma ilusão” (HAYEK, 1990, p.51).9 No significado do conceito de socialismo, pode-se entender que

em relação aos fins, existem ideais de justiça social, igualdade e segurança. Para isso, os meios utilizados são a abolição da iniciativa privada e da propriedade privada dos meios de produção, assim como a adoção de uma economia planificada por um órgão central de planejamento. Entende-se por planificação econômica, ter a produção voltada para o consumo ao invés da produção para o lucro, para atender fins diversos. Sendo assim, o socialismo enquanto método é um gênero, uma espécie de coletivismo e, para Adam Smith, o controle da vida econômica torna os governos opressores e tirânicos. Se coletivismo pode ser entendido como “[...] espécie de planejamento necessário à realização de qualquer ideal distributivo” e planejamento como “[...] controle centralizado de toda atividade econômica de acordo com um plano único, que estabeleça a maneira pela qual os recursos da sociedade sejam ‘conscientemente dirigidos’ a fim de servir, de uma forma definida, a finalidades determinadas”, então são métodos do socialismo, que necessita da direção e organização central, o que por sua vez, o torna opressor e tirânico segundo o pensamento liberal. 10

São as forças da concorrência que caracterizam o sistema liberal e, o bom uso dessas forças como princípio, elimina a intervenção coercitiva na vida econômica. Isso significa liberdade para vender, comprar e produzir; restrição dos métodos da produção com custos sociais; sistema

9 Peter Drucker escreveu vários livros, dentre os quais “Sociedade Pós-Capitalista”, onde defende a transição do capitalismo e do Estado-Nação para uma sociedade de conheci-mento e organizações.10 De um ponto de vista marxista, “(...) a economia planificada retoma necessariamente toda a problemática que a economia moderna apresenta em um nível essencial e superior. Essencial porque na economia planificada os problemas são abordados, não como forças relativamente cegas e impessoais que uma ação coletiva não-ordenada e não-deliberada coloca, mas como problemas decorrentes de uma condição humana, de uma vontade cole-tiva previamente determinada. É superior porque apresenta ao homem um grau máximo de liberdade e domínio sobre as forças econômicas que ele mesmo desencadeia na atividade produtiva”. SINGER, P. Curso de Introdução à Economia Política. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1975, p.172.

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legal apropriado, estruturado para manter a concorrência benéfica. Onde é impossível o funcionamento adequado da concorrência, há controle direto pela autoridade. A função real do Estado em termos sociais é a de oferecer os serviços cujos lucros jamais compensariam os gastos de um indivíduo ou de um grupo. E o Estado deve ter uma função: é impensável uma sociedade cujo Estado não exerça função alguma. A substituição da estrutura liberal pela economia dirigida pode se dar tanto na organização corporativa, quanto na supressão da concorrência por monopólios independentes e tutelados. O planejamento jamais poderá ser contrário à concorrência: eles só se combinam se o primeiro for a favor da última.

Um argumento geralmente utilizado para a planificação “[...] é aquele segundo o qual as transformações tecnológicas foram tornando impossível a concorrência em campos cada vez mais numerosos, só nos restando escolher entre o controle da produção por monopólios privados ou pelo governo” (HAYEK, 1990, p.64). A favor do argumento de que a planificação econômica é consequência necessária do progresso da tecnologia, pesam a idéia marxista da “concentração industrial”11 – a superioridade das grandes firmas em relação às pequenas -; de que os novos problemas da civilização industrial tornam indispensável a coordenação de um órgão central, para dar coerência ao processo econômico; a concessão de monopólios possibilita o uso das novidades tecnológicas por todos, por exemplo, a eletricidade. Entretanto, esta “inevitabilidade” da planificação não se justifica se não for acompanhada de uma ação política que a viabilize. Protecionismo, coação, estímulos dados (visando o controle de preços e vendas) prenunciam a transição do sistema de concorrência para o “capitalismo monopólico” (nesse sentido, 11 Para Marx, esta é uma tendência central e fundamental do capitalismo, afirmando “(...) que cada capital individual é, em maior ou menor grau, uma concentração de meios de produção. A mera existência do capital da empresa individual já implica uma concentração de meios de produção, sob o comando único de um proprietário ou de um grupo de proprie-tários. Na própria essência do capitalismo, em contraste com outros modos de produção anteriores, a existência da empresa capitalista com um pequeno exército de trabalhadores sob o seu comando já implica uma concentração de recursos produtivos”. SINGER, P. Cur-so de Introdução à Economia Política. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1975, p.74.

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a Alemanha é protótipo do planejamento como prática governamental). O sistema de preços cumpre a função de dar coerência ao processo econômico, no regime de concorrência; ao contrário das concessões aos monopólios, o sacrifício pela variedade e liberdade de escolha será recompensado pelo progresso material subseqüente. Não restam dúvidas de que o planejamento resulta de uma ação deliberada e não de uma necessidade externa.

A característica mais comum do coletivismo é da “[...] organização intencional das atividades da sociedade em função de um objetivo social definido” (HAYEK, 1990, p.74). Os vários gêneros de coletivismo (comunismo, fascismo etc) diferem na realidade quanto aos fins, mas todos são totalitários, ou seja, negam a soberania dos objetivos individuais. Como o “bem-estar comum” depende do que pode ser proporcionado ao indivíduo numa variedade de combinações, dentro de um código moral e ético que é lacunar, essas lacunas devem ser preenchidas.

Na filosofia do individualismo, a escala de valores inclui apenas uma parcela da sociedade inteira, as escalas de valores são parciais e distintas entre si, os indivíduos seguem seus próprios valores dentro de certos limites, suas idéias governam suas condutas e não as de outrem. Os fins sociais correspondem-se, no que são formados pelos objetivos comuns de muitos indivíduos, que se revelam numa ação comum, dada pela concordância acerca desses objetivos.

Quando o Estado, enquanto associação de indivíduos para realizarem um objetivo comum, excede no controle de uma parte do todo, passa a controlar o sistema inteiro, reduz a liberdade individual, ou seja, a insere na escala de valores do Estado. Ocorre que “[...] a democracia dá início a uma linha de planejamento cuja execução exige um consenso muito maior do que na realidade existe” (HAYEK, 1990, p.78). Na prática, a gestão econômica deve ser afastada da área política e confiada à especialistas por uma série de motivos. Primeiro, os parlamentares são ineficazes em administrar os assuntos econômicos em detalhes. Segundo, não há opinião majoritária sobre todas as coisas. Terceiro, não se pode chegar a um plano coerente dividindo-o em partes para serem votadas.

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Quarto, a escolha entre finalidades de um plano é conflitante e a escala de valores do especialista é imposta. Quinto, o acordo sobre gestão das atividades econômicas numa assembléia democrática é improvável. Sexto, a delegação de poderes a organismos autônomos desvincula a autoridade responsável das normas democráticas. Sétimo, há um apelo pelo ditador econômico, o Parlamento não pode gerir. Assim, a democracia só é possível em um sistema de concorrência baseado no direito de dispor livremente da propriedade privada. A planificação conduz à ditadura.

No chamado Estado de Direito, as ações do governo são regidas por normas previamente estabelecidas e divulgadas. A autoridade usará seus poderes coercitivos em dadas circunstâncias, cada indivíduo planeja suas atividades com bases nesse conhecimento e o governo fixa normas determinando as condições em que podem ser usados os recursos disponíveis. No governo arbitrário, há gestão das atividades econômicas por uma autoridade central, que dirige o emprego dos meios de produção para finalidades específicas. Essa autoridade não se sujeita às regras formais que impeçam a arbitrariedade, pois precisa determinar quais necessidades são prioritárias e estabelecer distinções de mérito. Entende-se por normas formais as que indicam as linhas de ação do Estado em certas situações, sem referência ao tempo, lugar ou indivíduos em particular, sendo a imprevisibilidade dos efeitos concretos sua substância. No que concerne ao desenvolvimento histórico, o Estado de Direito é a verdadeira antítese do regime de status da nobreza baseado na hierarquia e a propriedade privada enquanto tal, que todos podem adquirir segundo as mesmas normas, não é fonte geradora de privilégios, mas de oportunidades.

É infundada a idéia de que o poder exercido sobre a vida econômica só afeta questões de importância secundária. Não existe “interesse econômico” por si só, mas fatores econômicos que condicionam os desejos para atingir determinados fins, a partir dos nossos esforços. Os interesses econômicos não se distinguem dos outros interesses, pois perdas e ganhos refletem nos valores básicos da existência. A planificação é o próprio controle da existência, controle dos meios que contribuirão

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para a realização de todos os nossos fins: “Planejamento central significa que o problema econômico será resolvido pela comunidade e não pelo indivíduo [...]” (HAYEK, 1990, p.101). A planificação acarreta poder total sobre a vida privada e o planejador nada mais se torna do que um poderoso monopolista.

O sistema liberal funciona de modo que aquilo que cabe a cada um dependa da habilidade e iniciativa dos indivíduos e de circunstâncias imprevisíveis. Já o planejador amplia seu controle para impedir que o livre funcionamento do mercado se expanda. A desigualdade gerada por forças impessoais é mais bem suportada “[...] em virtude de circunstâncias que ninguém controla e que é impossível prever com certeza” (HAYEK, 1990, p.113). Na planificação econômica não há questão social ou econômica que também não seja questão política. Lênin perguntava “Quem, a quem?”, demonstrando que todo governo exerce influência na posição relativa das pessoas. Mas o sistema onde tudo que o indivíduo recebe depende do governo, esse sistema é totalitário. Pelo contrário, o sistema onde o governo se limita a condicionar se certas pessoas receberão certas coisas, de certo modo, em certas ocasiões, então este sistema é livre. A justiça distributiva pede a igualdade completa e absoluta entre todos os indivíduos através da reivindicação integral do trabalho, o que pode ser equacionado pelo “preço justo” e pelo “salário razoável”, enquanto no sistema socialista, é necessária uma nova escala de valores, continuando a discriminação entre as categorias.

Os socialistas sempre pensaram em resolver essas questões criando uma nova concepção de mundo. Mas a nova escala de valores não pode ser criada pelo saber e pelo conhecimento advindo da educação. Essa idéia está mais próxima daquilo que o nacional-socialismo chamou de Weltanschauung, ou uma visão de mundo definida. Nazismo e fascismo não deixam de imitar as instituições socialistas mais antigas: crianças em organizações políticas, lazer em clubes do partido, distinção dos membros do partido por formas de saudação e tratamento, organização de células. O status do indivíduo (renda e posição) aumenta com o poder de influenciar ou controlar a máquina estatal. Na realidade, entre as duas classes

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antagônicas segundo o dogma marxista – capitalistas e proletariado – forma-se uma classe média, uma “elite operária”, cujo status é superior ao das classes pobres. O movimento socialista formou uma aristocracia trabalhista e a revolta das classes que perderam esse status junto a esta aristocracia, sustentaram o nazi-fascismo.

A segurança econômica é condição indispensável à liberdade ou é uma ameaça a esta. Por um lado, a segurança limitada é conquistada para todos, não constitui privilégios e é objeto de aspirações legítimas. Por outro lado, a segurança absoluta não pode ser conquistada para todos e não deveria ser concedida como privilégios, a não ser em certos casos especiais, como o dos juízes, por exemplo. Dentre os objetivos da segurança econômica estão a salvaguarda contra graves privações físicas, a garantia de certo padrão de vida, uma renda mínima ou específica. Com o sistema de mercado, há segurança para todos, mas com sua abolição, a segurança é só para alguns.

Na sociedade livre e rica, garantir a liberdade para todos põe em risco a liberdade geral, mas é possível garantir um mínimo suficiente (alimentação, roupas, habitação), um sistema de previdência social ou uma assistência à vítimas de catástrofes. Também é de responsabilidade dessa sociedade combater as flutuações gerais da atividade econômica e os surtos de desemprego em larga escala dentro da economia de mercado, seja através da política monetária, seja pela execução de um programa de obras públicas. O planejamento que protege os indivíduos ou grupos contra a redução de suas rendas exerce efeito insidioso sobre a liberdade. As perdas são inseparáveis do sistema de concorrência e a exigência de uma justa remuneração não é conciliável com a livre escolha da ocupação. A remuneração deve corresponder à utilidade dos indivíduos para os outros membros da sociedade: “[...] para que a escolha das ocupações seja livre, a garantia de uma determinada renda não pode ser consentida a todos” e a “[...] maioria das pessoas necessita, em geral, de alguma pressão externa para se esforçar ao máximo” (HAYEK, 1990, p.126).

Quando o sistema é forçado pela comunidade a buscar a segurança acima da liberdade, gera-se desemprego e mesmo insegurança,

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pois é necessária a interferência no mercado de trabalho. O empenho geral em conquistar a segurança atualmente vem do fato de que a “[...] geração de hoje cresceu num mundo em que, na escola e na imprensa, o espírito da livre iniciativa é apresentado como indigno e o lucro como imoral, onde se considera uma exploração dar emprego a cem pessoas, ao passo que chefiar o mesmo número de funcionários públicos é uma ocupação honrosa” (HAYEK, 1990, p.131). Tais pensamentos representam a vitória do ideal de segurança sobre o de independência, a exaltação da segurança em detrimento da liberdade.

Nos regimes totalitários, o fim para o qual é usado depende da atitude dos ditadores, que pode pender para o bem ou para o mal. O dilema do ditador totalitário é o mesmo do democrata planificador, porque o problema de fundo permanece o conflito entre a moral do coletivismo e o individualismo da civilização ocidental. A ética do coletivismo se baseia numa interação da moral com as instituições e os elevados motivos morais do sistema coletivista não concorrem para o fim a que ele se destina. Para impor um regime totalitário, um líder deve apoiar-se em um grupo disposto a aceitar a disciplina que vai impor aos outros pela força: a “massa” com padrões morais baixos, aqueles com fracas convicções próprias, os prosélitos que concordam com um plano negativo.

Foi assim que anti-semitismo e anti-capitalismo tiveram as mesmas origens na Alemanha. Marx e Engels expressam-se a respeito dos tchecos ou poloneses semelhantemente aos nacional-socialistas, mostrando que o humanismo e o internacionalismo socialistas são apenas teóricos. Quando transferido do indivíduo para a sociedade, o poder torna-se quase infinito; o poder do conjunto de diretorias de empresas privadas não é sequer uma fração daquele exercido por uma comissão planejadora socialista. O poder econômico nas mãos de particulares nunca se torna um poder exclusivo ou completo, ao contrário de quando é centralizado como instrumento de poder político. Nesse sistema, a única opção que se põe aos indivíduos e a “[...] única satisfação é a da ambição do poder em si mesmo, o prazer de ser obedecido e de fazer parte de uma máquina perfeita, imensamente poderosa, diante da qual tudo deve ceder” (HAYEK,

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1990, p.146).No sistema totalitário é necessária uma correspondência completa

do pensamento individual com os fins do sistema. Isso é feito através da propaganda, que leva a padronização das mentes; pela criação de “mitos” para justificar os atos dos líderes e que posteriormente são transformados em teorias científicas; pela confusão proposital entre liberdade e poder; pela disseminação de idéias através do arsenal educativo. Como toda atividade deve ser justificada por um conjunto social consciente, resulta-se daí a estagnação do pensamento e o declínio da razão.

O nazismo, entretanto, não é um movimento irracional, uma revolta contra a razão, mas ao contrário, é resultado de uma longa evolução de idéias, iniciada quando o coletivismo foi libertado da tradição individualista e difundido por pensadores alemães e outros europeus. O nazismo ascendeu nem em função da derrota na 1ª Guerra Mundial e do nacionalismo pós-guerra, nem porque foi uma reação do capitalismo contra o avanço do socialismo. Essas são versões equivocadas. As verdadeiras causas estão na ausência de uma burguesia forte, na aproximação dos socialistas de direita e de esquerda (anti-capitalistas) e no arrebatamento que a corrente nacional-socialista fez entre os trabalhadores e a juventude que participavam das fileiras do socialismo marxista. A influência de intelectuais militantes ou simpatizantes das idéias socialistas também foi fundamental para a difusão das idéias totalitárias na Europa, inclusive intelectuais ingleses. Vejamos alguns exemplos. O prof. Werner Sombart, autor do livro “Comerciantes e Heróis” era considerado uma dos principais representantes das idéias marxistas antes da 1ª Guerra. Sua idéia era de que a guerra era impulsionada por um conflito entre a civilização comercial da Inglaterra contra a cultura heróica da Alemanha. Os argumentos a favor da última se encontram no desprezo pela busca de felicidade individual, decorrente do espírito mercantil e na concepção germânica de Estado - a “comunidade do povo” ou Wolksgemeinschaft – na qual a finalidade do indivíduo é sacrificar-se pela vida superior do povo e do Estado e para os quais a guerra é a consumação da perspectiva heróica da vida.

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O prof. Johann Plengue, erudito moderado e autor de “Marx e Hegel”, escreveu um outro livro na época denominado “1789 e 1914: os anos simbólicos na história do espírito político”, no qual fazia uma comparação entre as idéias de 1789 (o ideal de liberdade) e as idéias de 1914 (o ideal de organização). Destacam-se os argumentos mostrando que a organização é a essência do socialismo e que a “Guerra Econômica Mundial” é a terceira grande fase da luta espiritual na história moderna. Paul Lensch era representante da esquerda do partido social-democrata. Defendia que o sistema protecionista adotado por Bismark permitiu a “concentração industrial”, estágio superior de desenvolvimento. A Alemanha é revolucionária, enquanto a Inglaterra é contra-revolucionária, já que o “[...] Estado passou por um processo de socialização e a social-democracia sofreu um processo de estatização” (HAYEK, 1990, p.165). Também os nomes de Spengler, Friedrich Naumann, Moeller van den Bruck, Ferdinand Fried são alguns dos que figuram na lista de fomentadores e difusores do totalitarismo. Na Inglaterra, o fenômeno se reproduz e, algumas características particulares fazem dessa nação um campo fértil. Existem vários sintomas e semelhanças da Inglaterra de hoje com há Alemanha trinta anos antes. Pode ser percebida uma analogia entre os pontos de vista da direita e da esquerda no campo da economia, como a oposição ao liberalismo, despertando a simpatia dos socialistas aos conservadores. A crescente veneração do Estado, a admiração pelo poder e pela grandeza em si mesma, o entusiasmo pela organização e pelo planejamento, fazem com que intelectuais espalhem idéias que engendram o totalitarismo. Podem ser citados os nomes de E.H.Carr e C.H.Waddington. Mais perigoso ainda para a aproximação da Inglaterra com o totalitarismo são as ações conjuntas de organizações de classes empresariais e operárias, os monopólios capitalistas com o apoio do Estado e o aumento do poder do Partido Trabalhista Britânico. Parece que o “fim do homem econômico” será o mito dominante de nossa época. O surgimento da “economofobia”, levando a uma constante relutância em submeter-se às regras e necessidades

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econômicas que não sejam claramente compreendidas. Esquece-se que foi a submissão às forças impessoais do mercado que levou ao progresso da civilização. É preciso certificar-se que em tempos de paz o objetivo prioritário é a supressão do desemprego, pois há queda da posição econômica dos indivíduos em função do novo valor dos serviços. As soluções se dão seja pela expansão inflacionária que leva à elevação dos salários e rendimentos de certas categorias, seja pela criação de um estado de pobreza para a recuperação do parque industrial. A meta mais importante a ser considerada é a busca pelo aumento da renda e não pela sua redistribuição. Um progresso econômico acelerado, com um mínimo uniforme garantido a todos, sem segurança privilegiada para determinadas classes, vai melhorar o nível geral da riqueza e manter o ambiente moral necessário para o desenvolvimento do sistema: “A liberdade de ordenar nossa conduta numa esfera em que as circunstâncias nos obrigam a escolher, e a responsabilidade pela organização de nossa existência de acordo com a nossa consciência, são a única atmosfera em que o senso moral pode se desenvolver e os valores morais serem a cada dia recriados no livre-arbítrio do indivíduo” (HAYEK, 1990, p.191). Já os efeitos do coletivismo são destrutivos, levando à perda da fé nos valores específicos da civilização inglesa, indispensáveis para a disputa ideológica. Enfim, o campo das relações internacionais foi o que pagou mais caro pelo abandono do liberalismo do século XIX. As muitas formas de planejamento econômico aplicadas em escala nacional serão prejudiciais em seu conjunto e produzirão atritos internacionais. O planejamento necessita afastar-se das influências externas, gerando restrições ao movimento de pessoas e mercadorias. Os recursos de cada nação serão considerados sua propriedade exclusiva. Um planejamento em nível internacional imporá um tipo de trabalho e um padrão de vida a diferentes povos, cujas classes trabalhadoras possuem divergências de opiniões e de interesses. Enfim, com o planejamento entre os países, todos se sentirão pior e haverá uma incessante e progressiva ameaça à paz.

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COBÉRIO, C. G. V, On “o caminho da servidão”, by Friedrich August Von Hayek: a philosophy of history and freedom of thought in the liberal neoclassical. DIALOGUS. Ribeirão Preto, vol.5, n.1, 2009, p. 175-196.

ABSTRACT: One root of the current hegemonic economical thinking has been identified through the Austrian writer Friedrich August von Hayek notes. Wax euphoric about the liberal principles superiority in handing the economical, political, social, ethical e moral points in the future, does an eloquent critic of the socialism as a human’s realization promise. In his writing the polemic is an art, certain are not in measured way and logic is like a sophism.

KEYWORDS: Government; liberalism; individualism; planning; collectivism.

REFERêNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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JULIA LOPES DE ALMEIDA: ACASO OU DESCASO DA HISTORIOGRAFIA?

Deivid Aparecido COSTRUBA*

RESUMO: O artigo visa apresentar a vida e a obra da escritora, Julia Lopes de Almeida, que foi uma escritora atuante na virada do século XIX para o XX, mas foi esquecida pela historiografia contemporânea.

PALAVRAS-CHAVE: Mulheres; intelectuais; Julia Lopes de Almeida.

De acordo com Moreira:

O século XIX foi aquele no qual ocorreram não somente modificações de ordem material, aprimorando os instrumentos da sociedade e facilitando assim, a permanência do homem na terra, mas ocorreu que deu ao homem uma concepção de mundo humanística e conseqüentemente, uma relação profunda nas relações entre homens e mulheres na sociedade ocidental. (1998).

É no século XIX, no qual absorveu as idéias iluministas, inicia – se a transformação do discurso vigente e prepara novas mentalidades ao apagar de suas luzes. É neste bojo de fim de século, com sua crise de valores, de redefinição dos papéis masculino e feminino, com uma economia capitalista em ascendente expansão nos Estados Unidos e parte da Europa, que as mulheres também buscam seu espaço político e social.

* Bacharel em História, desenvolve pesquisa de mestrado sobre o tema junto ao Programa de Pós Graduação em História da UNESP, Campus de Assis, sob orientação do Prof. D. Milton Carlos Costa. [email protected]

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No contexto brasileiro, a condição da mulher não era diferente. No início do século XIX a mulher era destituída de qualquer instrução (é claro que sempre houve exceções). O destino natural da mulher era o casamento e a maternidade, sendo ridicularizada quando almejava alguma coisa que ultrapassava esta idéia. Além disso, a mulher estava inserida na chamada “aceleração do tempo” que parecia acontecer no final do século XIX e meados do século XX, no qual as pessoas se deslumbravam com tantas mudanças na vida social brasileira.

Segundo Neves, “Vertigem e aceleração do tempo. Esta seria, sem dúvida, a sensação mais forte experimentada pelos homens e mulheres que viviam ou circulavam pelas ruas do Rio de Janeiro na virada do século XIX para o XX” (NEVES, 2003, p.15). Uma lufa – lufa desesperada acontecia não só na cidade do Rio de Janeiro ou de São Paulo, mas também em outras cidades que estavam modificando – se na virada do século.

Homens, mulheres, imigrantes, trabalhadores se misturavam no atordoado cenário de urbanização que mexia com os corações de adultos e crianças vendo tudo mudar tão subitamente. Com tanta gente circulando nas grandes cidades a imprensa ganha destaque por ter a função de levar a notícia para todas as pessoas.Neste contexto a profissão de escritor é evidenciada, pois são estes os responsáveis pelo eixo cultural de informações das gráficas e dos jornais. Esses escritores que escreviam sobre todos os assuntos eram chamados de polígrafos.

As mulheres no início da república possuem uma situação muito peculiar. Elas passam por um momento de transição entre dois períodos (do período de submissão para o de busca de sua própria identidade). Não mais submissas a seus maridos elas agora tentam mudar sua posição social cada vez mais, inserindo – se na vida política, econômica e nos espaços culturais. Tanto que nesta época, as mulheres desencadearam uma campanha em prol da educação e da emancipação feminina brasileira.

A mulher em questão que nós vamos tratar é também uma escritora, que com sua sutileza e perspicácia está envolvida no bojo desta

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transição (tanto entre os séculos como na transição de posição social) e ajudou a delinear os caminhos culturais de uma escrita feminina.Além disso, devemos salientar que antes de Julia Lopes de Almeida o Brasil já tinha escritoras, dentre elas: Nísia Floresta (1810 – 1885), Teresa Margarida Silva e Orta (1711 – 1787?), Maria Firmina dos Reis (1825 – 1917), Narcisa Amália (1852 – 1924), entre outras; mas o reconhecimento, o estatuto de escritora advindo de uma crítica não só brasileira, mas estrangeira, foi privilégio de Julia Lopes de Almeida. A escritora lusitana, Guiomar Torrezão, comparou Júlia Lopes de Almeida a escritora norte – americana Stowe, autora de a Cabana do pai Tomás.

Júlia Valentina da Silveira Lopes de Almeida nasceu no dia vinte e quatro de setembro de 1862 no casarão da rua do Lavradio nº53, no Rio de Janeiro. Filha de Antônia Adelina Pereira, natural de Lisboa e do médico português Valentim Lopes. Primeiramente a família mudou – se para Nova Friburgo, na qual com poucos anos de idade Julia aprendeu a ler e escrever com a mãe. Após a estada em Nova Friburgo, a família mudou – se para a cidade de Campinas em 1869. Desde menina demonstra forte inclinação para as letras, embora no seu tempo, não fosse de bom – tom e do agrado dos pais uma mulher dedicar – se à literatura.Quando pequena, foi delatada pela sua irmã ao seu pai porque fazia versos: ”- Papá, a Júlia faz versos! [Ao que Júlia confessa]: [...] tinha uma grande vontade de chorar, de dizer que nunca mais faria essas coisas feias”. (RIO, 1994, p.28).

A sua condição feminina a impedia de escrever, pois a pressão e coerção social a amedrontavam. Nas palavras de Júlia:

Pois eu em moça fazia versos. Ah! Não imagina com que encanto. Era como um prazer proibido! Sentia ao mesmo tempo a delícia de os compor e o medo de que acabassem por descobri – los. Fechava - me no quarto, bem fechada, abria a secretária, estendia pela alvura de papel uma porção de rimas [...] De repente, um susto. Alguém batia a porta. E eu, com a voz embargada, dando voltas à chave da secretária: já vai! Já vai. (RIO, 1994, p.28).

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Na mesma Campinas ela inicia sua carreira literária no jornal A Gazeta de Campinas. Era sete de dezembro de 1881, a estréia de Júlia na carreira das letras ocorria através da imprensa. Colabora na revista A Semana, editada no Rio de Janeiro. Dirigiam a Revista Valentim de Magalhães e Filinto de Almeida, jovem escritor português. Desta relação nasce um romance entre Julia e Filinto de Almeida.Além da revista A Semana Júlia colabora com diversos jornais e revistas femininas.

A estréia de Julia na vida literária com uma produção veio com “Contos Infantis”. Uma obra de sessenta narrativas em verso e prosa, escritas em colaboração com sua irmã, Adelina A. Lopes Vieira e destinadas à diversão e instrução da infância. Com um sucesso imediato publica outras obras dentro da linha nacionalizante e didática. “Histórias de Nossa Terra”(1907), “Era uma vez”(1917) e “Jardim Florido”(s/d).

Julia sempre teve apoio do marido e incentivo para seguir na carreira literária. Em 1891, inicia – se como romancista com “A Família Medeiros” (publicada em folhetins na Gazeta de Notícias – RJ e em livro em 1919). Seguem – se vários outros títulos: A Viúva Simões (1897); Memórias de Marta (1899), A Falência (1901) entre outros: “Com seu novo livro A Falência, a sra. D. Júlia Lopes de Almeida toma decididamente lugar ... entre os nossos romancistas.” (VERÍSSIMO, 1910, p.141–151).

Atenta à condição da mulher na sociedade, em 1906, publica O livro das donas e donzelas.

Um de seus livros de maior repercussão foi Correio da Roça (1913). Com uma linguagem simples em forma epistolar, faz apologia da vida no campo em contraposição à vida fútil da cidade. Tudo isto, porque no início do século XX, as mudanças da Belle Epoque fazem com que trabalhadores deixam o campo (êxodo rural) para ir para a cidade, preocupando as autoridades.

À frente de seu tempo Julia Lopes de Almeida deixa uma obra vasta e extensa que analisa a vida cultural, social e política de sua época. Enfrentou desde as críticas mais ferrenhas e exacerbadas a críticas que possibilitaram a sua melhor formação intelectual. Esses críticos formavam

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uma tríade: José Veríssimo, Araripe Júnior e Sílvio Romero. O primeiro sempre elogiava os trabalhos de Júlia:

Depois da morte de Taunay, de Machado de Assis e de Aluísio de Azevedo, o romance no Brasil conta apenas dois autores de obra considerável e de nomeada – D. Júlia Lopes de Almeida e o Sr. Coelho Neto, eu, como romancista, lhe (sic) prefiro de muito D. Júlia Lopes. (VERÍSSIMO, 1919, p.217–220).

Os dois últimos a ignoraram completamente como atestavam seus respectivos estudos críticos literários sobre a literatura brasileira. Agripino Grieco, crítico literário posterior, elogiou a produção de Júlia, mas de forma ambígua e contraditória. Considera – na como uma escritora, mas uma escritora menor: “[...] epopéias domésticas que foram nossa Bibliotheque Rosé”. (GRIECO, 1947, p.129-146).

Júlia faleceu em 30 de maio de 1934 de malária adquirida em viagem à África ao visitar uma das filhas, Lúcia Lopes de Almeida Noronha. Morreu aos setenta e dois anos, antes, escreveu seu último romance, “Pássaro Tonto” (1934). Mesmo depois de sua morte Júlia foi reconhecida pelos seus pares, que lhe tratam carinhosamente como “D. Júlia”. Como escreve Lúcia Miguel Pereira:

Júlia Lopes de Almeida, na verdade, é a maior figura entre as mulheres escritoras de sua época, não só pela extensão da obra, pela continuidade do esforço, pela longa vida literária de mais de quarenta anos, como pelo êxito que conseguiu com os críticos e com o público; todos os seus livros foram elogiados e reeditados, vários traduzidos. (PEREIRA, 1957, p.255-271).

Acreditamos que a trajetória de Júlia e sua relação com a sociabilidade intelectual da época foram de suma importância, mesmo porque, a escritora presenciou transformações histórico - sociais profundas na sociedade brasileira, tais como:

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Julia passou maior parte de sua vida na cidade do Rio de Janeiro, na época da chamada Belle Époque carioca, na qual a cidade se civilizava num processo rápido, tentando imitar as grandes metrópoles européias;Esteve presente na época de uma das maiores guerras nunca vistas até então: a I Guerra Mundial;Vivenciou os esforços do movimento sufragista brasileiro que só foram legalmente reconhecidos na constituição de 1934 (apesar de o direito feminino ao voto ter sido uma conquista de 1932 com a aprovação de “Novo Código Eleitoral”);Esteve presente nos debates para a emancipação feminina e nas lutas das mulheres por direitos femininos e feministas;Não só escreveu em prol da emancipação feminina, como fez parte ativa do Congresso Feminista e era membro da Federação pelo Progresso Feminino, cuja presidenta era Berta Lutz, e apoiou, com sua presença marcante, a Conferência Brasileira pelo Progresso Feminino.Presenciou a transição do Império para a República;Presenciou todo o processo Abolicionista.

Mesmo com toda importância e relevância de sua obra, na qual pretendeu escrever sobre o que acontecia na sociedade que estava inserida, Júlia foi deixada ao acaso ou simplesmente esquecida pela historiografia contemporânea.

A proposta do artigo seria recolocar a referida escritora no lugar de onde ela nunca deveria ter saído, ou seja, entre as maiores “mulheres escritoras”. O que parece–nos é que apesar dos esforços da História Cultural, ainda há uma resistência ao estudo das pessoas do “sexo frágil”, salientando aquelas do cenário nacional. Por isso, não querendo fazer mau uso e parodiando os dizeres de Marx: ”Feministas e diletantes por uma história das mulheres, uni – vos”!

COSTRUBA, Deivid Aparecido. Julia Lopes de Almeida: fortune or carelessness from historiografia ? DIALOGUS. Ribeirão Preto, vol.5, n.1,

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2009, p. 197-203.

ABSTRACT: The article aims introduce life and writer’s work, Julia Lopes de Almeida, who was an acting writer in the turning of the

KEYWORDS: Women; Intellectual; Julia Lopes de Almeida.

REFERêNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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GEOGRAFIA / GEOGRAPHY

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PROPOSTA DE ELABORAÇÃO DO GRÁFICO DE EVENTOS CLIMÁTICOS

André Geraldo BEREZUK*João Lima SANT´ANNA NETO**

RESUMO: A técnica de Análise Rítmica proposta por Monteiro já é consagrada na Climatologia Brasileira devido aos inúmeros trabalhos a ela fundamentados ao longo dos últimos 30 anos. No entanto, como toda técnica amplamente utilizada, ela necessita gradativamente de modificações em seus fundamentos para continuar sendo devidamente aproveitada. Deparando-se com um discurso teórico na climatologia de valorização dos eventos pontuais e aleatórios, como os estudos relacionados aos eventos extremos e às adversidades climáticas, o que conceitua ainda mais o estudo do ritmo climático, o artigo em questão propõe a criação de um gráfico com as mesmas características do Gráfico de Análise Rítmica, porém enfatizando a ocorrência dos fenômenos climáticos extremos em uma localidade. Esse gráfico é denominado de Gráfico de Eventos Climáticos, elaborado na tese de Berezuk (2007) pela FCT/UNESP de Presidente Prudente-SP.

PALAVRAS CHAVE: Análise Rítmica; Gráfico de Eventos Climáticos.

Introdução

A compreensão das características climáticas de uma determinada

* Professor adjunto da Universidade Federal da Grande Dourados – UFGD, Departa-mento de Geografia. Faculdade de Ciências Humanas, Dourados – Mato Grosso do Sul – Brasil.** Professor adjunto da Universidade Estadual Paulista - UNESP, Campus de Presidente Prudente, Departamento de Geografia, Presidente Prudente – São Paulo – Brasil.

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região sempre se encontra relacionada à utilização de um bom método e uma boa técnica de pesquisa. A análise rítmica, técnica em climatologia proposta por Monteiro (1973), constitui-se como uma importante ferramenta de análise que objetiva o estudo do ritmo climático e dos aspectos característicos dos mecanismos atmosféricos regionais. Técnica já consagrada na climatologia nacional por pesquisadores como Tavares (1974), Conti (1975), Tarifa (1975), Barbiere (1975), Zavattini (1983, 1990), Sant´Anna Neto (1990, 1995) e mais recentemente usada e difundida por pesquisadoras como Baldo (2006) e Ely (2006), apresentou resultados comprovados na meta de uma melhor caracterização climática nacional, na tentativa de colaboração com o desenvolvimento de políticas públicas que apresentem uma melhor eficácia no âmbito de um desenvolvimento territorial sustentável, diminuindo a vulnerabilidade ambiental das áreas habitáveis e proporcionando melhor qualidade de vida social.

No entanto, como toda técnica científica, esta se encontra em evolução e periodicamente surgem propostas novas para aperfeiçoamento dessa técnica para serem colocadas em debate. Uma dessas inovações é a criação do Gráfico de Eventos Climáticos (Figura 1), proposto por Berezuk (2007), que apresenta o mesmo foco do Gráfico de Análise Rítmica com relação ao estudo do ritmo climático e análise diária do tempo, porém, enfatizando em sua análise o “extremo climático”, que origina, por sua vez, as adversidades climáticas cada vez mais estudadas pela climatologia. O Gráfico de Eventos Climáticos foi criado mediante utilização do programa Corel Draw 12.

Materiais, Métodos e Técnicas

O Gráfico de Eventos Climáticos prioriza em sua configuração as variáveis: temperatura, níveis de precipitação extrema em 24 horas, a velocidade absoluta, direção predominante e classificação da intensidade dos ventos diária e a contagem dos dias de estiagem quando esta

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ultrapassa 25 dias sem volume de chuvas significativas (>10mm dia), além do sistema atmosférico atuante no dia. Assim como no Gráfico de Análise Rítmica as variáveis encontram-se inter-relacionadas, próximas umas das outras. No lado esquerdo do gráfico, encontram-se os valores de temperatura em graus Celsius e no lado direito do gráfico encontram-se os valores de precipitação em milímetros. O gráfico é dividido verticalmente segundo os dias do mês e logo abaixo dos dias, seguem cinco espaços horizontais, segundo a ordem de cima para baixo: a escala da intensidade dos ventos segundo a Escala de Beaufort, o período de estiagem mensal caso a região passe por 25 dias seguidos sem chuvas significativas, a intensidade absoluta dos ventos do dia, a direção predominante dos ventos diária e, por último, o sistema atmosférico predominante. Dessa forma, em um único gráfico são apresentados ao leitor sete aspectos climáticos diários relacionados à ocorrência de fenômenos extremos.

Enfatizando novamente as temperaturas, a temperatura máxima e a temperatura mínima do dia são classificadas segundo a média histórica do determinado segmento temporal estudado e a sua variação uma vez acima e abaixo o desvio padrão relacionado a esse período. Como exemplo, a figura 1 corresponde às médias históricas e os seus respectivos valores de desvio padrão referentes ao segmento temporal de 1976-2003 de Presidente Prudente. Temperaturas máximas são assinaladas de cores quentes, sendo a área acima do desvio padrão das máximas apresentada de vermelho, e abaixo do desvio padrão das máximas de laranja. Com relação às temperaturas mínimas, as cores utilizadas são o azul para temperaturas mínimas com valores acima do desvio padrão das mínimas e azul escuro para os dias com valores abaixo do desvio padrão das mínimas.

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FIGURA 1 – Exemplo de Gráfico de Eventos Climáticos – Mês de junho de 1997 – Presidente Prudente – SP. Org: BEREZUK, A. G. (2007)

Com relação aos níveis de precipitação diários, somente são inseridos no gráfico de eventos extremos valores acima de 50 mm em 24 horas e valores acima de 60 mm em 48 horas. Acima do limite estabelecido de 50 mm em 24 horas, a coluna de precipitação apresenta um limite vermelho. No caso do volume pluviométrico de 60 mm em 48 horas, o limite vermelho fica acima da marca dos 30 mm de precipitação para os dois dias. Volumes pluviométricos próximos às marcas propostas podem ser também inseridos (Figura 2).

Na área abaixo da apresentação dos dias do mês, encontra-se a análise dos ventos e dos períodos de estiagem/seca. Com relação aos ventos, primeiramente encontra-se uma área no gráfico em que as velocidades absolutas dos ventos são classificadas segundo a Escala de Beaufort. São classificados, nessa linha, os graus de intensidade acima de sete (ventos de 45 a 54 km/h). Abaixo da área referente aos períodos de estiagem/seca, encontra-se o valor máximo absoluto do vento medido do dia em questão e abaixo dele a sua direção predominante diária (Figura

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4).

FIGURA 2 – Variáveis temperatura e precipitação no Gráfico de Eventos Climáticos

Com relação à área correspondente para medição do período de estiagem, são referenciados com um retângulo vermelho, os dias em que a localidade apresenta mais de 25 dias sem chuvas significativas (>10mm dia), quase sempre o mês concordando com a premissa de Gaussen ( TP 2≤ ), salvo em meses em que a precipitação encontrou-se extremamente irregular (Figura 5).

Por último, mas não menos importantes, são apresentados no gráfico os sistemas atmosféricos predominantes no dia, cujos sistemas são utilizados nos estudos do Grupo Interações na Superfície Terrestre, Água e Atmosfera da Faculdade de Ciências e Tecnologia da UNESP de Presidente Prudente – SP (Figura 3).

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FIGURA 3 – Sistemas atmosféricos analisados segundo a proposta do Gráfico de Eventos Climáticos

O Gráfico de Eventos Climáticos também pode ser esteticamente modificado para englobar mais anos na análise de um mês específico (Quadro 1). Desse modo, o Gráfico Síntese Mensal de Eventos Climáticos apresentaria variáveis atmosféricas relacionadas ao Gráfico de Eventos Climáticos, porém, apresentando mais anos, como no exemplo onde são reveladas as características atmosféricas para junho em Presidente Prudente referentes aos anos de 1997, 1998 e 2001 (BEREZUK, 2007).

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FIGURA 4 – Variáveis vento, período de estiagem e sistema atmosférico atuante no Gráfico de Eventos Climáticos

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FIGURA 5 – Mês com período de estiagem (área com retângulos vermelhos seguidos, duas linhas abaixo da configuração dos dias do mês). Presidente Prudente, setembro de 1997

FIGURA 6 – Gráfico Síntese Mensal de Eventos Climáticos de junho de 1997, 1998 e 2001 para Presidente Prudente. Org: BEREZUK, A. G. (2007)

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Apresentação de Dados

Foram elaborados na tese de Berezuk (2007) 108 gráficos de Eventos Climáticos referentes aos anos de 1997, 1998 e 2001 além do acompanhamento de 108 Gráficos de Análise Rítmica (Figura 7) que possibilitaram a avaliação das características atmosféricas referentes ao ritmo climático do Oeste Paulista e do Norte do Paraná. Com a elaboração desses gráficos foram identificados, por exemplo, a ocorrência de mais de 70 episódios de temporais, mais de 250 episódios de ventos com velocidades acima de 45 km/h e períodos de estiagem nesses três anos de análise rítmica nas cidades de Presidente Prudente, Maringá e Londrina (Tabelas 1 e 2). A rede de dados utilizada para a confecção desses gráficos é proveniente das Estações Meteorológicas da FCT/UNESP de Presidente Prudente, da Universidade Estadual de Maringá-PR (Estação Climatológica Principal de Maringá) e do IAPAR (Instituto Agronômico do Paraná) de Londrina.

Com o conhecimento da ocorrência e freqüência dos episódios de eventos climáticos extremos nas três cidades, alguns desses episódios foram particularmente estudados, com a criação de figuras, utilizando para tal, imagens de nuvens do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais e Cartas Sinóticas confeccionadas pela Marinha do Brasil (Figura 8).

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Tabela 1 - Enumeração dos eventos extremos segundo os gráficos apresentados e caracterização mensal segundo volume de precipitação

Chuvas Intensas(+ de 50mm/24

hrs)

Ventanias(vel. >45km/h)

Dias de Estiagem/Seca

PP MGA

LON

PP MGA

LON

PP MGA

LON

1997

J 1 2 2 7 - 6 0 0 0F 1 5 3 3 - 5 0 0 0M 0 1 0 1 - 1 0 0 17A 0 0 0 2 - 2 0 2 6M 0 1 0 1 - 0 6 12 22J 1 2 2 3 - 2 0 0 0J 0 0 0 0 - 0 7 7 7A 0 0 0 1 - 0 31 23 21S 0 1 0 5 - 7 24 0 3O 1 0 0 4 - 4 0 0 0N 1 2 1 3 - 5 0 0 0D 0 2 0 3 - 5 0 0 0

Total 5 16 8 33 - 37 68 44 76

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1998

J 2 0 0 5 - 4 0 0 0F 0 1 2 5 - 5 0 0 0M 3 1 1 4 - 4 0 0 0A 0 3 1 6 - 1 0 0 0M 0 0 1 2 - 1 0 0 0J 0 0 0 5 - 2 8 2 9J 0 0 0 5 - 4 31 0 0A 0 0 0 8 - 3 1 0 0S 0 4 3 7 - 6 0 0 0O 0 2 0 6 - 3 0 0 0N 0 0 0 5 - 2 3 3 3D 3 1 2 5 - 6 0 3 0

Total 8 12 10 63 - 41 43 8 12

2001

J 0 1 1 6 - 5 0 0 0F 3 1 1 9 - 4 0 0 0M 0 0 0 6 - 2 0 0 0A 0 0 2 3 - 1 0 0 0M 1 1 1 3 - 0 0 0 0J 0 0 1 2 - 0 0 0 0J 0 0 0 2 - 4 11 0 0A 0 0 0 11 - 0 31 3 6S 0 0 0 13 - 5 26 0 0O 0 0 0 2 - 4 0 0 0N 0 0 1 2 - 3 0 0 7D 0 1 3 3 - 2 0 0 0

Total 4 4 1 62 - 30 68 3 13

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Tabela 2 – Classificação de meses úmidos, secos e habituais1997

PP

MG

A

LON

PP

MG

A

LON

PP

MG

A

LON

JFMAMJJASOND

1998 JFMAMJJASOND

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2001 JFMAMJJASOND

Azul - Mês Chuvoso (mês > sx 1_

+ );Verde - Mês com chuvas entre a média e uma vez DP;Vermelho - Mês com chuvas abaixo da média

(mês < sx 1_

− ).

FIGURA 7 – Gráfico de Análise Rítmica – Presidente Prudente – junho de 1997. Org: BEREZUK, A. G. (2007)

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Discussões, Interpretações e Resultados

A confecção dos Gráficos de Eventos Climáticos que analisam, por sua vez, os episódios atmosféricos contribuem para a caracterização dos eventos extremos, como nos exemplos aqui apresentados referentes à cidade de Presidente Prudente que faz parte dos estudos sobre o Oeste Paulista e norte do Paraná efetuados na tese de Berezuk. Segundo Berezuk & Sant´Anna Neto (2007), esses gráficos juntamente com os Gráficos de Análise Rítmica tornam possível a apresentação, em seus dados, dos quatro tipos característicos de fenômenos atmosféricos que são responsáveis pela origem dos principais casos de adversidade climática nessa região, como: a ação de ZCAS e suas chuvas, os sistemas frontais mais intensos, as chuvas de verão decorrentes de instabilidades tropicais e os períodos de estiagem/seca.

Busca-se, portanto, revelar o grau de freqüência nos quais os episódios climáticos extremos ocorrem, ressaltando o potencial de análise para com relação a avaliação de eventos pontuais e de curta duração. Dessa forma, a utilização dos gráficos, além de auxiliar no conhecimento dos aspectos climáticos regionais, em especial nos aspectos referentes a fenômenos com escala têmporo-espacial limitada, possibilita a órgãos como, por exemplo, a Defesa Civil, a quantificação da freqüência de ocorrência de chuvas intensas, ventanias ou de períodos significativos sem chuva. A quantificação, por sua vez, possibilita maior eficiência nos planos de planejamento territorial, pois torna viável a execução de uma classificação mais apropriada e “ajustada” dos fenômenos regionais, colaborando assim com a evolução da ocupação e da exploração do território, minimizando os riscos de uma área socialmente ocupada e contribuindo assim com o aumento da qualidade de vida.

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FIGURA 8 – Carta Sinótica da Marinha do Brasil que retrata as fortes chuvas que ocorreram no dia 14 de junho de 1997 nas localidades de Presidente Prudente, Maringá e Londrina e imagem do dia 30 de março de 1998, no qual mostra o estado dos sistemas atmosféricos na América do Sul no dia em que Presidente Prudente recebeu 100,8 mm de chuva. Org: BEREZUK, A. G. (2007)

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Considerações Finais

Não só a técnica de análise rítmica, proposta por Monteiro, muito difundida nas pesquisas de Climatologia Geográfica, mas também toda técnica científica, é e precisa ser gradativamente aprimorada, dado que os temas de pesquisa gradativamente se tornam mais complexos, enfocando outros fatores que antes não eram enfocados. No caso da proposta aqui apresentada o objetivo foi mostrar um gráfico com moldes semelhantes aos dos Gráficos de Análise Rítmica onde se enfatizasse, por sua vez, a ação mais pontual de fenômenos de característica extrema, ou mesmo não tão pontuais, como a contagem de períodos de estiagem/seca. Esses fenômenos configuram-se muitas vezes como potencialmente destrutivos, o que confirma ainda mais o grau de importância de propostas como esta.

BEREZUK, A. G, SANT`ANNA NETO, J. L. Proposal of preparation of the graph of climatic events.. DIALOGUS, Ribeirão Preto, vol. 5, n. 1, 2009, p. 207-224

ABSTRACT: The Rythm Analysis technique proposed by Monteiro has been used in the Brazilian Climatology Studies at least for thirty years because of many researches developed on it. However, this technique has the necessity of modifications into its rules, as all important technical skills. Because of the Climate Science, which is currently valuing the search of extreme events and hazards (which represents an advantage considering Climatic Rhythm), this paper proposes the creation of a graphic with the same characteristics of the Rhythm Analysis Graphic, but showing the occurrence of extreme climatic conditions in a specific location. This graphic is called Climatic Events Graphic, proposed by Berezuk´s thesis (2007) presented at FCT/UNESP, in Presidente Prudente, Sao Paulo, Brazil.

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KEYWORDS: Rythm Analysis; Graphic of Climatic Events.

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DESMANDOS E DISPUTAS NO EXTREMO NOROESTE PAULISTA: REVISÃO DOS EPISÓDIOS RELEVANTES

NA LUTA PELA TERRA

Paulo Henrique de SOUZA *

Marta Maria Pereira de SOUZA**

RESUMO: Tanto na disputa pelas terras da fazenda São José da Ponte Pensa como na competição entre Santa Fé do Sul e Três Fronteiras pela supremacia regional ou nos enfrentamentos ocorridos entre fazendeiros e arrendatários nas proximidades destes municípios, o extremo Noroeste paulista vivenciou episódios nos quais o capital e o acesso privilegiado ao Poder - auxiliados pela omissão do Estado – estabeleceram um quadro de desmandos contrário aos ideais da ética, direito e democracia.

PALAVRAS-CHAVE: Terras; município; grileiros; Noroeste paulista; famílias.

Segundo entendem autores como Monbeig (1984), Cobra (1923), Abreu (1972) e Martins (1975), o Noroeste paulista teve seu povoamento iniciado com a chegada de alguns grupos de mineiros que abandonaram seu Estado após o esgotamento das jazidas minerais de ouro e diamante; ou, fugiam do alistamento militar requerido pela Guerra do Paraguai. Estas pessoas são identificadas por alguns pesquisadores como uma

* Licenciado em Geografia pela UNESP de Rio Claro/SP. Doutor em Ciências da Engenha-ria Ambiental pela EESC/USP de São Carlos/SP. Docente da Fundação Educacional de Fernandópolis/SP – Brasil;**Bacharela/Licenciada em Geografia pela UNESP de Rio Claro/SP. Especialista em Edu-cação Ambiental pela EESC/USP de São Carlos/SP. Docente. Aparecida do Taboado/MS – Brasil.

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típica frente de expansão, que se distribuiu pela região sem causar dano significativo à vegetação, fauna, e populações indígenas.

Por volta de 1830, surge a figura de Patrício Lopes de Sousa, reclamando posse desta extensa área denominando-a Fazenda São José da Ponte Pensa. Nesta ocasião, a área requerida estendia-se desde o rio Grande ao Norte até o rio São José dos Dourados ao Sul, alcançando o rio Paraná ao Oeste e as fazendas já delimitadas por outros ao Leste, no atual município de Votuporanga (Figura 1).

FIGURA 1 – Fazenda São José da Ponte Pensa em 1830Fonte: Monbeig (1952, p. 195)

Devido a enorme extensão da área, o reclamante estabeleceu contrato com arrendatários dispostos a ocupar porções menores e efetuar bem-feitorias. Assim, são assinados contratos em 1860 com Patrício Ribeiro da Silva, em 1864 com Joaquim Anastácio de Souza, e em 1876 com João R. da Silva e Francisco R. da Silva e Souza. Após estes acertos, o proprietário da Fazenda São José da Ponte Pensa retorna para sua terra

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natal no vilarejo de São Tiago no Estado das Minas Gerais, aonde vem a falecer em 1885.

Costa (1996) menciona que esta área não recebia atenção alguma do Estado, sendo que sua maior obra de infra-estrutura, a estrada boiadeira; ou melhor, a estrada do Taboado foi concluída por volta de 1901, graças a iniciativa privada; atravessando o sertão da Araraquarense para dar acesso ao Mato Grosso.

Este descaso do Estado possibilitou a ação criminosa de grileiros e a ocorrência de uma série de disputas e desmandos que muitas vezes culminavam em agressões e assassinatos. Os moradores antigos foram os que mais sentiram as consequências desta situação, enfrentando um processo de expropriação onde a Justiça (Estado) era, na maioria das vezes, conivente com os crimes perpetrados.

O Caso da Fazenda São José da Ponte Pensa

No estado de São Paulo as ações fraudulentas tornaram-se possíveis graças a decisão do legislativo estadual em prorrogar de 1854 para o final do século o prazo estabelecido pela Lei de Terras de 1850 para legitimação da posse de terras. No caso das terras pertencentes à fazenda São José da Ponte Pensa, tornou-se famoso o grilo “Glória & Furquim”, responsável por uma das páginas mais negras da história da Justiça paulista.

Nogueira (1952) apud Chaia (1980) e os relatórios da Secretaria de Estado dos Negócios da Agricultura, Comércio e Obras Públicas de 1897 – 1930 (NARDOQUE, 2002) relatam que o grilo “Glória & Furquim” iniciou-se em 1912 quando um advogado de São José do Rio Preto – João Odorico da Cunha Glória, juntamente com um corretor de imóveis da cidade de Araraquara – Bernardino de Almeida, impetraram uma ação na justiça, com o objetivo de tomar posse legal das terras remanescentes da Fazenda São José da Ponte Pensa; na ocasião os documentos

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apresentados citavam-na pelo nome de Fazenda Palmital.Para surpresa geral dos envolvidos com o processo, Bernardino

de Almeida abandona a causa e um novo personagem entra em cena – Mário Furquim, vindo diretamente do Rio de Janeiro. A fim de diminuírem as suspeitas e defenderem seus “direitos”, os reclamantes remanescentes formam a sociedade “Glória & Furquim”.

Pesava contra o grilo “Glória & Furquim”, a falta de parentesco entre seus reclamantes e o antigo proprietário da área Patrício Lopes de Sousa. Não bastasse isto, havia ainda o testamento apresentado pelos herdeiros de Patrício Lopes de Sousa, que transferia o direito de posse da fazenda São José da Ponte Pensa para os filhos de sua irmã Maria Tereza de Sousa em 04 de Abril de 1882, uma vez que o antigo proprietário não possuía herdeiros quando faleceu.

Para por um fim a problemas semelhantes que surgiam por todo o interior do Estado, o executivo estadual nomeou uma comissão para dirimir as demandas existentes no Oeste paulista. Em relação à fazenda São José da Ponte Pensa, houve contestação da comissão contra a posse requerida pelo grilo “Glória & Furquim”; entretanto, o Estado desprestigiou a comissão criada por sua própria iniciativa, facilitando o caminho para os grileiros prosseguirem no seu intento (Relatório da Secretaria de Estado dos Negócios da Agricultura, Comércio e Obras Públicas de 1897 – 1930 apud NARDOQUE, 2002).

O grilo “Glória & Furquim” requeria posse legal da fazenda Palmital com área e limites idênticos aos da fazenda São José da Ponte Pensa, pertencente a Fabrício Joaquim de Souza, casado com Helena Joana da Luz. Após o falecimento de ambos, o inventário ocorrido em Piracicaba – então Vila da Constituição submetida à comarca de Itu – outorgou direito a José Joaquim de Souza e Maria Joana da Luz – esta casada com Amaro José do Vale – conforme a sentença de 26 de Agosto de 1831. No dia 28 de Setembro de 1856, os herdeiros citados firmaram acordo com José Carlos da Silva, pondo fim às disputas de limites, estabelecendo as divisas comuns entre a fazenda Palmital e a fazenda Cachoeira da Boa Vista.

Após alguns anos, faleceram Amaro José do Vale e sua esposa

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Maria Joana da Luz, falecendo também José Joaquim de Souza e sua esposa Ana Barbosa de Souza. Os direitos de posse passam então para José Fabrício do Vale e Sizenando Joaquim de Souza. Estes dois vendem as terras da fazenda Palmital por escritura pública no dia 07 de Setembro de 1912 a João Odorico da Cunha Glória.

Em sua petição, Mário Furquim defendia seus direitos sob a alegação de que Patrício Lopes de Sousa fizera um contrato de administração da área com João Ribeiro da Silva e Fabrício Ribeiro da Silva e Souza. Em 1890, Patrício retirou-se do local, cedendo a onze pessoas sua representatividade. Estes, após alguns anos repassaram seus direitos ao Coronel Felício José de Carvalho e a Mário Furquim. Depois de algum tempo, o Coronel Felício também transferiu seus direitos para Mário Furquim.1

Por não apresentarem consistência e fundamentação, as argumentações apresentadas pelos reclamantes foram contestadas pela Fazenda do Estado de São Paulo; entretanto, graças ao esquema montado pelo grilo “Glória & Furquim”, em 19 de Maio de 1914 a Justiça emitiu sentença favorável aos grileiros legitimando a farsa montada e escrevendo uma página negra na sua história.

A área da fazenda São José da Ponte Pensa foi demarcada nos seguintes limites (Figura 2):

- rio São José dos Dourados desde sua desembocadura no rio Paraná até um marco em sua margem esquerda situado cerca de uma légua abaixo do espigão divisor da Fazenda Iagora de propriedade dos herdeiros e sucessores de José de Castro da Silva;

- do marco mencionado, segue pelo espigão até o alto do espigão mestre divisor das águas dos rios São José dos Dourados e Grande;

- do alto do espigão mestre, segue rumo à nascente e depois em rumo do Norte até o rio Grande, fazendo divisa com a fazenda Araras ou

1 Na versão apresentada por Mário Furquim, seu direito de posse foi obtido junto a Patrí-cio Lopes de Sousa em 1890; entretanto, o registro de óbito atesta que o antigo dono da fazenda São José da Ponte Pensa viera a falecer em 1885.

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Água Limpa dos herdeiros e sucessores do Barão de Serra Negra; - deste ponto, segue pelo rio Grande até a desembocadura no

rio Paraná; e - no rio Paraná, compreende o trecho entre os rios Grande e o

São José dos Dourados.

FIGURA 2 – Limites da Gleba Ponte Pensa em 1914Fonte: adaptado de Monbeig (1952, p. 195)

O grilo “Gloria & Furquim” contou com os serviços prestados pelo escritório de advocacia do político Júlio Prestes de Albuquerque, possuidor na época de significativo prestígio e importantes canais na justiça, administração pública e política brasileira.

O retalhamento da fazenda São José da Ponte Pensa contemplou os reclamantes João Odorico da Cunha Glória e Mário Furquim; além de Bernardino de Almeida – outrora reclamante e os advogados Júlio Prestes de Albuquerque e Olympio Rodrigues Pimentel (tabela 1 e Figura 3).

Após a demarcação das terras, a fazenda São José da Ponte

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Pensa encontrava-se totalmente vendida num prazo inferior a cinco anos. Neste processo, não foram poucos os casos em que um mesmo pedaço de terra foi comercializado duas ou até três vezes graças à conivência dos cartórios da região – Monte Aprazível, Tanabi, São José do Rio Preto e Araçatuba.

Destacaram-se na aquisição destas terras, John Bing Paget – oficial inglês; Guilherme Schimidt; Almeida Prado S/A; Comissária e Exportadora, Companhia Lancashire General Investment; Dr. Armando Gomes; Dr. Euphly Jalles2 Dr. Alceu de Assis; Companhia Agrícola Francisco Schimidt S/A; Cecílio José Karan; Companhia Paulista de Colonização; Paulo Ferraz; Alcides do Amaral Mendonça e Companhia de Agricultura, Colonização e Imigração dentre outros (MURAMATSU, 1984 e MONBEIG, 1984).

Após a comercialização destas terras os problemas não diminuíram. Não era para menos, pois, uma análise preliminar do retalhamento da Fazenda São José da Ponte Pensa já denuncia uma sobreposição de direito entre Glória e Furquim na Gleba Córrego dos Coqueiros ou Marimbondo que possuía 1.900 alqueires, abrangendo terras nos atuais municípios de Jales, São Francisco e Urânia (Figura 3).

2 Segundo Nardoque (2002) o pesquisador Muramatsu (1984) cometeu um equívoco ao citar Euphly Jalles no rol de compradores, pois ele tornou-se dono de terras graças à inde-nização que recebeu por seus serviços de agrimensura realizados em 1929 para Alcides do Amaral Mendonça. Uma vez proprietário de terras, comercializou-as com centenas de famílias. Algum tempo depois, insatisfeito com a perda destas terras, Alcides impetrou uma ação de reintegração de posse na justiça, iniciando um processo que se arrastou de 1930 até 1980.

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FIGURA 3 – Subdivisões da Gleba Ponte Pensa após 1914Fonte: Nardoque (2002, p. 96)

Tabela 1 – Divisão da fazenda São José da Ponte Pensa em alqueiresJoão O. da C. Glória - 66.000 Júlio Prestes

/ Olympio Pimentel - 21.000Mário Furquim - 88.500 Júlio Prestes - 9.000

Bernardino de Almeida - 22.500 Total - 207.000

Fonte: Nardoque (2002, p. 91)

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Tensão e Rivalidade entre Santa Fé do Sul e Três Fronteiras

Três Fronteiras foi fundada em 1944 pela EPC – Empresa Paulista de Colonização, com o nome de Marcondes Filho numa área de cem alqueires comprada junto a José Marcondes Netto e sua esposa; esta localidade, ainda que reservasse para a área urbana sessenta alqueires, não organizou com eficiência os demais quarenta alqueires reservados para chácaras, perdendo a possibilidade de conferir ao povoado uma centralidade pioneira.

Em 1947, ao tomar conhecimento do projeto de colonização da CAIC – Companhia de Agricultura, Imigração e Colonização, a fundação de um núcleo urbano polarizador a cerca de oito quilômetros de Marcondes Filho, a EPC decide ampliar seu povoado através da expansão espacial e populacional; para tanto, convence um abastado fazendeiro da região – Coronel José Manoel Ferreira, a lotear em parceria com a empresa a parte da sua fazenda que fazia divisa com os cem alqueires já comercializados.

Com o surgimento de um novo povoado – São José da Alegria – ao lado de Marcondes Filho, a presença humana no local aumentou, assim como a importância dos empreendimentos, que, separados apenas por uma rua, acabam fundindo-se num só povoado, elevado a categoria de Distrito de Paz através da Lei no 233 de 1948 com o nome de Três Fronteiras. Neste mesmo ano, a CAIC funda o povoado de Santa Fé do Sul.

A princípio Três Fronteiras detinha todas as condições para se tornar o pólo desta microrregião, pois, todo e qualquer investimento feito na infra-estrutura pela CAIC e EFA – Empresa de Ferro Araraquarense para atender ao núcleo de Santa Fé do Sul, beneficiaria automaticamente sua concorrente, especialmente no que diz respeito ao traçado das estradas e ferrovia.

Mesmo que a EFA buscasse privilegiar seu investimento

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administrado pela CAIC, a construção da estrada de ferro passaria primeiro por Três Fronteiras para depois de oito quilômetros chegar a Santa Fé do Sul. Desta forma, o empreendimento da EPC além do pioneirismo, contava com uma posição estratégica privilegiada. Isto sem considerar sua condição de Distrito de Paz e a presença de alguns serviços como cartório e organizações político-partidárias.

Sem sombra de dúvidas, em meados de 1948 tudo indicava que Santa Fé do Sul não passaria de um povoado submetido ao centro sub-regional representado por Três Fronteiras; por isso, a explanação feita a seguir procurará identificar os motivos que levaram Santa Fé do Sul a sobrepujar Três Fronteiras e assumir a liderança nesta porção do território paulista.

Segundo Godoy (1995) a grande diferença entre as Companhias de Colonização encontrava-se na proposta de loteamento que levaram a cabo, pois, as companhias menores como a EPC e a SOIMBRA – Sociedade Imobiliária Brasileira, fundavam apenas núcleos urbanos, enquanto que a CAIC organizava um pólo agropecuário que articulava o espaço circundante.

Desta forma, um dos aspectos diferenciados que pesou favoravelmente a Santa Fé do Sul, foi justamente a concepção polarizadora incutida na ordenação do “Núcleo Paget3, permitindo que sua urbe articulasse o meio rural ao seu redor, fortalecendo sua presença e atraindo por “gravidade” os demais espaços rurais e urbanos que iam florescendo nesta fase em que o comércio de terras no extremo Noroeste paulista criou uma verdadeira fábrica de cidades. Nesta época estavam surgindo os povoados periféricos de Santa Clara d´Oeste, Santa Rita d´Oeste, Nova

3 As terras comercializadas pela CAIC foram compradas do oficial inglês John Bing Paget e correspondiam a 32.000 alqueires da outrora fazenda São José da Ponte Pensa. Devido às sombras que o grilo “Glória & Furquim” trouxeram sobre as terras da região, manteve-se o sobrenome de Paget com o propósito de conferir credibilidade ao projeto de Santa Fé do Sul, caracterizando uma história pautada pela legalidade e pela “[...] honestidade do trabalho para o desenvolvimento da Nação e para o sucesso imobiliário da empresa” (GODOY, 1995, p. 75).

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Canaã Paulista, Palmeira d´Oeste e Socimbra que fortaleceriam o núcleo polarizador por não possuírem condições de pleitearem tal função.

Firmar-se como pólo desta região proporcionaria ao lugar uma série de benefícios, tais como o incremento do comércio, o recebimento de escritórios públicos, o advento de novos negócios e, por conseguinte, o crescimento populacional. Sob esta perspectiva, as classes dirigentes das localidades envidaram seus esforços na busca pela emancipação política frente a Jales.

Por se constituir no resultado da junção de duas áreas – dois lugarejos, Três Fronteiras padeceu muito tempo com a divisão interna de suas forças; existindo de um lado os comerciantes ligados a EPC e, de outro, o grupo chefiado pelo Coronel José Manoel Ferreira. O divisor entre esses dois grupos era a estrada de ferro e a Estação Ferroviária, que seguiam coincidentemente, o traçado da linha divisória das terras de Marcondes Filho e São José da Alegria.

Segundo Bíscaro (1993), a rivalidade estabelecia que desde as crianças até aos moradores recém chegados fosse imposta uma escolha entre os grupos locais. Na verdade, isso era o pano de fundo das disputas entre os dois fundadores da cidade que almejavam o controle do lucro da especulação de terras.

Ainda segundo este autor (Ibidem), esta divisão interna jamais permitiu que Três Fronteiras tivesse a coesão necessária para superar sua concorrente direta – Santa Fé do Sul, preparando assim o caminho de sua derrota; posto que as divergências diminuíram consideravelmente a capacidade da localidade articular iniciativas coletivas de seu interesse.

Isto faria se sentir a partir de 1952, quando Três Fronteiras na condição de Vila / Distrito de Paz e Santa Fé do Sul que sequer era considerada como vila, passaram a pleitear sua emancipação política do município de Jales com base na Lei Quinquenal que permitia alterações no quadro administrativo do Estado de São Paulo.

Segundo informou Hélio de Oliveira – engenheiro da CAIC, um dos diretores da empresa ocupava na época o cargo de Secretário da Justiça do governo do Estado de São Paulo após ter sido eleito deputado

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com maciça votação em Santa Fé do Sul. Em função disto, tinha grande interesse na emancipação política da localidade por se constituir numa de suas bases de apoio (BÍSCARO, 1993).

Neste mesmo ano haveria eleições para prefeito e vereadores e todos sabiam que a vitória de um candidato afinado com os seus interesses seria fundamental para o êxito da empreitada. Santa Fé do Sul, em razão de sua origem, contava com o apoio da CAIC e de toda sua diretoria composta por nomes poderosos da cafeicultura paulista; em virtude disto, seria um oponente a altura, ainda que não fosse sequer um Distrito. Três Fronteiras confiava no apoio do senador César Vergueiro e do grupo político de Euphly Jalles em Jales. Desta forma, mesmo que soe estranho, pode-se dizer que toda a região aguardava com expectativa seu “conflito de titãs”; posto que nesta disputa estava em jogo a supremacia entre as localidades.

Analisando este momento de definições para o futuro das localidades em questão, Bíscaro (Ibidem, p. 74) apresenta uma série de informações importantíssimas através do depoimento coletado junto a Hélio de Oliveira – principal protagonista da disputa.

Antes das eleições, eu mandei fazer uma proposta ao doutor Euphly, dizendo que eu não queria nada com a política de Jales, que ele poderia escolher seus candidatos a vereador, a vice-prefeito e nós votaríamos, contanto que o candidato a prefeito fosse um amigo dos dois, meu e dele. Fiz a proposta, porque eu tinha votos, já havia eleito um deputado (Salles Filho).O meu propósito era conseguir, junto ao prefeito de Jales, uma certidão para elevar Santa Fé a Distrito, pois o prazo para que eu apresentasse a documentação solicitada expirava no dia 30 de abril, e a transmissão de cargo e posse do novo prefeito seria dia 23 de abril, o que me dava somente sete dias de prazo para instituir o processo e efetivar o pedido de criação. Caso ganhasse as eleições um adversário meu, não existiria tempo hábil para a expedição da certidão, razão pela qual eu precisava ter um amigo como prefeito, que expedisse a certidão, quando eu dela necessitasse. [...]

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Diante da negação do Euphly nós apoiamos maciçamente o doutor Pedro Nogueira e vencemos as eleições. Três Fronteiras, que era aliada ao Euphly apoiou o professor Paulo. [...].Antes, porém, das divergências chegarem ao limite máximo, sabendo que Três Fronteiras era uma cidade dividida em duas partes, com dois grupos políticos, um liderado pelo Miguel Renda, Mário Saraiva, Amaury de Aguiar Whitaker e outros, e o outro por José Manoel Ferreira, Gilberto Mercante, Raul Bíscaro e outros, procurei o coronel Ferreira e propus a ele a criação dos dois municípios [...].Feito o acordo, o coronel Ferreira procurou o outro grupo político da cidade, Miguel Renda, Mário Saraiva, doutor Moacir Alves de Lima e Amaury Whitaker. Eles não aceitaram, mas aí entra o pivô da história. O Amaury, que era dono do Cartório que atendia a toda essa imensa região, não queria admitir a existência de um outro cartório em Santa Fé do Sul que lhe fizesse concorrência, por isso instigava a não aceitação do acordo que eu havia proposto [...].Nas reuniões políticas de Três Fronteiras, Amaury fazia prevalecer que a força política do Senador Vergueiro (amigo seu) é que haveria de decidir sobre a questão da criação do Município de Três Fronteiras, subestimando a força política do deputado Salles Filho, que era amigo pessoal do Governador Lucas Nogueira Garcez (e amigo nosso).Uma vez ouvido o grupo político local, o coronel Ferreira veio em companhia do senhor Cecílio Karan desfazer o acordo [...].Feito o distrato e passadas as eleições em que o doutor Pedro Nogueira foi eleito, o Pedro forneceu uma certidão na qual constava que Santa Fé do Sul possuía a maior renda e maior população que Três Fronteiras. De posse da certidão, levei-a ao Salles Filho que articulou seu grupo político na Assembléia Legislativa e propôs um substitutivo na Lei Quinquenal, que ficou conhecida como ‘Lei Santa Fé’, que dizia: ‘quando duas ou mais localidades de um mesmo município solicitar sua elevação a município, o município será criado e terá sede e o nome da localidade que provar maior renda e população.’Para que a Assembléia pudesse votar a favor de seu projeto e não houvesse maiores desentendimentos com o Senador César de Lacerda Vergueiro, o Salles, que era Secretário de Justiça, sabendo que o Senador só estava na parada por causa de seu afilhado Amaury

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Whitaker, propôs que o Senador se retirasse da questão e, em troca, seria dado o Cartório de Santa Fé do Sul a Amaury Whitaker e o de Três Fronteiras ficaria com a esposa dele, senhora Adayl Soares de Albergaria Whitaker. Assim foi feito, o Senador retirou o apoio a Três Fronteiras e o Projeto da ‘Lei Santa Fé’ foi aprovado por 32 (trinta e dois) votos a favor e 16 (dezesseis) contrários. (Grifos acrescentados)

(Depoimento de Hélio de Oliveira)

Diante do exposto, observa-se que enquanto Santa Fé do Sul pleiteava unida sua emancipação política, Três Fronteiras costurava um tênue acordo entre os dois grupos rivais que tradicionalmente disputavam o poder; e, não obstante a comunidade santafesulense marchar coesa rumo ao objetivo de criar seu próprio município, na localidade vizinha, alguns indivíduos esqueciam o coletivo e buscavam defender seus interesses pessoais, cooperando para que ao final da disputa Santa Fé do Sul se sagrasse vencedora.

Com base nisto, entende-se que este conjunto de informações apresenta muito mais que uma narrativa sobre as causas da vitória de Santa Fé do Sul sobre Três Fronteiras; pois, suas entrelinhas, destacam importantes aspectos do cotidiano desta região, descrevendo o comportamento típico que prevalecia nas classes dirigentes da época. Um comportamento padrão que se fazia sentir em quase todas as localidades, alimentando o paternalismo/mandonismo dos líderes locais; pouco afeitos ao pluralismo e ao rodízio do poder, habituados a impor suas escolhas e a recobrar plena fidelidade de seus liderados.

Conseqüências do Mandonismo no extremo Noroeste paulista

Em seu início, a ocupação do extremo Noroeste paulista, deu-se em paralelo a transformação da paisagem imposta pelo trabalho humano. Nesta empreitada, a derrubada das matas e manchas de cerrado priorizavam a formação de pastos para a engorda de animais e o desenvolvimento da pecuária.

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Estes trabalhos requeriam pouco investimento ou tecnologia, permitindo aos proprietários das terras o arrendamento dos serviços e um ganho de recursos sem contrapartida. As benfeitorias feitas pelos arrendatários aumentavam o valor da terra e proporcionavam renda extra pelo comércio da madeira derrubada. A maior parte da lenha que não possuía valor de comercialização era vendida para a EFA que desde 1952 tinha um terminal em Rubinéia; enquanto que a madeira de melhor qualidade como Cedro, Cabreúva, Faveiro, Angico e Peroba, eram comercializadas com as madeireiras. Apenas as árvores frutíferas como os coqueiros (Macaúbas), Pitangas e Gabirobas ou Garirobas conseguiam escapar da fúria dos serrotes (MURAMATSU, 1984).

Muito embora o sistema de parcerias proporcionasse uma boa margem de lucros para os proprietários das terras, isto não bastava para a ganância de alguns, levando-os muitas vezes a cometerem injustiças de toda a sorte contra seus parceiros.

Tornou-se prática comum dos fazendeiros da região a quebra dos contratos contraídos com os arrendatários, assim que os mesmos terminavam o trabalho mais pesado envolvido com a derrubada da mata e a formação das pastagens; justamente no momento em que se preparavam para receber a paga dos serviços prestados, através do cultivo da terra e da colheita que logravam alcançar (CHAIA, 1980; MURAMATSU, 1984; BÍSCARO, 1993 e GODOY, 1995).

Os arrendatários que não eram surpreendidos com a quebra do contrato eram obrigados a transferir para o fazendeiro parte dos recursos obtidos com a comercialização da colheita, sofrendo um prejuízo por não haverem estabelecido tal obrigação no contrato verbal que firmaram. Os principais produtos cultivados eram o arroz, feijão, milho e algodão.

Segundo entende Marighella (1980), o sistema de arrendamento praticado em Santa Fé do Sul diferiu de todos aqueles praticados nas demais regiões do Estado de São Paulo, devido às características particulares que apresentou, constituindo-se no sistema mais lesivo para o arrendatário que se conheceu em terras bandeirantes.

Segundo entendem os autores mencionados neste capítulo, os

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desmandos contavam com a conivência da Justiça, pois, os donos de terras constituíam a classe dirigente do lugar, impondo suas vontades e cerceando os direitos dos demais, agindo semelhante aos coronéis nordestinos dos tempos do império, ainda que o país já estivesse na segunda metade do século XX.

Exemplificando a postura prevalecente em parte da classe política desta região, Bíscaro (1993, p. 67, 63-64 e 57) apresenta algumas outras informações que são citadas a seguir integralmente.

Estes relatos destacam a relação paternalista existente na região e a postura dos seus personagens no cotidiano do lugar.

[...] tivemos como comerciantes em Três Fronteiras uma importância muito grande, pois nós alimentávamos a esperança daquele povo, nós lhe dávamos segurança e inspirávamos confiança, financiando os agricultores através da venda a prazo de ano, avalizando títulos, aconselhando, dirimindo dúvidas, amparando-os em momentos de desespero e solidão, negociando seus produtos. Fomos ponto de sustentação na abertura daquele sertão, pois, acolhíamos a todos e por isso recebíamos o carinho do povo.[...] Quando o produtor rural vendia sua safra, ele trazia o dinheiro para o comerciante de sua confiança guardar e nós tínhamos cofres onde guardávamos esse dinheiro e controlávamos através de envelopes contendo o nome do proprietário e dentro o dinheiro, uma ficha de anotações ou um caderno com uma folha destinada a cada proprietário, onde anotávamos a entrada e a saída do dinheiro conforme fossem as retiradas. [...]

(depoimento de Gilberto Mercante)

Naquele tempo, as pessoas vinham a minha procura. Aqui sempre veio gente de toda linha pobre, ou rico, todos vinham à procura de cura e dos conselhos que dou.

Tem muita gente que até hoje não faz negócios ou viajam sem falar comigo para saber se vai ou não dar certo, outros procuram-me para orientá-los na vida familiar (...)

(depoimento de Clemente Ferreira Ramos)

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Este nível de relações entre a população e seus líderes, interferiu no imaginário e no comportamento das pessoas, criando as condições necessárias para que outros líderes viessem a ocupar um lugar de destaque nas diferentes esferas de suas vidas, quer fossem políticas, econômicas ou religiosas; permitindo que a região experimentasse alguns dos episódios relevantes que fizeram parte da história do Estado de São Paulo.

Com base nos trabalhos de Monbeig (1952), Martins (1975), Marighella (1980), Chaia (1980), Muramatsu (1984), Bíscaro (1993), Godoy (1995) e Nardoque (2002), são apresentados, a seguir, os episódios dignos de nota pela dimensão que atingiram.

O Caso Galdino

A princípio, Aparecido Galdino Jacintho, vulgo Aparecidão, nascido em Maracaí – SP a 15 de Agosto de 1923, chegou a região em 1952 estabelecendo residência em Rubinéia. Casado com Maria Martinelli, veio de Londrina – PR para trabalhar como comprador de gado, tropeiro e jagunço do Coronel João Alves e dos fazendeiros Zico Diniz e João Lopes. Estes, juntamente com a família Almeida Prado, possuíam todas as terras marginais dos rios Grande e Paraná.

As condições da região haviam mudado consideravelmente; a venda de pequenas glebas de terras tão comum nos anos quarenta, deixou de existir e os grandes latifúndios apoderaram-se das glebas que restaram para comercialização, ocupando-as com a pecuária extensiva.

Nesta nova fase da região, o sonho da terra própria tornou-se pesadelo para os inúmeros migrantes que haviam chegado com este objetivo, sentindo-se enganados pelo canto da sereia, engrossando o número de miseráveis que procuravam sobreviver à sombra de um importante líder local ou a espera de um milagre.

Novamente, no conjunto de entrevistas que realizou junto a alguns

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atores sociais do período, Bíscaro (1993, p. 109) oferece informações importantes através das palavras que extrai de Rosintina Marques da Silva;

Decidimos vir para o Estado de São Paulo, motivados pela possibilidade de melhorarmos de vida. Era como se fosse um sonho vir para São Paulo, principalmente para uma região nova que a todos encantava. Vim trabalhar como cerqueira.[...] Dos sonhos que busquei nenhum eu consegui. Meus sonhos foram impedidos pelo arame que estendi.[...] Cerquei a terra de muitos. Só não consegui com meu trabalho cercar nada que fosse meu. Continuei pobre como Deus quis.

(Depoimento de Rosintina Marques da Silva;)

Com o fim do sonho dos arrendatários, meeiros, colonos e parceiros, estabeleceu-se no imaginário dessas pessoas já acostumadas com a figura de um líder – devido ao mandonismo que prevalecia, as condições necessárias para a aceitação de um “enviado” de Deus que lhes oferecesse esperança, atenção e direção; conduzindo-as rumo a superação dos difíceis problemas que faziam de suas vidas uma experiência formada por incertezas, privações e humilhações.

Foi neste contexto, que Aparecido Galdino Jacintho deixou de ser aliado dos grandes proprietários de terra para se tornar o líder espiritual de maior destaque em toda a região, criando um movimento baseado na união entre os excluídos; que sofreu repressão ferrenha durante o obscuro período do regime militar.

Conforme depoimentos4 de Galdino – nome mais utilizado para identificá-lo – sua família sempre foi do campo, dedicando-se a agricultura e a pecuária na Alta Sorocabana. Devido às condições difíceis da época, sua família padeceu com a vida nômade, pulando de um lugar para outro em busca de melhores condições.

4 Depoimentos colhidos por Muramatsu (1984) e Bíscaro (1993).

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Em sua infância, o nomadismo foi causado pelas constantes mudanças feitas pelo pai; enquanto que na fase adulta, as constantes mudanças só vão terminar no momento em que assume a liderança messiânica de parte dos excluídos e injustiçados do extremo Noroeste paulista (MURAMATSU, 1984).

Se por um lado o nomadismo submetia a família de Galdino a toda sorte de incertezas e privações, a mudança assinalada para condição de líder espiritual traz transtornos ainda maiores, distanciando-o da esposa e dos filhos, deixando-o totalmente isolado.

Não bastasse a perda da família, segue-se um rompimento com os coronéis da região que não tinham bons olhos para os agrupamentos de trabalhadores e expulsos do campo que se formavam.

E tudo isso começou no exato momento em que Galdino descobriu-se como uma mercadoria, sem condição de alcançar a independência financeira. A partir deste despertar, torna-se clara sua condição social e o futuro que se desenhava; despertando na mente todo o passado, situações vividas e valores construídos. Isto o leva a sentir-se parte integrante dos inúmeros excluídos, crescendo a afeição por aqueles que como ele, buscavam apenas sobreviver numa terra sem lei.

Bíscaro (1993, p. 120) e Muramatsu (1984, p. 225) retratam o momento da mudança de vida experimentada por Galdino. Apesar de extenso, estes trechos dos trabalhos são reproduzidos a seguir para enriquecerem a discussão em curso.

[...] Na minha vida, o fundo dessa vida minha fui uma pessoa que trabalhei com os fazendeiros. Do capitão Pimpão, vários tipos de fazendeiros, na fazenda do João de Barros, de Londrina, que me parece tem parentesco com Ademar de Barros, eu tomei conta da fazenda do João de Barros. Então eu vim conhecendo o ambiente do fazendeiro, do tubarão. Trabalhando, conhecendo o que praticava com a pobreza, que eu tomava conta do serviço. Fui prá fazenda do Lunardelli, naquele tempo de sertão ... Em Porecatu tomei conta, fui guarda na fazenda quando ainda não tinha polícia [...] Então, o negócio no tempo que eu

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fui prá fazenda do Capitão Pimpão, então tinha muita gente naquelas brenhas, na banda da Brasileira – que naquele tempo chamava Brasileira – ele grilou fazenda prá lá. Então, tinha muitas pessoas que plantava roça e eles despejavam, deixavam até a roça amadurecendo, perdiam a roça ... O arroz cacheando! ... Então, eu fui notando aquilo. Eu já explicava aos mais grande. Eu dizia assim: “não pode fazê isso. Deve querê bem o povo trabaiadô. Não deve despeja, deve deixa eles colhê o arroz.” Então daí foi indo, foi indo até neste ponto que atravessei e vim pro Porto Taboado. Daqui fui trabaiá puxando boi, puxando vaca aonde eu lutava com o povo do Zico Diniz. O Zico Diniz tinha amizade que eu pegava tropa “redomona” dele ... (tropa brava, enjeitada de peão) ia pro Goiás, ajudava esse peão dele que era o Armando Pereira trazê boi de lá prá cá, prá fazenda do Zico. Eu adomava as tropas deles. Quando eu vinha de Goiás viajando, que eu tinha a maior amizade com o Zico, com o João Alves que era coronel, e com mais fazendeiro... os Almeida Prado ... Tudo era meu amigo. Mas quando eu cheguei de Goiás, prá cá ... toda vida eu tenho boa consciência que eu conheço lutando com os fazendeiro ... Cheguei e eles estavam fazendo despejo nas barrancas do rio. Então eu via do outro lado (do rio Paraná) que estavam queimando os ranchos todos da pobreza nas barrancas do rio. Naquele tempo eu era camarada dos fazendeiros. Passei do lado de cá (do rio). Tinha pessoas que dizia que tinha queimado a casa deles. As panelas de comida, chegaram a jogá as panelas dentro do rancho e ainda jogava as tralhas no rio. ... Então atravessei do lado de cá, deixei o gado na fazenda do João Alves do lado de lá. E peguei e falei pro Zico ... E ele veio de encontro comigo que toda vida ele sabia que podia contá comigo em toda luta ... Mas eu não podia ser jagunço dele contra meu irmão. Contra aquele trabaiadô, que trabaia sofrendo ... Então eu disse que esse serviço vocês não podia fazê. Essa terra pertence a Marinha: sessenta metro de terra firme pertence a Marinha, oitenta de terra moiada pertence a Marinha. Esse povo está só na barranca do rio. Então prá “mode” vocês fazê isso, vocêis tinha que pegá e dar outra terra prá eles trabaiá. Daquele dia em diante eu não tive mais amigo, os fazendeiros todos não ficaram mais amigo meu. Se dava muito bem com o João Alves, que o João Alves me ajudava em alguma coisa, num negócio ... Ele não mostrava diferença ... Mas a “maia” força ficou contra.

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Então foi o ponto que eu fui lutá com os meus negocinhos, fui mascateá torinho por minha conta, mascateá tropas de animais por minha conta. [...] E o Zico, o povo foi contra ele porque se tratava por um ano, se dava serviço pra três ano, dentro de um ano ele plantava capim. Então por isso houve aquelas confusão. Mas eu era um camarada dele eu nunca entrei nessa confusão de falá pra pobreza: “Revolte! Grile a terra!” Não. Eu larguei mão de todo esse ambiente e parti pelo benzimento, zelando ... que eu não podia juntá o povo pra partir pra ruína ... o povo todo fraco ... não podia partir pela ruína. Então, entreguei pro lado de Deus, que Deus olhasse pela pobreza ...

Assim como Galdino, muitos indivíduos enxergavam as demandas ocorridas naquele sertão, ressentindo-se muitas vezes da incapacidade de mudarem a situação em benefício da justiça e da felicidade daqueles que não encontravam abrigo em canto algum; principalmente aqueles que foram roubados após terem firmado acordo com os proprietários de terras e expulsos das fazendas antes de colherem os benefícios de seu trabalho.

Acerca da influência de Galdino sobre as pessoas, Bíscaro (1993, p. 110 e 111) apresenta dois testemunhos, um prestado por Rosintina Marques da Silva e outro por Francisco Ferreira Filho;

O que ele (Galdino) pregava era a união, a fé, a vida em comunidade como uma forma de superar a miséria e a violência do mundo lá fora.

A gente corria pra ele (Galdino) pra se esconder da miséria e da dor. O benzimento era a nossa toca. O coelho não corre pra toca quando ferido ou com medo?

Não obstante a todos os problemas que enfrentavam, pesava ainda contra a grande massa de excluídos a repressão dos instrumentos de segurança do Estado, que se afinava com o poder dos fazendeiros.

Este homem, um líder religioso, pregava a superação das dificuldades por meio da fé, realizando segundo afirmam alguns moradores

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da região algumas curas. Entretanto, graças ao ajuntamento que se formou em seu redor, a liderança messiânica que exerceu e os milagres creditados a sua pessoa, passou a representar para alguns fazendeiros locais e algumas cabeças do regime militar, um elemento de perturbação da ordem, sendo por isso preso na Casa de Detenção de São Paulo durante o período de dois anos até ser enviado para um manicômio, onde passou por mais sete anos de detenção.5

Não fosse a abertura política que se anunciava no horizonte da nação e a intervenção de personalidades do quilate de D. Paulo Evaristo Arns, e este homem não teria saído do manicômio de Franco da Rocha no dia 06 de Junho de 1979; nove anos depois de sua prisão, sem qualquer indenização e também com a credibilidade afetada.

No retorno a Santa Fé do Sul, Galdino esquivou-se das aglomerações humanas, residindo de maneira solitária sem a companhia da família e dos amigos.

Fazendas Mariana, São João e Bosque

Para saldar algumas dívidas que possuía com José de Carvalho Diniz – proprietário de terras em Barretos e Guaíra, a CAIC cedeu-lhe 6.100 alqueires de bosques e matas virgens no extremo Noroeste paulista pelo valor de Cr$ 2.900,00 o alqueire. Zico Diniz – como era conhecido, preocupado em formar invernadas em sua propriedade, arrendou-a a três prepostos: Joaquim Nogueira, José Lira Marin e Antonio Barbosa (CHAIA, 1980).

Estes três subarrendaram uma área de 2.000 alqueires para trezentas famílias. Quando o trabalho mais pesado estava concluído, estas famílias foram expulsas da terra sem ressarcimento algum, pois, além de se verem impossibilitadas de ultimar a colheita, tiveram suas 5 Segundo diversos depoimentos da época, apresentados em jornais e citados recente-mente por Muramatsu (1984) e Bíscaro (1993), Galdino continuou a exercer sua atração messiânica no manicômio, sendo vários os registros verbais de curas e milagres.

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reclamações ignoradas pela Justiça, sob a alegação de que Zico Diniz o verdadeiro proprietário das terras não havia autorizado o subarrendamento da fazenda.

Como os contratos eram verbais e a Justiça “cega”, o juiz consentiu com a expulsão destas trezentas famílias.

Segundo consta nas fontes consultadas, a queima da residência destas famílias foi presenciada pela população de Rubinéia e pelas autoridades de Santa Fé do Sul, justamente quando estes infelizes preparavam-se para colher suas plantações. Entre 1954 e 1956.

Revolta do Armazém

Entre 1950 e 1952, cerca de quinhentas e vinte e cinco famílias com origens diversas, tornaram-se arrendatárias da fazenda do Bosque. Como não possuíam recursos, tudo que adquiriam provinha de um armazém montado pelo proprietário. Repetindo o expediente utilizado pelos cafeicultores paulistas para com os colonos de suas fazendas, Zico Diniz comprou a produção de seus arrendatários por um preço muito abaixo do valor e lhes forneceu suprimentos a um preço muito acima.

Apesar da exploração ser escancarada, foi aceita pelos arrendatários em virtude da impossibilidade de obterem crédito em outros armazéns da região. A situação prosseguiu inalterada até o ponto em que o proprietário decidiu fechar o armazém e cortar o suprimento das famílias, como represália por entender que o trabalho realizado para a formação das pastagens encontrava-se muito aquém do esperado.

Revoltados com a medida, as famílias saquearam e queimaram o armazém juntamente com a casa do administrador e do fiscal. No dia seguinte, a polícia interviu na fazenda, prendendo quinze pessoas e expulsando cento e vinte e cinco famílias (MURAMATSU, 1984).

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Revolta do Arranca - Capim

Não obstante aos problemas que criaram entre 1954 e 1956 com o arrendamento de terras, Joaquim Nogueira e José Lira Marin novamente subarrendaram as terras das fazendas do Bosque, Mariana e São João. Desta feita, contrataram oitocentas famílias para realizarem os serviços. Os contratos verbais estipulavam janeiro de 1958 como data limite para a saída dos subarrendatários.

Devido à seca ocorrida em 1958, o trabalho contratado não foi terminado, prorrogando o contrato até julho de 1959. Passados os seis meses de prazo, as famílias tentaram mais uma vez prorrogar seu contrato de permanência nas fazendas, contratando os advogados Roberto Rollemberg e Laurindo Novaes Neto como procuradores.

Irritados com a notificação enviada pelos advogados, Joaquim Nogueira e José Lira Marin decidiram sabotar a lavoura das famílias, plantando capim. Em resposta a ação dos arrendadores, as famílias, lideradas por Jofre Correa Neto, iniciaram a “operação arranca – capim” destruindo consideráveis extensões de pastagens já formadas.

A situação só foi normalizada com a intervenção do Estado, graças a repercussão que os desmandos praticados pelos proprietários de terras contra a pobreza alcançaram em todo o Brasil, forçando as autoridades a agirem de maneira mais equilibrada. Jofre sofreu um atentado encomendado por Zico Diniz e, depois de algum tempo, foi preso com base na Lei de Segurança Nacional.

Em 1960, a “operação arranca – capim” iniciou-se novamente, devido aos contratos intermediados pelo Estado expirarem em 15 de julho. Desta vez, a revolta foi sufocada pela desarticulação das famílias, forçando os arrendatários a se retirarem das terras de Zico Diniz.

Os líderes da Associação dos Lavradores de Santa Fé do Sul foram processados pelo DOPS e Jofre Correa Neto, membro do PCB foi condenado pela Justiça de Jales (CHAIA, 1980).

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Fazenda Reserva

As terras da fazenda Reserva pertenciam a Clibas de Almeida Prado. Com a notícia da construção da hidrelétrica de Ilha Solteira e a conseqüente inundação das terras marginais pelo lago artificial que se formaria, o proprietário decidiu desfazer-se das terras a um preço bem abaixo do seu valor.

Diante da oferta, José Menezes Sobrinho comprou os novecentos alqueires de terras e arrendou em 1964 quarenta alqueires a Frutuoso José de Figueiredo e Sebastião Frutuoso de Figueiredo. Em 1965 arrendou outros cento e vinte alqueires a estes mesmos arrendatários. Ainda neste ano, os mesmos subarrendaram os cento e sessenta alqueires a outras pessoas.

No final do contrato, houve um sério desentendimento entre as partes, forçando uma ação na justiça. A princípio, os “Figueiredo” receberam notificação para retirarem-se das terras; mas, as famílias contratadas não receberam notificação alguma. Buscando contornar o problema, José Menezes firmou contrato com as famílias, conseguindo que treze saíssem depois de um ano (1968) e as demais sessenta e sete depois de dois anos (1969).

Em 1968, diante da notificação recebida, as treze famílias juntamente com as demais, reuniram-se num grupo escolar da Vila Esmeralda – distrito de Rubinéia – para decidir que rumo tomar. As discussões culminaram com a decisão de permanência das famílias e o início de um protesto através da “operação arranca – capim”.

Em 14 de Agosto daquele ano, oitenta homens iniciaram o trabalho; e, depois de dois dias já haviam limpado duzentos alqueires para o plantio de uma lavoura.

Novamente, a região passou por tensões e conflitos. Todavia, devido ao histórico recente, entrou em cena neste episódio um novo “ator”;

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as organizações religiosas preocupadas com a valorização do homem e com o fim da violência no campo; o Instituto Paulista de Promoção Humana – IPPH e a Frente Nacional do Trabalho – FNT6. Apesar de similares, estas entidades possuíam métodos diferenciados de trabalho, atuando separadas em favor das famílias. Ao final do processo, foi costurado um acordo que permitiu às famílias, a compra de terras pelo INCRA em Mundo Novo - MS, com o prazo de vinte anos para pagar – prestações anuais – e dois anos de carência para se acomodarem nas novas terras.

Esta foi a primeira vez, na história da região, que o Governo interferiu numa questão local procurando salvaguardar o direito das partes envolvidas na disputa, permitindo que o proprietário mantivesse suas terras, ao passo que o trabalhador obtivesse condições de assegurar um pedaço de chão para sua sobrevivência.

Considerações Finais

Episódios como o retalhamento da fazenda São José da Ponte Pensa denuncia que a omissão e/ou conivência do Estado paulista perante a ação dos grileiros e invasores foi fundamental para a expropriação dos mais fracos de suas terras.

É verdade que muitos moradores do “sertão” não dispunham de documentos que fundamentassem seu direito de posse; entretanto, seu pioneirismo amparado pela Lei de Terras de 1850, legitimava muito mais seus reclamos que os documentos falsificados que os invasores e grileiros apresentavam em sua defesa.

Assim, toda a injustiça cometida contra a população mais pobre da época, gerou por todo o Noroeste paulista um ambiente de mentira,

6 O IPPH surge com força na América Latina e mais especificamente no Brasil com a Teo-logia da Libertação, agregando os setores progressistas da igreja.A FNT é uma iniciativa de alguns membros da Juventude Universitária Católica – JUC, que receberam influência do Movimento de Economia e Humanismo do Padre Lebret; segue a orientação do Movimento Internacional de Reconciliação – MIR, fundado durante a Primei-ra Guerra Mundial na Europa, congregando católicos, protestantes e ortodoxos.

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ilegalidade e desrespeito que culminou com o estabelecimento de uma cultura de opressão, truculência e conchavos, responsável pelo quadro de mandonismo e desmandos onde prevalecia a lei do mais forte em detrimento ao direito do mais fraco.

Diante desta situação, seria estranho não identificar no processo de urbanização destas áreas condição semelhante, pois, neste período, quanto mais distante da capital, maior seria a probabilidade da cidade submeter-se às forças conservadoras do campo, como atestou a narrativa sobre a disputa entre Santa Fé do Sul e Três Fronteiras.

Este conjunto de valores e costumes em toda a região; colaborou com o estabelecimento dos desmandos e mandonismo, ocasionando uma série de problemas que se materializaram nos tristes episódios ocorridos a partir da segunda metade do século XX.

Mais uma vez, constata-se que a conivência do Estado é a principal base sob a qual toda injustiça e crime ousam ser cometidos contra os mais fracos. Destacando-se que a reação de setores organizados da sociedade como o ocorrido no episódio da fazenda Reserva, pode mudar esta situação, a partir do momento em que a população se manifesta e passa a cobrar de suas instituições uma postura laica com providências legais e justas para as demandas em curso no seu seio; tornando civilizadas as disputas dentro da sociedade.

SOUZA, P. H.; SOUZA, M. M. P. Malpractice and disputes in the far (extreme) northwest of Saint Paul: review of relevant episodes in the struggle (fight) for land. DIALOGUS, Ribeirão Preto, vol. 5, n. 1, 2009, p. 225-253

ABSTRACT: Both in the farm land dispute by the San Jose Bridge thought as the competition between Santa Fe and South Three Borders for supremacy in the regional or confrontations occurred between landowners and tenants in the vicinity of these cities, the extreme northwestern of Saint Paul experienced episodes where the principal and privileged access to power - aided by the omission of the State - have established a framework for malpractice against the ideals of ethics, law and democracy.

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KEYWORDS: land; municipality (city); grileiros, Northwestern paulista (Saint Paul); families.

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RIBEIRÃO PRETO-SP: A DINÂMICA DOS ESPAÇOS PÚBLICOS NA PRODUÇÃO DO ESPAÇO URBANO

Marcos Antônio Silvestre GOMES*

RESUMO: Este artigo tem o propósito de refletir sobre os espaços públicos em Ribeirão Preto-SP, sua dinâmica de implantação e distribuição na malha urbana. Aborda, especificamente, praças e parques no contexto da produção do espaço urbano, demonstrando como constituem equipamentos importantes neste processo e não apenas espaços neutros, como figuram em muitas perspectivas de análise.

PALAVRAS-CHAVES: parques urbanos, praças públicas, produção do espaço, Ribeirão Preto.

Nas cidades são comuns, além das edificações, os espaços abertos ou espaços livres. São os denominados parques, áreas verdes, praças, áreas de lazer, etc. Comumente, estes espaços, em geral, de caráter público, constituem locais onde se manifestam atividades de lazer ou onde se localizam áreas verdes. Assim, têm uma importância na cidade no que se refere aos espaços necessários à prática de atividades psicofísicas e à arborização, com todas as suas funções. Serão designados neste trabalho simplesmente como espaços públicos.

No entanto, como espaços específicos produzidos segundo a lógica capitalista de produção do espaço urbano, definida pelo Estado na esfera municipal, os espaços livres públicos variam em importância, quantidade e qualidade nas cidades.

Como discute Rodrigues (2008, p. 416), na modernidade, os espaços públicos derivam da propriedade privada e a “definição das

* Docente da Universidade Federal de Alagoas, Campus Arapiraca. Graduado (Unesp), Mestre (UFU) e doutorando (Unicamp) em Geografia. E-mail: [email protected]

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normas e usos do espaço público, nas áreas urbanas, é decorrência da propriedade privada, da produção do e no espaço”, com atuação do Estado capitalista.

Como categorias marcantes de espaços públicos nas cidades, em especial nas grandes e médias1, pela diversidade e complexidade na produção e no uso destes espaços, têm-se praças e parques, dadas sua ocorrência em maior número e proximidade da população, etc. Nesta análise, estes espaços não são apenas apresentados pela importância que assumem como “espaços verdes” e/ou de lazer, mas também pelas suas características e significados no processo de produção do espaço urbano.

Parques e praças são analisados neste trabalho como equipamentos públicos que têm o poder de contribuir para a alteração, modificação do preço da terra, contribuindo para a valorização desigual do espaço urbano e para o aumento das desigualdades socioespaciais. Na cidade de Ribeirão Preto, estes equipamentos foram implantados, historicamente, no eixo Centro-Sul-Sudeste, e contribuem, juntamente com todo um conjunto em infra-estrutura (avenidas, boulevards, centros de serviços especializados, shopping centers, etc), para a valorização exponencial dessa região em relação às demais zonas da cidade.

Apesar desse processo ser recorrente também em outras cidades, esta análise se pauta nas especificidades assumidas em Ribeirão Preto, com a implantação de praças em áreas ocupadas pelas camadas de maior poder aquisitivo, com a transformação de áreas de antigas pedreiras em parques públicos, com a implantação de loteamentos e condomínios fechados sem a reserva necessária de espaços públicos, com as manobras na lei para favorecer interesses específicos de gestões públicas e de incorporadores imobiliários, etc. Toda esta discussão tem como fundamentação os estudos desenvolvidos pelo autor, em

1 Não se utiliza uma conceituação de cidade média e grande, mas a referência, nesta análise, incorre, a grosso modo, sobre as cidades acima de 100 mil habitantes. Sobre a complexidade do tema, consultar Spósito (2007).

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especial, a dissertação de mestrado e a tese de doutorado que trataram, respectivamente, das praças e dos parques na cidade de Ribeirão Preto (GOMES, 2005, 2008).

Praças e parques no contexto da produção do espaço urbano

Muitos autores discutem o significado do espaço público, a importância biológico-climática que assumem na cidade e a influência psicofísica sobre o indivíduo. No entanto, ainda há escassez de estudos que compreendam parques e praças no contexto da produção do espaço.

Esta análise chama atenção para a dinâmica desses espaços no processo de produção do espaço, como são distribuídos na malha urbana, através de quais mecanismos são implantados, como ocorrem seus usos e apropriações, etc.

A implantação, os usos e as formas de apropriação do espaço urbano ocorrem de acordo com os interesses dos diversos agentes que contribuem para a produção das cidades. Usuários da moradia, corretores de imóveis, proprietários, movimentos sociais, incorporadores, instituições financeiras e governamentais são alguns dos agentes que participam direta ou indiretamente do processo de produção do espaço (HARVEY, 1980). Nesta análise se destaca, sobretudo, alguns aspectos do papel do Estado, atuando na esfera federal e municipal, e dos incorporadores, promotores imobiliários interessados na implantação dos parques, embora não se apresente uma discussão teórica sobre estes agentes, porque foge ao objetivo central deste trabalho.

Praças e parques são espaços públicos implantados na cidade, em geral, conforme a obrigatoriedade da porcentagem de áreas públicas que determina a Lei federal 6766/792, quanto à abertura de novos loteamentos, como ocorreu com o Parque Dr. Luís Carlos Raya, em

2 Esta lei estabelece as diretrizes, em âmbito federal, para o parcelamento do solo urba-no.

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Ribeirão Preto. Também estes equipamentos podem ser implantados em áreas desapropriadas pelo poder público, mediante acordos indenizatórios, como ocorreu com o Parque Prefeito Luiz Roberto Jábali, também na cidade de Ribeirão Preto. Ambos os parques supracitados estão entre os objetos desta análise.

A lei 6766/79, que dispõe sobre o parcelamento do solo urbano em todo o território federal, na sua redação original, previa a destinação de 35% da gleba para áreas públicas (sistema viário, áreas verdes e institucionais, etc). No entanto, a Lei 9785/99 alterou essa determinação, definindo que este percentual seria fixado pelos municípios.

No plano municipal, as áreas públicas onde serão implantados praças e parques, comumente são definidas no projeto de loteamento, mas estas áreas são efetivadas ou não de acordo com os interesses do poder público, entre outros agentes. O Plano Diretor Municipal, cuja obrigatoriedade é dada pela Lei no 10.257/01 para cidades acima de 20.000 habitantes, é o instrumento através do qual se definem as diretrizes do planejamento municipal, inclusive a porcentagem de áreas públicas, as áreas que terão prioridades para serem implantadas, etc.

Em Ribeirão Preto, o Plano Diretor Municipal, instituído através da Lei no 501, de 31 de outubro de 1995, estabelece como legislação básica: Lei de Zoneamento, uso e ocupação do solo; Lei de parcelamento do solo; Lei do Plano viário; Código do Meio Ambiente e Código de Obras (Art. 152). Em todos estes instrumentos do planejamento municipal existem normas e diretrizes sobre as áreas públicas. Entretanto, para esta análise importa o que diz a Lei Complementar no 2.157/07, que dispõe sobre o parcelamento, uso e ocupação do solo, e a Lei Complentar no 1616/04, denominada de Código do Meio Ambiente.

Conforme a Lei 2.157/07, em Ribeirão Preto foi fixado entre 40 e 50% da área total do loteamento para compor o total de áreas públicas. Deste total, estabelece entre 20 e 40% para compor o sistema de áreas verdes e institucionais destinadas ao uso público. Este percentual varia de acordo com a localização dos loteamentos nas macrozonas municipais,

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definidas no artigo 6o da referida lei e no artigo 155 da Lei 1616/043.Como se observa, a delimitação dessas áreas é definida em lei,

mas a implantação dos equipamentos e infra-estrutura necessária ao uso efetivo ocorre mediante interesses específicos de gestores públicos e de outros agentes interessados na produção desses espaços, como os promotores e incorporadores imobiliários, que os vêem como atrativos para impulsionar a venda de seus imóveis, ou seja, interessam-se pelo valor de troca. Daí um dos fatores explicativos que parques e praças aparecerem desigualmente implantados na cidade, como se nota em Ribeirão Preto. Têm importância também nesse processo, a população que, através de reivindicações junto ao poder público, pode ter o interesse na implantação desses espaços, neste caso, com prevalência do seu valor de uso.

Praças e parques em Ribeirão Preto

A cidade de Ribeirão Preto tem como marco histórico e geográfico um dos seus espaços públicos: a Praça XV de Novembro. Esta praça tem importância histórica para o município porque foi a partir da sua demarcação, como Largo da Matriz, ainda na segunda metade do século XIX, que se definiram os primeiros arruamentos urbanos. Constituiu-se ao longo de todo esse tempo em espaço de manifestações políticas, culturais e religiosas. Também, foi a partir desta praça que os melhoramentos urbanos (iluminação, arborização, calçamento de ruas, etc.) começaram a

3 Diz a lei: “Artigo 155 – Nos projetos de loteamentos e demais formas de parcelamento do solo, da área destinada ao uso público, serão reservados, conforme disposto na Lei de Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo, no mínimo: I – 35% (trinta e cinco por cento) como Área Verde, nos empreendimentos localizados na Zona de Urbanização Restrita (ZUR); II – 20% (vinte por cento) como Área Verde, nos empreendimentos localizados na Zona de Urbanização Controlada (ZUC); III – 20% (vinte por cento) como Área Verde, nos empreendimentos localizados na Zona de Urbanização Preferencial (ZUP)”.A definição dessas zonas, de acordo com a lei, obedeceu, sobretudo, aos critérios de infra-estrutura existente ou não e às condições geomorfológicas da área. Assim, admite-se que seja controlada a densidade demográfica em cada uma dessas zonas.

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ser implantados na cidade, a partir do início do século XX.Outras praças centrais, por diversos motivos, também tiveram

importância na história da cidade, mantendo-se muitas delas como espaços livres públicos até os dias atuais, a exemplo da Praça da Bandeira, Praça Sete de Setembro, Praça Luís Vaz de Camões, entre outras. Em 1932 existiam sete espaços públicos denominados praças que se destacavam na malha urbana de Ribeirão Preto, denominada patrimônio da matriz, embora os limites da cidade já tivessem se expandido para além dos Córregos Retiro Saudoso e Ribeirão Preto: Praça XV de Novembro, Praça Carlos Gomes, Praça da Bandeira, Praça Luiz Vaz de Camões, Praça Aureliano de Gusmão (7 de Setembro) e Praça Tiradentes, hoje extinta (GOMES, 2005).

Estas praças desempenhavam um papel importante porque se constituíam em espaços de sociabilidade, embora existissem normas de uso e permanência, como as impostas nos Códigos de Posturas municipais e outras não institucionalizadas, mas ditadas por condutas discriminatórias.

Também no início do século XX foram criadas as condições para a implantação, mais tarde, do Parque Municipal Morro de São Bento. Este parque foi criado oficialmente através da Lei no 476/95 e Lei no262/99, mas as terras que ocupam foram adquiridas em 1907 pela municipalidade e em 1937 foi denominado de Bosque Municipal Fábio Barreto. Atualmente, o Parque Municipal Morro de São Bento, um dos espaços públicos de lazer e conservação mais tradicionais de Ribeirão Preto, é composto de trecho de mata nativa, zoológico, áreas para atividades de educação ambiental, contemplação, entre outros. Entretanto, como afirma Cione (1992, p. 433), “muito antes da aquisição da Chácara Olímpia o atual bosque já era aproveitado como logradouro público”.

Além da singularidade histórica, o Parque Municipal Morro de São Bento tem importância também para Ribeirão Preto porque, como área efetivamente arborizada, pode contribuir como amenizador térmico para as suas adjacências, especialmente para a área central urbana.

A implantação de praças ao longo do século XX, e de parques,

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notadamente a partir da década de 1990, foi ocorrendo em Ribeirão Preto com a mesma dinâmica de implantação de outros serviços de infra-estrutura urbana, concentrando-se, sobretudo, no eixo Centro-Sul-Sudeste, que se caracterizou, historicamente, como sendo a região ocupada pelas camadas de mais alta renda da cidade.

Como parte desse processo de produção desigual do espaço, foram removidos do núcleo central urbano, ainda no início do século passado, cemitérios, hospitais de leprosos, asilos, fábricas e vários outros serviços e equipamentos públicos e privados julgados indesejáveis pelas elites (SILVA, 2007).

Atualmente esta dinâmica permanece e também se acentua, demonstrando-se como um dos aspectos das desigualdades socioespaciais em Ribeirão Preto. Os espaços públicos melhor equipados localizam-se em parcelas específicas do espaço urbano Gomes (2005) e os serviços especializados, sobretudo, aqueles voltados à dinâmica do agronegócio, são implantados em áreas estratégicas na cidade (Souza, 2005).

No eixo Centro-Sul-Sudeste, além da implantação de shoppings centers e da maioria dos loteamentos de luxo e serviços especializados, etc, também se implantam parques e praças com interesses que vão além das funções que podem desempenhar como área verde e de lazer. Nesse eixo, nos últimos anos, foram implantados praças, boulevards, avenidas arborizadas, parques, etc, culminando no aumento das desigualdades socioespaciais.

De acordo com a legislação municipal (Lei no 1616/04, artigo 163, parágrafo 2o), em Ribeirão Preto praças e parques são parte do sistema de áreas verdes urbanas. Assim, as áreas verdes são definidas como “espaços livres de uso público, com vegetação natural ou com tratamento paisagístico efetivamente implantado, reservados a cumprir funções de contemplação, repouso e lazer, permitindo-se, ainda, a instalação de mobiliário urbano de apoio a estas atividades”.

Na cidade, existe um considerável número de praças e parques. No ano de 2004 haviam 206 áreas denominadas de praça, segundo o Departamento de Gestão Ambiental (Tabela 01). Deste total, apenas 153

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encontravam-se implantadas, ou seja, ofereciam condições mínimas (caminhos, bancos, iluminação, vegetação, etc) de serem utilizadas efetivamente. Isto demonstra que um quarto das áreas destinadas para este fim não estava cumprindo suas funções, constituindo-se em espaços vazios na cidade.

A tabela 01 permite a comparação dos espaços livres de uso público da cidade de Ribeirão Preto em 1998 e 2004.

Tabela 01 – Ribeirão Preto-SP: Espaços livres públicos denominados por lei (1998-2004)4

Fonte: Guzzo (1998); Secretaria de Planejamento e Gestão Ambiental (2007).Org. Marcos Antônio Silvestre Gomes (2009)

Conforme se constata através da tabela, houve uma evolução significativa no total de parques e praças entre os anos de 1998 e 2004. Porém, a análise qualitativa desses espaços demonstra contradições quanto à condição que assumem (implantados ou não), divulgada pelo poder público, e suas condições plenas de uso. Muitas vezes, foram denominados por lei, mas não receberam nenhum tipo de intervenção no intuito de torná-los acessíveis à prática do lazer, ou para que, de fato, possam ser caracterizados como áreas verdes.

4 Os dados apresentados incluem o Distrito de Bonfim Paulista.

CONDIÇÃO PRAÇAS PARqUES

1998 2004 1998 2004Implantados e/ou Arborizados 126 153 02 08Não mplantados

56 53 09 09Total

182 206 11 17

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Isto demonstra que uma quantidade expressiva de parques e praças em Ribeirão Preto, existe na lei, mas na prática, não há nada que caracterize esses espaços de acordo com a denominação que lhes é atribuída.

Para o poder público, efetivamente implantadas são as “áreas que contenham equipamentos de lazer, passeio, iluminação, mobiliário, ponto de água, vegetação existente natural e/ou implantada, gramados ou ajardinamento e tratamento paisagístico, todos com manutenção periódica” (Plano Diretor de Arborização Urbana de Ribeirão Preto, Relatório nº 01, 2002), mas na prática, se constata outra realidade.

Conforme demonstrou Gomes (2005), apenas 122 praças estavam equipadas com algum tipo de mobiliário e vegetação que permitisse o uso destes espaços e não 153, como divulgado pela Prefeitura, que inclui, entre outros, rotatórias de vias públicas e espaços abandonados, os quais são utilizados pela população para alimentar animais, depositar lixos, etc . Deste total, mais de 50% das praças se localizam em meio a bairros cujos imóveis são de alto e médio padrão, ou seja, expressivamente, concentram-se no setor Centro-Sul-Sudeste.

Também foi observado que cerca de 40% das praças se assenta em terrenos íngremes ou muito íngremes, fato que demonstra que em geral, se reserva os espaços menos valorizados do ponto de vista imobiliário, para compor as áreas públicas. A lei no 1616/04 proibiu que os loteamentos reservassem áreas públicas em terrenos com declividades superiores a 15%5.

5 Diz a lei em seu artigo 155, parágrafo 8º: “É vedada a localização de área verde em terreno que apresente declividade superior a 15% (quinze por cento), a menos que haja razão paisagística de interesse coletivo manifesto e reconhecido pela Secretaria de Plane-jamento e Gestão Ambiental”.

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Outro aspecto que chama atenção nas praças de Ribeirão Preto é a arborização, mesmo em sua maioria consideradas arborizadas, ainda há insuficiência de vegetação nesses espaços, de forma que cumpram seu papel como área verde. Do total das 122 praças, 70% são dotadas de espécies arbóreas de grande porte. Por outro lado, as árvores de médio e pequeno porte apareceram com mais freqüência, existindo em aproximadamente 90% e 97% das praças, respectivamente. Isto não significa que as praças são efetivamente arborizadas, mas que apresentam algumas espécies de diferentes portes que caracterizam estes espaços como arborizados, mas há a necessidade de um plano de arborização que otimize o uso dessas praças (Gomes, 2005).

Os espaços livres de uso público, além das funções que podem desempenhar no espaço urbano, como área verde e de lazer, áreas de interesses imobiliários, etc, também têm importância porque ocupam espaços físicos na malha urbana.

Na cidade de São Paulo, a superfície ocupada pelas áreas verdes de modo geral (superfícies ocupadas por árvores, jardins, gramados, etc.), representa 17% da mancha urbana, ou seja, além de pouco, considerando o número de habitantes, é mal distribuído (Nucci, 2001).

Conforme matéria publicada no jornal “O Estado de São Paulo” (27/08/03), em 48% do território da cidade de São Paulo há carência significativa de vegetação. Assim, em bairros de classes mais favorecidas, como o Morumbi, o índice de área verde por habitante atinge 239m2, enquanto no Brás – região central – o índice é quase zero.

Em Ribeirão Preto, de acordo com Guzzo (1999), no ano de 1995, os espaços livres de uso público, compreendidos como aqueles cujo acesso das pessoas é livre, sem qualquer impedimento, ocupavam cerca de 2,3% da área urbanizada do município. Neste percentual, enquadram-se os espaços denominados por lei, implantados e não-implantados, parques, praças, áreas verdes, etc. Entretanto, estes espaços distribuem-se desigualmente na cidade, concentrando-se mais em alguns bairros e setores e menos em outros, mas não há estudos que demonstrem efetivamente essas desigualdades.

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Vê-se assim que, concomitante à quantidade significativa de praças, há uma grande variação na qualidade do mobiliário, na cobertura vegetal e na distribuição espacial. Esta mesma dinâmica ocorre com os parques públicos, onde também se constata uma quantidade significativa, porém muitos deles não estão implantados, mas apenas criados por lei.

No ano de 1998, onze parques haviam sido criados por lei em Ribeirão Preto. Em 2004, eram dezessete parques, mas apenas oito se encontravam implantados e em sua maioria localizados no entorno da área central e no eixo Centro-Sul-Sudeste. Quinze parques foram criados por lei desde a década de 1990, momento em que se difunde o ideário da “sustentabilidade” como prega a Organização das Nações Unidas6. No entanto, para os objetivos deste trabalho, importa salientar que este é um dos discursos sobre os quais se pautou e se justificou a criação de parques, como consta em alguns aspectos da legislação municipal de Ribeirão Preto.

Dois parques em Ribeirão Preto interessam a esta discussão pelas características do processo de criação e implantação,mas também pelo seu significado mais amplo no processo de produção do espaço urbano. Trata-se dos parques Prefeito Luiz Roberto Jábali e Dr. Luís Carlos Raya, mencionados anteriormente.

Estes parques foram implantados sob condições muito semelhantes e apresentam-se como equipamentos importantes para a compreensão do processo de produção do espaço urbano em Ribeirão Preto. Não apenas porque têm uma importância na atualidade como parques (área verde e de lazer), mas porque sinalizam a compreensão das desigualdades socioespaciais, historicamente produzidas em Ribeirão Preto, com a implantação de equipamentos públicos prioritariamente no setor Centro-Sul-Sudeste.

O Parque Prefeito Luiz Roberto Jábali foi implantado no ano 2000

6 Há um longo debate sobre estas questões e foge ao escopo deste trabalho esta dis-cussão. Para aprofundamento, consultar, entre outros, Rodrigues (2006), Nobre (2002) e Gomes (2008).

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em terras desapropriadas pelo poder público municipal, pertencentes à Cia City7. Esta empresa pretendia um loteamento com edifícios de alto padrão para uso misto (residencial e comercial) e a implantação de um parque na cava da antiga pedreira existente nas suas terras, denominada pedreira da Babilônia. No entanto, o projeto não foi levado adiante devido à falência da Construtora Encol (uma empresa parceira para o empreendimento), na década de 1990, que deixou o projeto paralisado. Também havia uma dívida de IPTU (Imposto Predial Territorial Urbano) com a Prefeitura no valor de dois milhões de reais que era necessário ser quitado para a consecução do projeto.

O prefeito Luiz Roberto Jábali, interessado em executar uma obra que conferisse visibilidade à sua gestão (1997-2000), apropriando-se do disposto na Lei 7.105/958, que declarou esta área de interesse especial, desapropriou parte das terras da Cia City9 e em acordo com esta empresa executou as obras do parque que se tornou um espaço público.

O projeto e a execução do parque foram de responsabilidade da Cia City que, através de uma parceria, utilizou verbas públicas, de cerca de três milhões de reais e mais os dois milhões da dívida de IPTU, para consecução das obras do parque.

No processo de implantação do Parque Prefeito Luiz Roberto Jábali, tornou-se claro os interesses da parceria público-privada porque executou uma obra em nome de todos, para o interesse de todos, mas que não se explicitou o processo pelo qual têm origem as obras e os espaços públicos. Neste caso em específico, esta parceria foi positiva para ambos os lados. De um lado, permitiu que o poder público recebesse uma dívida de IPTU acumulada no tempo e tornasse pública uma área privada. Por outro, a Cia City se livrou da dívida de IPTU com a Prefeitura e da “área problema”, ou seja, a cava da pedreira10, e ainda lucrou com a reserva

7 Empresa do setor imobiliário, com atuação internacional. Ver Wolff (2001).8 Lei elaborada na gestão de Antônio Palocci Filho (1993-1996).9 O Decreto no 163, de 27/06/2000, estabeleceu a desapropriação de 150 mil m2 das terras da Cia City, incluindo a cava da pedreira.10 Esta cava aparecia como um incoveniente para a área. Além de ser um espaço degra-

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de parte de suas terras11, para investimentos futuros, e com a presença do parque que funciona como um atrativo para o local, provocando, entre outros, a valorização diferencial dos imóveis ao seu entorno, como demonstrado por Gomes (2008).

A implantação do Parque Dr. Luís Carlos Raya ocorreu sob um processo semelhante ao do Parque Prefeito Luiz Roberto Jábali. Este parque foi projetado como parte do loteamento Jardim Botânico (Decreto no 12, de 24/01/02), e suas terras foram transferidas para a municipalidade através do percentual de áreas públicas, como manda a Lei 6766/79. No entanto, a área deste parque não foi contabilizada no percentual destinado às áreas verdes, mas àquelas para uso institucional, que, como obriga a Lei 2157/07, deve corresponder a 5% do total das áreas públicas. Este fato restringiu, ou praticamente, extinguiu a possibilidade de implantação de outros equipamentos urbanos necessários à população, como postos de saúde, escolas, creches, etc. porque o parque ocupa um percentual significativo dos 5% reservados para uso institucional no loteamento o qual faz parte.

A idéia do parque foi da Incorporadora GDU, que o projetou como parte do loteamento Jardim Botânico, para ser um atrativo para o loteamento. Através de parcerias com a Prefeitura, com manobras na lei12, foram assegurados os recursos necessários à execução das obras do parque que custou cerca de 1,6 milhão, sendo 50% de recursos da GDU e 50% de recursos públicos.

dado pela exploração dos seus recursos – o basalto -, tornou-se ao longo do tempo um local abandonado onde se proliferavam vetores, depositavam-se lixos e ocorriam crimes.11 Embora não se saiba os verdadeiros motivos, apenas foi desapropriada parte das terras da Cia City, exatamente aquela de menor valor imobiliário, ou seja, a cava da pedreira. A Cia City reservou cerca de 100 mil m2 de terras para futuros empreendimentos.12 Para assegurar e transferir recursos para a obra do parque foi aprovada a Lei 1313/02, que permitia que o percentual de 10% a ser destinado pelo loteamento à Prefeitura para fiscalização da obra, como determina a Lei 2415/70, fosse utilizado para realização de obras públicas no loteamento. Esta lei (1313) foi promulgada 45 dias depois do Decreto de aprovação do Loteamento Jardim Botânico (Dec. 12, de 24/01/02), mas o Decreto no 76, de 11/04/02 determinou o não cumprimento da mesma por considerá-la argüida de inconstitucionalidade.

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O Parque Dr. Luís Carlos Raya constitui uma das estratégias da Incorporadora GDU para promover a venda dos lotes do Jardim Botânico e auferir renda diferencial porque o parque funcionou como um equipamento que favoreceu o aumento do preço dos imóveis nas suas imediações (GOMES, 2008).

Este parque também foi implantado na cava de uma antiga pedreira e, como manda a lei (Decreto Federal no 97.632/89), havia a obrigatoriedade de “recuperação ambiental”13. Assim, os incorporadores transferiram para a municipalidade a “área problema” e parte dos custos da recuperação ambiental, ou seja, a transformação da área em parque.

Outros parques do setor Centro-Sul-Sudeste também passaram por modificações, alterações como o Parque Maurílio Biagi e o Parque Fernando Freitas Monteiro. Nas proximidades deste último parque tem ocorrido nos últimos anos um intenso processo especulativo, com projetos de torres de edifícios voltados para o parque, localizado ao lado do Ribeirão Shopping. Estes fatos indicam a intervenção do poder público em dinamizar essas áreas, regiões, bairros na cidade, tornando-os atrativos para o mercado imobiliário.

A implantação e revitalização de parques e praças em parcelas específicas da cidade de Ribeirão Preto sinalizam as desigualdades socioespaciais e também fazem parte de uma estratégia mais ampla de reprodução ampliada do capital. Além desses equipamentos, foram executados vários outros serviços públicos e projetos privados, como o complexo da Avenida João Fiúza, edifícios de serviços especializados, etc, que consolidam o eixo Centro-Sul-Sudeste como o mais atrativo e rentável em Ribeirão Preto.

Entre os bairros populares, apenas foi implantado o Parque Tom Jobim, na zona Norte, que oferece oportunidade de uso pela população. 13 Para a antiga pedreira da Babilônia, onde se implantou o Parque Prefeito Luiz Roberto Jábali, não havia obrigatoriedade de Plano de Recuperação Ambiental porque suas ativi-dades foram encerradas antes da legislação que o passou a exigir, em 1989 (ver Gomes 2008).

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Em muitos bairros há a delimitação de espaços para áreas públicas, áreas verdes e de lazer, mas não estão entre as prioridades de implantação pelo poder público, que investe nos setores já supridos de infra-estrutura, assegurando e ampliando os interesses capitalistas na produção do espaço.

Considerações Finais

A concentração de espaços públicos como praças e parques melhor equipados em áreas específicas da cidade demonstra a necessidade de analisar estes espaços para além das suas funções imediatas, como local de lazer ou de conservação ambiental. Indica que têm importância na cidade porque produzem alterações no processo de produção do espaço urbano, com valorização desigual do espaço.

Como demonstrado em Ribeirão Preto, a concentração dos espaços públicos no eixo Centro-Sul-Sudeste evidencia que as políticas públicas não têm definido como prioritárias as áreas que mais necessitam de espaços dessa natureza. Gestores públicos têm implantados parques e praças em áreas já supridas por outros equipamentos públicos e privados em parceria com a iniciativa privada, que tem interesse nesses espaços porque contribuem para a reprodução ampliada do capital, através do segmento imobiliário do mercado.

De acordo com Gomes (2008), a implantação dos parques Dr. Luís Carlos Raya e Prefeito Luiz Roberto Jábali provocou a alteração do preço da terra no setor Sul-Sudeste, e em especial na áreas imediatamente ao retorno dos mesmos. Implantados através de parcerias público-privadas e de manobras na lei, estes parques compõem o conjunto de equipamentos (praças, áreas verdes, avenidas arborizadas, boulevards, shopping centers, centros de serviços especializados, etc) que diferenciam parcelas do espaço urbano em Ribeirão Preto, aumentando as desigualdades socioespaciais.

Estas análises permitem afirmar, como Lefebvre (1999), que

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parques e praças constituem signos utópicos do espaço urbano, reúnem o natural e o artificial e não apenas devem ser compreendidos como espaços neutros na cidade.

Parques e praças, como símbolos da produção reinante, expressam-se como espetáculos no urbano. O espetáculo, como ensina Debord (1997), concretiza-se e se manifesta pela imagem, pela publicidade, pela significação dos objetos, tornados símbolos.

Novos e ambiciosos projetos de parques, como o da antiga Fazenda Olhos d’água, da antiga Fazenda Baixadão e da Fazenda Conquista, etc, muitos deles como propostas da iniciativa privada, já foram divulgados pelo poder público e pela mídia e sinalizam a necessidade de novos estudos para compreender e explicitar a continuidade do processo.

GOMES, M. A. S. Ribeirão Preto-SP: the public spaces in the urban space production. DIALOGUS, Ribeirão Preto, p. 255-273

ABSTRACT: This paper proposes a reflexion on the public spaces in Ribeirão Preto-SP, the dynamics of implantation and distribution on the urban mesh. The text specifically approaches squares and parks in the context of urban space production, demonstrating how important are these equipments into this process, and not just as neutral spaces, commonly seen in many perspectives of analysis.

KEYWORDS: urban parks, public squares, urban space production, Ribeirão Preto.

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HISTÓRIA / HISTORY

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O RURAL E A NAÇÃO NA REPÚBLICA

Marcus DEZEMONE*

RESUMO: A urbanização acelerada pela qual o Brasil passou na segunda metade do século XX contribuiu para minimizar o reconhecimento da importância do mundo rural na construção material e simbólica da nação. O Objetivo desse artigo é mapear as diferentes visões que se impuseram sobre o campo e os camponeses durante a história republicana, contemplando as representações sobre os movimentos sociais e o lugar do rural nos debates mais amplos sobre a nação e seus rumos. O trabalho sintetiza reflexões desenvolvidas em publicações anteriores e resultados da pesquisa empírica de doutorado intitulada “Do cativeiro à reforma agrária”, desenvolvida no âmbito do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense.

PALAVRAS-CHAVE: mundo rural; nação; campo; camponeses; república

A urbanização acelerada construiu em pouco tempo o Brasil com feições consideradas modernas, urbano e industrial. Segundo o IBGE, 31% da população brasileira viviam nas cidades em 1940. Quarenta anos depois esse percentual saltava para 68% numa inversão demográfica sem precedentes na história mundial. A velocidade e intensidade do processo fizeram parecer nos dias de hoje – talvez intencionalmente – que o papel do campo e do mundo rural na construção material e simbólica da nação tenha sido menor, ao se perder, no presente, a dimensão das antigas feições rurais, lembranças cada vez mais vagas em muitas áreas do Brasil. Não obstante, gerações de intelectuais preocuparam-se em refletir * Universidade Federal Fluminense, Programa de Pós-Graduação em História, Niterói, RJ. Mestre e Doutor em História (UFF); Professor do Instituto Superior de Educação do Rio de Janeiro (ISERJ) e do Colégio Pedro II.

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acerca do mundo rural como espaço privilegiado para entendimento dos problemas nacionais e, mais do que isso, solução para superação dos males que afligem o país. Foi essa a inflexão da chamada geração de 1930, com Gilberto Freyre em Casa Grande & Senzala (1933), Sergio Buarque de Hollanda com Raízes do Brasil (1936) e Caio Prado Jr em Formação do Brasil Contemporâneo (1942). Nas décadas de 1950 a 1980, a geração seguinte elegeu como primordial o tema da reforma agrária que se impôs no debate público como uma necessidade (PALMEIRA, 1971). Apesar da ausência de uma proposta consensual, para muitos, tratava-se de superar um enorme obstáculo ao desenvolvimento da nação: o latifúndio (LINHARES & TEIXEIRA DA SILVA, 1999, p.138-148). Não deixam de enveredar pelo caminho aberto nos anos 1930, com um renovado interesse no rural, as pesquisa abertas por uma historiografia recente da escravidão. A reflexão diante da escravidão rural e do pós-abolição no campo traria elementos para melhor compreender a sociedade que se construiu no século XX (RIOS & MATTOS, 2005; GOMES & CUNHA, 2007).

Nesse esforço intelectual coletivo – com o olhar voltado para o mundo rural, mas a reflexão projetada para o futuro do país –, mereceram destaque visões que auxiliariam no entendimento do Brasil a partir dos rastros de “casas-grandes e de senzalas”, do entendimento da atuação pública dos “homens cordiais” na defesa dos seus interesses privados, da estruturação da “grande lavoura” e seu “sentido” nos impulsos dos mercados internacionais, do peso do “latifúndio” (hoje alguns falam da irrelevância), ou das marcas do cativeiro. É esse percurso que guia o presente trabalho, através do acompanhamento da trajetória das visões sobre o campo e o mundo rural que procuravam ao mesmo tempo pensar e propor rumos à nação.

As interpretações sobre o mundo rural, o campo e os camponeses ainda hoje são permeadas por preconceitos urbanos compartilhados por inúmeros intelectuais. As raízes dessas posturas estão fincadas no pensamento Ilustrado do século XVIII. O Iluminismo, gerado numa sociedade de Antigo Regime, portanto ciosa de suas diferenças sociais, culturais e políticas, desenvolveu uma visão pejorativa do campesinato,

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na qual os camponeses não possuiriam opiniões próprias, incapazes de participar da vida política. Apesar de ser um movimento apresentado como símbolo do avanço da razão, da ciência e da defesa da liberdade de expressão, o Iluminismo reiterou algumas das diferenciações no âmbito do Antigo Regime, reafirmando a superioridade das elites letradas “civilizadas” das cidades diante de camponeses considerados “selvagens” que apresentavam uma racionalidade distinta, muitas vezes incompreendida (DEZEMONE, 2004a).

Desde o século XIX um considerável conjunto de análises sobre as mobilizações políticas no campo enfatizou em menor ou maior intensidade o conservadorismo e o reacionarismo, numa aversão à mudança e transformação social que seriam típicas das classes rurais, mesmo as subalternas. Em O 18 Brumário de Luís Bonaparte os camponeses franceses são apresentados como incapazes de articular objetivos comuns num autêntico “saco de batatas” (MARX, 1852, p.277). Na linha dos estudos da tradição marxista inspirados nos escritos de Marx e Engels foi proferida a “sentença de morte” de Karl Kautsky (1899) que preconizava a extinção do campesinato. No último quarto do século XX esses prognósticos foram reiterados por autores vinculados a essa tradição, sintetizada na fórmula do “fim dos camponeses” (MENDRAS, 1964 e 1984). Ao serem tomadas como “certezas” por aqueles que concordavam com essas interpretações, vozes destoantes como Alexander Chayanov (1888-1937) foram abafadas e, de certa forma, quase apagadas da história. Para o pensador russo desaparecido durante os expurgos stalinistas, longe da extinção aguardada, os camponeses seriam uma classe dinâmica que, voltada para subsistência, poderia melhor adequar-se às transformações impostas pela modernidade, sobrevivendo à industrialização e à urbanização (CHAYANOV, 1965).

No Brasil de fins do século XIX a nascente república brasileira, tributária do pensamento ilustrado e do cientificismo, procurou apresentar-se como o regime que asseguraria a manutenção da ordem e alcançaria o progresso. Mais do que lema dos positivistas incluído no remodelado pavilhão nacional, a idéia de modernização do país recebeu apoio e

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adesão dos propagandistas do novo regime, que viam a república como a “revolução nacional”. Contudo, na sua primeira década o regime precisou lidar com os problemas de sua legitimidade e organização, o que gerou descontentamentos variados como o de monarquistas e outros grupos insatisfeitos, recorrendo inclusive à violência como na Revolta da Armada (1893-1894) e na Revolução Federalista (1893-1895) (CARVALHO, 1990; FLORES, 2003).

Foi nesse clima de ameaça que as notícias sobre Antônio Conselheiro e o arraial de Canudos foram recepcionadas na Capital Federal. O receio dos grandes proprietários rurais era perder o controle sobre a mão-de-obra que poderia se abrigar em refúgios como Canudos. A hierarquia católica temia as formas de religiosidade popular que escapavam ao seu controle. Tais atores contribuíram na imposição da visão do movimento como monarquista – o que não apenas forçava a intervenção de tropas federais, mais ainda acabou por legitimar a excessiva violência que dizimou em 1897 a comunidade estimada pelo Exército em 25.000 habitantes (HERMANN, 2002, p.143-144).

A repressão republicana teve muitos defensores na Capital. Curiosamente um deles foi consagrado como um dos maiores denunciantes das condições sociais precárias da população rural: Euclides da Cunha (1866-1909), republicano de primeira hora, ex-aluno da Escola Militar da Praia Vermelha – um dos principais focos da conspiração que culminou no golpe de 15 de novembro. Antes de acompanhar as tropas na campanha militar no nordeste, o então jornalista escreveu um instigante artigo intitulado A nossa Vendéia. Nele, Euclides comparava Canudos à Revolta da Vendéia (1793-1796) ocorrida durante a Revolução Francesa (1789-1815). A imagem acionada no artigo é clara: se Canudos era “a nossa Vendéia” – uma contra-revolução – a República era “nossa revolução” e como tal, deveria ser defendida diante do arraial (GRYNSZPAN, 2002).

A atitude de Euclides da Cunha tem por base a reprodução do discurso dos revolucionários franceses sobre a Revolta da Vendéia. A sublevação camponesa demonstraria, segundo os revolucionários, a essência do “conservadorismo camponês”: a revolta foi taxada de

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“contra-revolução”, ligada ao “atraso” em oposição ao “progresso”. De Canudos no Brasil, passando pelos cossacos e outros descontentes com as medidas dos bolcheviques na Rússia após a Revolução de Outubro (1917), até atingir os Cristeros no México (1926-1929), a comparação com a revolta francesa foi corriqueira entre intelectuais “progressistas” e militantes de “esquerda” (DEZEMONE, 2004). O que une essas posturas seria a certeza de um desejo intrínseco aos camponeses de retorno ao passado, associado à religião e à tradição, defendidos ardorosamente quando contrapostos à mudança.

Esta perspectiva somente foi questionada em 1960, após a obra inovadora Paysans de l’Ouest, estudo monográfico do historiador Paul Bois (1971) que empreendia uma critica contundente ao julgamento da Revolta da Vendéia. O ímpeto da insurreição teria sido contra a expropriação e em defesa da autonomia camponesa, contrário à introdução de práticas capitalistas, e não monarquista ou eclesiástico, conforme a versão dos revolucionários. No entanto, os reflexos do preconceito citadino e da representação das revoltas camponesas simbolizando o atraso ainda perdurariam.

O Euclides da Cunha que retorna da viagem pelo “Brasil profundo” (OLIVEIRA, 2002), pelo interior, o “sertão” como era denominado o campo e o mundo rural desde o período colonial, demonstra um posicionamento diferente, sobre seus habitantes, chamados então de sertanejos. Influenciado pelo cientificismo, em especial pelo determinismo geográfico, sua maior obra Os Sertões, publicada em 1902, afirma que o “sertanejo é, antes de tudo, um forte”, por conseguir se adaptar as condições geográficas adversas Apesar de Os Sertões, a versão corrente na imprensa fluminense se impôs: o envio de quatro expedições até a vitória definitiva se justificava diante dos sertanejos de Conselheiro, cuja resistência implacável fora levada a cabo por “loucos”, “selvagens”, “irracionais” e “fanáticos religiosos”.

As representações sobre Canudos (1893-1897) muito se assemelham àquelas sobre o Contestado (1912-1916). Ocorrido numa área disputada por Paraná e Santa Catarina, o conflito foi permeado por

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fortes elementos religiosos, e até hoje é conhecido na região como “guerra dos fanáticos” (HERMANN, 2003). No Cangaço do nordeste, associado a Lampião (1897-1938), a imagem não era melhor: os sertanejos eram vistos como bandidos. Assim se consagrava a primeira visão marcante na república sobre o campo: o lugar das trevas, do obscurantismo, onde os sertanejos que se mobilizavam eram retratados como selvagens, bárbaros, degenerados e fanáticos.

Ao mesmo tempo, o campo quando ordeiro e sem conflitos, era percebido no Brasil como origem da riqueza nacional. Dos anos finais do século XIX até os anos 1930, o país tinha uma forte dependência econômica do café – que respondia por cerca de 70% das exportações. Mas a riqueza gerada pelo desenvolvimento cafeeiro concentrava-se nas mãos de poucos, sobretudo os cafeicultores, que insistiam na idéia da vocação agrícola da nação. Esse discurso não possuía nada de ingênuo; pelo contrário, demandava mais recursos e a priorização da grande lavoura agrário-exportadora pelo poder público. Ele foi decisivo entre outras coisas, para as políticas de valorização do café durante a Primeira República naquilo que Celso Furtado (1959) chamou de “socialização das perdas”. Com o ruralismo os demais proprietários rurais dedicados a outros cultivos faziam eco à associação da prosperidade do país à grande lavoura (MENDONÇA, 1994).

No Rio de Janeiro surge pelo esforço e difusão das elites rurais uma noção ainda repetida: o discurso da decadência e do declínio da agricultura fluminense como conseqüências diretas do fim da escravidão (SANTOS, 1984). Essa versão afirmava que os ex-escravos abandonaram as fazendas e seguiram para as cidades, contribuindo para males como a favelização. Seria explicado, dessa maneira, o esvaziamento econômico das fazendas do Vale do Paraíba em benefício da região do Oeste Paulista, processo descrito por Monteiro Lobato (1888-1948) como a passagem das “ondas verdes”, transformando o ambiente social da antes próspera região em “cidades mortas” (LOBATO, 1919).

A visão do campo ordeiro como fonte da prosperidade nacional e do campo conflagrado como lugar de fanáticos religiosos seria lentamente

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alterada a partir de fins da década de 1920. Nos anos 1930, os esforços de entendimento da sociedade brasileira caminharam no sentido de compreender o peso do passado colonial e, por conseguinte, do mundo rural no estabelecimento dos rumos da nação. Foi essa a preocupação da geração de 1930. Segundo Antonio Candido (1967), Gilberto Freyre, Sergio Buarque de Holanda e Caio Prado Jr. podem ser considerados pais fundadores de um pensamento social tipicamente nacional ao inovarem na interpretação do país. Quase trinta anos depois, Evaldo Cabral de Mello (1995) manifestava esse mesmo entendimento. Afrânio Garcia e Mario Grynszpan (2002) chamam a atenção que os autores da geração de 1930 estudaram as grandes plantações porque estavam interessados em falar sobre a nacionalidade brasileira. E falar sobre como a nação se formou significava, naquele momento, necessariamente, falar sobre as grandes plantações e o lugar do campo. Esses esforços se aproximavam daqueles empreendidos por correntes do movimento modernista, que embora defendessem a urbanização e a industrialização, valorizaram a exemplo de Freyre, a mestiçagem associada ao rural, passando a percebê-la como algo positivo. Uma obra reveladora da mudança de concepção estética e política é o quadro de Candido Portinari O lavrador de café (1939).

Durante a Era Vargas (1930-1945; 1951-1954), o Estado Brasileiro se direcionou na superação da dependência do setor agrário-exportador, optando, deliberadamente, pela diversificação econômica ao investir na indústria de base. Em virtude da existência de um parque industrial que remontava a Primeira República, a região sudeste foi priorizada para receber tais investimentos. Conforme demonstrou Francisco Oliveira (1972) a idéia de uma contradição entre os setores econômicos rurais e urbanos como empecilho à industrialização brasileira na Primeira República não se verificava; havia de fato uma complementariedade que contribuiu para uma industrialização por substituição de importações no sudeste financiada pelos lucros do setor cafeeiro. Num outro sentido, foram destinados recursos materiais e simbólicos na valorização do trabalho e do trabalhador que passava a ser percebido como fonte da grandeza nacional. São fartas as referências que falam de um novo lugar para o trabalhador

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urbano (GOMES, 1988). Essas mesmas preocupações visaram atingir também o chamado lavrador, cujos impactos uma produção acadêmica mais recente tem se esforçado em mapear, gerando repercussões como o envio de correspondências ao presidente Vargas (DEZEMONE, 2007). Num outro sentido, dois exemplos de investimentos de valorização do homem do campo – com resultados objetivos pífios para os camponeses – cuja retórica se assentava na contribuição para o bem-estar da nação foram a Marcha para o Oeste e a Batalha da Borracha. A primeira consistiu numa proposta de colonização dos “espaços vazios” do território nacional, temendo uma eventual cobiça estrangeira numa década marcada por expansionismos (ESTERCI, 1972). A segunda foi travada na Amazônia e visava aumentar a extração de látex a partir de 1942 com o ingresso brasileiro no esforço de guerra aliado durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) (SECRETO, 2007).

Foi o desenvolvimento dos meios de comunicação de massa com a popularização do rádio a partir das décadas de 1940 e da televisão na década de 1960 que auxiliou na difusão de representações da vida urbana e igualmente da vida rural em todo território nacional. O incremento dos meios de transporte no pós-1956 com as rodovias para a nascente indústria automobilística encurtou a duração das viagens, em certo sentido, facilitando-as, ao aparentemente diminuir as distâncias, promovendo uma maior circulação de pessoas e bens. Ao romper com o relativo isolamento de regiões do país, elas intensificaram toda uma circularidade de idéias (DE CERTEAU, 1994). A música popular, o cinema, os programas televisivos, com destaque para as telenovelas, produziram visões no campo do que seria a vida na cidade e no mundo urbano, mas também espalharam na cidade o que seria considerado próprio e típico do campo e do mundo rural. Muito populares nos anos 1940 e 1950, as chanchadas foram representativas dessas transformações. Elas retratavam, de forma simples, bem humorada, a maneira de viver das populações rurais que estavam migrando para as cidades, originando as camadas populares urbanas. As chanchadas apresentavam tipos populares recorrentemente retratados de forma positiva, realçando visões de mundo e atitudes que exaltavam

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características que seriam inerentes ao povo como a ingenuidade sábia, a generosidade e a capacidade de superação em face das dificuldades (LINHARES & TEIXEIRA DA SILVA, 1999, p.115-125; 148-158).

Após as mobilizações camponesas nas Revoluções no México (1911), na Rússia (1917), na China (1949) e nas lutas de libertação nacional na descolonização Afro-Asiática (1945 até 1975), proliferaram no mundo ocidental trabalhos sobre movimentos camponeses, demonstrando uma relação estreita, facilmente verificável, entre o aumento das mobilizações – e sua visibilidade – e a realização de estudos acadêmicos.1 Tais movimentos camponeses contribuíram para que na década de 1960, algumas análises passassem a destacar justamente o contrário do conservadorismo camponês: a capacidade de luta e o revolucionarismo inerentes ao campesinato como defendia Frantz Fanon em Os Condenados da Terra (1961) e acreditou Che Guevara até sua morte na selva boliviana em 1967. Editado em vários países com prefácio de Jean Paul Sartre, o livro de Fanon teve grande relevância política ao afirmar que os camponeses seriam a classe revolucionária no Terceiro Mundo.

As mobilizações camponesas no mundo contribuíram para que no curso da década de 1950 a percepção sobre o rural se alterasse no Brasil, sobretudo nos segmentos urbanos intelectualizados de esquerda. Isso se deu, em grande medida, pela atuação de militantes no campo brasileiro, desde os anos 1940, como o advogado Francisco Julião, em Pernambuco. A efervescência no campo refletiu-se na produção de intelectuais de esquerda, como Caio Prado Jr. Seria adequado mesmo 1 Dentre inúmeras obras de variados matizes, convém apontar, na tradição marxista, a his-tória social britânica com Eric Hobsbawm e seus Rebeldes Primitivos (1959); o marxismo indiano com Hamza Alavi (1969) e a sociologia britânica com Teodor Shanin (1971). Outra linha foi trilhada com a perspectiva comparativa pela sociologia histórica norte-americana com Barrington Moore Jr. em As Origens Sociais da Ditadura e da Democracia: Senho-res e Camponeses na Construção do Mundo Moderno (1966) e sua ex-orientanda Theda Skocpol (1979). Ainda nos EUA, a antropologia cultural teve em Eric Wolf e seu Guerras camponesas do século XX (1969) uma relevante contribuição. Por fim, na França, Pierre Bourdieu (1977) destacou a dificuldade que o campesinato possuía na imposição de sua própria representação diante de outros grupos sociais. Para um balanço dessas interpre-tações ver Dezemone (2004a).

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falar de uma “descoberta” do campo pelas esquerdas brasileiras no pós-guerra (GRYNSZPAN & DEZEMONE, 2007). Desde os anos 1940 os comunistas fundaram ligas em lugares como o “sertão carioca”, antiga zona rural da cidade do Rio de Janeiro, a paulista Ribeirão Preto (SP) e o estado de Goiás, entre outras localidades (SANTOS, 2005a e 2005b).

A difusão do livro do jornalista Rui Facó Cangaceiros e Fanáticos (1963), baseado em dois artigos publicados em fins dos anos 1950, na esteira da consolidação da Revolução Chinesa e do maoísmo bem como o sucesso da Revolução Cubana (1959) e do castrismo-guevarismo, contribuíram para percepção de um caráter revolucionário latente no campo brasileiro. No extremo oposto, havia o eco da passividade e da ingenuidade melhor representadas em Jeca Tatu (1924), personagem de Monteiro Lobato e nas Chanchadas. É nesse momento de percepções conflitantes sobre o campo que as cidades, grosso modo, foram “invadidas” pelos camponeses de duas formas. A primeira, dramática, por aqueles que buscavam inserção no meio urbano com as migrações; a segunda, por aqueles que se mobilizavam politicamente para permanecer no campo, manifestando-se nas cidades.

As demandas dos movimentos camponeses receberiam maior visibilidade se expressas no espaço urbano, entendido como locus de poder e sede das instituições com capacidade de intervenção no mundo rural. Entre diversas ações, destacaram-se as ocupações de terras no campo e de prédios públicos nas cidades, já nos anos 1960, que deixaram registros nas notícias de jornais da época (PUREZA, 1982). As cidades emergiam como espaço privilegiado para as manifestações camponesas que consagravam a reforma agrária não apenas como a reivindicação principal desse grupo, mas pela noção de que ela era necessária ao progresso da nação como um todo, ao considerar o latifúndio um óbice ao desenvolvimento nacional. Configurava-se assim uma nova visão do campo: a chave para o desenvolvimento, desde que a reforma agrária fosse empreendida, o que dependia, em grande medida, das mobilizações dos próprios camponeses. Proliferam sindicatos rurais estimulados pelo governo João Goulart (1961-1964) no inicio dos anos 1960. Foi nesse

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quadro que os camponeses – categoria associada ao atraso e a passividade - agruparam-se em torno de uma identidade nova - a de trabalhador rural – noção cuja associação à defesa de direitos foi reconhecida e consagrada por um documento legal, o Estatuto do Trabalhador Rural de 1963 (Medeiros, 1989).

A maioria dos mais de duzentos sindicatos rurais que surgiram no governo Goulart estava vinculada aos militantes do PCB (Partido Comunista Brasileiro) e da Igreja Católica. Para os comunistas a questão chave era estender os direitos sociais ao campo, enquanto os católicos preocupavam-se, num primeiro momento, em afastar os lavradores das esquerdas e, posteriormente, estimular as mobilizações com os chamados católicos radicais (DE KADT, 1970). Apesar disso, a visão que se impôs sobre o movimento camponês no período atribuiu sua hegemonia ao grupo que, isolado, mais radicalizou suas ações – as Ligas Camponesas. A percepção do peso das Ligas relaciona-se por um lado ao seu lema “reforma agrária na lei ou na marra”, vitorioso no Congresso Camponês de Belo Horizonte de 1961 (GRYNSZPAN & DEZEMONE, 2007). Por outro lado, num processo combinado, no qual ao mesmo tempo em que se construía a idéia de nordeste em substituição ao norte – denominação da região desde a Colônia e o Império – associava-se a região ao atraso. De principal pólo da economia colonial o nordeste consagrava-se durante a república numa área que demandava recursos e investimentos públicos, cuja maior expressão foi a criação da SUDENE (Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste) em 1959, no governo Juscelino Kubitschek (1956-1961) (ALBUQUERQUE JR, 1999). Outro dado que deve ser ressaltado, que reduziu a capacidade de agregação de trabalhadores rurais pelas Ligas naquela conjuntura era o entendimento de seu principal líder, Francisco Julião, de que os sindicatos rurais eram entidades inapropriadas à luta camponesa, esvaziando essa forma de organização em beneficio de associações civis, modelo das Ligas, que não teriam a tutela e reconhecimento do Estado (JULIÃO, 1962). Comunistas e católicos souberam aproveitar as conseqüências dessa opção para ampliar suas bases (GRYNSZPAN & DEZEMONE, 2007). Em Pernambuco, nascedouro

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das Ligas em 1955, os sindicatos católicos respondiam por 200.000 filiados enquanto as Ligas Camponesas possuíam 40.000 membros (WILKIE, 1967).

Alguns dos membros das Ligas Camponesas chegaram a criar o Movimento Revolucionário Tiradentes (MRT), que defendia o recurso às armas. Mas a radicalização política não foi exclusiva das Ligas. A influência do maoísmo e do guevarismo idealizava o homem do campo, apostando na sua mobilização armada como o caminho para a transformação social no que era chamado de “Revolução Brasileira”, nacionalista e anti-imperialista (RIDENTI, 2000). Desde 1961, uma pequena parte das esquerdas brasileiras passou a considerar a opção pela luta armada. Tratava-se de duas etapas a serem desenvolvidas. A primeira passaria pela arregimentação de quadros e recursos materiais nas cidades tendo como objetivo a preparação da segunda etapa, de organização da luta armada no campo (ROLLEMBERG, 2003, p.57-58).

O processo de imposição das visões do mundo rural associado à luta, às manifestações e reivindicações em torno da reforma agrária por um lado, e à ação revolucionária por outro, foi, em amplo sentido, alterado pelo golpe civil-militar de 1964. As esquerdas no campo foram perseguidas e retiradas de cena. No entendimento do regime, a índole ordeira do campesinato – verdadeira essência da alma camponesa – era perturbada pela infiltração comunista, num único tom “vermelho”, sem perceber as propostas conflitantes, suas nuances, as diferenças de concepções em jogo. As mobilizações precisavam ser freadas. No entanto, as idéias do campo e das estruturas rurais como obstáculos ao desenvolvimento nacional, grandes temas do debate nos anos 1950, perduraram. Moacir Palmeira (1971) percebeu, ao tomar como objeto o debate sobre a reforma agrária até os anos 1970, que nenhuma posição rejeitava e desqualificava em absoluto as críticas recebidas; os argumentos sempre deixavam margem para que posições opostas pudessem ser implementadas, ainda que parcialmente, o que evidenciaria a tentativa de somar forças contra o latifúndio. Isso contribuiu para que o regime promovesse ao seu modo uma “reforma agrária”, considerada conforme sugestivo título do livro de

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Otavio Ianni (1979) uma “contra-reforma agrária”. A edição do Estatuto da Terra (1964) forneceu alguma resposta às mobilizações junto com a expansão da previdência social ao campo (1971) através do FUNRURAL. Mas o modelo de desenvolvimento agrário passaria pelos Complexos Agro-Industriais (CAI´s), grandes propriedades mecanizadas.

A ampliação da previdência social ao campo, mesmo no contexto repressivo, teve como efeito não previsto a retomada das mobilizações. Os sindicatos rurais eram, por força da lei, as entidades responsáveis pela comprovação e concessão dos benefícios previdenciários o que forçou reaberturas de muitas organizações fechadas desde 1964. Foi nos anos 1970, em regiões como o Rio de Janeiro que os sindicatos rurais em ações coordenadas pela FETAG (Federação dos Trabalhadores da Agricultura) atuaram no sentido de impor uma nova imagem dos trabalhadores rurais, muitos deles colonos, sitiantes e arrendatários como posseiros, no que evidenciava a desconsideração da autoridade dos proprietários tradicionais obtendo em alguns casos a desapropriação para fins de reforma agrária na década seguinte (DEZEMONE, 2004b).

Esta ação efetiva dos camponeses contrasta com a percepção de setores das esquerdas do papel “revolucionário” que caberia aos camponeses desempenhar na luta contra a Ditadura Militar (RIDENTI, 2000). O debate político naquele período nas esquerdas considerava que os camponeses apoiariam a luta armada, e implicou na estratégia adotada pelo PCdoB (Partido Comunista do Brasil). Influenciado pelo maoísmo e pelo foquismo guevarista, desde 1966 o PCdoB enviava militantes para a região do Bico do Papagaio (Pará, Maranhão e o atual Tocantins) que atuaram na Guerrilha do Araguaia (1972-1974), esmagada pela repressão (GASPARI, 2002).

Em 1984, no curso da abertura política, o cineasta Eduardo Coutinho estabeleceu uma ponte entre as mobilizações observadas no começo dos anos 1980 e àquelas da década de 1960, com o premiado Cabra marcado para morrer. Tratava-se, na verdade, de dois filmes em um, produzidos com cerca de duas décadas de diferença, com linguagens cinematográficas distintas, com narrativas e enredos diversos que se

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cruzavam na trajetória de sua personagem central, Elizabete Teixeira, viúva de João Pedro Teixeira, líder da Liga Camponesa no Sapé, assassinado na Paraíba, em 1962. Cabra Marcado para morrer, ligava o período de forte mobilização popular, quebrada pela conjuntura autoritária, de repressão política, iniciada pelo golpe de 1964 – que forçou a interrupção do filme – ao quadro da abertura que levou ao fim do regime militar. Isso permitiu a retomada da produção cinematográfica interrompida, num momento de emergência de um novo ator do campo presente nas cidades: o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra). Adequado seria falar, nos anos 1980, de uma “redescoberta” do campo brasileiro, que tinha como ponto de partida as mobilizações de fins dos anos 1980, e de chegada os anos 1960, renovando o interesse pela conjuntura anterior ao golpe, da qual, emergiu a ação das Ligas, eclipsando seus atores concorrentes como o PCB e a Igreja e a opção pela luta armada.

Fundado em 1984, o MST impunha uma nova identidade de luta que reunia a questão do acesso à terra e da própria reforma agrária: o sem terra. Na redemocratização, empunhando essa bandeira, o MST recebeu crescente apoio e adesão de setores da sociedade até meados da década de 1990. Pesaram episódios que causaram comoção como o massacre de Eldorado dos Carajás (1996) e a Marcha Nacional pela Reforma Agrária (1997), que culminou com o recebimento dos manifestantes pelo então presidente da república, Fernando Henrique Cardoso.

Apesar da estratégia de ocupação de fazendas e prédios públicos não ser uma novidade no movimento camponês – eram empreendidas desde a década de 1960 conforme relatos da liderança José Pureza no estado do Rio de Janeiro (1982), no contexto da redemocratização elas funcionaram de forma espetacularizada como maneira de chamar a atenção da opinião pública e pressionar a intervenção e tomada de posição do Estado (MEDEIROS, 2007). Assim o MST e a identidade de sem terra colada ao movimento eclipsaram outras formas de percepção da ação política dos camponeses. Categorias sindicalizadas atuantes na CONTAG (Confederação Nacional dos Trabalhadores da Agricultura) e das FETAG’s são frequentemente apresentadas em noticiários em

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cadeia nacional como formadas por “sem terras”. Divergências profundas quanto às formas de atuação e luta são apagadas dessa maneira. Em Pernambuco, por exemplo, existem mais de quarenta associações que se denominam sem terra, rivais do MST e concorrentes na representação dos homens do campo.

Foi num momento de aumento das mobilizações que muitos críticos, inclusive antigos defensores, passaram a entender a reforma agrária como desnecessária e ultrapassada (MARTINS, 2000; GRAZIANO, 2004). Junto da expansão do agro-negócio e de modalidades de latifúndio considerados produtivos como nos setores de soja e cana-de-açúcar ocorreu num crescente a ilegitimação das ações do MST, no qual contribuíram, decisivamente, setores da imprensa. Atribuía-se ao agro-negócio a capacidade de gerar importantes divisas ao país, simbolizando progresso e desenvolvimento. Ir contra essa visão significaria, nessa ótica, a defesa do atraso. Ondas de ações judiciais e de medidas legais que inibiam atos foram adotadas como a proibição de desapropriação de fazendas ocupadas. Procurava-se ainda, apresentar ocupações como àquelas de prédios públicos ou instalações de multinacionais como a Monsanto como vitimas de depredação e vandalismo, sem expor qualquer tipo de motivações políticas por trás desses atos. 2

Associava-se dessa maneira a identidade de sem terra ao atraso, ao banditismo e à selvageria, em suma, às mesmas imagens preconceituosas usadas contra os que se mobilizavam no alvorecer da república. Como nas qualificações dos revolucionários franceses do século XVIII e republicanos brasileiros de fins do século XIX sobre a Revolta da Vendéia, as mobilizações atuais reproduzem ainda a hierarquização campo e cidade, identificando a cidade ao civilizado e o campo à barbárie. Tais representações evidenciariam o embate de projetos encampados pelos mais variados atores para a nação: a contenção das mobilizações e estímulo ao agro-negócio, considerado crucial para a inserção do Brasil 2 Levantamento realizado nos periódicos diários O Globo e Folha de São Paulo e nos semanários Época e Veja de 2005 até 2008 para a pesquisa Do Cativeiro à Reforma Agrária.

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no mundo globalizado; a visão de que o fim do campesinato é irreversível, face ao avanço industrial e urbano; num sentido oposto, a negação, na prática, através das mobilizações, da idéia de passividade que estaria na essência do povo brasileiro; o acesso à terra aos pequenos e médios produtores como chave para uma sociedade com justiça social; a re-significação do termo camponês, associado à responsabilidade ambiental e a um modo de vida positivo. Em comum nesses projetos, a exemplo da geração de 1930, o suposto de que o estudo do mundo rural contribuiria para o entendimento do Brasil na superação daquilo que se considera como problemas que, uma vez sanados, permitiriam avanços ao conjunto da nação.

DEZEMONE, M. Rural and Nation In the Brazilian Republic. DIALOGUS. Ribeirão Preto, vol.5, n.1, 2009, p. 277-297.

ABSTRACT: The urbanization process that Brazil passed during the second half of the twentieth century contributed for minimizing the recognition of the rural world importance for the material and symbolical building of the nation. The main goal of this article is to map the different visions which prevailed about rural world and peasantries along Brazilian republican history. It’s included representation about social rural movements and the place of rural into the debates about nation’s ways. The article resumes previously reflections published and the results of empirical research developed during the doctor ship degree named “Do cativeiro à reforma agrária” at Universidade Federal Fluminense (PPGH-UFF).

KEYWORDS: rural world; nation; peasantries; Brazilian republic

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O UNIVERSO CAIPIRA: PERMANÊNCIAS E PLURALIDADES NA REGIÃO DE RIBEIRÃO PRETO/

SP (1930/1970)*

Rodrigo de Andrade CALSANI**

Tiago Silva GIORGIANNI***

RESUMO: O historiador tem a preocupação constante em reconstituir o passado de sociedades, personagens e momentos. Conscientes disso. sabemos que na maioria das vezes não teremos repostas fáceis, e por isso, precisamos estar atentos às possibilidades e objetos de estudos que nos cercam. Falar do homem caipira não é apenas relatar o seu modo de vida - que já o é complexo - é também reconstruir sua experiência de vida, memória e convivência em um universo próprio, mas que interage com outras culturas, possibilitando o contato com a modernidade. Surge um problema. Esse caipira mantém suas raízes ou não? As permanências e as pluralidades na maneira de ser e agir não fazem parte de um mesmo contexto histórico? Este texto tem o propósito de trilhar algumas hipóteses e caminhos do que é ser um homem da terra, simples e caipira.

PALAVRAS-CHAVE: Caipira, experiência de vida, modernidade

* Este artigo é uma versão modificada do Terceiro Capítulo “O cotidiano na história de todos nós” do Trabalho de Conclusão de Curso em História “Entre o café e o açúcar: a experiência de vida do homem do campo na região de Ribeirão Preto (1940/1970)” apresentado ao programa de Graduação no curso de História Licenciatura Plena do Centro Universitário “Barão de Mauá”, Ribeirão Preto, São Paulo, Brasil, 2005; realizado sob orientação do Prof. Ms. Humberto Perinelli Neto.** Licenciado em História (2005) e Pós-graduado em História, Cultura e Sociedade (2007), pelo Centro Universitário Barão de Mauá, Ribeirão Preto/SP. Mestrando em História pela UNESP/FHDSS/Franca sob a orientação do Prof. Dr. Lélio Luiz de Oliveira. Docente da Faculdade Bandeirantes - FABAN - e da rede pública e particular do Ensino Fundamental e Médio em Ribeirão Preto/SP. *** Licenciado em História (2005) e Pós-graduado em História, Cultura e Sociedade (2007), pelo Cen-tro Universitário Barão de Mauá, Ribeirão Preto, SP. Docente da rede pública do Ensino Fundamental e Médio em Mauá/SP. É membro do Centro de Estudos da Modernidade e da Urbanização do Mundo do Café – UNESP/Franca (CEMUNC).

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Este artigo tem o compromisso histórico de identificar o homem caipira como um protagonista da História e que até hoje é estereotipado e discriminado. A historiografia brasileira contemporânea passou a se preocupar com esse “tipo” de objeto, mas estamos ainda do outro lado da margem, onde o lugar social influencia e nos condiciona as práticas anacrônicas rotineiras.

Muitos historiadores têm a convicção de que “vivem plenos de certeza de que o caminho que trilham é mais interessante, o único, aquele que se possa confiar” (PERINELLI NETO, 2005, p. 51). Os caminhos são os mais diversos, as leituras de mundo podem ser reinterpretadas a todo o momento, mas, precisamos romper o invólucro de nossas certezas absolutas e, então, passar a vivenciar e estudar mais de perto o homem do campo que perdura no turbilhão da modernidade, onde quase “tudo que é sólido desmancha no ar” (BERMAN, 1986).

As definições do ser caipira e sua história se confundem com a inferiorização de sua importância e o conhecimento que lhe é atribuído tem de pouca ou nenhuma serventia. Falar desse homem hoje é exemplificá-lo como um ser ignorante, desconfiado, vestido como um espantalho, remendado e que mal se comunica com o outro, o diferente.

Ser caipira é muito mais que o resultado da miscigenação do branco com o índio na formação brasileira pelo interior paulista. O caipirês denominado por Cornélio Pires é compreendido por muitos estudiosos como a definição de ser caipira, sendo que nem o mesmo tinha certeza absoluta sobre o que seria um:

Por mais que rebusque o étimo de caipira, nada tenho deduzido com firmeza. Caipira seria o aldeão [...] caipirismo é acanhamento, gesto de ocultar o rosto [...] E o caipira é sempre lavrador. Creio este último caso o mais aceitável. (PIRES in BRANDÃO, 1983, p. 11)

Utilizando-se da nossa Língua Portuguesa, por meio de um dicionário, temos a seguinte definição para caipira: “roceiro, matuto, acanhado; do interior do Estado de São Paulo” (BUENO, 1996, p.113).

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Não muito diferente do que citado anteriormente por Pires, a definição é superficial e rotulada, a complexidade desse universo rural é maior que a objetividade de alguns adjetivos acadêmicos.

A vida simples; um brasileiro

Não existem histórias sem sentido.Sou um daqueles homens que o sabem encontraraté mesmo onde outros não o vêem.Depois disso, a história se transforma no livro dos vivos,como uma trombeta poderosa,que ressuscita do sepulcro aqueles que há séculosnão passavam de pó. (Baudolino – Umberto Eco) O roceiro constituiu a sua vida pelo interior paulista, pelas

monções dos rios Piracicaba, Tietê até o encontro com o rio Paraná. Na roça, nas trocas de favores ou “presentes”, essa sociedade era o resíduo do bandeirantismo que caminhava rumo ao “Goiazes” (CÂNDIDO, 1987).

E não menos importante, para entendermos esse universo é necessário que a reflexão se faça a partir do caipira, para depois entendermos as estruturas, as malhas mercantis, os elementos sociais que faziam o cotidiano desse homem rústico e simples: “o certo é que é das pessoas que temos de partir, só depois poderemos falar das coisas” (BRAUDEL, 1995, p. 20).

Assim, é preciso conhecê-lo na sua sociedade de origem, como bem definido por Darcy Ribeiro:

A vida rural caipira [...] equilibra satisfatoriamente quadras de trabalho continuado e de lazer, permitindo atender às carências frugais a até manter os enfermos, débeis, insanos e dependentes produtivos. [...] Na verdade, exprime sua integração numa economia mais autárquica do que mercantil que, além de garantir sua independência, atende à sua mentalidade, que valoriza mais as alternâncias de trabalho intenso e de

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lazer [...] do que um padrão de vida mais alto através do engajamento em sistemas de trabalho rigidamente disciplinado. (RIBEIRO, 1995, p. 385).

Atentos e por acreditarmos nas possibilidades de uma História do Cotidiano, nos dedicamos a compreender a experiência do homem do campo; o caipira. Experiência: palavra tão complexa e importante para entendermos a relação humana com o processo histórico. Acreditamos que a definição de experiência de vida (THOMPSON, 1987) nos remete a uma compreensão melhor para entender o que era e o que ainda é ser um caipira.

Na época em que direcionou seus estudos na aproximação da linha marxista com o culturalismo, Thompson encontrou no conceito de experiência a solução prática para analisar comportamentos, condutas e costumes. Assim, mais que estrutura, pôde identificar o homem como agente histórico, um ser que dentro de suas possibilidades e cultura dinamiza a história, por meio de escolhas, valores e opiniões.

Rompendo com a postura tradicional acadêmica é que nos esforçamos por compreender as práticas que perfaziam o cotidiano dos trabalhadores rurais, segundo temas constituídos a partir da narrativa em torno das suas próprias histórias de vida. 1

Assim, para que conhecêssemos melhor esse sujeito elaboramos no Trabalho de Conclusão de Curso em História a discussão dessa temática com a intenção de elucidar e desmistificar algumas idéias a cerca do homem do campo (CALSANI, 2005). Também, e não menos importante, a escolha desse objeto se deve ao fato de ser uma história pertinente à realidade da região de Ribeirão Preto/SP e que nasceu por meio de conversas, prosas, com pessoas idosas que nos mostraram que o conhecimento se constrói também pela escola de vida, simples,

1 Fernand Braudel, inspirado em seu mestre Lucien Febvre, afirmou: “tudo é his-tória”. Por essa linha de raciocínio, baseado numa concepção antropológica e sociológica, é que acreditamos na importância desse sujeito histórico, cientes de que ele traz consigo a sua memória e vivência, que pode nos ensinar e nos tornar aprendizes nesse processo.

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difícil, vida caipira, rústica que nos remetem conhecer um pouco mais do Brasil e sua história. Sabemos dos vários tipos de caipira que estiveram na formação do interior paulista, desde os “Reis do café” até as pessoas mais comuns economicamente – trabalhadores, roceiros – e por opção de estudo, preferimos ater-se neste último.

Tivemos que ter o cuidado de dialogar com os livros e documentos já existentes com a história contada por pessoas que não faziam parte desse “hall” acadêmico. Como método foi necessário à utilização da história oral para dar voz a esse homens e mulheres caipiras. O olhar microscópico se fez necessário para que pudéssemos num jogo de escalas (LEVI, 1992), correlacionar com uma história conhecida por todos nós. A dialética marxista torna-se útil para que possamos entender a história vista de baixo (VAINFAS, 2002).

Nas conversas que tivemos com os depoentes para o TCC, percebemos atitudes simples e modestas, costumes que fortalecem a existência de cantos religiosos e de uma moral ancestral, bem como o labor em torno do cultivo agrícola; o amor a terra é evidente e ao mesmo tempo saudosista, pois muitos eram empregados e não mais proprietários de terras.

Relatos históricos anteriores já admitiam que a partir dos anos sucessivos a 1880, quando pouco a pouco o valor do café e, logo depois, o da cana, tornou vantajoso o uso exclusivo de grande parcela da terra para plantios de mercado, esses caipiras livres, depois revestidos como agregados, colonos, camaradas, começaram a ser expulsos das fazendas de café, e, bem mais tarde, seriam os trabalhadores volante de hoje (BRANDÃO, 1983). Reflexo de uma história de longa duração que constitui o cenário atual do interior paulista, em meio ao mar verde – cana-de-açúcar – com os maus tratos e uma remuneração vergonhosa aos “bóias frias”.

Nos relatos dos depoentes (foram cinco pessoas, sendo três homens e duas mulheres) encontramos a descrição da prática do cultivo de vários produtos agrícolas, tanto na própria área de produção quanto nas proximidades de suas casas. Para exemplificar esse cenário rural, social e

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cultural, a Sra. Tereza Pereira da Silva (79 anos, negra) nos lembrou:

[...]Ó, nóis coia arroz com a água por aqui (mostrou a altura do peito, onde batia a água). É... arroz, feijão, tudo de planta nóis fazia, algodão, aí nóis viemo coie laranja na fazenda Três Barras, depois da Fazenda Três Barrada, aí foi cana, cana, cana [...] (olhar distante e pensativa).

Podemos perceber que em uma simples fala identificamos o discurso de uma pessoa que percebe a policultura sendo substituída pela monocultura canavieira, o cansaço de uma vida inteira como mulher do campo, a dor física e espiritual, e, que, portanto, a terra que é a essência desse povo, ficaria cada vez mais distante de suas vidas, mas muito presente em suas mentes e corações.

A realidade de vivermos em um mundo globalizado, consumista, modista e portanto, moderno, tem suas armadilhas culturais, sociais e econômicas. O que importa é o sucesso pessoal, o progresso, a felicidade, a sedução, o encatamento por ter algo ou alguma coisa (SETUBAL, 2005).

Paradoxalmente, o caipira é a raiz, a tradição de outrora, e que possibilita entendermos o seu conhecimento de um mundo rural e urbano, que mantém seu prisma sobre o que é a vida, as pessoas, os amigos, a família, elementos esses que estão desaparecendo com o fortalecimento das chamadas indústrias culturais. A refeição, que antes era sagrada e em família passa a ser individualizada, silenciosa, quebrada pelo som da televisão e sua programação rotineira e sonolenta.

Não cabe aqui nos aprofundarmos sobre a nossa maneira de ser e sim procurar entender ao seu modo e estilo, a vivência caipira.

Os elementos do cotidiano caipira

A vida é uma escola,onde o viver é o livro,

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e o tempo o professor,onde alguns são sábios,porém, até hoje, ninguém se formou. (O profeta – Zé Geraldo)

Entre os anos de 1930 e 1970, na região de Ribeirão Preto, o trabalhador rural com seu modo caipira de ser, passava a se distanciar cada vez mais de suas terras, para labutar em outras. Tinha seus momentos de trabalho, lazer e religiosidade. Para uma melhor compreensão, optamos pela descrição do seu dia a dia, a maneira de se vestir, comer, morar, orar, trabalhar, descansar e até sonhar.

[...] Quando restringimos o tempo observado a duas pequenas frações, temos o acontecimento ou a ocorrência; o acontecimento quer-se, crê único; a ocorrência repete-se e, ao repetir-se, torna-se generalidade, ou melhor, estrutura. Invade a sociedade em todos os seus níveis, caracteriza maneiras de ser e de agir desmedidamente perpetuadas. [...] A maneira de comer, de vestir, de morar, para os diversos estratos, nunca é indiferente. E esses instantâneos afirmam também, de uma sociedade para outra, contrastes e disparidades nem todos superficiais. É um jogo divertido, que creio não ser fútil, o de compor estas imagens. (BRAUDEL, 1995, p.17)

A integração – tramas – entre trabalho, religião, lazer, entre outros, possibilita identificar a essência da prática caipira em contra partida ao avanço do progresso, da modernidade, da migração para a cidade. Será que a cultura caipira sobrevive? Para Antonio Candido, o homem do campo em contato com o ritmo urbano e com a economia geral possibilitou o rompimento das relações sociais estabelecidas anteriormente. Esse processo constante pode levar ao desaparecimento dessa cultura, pois desconfigura as condições de sua formação, existência e apoio. Antes era a família, a unidade de produção e consumo interno, de subsistência, agora é questão de sobrevivência do indivíduo pelos corredores agrícolas de outros.

Sabemos também que a modernidade transforma, reaproveita,

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reconstrói mundos e práticas “novas” a partir de uma essência, de um modelo pré estabelecido. Sendo assim, como nos lembra E. P. Thompson: “Toda experiência histórica é obviamente, em certo sentido, única.” (THOMPSON, 2001, p.79).

Para uma melhor compreensão e aprofundamento, passaremos a relatar os elementos da prática caipira, que se interpenetram e se complementam.

O vestuário•

Os trabalhadores tinham apenas uma roupa para trabalhar. Quando rasgava ou sofria alguma danificação era preciso costurá-la, remendá-la, fato esse lembrado nas festas juninas atuais de maneira até pejorativa. Se chovesse, tinham que usar a mesma roupa no dia seguinte, mesmo estando suja e úmida 2.

A respeito disso, a Sra. Mercedes Tottee Antoniazzi (73 anos, branca) descreve:

A roupa que nóis usava era o saiote, ele ficava duro de barro e chegava em casa com ele molhado, outra coisa Rodrigo que eu quero te fala, a gente trabalhava na roça e tinha espinho que se chama carrapicho. Aquilo era tristeza grudava tudo na roupa, aí meu pai coitado, nóis ficava com o saiote duro e ele pegava uma faca e começava a raspar daqui (mostrou a altura da cintura) até em baixo e as perna ficava tudo vermelha, eu não sei como nóis não morria, ficava as perna tudo vermelha por causa dos espinho, você ia tomá banho você não agüentava de tanto que ardia, num tinha um creme, nada...(risos) eu vou te contar uma coisa

2 Todos os depoentes quando questionados sobre as suas vestimentas mostravam mágoa por serem lembrados nas Festas Juninas “urbanas” como pessoas mal vestidas. Eles ci-tam que tinham uma roupa bonita, a única, para momentos de festas, bailes e casamentos e complementam que apesar da simplicidade não era remendada e sim limpa, não como são representadas nessas festas.

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(risos), a gente passava, pegava o sebo de vaca derretia ele e ponhava numa latinha, tinha umas latinhas antigamente que vendia manteiga. 3

Questionados sobre o uso de sapatos, responderam que trabalhavam descalços na época do café. Com o advento da cana-de-açúcar passaram a utilizar um sapato “tipo alpargatas”. Já para ocasiões de lazer, como bailes ou quermesses, possuíam apenas um par de sapatos. Esse mesmo calçado era utilizado em casamentos, batizados, velórios. Apenas quando bem velho, compravam outro, normalmente, à custa de vendas de galinhas ou de porcos, o que podemos supor uma economia de subsistência ou de abastecimento local (OLIVEIRA, 1997).

Seus “luxos” estavam no uso de roupas simples, do sal, do toucinho de porco e numa culinária diversificada oriunda principalmente da terra. Cada família fiava e tecia de algodão grosseiro as redes de dormir e a roupa de uso diário. A Sra. Mercedes, hoje moradora a muitos anos da cidade, também nos confessou não ter saudade desse tipo de vestuário, pois agora pode comprar várias roupas – sem grife – nas diversas lojas que inclusive dividem em “suaves” prestações, afinal, vivemos o ápice do consumismo, da indústria cultural.

A moradia•

As casas que moravam eram compostas de três dormitórios no máximo, chão batido, fogão de lenha do lado de fora da casa e cama de madeira com colchão de palhas. No período do café e da policultura, os trabalhadores moravam na fazenda, nas colônias. Segundo suas lembranças, as casas eram idênticas (tamanho, forma e cor), uma ao lado da outra e no centro desse espaço, uma grande árvore para momentos

3 Apesar da humilde descrição, encontramos uma mulher preocupada com suas condi-ções, vaidosa, que a sua maneira, criava fórmulas para melhoria da aparência e do as-pecto (mancha vermelha) causados pelos carrapichos ou pelo pé rachado de tanto ficar exposto a terra.

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de prosa, viola e estabelecido na fazenda, era o local de compra a prazo. 4 Quando recebia seu pagamento (uma vez a cada seis ou oito meses), o trabalhador rural pagava as dívidas contraídas e se comprometia com outras. Todas as dívidas eram assumidas e fogueira. Assim como cuidamos de cachorros ou de gatos em nossas casas, eles tinham também o hábito de conviver dentro de suas pequenas casas com bezerro. Até que, quando não passasse mais na largura da porta, o jovem boi mudava para o campo. Ao redor de suas casas várias hortas de verduras e legumes; alface, almeirão, mandioca, cenoura e couve, por exemplo.

O armazém, normalmente marcadas em caderneta em nome do pai da família, para ser pago na próxima colheita. Quando indagados sobre a sobra desse salário, os depoentes responderam que seus rendimentos permitiam, no máximo, pagar tudo o que deviam. As colônias foram sendo extintas e deram lugar ao trabalhador assalariado, volante e por isso, os homens do campo passaram a residir nas periferias das cidades, período esse em que a cidade de Ribeirão Preto passava ao cultivo canavieiro e também a um aumento desenfreado da desigualdade social, que existe até os dias de hoje.

Enquanto viviam em suas roças ou colônias, a população caipira preenchia a seu modo suas condições mínimas de sobrevivência. Essa vida rural contribuía ao equilíbrio da comunidade no trabalho continuado, o que permitia atender ás carências frugais e até manter os enfermos, insanos, dependentes improdutivos. Exprimia sua integração econômica mais autárquica, livre, do que mercantil, que além de garantir sua independência, atendia sua mentalidade, suas expectativas, na forma tradicional e não em um engajamento de sistemas de trabalho rigidamente disciplinado, em usinas de cana de açúcar, como “bóia fria”, por exemplo. (RIBEIRO, 1995, p. 385).

O trabalho•

Independente da condição física (doente, machucado, etc), o 4 O armazém era utilizado principalmente para compra de farinha, óleo e linguiça.

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trabalhador era obrigado a ir para o campo. A obrigatoriedade do trabalho também superava as alternâncias das condições climáticas: debaixo de sol e chuva, cabia a estes homens e mulheres dedicar-se a carpir, colher e transportar o café ou a cana.

Outro fator obrigava o homem do campo a trabalhar nessas condições relatadas. O que ganhavam era pela produção e se não trabalhassem poderia faltar o arroz e o feijão para a toda a família, pura questão de sobrevivência. O compromisso com a família e os filhos era notável e o mais importante.

Segundo o Sr. João Roque (63 anos, negro) nunca havia dormido durante a semana em plena luz do dia até o dia em que adoeceu e não conseguiu ficar de pé:

Muitas vezes tinha que i, e trabalhava o dia inteiro. Eu me lembro duas vezes, que eu sai de casa numa gripe, numa gripe...e cheguei lá na roça e não guentei, vim bora às 12: 00 hora, cheguei em casa minha mãe fez um chá, dormi quando acordei, era quase 6:00 hora da tarde, acordei, troquei de roupa, peguei o garrafão de água e ia trabalhá, porque eu nunca dormi de dia, eu fiquei meio passado, e nem percebi que ainda era o mesmo dia. Outro dia, com gripe e febre, fui viajá pra São Paulo, quando eu voltei não tinha nada.

Se a escravidão não existe mais, precisamos encontrar um sinônimo para explicar essa situação vivenciada por esses protagonistas. Antes dessa forma intensa de trabalhar nas empresas agrícolas, o roceiro vivia em vizinhança solidária, organizada, onde cada núcleo produzia uns poucos artigos para o mercado incipiente, como queijos, linguiça, cereais, farinha de mandioca, galinha, porcos, entre outros produtos.

Um lavrador caipira trabalhando sozinho poderia levar seis dias para plantar milho, no quadrado de um alqueire de chão; dois dias para riscar e um para semear. O mesmo poderia “gastar” até vinte dias para semear um alqueire de feijão (CÂNDIDO, 1987, p.53). Cada tipo de planta que habitava o mundo do caipira tinha o seu ciclo de vida, mas com a

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extensão dos latifúndios pertencentes a um grupo dominante interessado na produção em massa, rápida, intensa e lucrativa transformaria esse cenário, e as práticas desse homem simples eram substituídas pela monocultura interessada a alguns, principalmente ao mercado externo e moderno. O homem agora é condicionado pelo tempo cronológico, das safras, dos objetivos e metas de vendas dos usineiros; o tempo da natureza ficaria para o plano da memória.

O lazer, a religiosidade e os causos•

Devido ao trabalho constante, realizado de segunda feira a sábado, das seis horas da manhã até as dezessete horas, em média, restava a ele o domingo para o dia de seu lazer. Nesse dia tão esperado acontecia de tudo um pouco. Era o dia do jogo de futebol entre as fazendas com campeonatos e taças para o time campeão e o melhor jogador. Também era ocasião para jogar baralho, ir até a missa ou quermesse e finalizar com o baile. Além disso, eram organizados nestes dias eventos que fortaleciam os laços comunitários, tais como batizados e casamentos.

A religião era outra aliada para a sobrevivência desse homem do campo. Muitas vezes, não tinha uma igreja próxima para rezar ou ir até uma missa, mas ao seu modo, marcado pelo sincretismo religioso brasileiro, o trabalhador relatou que em todas as circunstâncias pedia a Deus para que lhe protegesse e abençoasse o dia seguinte. Por meio de novenas, terços, cantorias, rezas, homens e mulheres se uniam para orar pela alma de um falecido próximo, pela boa colheita, pela saúde de seus entes queridos, enfim, eram crentes a Deus e ao mesmo tempo líderes religiosos, haja vista a falta de padres ou pastores no meio rural.

Algumas lembranças dos entrevistados chegam até parecer lendas, contos ou como preferem chamar, causos. Certa manhã, os trabalhadores foram até uma cruz que ficava bem no meio do cafezal, por não haver igreja próxima, rezavam nesse local, principalmente nos dias que precisava chover para que a plantação não fosse em vão. Segundo o Sr. Jose de Miranda (71anos, branco): “Tinha uma cruz no campo pra

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reza e a gente ia cantando, a gente despejava água na cruz e por incrívi que pareça, a gente moiava, parava a seca, não dava tempo de chegar em casa, chovia”.

Essas práticas de sociabilidade eram intensamente marcadas pela religiosidade herdada tanto dos jesuítas, como das manifestações indígenas e africanas, origem do povo brasileiro, bem explanado por Darcy Ribeiro. Dessa herança construiu-se um sincretismo que incorpora benzedeiras, assombrações, histórias folclóricas, elementos sobrenaturais; um povo católico mesclado às culturas africanas e indígenas, características marcantes na formação da religiosidade brasileira, exemplo: festas do Divino Espírito Santo, Folia de Reis, as Congadas, entre outras.

Em diferentes formas de demonstração da fé o que se destaca é o aspecto mágico que molda o imaginário dessa cultura popular. A religião propicia a construção de uma rede de solidariedade, de forma igualitária entre seus adeptos.

O baile•

A festa quer lembrar.Ela quer ser a memória do queos homens teimam em esquecer – e não devem – fora dela. Séria e necessária, a festa apenas quer brincar com os sentidos,o sentido e o sofrimento. (Carlos R. Brandão)

É com muita saudade que todos os depoentes recordam das danças que o baile proporcionava, pois era um momento especial de sociabilidade, em que ocorria a integração de trabalhadores de várias fazendas. Era o encontro de várias comunidades rurais que relembravam e praticavam suas cantorias, suas melodias e o dedilhar da viola caipira. Nestas ocasiões, aproveitavam para conversar e, quem sabe, até namorar. Tais ocasiões especiais vividas no passado são relembradas com certa

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amargura sob a luz das condições que marcam o presente:

As festas...eu gostava mais de futebol e de bailinho, eu adoro, quando jovem no domingo, e no sábado a noite os bailinhos, e as vezes um baralinho, um truquinho. Agora o trabalhador da lavoura, hoje nem o futebol ele pode jogá, porque o futebol seria no domingo né, todo mundo sai no domingo, hoje mesmo, os trabalhadores não gostando de trabalhar no domingo os usineiros impõe eles pra trabalhar, até o futebol eles não podem ter mais, até esse lazer tiraram deles, hoje ele (usineiro) determina o dia que a pessoa tem que ficar em casa, ainda bem que aposentei. ( Sr. João Roque)5

Os bailes, os festejos, os jogos de outrora foram sendo modificados, reinterpretados em meio ao avanço da modernidade. Em outras palavras:

[...] ela (a festa) não é mais a cerimônia festiva com motivação tradicional e vivida através de uma sucessão de rituais, é sim a dimensão de um espetáculo, algo que se transmutou de ser vivido e visto pela pessoas do lugar em algo para ser visto e vivido por quem paga [...] É a festa da modernidade, da celebração do mundo urbano [...] com a criação de novos objetos e rituais existe a ressignificação dos antigos (rurais/tradicionais). (GUIMARÃES, 1997, p. 33-34).

Considerações finais: vivências caipiras e a modernidade

Cada pessoa tem seu jeito de ser, seja aprendendo com o tempo, ou aprendendo com os livros [...] (Júlia M. Barosela)

O caipira está na cidade. Quando Berman nos aponta as

5 Atualmente, o trabalhador tem menos tempo para sua própria satisfação, as folgas não são mais fixas aos domingos. Ele trabalha cinco dias e folga um, ou seja, folga qualquer dia da sema-

na. Àquele futebol, baile, baralho de outrora são partes da memória tão saudosa.

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transformações ocorridas na Europa, principalmente na França e nos Estados Unidos entre os séculos XIX e XX, a arquitetura moderna serve como modelo de embelezamento e urbanização, e ao mesmo tempo, esconde as fragilidades sociais daquelas regiões; os pobres, a barbárie, ficavam a alguns quarteirões das principais avenidas e estradas, muitas vezes sem ter o que comer. Com o caipira em nossa região a situação se assemelha a essa aventura na modernidade, salvaguardando as especificidades. Algumas indagações: será que o caipira de hoje é o mesmo de outrora? Sofreu alguma influência urbana e moderna? Algumas marcas da cidade demonstram a raiz da cultura caipira: pregões de pamonha; caminhões de fruta; vendedores de biju com matracas; afiadores de faca; vendedores de doces em carrinhos; bancas com ervas naturais; casas com pequenas hortas; o contraste dos veículos modernos com as carroças e cavalos; as procissões religiosas; as brincadeiras infantis de rua; os programas de rádio AM; além de outras manifestações culturais numa fusão do mundo caipira e o mundo sertanejo nordestino, por exemplo.

Em São Paulo, capital, muito distante da bela avenida Paulista, existe uma imensa periferia preenchida por pessoas simples, que eram do campo e que mantém suas relações comunitárias muito próximas àquelas vivenciadas em pequenas cidades do interior (SETUBAL, 2005). Na região de Ribeirão Preto o modelo se espelha. Alguns bairros de Ribeirão Preto são parecidos com outros da Europa ou Estados Unidos, exemplo da Zona Sul. E concomitantemente, nessa mesma região encontramos também um dos bairros mais pobres da cidade; o Jardim Progresso. Que ironia do destino, um nome que não condiz com a sua realidade de miséria e violência, camuflada por altos prédios luxuosos a poucos quarteirões dali. O homem simples que hoje precisa sobreviver da agricultura passa a conviver em bairros periféricos nos sentidos econômico, social e geográfico, esperando por dias melhores, afinal, a fé é uma marca que lhe é própria, de continuar a persistir e a perseverar nas permanências e

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pluralidades que a vida proporciona. Homens continuam embaralhar os conteúdos da história, repetindo entre si as mesmas figuras [...] (F. F. Hardman).

CALSANI, Rodrigo de Andrade; GIORGIANNI, Tiago Silva. The universe caipira: pluralidades stays in the region of Ribeirão Preto / SP (1930 / 1970). DIALOGUS. Ribeirão Preto. v.5, n1, 2009, p. 299 - 317.

ABSTRACT: Historian has a constant concern in the past to rebuild societies, characters and moments. Aware applicable know, that most of the time we have not restored easy, and therefore, we need to be attentive to the possibilities of studies and objects that surround us. Speaking of the man caipira not only report its way of life - which is already the complex - is also rebuild their experience of life, memory and coexistence in a universe itself, but that interacts with other cultures, enabling the contact with modernity. Surge a problem. This caipira maintains its roots or not? The stays in pluralidades on how to be and act not part of the same historical context? This text is the purpose of assumptions and paths along some of what is to be a man of the earth, simple and caipira.

KEYWORDS: Caipira, experience of life, modernity, history of the everyday.

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CAFÉ E INDÚSTRIA EM RIBEIRÃO PRETOO CASO DA ELECTRO-METALLÚRGICA BRASILEIRA

S.A. (1921 – 1931)

Paulo Henrique Vaz LARA*

Lilian Rodrigues de Oliveira ROSA**

RESUMO: O presente artigo resulta dos trabalhos de pesquisa realizados por Paulo Lara, sob a orientação da profª Ms. Lilian Rosa para obtenção do grau de licenciado em História. O texto discute a instalação da Electro-Metallúrgica Brasileira S.A. entre 1921 e 1931, em Ribeirão Preto, analisando a influência de uma indústria de base numa cidade cuja atividade econômica predominante era a cultura cafeeira. O objetivo é compreender dentro da breve existência da Metalúrgica, a importância do capital dos cafeicultores e o papel que seu principal responsável, Flávio Uchoa, desempenhou na sua realização, além dos possíveis motivos da falência precoce da Metalúrgica.

PALAVRAS-CHAVE: Café; Indústria Metalúrgica; Ribeirão Preto-SP.

Para analisar o contexto que envolveu o funcionamento, em Ribeirão Preto, dos fornos elétricos Electro-Metallúrgica Brasileira S.A., também conhecida como Siderúrgica Epitácio Pessoa, presidida por Flávio de Mendonça Uchoa, entre 1921 e 1929, foi preciso compreender o significado histórico da presença de uma indústria pesada numa cidade

* Graduado em História pelo Centro Universitário Barão de Mauá.** Graduada em História e Geografia pelo Centro Universitário Barão de Mauá (CEUBM). Mestre em História pela FHDSS/UNESP e doutoranda pela mesma instituição. Coordena-dora e professora do núcleo de Geografia e História da CEUBM, Ribeirão Preto (SP).

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cuja base econômica era o café. Partindo de um quadro teórico bem definido sobre o

desenvolvimento do café e da indústria no Brasil, o presente trabalho utilizou fontes documentais primárias e secundárias, como os jornais “Diário da Manhã” e “A Cidade”, as escrituras da Metalúrgica, contidas nos documentos da empresa Força e Luz de Ribeirão Preto, parte integrante do acervo do Arquivo Público e Histórico e as Atas da Câmara Municipal. Todas os documentos serviram para reavaliar os dados apresentados pela historiografia tradicional sobre a industrialização brasileira com ênfase para o estudo de caso de Ribeirão Preto.

A partir da década de 30, ocorreram profundas transformações econômicas no Brasil, revelando a “transição da economia capitalista exportadora para a economia capitalista industrial” (SANTOS, 1997). Precocemente, elementos dessa transição foram detectados em Ribeirão Preto, já na década de 20, fato que pode ser explicitado pela implantação da primeira indústria a produzir aço em larga escala no Brasil à base de energia elétrica.

Analisando alguns dos principais trabalhos acadêmicos realizados sobre a economia ribeiroprena no início do século XX, foi possível perceber uma transformação do processo de urbanização e de industrialização vivido pelo Estado de São Paulo, fomentado pela prosperidade oriunda do café. Desta forma, para analisar o caso da Cia. Metalúrgica foi prioritário estabelecer uma visão de conjunto do contexto econômico na região durante a década de 1920, levando em consideração os impactos e as transformações das atividades desenvolvidas no município, particularmente as relativas a economia cafeeira, que, com sua importância, motivou o desenvolvimento da cidade e do país.

Nesse período, mesmo que a industrialização se revelasse um processo embrionário em Ribeirão Preto, o seu estudo tem um papel importante para entender a mobilidade do capital que circulava na região, e o poder político e econômico dos coronéis do café, no ápice da chamada “política café-com-leite”, quando a economia brasileira como dependente quase que exclusivamente das exportações de café, como discute Roberto

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Catelli (1992).Além de Catelli, outros estudos revelam-se importantes para a

compreensão do tema abordado no presente artigo, em particular para a discussão sobre a relação entre o café e a industrialização brasileira. É o caso de Wilson Suzigan (1986) em seu livro “Industrialização Brasileira: Origem e Desenvolvimento”, no qual discute o capital cafeeiro na origem da indústria, destacando quatro principais teorias relacionadas a esse assunto. A primeira delas refere-se a “teoria dos choques adversos”:

[...] A ocorrência de um choque adverso (crise no setor exportador, guerras, crises econômicas internacionais) afetando o setor externo da economia, aumenta os preços relativos das importações ou impõe dificuldades à importação. Em conseqüência, a procura interna, sustentada por políticas econômicas expansionistas, desloca-se para atividades internas substituidoras de importação. (SUZIGAN, 1986)

A segunda teoria, “a ótica da industrialização liderada pela expansão das exportações”, apresenta uma interpretação diferenciada ao estabelecer:

[...] uma relação direta entre o desenvolvimento do setor exportador e o desenvolvimento industrial (significando que a indústria se desenvolveu durante períodos de bom desempenho das exportações de e se retardou durante períodos crise no setor exportador) e ao caracterizar esse desenvolvimento industrial como um processo abrangente de industrialização e não limitado à produção de bens de consumo como uma extensão do setor exportador. (SUZIGAN, 1986)

Já a terceira teoria, “a ótica do capitalismo tardio”, analisa:

[...] a expansão da economia exportadora de café do Estado de São Paulo. Essa teoria é essencialmente uma revisão da doutrina Cepalina Tradicional, pois segundo ela existe a substituição da tradicional dicotomia de fatores externos versus internos como motores do

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crescimento, por uma interpretação que visualiza o crescimento industrial como primordialmente um resultado do processo de acumulação do capital no setor agrícola-exportador, o qual, por sua vez, depende da procura externa (SUZIGAN, 1986)

A quarta e última das teorias, “a ótica da industrialização intencionalmente promovida por políticas do governo” é baseada:

[...] nas questões que envolvem proteção tarifária e da concessão de incentivos e subsídios. De fato, a intenção declarada desta escola de pensamento é de contestar a afirmação, usualmente encontrada na historiografia brasileira, de que o papel do Estado na promoção do desenvolvimento industrial no período anterior a 1930 foi mínimo ou não significativo. Argumenta-se que, ao contrário, o Estado desempenhou um papel positivo, primeiramente através de uma proteção alfandegária deliberada e, em segundo lugar, através da concessão de incentivos e subsídios a indústrias específicas. (SUZIGAN, 1986)

Com base nesse autor, e compreendendo que não é possível determinar um fator único para o desenvolvimento industrial no Brasil, formulou-se, a partir do caso nacional, a hipótese do desenvolvimento industrial de Ribeirão Preto nas três primeiras décadas do século XX, como resultante do acúmulo do capital cafeeiro, associado ao incentivo do Estado e submetido às flutuações econômicas internacionais que influenciavam nas exportações de café. Todos esses elementos devem ser analisados a partir da existência de um excedente de energia elétrica na região, fato importante para a compreensão da influência do principal acionista da empresa de Força e Luz de Ribeirão Preto, Flávio de Mendonça Uchoa na instalação da Electro-Metallúgica.

A historiografia clássica aponta o papel do capital cafeeiro na indústria e da visão empreendedora das suas respectivas classes como fatores importantes para o desenvolvimento. No caso de Ribeirão Preto são perceptíveis esses dois elementos de análise, evidenciando a não existência de um conflito entre latifundiários e burgueses industriais,

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pelo contrário, o que teria ocorrido foi uma aproximação entre os interesses desses dois grupos na instalação da Metalúrgica e em outros empreendimentos.

Partindo da premissa que o processo de industrialização no Brasil passa pelo desenvolvimento da cultura do café, tanto do ponto de vista econômico como político, corrobora-se a hipótese que foi o capital acumulado na produção cafeeira e as legislações trabalhistas do campo, fundamentando as relações entre Estado e trabalho, na década de 1930 e em períodos anteriores, que fomentaram a industrialização nacional.(CASTELLI, 1992)

Na região de Ribeirão Preto, conhecida como “oeste novo”, o café, segundo Luciana Pinto (2.000), foi a primeira atividade agrícola de exploração intensiva da terra, diferente de outras áreas como Campinas e Rio Claro que tiveram a cana-de-açúcar como fonte dos recursos destinados à cultura cafeeira.

No início da ocupação da região ribeiropretana, na primeira metade do século XIX, a mão-de-obra utilizada foi a escrava, numa economia baseada na “cultura de subsistência” e na criação de gado que permitiu a abertura das matas e as primeiras ocupações efetivas da terra. (PINTO, 2000)

A partir de 1850, com as “Leis de Terras”, as questões que envolviam as disputas de terras foram sendo resolvidas, acontecendo a legalização das posses.1 Por volta de 1871, a terra passou a ser ocupada com o café para exportação, resultando na intensificação do deslocamento de fazendeiros do Vale do Paraíba para Ribeirão Preto, é o caso, dos irmãos do Val, em 1877, e de Martinho Prado Júnior, em 1885, que adquiriram fazendas e contribuíram, juntamente com outros fazendeiros, para que a região atingisse a prosperidade como novo centro cafeeiro.

Outro bom exemplo é o de Luís Pereira Barreto, que introduziu a variedade do café Bourbon na região, tendo um resultado satisfatório de produtividade, colaborando ainda mais para a divulgação das terras 1 Um dos mais conhecidos episódios é a disputa entre as famílias tradicionais (Reis de Araújo e Dias Campos), que foram os pioneiros na região.

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de Ribeirão, cujos resultados das análises foram descritos no “Jornal Província de São Paulo”.

A partir desta fase, o aumento da produção de café foi crescente, tomando como ilustração o caso do coronel Francisco Schmidt que, em 1906, obteve uma produção de 300 mil sacas de café, em 1912, chegou a possuir o maior cafeeiro do Brasil com 7.885.154 pés, contando com quase sete mil trabalhadores dentro das suas dezenas de fazendas, administradas a partir da sede da Monte Alegre, hoje Museu Histórico e de Ordem Geral “Plínio Travassos dos Santos”. Com esses números de um único grande fazendeiro, percebe-se como a região consolidou a cultura cafeeira.

Um fator que ajuda a explicar o desenvolvimento dessa cultura, é a chegada da estrada de ferro Mogiana, em 1886, que intensificou e facilitou o transporte do café produzido na região para o porto de Santos, de onde era exportado para a Europa e para os Estados Unidos.

A riqueza do café associou-se ao poder político. A Ribeirão Preto da primeira república foi marcada pela “política do café-com-leite”, num típico caso do coronelismo, do qual a cidade foi um exemplo clássico, quando se destacavam alguns homens que usavam o poder político local como meio de defender sua base econômica da cidade, o café. (WALKER, 2000)

Nessa política os interesses privados dos fazendeiros se confundiam, ou se sobrepunham aos interesses públicos. O poder alternava-se entre os coronéis Francisco Schmidt e Quinzinho da cunha, chefes políticos do PRP local e donos de fortunas advindas das plantações de café.

A renda gerada pelo café transformou Ribeirão na Petite Paris, com suas construções influenciadas pelos padrões europeus, principalmente, francês e italiano, como estudou Valéria Valadão (1996) em sua pesquisa sobre a evolução arquitetônica da cidade.

Os fazendeiros enriquecidos com o café construíram imponentes palacetes na região central, alguns dos quais perduram até os dias atuais, como o casarão da família Junqueira, que hoje abriga a biblioteca Altino

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Arantes. (VALADÃO, 1996)Preocupados com a infra-estrutura necessária ao desenvolvimento

econômico, os cafeicultores influenciavam em serviços públicos como saneamento básico, limpeza pública, água e esgoto, implantada por Flávio de Mendonça Uchoa, construção de ruas, dentre outros. Esses serviços melhoraram a qualidade de vida do ribeiropretano e transformaram a face da cidade nas primeiras décadas do século XX, gerando uma estrutura que foi fruto direto ou indireto da riqueza do café.

Neste período, a cidade vivia uma fase de prosperidade e atingia um alto nível de desenvolvimento econômico, que lhe conferiu o epíteto de “capital do café”. Parte do capital excedente desta produção era destinada a outros setores, em particular o comércio e serviços. Todo esse contexto econômico favorável permitia o investimento por parte dos fazendeiros de café, em algumas indústrias de pequeno porte e até mesmo de grande porte, como a Electro-Metallúrgica Brasileira.

Ribeirão Preto desenvolveu uma significativa diversificação no seu quadro econômico, caracterizada pela proliferação de estabelecimentos comerciais e industriais, como a Cervejaria Antártica Paulista, inaugurada em 1911. Dentro deste contexto de crescimento é importante frisar o papel dos imigrantes que, desde sua chegada, alteraram profundamente todas as relações de trabalho e acabaram por consolidar a fama de centro regional de comércio do município.

Apesar de num primeiro momento servirem de mão de obra nas lavouras de café, logo ocuparam espaços nos diferentes setores da economia local, fato justificado por possuírem experiência em algumas profissões urbanas nos países de origem, gerando mão-de-obra capacitada para o trabalho em empresas de grande porte como é o caso da Cia. Metalúrgica. (LAGES, 2004)

No gráfico abaixo se tem uma melhor percepção do processo de desenvolvimento da atividade industrial em Ribeirão Preto, entre 1890-1924, observe o gráfico abaixo (PINTO, 2000):

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27

98

3344

119

0

50

100

150

1890 1902 1904 1914 1924

Evolução da indústria em Ribeirão Preto, 1890 - 1924

GRÁFICO 1: Evolução da indústria em Ribeirão Preto, 1890-1924. Fonte: PINTO, L. S. G.. Ribeirão Preto: A Dinâmica da Economia Cafeeira de 1870 a 1930. Araraquara; Unesp, 2000.

É possível perceber o aumento do número de indústrias no início do século XX, sobretudo nos anos 20, quando a Cia. Metallúrgica foi inaugurada. Em 1914, é possível observar um ligeiro aumento das fábricas, que passam de 33 para 44. Contudo, ao estabelecer comparações com os anos de 1902, o número de fábricas de 1914 é 44,89% menor. Diversas fábricas de 1902 faliram e reapareceram posteriormente, como é o caso das indústrias do ramo de calçados que, em 1902, eram 25, passaram a não existir em 1904, para reaparecerem em 1914, o mesmo ocorrendo com as fábricas de cervejas.

Em 1924, ocorreu um grande aumento no número de estabelecimentos industriais, quase 280%, passando de 44 para 119. É perceptível o avanço da diversificação no quadro de empreendimentos, existindo novos ramos, como a indústria farmacêutica, que não existia anteriormente, dentre outras.

Mesmo sendo a siderurgia um ramo secundário e de pouca expressão em Ribeirão Preto, por não conseguir espaço, ter dificuldades de competir com outras atividades econômicas e por caracterizar-se por um investimento alto e de retorno demorado, existiu uma tentativa ousada

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de implantação na cidade de indústria pesada. O idealizador da Metallúrgica foi Flávio Uchoa, bem como

de uma Usina Hidrelétrica, da Empresa Força e Luz e Água e Esgoto, todas instituições fundamentais para o crescimento de Ribeirão Preto, oferecendo infra-estrutura básica para o desenvolvimento de indústrias de bens de consumo.

Após construir a Usina Hidrelétrica, em 1919, Flávio Uchoa iniciou a arrojada iniciativa da construção da metalúrgica, pois entendia que Ribeirão Preto, com sua situação geográfica privilegiada como ponto intermediário entre o litoral e o interior, não deveria ficar apenas atada à produção cafeeira.

Para esta empreitada, contou com apoio da influente família Prado e, sobretudo, com o capital dos grandes cafeicultores, que representavam 1/3 dos acionistas da Usina. Totalizando 91 acionistas, além dos lavradores, estavam entre os eles advogados, proprietários, “capitalistas”, comerciantes, banqueiros, médicos e 07 empresas, entre elas a Cia Paulista, a Empresa Força e Luz e o Banco de Comércio e Indústria, entre outras.

Lista de ações e acionistas da Cia. Eletro-Metalúrgica Brasileira S/A.Nomes Número de ações divididas em

200$000 Réis cadaEmpresa Força e Luz de Ribeirão Preto 12.500Cia. Intermediária Paulista 1.000Flávio de Mendonça Uchoa 905Osório da Cunha Junqueira 750Sylvio Alvares Penteado 500Caio da Silva Prado 500Martinho da Silva Prado 500Manoel Maximiano Junqueira 500Joaquim da Cunha Diniz Junqueira 500Theodomiro De Mendonça Uchoa 500Francisca Silveira do Val 500Cinco outros fazendeiros 500Total de Capital 6mil contos de RéisTotal de acionistas 91

Tabela 1: Lista de ações e acionistas da Cia. Eletro-Metalúrgica Brasileira S/A.

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Dentre os apontados no gráfico 2 como lavradores, estavam alguns dos nomes mais influentes da política e da economia local como o Coronel Quinzinho da Cunha, Francisca Do Val, uma das seis mulheres acionistas da Usina, e outros. Uchoa aparece com uma participação efetiva não só advinda de suas ações, como de outra empresa de sua propriedade, a Empresa Força e Luz de Ribeirão Preto.

acionistas por profissão

0 10 20 30 40

lavrad o r

cap it alist a

ad vo g ad o

p ro p r iet ár io

ind ust r ial

co merciant e

B anq ueiro

eng enheiro

co missio nár io

mag ist rad o

méd ico

f az e cap it alist a

co rret o r

neg o ciant e

co nt ad o r

p esso a jur í d ica

GRÁFICO 2: acionistas da Electro-Metallúrgica S.A. em 1921.

Santos (1997) discute a transferência de capital do setor agro-exportador para outros setores, como o da indústria. Este autor afirma

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que, neste período, os cafeicultores também atuavam como agiotas e em outras atividades, como investimentos em ações, imóveis, bancos, etc. Esta hipótese pode ser confirmada pelos dados apresentados pelo gráfico na localidade de Ribeirão, no qual um fazendeiro também se apresenta como “capitalista”, ou agiota, e onde podemos encontrar 30 lavradores investindo alto num empreendimento consideravelmente arriscado para a época.

No gráfico 3, é possível observar a origem desse capital investido na Metallúrgica, caracterizado como 100% nacional, concentrando-se em investidores de Ribeirão Preto, com 33 acionistas e São Paulo capital, com 41 acionistas. Os demais investidores originavam-se de outras localidades.

0 20 40 60

Franca

Ribeirão Preto

São Paulo

Cravinhos

Christina MG

Orlândia

Bento Quirino

Batatais

Santos

Rio de Janeiro

Jaú

Bebedouro

GRÁFICO 3: acionistas por origem

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Além do capital advindo do café, a instalação da Cia Metallúrgica foi possível, também pela disponibilidade de energia elétrica, sendo a primeira da América Latina a usar essa fonte de energia para produzir aço. Outro fator relevante foi a visão de negociante de Flávio Uchoa, que percebia o crescimento do Estado de São Paulo e contava com alto excedente de energia elétrica da Empresa Força e Luz, que produzia energia a baixo custo e aumentava seus lucros ano a ano. Além disso, existiam jazidas do minério de ferro a 137 km, próximo ao município de São Sebastião do Paraíso, no Morro do Ferro em Jacuhy. Todos esses fatores engendraram, em 1921, a existência de uma breve, mas significativa indústria de base na cidade.

A Electro-Metallúrgica Brasileira S.A. contou em sua instalação com a adesão do Dr. João Alves Meira Júnior, sendo ele o primeiro presidente desta companhia, construída numa área de 600.000 m2 no bairro Tanquinho pela então companhia norte americana, The Corning Incorporated Company Lmid New York. (GUIÃO, 1922)

A construção apresentava escritórios, corpo central e almoxarifado, e o que mais chamava atenção eram os dois fornos elétricos de material importado da Suécia com tijolos refratários, laminadores e resfriadores, cujo objetivo era transformar guza em aço, para diferentes fins.

Os profissionais envolvidos eram engenheiros e especialistas que vieram da Suécia e trabalharam junto aos jovens engenheiros brasileiros, Joaquim Desidério de Matos, Almiro Pedreira, Leandro Dupre, José Pontual e seu filho recém-formado, Martinho Prado Uchoa e ainda os experientes Azevedo Queriga e J.L. Hodge da Empresa Força e Luz.

A empresa obteve isenção de direitos aduaneiros sobre máquinas, matéria-prima, equipamentos, etc., para a construção e operação da aciaria e exploração das suas minas. Além desses incentivos, o Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio, foi autorizados a emprestar 5.000 contos à Metalúrgica. (SUZIGAN, 1986)

Tendo a escritura assinada em 09 de abril de 1920, a sua inauguração oficial aconteceu em outubro de 1921, com a presença de autoridades como o Presidente da República Dr. Epitácio Pessoa; o

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Ministro da Indústria e Comércio, Pires do Rio; o Presidente do Estado de São Paulo, Washington Luiz; o Prefeito João Rodrigues Guião e personalidades de São Paulo e região como o Dr. Veiga Miranda, ministro da Marinha e ex-prefeito de Ribeirão Preto. (CIONE, 1993)

Na primeira metade de 1923, a Cia Metalúrgica contabilizou uma produção de 6.000 toneladas de barras e vergalhões de aço, mostrando, naquele momento, que poderia ter um futuro promissor. Mesmo não atingindo a produção projetada a indústria conseguiu fazer jus a um prêmio concedido pelo governo federal para a usina que atingisse uma produção de 5.000 toneladas de aço em um ano. Esse episódio corrobora o apoio e o interesse do Estado no desenvolvimento da indústria de aço neste momento.

Outro fato que merece ser analisado e que também revela a importância da Metalúrgica, foi o fornecimento de toda ferragem para a construção do maior edifício da América do Sul, em 1924, o Edifício Martinelli em São Paulo, composta de aço classificado como de ótima qualidade, e até mesmo fomentando novas indústrias conexas que ali tinham a sua fornecedora. (SUZIGAN, 1986)

Apesar dos elementos já apresentados revelarem a importância da metalúrgica, esta não conseguiu uma consolidação suficientemente concreta para permitir um prolongamento das suas atividades. O curto período de existência, entre 1921 e 1931, não se caracteriza como uma exceção. De acordo com o estudo de Suzigan, das sete indústrias ligadas ao ramo de metalurgia que receberam concessões do governo federal, de 1921 em diante, duas nunca executaram seus planos, tendo seus contratos cancelados, são os casos de Anglo-Brazilian Iron and Steel Syndicate e um projeto de Fortunato Bulcão. Duas outras, uma delas a própria Eletro-Metalúrgica Brasileira S.A., junto a Companhia Eletro-Siderúrgico Brasileira construíram suas usinas, porém faliram em pouco tempo e, finalmente, três outras tiveram sucesso e vieram a se tornar as maiores fabricantes de ferro e aço do país na década de 1930: a Companhia Siderúrgica Belgo-Mineira, a Usina Queiroz Júnior e a Companhia Brasileira de Usinas Metalúrgicas. Por que a Companhia

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Eletro-Metalúrgica Brasileira S/A não vingou?Existem hipóteses que tentam explicar os possíveis motivos da

falência precoce da Metalúrgica, uma delas refere-se a uma seca que teria atingido o Estado de São Paulo, em 1925, e teria provocado uma escassez de energia elétrica, fazendo a Metalúrgica interromper seu funcionamento. Outros motivos se relacionariam aos problemas de transporte do minério de ferro das suas minas, em Minas Gerais, para Ribeirão Preto, problemas esses que teriam sido agravados pela valorização na taxa de câmbio, entre 1924 e1926, e pela falta de proteção alfandegária.

Tentando resolver seus problemas com o transporte de ferro, a Cia Metalúrgica comprou, em 1922, por 100 mil libras esterlinas, a estrada de ferro São Paulo e Minas, que ligava suas jazidas no município de Jacuhy até Bento Quirino. Mas essa ação não foi suficiente para resolver os problemas da indústria que, em 1926, contraiu empréstimos junto ao governo do Estado, quando, concomitantemente, o seu principal acionista, Flávio Uchoa2 vendeu a Empresa Força e Luz para um grupo canadense-americano, a Eletric Bond Share, com a subsidiária Companhia Paulista Força e Luz, por $9.000.000 de dólares. (CIONE, 1993)

Esse dinheiro foi empregado em diversos melhoramentos nos empreendimentos, dentre os quais, a construção de um ramal Serrinha -Ribeirão para encurtar a distância da matéria-prima aos altos fornos. Todavia, vencido o prazo de pagamento da dívida, aumentada com o acréscimo de juros, agravou-se o quadro de crise da Metalúrgica, que somado a todos aos fatores já discutidos, tentou salvar-se da situação procurando entregar a estrada de ferro ao governo para que este a administrasse no período de crise, estabelecendo um contrato de consignação de rendimento.

O Estado, entretanto, recusou a solução proposta deixando a Usina numa situação economicamente delicada, ficando a estrada de ferro, a partir de três de setembro de 1930, sob ordem judicial para sofrer

2 Flávio Uchoa tinha o controle da Empresa Força e Luz, maior acionista da metalurgia além de, como pessoa física, deter o 3o. maior número de ações.

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a intervenção do Estado. Sobre a falência, que se concretizaria em fins de 1931, memorialistas locais como Cione, especulam a possibilidade da quantidade de ferro não ser a esperada e da empresa não ter conseguido saldar suas dívidas no final da década de 30. O mesmo autor cita três outros autores que discutem questões relativas à falência, o primeiro José Benedito dos Santos Camargo que relaciona a falência a crise política do período:

Entretanto, brigas políticas à parte, ninguém soube ao certo porque a Metalúrgica não continuou. Além das contentas entre os Partidos Republicano Paulista PRP e o Partido Democrata Popular PDP outras razões foram alegadas, defendidas e combatidas, ficando a pergunta; por que o governo, carente de siderúrgicas não saiu em amparo a um empreendimento pioneiro. (CIONE, 1993)

Osório Diniz da Rocha mostra outras possíveis razões em seu livro ‘’O Brasil em Face dos Imperialismos Modernos’‘ aponta a falta de energia como a causa principal do insucesso da Usina, enquanto o terceiro autor citado por Cione, Luiz Augusto Michelazzo afirma que a venda da Força e Luz, principal acionista da Metallúrgica e a entrada de capital estrangeiro na Usina representaram fortes motivos para acreditar que se estava vendendo “a pátria ao alienígena, bem como os autênticos tartufos do Brasil” [...] (CIONE, 1993)

Reunindo uma série de fatores complicadores: a crise de 1929, a queda nas vendas no início dos anos 30, entre outros, a Metallúrgica encerrou definitivamente sua produção em 1931, quando encerrou as atividades e teve início um lento processo no qual seus maquinários ficaram inativos e, com a tramitação judicial morosa da falência, os bens foram arrematados, dilapidados e vendidos para fundições e outras siderúrgicas, até que, em 1935, o Moinho Santista, de propriedade do engenheiro Eugenio Belloti, adquiriu, por 150.000 contos de réis, todo o acervo do que sobrara, passando para nova finalidade. Mais tarde, a área foi adquirida pela Sambra, para fabricação de algodão e, posteriormente,

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pela Indústria Penha, de máquinas agrícolas.

Considerações Finais

O município de Ribeirão Preto, na década de 20, tinha a agricultura como sua maior fonte econômica, influenciando o comércio, alterando a vida de seus habitantes que foram gradualmente deslocando-se do campo para cidade.

Essa mesma agricultura, em particular o café, também forneceu bases para uma industrialização que, mesmo não tendo vingado, como no caso da Metallúrgica, deixou profundas marcas na história da região e exemplificando claramente como os investimentos de excedentes do setor agrícola, em particular o café, na indústria fomentaram o desenvolvimento econômico do Brasil na primeira metade do século XX.

Atualmente, o prédio remanescente da antiga Metalúrgica, passa por uma revalorização do seu significado histórico. Após estudos que revelavam características arquitetônicas exemplares para o período, como as tesouras de madeira que sustentam o telhado, estabeleceu-se o pedido de tombamento desta área pelos moradores do Jardim Aeroporto. Tendo o CONPPAC – Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Cultural de Ribeirão Preto - acatado o pedido, foi decretado o tombamento provisório do bem, justificado não só pela sua importância arquitetônica como também pelo valor histórico deste patrimônio edificado representativo da primeira fase do desenvolvimento industrial de Ribeirão Preto.

Com a intenção de lançar algumas luzes sobre a história da indústria na cidade, o presente artigo objetiva despertar o interesse pelo referido tema, contribuindo para a difusão da informação sobre a história da metalurgia e permitindo que este conhecimento ofereça subsídios para a valorização do patrimônio cultural, fomentando a preservação da memória da Indústria no município.

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DIALOGUS. Ribeirão Preto, vol.5, n.1, 2009, p. 319-336.

LARA, P.H.V.; ROSA, L.R.O. Coffee and industry in Ribeirão Preto e indústria em Ribeirão Preto: the case of “Electro-Metallúrgica Brasileira S.A.” (1921 – 1931)

ABSTRACT: The present article results from the research works carried out by Paulo Lara, under prof Ms. Lilian Rosa’s supervision, for graduation in History. The text discusses the installation of “Electro-Metallúrgica Brasileira S.A.” (a stell mill) from 1921 to 1931, analyzing the influence of a goods industry on a city in which the predominant economic activity was coffee culture. The gool is to understand, during its short existence, the importance of the coffee producers end the role playd by the mo Ribeirão Preto city, evaluating the influence of a capital goods industry in a city whose predominant economic activity was coffee culture. The gool is to understand, during its short existence, the importance of the coffee growr end the role playd by the most important one, Flávio Uchoa, in its building in addition to the possible reason of its early bankruptcy.

KEYWORDS: Coffee, Electrometallurgical; Ribeirão Preto City.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

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GUIÃO, J. R. O Município e a cidade de Ribeirão Preto na comemoração do 1º centenário da independência nacional 1822-1922. (Publicação autorizada pela Câmara Municipal lei nº 270 de 1922)LAGES, J. A. Ribeirão Preto: da Figueira à Barra do Retiro – o povoamento da região pelos entrantes mineiros na primeira metade do século XIX, Ribeirão Preto: VGA editora e gráfica, 1996. ___. Ribeirão Preto: Das origens a Atualidades.CD-ROM. Ribeirão Preto: Heluany Dias,2004PINTO, L. S..G. Ribeirão Preto: A Dinâmica da Economia Cafeeira de 1870 a 1930. Araraquara; Unesp, 2000.SANTOS, J. R. As transformações da riqueza dos cafeicultores em Ribeirão Preto entre 1920 e 1951. Dissertação de mestrado UNESP/ FRANCA, 1997 .STANLEY J. S. Grandeza e Decadência do Café no Vale do Paraíba. São Paulo: Brasiliense,1961.SUZIGAN, W. Indústria Brasileira; Origem e Desenvolvimento. São Paulo: Brasiliense, 1961.VALADÃO, V. Memória Arquitetônica de Ribeirão Preto. Tese de Mestrado, UNESP, Franca, 1996. São Paulo; Brasiliense, 1996.WALKAR, T. Do coronelismo a metrópole. São Paulo, Ribeirão Preto: Palavra Mágica, 2.000.

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ENSAIO / ANALYSIS

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FILHO, Domício Proença. Pós-modernismo e literatura. São Paulo: Ática, 1995.

Debora Luiza MESQUITA*1

Ao iniciar os estudos pós-modernos devemos saber distinguir pós-modernidade e pós-modernismo. O termo pós-modernidade é conceituado como um período histórico específico que, segundo alguns estudiosos, emerge da mudança histórica de uma nova forma de capitalismo, é uma linha de pensamento que questiona determinados aspectos, tais como, razão e idéia de progresso. O termo pós-modernismo é atribuído a uma forma de cultura contemporânea que reflete um pouco essa mudança por meio das artes, é um estilo estético que vem se desenvolvendo desde a segunda metade do século atual.

Segundo Domício Proença Filho, a partir dos anos 50, mais precisamente desde o fim da Segunda Guerra Mundial, encontramos mudanças significantes no campo da literatura, arquitetura, artes plásticas e música, no mundo ocidental. Essas mudanças nos fazem questionar se já estaríamos vivendo uma arte nova, com um âmbito cultural específico e singular.

Até o momento não se tem uma resposta concreta. Para alguns especialistas a pós-modernidade vem ocorrendo desde a década de 50, para outros necessita-se ainda de uma grande mudança para deixarmos a modernidade.

É fato, porém, para quase todos os estudiosos, que vivemos em uma fase de transição, em que a modernidade está chegando a seu fim e a pós-modernidade, em termos estéticos, já ocorre, de fato.

Apenas o tempo eliminará as dúvidas sobre a situação deste novo estilo, fundamentando a sua devida classificação através de estudos e pesquisas.* Graduanda em Letras pelo Centro Universitário Barão de Mauá.

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Com o processo de industrialização, o homem moderno carregou sentimentos de descrença e frustração pelas mudanças esperadas, assumindo certo conformismo, não tendo esperanças em relação ao futuro.

Desenvolve-se a sociedade de consumo. Os veículos publicitários se sobressaem, vendendo o objeto de consumo pela imagem. Os veículos de comunicação em massa exercem papel influente intensificando o comportamento heterodirigido.

Percebe-se também a procura por qualidade de serviço, a multiplicidade de grupos que reivindicam seus diretos e o uso de alucinógenos como modo de fuga da realidade.

Através desses aspectos notamos o sentimento de terror do homem contemporâneo.

Nas artes desse período encontramos a presença destas características. Podemos notar a aproximação entre a arte erudita e a arte popular, com tendência para a eliminação das fronteiras entre elas existentes, a presença da intertextualidade, a mistura de estilos e a preocupação com o presente em uma visão pessimista, sem projeção no futuro.

Na literatura encontramos a intensificação do ludismo, considerada por alguns uma “metáfora da liberação social”, o uso intencional da intertextualidade, o ecletismo estilístico, maior uso da metalinguagem, a figuração alegórica de tipo hiper-real e metonímico, o fragmentarismo textual, entre outros elementos que se mostram diretamente ligados às mudanças da época.

No Brasil encontramos manifestações que procuram expor os acontecimentos políticos e sociais com dimensionamento próprio de uma economia dependente e de uma realidade social diferenciada. As principais manifestações são: o movimento da poesia concreta, a instauração-práxis, o movimento do poema-processo, o tropicalismo e a “poesia marginal”.

Podemos encontrar traços pós-modernos em várias obras, porém necessita-se de uma pesquisa mais apurada destas obras para abrir novas dimensões.

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A poesia, o romance, o conto e, em menor escala, o teatro aguardam um estudo minucioso dos especialistas para que se possam encontrar posicionamentos singulares em cada espaço.

Domício Proença Filho conclui a obra incentivando pesquisas e estudos deste âmbito, ressaltando a importância deles para estabelecer a devida classificação desse novo estilo.

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RESENHA / REVIEW

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LOPES, Nei. O Racismo Explicado aos meus Filhos. São Paulo: Editora Agir, 2007. 206 p.

Antonio Carlos Lopes PETEAN1*

A lei 10.639/2003 responde à demanda da comunidade afro-brasileira por reconhecimento e valorização de suas manifestações culturais, e, possibilita, também, discussões sobre as relações étnico-raciais no Brasil. De acordo com essa lei, o ensino de História da África e da cultura afro-brasileira e africana, articula-se com a história dos afros descendentes no Brasil.

Com o objetivo de fornecer instrumentos para discutir as relações étnico-raciais no Brasil, o pesquisador da cultura afro-brasileira Nei Lopes, escreveu a obra “O Racismo Explicado aos Meus Filhos”.

Nesta obra, o autor apresenta ao leitor brasileiro um panorama sobre o racismo e sobre o preconceito em diversas sociedades contemporâneas, finalizando sua pesquisa com a questão das cotas no Brasil e a nova forma de racismo presente na mídia. Percebe-se, nas páginas deste livro, uma preocupação em demonstrar o racismo como uma ideologia transnacional, mas que se manifesta de várias formas e que serviu para as potências européias justificarem seu domínio sobre a África e Ásia, no século XIX, assim como, serviu para a submissão e extermínio de povos e culturas na América e Oceania.

No início do livro, foi dado um relevo especial ao “racismo cientifico” criado pelo francês conde de Gobineau, ao lançar a obra “Ensaio Sobre a Desigualdade entre as Raças Humanas”. Nei Lopes destacou nessa obra a idéia defendida por Gobineau de que o fator fundamental para o progresso de uma nação é a pureza racial e que toda miscigenação seria precondição para a decadência. No primeiro capítulo * Licenciado em História pela UFOP e doutorando em Sociologia pela UNESP/Araraquara. Docente do Centro Universitário Barão de Mauá, Ribeirão Preto (SP).

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são apresentadas, ainda, as explicações que existiam antes do racismo científico sobre as diferenças físicas entre os povos. “Até o século XVIII, os sábios procuravam explicar as diferenças físicas existentes entre povos por meio de àrvores genealógicas tiradas da Bíblia. Então a diversidade na aparência das pessoas era entendida ou como determinação de Deus ou como uma coisa hereditária, cada um saindo ao seu antepassado; ou, finalmente, como resultado de diferenças de clima e ambiente”. (p.26)

Nesse caso, a idéia de raça foi o elemento novo introduzido pelo conde de Gobineau para explicar as diferenças entre os seres humanos, e as possibilidades de desenvolvimento e os diferentes estágios em que se encontram os povos e nações. “Antigamente, a definição de “raça”, para os seres humanos, era a mesma que se usava para os animais irracionais”. (p.25),e segundo o autor, Gobineau destaca ainda a raça branca e sua vertente ariana como responsável pelos principais progressos da humanidade, criando com essa concepção, o mito do arianismo ou da superioridade ariana.

Na sequência da obra, a noção da superioridade ariana é desmitificada. “O arianismo ou nordicismo, ideologia que prega a superioridade dos povos nórdicos é, enfim, uma tentativa de estabelecer hierarquia biológica entre os seres humanos para justificar direitos de conquista, dominação e opressão de “superiores” sobre “inferiores”. (p.40)

O autor destaca que o termo ariano vem de Árias, um “suposto nome de um povo que invadiu o norte da Índia a partir do século XVIII a.C. e ali instalou uma comunidade cuja língua se chamava Sânscrito”. (p. 39); o fato é que, o Sânscrito possuía semelhanças com outras línguas faladas na Europa, “e, assim, de simples distinção lingüística, a idéia de “ariano” extrapolou para o âmbito biológico, para denominar um conjunto de povos considerados superiores”. (p.40)

Outra questão abordada é o anti-semitismo, uma forma de racismo voltada para os povos semitas, que no século XX, “acabou por culminar no Holocausto promovido pelo nazismo alemão, durante a segunda guerra mundial”. (p.52)

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O holocausto visto como genocídio (destruição física de um povo), não é a única forma de racismo. O autor destaca, também, o etnocídio (destruição da cultura de um povo), caracterizado pela colonização da América e pelo racismo nos E.U.A. e Austrália.

Nos E.U.A. o racismo durou oficialmente de 1890 até 1960 e através das “leis Jim Crow”. “Jim Crow (algo como “Zé Urubu”) era um personagem de um tipo de teatro popular de variedades em que brancos pintados de preto apresentavam-se, cantando e dançando, para caricaturar e ridicularizar as tradições e os costumes do povo negro”. (p.122)

Ainda sobre o racismo nos E.U.A., a obra destaca ainda a Ku Klux Kla, uma organização racista que surgiu após a guerra de Secessão americana no estado do Tenessee, e que até hoje, tem como meta defender “a superioridade dos chamados “WASP” (White, Anglo-Saxon, Protestant), brancos de origem anglo-saxônica e de religião protestante, sobre negros, judeus e católicos”.(p.179)

Quanto ao etnocídio na Austrália, ele teria ocorrido, segundo Nei Lopes, de forma extremamente brutal. Ele se deu através da adoção, por parte de famílias brancas, de crianças aborígenas que teriam sido arrancadas à força de suas mães. Na obra é apresentado também o racismo na África do Sul, criado oficialmente no ano de 1910, quando “os negros foram privados do direito de voto e de possuir terras”. (p.131), e esse sistema de leis conhecido como Apartheid foi gradativamente se ampliando no decorrer do século XX, até que a luta dos negros sul-africanos e um boicote econômico mundial colocou fim às leis segregacionistas.

Outro tema abordado no decorrer do livro é a questão das cotas no Brasil e para o autor “criar políticas de ação afirmativa em benefício do povo negro, isto sim, é que é democracia racial, pois é criar oportunidades de acesso á completa cidadania, começando pela educação, levando em conta a diversidade étnica de toda população”.(p.169), a política de cotas é um dos instrumentos para combater o racismo, mas não deve ser o único, pois cabe a todos os cidadãos combater os estigmas sobre o negro e sobre o mestiço, responsabilizados muitas vezes pela criminalidade. “Ao contrário dos E.U.A., onde o combate ao racismo vem-se dando desde os

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anos 1960, através de várias medidas governamentais de ação afirmativa, no Brasil, a igualdade entre brancos e negros ainda é bastante incompleta”.(p.179). questão essa, também abordada nessa obra.

Por fim, vale ressaltar que um novo tipo de racismo esta presente na mídia, pois segundo o autor “ ai vem a indústria cultural e começa a dizer que o bom lugar do negro é a “dança de rua”, a “cultura do gueto”, a periferia”. (p.177), e “negros em museus, exposições, lançamentos de livros, óperas, balés, concertos e restaurantes, o cinema e a TV não mostram”. (p.177).

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DOW, Kirstin; DOWNING, Thomas. O Atlas da mudança climática: o mapeamento completo do maior desafio do planeta. São Paulo: Publifolha, 2007.

Douglas MACEDO*1

A mudança climática é um tema extremamente relevante neste momento, motivado por uma mescla de estudos científicos, discussão política e enorme atenção da mídia. A complexidade do assunto tem levado vários autores de diversas áreas do conhecimento a voltarem sua atenção sobre o tema, especialmente no que se diz a respeito das causas e efeitos do aquecimento global.

O Atlas da mudança climática, por sua vez, objetiva mostrar com rigor científico as causas e conseqüências do aquecimento global com uma grande variedade de mapas e gráficos, além de um capítulo especial sobre o Brasil. É uma fonte de informação importante para aqueles interessados em questões ambientais, professores e estudantes.

Os autores da obra são estudiosos dedicados ao assunto clima e sociedade. Kristin Dow é professora de geografia da Universidade da Carolina do Sul e Instituto Ambiental de Estocolmo. Thomas Downing é professor da Universidade de Oxford e diretor do Instituto Ambiental de Estocolmo. Ambos estão ligados a respeitadas pesquisas sobre o tema, inclusive contribuindo para o Painel Intergovernamental de Mudança do Clima.

A obra foi dividida em oito capítulos, contendo mais de 50 mapas e gráficos, uma lista de palavras-chave e ainda dados de mais de 190 países. Partindo da linha de investigação do conhecimento físico da atmosfera, do grande volume de dados e de modelos de previsão, os * Licenciado e Bacharel em Geografia, Mestre em Geografia pela Universidade Federal de Uberlândia (MG). Docente do Centro Universitário Barão de Mauá e da E.E. Prof. Cid de Oliveira Leite, Ribeirão Preto.

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autores tentam deixar claro algumas evidências das mudanças climáticas e ações necessárias para evitar seus impactos nos recursos naturais e na sociedade.

O livro explica que o efeito estufa natural é imprescindível para manter a vida no planeta, pois se assim não fosse, a temperatura média da Terra seria em torno de –18ºC, muito diferente dos 15ºC presentes atualmente. A retenção de gases pela atmosfera ajuda a aquecer a Terra; entretanto o problema consiste em que a concentração desses gases vem aumentando, levando ao que ficou denominado aquecimento global.

Analisando a emissão dos gases do efeito estufa, principalmente o dióxido de carbono e o metano, é observado o aumento de sua concentração na atmosfera. Isso se deve, especialmente, à queima de combustíveis fósseis, responsáveis por quase dois terços das emissões de gás carbônico. O destaque do livro nesse sentido são os mapas, os quais mostram a quantidade de emissão dos gases em todos os países.

As conseqüências das mudanças climáticas são evidentes em todo o mundo. O aquecimento global, segundo os autores, podem ameaçar, entre outras coisas, a biodiversidade do planeta, a saúde humana, as cidades, e talvez a maior evidência seja o aumento do nível dos oceanos, onde o aumento das temperaturas tem diminuído a extensão das geleiras tanto no Antártida como no Ártico, onde o gelo diminui cerca de 14% desde os anos de 1970.

Os sinais de alerta, quanto às conseqüências do aquecimento global, estão nos registros e observações sobre os dados do clima em todo o mundo, demonstrando principalmente as condições meteorológicas cada vez mais incomuns, como secas, enchentes, furacões e temperaturas extremas.

As ações realizadas para a mitigação e adoções de medidas pelos países para enfrentarem as mudanças climáticas estão numa segunda parte do livro, se assim podemos dizer, na qual os autores colocam os países que adotaram o Protocolo de Kyoto realizado em 1997, cuja meta era diminuir a emissão de gases que fazem parte do aquecimento global. Uma minoria dos países, como os Estados Unidos não ratificaram o acordo.

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As negociações para a redução e os procedimentos operacionais deveriam fazer parte da agenda dos países, onde alguns países progrediram em suas metas, mas outros aumentaram as emissões. Isto pode ser observado claramente em gráficos e mapas, sendo um ponto alto do livro.

Os países industrializados são os maiores emissores de gases causadores do aquecimento global, historicamente desde a Revolução Industrial, mesmo sabendo que alguns países em desenvolvimento também estão contribuindo para aumentar cada vez mais a emissão desses gases. Assim foram criados os créditos de carbono, uma maneira de atingir as metas do Protocolo de Kyoto.

A compra e venda de créditos de carbono funciona sob a lógica da economia de mercado, ou seja, os países que não atingem as metas de redução de gás carbônico, geralmente os países industrializados, compram de países que investem em projeto de captura de gás carbônico na atmosfera. De acordo como o livro, o mercado de carbono representa apenas 0,5% da emissão anual de gases de efeito estufa, e ainda sofre críticas de ambientalistas por aceitar projetos insustentáveis. Os autores ainda destacam outras ações criadas para mitigar e ajudar os países a se adaptarem aos efeitos da mudança climática, como o financiamento de programas de redução de gases em países em desenvolvimento. A despeito de ações governamentais federais, várias cidades, autoridades locais e regionais estão adotando políticas de redução de gases do efeito estufa. Para conciliar crescimento econômico e redução das emissões é necessário investir em tecnologias eficientes. Uma das alternativas é o uso de energia renovável, a qual reduz sensivelmente a geração de gases responsáveis pelo aquecimento global. Ações pessoais também ajudam nessa tarefa; uma mudança no estilo de vida, bem como o engajamento da sociedade em organizações que se dedicam a mudar o atual modelo de crescimento podem contribuir para a redução das emissões. O Brasil ainda carece de estudo mais aprofundado sobre as mudanças climáticas. Mesmo com o esforço do governo em lançar um plano nacional que deverá incluir metas para redução das emissões

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de gases do efeito estufa, ainda faltam pesquisas mais detalhadas das conseqüências do aquecimento em cada região. As pesquisas recentes apontam que o país pode, até o final do século, estar em média até 4ºC mais quente; o Inpe – Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, atribui ao desmatamento o principal responsável pelo aquecimento no país. O cenário futuro do Inpe indica que a região Amazônica tem a situação mais crítica, podendo enfrentar uma perda da floresta em um processo denominado “savanização da Amazônia”. Finalmente, a obra traz um quadro com dados dos mais de 190 países sobre as mudanças climáticas. Assim, talvez a grande relevância do livro seja valorizar a espacialização dos dados de forma a tornar claro as causas e efeitos das mudanças climáticas, tema muito presente em nossas vidas atualmente.

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MOREIRA, Ruy. Para onde vai o pensamento geográfico? : por uma epistemologia crítica. 1.ed., São Paulo: contexto, 2008.

Luis Guilherme MATURANO*1

Vera Lúcia Santos ABRÃO**2

Ruy Moreira é professor adjunto dos cursos de graduação e pós-graduação (mestrado e doutorado) em Geografia, da Universidade Federal Fluminense (UFF), mestre em geografia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e doutor em geografia humana pela Universidade de São Paulo (USP). Autor de diversos livros e artigos em periódicos, aborda nesta obra como se procedeu o processo de sistematização da Geografia, como ela vem sendo estudada, como se procede o debate, acentuado na década de 70, no que concerne a organização do espaço, além da discussão da estrutura natureza-homem-economia e um debate com grandes pensadores como Max Sorre, La Blache e Milton Santos.

Num primeiro momento, o autor relata que a Geografia Moderna passa por três fases representadas por paradigmas diferentes, sendo eles: o paradigma holista da baixa modernidade, o paradigma fragmentário da modernidade industrial e o paradigma holista da hipermodernidade (ou pós-modernidade), como atual tendência.

O Iluminismo nascente entre os séculos XVIII e XIX foi à base para o surgimento da ciência geográfica. Kant, um dos principais filósofos iluministas, buscava interpretações da realidade postas naquele momento. Para ele, a ciência transformara rapidamente e por isso era necessário sistematizar conhecimentos para tais interpretações, principalmente * Graduando em Geografia pelo Centro Universitário Barão de Mauá** Geógrafa, Mestre em Geografia pela USP-SP, Docente do Centro Universitário Barão de Mauá e UFMS.

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as que se referem ao binômio homem/natureza. Sendo assim, Kant vai buscar apoio na geografia e na história. Influenciado pelo empirismo, ele incorpora a compreensão e importância do “espaço” colaborando para que de fato a geografia tornar-se uma ciência. Mas somente com os alemães Alexandre von Humboldt e Karl Ritter podemos pensar numa Geografia sistematizada. O primeiro, por ter uma formação naturalista (botânico e geólogo) e também por ter realizado várias viagens pelo mundo, acreditava que a geografia fosse uma espécie de síntese dos fenômenos relativos à Terra. Através de seu método empírico, observava as paisagens e nelas buscavam-se as inter-relações entre o mundo sensível e o mundo do intelecto. Karl Ritter foi formado em filosofia e história, sua base kantiana o fez elaborar teorias e métodos contribuindo para que a geografia ganhasse verdadeiramente o status de ciência. Ainda em busca de uma ideal sistematização à geografia, um geógrafo alemão chamado Friedrich Ratzel, impulsionado pelo ideário expansionista do recém formado estado alemão (final do século XIX) define como objeto de estudo da geografia “as influências que as condições naturais exercem sobre a humanidade”. A Geografia proposta por Ratzel pôs o ser humano em primeiro plano, valorizando sua história conjuntamente com as transformações do espaço, enfatizando a formação de territórios e a difusão dos homens no globo, mas, ainda, tendo em vista uma visão naturalista, onde as condições naturais exercem influência sobre a sociedade.

E pensando numa suposta unicidade entre os fatores físicos e humanos, nasce, na França, com o geógrafo Paul Vidal de La Blache, a geografia regional. Construtor da escola geográfica francesa, La Blache desenvolveu um dos principais conceitos chave à geografia: a região. Apoiado neste conceito, ele discute que uma determinada área (região) deve ser estudada como reflexo das relações humanas sobre a superfície terrestre, ou melhor, sobre o espaço geográfico.

A partir da década de 70, fica claro que a Geografia entra em uma crise paradigmática, onde geógrafos tentam buscar explicações de tais transformações drásticas, principalmente no que se refere ao espaço geográfico. Sendo assim, veremos uma forte ascensão do marxismo na

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Geografia, tendo como principais autores David Harvey, Pierre George, Jean Tricart, Yves Lacoste, Milton Santos, entre outros. Entretanto, podemos notar, sobretudo hoje, sob o viés pós-moderno, que há uma pluralidade de tendências analíticas da realidade, visto que encontramos a falta de uma filosofia como base de referência. Nessa perspectiva sintética que vai do clássico ao pós-moderno, o autor aborda como o entendimento da estrutura natureza-homem-economia também transforma-se ao longo do percurso. Na Geografia, a natureza é a base inicial do arranjo entre o homem e a economia. A princípio, a análise da natureza manifestava-se na percepção daquilo que é sensível, palpável, mensurável, sendo considerada, numa visão geográfica, como o relevo, as rochas, o clima, a vegetação, etc. Com total influência do racionalismo, a natureza passa a ser considerada como fator externo ao homem, tornando-se passiva frente às necessidades dos seres humanos. Com o passar do tempo, podemos notar que o conceito de natureza se altera implementado o homem também como fator das mudanças naturais. Isso se torna visível, principalmente, a partir das discussões de grupos ambientalistas sobre os impactos da relação homem/natureza. Segundo o autor, isso nos leva a crer que a idéia de natureza evolui num sentido espiral e não em ciclos que se fecham sobre seu próprio ponto inicial.

O homem é a segunda parte do modelo natureza-homem-economia. Em uma perspectiva geográfica, o homem é posto num sentido demográfico, quantitativo da população. Na antiguidade clássica, a população mundial era por volta de duzentos e cinquenta milhões de habitantes, meio bilhão em meados do século XVII, um bilhão em 1850, dois bilhões em 1940, quatro bilhões em 1980, hoje temos por volta de seis bilhões de habitantes. Como podemos interpretar esse avanço populacional, principalmente se considerarmos que em menos de um século a população mundial duplicou-se? A raiz da aceleração encontra-se na Revolução Industrial (uma revolução técno-científica), onde os avanços científicos impulsionaram uma revolução na higiene social, em particular, no campo do saneamento e da medicina. Também contribuem à revolução agrícola, aumentando a produção de alimentos e a revolução

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nos transportes, facilitando o escoamento da produção de mercadorias.Porém, essas interpretações dos fenômenos populacionais

vão dando lugar a um enfoque crítico nos anos 1970, cujo resultado é o surgimento de uma releitura na geografia da população. A abordagem estatística passa a coexistir com uma leitura de cunho analítico inspirado em parâmetros político-econômicos. E por fim, o último aspecto da estrutura natureza-homem-economia. Ruy Moreira afirma que a economia tem a função de unificar o homem à natureza sob a lógica do mercado. A natureza aparece como estoque de recursos e o homem com necessidade de consumo. Para juntá-los, aparece a teoria do mercado como agente principal da organização material da sociedade moderna. Comecemos a análise pela Revolução Industrial. A indústria é vista como agente de transformação, pois retira do meio a matéria-prima sob a forma natural, e ela devolve sob uma forma que a natureza jamais produziria. Esse processo de industrialização dinamizou as relações entre a cidade e o campo. Dessa forma os países que se transformaram industrialmente tornaram-se “a cidade”, em virtude do caráter dinâmico, relacional, universalizante do fenômeno industrial. Já os países que se mantiveram com uma economia de base agrária, incapaz de imprimir dinamismo, tornaram-se “o campo”. Após a segunda guerra mundial, houve uma intensa industrialização por parte de alguns países somando-se ao avanço técnico-científico-informacional, anulando barreiras entre o campo e a cidade dentro dos países e entre os países, dando origem às relações em rede, levando-nos ao processo de globalização.

Outro tema problematizado na obra são as concepções teóricas a cerca do conceito de espaço geográfico sob a análise de autores como Max Sorre, La blache e Milton Santos. Para Max Sorre o espaço se caracteriza como uma sucessão de complexos sejam eles alimentares, técnicos ou culturais que no sistema capitalista dão origem a espaços derivantes e espaços derivados. Na visão de La Blache, a organização espacial se define através dos gêneros de vida e para Milton Santos pelo meio técnico. Tanto o gênero de vida quanto o meio técnico partem do mesmo princípio. Trata-se da combinação entre meio geográfico, técnica

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e população. Em tempos anteriores à Revolução Industrial, as pessoas viviam de maneira coesa com o meio ambiente, seu ritmo de trabalho era o mesmo da natureza, utilizando-se de técnicas correspondentes ao seu tempo na produção manufatureira.

A manufatura moderna dará início a uma mudança nessa forma de relacionamento entre homem e natureza, causando uma atitude nova diante do espaço. As relações espaciais colocam o homem numa coexistência com matérias-primas e alimentos chegados de lugares distantes e desconhecidos. As necessidades do mercado comandam paulatinamente o cotidiano, criando uma nova forma de práxis espacial. A fábrica consolida e materializa, via Revolução Industrial, a sociedade como mundo da técnica, introduzindo como modo de vida humano um espaço de vivência de conteúdo cada vez mais artificial. Com o advento da revolução técnico-científica, notamos uma acentuada dinamização nas transformações espaciais, tornando-se cada vez mais evidente a dicotomização entre homem e natureza. A tecnologia global emanada dos grandes centros hegemônicos altera o espaço geográfico destinando-o ao benefício da acumulação de capital. Sendo assim, as grandes empresas eliminam, sobretudo hoje, fronteiras regionais e nacionais, avançando sobre territórios causando grandes tensões entre classes e grupos sociais.

Podemos observar através dessa breve análise que alguns conceitos emanados da geografia passaram por mudanças ao longo da história do pensamento geográfico e que, atualmente, enfrentamos uma crise paradigmática. Portanto, é necessário que haja cada vez mais debates profundamente oportuno, a fim de que possamos (re)estruturar-mos tais conceitos, fazendo com que a Geografia não caia num conformismo ideológico, podendo, até mesmo, determinar o seu fim.

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ÍNDICE DE ASSUNTOS

Análise Rítmica;Brasil Colônia;Café;Caipira;Campo;Camponeses;Coletivismo;Educação;Escolarização;Experiência de Vida;Família;Geografia;Governo;Gráfico de Eventos Climáticos;Grileiros;História das Religiões;História do Cotidiano;Imprensa Negra Paulista;Individualismo;Indústria Metalúrgica;Intelectuais;Jesuítas;Julia Lopes de Almeida;Liberalismo;Modernidade;Movimento Negro;Mulheres;Mundo Rural;Município;Música;

Nação;Noroeste Paulista;Parques Urbanos;Pensamento Católico;Pequena PropriedadE;Pestes;Planificação;PolíticaPós-Modernidade;Praças Públicas;Produção do Espaço;Protestantismo;Relação Família-Escola;República;Ribeirão Preto;Terras;

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SUBJECT INDICX

Analysis Rhythmic Boorish Brazil Colony Cafe Collectivity County Earth Education Experience of Life Family Farmers Field Geography Government Graph of Events Climatic History from the Religions History of the Daily Individualism Industry Metallurgic Intellectuals Jesuits Julia Lopes Land grabber Large creek Black Liberalism Modernity Movement Black Music Nation Northwest Paulista

Parks Urbane Pests Plazas Publics Policy Powders - Modernity Press Black Paulista Production of the Space Protestantismo Relation Family - School Republic Scheduler Small Property Thought Catholic Women World Rural

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ÍNDICE DE AUTORES/AUTHORS INDEX

ABRÃO, Vera Lúcia Santos,DIAS, Juliano Alves,DEZEMONE, Marcus, LOPES, Paulo Eduardo Vasconcelos de Paula,MACEDO, Douglas, PETEAN, Antonio Carlos Lopes, BALSALOBRE, Sabrina Rodrigues Garcia, BEREZUK, André Geraldo, CALSANI, Rodrigo de Andrade, COBÉRIO, Caio Graco Valle, COSTRUBA, Deivid Aparecido, GIORGIANNI, Tiago Silva, GOMES, Marcos Antônio Silvestre, GONçALVES, Sérgio Campos, LARA, Paulo Henrique Vaz, MATURANO, Luis Guilherme, MESQUITA, Debora Luiza, NARITA, Felipe Ziotti, PEREIRA, Sérgio Paulo de Andrade, PIRONI, Andreza França, RIBEIRO, Suzana Barretto, SAMBRANO, Taciana Mirna, SANT´ANNA NETO, João Lima, SOUZA, Marta Maria Pereira de, SOUZA, Paulo Henrique de, VANNUCCHI, Ana Carla,

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Normas para apresentação de original

Apresentação: Os trabalhos devem ser redigidos em português e enca-minhados via e-mail, em dois arquivos separados:

- um completo (Conforme estrutura do trabalho, abaixo proposta;

- Outro sem qualquer identificação do autor e com indicação da área e da sub-área do trabalho, segundo tabela Capes.

Os textos devem ser digitados em Word (versão 6.0 ou superior), fonte 11, tipo Arial Narrown, tendo, no máximo, vinte e cinco páginas (salvo exce-ção). A configuração da página deve ser a seguinte: tamanho do papel: A4 (21,0 x 29,7 cm); margens: superior e inferior: 7,3 cm; direita e esquerda, 5,3 cm. Espaçamento: espaço simples entre linhas e parágrafos; espaço duplo entre partes do texto e entre texto e exemplos, citações, tabelas, ilustrações etc. Adentramento: parágrafos, exemplos, citações: tabulação 1,27 cm.

No que tange ao conteúdo dos artigos, os dados e conceitos emitidos nos trabalhos, bem como a exatidão das referências bibliográficas, são de inteira responsabilidade dos autores.

Não serão aceitos trabalhos fora das normas aqui estabeleci-das.

Estrutura do trabalho - Os trabalhos devem obedecer à seguinte seqüên-cia: Título; Autor(es - por extenso e apenas o sobrenome em maiúsculo); Filiação científica do(s) autor(es) - indicar em nota de rodapé: Universida-de, Instituto ou Faculdade, Departamento, Cidade, Estado, País, orienta-ção, agência financiadora (bolsa e/ou auxílio à pesquisa); Resumo (com máximo de sete linhas); PALAVRAS-CHAVE (até cinco); Texto (subtítulos,

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notas de rodapé e outras quebras devem ser evitadas); Abstract e Keywor-ds (versão para o inglês do resumo e dos PALAVRAS-CHAVE precedida pela referência bibliográfica do próprio artigo); Referências Bibliográficas (trabalhos citados no texto), com indicação de tradução (no caso de obras estrangeiras) e número da edição.

· Título: centralizado, em maiúsculas, negrito e fonte 14.· Subtítulos: sem adentramento, apenas a primeira letras do subtítulo deve ser maiúscula e fonte 12.· Nome(s) do(s) autor(es): nome completo na ordem direta, na segunda linha abaixo do título, alinhado à direita. Letras maiúsculas apenas para as iniciais e para o sobrenome principal. Fonte 12.· Resumo: a palavra RESUMO em maiúsculas, em negrito, seguida de dois pontos, na terceira linha abaixo do nome do autor, sem adentramento. Na mesma linha iniciar o texto de resumo.· PALAVRAS-CHAVE: a expressão PALAVRAS-CHAVE em maiúsculas, em negrito, seguida de dois pontos, na segunda linha abaixo do resumo e uma linha cima do início do texto. Separar os PALAVRAS-CHAVE por ponto e vírgula.-Referência bibliográfica completa do próprio trabalho em ingles, conforme o exemplo:

PÁDUA, Adriana Suzart de. Change and continuity. Comparative notes about Venezuela´s Bolivarian Constitution. DIALOGUS. Ribeirão Preto, v.X, n.X, 200X, p. X.

· Abstract: a palavra ABSTRACT em maiúsculas, em negrito, seguida de dois pontos, na segunda linha abaixo da referência bibliográfica completa do próprio trabalho em ingles, sem adentramento. Na mesma linha, iniciar o texto do abstract.· Keywords: a palavra KEYWORDS em maiúsculas, em negrito, seguida de dois pontos, na segunda linha abaixo do abstract. Utilizar no máximo cinco keywords separados por ponto e vírgula.

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- Referências Bibliográficas: a palavra REFERêNCIAS BIBLIOGRÁFI-CAS em maiúsculas, em negrito, seguida de dois pontos, na segunda li-nha abaixo do keywords. Devem ser dispostas em ordem alfabética pelo sobrenome do primeiro autor e seguir a NBR 6023 da ABNT.

Abreviaturas - os títulos de periódicos devem ser abreviados conforme o Current Contents. Exemplos:

Livros e outras monografias

LAKATOS, E. M., MARCONI, M. A. Metodologia do trabalho científico. 2. Ed. São Paulo: Atlas, 1986. 198p.

Capítulos de livros

JOHNSON, W. Palavras e não palavras. In: STEINBERG, C. S. Meios de comunicação de massa. São Paulo: Cultrix, 1972. p.47 - 66.

Dissertações e teses

BITENCOURT, C. M. F. Pátria, Civilização e Trabalho. O ensino nas es-colas paulista (1917-1939). São Paulo, 1988. Dissertação (mestrado em História) - FFLCH, USP.

Artigos e periódicos

ARAUJO, V.G. de. A crítica musical paulista no século XIX: Ulrico Zwingli. ARTEunesp (São Paulo), v.7, p.59-63, 1991.

Trabalho de congresso ou similar (publicado)

MARIN, A. J. Educação continuada: sair do informalismo? In: CONGRES-

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SO ESTADUAL PAULISTA SOBRE FORMAÇÃO DE EDUCADORES, 1, 1990. Anais... São Paulo: UNESP, 1990. p .114-8.

Citação no texto: O autor deve ser citado entre parênteses pelo sobre-nome, separado por vírgula da data de publicação: (Bechara, 2001), por exemplo. Se o nome do autor estiver citado no texto, indica-se apenas a data entre parênteses: “Bechara (2001) assinala ...”. Quando for ne-cessário especificar página(s), esta(s) deve(m) seguir a data, separada(s) por vírgula e precedida(s) de p. (Munford, 1949, p.513). As citações de diversas obras de um mesmo autor, publicadas no mesmo ano, devem ser discriminadas por letras minúsculas após a data, sem espacejamento (Peside, 1927a) (Peside, 1927b). Quando a obra tiver dois autores, ambos são indicados, ligados por & (Oliveira & Leonardo, 1943) e quando tiver três ou mais, indica-se o primeiro seguido de et. al. (Gille et. al., 1960).

Notas - Devem ser reduzidas ao mínimo e colocadas no pé da página. As remissões para o rodapé devem ser feitas por números, na entrelinha superior.

Anexos e/ou Apêndices - Serão incluídos somente quando imprescindí-veis à compreensão do texto.

Tabelas - Devem ser numeradas consecutivamente com algarismos ará-bicos e encabeçadas pelo título.

Figuras - Desenhos, gráficos, mapas, esquemas, fórmulas, modelos (em papel vegetal e tinta nanquim, ou computador); fotografias (em papel bri-lhante); radiografias e cromos (em forma de fotografia). As figuras e suas legendas devem ser claramente legíveis após sua redução no texto im-presso de 10,4 x 15,1 cm. Devem-se indicar, a lápis, no verso: autor, título abreviado e sentido da figura. Legenda das ilustrações nos locais em que aparecerão as figuras, numeradas consecutivamente em algarismos ará-bicos e iniciadas pelo termo FIGURA.

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· Anexo(s): introduzir com a palavra ANEXO(S), na segunda linha abaixo da Referencia bibliográficas, sem adentramento. Continuar em nova linha, sem espaço.

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SOBRE O VOLUME

Formato: 16,0 x 21,0Mancha: 9,6 x 17,7

Tipologia: Arial NarrownPapel: Sulfite 75g

Matriz: FotolitoTiragem: 350 exemplares

EqUIPE DE REALIZAÇÃO

CoordenaçãoHumberto Perinelli Neto

& Paulo Vasconcelos de Paula Lopes

DiagramaçãoGabriel Vendruscolo de Freitas

Humberto Perinelli NetoPaulo Vasconcelos de Paula Lopes

RevisãoDouglas Macedo

Humberto Perinelli NetoPaulo Vasconcelos de Paula Lopes

Rafael Cardoso de MelloSilvio Reinod Costa

AssessoriaAndreza França Pironi; Érica Souza Santos, Lílian Rosa de Oliveira, Luis Guilherme

Maturano.

Produção Gráfica

Editora e Gráfica Padre Feijó Ltda.Rua Carlos Chagas, 306 - Jardim Paulista - CEP: 14090-190

Fone: (16) 3632-2131 - Ribeirão Preto - SP