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Dilogos das Grandezas do Brasil, de Ambrsio Fernandes Brando

Fonte:

ABREU, Capistrano de. Dilogos das grandezas do Brasil. Salvador : Progresso, 1956.

Texto proveniente de:

Biblioteca Virtual do Estudante de Lngua Portuguesa

A Escola do Futuro da Universidade de So Paulo

Permitido o uso apenas para fins educacionais.

Texto-base digitalizado por:

Crisoston Terto - Belo Horizonte/MG

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DILOGOS DAS GRANDEZAS DO BRASIL

Ambrsio Fernandes Brando

Introduo

Os esforos at agora tentados para levantar o anonimato dos Dilogos das Grandezas do Brasil tm sido perdidos. Para que aventar novas hipteses? Antes tomar do livro e penetrar em sua intimidade, se podermos.

Os dilogos so em nmero de seis. O autor nunca passou do cabo de Santo Agostinho para o Sul; devem, pois, ter sido escritos em uma das capitanias ao Norte do cabo. Destas apenas duas diz le explicitamente ter visitado, e pelas abundantes informaes mostra conhecer diretamente: Pernambuco e Paraba, - Tamarac ficava a meio caminho e devia ser-lhe familiar.

H probabilidades a favor da Paraba ser o lugar em que os Dilogos foram compostos.

Entre estas podem enumerar-se primeiramente as numerosas referncias a ela feitas, o modo desenvolvido por que tratada: pouco mais de trs pginas tratam de Pernambuco; menos de quatro tratam da Bahia, ao passo que quase cinco cabem Paraba. Paraba atribui-se o terceiro lugar entre suas irms e aproveita-se qualquer pretexto para salient-la: o administrador eclesistico, prelado quase igual aos bispos nos poderes, da Paraba, esta, por conseguinte, a cabea espiritual das capitanias do Norte, a comear de Pernambuco; na organizao judiciria proposta para substituir a Relao da Bahia, um corregedor com amplos poderes deve residir na Paraba, por ser cidade real, e a le serem subordinadas tdas as justias desde Pernambuco at Maranho e Par. Essa preferncia pela Paraba no indica que Paraba o autor estava prso por laos muito particulares? Uma frase escrita incidentemente legitima a resposta pela afirmativa. Vos hei de contar, diz um dos interlocutores, uma graa ou histria que sucedeu h poucos dias nste Estado sbre o achar o ambar. Certo homem ia a pescar para a parte da Capitania do Rio Grande em uma enseada que a faz a costa... A menos que no se provasse que o autor escrevia no Cear, o que est fora da questo, para a parte da Capitania do Rio Grande, s se podia escrever na outra Capitania contgua, isto , na Paraba.

Se a Capitania em que os Dilogos foram escritos to vagamente se designa que apenas probabilidades se podem apurar a favor de uma, no mais precisa a indicao do lugar em que a cna passa. O primeiro dilogo pe certa tarde, ex-abrupto, dois indivduos j conhecidos entre si em nossa presena: Alviano: e Brandonio:. Em frente casa do ltimo trava-se a conversa. Estiveram sentados? discorriam peripatticamente? Nada se pode concluir. A conversa prolonga-se; sendo tarde, marcou-se o outro dia e lugar em que a prtica terminou para a contgua. O mesmo se fz das outras vzes. Entre o terceiro e o quarto dia falhou Brandonio: a conversao reproduzida nos Dilogos das Grandezas do Brasil durou, portanto, sete dias, com um de descanso.

Quem eram Alviano: e Brandonio:? Por que foram escolhidos stes nomes? Contero algum anagrama? Nem uma resposta se pde formular. Parecem antes personagens simblicos: um representa o reinl vindo de pouco, impressionado apenas pela falta de comodidades da terra; o segundo a povoador, que desde 1583, veio para o Brasil, e, com as interrupes de vrias viagens alm-mar, ainda aqui estava em 1618, data da composio do livro. To abstratos so os personagens, que s vzes saem dos lbios de um palavras que melhor condiriam nos do outro.

A conversao irrompe sem preparo vista de uma lanugem de monguba, passa aos motivos por que a terra descurada, e aps vrios incidentes termina com a descrio sumria das diversas capitanias, desde o rio Amazonas at So Vicente; tal o objeto do primeiro dilogo. O segundo comea por uma discusso mais erudita que interessante sbre a zona trrida e sua inabitabilidade afirmada pelos antigos filsofos, desmentida pela experincia; explica por que apesar de negros e americanos morarem nas mesmas latitudes aqueles tm a pele negra e o cabelo carapinhado, ao contrrio dstes, cuja epiderme baa e cuja cabeleira lisa; explora a origem dos americanos, exalta as excelncias do clima, enumera as poucas molstias vigentes do Brasil. O terceiro estuda as quatro fontes de riquezas do Brasil: lavoura de acar, mercncia em geral, o trato do pu-brasil em particular, os algodes e madeiras. O quarto expe a riqueza que se pode angariar com o comrcio de mantimentos, fala do mel, do vinho, do azeite, da tinta contida nas rvores indgenas e descreve ligeiros quadros da vida vegetal. O quinto enumera os animais, subordinados aos trs elementos em que vivem: ar, gua e terra; do elemento mais alevantado, do fgo no trata, diz Brandonio:, porque de todo o tenho por estril, que a salamandra que se diz criar nle entendo ser fabulosa, porque quando as houvera, nas fornalhas dos engenhos de fazer acares do Brasil, que sempre ardem em fgo vivo, se devero de achar. O ltimo dilogo refere no principio os costumes dos Portuguses, porm a maior parte consagrada descrio dos ndios, com que termina a obra.

Antes de ir para o Velho Mundo, de onde s voltou passados quase trs sculos, teria o livro do senhor de engenho paraibano sido aproveitado dste lado do Atlntico? Em outros termos: teria servido de fonte a alguns dos escritores que trataram dos mesmos assuntos? Frei Vicente do Salvador em sua Histria, terminada a 20 de Dezembro de 1627, umas vzes parece refut-lo, outra reproduzi-lo com mais ou menos liberdade; como, porm, ao livro do escritor franciscano faltam muitos captulos, exatamente os que tratam de entradas ao serto da Paraba e Pernambuco, de que nosso autor fz parte, a questo por ora no pode ser decidida.

***

No entender de Varnhagen, o autor dos Dilogos era brasileiro, e funda sua convico em achar neste escrito mais de uma vez nosso Brasil. De fato assim , e tambm se encontra nossa Espanha, nosso Portugal, o que deixa bem patente a pouca fra dste argumento sutil, O autor era portugus; a leitura cuidadosa o atesta a cada passo e o prprio Brandonio: o confirma explicitamente, Interrogado por que no secundou as experincias de plantao de trigo, responde: Porque se me comunica tambm o mal da negligncia dos naturais da terra. Se fosse natural da terra, a resposta seria dada nestes termos?

Era portugus e do Sul de Portugal, ou pelo menos l passara muito tempo, S assim se explica a importncia que atribui a alguma restinga de terra que ento (no tempo das navegaes cartaginesas) continuava com uma ilhota situada na costa do Algarve, a que chamamos de Pecegueiro, na qual paragem por costumarem a continuar os atuns que por ali passam a desovar dentro no estreito, se tomam muitos hoje em dia. Teria reparado em coisas to somenos um simples viajante?

Era homem de instruo: conhecia o latim, a lngua literria e cientfica da poca e lra os livros representativos da cincia cova: Aristteles, Dioscorides, Vatablo, Juntino; sabia a histria, a geografia, a produo de Portugal e de suas colnias, e dispunha de inteligncia extremamente clara, cuja fra se manifesta na preciso com que trata dos objetos, como por exemplo a plvora, o acar, a farinha de mandioca, o papel; no modo por que subordina os fatos mais diversos a categorias simples, como quando reduz os moradores do Brasil a cinco condies de gente, dos modos de adquirir fortuna a seis; distribui a vida animal pelos elementos, desfia a inutilidade do comrcio da ndia e dispe as rvores silvestres em hortas e jardins (fim do Dilogo quarto).

No era um esprito simplesmente contemplativo, ocupava-o o lado prtico, a aplicao possvel. A larga navegabilidade do Amazonas suscita a idia de aproveit-la para as comunicaes com o Per; a existncia de aves rapineiras lembra a caa de altenaria; mesmo a secreo meftica fia jaguatataca antolha-se aproveitvel na ordem militar; fazia ou mandava fazer experincias por conta prpria, preparou anil para mostrar que a terra podia dar do melhor, fz examinar em Portugal uma espcie de madeira, que lhe pareceu prpria ao preparo da tinta de escrever.

Como seus contemporneos, tinha uma veia de credulidade, fala em palavras fortes de encantamento; avisa que os pajs dos ndios no so legtimos feiticeiros; sbre certos animais e mariscos, adianta afirmaes bem singulares; mas era um esprito aberto aos fatos novos; nas ltimas pginas ainda apresenta um fato a favor da origem vegetal do ambar, geralmente contestada naquele tempo: a credulidade para le era o princpio da critica e da sabedoria.

Era, finalmente, um escritor colorido, enrgico, veemente, capaz de atingir eloquncia; a frase sai s vzes retorcida para acompanhar o vibrante da sensao; a fra vegetativa do novo mundo sobretudo agitava-o vivamente. Um breve trecho do terceiro dilogo mostrar como le sabia externar suas emoes:

Certamente, diz Brandonio:, que estimara muito no me meter em semelhante trabalho (tratar das madeiras) pelo muito que h que dizer desta matria. Porque por tda parte que ponho os olhos, vejo frondosas rvores, entrabastecidas matas e intrincadas selvas, amenos campos, composto tudo de uma doce e suave primavera; porquanto em todo o decurso do ano gozam as rvores de uma fresca verdura, e to verdes se mostram no vero como no inverno, sem nunca se despirem de todo de suas folhas, como costumam de fazer em nossa Espanha; antes, tanto que lhe ci uma, lhe nasce imediatamente outra, campeando a vista com formosas paisagens, de modo que as alamedas de alemos e outras semelhantes plantas que em Madrid, Valhadolid e em outras vilas e lugares de Castela se plantam e grangeam com tanta indstria e curiosidade para formosura e recreao dos povos, lhe ficam muito atrs - quase sem comparao uma coisa de outra. Porque aqui as matas e bosques so naturais e no industriosos, acompanhados de to crescidos arvoredos, que alm de suas topadas, frescas folhas defendem aos raios do sol poder visitar o terreno de que gozam, no bastante uma flecha despedida de um teso arco por galhardo brao a poder sobrepujar a sua alteza. E destas semelhantes plantas h tantas e diversas castas que se embaraam os olhos na contemplao delas e smente se satisfazem com dar graas a Deus de as haver criado daquela sorte. Donde certamente cuido que, se neste Brasil houvera bons arbolrios, se poderiam fazer de qualidade a natureza das plantas e rvores muitos volumes de livros maiores que os de Dioscorides, porque gozam e encerram em si grandissimas virtudes e excelncias ocultas e enxergase o seu mrito em algumas poucas delas, de que nos aproveitamos.

***

Procuremos agora enfeixar os dados dispersos atravs das Dilogos das Grandezas.

Em 1618 os estabelecimentos fundados por Portuguses comeavam no Par sob o Equador, terminavam adiante de S. Vicente, alm do trpico.

Entre uma e outra capitania havia grandes espaos devolutos de dezenas de lguas. Para as bandas do serto na racha da floresta, apontava quase o mar a natureza intemerata. A populao total cabia folgadamente em cinco algarismo.

Assegura Brandonio: que as trs capitanias da Norte poderiam pr em campo mais de 10.000 homens armados, isto , deviam contar pelo menos 40.000 almas. Palpvel exagro: em tdas as capitanias juntas mal passaria desta soma a gente de procedncia portugusa.

A camada intima da populao era formada por escravos, filhos da terra e africanos. Aqueles aparecem em menor nmero, em consequncia da populao indgena ser pouco densa; os Jesutas e depois as outras ordens, riais ou menos, a exemplo dstes, pregaram pela liberdade dos ndios tornando precria sua posse; finalmente, a experincia tem demonstrado a superioridade dos africanos para o trabalho. Nste Brasil, diz Brandonio:, se h criado um novo Guin com a grande multido de escravos vindos de l que nle se acham, em tanto que em algumas capitanias h mais dles que dos naturais da terra, e todos os homens que nles vivem tm metida quase tda a sua fortuna em semelhante mercadoria. Todos fazem sua grangearia com escravos de Guin, que para sse efeito compram por subido pro... o de que vivem somente do que grangeiam com tais escravos...

Acima dste rebanho, sem terra e sem liberdade, seguiam-se os Portuguses de nascimento ou de origem, sem terras, porm livres, vaqueiros, feitores, mestres de acar, oficiais mecnicos, vivendo de seus salrios ou do feitio de obras encomendadas.

Vinham depois, j donos de terrenos, os criadores de gado vacum. Seu nmero era exguo, exigia a importncia de sua classe, o territrio colonizado limitava-se quase zona da mata, onde o gado no prospera fcilmente e cumpria defender os canaviais e outras plantaes de seus ataques. Medidas defensivas tomaram-se mais tarde, ou j comeavam a ser tomadas; mas o desenvolvimento dste ramo, destinado a assumir to vastas propores ainda no decurso daquele sculo, deve-se sobretudo ao afastamento do gado para longe da ourela litornea, evitando a mata, procurando os campos, mais tarde certas catingas menos nvias, separando a lavoura do que com alguma lisonja se poderia chamar indstria criadora.

Os lavradores de menor cabedal, ou terras menos ferazes, cultivavam mantimentos: milho, arroz, mandioca. Dos dois primeiros no faziam grande consumo as capitanias, - So Pulo era exceo quanto ao milho. No preparo da mandica usavam de grande roda movida a mo para reduz-la massa, de prensa para enxuga-la e extrair a tapioca; a farinha cozia-se em alguidares ou tachos, - talvez no Rio de Janeiro, onde muito tempo preponderou esta produo e ste comrcio, empregassem logo grandes fornos. Com tachos s se podia cozer pouca farinha de cada vez; por isso natural que a safra no se colhesse tda numa estao como agora, porm durasse o ano inteiro. No tempo de Pero Magalhes de Gandavo parece que se fazia farinha diriamente, maneira de po hoje em dias nas cidades mais povoadas. O alqueire, duas vzes e meia maior que o de Portugal, custava trezentos, duzentos e cinquenta reis, s vzes menos no principio do sculo XVII. provvel que fossem lavradores dstes os que plantavam algodo, vendido a 2$000 a arrba, depois de descaroado no maquinismo rudimentar das mquinas, encontrado ainda agora no interior e descrito pelos viajantes europeus vindos depois da transmigrao da famlia real; os que mandavam pu-brasil e depois de debastado vendiam-no aos contratadores ao pro de 700 e 800 ris o quintal; os que do serto traziam madeira e depois de transformada em caixes vendiam-nos aos fabricantes de acar razo de 450 a 500 ris cada um, ou serrada em pranches exportavam-na para o Reino. Um lavrador de mantimentos que reunisse todos sses achgos podia lucrar tanto como um senhor de engenho de primeira ordem.

Engenhos havia movidos por gua e por bois; servidos por carros ou barcos; situados beira-mar ou mais afastados, no muito, porque as dificuldades de comunicaes s permitiam arcos de limitados raios; havia-os suficientes para produzir mais de dez mil arrbas de acar e incapazes de dar um tro desta soma. Imaginemos um engenho esquemtico para termo de comparao: do esquema os engenhos existentes divergiam mais ou menos, como natural. Devia possuir grandes canaviais, lenha abundante e prxima, escravaria numerosa, boiada capaz, aparlhos diversos, moendas, cobres, formas, casas de purgar, alambique; devia ter pessoal adestrado, pois a matria prima passava por diversos processos antes de ser entregue ao consumo; da certa diviso muito imperfeita de trabalho, sobretudo certa diviso de produo. O produto era diretamente remetido para alm-mar; de alm-mar vinha o pagamento em dinheiro ou em objetos dados em troca e no eram muitos: fazendas finas, bebidas, farinha de trigo, em suma, antes objetos de luxo. Por luxo podiam comprar os mantimentos aos lavradores menos abastados e isto era usual em Pernambuco, tanto que entre os agravos dos pernambucanos contra os holandses capitulava-se o de por stes terem sido obrigados a plantar certo nmero de cvas de mandioca.

Tirando isto, o engenho representa uma economia autnoma; para os escravos tecia-se o pano al mesmo; a roupa da famlia era feita no meio dela; a alimentao constava de peixe pescado em jangadas ou, por outro modo, de ostras e mariscos apanhados nas praias e nos mangais, de caa pegada no mato, de aves, cabras, porcos para as bandas do Sul, para as do Norte ovelhas principalmente, criadas em casa: da a facilidade de agasalhar convivas inesperados, e da a hospitalidade colonial, to caracterstica ainda hoje de lugares pouco frequentados. De vacas leiteiras havia currais, poucos, porque no fabricavam queijos nem manteiga; pouco se consumia carne de vaca, pela dificuldade de criar rezes em lugares imprprios sua propagao, pelos inconvenientes para a lavoura resultantes de sua propagao, que reduziu ste gado ao estritamente necessrio ao servio agrcola. Um trecho de Frei Vicente do Salvador esclarecia melhor a situao geral: No notei eu isto tanto, escreve o historiador baiano, quanto o vi notar a um bispo de Tucuman, da ordem de So Domingos, que por algumas destas terras passou para a Crte. Era grande canonista, homem de bom entendimento e muito rico; notava as coisas e via que mandava comprar um frango, quatro ovos e um peixe e nada lhe traziam, porque no se achava na praa nem no aougue, e se mandava pedir as ditas coisas e outras muitas a casas particulares lhas mandavam. Ento o bispo: Veramente que nesta terra andam as coisas trocadas, porque tda ela no Repblica, sendo-a cada casa. E assim que estando as casas dos ricos (ainda que seja custa alheia, pois muitos devem o que tm) providas de todo o necessrio, porque tm escravos pescadores e caadores que lhes trazem a carne e o peixe, pipas de vinho e azeite que compram por junto, nas vilas muitas vzes se no acha isto de venda. - (Histria do Brasil, ps. 16-17, ed. de 1918).

Alguns dos senhores de engenho tinham lojas, ou alguns dos mercadores tinham engenhos, - para o caso presente a mesma coisa; o caractristico na mercearia eram o comrcio de consignao, que continuou ainda depois da independncia, o trfico de mascates que iam pelos lugares afastados, como ainda hoje, levar miudezas; e mais que tudo, as vendas a crdito, ou permutao de gneros. A vida econmica tinha suas faces: nas transaes internacionais ou antes inter-ocenicas era a moda o tipo a que tudo se referia; nas transaes internas dominavam o naturalismo econmico, a permuta do gnero contra gnero, ou emprstimo de gneros, e encontravam-se aqui todos os caractersticos ou quase que Hildebrand aturou para esta fase de humanidade.

Quando os diversos haveres so permutados imediatamente medida da superabundncia e da necessidade, existe a circulao natural, e todo povo comea a sua carreira econmica pela carreira naturalista. Dela so particularidades caractersticas.

1.o - Circulao de haveres, lenta, geralmente localizada, extremamente irregular, por isso muito pouca diviso de trabalho;

2. - Falta de capitais, porque falecem meios para poupar e assim falta o impulso para a formao de capitais;

3. - Completa dependncia da natureza, apatia quanto ao futuro, oscilao constante entre a superabundncia e a penria;

4. - Falta a classe de capitalistas; mesmo depois de definidas as diferenas de classe, s ficam em frente uns dos outros como fatores nicos da produo os possuidores do solo e os trabalhadores;

5. - S a propriedade de terras d poder e considerao; o trabalhador, que nada possui dela, depende inteiramente do trabalho e fica adstrito gleba, pela qual tem de prestar servios forados e pagar impostas naturalsticos; o Estado remunera o servio pela concesso de terrenos; forma-se o Estado feudal;

6. - A coao do trabalhador, a improbabilidade de melhorar de condio dificulta todo progresso considervel; por isso vigora a maior estabilidade.

A falta de capitais restringia muita as manifestaes da vida coletiva: no havia fontes, nem pontes, nem estradas. As igrejas, as casas do Conselho, as cadeias eram feitas pelo Govrno, ou com dinheiro vindo de alm-mar, ou com impostos cobrados desapiedadamente. Para as casas e concertos de diversas obras no se podiam dispensar os subsdios do errio. S as Casas de Misericrdia deviam-se exclusivamente ou quase iniciativa particular, incitada talvez por motivos egostas mais ainda que por altrusmo. As sdes de capitanias, mesmo as mais prsperas eram lugarejos insignificantes; a gente abastada possua a prdios, mas s os ocupava no tempo das festas; lojistas, oficiais, tinham de acumular ofcios para viver com certa folga.

Ajunte-se a isto a desafeio pela terra, fcil de compreender se nos transportarmos s condies dos primeiros colonos, abafados pela mata virgem, picados por insetos, envenenados por ofdios, expostos s feras, ameaados pelos ndios, indefesos contra os piratas, que comearam a acudir apenas souberam de alguma roupa a roubar. Mesmo se sobejassem meios, no havia disposio para meter mos a obras destinadas aos vindouros; esfolava-se cruamente a terra; tratava-se de ganhar fortuna o mais depressa possvel para ir desfruta-la alm-mar, onde se encontravam comodidades, abundavam atrativos, a crosta de civilizao no se empinava incontrastvel e perene. Assegura Pedro de Magalhes que os velhos acostumados ao pas daqui no queriam sair mais, possvel; dos moos, a quem no intimidavam a demora e os perigos das largas travessias, de organismos rijos para os caprichos e carrancas da zona temperada, testemunhas contestes afirmam o contrrio. Como hoje o portugus que viveu nesta ao voltar para sua terra ganha o nome de brasileiro, talvez ento o mazombo ido para a metrpole torna com os foros de ldimo portugus, ou reinol, como ento se chamava, e isto era mais um incitamento viagem.

Desafeio igual sentida pela terra nutriam entre si os diversos componentes da populao.

Examinando superficialmente o povo, discriminavam-se logo trs raas irredutveis, oriunda cada qual de continente diverso entre as quais nada favorecia a medra de sentimentos de benevolncia. To pouco apropriados a essa florao delicada, antolhavam-se seus descendentes mestios, mesclados em proporo instvel quanto receita da pele e dosagem do sangue, medidas naquele tempo, quando o fenmeno estranho e novo em tda a energia do estado nascente, tendia a observao ao requinte e atiava os sentidos at exacerba-los, medidas e pesadas com uma preciso de que nem podemos formar idia remota, botos como ficamos ante o fato consumado desde o bero, indiferentes s peles de qualquer aviao e s dinamisaes do seu sangue em qualquer ordinal.

Ao lado dstes fatores dispersivos de natureza etnogrfica formavam outros mais de ordem psicolgica. Tem sido notado que nas colnias geralmente se distinguem muito as pessoas de raa dominante nascidas na metrpole e as nascidas na dependncia. Entre os nossos vizinhos da Amrica latina os filhos de espanhois chamavamse crilos, nome dado entre ns aos negros aqui nascidos, em Ga os filhos de Portuguses chamavam-se castios; de nossa terra os nomes dos Portuguses em diferentes pontos dariam matria a um glossrio; naquele tempo eram chamados reines, como os filhos de Portuguses aqui nascidos chamavam-se mazombos. A simples existncia do nome d a entender uma espcie de capitis diminutio (pelo menos a princpio; mais tarde, o padre Antonio Vieira, nascido alis, no alm-mar, em uma carta diz-se mazombo). De ter isto realmente sucedido pode-se apresentar como prova o fato do ingls Knivet, que passou do sculo XVI ao XVII amargando no cativeiro de Salvador Corra de S, chamar ao filho dste, Martim de S, de mulato; foi o trmo de sua lngua que mais prprio lhe pareceu para exprimir a fra de mazombo.

Parece que no Brasil a diferena entre o indgena e o aliengena da mesma raa ainda passou adiante: moleque foi talvez o nome dado pelos africanos a seus Parceiros nascidos no aqum-mar; caboclos eram primitivamente chamados os ndios catequizados em aldeias pelos Jesutas e seus rivais de catequese.

sse estado centrfugo comeou a ceder desde a terceira e quarta decadas do sculo XVII. Reinis, mazombos, moleques, caboclos, mulatos, mamalucos, tdas as denominaes se sentiam com tdas as diferenas que os apartavam irredutivelmente, mais prximos uns dos outros que dos Holandses, e da a guerra que de 1624 a 1654 no se interrompeu enquanto o invasor calcou o solo da ptria. O mesmo sentimento de solidariedade foi-se avigorando a ponto de que ao primeiro e segundo decnios do sculo XVIII o portugus passou categoria de inimigo, e rebentaram as guerras dos Mascates entre pernambucanos e dos emboabas entre os pulistas.

Antes disto j se efetuara a fundio de Brandonio: quando a respeito da terra assim dizia a Alviano:

Condenso minha pouca memria em vos dizer que isto se remediar quando a gente que houver no Brasil fr por mais daquela que de presente se h mistr para o grangeamento dos engenhos de fazer acares, lavoura e mercearia, porque ento os que ficarem sem ocupao de fra ho de buscar alguma de novo de que lanar mo, e por esta maneira se faro, uns pescadores, outros pastores, outros horteles, e exercitaro os demais ofcios, dos que hoje no h nesta terra na quantidade que era necessrio houvesse. E com isto assim suceder, logo no haveria falta de nada, e a terra abundaria de tudo o que lhe era necessrio, enxergando-se ao vivo a sua grande fertilidade e abundncia, com no ter necessidade de coisa nem uma das que se trazem de Portugal; e quando o houvesse fra de poucas.

***

Os esforos at hoje tentados Para levantar o anonimato dos Dilogos das Grandezas do Brasil tm sido perdidos. Para que aventar novas hipteses? A quem quizer tentar a aventura podem ser indicados dois rastros novos:

a) - Diz Brandonio: que em 1583 estava a seu cargo o recebimento dos dzimos de acar na capitania de Pernambuco e acrescenta, que era ento novo na terra. Entre os contratadores de dzimos da terra conhecemos Bento Dias de Santiago entrou nas guerras de Duarte de Albuquerque Coelho, segundo donatrio, feitas depois do embarque de Jorge de Alburqueque em 1565 (Frei Vicente do Salvador, Histria do Brasil, os. 198, ed. de 1918). Um alvar de 12 de Fevereiro de 1572 manda levar-lhe em conta certa quantia de dinheiro; outra de 23 de Dezembro de 1575 designa-o como contratador dos dzimas de Pernambuco e Itamarac. Documentos exitentes por cpia na biblioteca do Instituto Histrico mostram que Bento Dias Santiago arrematou os dzimos de Pernambuco em 1576, 1577, 1578, 1582, 1583, 1584 e 1585. Nos ltimos anos arrematou igualmente os da Bahia. No de 1583 obteve uma moratoria de dez dias em seus pagamentos, equivalente aos dez dias suprimidos em Outubro do ano anterior, quando se ps em vigor o calendrio gregoriano.

Bento Dias de Santiago, morador em Pernambuco desde 1565 no podia dizer-se novo na terra e est fora de combate; mas um documento de 1582 permite-lhe nomear escrives para assistir saida dos acares, outro de 1583 fala em seus feitores. O autor dos Dilogos das Grandezas do Brasil pode ter sido seu feitor ou escrivo: pode ter sido seu parente. Um dos historiadores da guerra pernambucana Diogo Lopes de Santiago, embora caprichosamente Barbosa Machado o considere natural da cidade do Prto, o nome est indicando como pertencente famlia. Por que dela seria a primeira pessoa amante de escrever?

b) - Passemos ao outro rastro.

Barcia afirma que o autor dos Dilogos se chamava Brando, e era vizinho de Pernambuco. Provvelmente conclui isto da leitura do livro. A concluso nada tem de repugnante: podia apresentar-se com o nome ligeiramente alatinado, como sem alatinamento aparece Garcia da Orta em seus Colquios, que o nosso autor conhecia.

Os documentos contemporneos falam em diversas Brandes: o que tem mais probabilidades, ou antes o nico a ter probabilidades a seu favor, chamava-se Ambrosio Femandes Brando, e a respeito dle encontra-se o seguinte na Histria de Frei Vicente do Salvador, e em uma sesmaria descoberta pelo meritrio Irineu Joffily:

Morava em Pernambuco em 1583, e acompanhou Martim Leito em uma de suas expedies contra os francses e ndios do Paraba, no psto de capito de mercadores.

Antes de 1613 estabeleceu-se na Paraba, foi por muitas vzes como capito de infantaria guerra contra os gentis Petiguares e Francses.

Antes de 1613 possuia dois engenhos prximos sede da Capitania chamados Inobi, por outro nome de Santos Cosme e Damio, e o do Meio ou So Gabriel.

Em 1613 pediu para fazer outro engenho na ribeira de Gurga, uma sesmaria, que de fato lhe foi concedida a 27 de Novembro de 1613.

Ignora-se quando faleceu; j no era dos vivos quando os Holandses tomaram a Paraba, Os herdeiros de Brando emigraram; a Companhia das ndias Ocidentais confiscou os trs engenhos, vendeu-os a um negociante de Amsterdam chamado Isac de Rasire, que ao Inobi crismou Amistel, ao de So Gabriel crismou Middelburg, ao de baixo crismou La Rasire.

Depois da restaurao contra os Holandses os engenhos dos Brandes caram nas mos de Joo Fernandes Vieira.

, pelo menos, o que assegura um parente de Andr Vidal de Negreiros, em cujas palavras Varnhagen se louva.

J. Capistrano de Abreu.

Aditamento

Bento Dias de Santiago, o opulento cristo-novo, contratador dos dzimos que pertenciam fazenda real nas capitanias da Bahia de Todos os Santos, Pernambuco e Itamarac, obteve por um alvar ou proviso (sem data por incompleta na cpia existente no Instituto Histrico, Conselho Ultramarino - Registros, II, fls. 66v., mas provavelmente de fins de 1582), permisso para nomear escrives que assistissem sada dos acares; outro alvar, sse de 25 de Janeiro de 1583, determinou que no Brasil no fossem despachados acares sem certido dos feitores do contratador, seguido de carta rgia da mesma data a Manuel Teles Barreto, para que os escrives das feitorias e alfndegas no passassem despacho de acares sem que as partes lhes apresentassem certido dos ditos feitores de como tinham sido pagos os direitos, ibidem, fls. 77-79.

Que Ambrosio Fernandes Brando foi, como previu Capistrano de Abreu, um dos feitores ou escrives de Bento Dias de Santiago, - veio confirmar a denunciao do Padre Francisco Pinto Doutel, vigrio de So Loureno, perante a mesa do Santo Ofcio, na Bahia, a 8 de Outubro de 1591, em que como tal foi qualificado. Outro foi Nuno lvares, incluido na mesma denunciao. Eram ambos cristos-novos, ambos acusados de frequentarem a esnoga de Camaragibe, blsfemos e hereges, que trabalhavam e faziam trabalhar aos domingos e dias santos. Eram, portanto, correligionrios, exerciam cargos idnticos e deviam ser amigos.

Assim, se Ambrosio Fernandes Brando o interlocutor Brandonio:, como est admitido, o inteligente leitor destas linhas ser levado a concluir sem maior esfro que o outro interlocutor, Alviano:, bem pode ser Nuno lvares.

-Conf. Primeira Visitao do Santo Ofcio s Partes do Brasil - Denunciaes da Bahia, 518-520, So Pulo, Homenagem de Pulo Prado, 1925.

R. G. (Rodolpho Garcia)

Dilogo Primeiro

Alviano: Que bisalho sse, Sr. Brandonio:, que estais revovendo dentro nsse papel? Porque, segundo o considerais com ateno, tenho para mim que deve ser de diamantes ou rubs.

Brandonio: Nenhuma coisa dessas , sino uma lanugem que produz aquela rvore fronteira de ns em um fruto que d do tamanho de um pcego, que semelha prpriamente a l. E porque ma trouxe agora h pouco a amostrar uma menina, que o achou cada no cho, considerava que se podia aplicar para muitas coisas.

Alviano: No de menos considerao me parece o modo da rvore que o fruto dela; porque, segundo estou vendo, semelha haver-se produzido do sobrado desta casa, onde deve ter as razes, pois est to conjunta a ela.

Brandonio: A umidade de que gozam tdas as terras do Brasil a faz ser to frutfera no produzir que infinidade de estacas de diversos pus metidos na terra, cobram e em breve tempo chegam a dar fruto; e esta rvore, que vos parece nascer de dentro desta casa, foi um esteio que se meteu na terra, sbre o qual, com outras mais, se sustenta ste edifcio, que por pender, veio a criar essa rvore, que demonstra estar unida com a parede.

Alviano: Aos que ignorarem sse segrdo deve de parecer o modo estranho; mas, contudo, dizei-me: para que efeito imaginveis que se podia aplicar essa lanugem que estveis considerando?

Brandonio: Parece-me certamente que servira para enchimentos de travesseiros, almofadas, e ainda para colches, e que tambm, se fr fiada, se poder dela fazer panos, psto que chapus tenho por sem dvida, que se faro muito bons.

Alviano: Boa graa essa; pois, quando isso prestara para sse efeito, no era possvel estar tanto tempo escondido sem os homens o haverem experimentado.

Brandonio: Essa razo no concli para se deixar de entender que pode muito bem esta l ou lanugem prestar para o que diga, porque muitas coisas h ainda, assim de frutos como de minerais, por descobrir, que os homens no alcanaram sua propriedade e natureza.

Alviano: Isso entendo eu pelo contrrio; porque o mundo to velho e os homens to desejosos de novidades, que tenho para mim que no h nle coisa por descobrir, nem experincia que se haja de fazer de novo que j no fosse feita.

Brandonio: Enganai-vos nisso sumamente, Sr. Alviano:, porque ainda h muitas coisas por descobrir e segredos no achados que para diante se ho de manifestar.

Alviano: No me posso persuadir a isso; porque tudo est j to trilhado, que me parece que todos sses segrdos so resolvidos e apalpados dos homens, e smente se tem aproveitado dos que acharam ser de proveito que puzeram em uso.

Brandonio: Essa opinio nova, e como tal engano manifesto; porque quem vos amostrra, h hoje trezentos anos, uma cana de que se faz acar, e vos dissera que daquela cana se havia de formar com a indstria humana, um po de acar to formoso como hoje o vemos, te-lo-eis por causa ridiculosa; e por conseguinte, se vos fosse mostrado pedao de pano velho de linho, e vos afirmassem que daquele pano se havia de fazer o papel, em que escrevemos, quem duvida que o terieis por zombaria? E da mesma maneira, se vos puzessem diante um pouco de salitre, enxofre e carvo, com vos jurarem que daqules matemais se havia de compor uma coisa que, chegada ao fgo, derrubasse muros e fortalezas, e matasse homens de muito longe, no me fica dvida que, quanto mais v-lo afirmassem, menos o crerieis; porque haveis de saber que os primeiros inventores das coisas as acharam toscamente com um princpio mal limado, e depois os que lhe sucederam as foram apurando, at as prem no estado de perfeio em que hoje as vemos.

Alviano: Confesso o que dizeis, mas tambm no me haveis de negar que essas coisas, de que nos aproveitamos, so criadas e cultivadas com a indstria e diligncia dos agricultores e mestres inventores delas, o que no h nessa vossa lanugem que se tira de uma rvore nascida por acaso por sses campos; porque o trigo, linho e mais legumes, de que os homens se aproveitam para seus mantimentos e uso so cultivados e grangeados, e por isso do o fruto perfeito; e tanto assim, que nunca vimos o trigo ou legumes nascer pelos campos de si, sem serem cultivados dos homens.

Brandonio: Quando essa vossa opinio tivera lugar, parece que se devia tambm conceder que os homens fssem os criadores dsses frutos, a que seria tirar a Deus o haver criado tudo, e pelo mesmo caso blasfemia; pois sabemos bem que Deus criou sse trigo, linho e legumes Pelos campos, e depois a indstria humana os cultivou para se poder melhor aproveitar dles; porque nem pela Escritura dizer que No plantou vinha, se deve de cuidar que le fosse o criador dela, sino que tomou o vidonho, donde estava agreste, criado por Deus nos campos, e o pz em uso de se cultivar; com o qual levou o fruto mais perfeito. E se o trigo e mais legumes no nascem de per si nos campos, porque lhe falta a semente; e quando alguma cai, de onde se produz, o gado e as aves a trilham e comem; mas, se fra semeado em parte onde no pudesse ser destruido das alimarias, le por si produziria da semente que lhe fsse caindo ao p, como fazem as demais plantas.

Alviano: Confesso ser isso assim; porque sei muito bem que as coisas tdas foram produzidas de um princpio, o qual foi a primeira criao que nelas fz Deus; e psto que vemos alguns frutos, que parecem no ser criados neste princpio, como so as limas dces, laranjas e outras semelhantes, que a indstria humana se fz produzir por via de enxertos e outros modos que para isso buscaram todavia a causa de onde procedem so daquelas que por Deus foram primeiramente criadas. Mas esta no a materia, sbre que comeamos nossa prtica, sino de me parecer que essa lanugem, que dizeis achastes semelhante a l, deve de prestar para pouco; porque, se fra de efeito, j os nossos passados se aproveitaram dela; nem me confundem os exemplos, que alegastes, da cana de acar, papel e plvora, porque sses so uns partos que o tempo produz em muitos decursos de anos; e assim me torno a afirmar, como j disse, que melhor fra ser sse bisalho de diamantes ou rubis, que so pedras descobertas e tidas por preciosas desde o princpio do mundo.

Brandonio: E quem vos h de negar que isso fra de mais proveito pela reputao em que o mundo as tem, por serem reluzentes e campearem muito, com alegrarem a vista com sua formosura; porque delas no sei outra excelncia, psto que nunca me inclinar a ter minha fazenda embaraada nessa mercadoria; porque, quando assim fra, a teria por pouco segura.

Alviano: Peregrina opinio essa vossa por ser encontrada com estilo, que todos os homens de bom entendimento guardam, porque os tais pretendem sempre ter uma parte de sua fazenda em pedraria pela grande estimao em que est tida para com o mundo, e tambm por ser causa que em qualquer parte, por pequena que seja, se pode esconder e salvar sem ser achada; e assim, para os casos repentinos que sucedem, fica sendo de muita utilidade para quem as possui; porque nela levam cabedal bastante para suas necessidades, segundo o pro e estimao das pedras.

Brandonio: Tudo isso verdade, e ainda concedo que as pedras preciosas alegram o corao com sua vista, e para manenconizados maravilhoso remdio; e da esmeralda se tem por verdadeiro que, se a pessoa que a trouxer cometer algum ato sensual, se quebra por si, tanto ama a castidade. Contudo me torno a afirmar que no quizera ter a minha fazenda embaraada em semelhante mercadoria; porque imagino que, assim como, havendo sido a esmeralda entre as pedras preciosas a de mais estima, veio a faltar dela, pelas muitas minas que se descobriram nas ndias Ocidentais, donde se tiram em grande cpia; da mesma maneira se podem descobrir tantas minas de rubs e diamantes, que percam de sua reputao e valia, e as pessoas que as tiverem se achem por esta via sem a fazenda que cuidavam que tinham.

Alviano: No me parece mal essa vossa opinio, porque tenho visto muitas esmeraldas grandes e perfeitas, que se trazem dessas ndias, e agora, em nossos tempos apareceram outras descobertas nste nosso Brasil pelo Azeredo, que prometeram no princpio muito de si, mas logo mostraram sua fragilidade, por no serem verdadeiramente esmeraldas: do que infiro que ouro, prata e pedras preciosas so smente para os castelhanos, e que para les as reservou Deus; porque habitando ns os Portuguses a mesma terra que les habitam, com ficarmos mais orientais (parte onde, conforme a razo devia de haver mais minas), no podemos descobrir nenhuma em tanto tempo h que nosso Brasil povoado, descobrindo les cada dia muitas.

Brandonio: No se pode tirar aos castelhanos serem bons conquistadores e descobridores; porque atravessaram conquistando, desde Cartagena at Chile e Rio da Prata, que inumervel terra, pela qual foram achando quantidade grande de minas de ouro, prata, cobre, azougue, e outras diversas, de que hoje em dia gozam e se aproveitam; mas nem por isso, se deve de atribuir aos nossos Portuguses o nome de ruins conquistadores.

Alviano: Como no, se vemos que em tanta tempo que habitam neste Brasil, no se alargaram para o serto para haverem de povoar nle dez lguas, contentando-se de, nas fraldas do mar, se ocuparem smente em fazer acares?

Brandonio: E tendes essa ocupao por pequena? Pois eu a reputo por muito maior que a das minas de ouro e de prata; como alguma hora vo-lo mostrarei provado claramente. Mas, porque no tenhais aos nossos Portuguses por pouco inclinados a conquistas, abraando-vos com essa errnea opinio, vos afirmo que, de quantas naes o mundo tem, les foram os que mais conquistaram; e seno, lanai os olhos por sse Oriente, onde nossos avs conquistaram ganhando, custa de seu sangue tantos reinos opulentos, cidades famosas, provncias ricas, fazendo tributrios potentssimos reis ao imprio lusitano: o que no sucedeu aos castelhanos, porque as conquistas que fizeram nas ndias Ocidentais e Per foi por entre gente fraca e imbele, que sempre tiveram as mos atadas para a sua defsa, por lhe faltarem armas e nimos com que pudessem fazer resistncia, em tanto que quatro castelhanos, mal armados manietaram reis, poderosos de riquezas, e abundantes de gentes no seu prprio reino e dentro em suas cidades e casas, sem os seus naturais vassalos terem nimo nem indstria para os saberem defender; o que no sucedeu aos nossos Portuguses no Oriente, porque fizeram suas conquistas entre gentes belicosssimas, mui bem armadas, assim de cavalo como de p, que tinham inumerveis peas de artilharia, e outros blicos instrumentes de fgo, que hoje em dia espanta ao mundo ver a grandeza das balas que lanavam, contra as quais no arreceiavam de opor o peito, largando muitos a vida s mos de sua fria. Vde tambm tantas ilhas, situadas no meio dsse grande pgo do Oceano, as quais descobriram e povoaram, sses reinos de Angola e do Congo, ilhas do Cabo Verde e de S. Tom, esta grande terra do Brasil; de modo que aos nossos portugueses se pode, com razo, atribuir (nas muitas conquistas que fizeram por mar-e terra) o verdadeiro nome de Hrcules e de Argonautas.

Alviano: Quem h que possa duvidar disso? Mas o que digo que neste Brasil fazem curta a conquista, podendo-a fazer muito larga.

Brandonio: verdade que no se tem estendido muito para o serto; mas, para isso, haveis de saber que todos os conquistadores, que at hoje descobriram de novo as terras que nos so patentes lanaram mo, e se inclinaram trabalhando naquele exerccio de que primeiramente tiraram proveito; de onde vejo que os nossos Portuguses que povoaram as ilhas dos Ares, pelos primeiros se haverem lanado em agricultura do trigo, at o presente permanecem nela; os castelhanos, que povoaram as ilhas de Canrias, deram em plantar vinhas, e o mesmo exerccio guardam at hoje em dia, e os que povoaram as ilhas do Cabo Verde tiveram proveito da comutao de negros, e com isso vivem e no reino da Angola, da conquista que tambm fazem dles, nessa permanecem; na ilha de S. Thom deram em lavrar acar muito negro, com le continuam at o presente, e tendo aparlho para o fazer melhor, no se querem ocupar nisso. Os que povoaram as ndias Ocidentais, uns se ocuparam na pescaria das Prolas, outros em fazer anil, outros em ajuntar cochonilha, outros na cria de gados, outros em lavrarem minas, e todos naquele primeiro exerccio, em que se exercitaram nsse permaneceram. nsse nosso Brasil os seus primeiros povoadores deram em lavrar acares; Dois que muito que os de mais os fossem imitando, conforme o costume geral do Mundo, que tenho apontado? E ste o respeito por onde no Brasil seus moradores se ocupam somente na lavoura das canas de acar, podendo se ocupar em outras muitas coisas.

Alviano: No imagino eu isso nsse modo: mas antes tenho por sem dvida, que o lanarem-se no Brasil smente seus moradores, a fazer acares por no acharem a terra capaz de mais benefcios: porque eu a tenho pela mais ruim do mundo, onde seus habitadores passam a vida em continua molstia, sem terem quietao, e sobretudo faltos de mantimentos regalados, que em outras partes costuma haver.

Brandonio: Certamente que tenho paixo de vos ver to desarrazoado nessa opinio; e porque no fiqueis com ela, nem com um rro to crasso, quero-vos mostrar o contrrio do que imaginais. E para o poder fazer como convm, necessrio que me digais se o ser o Brasil ruim terra, por defeito da mesma terra, ou de seus moradores?

Alviano: Que culpa se pode atribuir aos moradores pela maldade da terra, pois est claro no poderem les suprir sua falta nem fazerem abundante a sua esterilidade.

Brandonio: Por maneira que me dizeis que terra se deve atribuir sse nome que lhe quereis dar de ruim?

Alviano: Assim o digo.

Brandonio: Pois assim vos enganais: porque a terra disposta para se haver de fazer nela tdas as agriculturas do mundo pela sua muita fertilidade, excelente clima, bons cus, disposio do seu temperamento, salutferos ares, e outros mil atributos que se lhe ajuntam.

Alviano: Quando os tivera, creio eu que em tanto tempo, quanto h que povoada de gente portugusa, j tiveram descobertos sses segrdos, que at agora no acharam pelos no haver.

Brandonio: J me h de ser frado fazer-vos retratar dessa erronia em que estais. No vdes vs que o Brasil produz tanta quantidade de carnes domsticas e selvticas, que abunda de tantas aves mansas, que se criam em casa, de tda sorte, e outras infinitas, que se acham pelos campos; to grande abundncia de pescado excelentssimo, e de diferentes castas e nomes; tantos mariscos e caranguejos que se colhem e tomam custa de pouco trabalho; tanto leite que se tira dos gados; tanto mel que se acha nas rvores agrestes; ovos sem conta, frutas maravilhosas, cultivadas com pouco trabalho, e outras sem nenhum que os campos e matos do liberalmente; tanto legume de diversas castas, tanto mantimento de mandioca e arroz, com outras infinidades de coisas salutferas e de muito nutrimento para a natureza humana, que ainda espero de vo-las relatar mais em particular. Pois terra que abunda de tdas estas cousas como se lhe pode atribuir falta delas? Porque certamente que no vejo eu nenhuma provncia ou reino, dos que h na Europa, sia ou frica, que seja to abundante de tdas elas, pois sabemos bem que, se tem umas lhe faltam outras; e assim errais sumamente na opinio que tendes.

Alviano: Pois de que nasce haver tanta carestia de tdas essas coisas, se me dizeis que abunda de tdas elas?

Brandonio: culpa, negligncia e pouca indstria de seus moradores, porque deveis de saber que ste estado do Brasil todo, em geral, se forma de cinco condies de gente, a saber: martima, que trata de suas navegaes, e vem aos portos das capitanias dste Estado com suas nus e caravelas, carregadas de fazendas que trazem por seu frete, onde descarregam e adubam suas nus, e as tornam a carregar, fazendo outra vez viagem com carga de acares, pu do Brasil e algodes para o reino, e de gente desta condio se acha, em qualquer tempo do ano, muita pelos portos das capitanias. A segunda condio de gente so mercadores, que trazem do reino as suas mercadorias a vender a esta terra, e comutar por acares, do que tiram muito proveito; e daqui nasce haver muita gente desta qualidade nela com suas lojas de mercadorias abertas, tendo correspondncia com outros mercadores do reino, que lhas mandam; como o intento dstes fazerem-se smente ricos pela mercncia, no tratam do aumento da terra, antes pretendem de a esfolarem tudo quanto podem. A terceira condio de gente so oficiais mecnicos de que h muitos no Brasil de tdas as artes, os quais procuram exercitar, fazendo seu proveito nelas, sem se lembrarem por nenhum modo do bem comum. A quarta condio de gente de homens que servem a outros por soldada que lhe do, ocupando-se em encaixamento de acares, feitorizar canaviais de engenhos e criarem gados, com nome de vaqueiros, servirem de carreiros e acompanhar seus amos; e de semelhante gente h muita por todo ste Estado, que no tem nenhum cuidado do bem geral.

A quinta condio daqules que tratam da lavoura, e estes tais se dividem ainda em duas espcies: a uma dos que so mais ricos, tm engenhos com ttulos de senhores dles, nome que lhes concede Sua Magestade em suas cartas e provises, e os demais tm partidas de canas; a outra, cujas fras no abrangem a tanto, se ocupam em lavrar mantimentos legumes. E todos, assim uns como outros, fazem suas lavouras e grangearias com escravos de Guin, que para sse efeito compram por subido pro; e como o do que vivem somente do que grangeam com os tais escravos, no lhes sofre o nimo ocupar a nenhum dles em cousa que no seja tocante lavoura, que professam de maneira que tm por muito tempo perdido o que gastam em plantar uma rvore, que lhes haja de dar fruto em dois ou trs anos, por lhes parecer que muita a demora: porque se ajunta a isto o cuidar cada um dles que logo em breve tempo se ho de embarcar para o reino, e que l ho de ir morrer, e no basta a desengan-los desta opinio mil dificuldades que, a olhos imprevistos, lhe impedem pod-la fazer. Por maneira que ste pressupsto que tm todos em geral de se haverem de ir para o reino, com a cobia de fazerem mais quatro pes de acar, quatro cvas de mantimento, no h homem em todo ste Estado que procure nem se disponha a plantar rvores frutferas, nem fazer as benfeitorias acerca das plantas, que se fazem em Portugal, e por conseguinte se no dispem a fazerem criaes de gados e outras; e se algum o faz, em muito pequena quantidade, e to pouca que a gasta tda consigo mesmo e com a sua famlia. E daqui nasce haver carestia e falta destas coisas, e o no vermos no Brasil quintas, pomares e jardins, tanques de gua, grandes edifcios, como na nossa Espanha, no porque a terra deixe de ser disposta pra estas coisas; donde concluo que a falta de seus moradores, que no querem usar delas.

Alviano: O ser novo ainda neste Estado me faz ignorar dessas grandezas, que me afirmais poder nle haver, e para que fique melhor inteirado delas a me poder retratar da minha opinio, vos peo que me digais como ou de que maneira pode haver tdas essas coisas que tendes dito ser o Brasil capaz de produzir? E assim do seu stio, bom cu, bondade de astros, e outras coisas de que o tendes feito abundante.

Brandonio: Esta provncia do Brasil conhecida no mundo com o nome de Amrica, que com mais razo houvera de ser pela terra de Santa Cruz, por ser assim chamada primeiramente de Pedralvares Cabral, que a descobriu em tal dia, na segunda armada que El-rei D. Manuel, de gloriosa memria, mandava ndia, e acaso topou com esta grande terra no vista nem conhecida at ento no mundo, e por lhe parecer o descobrimento notvel despediu logo uma caravela ao Reino com as novas do que achara, e sbre isso me disse um fidalgo velho, bem conhecido em Portugal, algumas coisas de muita considerao.

Alviano: E que o que vos disse sse fidalgo?

Brandonio: Dizia-me le que ouvira dizer a seu pai, como coisa indubitvel que a nova de to grande descobrimento foi festejada muito do magnnimo rei e que um astrlogo, que naquele tempo no nosso Portugal havia de muito nome, por sse respeito alevantara uma figura, fazendo computao do tempo e hora em que se descobriu esta terra por Pedralvares Cabral, e outrossim do tempo e hora em que teve El-Rei aviso de seu descobrimento, e que achra que a terra novamente descoberta havia de ser uma opulenta provncia, refgio e abrigo da gente portuguesa, psto que a isto no devemos dar crdito, so sinais da grandeza em que cada dia se vai pondo.

Alviano: No permita Deus que padea a nao portuguesa tantos danos que venha o Brasil a ser o seu refgio e amparo; mas dizei-me se Pedralvares Cabral ps a esta provncia nome de terra de Santa Cruz, que razo h para nestes prximos tempos se chamar Brasil, estando tanto esquecido o nome que lhe foi psto?

Brandonio: No o est para com Sua Magestade e os senhores dos conselhos; pois, nas provises e cartas que passam quando tratam dste Estado lhe chamam a terra de Santa Cruz do Brasil, e ste nome Brasil se lhe ajuntou por respeito de um pu chamado dsse nome, que d uma tinta vermelha, estimado por tda a Europa, e que s desta provncia se leva para l.

Alviano: Pois dizei-me agora da grandeza, com que j me tendes ameaado, desta provncia chamado Brasil ou terra de Santa Cruz.

Brandonio: Tem seu principio esta terra, a respeito do que est hoje em dia povoado dos Portuguses, do Rio das Amazonas, por outro nome chamado o Par, que est situado no meio da linha equinocial at a capitania de So Vicente, que a ltima das da parte do Sul da dita linha, e entre esta primeira povoao e a ltima de S. Vicente h muitas terras fertilssimas, povoaes, notveis rios, famosos portos e baas capacssimas de se recolherem nles e nelas grandes armadas.

Alviano: Pois dizei-me de cada uma em particular.

Brandonio: O Par ou Rio das Amazonas, que nos tempos presentes a primeira terra do nosso descobrimento a respeito das mais que temos povoadas para a parte do Sul, est situada, como tenho dito, na linha equinocinal, onde no temos, at o presente, (por ser novamente povoada) mais que uma pequena fortaleza guardada de poucos e mal providos soldados. Tem de boca mais de oitenta lguas, e no recncavo dste seio de tanta larguesa h inumerveis ilhas, umas grandes e outras pequenas, abastecidas de muitos arvoredos, com stios excelentssimos para se poderem fazer nelas grandes povoaes, e tdas esto cercadas de gua doce; porque tda a que ocupa ste grande recncavo desta qualidade. A terra firme pelo rio a dentro fertilssima, acompanhada de muito bons ares, e por sse respeito nada doentia; tem muitas excelentes madeiras, capazes para grandes fbricas, muito mantimento de ordinrio da terra, muita caa agreste, de que abundam todos os seus campos, muito peixe, que se pesca com pouco trabalho, sadio e saboroso, e de diferentes castas, muito marisco e at o presente (pelo pouco tempo que h que povoada) no se h feito pelos nossos nenhum benefcio na terra; a qual habita gento de cabelo corredio e cr baa, e que usa da mesma lngua de que usam os demais do Brasil.

Alviano: Sabeis porventura de onde trs seu principio to grande rio?

Brandonio: Os naturais da terra querem que o tenha de uma lagoa, que dizem estar no meio do serto, de onde afirmam nascerem os demais rios reais e caudalosos, que sabemos por tda esta costa do Brasil; fortalecem sua razo com mostrarem que na mesma conjuno, em que uns crescem, o fazem os outros, psto que o tempo esteja sereno e concertado naquela parte da costa de onde desembocam; mas eu no presuado a meter este rio do Par (de que tratamos) na conta dos demais para haver de crescer com les, pelo que tenho ouvido contar a um Peruleiro, homem nobre e rico, e no pouco ciente.

Alviano: E que o que haveis ouvido a sse Peruleiro?

Brandonio: No ano de oitenta e seis veio a Pernambuco este homem de que trato, o qual me relatou que havendo-lhe sucedido a um irmo seu, na cidade de Lima, um negcio pesado, pelo qual o vice-rei trabalhava sumamente de o haver s mos para efeito de fazer nele um exemplar castigo, lhe foi necessrio ausentar-se; e por ser buscado por tdas as partes, temeu que, se caminhasse por longo da costa, pudesse ser achado, e querendo desviar-se dste temor, se meteu pelo serto a dentro com outros dois companheiros que o quizeram acompanhar, e tendo andado, segundo seu, parecer, crca de cinquenta lguas, encontrara um rio o qual, psto que dali tomava principio, no modo do seu canal lhe parecra que devia de ser caudaloso, ajuntando-se a isto o ver que suas aguas caminhavam contra o Oriente, veio a cuidar que por ventura viria a desembocar desta outra parte, na costa do Brasil, para onde le desejava sumamente passar; pelo que, provendo-se de alguns mantimentos, que lhe deram as ndios que roda habitavam, a troco do resgate, e havendo dles mais alguns anzis, em uma cana que no prprio rio achou, com os dois companheiros que o seguiam, se metera nela, navegando sempre pela corrente abaixo, por onde de cada vez se ia o rio mais alargando e fazendo o seu canal mais profundo, at que topou com uma cachoeira, por onde as guas se despenhavam, de muito alto, por entre grandes penedos, de modo que para haverem de passar por les, lhe foi necessrio tirar a cana s costas pela margem do rio at descerem dos penedios; que dali coisa de 150 lguas mais abaixo, segundo sua estimao, acharam tambm outra cachoeira, que passaram da mesma maneira; de onde navegaram sempre, sem terem outro impedimento, at desembocarem neste rio, de que tratamos, das Amazonas; de onde por ser vero, na mesma cana, ao longo da costa, passaram s ndias, levando por mantimento do muito peixe que sempre pescavam, e alguma gua que ajuntavam em cabaos.

Alviano: Se isso passa dessa maneira, podera Sua Magestade forrar muito gasto com navegar a sua prata por sse rio abaixo.

Brandonio: Assim o afirmava o Peruleiro, dizendo que seu irmo notra, com muita curiosidade que, fazendo-se duas povoaes nas duas cachoeiras, que pelo rio acima havia, no to smente podia Sua Magestade navegar por le abaixo a sua prata, mas ainda os mercadores levariam as suas mercadorias para o Per pelo mesmo rio acima, com forrarem to grande gasto quando fazem com elas pelo comprido caminho por onde as levam.

Alviano: E as cachoeiras que dizeis haver nsse rio, no dariam impedimento a essa navegao?

Brandonio: Para isso dizia le que era necessrio que Sua Magestade mandasse lavrar trs equipaes de barcos, uns que levassem a fazenda e trouxessem a prata e mais coisas da foz do rio at a primeira cachoeira, e outros que a levassem e trouxessem da mesma maneira, da primeira at a segunda; e outros dali at donde o rio toma princpio; porque, como as partes, nas quais se havia de fazer as tais mutaes, estivessem povoadas, seria facil o pr-se em uso.

Alviano: Se isso passa na forma que sse Peruleiro vo-lo relatou tenho para mim que no devem de passar muitos anos sem se tratar dessa navegao, com grande utilidade dos mercadores e moradores do Per. E adiante dsse rio das Amazonas ou Par, para a parte do Sul, qual a primeira povoao?

Brandonio: Segue-se logo o Maranho, rio famoso, que est situado em dois graus da parte Sul da linha equinocial, o qual el-Rei D. Joo de gloriosa memria, mandava povoar com uma armada que para sse efeito ordenou, que, por ruins sucessos e algumas desordens (depois de terem tomado terra) se perdeu, sem se conseguir o efeito para que fra ordenada; e agora ltimamente, em nossos dias, o governador que foi dste Estado, Gaspar de Souza, tendo notcia verdadeira que se fortificavam e apoderavam franceses daquele grande rio por ordem de Sua Magestade, no ano de 615, ordenou uma armada de que foi capito Jernimo de Albuquerque, o qual, com felicssimo sucesso tomou terra onde, em uma batalha que deu aos Franceses j fortificados nela como o seu governador Monsieur de Reverdere, os venceu e debelou, lanando fora do rio e do stio de sua fortificao com morte de muitos, ficando a conquista pelos nossos; que hoje est povoada e fortificada por les, e metida debaixo do imprio de Sua Magestade, com se tirar por ste modo aos franceses um porto capacssimo, que tinha naquele rio para seus comrcios e abrigo das nus de corsrios que vinham de Frana, todos os amos, a roubar por esta costa do Brasil.

Alviano: Esta terra do Maranho, que dizeis estar j povoado dos nossos, alm da utilidade que segue a ste Estado do Brasil com sua povoao, por no terem nele os corsrios abrigo de onde possam reparar as suas nus, tem por ventura outras utilidades Para seus moradores, como tem as demais capitanias dste Estado?

Brandonio: At agora as no sabemos, por haver to pouco tempo que povoada; mas d de si grandes esperanas de haver de ir em muito aumento para diante; porque os nossos, de presente tem feito a sua povoao em uma ilha que est boca da barra, de vinte lguas de largo e de outros tantas de comprido, que, por ser stio capaz de ser fortificado, e aonde os Franceses o estavam, por se poder dali impedir a entrada da barra, assentaram nele: mas pelo rio acima, que grandssimo, na terra firme, se tem descoberto muitas terras fertilssimas para poderem ser povoadas, com se fazerem muitos engenhos de fazer acares, e lavrar mantimento em grande quantidade e nles se acham tantas madeiras, to boas e de tanta grandeza, que causam espanto; pelo que me no fica dvida de se fazer pai-a adiante, naquela nova povoao, um comrcio de muita importncia.

Alviano: E de que mantimentos usam os moradores que assistem nessa nova conquista para sua sustentao?

Brandonio: Dos mesmos de que se servem os demais moradores dste Estado, porque se produzem ali em grande cpia; e sobretudo abunda de muitos e bons pescados, que se tomam com muito pouco trabalho.

Alviano: E de que modo se toma sse pescado, que dizeis no custar trabalho o haver-se de pescar?

Brandonio: Mandam duas ou trs canas, ou as que querem, de noite, que se vo atravessar no largo do rio, em certo tempo do ano, se pem inclinadas com a borda pendente contra aquela parte donde a mar vem enchendo, e basta para o fazerem assentarem-se os ndios, que vo nelas, no bordo que pretendem que se incline; e em outros tempos a arrumam contra a vasante da mesma maneira; e estando assim inclinadas por espao de duas horas, sem mais outro beneficio, se enchem de peixe excelentssimo, que por si salta nelas; e como tem recolhido por esta via todo o que lhes necessrio, encaminham para a terra, donde se reparte entre todos os moradores.

Alviano: Se com tanta facilidade se faz a pescaria nsse rio, abundantes devem estar seus moradores de pescado, e, se da mesma maneira podessem haver as carnes, poderiam dizer que estavam na idade dourada, da qual fabulavam os poetas que manavam rios de mel e de manteiga.

Brandonio: Quando nisso estivera o haverem de gozar dessa idade, tambm vos poderia afirmar que gozam de carnes excelentes vida com a mesma facilidade,

Alviano: E de que modo?

Brandonio: Mandam algumas canas pelo rio acima, e nelas homens exercitados para o efeito que levam consigo farpes, e em certas paragens, por recncavos que o rio vai fazendo, em braos e lagoas, que forma pela terra a dentro, acham grande quantidade de peixes, a que chamam bois, maiores muito do que aqules de que tomam o nome, de uma proporo e figura estranha, que esto nas tais partes juntos, como em viveiro, e ali os matam s farpoadas fcilmente; porque se deixam achar sem serem buscados, por andarem sbre a gua. E estes peixes-bois no tm nenhuma diferena (comida de qualquer modo que seja) de carne de vaca; antes to semelhante a ela que vi j muitas pessoas que a comeram por tal, e depois com se lhe dizer e afirmar que era peixe a que comeram, o no quizeram crer. Assim que stes peixes-bois, que se tomam por esta via em grande quantidade podem servir aos moradores do Maranho, na falta que padecem de carnes, psto que para adiante viro a gozar de muita, por ser a terra asss disposta para criao de gados; alm de que se acha pelos campos e matos muita caa de animais agrestes, gostosos de comer e de muito nutrimento.

Alviano: Pelo que me dizeis do Maranho novamente povoado, entendo que vir a ser para adiante uma capitania (como chamam s demais do Brasil) de muita importncia; pelo que, deixando-a de parte, vos peo que me digais do stio, qualidade das demais povoaes, que se vo continuando pela costa adiante para a parte do Sul.

Brandonio: A outra povoao que segue, psto que pequena de moradores e sitio, se chama Jaguaribe, est situada em quatro grus da parte do Sul da linha equinocial, a qual no promete para adiante muita grandeza, por a terra de seus derredores no servir para mais que para mantimentos; psto que a sua costa fertilssima de ambre gris, muito esmerado, que costuma sair dela, em certos tempos do ano, em grandes pedaos, donde se colhe e se vende a mercadores e outras pessoas, que o levam e mandam para o reino; o qual , l, muito estimado, por ser le de si perfeito e alvssimo.

Alviano: Se o ambre si fora do mar nessa paragem, em muita quantidade no deixar de ir essa povoao em aumento, por que a riqueza dle suprir a pobreza da esterilidade da terra.

Brandonio: Os capites passados do Rio Grande tiravam muito proveito de o mandarem resgatar com o gento, antes da costa estar povoada, e agora, com o estar, cessaram de o fazer; e por isso fica sendo o trinio de sua capitania de pouca importncia, a qual est conjunta a esta de Jaguaribe.

Alviano: Pois dizei-me dela.

Brandonio: A capitania do Rio Grande, que foi povoada e fortificada, por mandado de Sua Magestade, por Manuel Mascarenhas Homem, capito que era de Pernambuco, e por Feliciano Coelho de Carvalho, capito que era da Paraba, no ano de 1597, est situada a seis graus da parte do Sul, tem na boca da barra uma fortaleza muito bem provida, assim de soldados pagados da fazenda de Sua Magestade, como de artilharia, com a qual se defende a entrada dos piratas franceses naquele porto, onde costumavam a ir espalmar as suas nus, e a prover-se de gua e mantimentos, e ainda a carregar de pu Brasil, que compravam ao gento da terra a trco de resgate. Assiste nesta capitania um capito de Sua Magestade a qual se prov de trs em trs anos.

No h nela engenhos de fazer acares mais de um at ste ano de 1618, por a terra ser mais disposta para pastos de gado, dos quais abunda em muita quantidade at entrar na capitania da Paraba que lhe est conjunta.

Alviano: Deixemos logo sse Rio Grande por estril, e passemo-nos capitania da Paraba; porque j a vi gabar de muito boa e frtil, e juntamente me afirmaram que custara muito dinheiro fazenda de Sua Magestade, e aos moradores de Pernambuco no pequeno trabalho e despsa, a sua conquista e povoao.

Brandonio: A capitania da Paraba est situada em sete graus e meio da parte do Sul; mete-se entre ela e a de Tamarac o Cabo Branco, bem conhecido dos navegantes.

Esta capitania de Sua Magestade por se haver povoado custa de sua fazenda e da mesma maneira o so as demais para a parte do Norte, de que at agora tratamos. A Paraba, por ser fertilssima e lavrar muitos acares nos engenhos, em que se fazem, que no seu distrito esto situados no poucos em nmero, ocupa o terceiro lugar em grandeza e riqueza das demais capitanias dste Estado; porque, tirada a capitania de Pernambuco, que com muita razo tem o primeiro lugar de tdas, e logo a da Bahia, a quem se d o segundo lugar, psto que seja cabea de tda a provncia do Brasil, por assistir nela o Governador Geral, Bispo e Casa da Relao, logo esta capitania da Paraba ocupa o terceiro lugar; porque d ela rendimento fazenda de Sua Magestade nos dzimas, que se pagam da colheita de suas novidades de acar, gado, mandioca, e, mais legumes, em cada um ano, passante de doze mil cruzados; e stes afora o que lhe montam nas alfndegas do Reino os acares que nelas entram levados nesta capitania, que so em muita quantidade. - E tenho por sem dvida, que, se no estivera to conjunta com a capitania de Pernambuco, que j se houvera aumentado no seu crescimento, com se haver comeado a povoar por poucos e pobres moradores, psto que mui valorosos soldados, do ano de 1586 a esta parte; por que, no mesmo ano, me lembra haver visto o stio onde est situada a cidade agora cheia de casas de pedras e cal e tintos templos, cobertos de matos.

Alviano: E que dano o que faz a capitania de Pernambuco a estoutra com sua vizinhana? - por que eu tenho para mim que antes lhe devia ser de proveito, por se poderem seus moradores prover com facilidade dela de todo o necessrio pela sua vizinhana.

Brandonio: Antes isso causa de no haver sido ela em mais crescimento: porque, como tem Pernambuco to chegado os seus moradores se costumam a prover dela das coisas de que tm necessidade, fazendo levar, para sse efeito, muitos acares que comutam pelo que compram, com o que engrandecem de cada vez mais a capitania de Pernambuco, e diminuem na sua. E a razo porque deixam vir as nus a ela, que viriam, se os seus moradores esperassem por elas para se haverem de prover do que lhes fosse necessrio, para sse efeito reservarem os seus acares, tendo-os prestes para com les se carregarem as ditas nus; mas, como esto j providos de Pernambuco, onde tm despendido os seus acares, as nus que vm ao seu porto no podem dar a saida que quizeram s fazendas que trazem, nem menos carregarem com a brevidade que lhes era necessria e por ste respeito vm poucas, sendo a capitania capaz de carregar em cada um ano vinte nus.

Alviano: sse inconveniente podera Sua Magestade remediar com facilidade, mandando que se no navegassem dessa capitania acares para a de Pernambuco, e com isso ficar atalhado sse dano.

Brandonio: Assim o tem mandado; mas o descido dos capites, pouco cuidado e menos curiosidade dos do governo da terra em o fazerem cumprir, ajuntando-se a isso a muita facilidade com que os governadores gerais dispensam o contrrio, desbarata tudo, de maneira que s deixa de levar acares para Pernambuco aqule que no tem.

Alviano: No devera de ser assim; porque sendo essa capitania da Paraba de Sua Magestade, tinham obrigao seus vassalos e ministros de trabalharem para aumentar, e no procurar de engrandecer a capitania de Pernambuco, que de senhorio; por sse modo, com dano to notvel de estoutra de seu Rei, que lhe tem custado tanta despsa a povoao dela.

Brandonio: Sim, custou com muitos capites e armadas, que para o efeito de sua conquista mandou ao Reino; com presdio de Castelhanos, que assistiram na guarda de suas fortalezas; o que nunca vimos nas demais conquistas que se fizeram por todo ste Estado.

Alviano: E qual a razo por que meteu Sua Magestade mais cabedal na povoao e conquista desta capitania da Paraba que costumava meter nas demais?

Brandonio: Foi por respeito do seu bom porto, no qual costumavam os piratas franceses ir a reparar suas nus, e ainda a carregar de pu do Brasil, que comutavam por resgate com o gento Petiguar, e com le e mais prezas que tomavam pela costa, tornavam a fazer sua navegao para Frana em notvel prejuzo de todo o Estado do Brasil; e tudo se atalhou com Sua Magestade se fazer senhor do seu porto e barra que, por ser com muita fra defendida dos Piratas franceses confederados com o gento Petiguar, senhor de todo o serto, belicosssimo e inclinado a guerras, custou muito trabalho e despsa faz-los reduzir nossa amizade, e desvi-los da que tinham com os franceses, sendo frado aos nossos, para se haver de conseguir ste efeito, fazerem muitas entradas com mo armada, pelo serto a dentro, principalmente a uma serra, que chamam de Copaoba, onde estava o gento junto em muita quantidade, por ser fertilssimo, e como tal se afirma dela produzira muito trigo, vinho, e outras frutas de nossa Espanha.

Alviano: Qual a razo por que se no aproveitam os nossos dessa serra, que dizeis ser to abundante?

Brandonio: No o fizeram at agora, por estar um pouco desviada para o serto e o gento que nela habitava andar desinquieto; mas j agora tem mandado Sua Magestade que se povoe, elegendo para efeito da dita povoao Duarte Gomes da Silveira, com ttulo de capito-mar da mesma serra, onde assistem j, na doutrina dos ndios, religiosos da ordem do patriarca S. Bento, com muito fruto de suas almas, e a um homem amigo meu de crdito ouvi afirmar, com outros mais, haver-se achado, nos tempos atrasados, na mesma serra, uma novidade e estranheza que me causou espanto.

Alviano: Pois no me encubrais o que vos disse sse homem haver achado nessa serra.

Brandonio: Relatou-me por coisa verdadeira que, andando Feliciano Colho de Carvalho, capito-mor que foi da dita capitania pela mesma serra, fazendo guerra ao gento Petiguar, aos 29 dias do ms de dezembro do ano de 1598, se achara junto a um rio chamado Arasoagipe, que, por ir ento sco, demonstrava smente alguns poos de gua, que o calor do vero no tinha ainda gastado, e que alguns soldados, que foram por le abaixo, toparam nas suas fraldas, com uma cova, da banda do poente, composta de trs pedras, que estavam conjuntas umas com outras, capaz de se poderem recolher dentro quinze homens; a qual cova tinha de alto, para a banda do nascente, de sete a oito palmos, e da banda do poente, trze at quatorze palmos; e ali por tda a redondeza que fazia na face da pedra se achavam umas molduras, que demonstravam, na sua composio, serem feitas artificialmente. Primeiramente banda do poente desta cova, na face mais alta dela, estavam cinquenta mossas tdas conjuntas, que tomavam princpio debaixo para cima de um tamanho, que semelhavam, no modo com que estavam arrumadas o em que se pinta por retablos o rozario de Nossa Senhora; e no cabo destas mossas se formava uma moldura de rosa desta maneira: . E de advertir que os mais dos caracteres, que se demonstravam nesta cova, se arrumavam da banda do poente, aonde da parte direita das cinquenta mossas, em um cotovelo que a pedra fazia, se demonstravam outras trinta e seis mossas, como as demais; das quais nove delas corriam do comprido para cima, e as outras tomavam atravs contra a mo esquerda, em cima delas tdas estava outra rosa, como a primeira que tenho pintada: e logo, um pouco mais abaixo, estava outra semelhante rosa, e junto dela um sinal que parecia caveira de defunto, e logo, contra a mo esquerda, se formavam doze mossas semelhantes s demais e no alto delas, que era conjunto s cinquenta primeira, pareciam uns sinais ao modo de caveiras, e da banda direita do cotovelo estava uma cruz e logo, para a banda esquerda, na face da pedra, se demonstravam, em seis partes, cinquenta mossas. Em uma das partes estavam uma rosa mal clara, porque parecia estar gastada de tempo, e logo adiante estavam outras nove mossas semelhantes primeiras, e, por tda a redondeza da cova se viam pintadas outras seis rosas, e na pedra, que se assentava em meio das duas, estavam vinte e cinco sinais ou caracteres que abaixo debuxarei, divididos em trs partes, com mais trs rosas, que os acompanhavam. O que de tudo era mais de considerao, era o estar entre duas pedras muito grandes, uma que botava a borda sbre as outras arcadamente, com estarem to juntas, que por nenhuma parte davam lugar a se poder meter por elas o brao. E na pedra de mais baixo da cova pareciam doze mossas da prpria maneira das que temos mostrado, e no meio delas se formava um circulo redondo desta qualidade . Com mais uma rosa, pintada perfeitamente; e de notar que tdas as rosas eram de uma mesma maneira, exceto uma que tinha doze folhas com a do meio. E pela redondeza desta cova estavam as molduras que tenho dito, ou caracteres que se formavam na maneira seguinte :

stes caractres todos nos deram debuxados na forma que aqui v-los demonstro.

Alviano: Certamente que imagino, pelo que noto dsses sinais que me amostrais, que devem de ser caractres figurativos de coisas vindouras, que ns no entendemos porque no me posso persuadir que a natureza esculpisse de por si sses pontos, rosas e demais coisas, sem intervir a indstria humana. E pois no podemos entender semelhante segrdo, deixai-as assim debuxadas para outros melhores entendimentos, e passemo-nos a tratar do mais que h que dizer da capitania da Paraba.

Brandonio: Governa-se por um capito-mor que de trs em trs anos provido por Sua Magestade, tem na boca da barra uma fortaleza provida de soldados pagos de sua fazenda, com seu capito. No est bem fortificada por culpa dos governadores gerais, que se descuidam de o mandarem fazer. A cidade que est situada pelo rio acima ao longo dle, psto que pequena, todavia povoada de muitas casas, tdas de pedra e cal; e j nobrecida de trs religies que nela assistem, com seus conventos, a saber: o da ordem do patriarca S. Bento, e os religiosos de Nossa Senhora do Carmo, com os do Serafico padre S. Francisco, da provncia capucha de Santo Antonio, que tem um convento suntuoso, o melhor dos daquela ordem de todo o Estado do Brasil; no espiritual esta capitania da Paraba cabea das demais, da parte do Norte, de Pernambuco adiante; por quanto se intitula o prelado Administrador da Paraba. capaz a capitania de lanar de si todos os anos vinte nus cai-regadas de acares: parte, para a banda do Sul, com a capitania de Tamarac.

Alviano: Pois dizei-me dela.

Brandonio: Est situada a capitania de Tamarac em altura de oito grus, da banda do Sul da linha Equinocial, dela hoje senhor, por Sua Magestade, o conde de Monsanto: tem a povoao em uma ilha conjunta no seu porto e barra, chamada Tamarac, da qual toma o nome tda a capitania, que contm em si muito boas terras, pelas quais h engenhos de fazer acares, que pagam penso ao senhorio, a que no fazem os moradores que so das capitanias de Sua Magestade; porque estas penses lhe importam muito, juntamente com a redzima, que se lhe deve por suas doaes, de todo rendimento que a fazenda de Sua Magestade colhe dela. No antigo teve cinquenta lguas de costa, nas quais entrava o distrito da Paraba, de que Sua Magestade a desmembrou, por haver povoado sua custa: parte com a capitania de Pernambuco, entre as quais esto metidos marcos, que dividem as suas terras.

Alviano: Passemo-nos capitania de Pernambuco, porque desejo sumamente ouvir tratar dela em particular, pela muita fama que tem adquirido no mundo de grande, rica e abundante de tudo.

Brandonio: Essa capitania tal que se antecipa a sua riqueza e abundncia fama que dela do os que a viram pelo olho: de senhorio, porque de presente capito e governador dela, por Sua Magestade, Duarte de Albuquerque Coelho, a quem importam as penses, redzima e outros direitos que dela colhe, em cada ano, ao redor de vinte mil cruzados, importando os seus dzimas, alfndega, pu do Brasil, no estado em que est hoje, fazenda de Sua Magestade perto de cem mil cruzados; isto afora os acares que se navegam e entram nas alfndegas da Reino, onde pagam os dzimos devidos nelas. Est situada em oito grus e dois tros da parte do Sul da linha equinocial. Chama-se a principal vila do seu distrito, aonde concorre e s ajunta todo o comrcio, Olinda nome que lhe deram seus primeiros Povoadores, depois que descobriram de um alto, onde est situada, a formosa vista que campia a qual pela exagerarem por tal disseram Olinda. Est esta vila situada em uma enseada, da qual saem duas pontas ao mar; de unta delas se forma o cabo to conhecido no mundo por Santo Agostinho, e a outra se chama a ponta de Jesus, por nle estar situado um formoso templo dos padres da companhia, chamado do mesmo nome. Contm em si tda a capitania cinquenta lguas de costa, que toma princpio de onde parte com a ilha de Tamarac at o rio S. Francisco; e dentro nelas h infinitos engenhos de fazer acares, muitas lavouras de mantimentos de tda a sorte, criaes sem conta de gado vacum, cabras, ovelhas, porcos, muitas aves de bolateria e outra,s domsticas, diversos gneros de frutas, tudo em tanta copia que causa maravilha a quem o contempla e com curiosidade o nota. Dentro da vila de Olinda habitam inumerveis mercadores com suas lojas abertas, colmadas de mercadorias de muito pro, de tda a sorte, em tanta quantidade que semelha uma Lisboa pequena. A barra do seu porto excelentssima, guardada de duas fortalezas bem providas de artilharia e soldados, que as defendem; os navios esto surtos da banda de dentro, segurssimos de qualquer tempo que se levante, psto que muito furioso, porque tem para sua defsa grandssimos arrecifes, onde o mar quebra. Sempre se acham nle ancorados, em qualquer tempo do ano, mais de trinta navios; porque lana de si, em cada ano, passante de cento e vinte carregados de acares, pu Brasil e algodes. A vila asss grande, povoada de muitos e bons edifcios e famosos templos, porque nela h o dos padres da Companhia de Jesus, o dos padres de S. Francisco, da ordem capucha da provncia de Santo Antonio, o mosteiro dos carmelitas, e o mosteiro de S. Bento com religiosos da mesma ordem; em todos stes mosteiros assistem padres de muita doutrina, letras e virtudes. De pouco tempo a esta parte a dividiu sua santidade, com mais as capitanias de Tamarac, Paraba e Rio Grande, do bispado da Bahia de Todos os Santos, criando nelas novamente por administrador Antonio Teixeira Cabral, prelado mui consumado nas letras e virtudes, com ttulo de administrador da Paraba. Acha-se mais na vila um recolhimento para mulheres nobres com nome de mosteiro de freiras, psto que at o presente vivem sem regra. capaz tda a capitania de Pernambuco de pr em campo seis mil homens armados com oitocentos de cavalos; porque tda a gente nobre so por extremo bons cavaleiros, e, por se prezarem muita disso, costumam a ter seus cavalos bem ajaezados e paramentados. Os padres da companhia tm escolas pblicas, aonde ensinam a ler e escrever e latinidade, e pelos mais mosteiros se leem as artes e teologia, donde saem consumados telogos. Pela terra a dentro, psto que seus moradores se no alarguem muito pelo serto, h muitas coisas que notar por grandes, assim de rios caudalosssimos, rvores de suma grandeza, alagoas e outras coisas; e a mim me lembra no ano de mil e quinhentos e noventa e um, vindo de seguir uns inimigos Petiguares, em cujo alcance fui com a gente armada, por haverem dado um assalto na mata do Brasil, aonde mataram alguns homens brancos, encontrar com uma cova, a que o gento da terra dava o nome de camucy, muito digna de considerao.

Alviano: Pois dizei-me o que vistes nessa cova.

Brandonio: Cheguei a par dela de noite, aonde me aposentei com a gente que me seguia, por me convidar a faz-lo um rio, que por ali corria de frigidssima gua; depois de estarmos aposentados, mostraram os ndios grandssimo pavor de se avizinharem boca da cova, e crescendo de cada vez mais ste receio, o qual passava ainda nos mamelucos filhos de brancos, dizendo que indubitavelmente morreria logo todo aquele que ouzasse entrar pela cova a dentro, e to arraigado estava ste temor nles que fui no poderoso a lho tirar, com lhes pedir que no arreceiassem de chegar cova porque lhes afirmava que era graa e disparate mui grande o cuidarem que os poderia matar; o que vendo que aproveitava pouco com todos les, desejei ver a causa de tanto receio, e querendo por em efeito ste desejo, com dois soldados que me quizeram acompanhar, levando outros tantos brandes acesos, entrei pela boca da cova, achando grande resistncia nos morcegos de que estava povoada, que, espantados na claridade, vinham saindo para fora, com nos darem grandes porradas no encontro que conosco faziam; contudo passamos adiante, caminhando pela cova a dentro, que se alargava em algumas partes, e em outras se tornava a estreitar, at que topamos com um pequeno ribeiro, que por debaixo corria de frigidissima gua, o qual passado, se alargava mais a cova, fazendo um reconcavo, pelo qual (oh! coisa estranha!) estavam arrumados inumerveis alguidares, que, por serem muitos, me no arremeo a querer-lhe sinalar nmero, que cada um dles tinha em si a ossada de defunto inteira com a caveira em cima, porque parece haver servido aquela cova de morturio antigo do gento; e do que mais me maravilhei foi afirmarem-me os ndios, psto que eu no o experimentei, que muitas pessoas brancas haviam j entrado naquela cova, e que, quebrando alguns alguidares daqueles, e tornando a entrar outro dia, nela os achavam inteiros e sos e com a ossada dentro.

Alviano: Isto tenho eu por fbula, psto que o modo da cova me parece estranho, e folgara de saber se pelos seus arredores se demonstravam alguns vestgios de povoaes que por ali houvesse havido, antigos; porque ento creramos haver-se trazido delas essas ossadas a sepultar naquele lugar por sse modo; mas no os havendo, parece grande curiosidade trazerem-se de longe para efeito de os meterem ali dentro.

Brandonio: Ao redor da cova no havia sino grandes matas, que, no modo de sua composio e grandeza, davam indcio de serem criadas logo depois do diluvio universal.

Alviano: Asss de grandezas me tendes relatado dessa capitania de Pernambuco, das quais no me espanto, pelo muita que j o vi engrandecer; e, para que levemos a costa enfiada, dizei-me que povoao lhe fica mais vizinha para a parte do Sul?

Brandonio: Segue-se-lhe logo a povoao e fortaleza de Sergipe del-Rei, situada em 11 grus, coisa pequena, e s abundante de gado, que naquela parte se cria em grande cpia. capitania de Sua Magestade, onde tem uma fortaleza e capito com soldados, que defendem o porto dos piratas, vedando-lhes o fazer suas aguadas e prover-se do necessrio, como costumavam fazer antes de ali haver fortaleza vizinha com a capitania da Bahia, cabea de todo ste Estado do Brasil.

Alviano: Pois dizei-me das grandezas dessa capitania, que no devem ser pequenas, pois a fz Sua Magestade cabea de um Estado to grande.

Brandonio: A capitania da Bahia est situada em 13 grus da banda do Sul da linha equinocial.

de Sua Magestade, e como tal cabea do Estado do Brasil, por ser sde aonde reside o governador geral; porque ali lhe manda Sua Magestade ter o seu assento, psto que, de poucos anos a esta parte, se h defraudado ste mandato em grande maneira; porque se contentam mais os governadores de assistirem na capitania de Pernambuco, ou seja por tirarem dela mais proveito ou por estarem mais Perto do Reino que disso no saberei dar a causa certa. Tambm a Bahia sde da cadeira episcopal, aonde assiste o bispo na sua s com cnegos, clerisia e mais dignidades, pagados todos da fazenda de Sua Magestade do rendimento dos dzimos; e da mesma maneira assiste na cidade, que toma o nome de Bahia de Todos os Santos, a Relao, com muitos desembargadores, chanceler-mor, juiz dos feitos del-Rei e da fazenda, com seu provedor-mor, e provedor-mor dos defuntos, os quais determinam e decidem as causas de todo o Estado do Brasil, com alada em bens mveis at 3.000 cruzados; porque passando da dita conta do apelao para a Relao da cidade de Lisboa. Todos stes desembargadores e mais oficiais da casa so pagos de seus salrios da fazenda de Sua Magestade.

Alviano: Tenho ouvido a muitos homens experimentados nas coisas do Brasil que essa Relao, que assiste na cidade da Bahia, d mais Perda ao Estado do que causa proveito a seus moradores.

Brandonio: Verdade que a Relao da Bahia se podera muito bem escusar, e dessa opinio fui eu sempre, e assim o signifiquei por muitas vzes ao bispo de Coimbra, D. Afonso de Castelbranco, sendo governador de Portugal; porque, alm de fazer essa casa muita despsa fazenda de Sua Magestade, podendo reservar o dinheiro que com ela gasta para outras cousas mais teis para seu servio, ela no corresponde com aquele efeito que se imaginou fizesse com a sua assistncia no Brasil; e o engano nasceu de que, como os moradores de todo este Estado se achavam molestados e agravados das insolncias de que usavam os ouvidores gerais, que antes da casa tinham a administrao da justia em sua mo, por se livrarem de to pesada carga, concorreram a Sua Magestade, pedindo-lhe que lhes mandasse uma casa de Relao ao Brasil que assentasse na Bahia de Todos os Santos, na forma que estava assentada no Estado da ndia, na cidade de Ga; no que se enganaram porque poderam reduzir a justia em melhor forma. E pelo no considerarem ento bem, se acham agora envoltos no dano presente.

Alviano: Folgra de saber qual o dano que causa a Relao que assiste na Bahia aos moradores do Estado; porque creio que, se Sua Magestade entendera que no lhe era de proveito, escusara de despender tanto dinheiro, como despende em sustent-la.

Brandonio: O dano ste; todos os moradores dste Estado, como nas capitanias onde moram so liados uns com outros por parentesco ou amizade, nunca levam seus preitos tanto ao cabo, que lhes seja necessrio concorrerem por fim com a apelao dles Relao da Bahia; porque, antes disso, se metem amigos e parentes e por meio, que os compem e concertam; de maneira que pem fim s suas causas, e daqui nascem ir poucas por apelao Bahia, e essas que vo lhe fra de mais utilidade a todos os moradores do Brasil seguirem-nas para o Reino. Porque a mim me aconteceu j (no uma, seno muitas vzes) mandar alguns papis a despachar Bahia, e no mesmo tempo que os mandava para l, mandar outros semelhantes para o Reino, e virem-me os do Reino muito antecipados dos da Bahia; porque, como tda essa costa se navega por mones, sucede encontrar-se com alguma contrria, o que dilata muito o despacho dos negcios. De mais que no h nenhum morador em todo ste Estado, to desamparado, que no tenha no Reino algum parente ou amigo, a quem possa mandar seus papis dirigidos por apelao, e mandando juntamente com les um caixo de acar, basta para a sua despsa; o que no acontece na Bahia, porque nem todos tm l parentes ou conhecidos, e, em falta dos tais, lhes fica sendo foroso haverem de seguir pessoalmente suas causas com muita despsa que fazem na jornada, sendo-lhes necessrio levarem para isso dinheiro de contado, que custa muito a ajuntar-se no Brasil, o que no sucede, como tenho dito, nos papis que se mandam ao Reino, porque basta encomendarem-se a parentes ou amigos e para sua despsa um caixo de acar; pelo que tenho considerado que devera Sua Magestade (neste negcio de justia) tomar outro meio mais til, e que redundara em comum benefcio do Estado.

Alviano: E que meio sse que poder Sua Magestade tomar?

Brandonio: Tirando e extinguindo de tda a casa da Relao da Bahia, podia em seu lugar criar no Estado trs corregedores com ttulo de comarca, da maneira que os h no Reino, e com a mesma alada; e quando se lhe acrescentasse