ambrósio de sacramentis

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Santo Ambrósio de Milão De Sacramentis Introdução Esta obra, o De Sacramentis (Acerca dos Sacramentos), é um conjunto de catequeses; é, por assim dizer, um exemplo das catequeses mistagógicas (as catequeses dadas aos catecúmenos depois do Baptismo) feitas na Igreja de Milão no século IV. S. Ambrósio instrui os neófitos sobre os sacramentos que receberam (Baptismo, Confirmação e Eucaristia), sobre os ritos que cumpriram e que observaram, e ainda sobre a oração cristã, com especial destaque para a Oração Dominical. Nela estão presentes valiosos elementos para o conhecimento dos ritos litúrgicos do século IV, bem como magníficos exemplos de exegese tipológica a partir das Escrituras, tanto do Antigo como do Novo Testamento. Surgem também pequenos comentários a certos textos, e instruções morais para todos os cristãos. Duas coisas a salientar nesta obra: primeiro, o latim de Santo Ambrósio é aqui bem mais acessível do que noutras obras mais cuidadas; não se pode dizer que o De Sacramentis tenha uma estruturação muito bem feita, porque o seu objectivo principal não era a publicação, mas a catequese; daí muitas marcas de oralidade e certos termos mais rústicos. Apesar disso, consegue ser uma prosa elegante, com alguns aspectos até de difícil compreensão. Segundo, Ambrósio parece só ter usado a Vetus Latina, a versão da Bíblia anterior à tradução de S. Jerónimo; no entanto, sente-se muito livre de fazer excursos, adaptando textos e citações, escolhendo o sentido que mais lhe interessa dentre os vários possíveis de determinada expressão ou palavra, e citando muitas vezes de cór, o que até o leva a enganar-se em certas atribuições que faz. É, no entanto, muito rico de simbolismo e de interioridade, com um estilo muito terra-a-terra na instrução dos seus filhos espirituais. É uma obra que está muito interligada a outra, um pouco mais tardia, o De Misteriis (Acerca dos

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Santo Ambrósio de Milão

De SacramentisIntrodução

 

Esta obra, o De Sacramentis (Acerca dos Sacramentos), é um conjunto de catequeses; é, por assim dizer, um exemplo das catequeses mistagógicas (as catequeses dadas aos catecúmenos depois do Baptismo) feitas na Igreja de Milão no século IV. S. Ambrósio instrui os neófitos sobre os sacramentos que receberam (Baptismo, Confirmação e Eucaristia), sobre os ritos que cumpriram e que observaram, e ainda sobre a oração cristã, com especial destaque para a Oração Dominical.

Nela estão presentes valiosos elementos para o conhecimento dos ritos litúrgicos do século IV, bem como magníficos exemplos de exegese tipológica a partir das Escrituras, tanto do Antigo como do Novo Testamento. Surgem também pequenos comentários a certos textos, e instruções morais para todos os cristãos.

Duas coisas a salientar nesta obra: primeiro, o latim de Santo Ambrósio é aqui bem mais acessível do que noutras obras mais cuidadas; não se pode dizer que o De Sacramentis tenha uma estruturação muito bem feita, porque o seu objectivo principal não era a publicação, mas a catequese; daí muitas marcas de oralidade e certos termos mais rústicos. Apesar disso, consegue ser uma prosa elegante, com alguns aspectos até de difícil compreensão. Segundo, Ambrósio parece só ter usado a Vetus Latina, a versão da Bíblia anterior à tradução de S. Jerónimo; no entanto, sente-se muito livre de fazer excursos, adaptando textos e citações, escolhendo o sentido que mais lhe interessa dentre os vários possíveis de determinada expressão ou palavra, e citando muitas vezes de cór, o que até o leva a enganar-se em certas atribuições que faz. É, no entanto, muito rico de simbolismo e de interioridade, com um estilo muito terra-a-terra na instrução dos seus filhos espirituais. É uma obra que está muito interligada a outra, um pouco mais tardia, o De Misteriis (Acerca dos Mistérios), onde se retomam muitos dos argumentos e ilustrações da presente obra, corroborando-se uma à outra.

 

 

Tradução

Livro Primeiro 

I, 1 - Abordo agora a explicação dos sacramentos que recebestes. Não havia conveniência em a dar mais cedo, porque no cristão a fé vem em primeiro lugar. Também dão, em Roma, o nome de fiéis àqueles que foram baptizados, e o nosso Pai Abraão foi justificado pela fé, não pelas obras. Recebestes o Baptismo, pelo que tendes a fé. Não me é possível julgar doutro modo, pois não terias sido chamado à graça se Cristo não te tivesse julgado digno da Sua graça.

2 - Que fizemos no Sábado? A Abertura. Estes mistérios da Abertura celebrámo-los quando o sacerdote te tocou os ouvidos e as narinas. O que quer isto dizer? Nosso Senhor Jesus Cristo, no Evangelho, quando lhe apresentaram um surdo-mudo, tocou-lhe as orelhas e a boca: as orelhas porque era surdo, a boca porque era mudo. E Ele disse-lhe «effeta». Esta é uma palavra hebraica que significa «abre-te». É então por isso que o sacerdote te tocou as orelhas, para que se abram à palavra e ao discurso do sacerdote.

3 - Mas perguntas-me: «Porquê as narinas»? Porque ao que era mudo tocou-lhe a boca; deste modo, e porque era incapaz de falar dos mistérios celestes, recebeu de Cristo a palavra. E neste caso tratava-se de um homem, mas aqui baptizam-se também mulheres, e a pureza do servidor não é tão grande como a do Mestre (pois Ele perdoa os pecados, contanto que lhos entreguemos; podemos, pois, compará-los?); por isso, e também por respeito pelo acto e pela função, o bispo não toca a boca, mas as narinas. Porquê as narinas? Para que tu recebas o bom odor da bondade eterna, e poderes dizer: «Nós somos o bom odor de Cristo para Deus», como disse o santo Apóstolo, e para que estejam em ti todos os perfumes da fé e da devoção.

 

II, 4 - Chegámos à fonte, entraste e foste ungido. Pensa naqueles que viste, pensa no que disseste, recorda exactamente as tuas memórias. Veio acolher-te um levita. Foste ungido como um atleta de Cristo, como se te fosses entregar a uma luta profana, e fizeste profissão de te entregar à luta. Aquele que luta sabe o que pode esperar: onde há combate, há uma coroa. Tu lutas no mundo, mas és coroado por Cristo, e é pelos combates sustentados neste mundo que és coroado. Apesar da recompensa estar no céu, o que merece essa recompensa encontra-se aqui.

5 - Quando te perguntaram: «Renuncias ao diabo e às suas obras?», que respondeste? «Renuncio». «Renuncias ao mundo e às suas volúpias»? Que respondeste? «Renuncio». Lembra-te da tua palavra, e não percas jamais de vista as consequências da caução que deste. Se assinas como fiador de alguém és obrigado a receber o seu dinheiro, ficando como que estreitamente ligado, e o

credor pode obrigar-te. Se contestares, irás enfrentar o juíz, e aí serás vencido por causa da tua garantia.

6 - Pensa de seguida onde prometeste ou naqueles a quem prometeste. Viste um levita, mas é um ministro de Cristo. Viste-o exercer o seu ministério juntos dos altares. A tua garantia não é então guardada sobre a terra mas no céu. Considera seguidamente onde recebeste os sacramentos celestes. Se o Corpo de Cristo se encontra aqui, os anjos também aqui estão. «Onde está o corpo, aí estão as águias», leste no Evangelho. Onde estiver o Corpo de Cristo, aí estão também as águias, que têm o costume de voar para fugir ao que é terrestre, lançando-se para o que é celeste. Porque digo tudo isto? Porque todos os homens que anunciam Cristo são também eles próprios anjos, e são chamados a tomar o lugar dos anjos.

7 - Como? Escuta: o Baptista era João, nascido dum homem e duma mulher. No entanto, escuta, ele é também um anjo: «Eis que envio o Meu anjo adiante da Tua face, e ele preparará o caminho diante de Ti». Eis uma outra prova. O profeta Malaquias diz: «Os lábios do sacerdote são guardiães da ciência, e é da sua boca que reclamamos a Lei, porque ele é o anjo do Deus Omnipotente». Isto é dito para que proclamemos a glória do sacerdócio, e não para que atribuamos seja o que for aos nossos méritos pessoais.

8 - Renunciaste então ao mundo, renunciaste ao século. Sê vigilante: aquele que deve dinheiro tem sempre presente a sua garantia. E tu, que és devedor de Cristo pela fé, guarda a fé, que é bem mais preciosa que o dinheiro, porque a fé é uma riqueza eterna, e o dinheiro temporal. Lembra-te do que prometeste, e serás mais prudente. Se guardas a tua promessa, guardarás também a tua garantia.

 

III, 9 - De seguida, aproximaste-te, viste a fonte e viste também o sacerdote junto à fonte. Não posso duvidar que não vos tenha surgido o mesmo pensamento que surgiu ao sírio Naaman que, apesar de Ter sido purificado, duvidou no início. Porquê? Vou dizê-lo, escuta.

10 - Entraste, viste a água, viste o sacerdote, viste o levita. Não terá alguém dito talvez: «É tudo»? Claro que é tudo, verdadeiramente tudo. E aí está toda a inocência, toda a piedade, toda a graça, toda a santificação. Viste o que pudeste ver com os olhos do corpo e os olhos humanos; viste não aquilo que se produziu, mas o que se vê. Mas o que não vemos é bem maior que o que vemos, «porque o que vemos é temporal, mas o que não vemos é eterno».

 

IV, 11 - Digamos em primeiro lugar: «Guarda a garantia da minha palavra e reclama a sua execução». Admiramos os mistérios dos judeus que foram dados aos nossos pais. São excelentes, em primeiro pela antiguidade dos seus

sacramentos, e em segundo pela sua santidade. Mas eis a minha garantia: os sacramentos dos cristãos são mais divinos e mais antigos que os dos judeus.

12 - Que há de mais extraordinário que a passagem dos judeus através do mar para falar agora do Baptismo? No entanto, todos os judeus que o atravessaram morreram no deserto. Pelo contrário, o que passa por esta fonte, isto é, das coisas terrestres para as coisas celestes - pois isto é uma passagem, logo é Páscoa; é a sua passagem do pecado à vida, da falta à graça, da sujidade à santificação - não morre, mas ressuscita.

 

V, 13 - Naaman era leproso. Uma escrava disse à sua mulher: «Que o meu senhor, se deseja ser purificado, vá ao país de Israel e aí encontrará quem poderá livrá-lo da sua lepra». Disse-o à sua senhora, esta ao seu marido e Naaman ao rei da Síria. Este, porque o tinha em grande consideração, enviou-o ao rei de Israel. O rei de Israel pensou que lho tinham enviado para o livrar da lepra, e rasgou as suas vestes. Então o profeta Eliseu mandou-lhe dizer: «Porque rasgaste as tuas vestes, como se não houvesse um Deus capaz de purificar um leproso? Envia-mo»! E ele enviou-lho. à sua chegada, o profeta disse-lhe: «Vai, desce ao Jordão, banha-te e serás curado».

14 - Meteu-se ele a pensar consigo próprio e disse: «É tudo? Vim da Síria à Judeia e disseram-me: "Vai ao Jordão, banha-te e serás curado"! Como se não houvessem rios melhores no meu país»! Os seus servos disseram-lhe então: «Senhor, porque não fazes o que diz o profeta? Fá-lo e experimenta». Então desceu ao Jordão, banhou-se e saiu curado.

15 - Que significa isto então? Viste a água. Nem toda a água cura, mas a água que tem a graça de Cristo cura. Há uma diferença entre o elemento e a santificação, entre o acto e a eficácia. O acto cumpriu-se com a água, mas a eficácia veio do Espírito Santo. A água não cura se o Espírito não desceu e não consagrou essa água. Tu leste que, quando Nosso Senhor Jesus Cristo instituiu o rito do Baptismo, veio Ter com João e João disse-lhe: «Sou eu que devo ser baptizado, e és Tu que vens a mim»! Cristo respondeu-lhe: «Deixa assim, porque é deste modo que convém cumprir toda a justiça». Vê, pois, que toda a justiça está colocada no baptismo.

16 - Porque foi então que Cristo desceu, senão para que a carne fosse purificada, essa carne que Ele tomou da nossa condição? Cristo não tinha necessidade de que O purificássemos dos Seus pecados, Ele que não tinha cometido pecado; mas nós tínhamos disso necessidade, nós que estamos sujeitos ao pecado. Se é então por nós que foi instituído o rito do Baptismo, é a nossa fé que esse rito foi proposto.

17 - Cristo desceu, e João foi quem baptizou. Eis que o Espírito Santo desceu como uma pomba. Não foi uma pomba que desceu, mas Ele desceu como uma pomba. Lembra-te do que te disse: Cristo tomou uma carne, não segundo a

carne; mas a segundo a realidade dessa carne, Cristo tomou verdadeiramente carne; também o Espírito Santo desceu do céu sob a aparência duma pomba: não na realidade duma pomba, mas sob a aparência duma pomba. João viu e acreditou.

18 - Cristo desceu e o Espírito desceu. Porque desceu Cristo primeiro e de seguida o Espírito Santo, visto que o rito do Baptismo comporta que a fonte seja primeiro consagrada, e só depois aquele que deve ser baptizado lá desce? Porque, logo que o sacerdote entra, faz também o exorcismo sobre a criatura que é a água, depois faz a invocação e a oração para que a fonte seja santificada e tenha em si a presença da Trindade eterna. Também Cristo desceu antes, seguindo-O o Espírito. Porquê? Porque o Senhor Jesus não tinha necessidade do mistério da santificação, mas para que Ele próprio santificasse e que o Espírito santificasse também.

19 - Assim, Cristo desceu à água e o Espírito Santo desceu como uma pomba. Deus Pai, por Sua vez, fala a partir do céu. Aí tens a presença da Trindade.

 

VI, 20 - Que houve no Mar Vermelho uma figura deste Baptismo, confirma-o o Apóstolo com estes termos: «Os nossos pais foram todos baptizados na nuvem e no mar»; e acrescenta: «Tudo isto se fez para eles em figura». Par eles em figura, mas para nós em verdade. Quando Moisés tomou a sua vara, o povo judeu estava cercado de todos os lados: os egípcios, em armas, empurravam-nos de um lado, e do outro eram detidos pelo mar. Eles não podiam nem passar o mar, nem voltar atrás para atacar o inimigo. Puseram-se a murmurar.

21 - Toma cuidado de te deixares seduzir pelo facto de terem sido escutados. Mesmo tendo-os o Senhor ouvido, não estão isentos de culpa, pois murmuram. Quando estás angustiado, tens de crer que dessa angústia hás-de sair, e não começar a murmurar; há que pedir e rezar, e não fazer ouvir queixas.

22 - Moisés segurou a sua vara e conduziu o povo dos hebreus: de noite por uma coluna de luz, de dia por uma coluna de nuvem. A luz o que é senão a verdade, pois esta expande uma luz visível e clara? A coluna de luz que é senão Cristo Senhor, que derrubou as trevas da descrença e derramou no coração dos homens a luz da verdade e da graça espiritual? Mas a coluna de nuvem é o Espírito Santo. O povo estava no mar e a coluna de luz precedia-o; depois veio a coluna de nuvem como imagem do Espírito Santo. Vês então que nos mostraram, no Espírito Santo e na água, o tipo do Baptismo.

23 - No dilúvio também já existia uma figura do Baptismo, e os mistérios dos judeus não existiam ainda, por certo. Se então a forma do Baptismo é anterior, Vês que os mistérios dos cristãos são mais antigos que os dos judeus.

24 - Mas por agora, devido á fraqueza da nossa voz e ao correr do tempo, basta hoje ter mostrado um pouco dos mistérios na fonte sagrada. Amanhã, se o

Senhor nos conceder o poder de falar, ou mesmo de o fazer com abundância, completarei o meu ensino. É preciso que a vossa santidade tenha os ouvidos atentos, o coração melhor disposto, para que possais guardar o que pude recolher da série das Escrituras, e que vos ensinei, para que tivésseis a graça do Pai e do Filho e do Espírito Santo, à Qual Trindade pertence um reino sem fim, agora e para sempre, e por todos os séculos dos séculos.

 

Livro Segundo 

I, 1 - Houve também no dilúvio uma figura antecipada do Baptismo. Começámo-la a explicar ontem. Que é o dilúvio senão o meio de preservar o justo para propagar a justiça, de fazer morrer o pecado? É por isso que o Senhor, porque viu multiplicarem-se as faltas dos homens, preservou só o justo com a sua descendência, enquanto ordenava à água que submergisse mesmo o cume das montanhas. Este dilúvio também fez perecer toda a corrupção da carne, ao passo que somente a raça e o modelo do justo subsistiram. Não é o Baptismo este dilúvio, onde são apagados todos os pecados, enquanto que só ressuscitam o espírito e a graça do justo?

2 - Há muitas espécies de baptismos, mas não há senão um só Baptismo, clama o Apóstolo. Porquê? Há os baptismos dos pagãos, mas não são baptismos. São abluções somente, e não podem ser baptismos. A carne é lavada, mas a falta não é apagada; pelo contrário, esta ablução faz contrair uma. Há ainda também os baptismos dos judeus, uns supérfluos, outros em figura. Esta figura é-nos útil, porque é mensageira da verdade.

 

II, 3 - Que te lemos ontem? Um anjo, foi dito, descia em certas alturas à piscina, e cada vez que o anjo descia, a água agitava-se, e o primeiro que para lá descesse era curado de qualquer doença que tivesse. Isto representa a figura de Nosso Senhor Jesus Cristo, que devia vir.

4 - Um anjo porquê? É que Ele próprio é o «Anjo do Grande Conselho». E só em determinada ocasião, porque tal estava reservado para a última hora, para deter o dia no próprio declinar e diferir o seu ocaso. Cada vez que o anjo descia, a água agitava-se. Dirás talvez: «Porque não se agita ela agora»? Escuta o porquê: «Os sinais são para os incrédulos, a fé para os crentes».

5 - Aquele que descesse em primeiro era curado de qualquer doença. Que significa em primeiro: em tempo ou em dignidade? Compreende-o nos dois sentidos. Se se trata do tempo, o primeiro que descesse era curado primeiro, isto é, trata-se do povo judeu em relação ao povo dos gentios. Se se trata de

dignidade, o primeiro que desceu é aquele que tinha o temor de Deus, o desejo da justiça, a graça da caridade, o amor da pureza, e foi Ele que foi curado em primeiro. No entanto, nessa época, um só foi salvo, somente aquele que desceu primeiro e foi curado. Quão maior é a graça da Igreja, na qual todos aqueles que descem são salvos!

6 - Mas vede o mistério: Nosso Senhor Jesus Cristo veio à piscina, onde jaziam muitos doentes; e seguramente muitos ali jaziam, onde um só era curado. Então Ele disse ao paralítico: «Desce». Ele respondeu: «Não tenho homem que me faça descer». Vê tu onde és baptizado: de onde vem o Baptismo senão da Cruz de Cristo, da morte de Cristo? Ali está todo o mistério: Ele sofreu por ti; é n'Ele que foste redimido, é n'Ele que foste salvo.

7 - «Não tenho homem que me faça descer», disse ele. Isto é, a morte veio por um homem e a ressurreição veio por um homem. Não podia descer, não podia ser salvo aquele que não acreditava que Nosso Senhor Jesus Cristo tinha tomado carne de uma Virgem. Mas este, que esperava o Mediador entre Deus e os homens, o homem Jesus, ao esperar Aquele de Quem é dito: «E o Senhor enviará um homem para os salvar», dizia: «Não tenho homem que me faça descer». Por essa razão mereceu a sua cura, porque acreditou n'Aquele que vinha. No entanto, teria sido melhor e mais perfeito se já tivesse acreditado que Aquele de Quem esperava a vinda já tinha chegado.

 

III, 8 - Vê agora o pormenor. Já dissemos que houvera uma figura antecipada no Jordão, quando Naaman, o leproso, foi purificado. A jovem serva entre os cativos, que é senão aquela que tinha os traços da Igreja e representa a sua figura? Estava cativo, com efeito, o povo dos pagãos. Estava cativo. Não falo do cativeiro imposto a um povo por um qualquer inimigo, mas falo desse cativeiro maior, quando o diabo e os seus impõem uma cruel dominação, submetendo ao seu jugo os pecadores.

9 - Tens aqui então um Baptismo, um outro no dilúvio. Tens uma terceira espécie de Baptismo, quando os nossos pais foram baptizados no Mar Vermelho. Tens uma quarta espécie na piscina, quando a água se agitava. Agora, pergunto-te: deves crer que tens a presença da Trindade neste Baptismo com que Cristo baptiza na Igreja?

 

IV, 10 - Assim diz Nosso Senhor Jesus Cristo aos seus Apóstolos no Evangelho: «Ide, baptizai todas as gentes no nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo». É a palavra do Salvador.

11 - Diz-me, oh homem: Elias invocou o fogo do céu, e o fogo desceu do céu; Eliseu invocou o nome do Senhor, e o ferro do machado que tinha submergido voltou à tona de água. Não será uma outra espécie de Baptismo? Porquê? É que

todo o homem, antes do Baptismo, mergulha e afunda-se como o ferro; a partir do momento em que foi baptizado, já não imita o ferro, mas eleva-se como uma espécie mais leve de árvore frutífera. Há então aqui ainda uma outra figura: era um machado com o qual se cortava a madeira, mas a lâmina separou-se do cabo e o ferro afundou-se. O filho de profeta não soube que fazer, sabendo somente rogar ao profeta Eliseu a pedir um remédio. Este meteu a madeira na água, e o ferro voltou à superfície. Considera então que esta madeira é a cruz de Cristo, que alivia a enfermidade de todos os homens.

12 - Eis outra coisa, apesar de não seguirmos a ordem dos factos (pois quem poderia entender tudo o que Cristo fez, como disseram os Apóstolos?): Moisés tinha chegado ao deserto, e o povo tinha sede. Tinha chegado à fonte de Marah e queria beber, mas assim que dela bebeu, sentiu-lhe o amargor, e foi-lhe impossível bebê-la. Foi por causa disso que Moisés colocou um lenho na fonte, e a água que era antes amarga começou a adoçar-se.

13 - Que é que isto significa senão que toda a criatura sujeita à corrupção é uma água amarga para todos? Mas mesmo se for doce por um momento, mesmo se for agradável por um momento, ela é amarga pois não pode deixar o pecado. Depois de teres bebido, terás sede, e depois de teres sentido a sua doçura, provarás de novo o seu amargor. É então uma água amarga. Mas depois de ter recebido a cruz de Cristo, o Sacramento celeste, começa a tornar-se doce e agradável, visto que a cruz faz afastar a culpa. Então, se o poder dos baptismos em figura tanto valeu, quanto maior será o poder do Baptismo em verdade!

 

V, 14 - Então consideremos agora: o sacerdote veio, disse uma oração junto à fonte, invocou o nome do Pai, a presença do Filho e do Espírito Santo, servindo-se de palavras celestes. Esta palavras divinas são as de Cristo, mandando baptizarmos em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo. Se à palavra de um homem, se à invocação dum santo a Trindade Se tornou presente, quanto mais não está ela presente aí onde age a Palavra Eterna? Quereis estar certos de que o Espírito Santo desceu? Ouvistes que Ele desceu como uma pomba. Porquê como uma pomba? Para que os descrentes sejam chamados à fé. No início foi necessário que houvesse um sinal, mas de seguida é necessário que haja perfeição.

15 - Eis outra coisa: Depois da morte de Nosso Senhor Jesus Cristo, os Apóstolos estavam reunidos num só lugar, no dia de Pentecostes, quando subitamente se fez ouvir um grande rumor, como se um vento soprasse com violência, e viram como que línguas de fogo que se separavam. Que é isto senão a descida do Espírito Santo, que quis manifestar-Se a Si próprio de uma forma corporal por um sinal, e de uma maneira espiritual pelo Sacramento? Isto é então uma prova manifesta da Sua vinda, mas a nós é-nos oferecido o privilégio da fé, porque no princípio haviam sinais para os descrentes, enquanto que para nós, que estamos já na plenitude da Igreja, Ele nos faz ver a verdade, não por um sinal, mas pela fé.

 

VI, 16 - Examinemos agora aquilo a que chamamos Baptismo. Vieste até à fonte, desceste até ela; viste o sumo-sacerdote, viste os levitas e o presbítero junto da fonte. O que é o Baptismo?

17 - No princípio, o nosso Deus fez o homem imortal, para que, se não provasse o pecado, não morresse de morte. Mas contraiu o pecado, tornando-se sujeito à morte, e foi expulso do Paraíso. Mas o Senhor, que queria fazer permanecer os Seus benefícios e destruir todas as insídias da serpente, e arrancar também tudo aquilo que se tinha envenenado, lançou logo no início uma sentença contra o homem: «Tu és terra, e à terra voltarás», tornando o homem sujeito à morte. Foi uma sentença divina, que não podia ser abolida pela humanidade. Foi dado um remédio: que o homem morresse e ressuscitasse. Porquê? Para que aquilo que antes servira de condenação servisse agora de benefício. E que mais foi tal senão a morte? Perguntas como? É que a morte, pela sua intervenção, mete um fim ao pecado: com feito, quando morremos, deixamos de pecar. Parece então que tínhamos satisfeito a sentença, visto que o homem, que tinha sido criado imortal, com a condição de não pecar, se tinha tornado mortal depois desse momento. Apesar disso, para que o favor divino durasse perpetuamente, o homem morreu, mas Cristo encontrou a ressurreição; isto é, Ele quis restabelecer o benefício celeste que tinha sido perdido pela fraude da serpente. As duas coisas estão agora a nosso favor: a morte é o fim dos pecados e a ressurreição é a reforma da natureza.

18 - Entretanto, para que as investidas ou embustes do diabo não prevalecessem neste mundo, foi encontrado o Baptismo. Escuta o que a Escritura diz deste Baptismo, ou melhor, o que diz o próprio Filho de Deus: porque os fariseus não quiseram receber o Baptismo de João, desprezaram o desígnio de Deus. Logo, o Baptismo é o desígnio de Deus. Quanta não é a graça que se encontra onde está o desígnio de Deus!

19 - Escuta então: para remover neste mundo os elos do diabo, foi encontrado o meio de fazer morrer o homem vivo e de o fazer ressuscitar vivo. Que é isto de vivo? Quer dizer vivo da vida do seu corpo, logo que venha à fonte e seja mergulhado nela. De onde vem a água senão da terra? Satisfaz-se então a sentença divina sem passar pelo aniquilamento da morte. O facto de te banhares cumpre a sentença: «Tu és terra e à terra voltarás». A sentença está executada, e há lugar para o benefício e para o remédio do céu. A água veio, pois, da terra: a nossa possibilidade de vida não permitiu que fossemos recobertos de terra e que daí ressuscitássemos, e também não é a terra que lava, mas sim a água. Assim, a fonte é como que uma sepultura.

 

VII, 20 - Foi-te perguntado: «Crês em Deus Pai Omnipotente»? Respondeste : «Creio»! E foste mergulhado, isto é, sepultado. Uma segunda vez te foi perguntado: «Crês em Nosso Senhor Jesus Cristo e na Sua cruz»? Respondeste:

«Creio»! E foste mergulhado, sendo por isso sepultado com Cristo, porque aquele que é sepultado com Cristo ressuscita com Cristo. Foi-te perguntado uma terceira vez: «Crês também no Espírito Santo»? Respondeste: «Creio»! E foste mergulhado uma terceira vez, para que a tua tripla confissão destruísse as múltiplas quedas do passado.

21 - E ainda mais, para vos dar um exemplo: o Santo Apóstolo Pedro também sucumbiu, aquando da paixão do Senhor, por causa da fraqueza da condição humana. Para apagar e reparar aquela falta, ele, que O tinha logo de início negado, foi interrogado uma terceira vez por Cristo, que lhe perguntava se O amava. Ele respondeu: «Tu bem o sabes, Senhor, que Te amo». Respondeu uma terceira vez para ser absolvido uma terceira vez.

22 - Então, se o Pai remiu o pecado, também da mesma forma o remiu o Filho e o Espírito Santo. Que nós sejamos baptizados num só nome, no nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo, não te espante: Ele não fala senão de um nome onde não há senão uma só substância, uma só divindade, uma só majestade. É o nome de Quem é dito: «É n'Ele que todos devem ser salvos». É neste nome que todos vós fostes salvos, que todos vós fostes entregues à graça da vida.

23 - O Apóstolo clama então, como ouvistes ler há pouco: «Aquele que for baptizado, é baptizado na morte de Jesus». Que significa na morte? Quer dizer que, tal como Cristo morreu, tens também que provar a morte; tal como Cristo viveu e morreu para o pecado e viveu para Deus, tens também de morrer para os antigos laços do pecado, pelo sacramento do Baptismo, e ressuscitar pela graça de Cristo. É uma morte, não pela realidade duma morte corporal, mas em semelhança. Quando és mergulhado, tomas em ti a semelhança da Sua morte e da Sua sepultura, e recebes o sacramento da cruz, visto que o Seu corpo ali foi pregado com cravos. Então quando és crucificado, és fixado a Cristo, pregado com os cravos de Nosso Senhor Jesus Cristo, para que o diabo não te possa de lá arrancar. Que os cravos de Cristo te agarrem, Ele que tira a fraqueza da natureza humana.

24 - Foste mergulhado, e aproximaste-te do sacerdote. Que te disse ele? «Deus Pai Omnipotente, que te fez renascer da água e do Espírito Santo e que te perdoou os teus pecados, te unja Ele mesmo na vida eterna». Vê onde foste ungido: na vida eterna. Não prefiras esta vida àquela outra. Se, por exemplo, surge um inimigo, se ele te quiser tirar a fé, se profere ameaças de morte para que nos afastemos do caminho direito, vê o que tens a escolher. Não escolhas aquele no qual não foste ungido, mas escolhe antes aquele em que foste ungido, de maneira a que prefiras a vida eterna à vida temporal.

  

Livro terceiro 

I, 1 - Falámos ontem da fonte, que na sua aparência é como uma espécie de sepulcro, na qual somos recebidos e mergulhados, crentes no Pai e no Filho e no Espírito Santo, levantando-nos depois, isto é, ressuscitando. Recebeste também o mu/ron, isto é, o unguento sobre a cabeça. Porquê sobre a cabeça? Porque a cabeça é a sede dos sentidos do sábios, diz Salomão. É que a sabedoria sem a graça é inactiva, mas depois de receber a graça, a obra da sabedoria começa a tornar-se perfeita. A isto se chama regeneração.

2 - O que é a regeneração? Encontras nos Actos dos Apóstolos que o versículo que é dito no Salmo 2, «Tu és Meu Filho, Eu hoje Te gerei», parece aplicar-se à ressurreição. Com efeito, o santo Apóstolo Pedro, nos Actos dos Apóstolos, interpretou-o desta maneira, dizendo que quando o Filho ressuscitou da morte, a voz do Pai se fez ouvir assim: «Tu és meu Filho, Eu hoje Te gerei». É por isso que Ele é também chamado Primogénito de entre os mortos. Que é então a ressurreição senão o momento em que ressurgimos da morte para a vida? Então, se indubitavelmente há também no Baptismo uma similitude com a morte, isto é, quando mergulhas, quando ressurges há uma imagem da ressurreição. Assim, seguindo a interpretação do Apóstolo, é justo dizer que, se aquela ressurreição é uma regeneração, esta ressurreição é também uma regeneração.

3 - Mas porque dizes que é na água que mergulhas? É por isso que te afastas, é por aqui que a dúvida te retém? Podemos ler: «Que a terra produza dela mesma um fruto que germine». Leste também a propósito das águas: «Que as águas produzam animais». Elas nasceram no início da criação, mas foi-te reservado que as águas te regenerassem para a graça como geraram os outros para a vida. Imita esse peixe que recebeu um favor menor; no entanto, ele deve ser para ti um milagre. O peixe vive no mar e está debaixo das vagas; está no mar e nada por entre as ondas. A tempestade põe em fúria o mar, os ventos violentos sopram, mas o peixe nada e não se afunda, porque está habituado a nadar. Para ti, o mar é este mundo. Ele tem correntes diversas, grandes vagas, tempestades furiosas. Sê tu também um peixe, para que as vagas do mundo não te engulam. O Pai tem razão em dizer ao Filho: «Eu hoje Te gerei»; isto é, «quando redimiste o povo, quando o chamaste ao Reino do céu, quando cumpriste a Minha vontade, provaste que és o Meu Filho».

4 - Subiste da fonte; e que se passou em seguida? Ouviste a leitura. O pontífice retirou as suas vestes, pois se os presbíteros o fazem também, é no entanto o sumo-sacerdote que começa este serviço. Tendo retirado as suas vestes, o sumo-sacerdote lavou-te os pés. O que é este mistério? Ouviste como o Senhor, depois de ter lavado os pés aos outros discípulos, chegou junto de Pedro e que este Lhe disse: «Tu, a lavares-me os pés»? Isto como que a dizer: «Tu, o Mestre, lavas os pés ao servidor? Tu, que és imaculado, lavas-me os pés? Tu, que és o Criador dos céus, lavas-me os pés»? Encontras o mesmo também noutro lado: «Ele veio a João e João disse-lhe: "Sou eu que devo ser baptizado por Ti, e és Tu que vens a mim»? Eu sou um pecador, e Tu vens ao pecador como que para depôr os teus pecados, tu que não cometeste pecado! Vês toda a justiça, vês a graça, vês a humildade, vês a santidade. «Se não te lavar os pés - disse Ele - não terás parte Comigo».

5 - Não ignoramos que a Igreja Romana não tem este costume, apesar de seguirmos em tudo o seu exemplo e o seu rito. No entanto, ela não tem este costume de lavar os pés. Toma então atenção: pode ser que ela disto se tenha escusado por causa do grande número [de Baptismos]; há, no entanto, quem tente disto escusar-se, dizendo que não é preciso fazê-lo enquanto decorre o mistério, não no Baptismo, não na regeneração, mas que só é preciso lavar os pés como se faz aos hóspedes. Esta forma releva da humildade, a outra da santificação. Precisamente, escuta, pois é um mistério e uma santificação: «Se não te lavar os pés, não terás parte Comigo». Eu não disse isto para criticar outros, mas para justificar o ofício que emprego. Desejo seguir em tudo a Igreja Romana, mas também nós somos dotados de razão humana. Também aquilo que vemos nos outros com melhores razões [que as nossas], nós o guardamos igualmente, e por essas melhores razões.

6 - É ao próprio Apóstolo Pedro que seguimos, é ao seu fervor que estamos unidos. Que responde a isto a Igreja Romana? Sim, é o próprio Apóstolo Pedro que nos sugere esta afirmação, ele que foi sacerdote da Igreja Romana; é ele próprio que diz: «Senhor, não somente os pés, mas também as mãos e a cabeça». Vês a sua fé: a recusa que tinha feito antes vinha da sua humildade, a oferta que fez em seguida de si mesmo veio do seu fervor e da sua fé.

7 - O Senhor respondeu-lhe, porque ele tinha falado das mãos e da cabeça: «Aquele que se lavou não tem necessidade de se lavar de novo, mas somente os pés». Porquê isto? Porque no Baptismo toda a culpa é dissolvida. A culpa desapareceu, mas o diabo fez tropeçar Adão, e o veneno foi espalhado sobre os seus pés; é por isso que tu lavas os pés, para que a santificação venha trazer uma maior protecção naquela parte onde a serpente te apanhou à traição, para que, desta forma, não te possa mais fazer cair. Portanto, lavas os pés para lavar o veneno da serpente. É um lucro também para a nossa humildade que não nos envergonhemos de fazer durante o mistério aquilo a que não nos negamos em jeito de homenagem.

 

II, 8 - Depois disto vem o sinal espiritual de que ouvistes falar hoje na leitura, já que depois da fonte há ainda que tornar as coisas perfeitas; e isto é quando, à invocação do sacerdote, o Espírito Santo Se infundiu, o Espírito de Sabedoria e Inteligência, o Espírito de Conselho e Fortaleza, o Espírito de Conhecimento e de Piedade, o Espírito do Santo Temor, que são como que as sete virtudes do Espírito.

9 - Sem dúvida que todas as virtudes vêm do Espírito; mas estas são como que cardeais, como que as principais. Que há de tão importante como a Piedade? Que há de tão importante como o Conhecimento de Deus? Que há de tão importante como a Fortaleza? Que há de tão importante como o Conselho de Deus? Que há de tão importante como o temor de Deus? Assim como o temor do mundo é uma fraqueza, também o Temor de Deus é uma grande força.

10 - Tais são as sete virtudes que acolhes quando recebes a consignação. Porque, como diz o Santo Apóstolo, a Sabedoria de Deus Nosso Senhor tem muitas formas. A Sabedoria de Deus é multiforme, da mesma forma que o Espírito Santo é multiforme, Ele que possui toda uma variedade de virtudes. Também O chamamos Deus das Virtudes, o que se pode aplicar ao Pai e ao Filho e ao Espírito Santo. Mas isto é assunto para outra discussão, noutra ocasião.

11 - Que se segue depois disto? Podes aproximar-te do altar. Depois de aí teres chegado, podes ver o que não vias antes. É o mistério que leste no Evangelho: se não o leste ainda, ao menos ouviste-o ser lido. Um cego apresenta-se ao Senhor para ser curado. Ele curava os outros pela Sua palavra e pelo seu discurso, e devolvia a luz aos olhos através de uma simples ordem Sua. Entretanto, no livro do Evangelho intitulado segundo João - aquele que mais que os outros viu grandes mistérios e os apresenta e explica - Ele quis prefigurar naquele homem o mistério de que falamos. Sem dúvida que todos os Evangelistas são santos, e todos os Apóstolos, excepto o traidor, são santos. No entanto, S. João, que escreveu o último Evangelho, como alguém muito próximo, procurado e eleito por Cristo, fez ouvir os mistérios eternos com uma trombeta mais potente. Tudo o que ele disse é um mistério. Outros disseram que um cego fora curado: disse-o Mateus, disse-o Lucas, disse-o Marcos. O que é que só João disse? «Tomou lodo, colocou-o sobre os seus olhos e disse-lhe: "Vai a Siloé"! Ele levantou-se, lavou-se e voltou a ver».

12 - Considera tu também os olhos do teu coração. Vias o que é corporal com os olhos do teu corpo, mas no que diz respeito aos sacramentos, não os podias ainda ver com os olhos do teu coração. Então, quando te fizeste inscrever, Ele tomou lodo e colocou-to nos olhos. Que significa isso? Que tu tinhas de reconhecer o teu pecado, de examinar a tua consciência, de fazer penitência dos teus delitos, isto é, de reconhecer a sorte da raça humana. Porque, se bem que aquele que vem ao Baptismo não confesse pecados, apesar disso faz a confissão de todos os seus pecados, porque pede o Baptismo para ser justificado, ou seja, para passar da culpa à graça.

13 - Não creias que é inútil. Há quem diga, e sei que houve pelo menos um que respondeu assim: «Porque me devo fazer baptizar? Não tenho pecado! Contraí porventura algum pecado»? Isto aconteceu quando lhe dissemos: «Na tua idade tens maior obrigação de te fazer baptizar». Este não tinha lodo, porque Cristo não lho tinha colocado sobre os olhos, o que quer dizer que Ele ainda não lhe tinha aberto os olhos: é que ninguém está sem pecado.

14 - Reconhece então ser apenas um homem aquele que procura refúgio no Baptismo de Cristo. E foi assim que Ele te colocou o lodo a ti também, isto é, o Temor respeitoso, a Prudência, a consciência da tua fraqueza, e disse-te: «Vai a Siloé»! O que é Siloé? Disse Ele que tal «se traduz por "enviado"», isto é: «Vai à fonte onde é pregada a cruz do Senhor, a essa fonte onde Cristo redimiu os erros de todos».

15 - Ali foste, lavaste-te, vieste ao altar, começaste a ver o que não vias antes, o que quer dizer que, pela fonte e pela pregação da Paixão do Senhor, os teus olhos se abriram. Tu, que parecias ter o coração cego, ficaste a ver a luz dos sacramentos. Irmãos dilectíssimos, eis-nos chegados junto do altar, a um assunto de conversa mais rico. A esta hora, porém, já não podemos empreender a explicação completa, porque é uma dissertação muito longa. Contentai-vos com aquilo que foi dito, e amanhã, se o Senhor quiser, falar-vos-emos dos próprios sacramentos.

 

Livro quarto 

I, 1 - No Antigo Testamento, os sacerdotes tinham o costume de entrar frequentemente no primeiro tabernáculo, mas no segundo, só o Sumo-Sacerdote entrava, uma só vez por ano. É isto, evidentemente, que Paulo explica aos hebreus ao explanar o curso do Antigo Testamento. Ora no segundo tabernáculo estava o maná, e também a vara de Aarão, que estava seca e depois refloresceu, e ainda o altar dos perfumes.

2 - A que vem isto a propósito? A fazer-vos compreender o que é este segundo tabernáculo, no qual o sacerdote vos introduziu, e no qual só o sumo-sacerdote tem o costume de entrar uma vez por ano: o Baptistério, onde a vara de Aarão floriu. Antes estava seca, mas depois refloresceu. Também tu estavas seco, e começaste a reflorescer na água corrente da fonte. Estavas seco por causa dos pecados, estavas seco pelos erros e faltas, mas já começaste a dar fruto, pois estás plantado junto do leito das águas.

3 - Poderás, no entanto, dizer: «Que importa ao povo se a vara seca do sacerdote refloresceu»? Ora bem: o próprio povo que é senão o povo sacerdotal? A quem foi dito, como diz o Apóstolo Pedro: «Vós sois raça eleita, sacerdócio rela, nação santa»? Cada um é ungido para o sacerdócio, e também para a realeza. Mas é um reino espiritual e um sacerdócio espiritual.

4 - No segundo tabernáculo há também o altar dos perfumes, que de ordinário lança um bom odor. Assim vós também sois o bom odor de Cristo, e não há em vós nenhuma sobra de delito, nenhum odor a erro grave.

 

II, 5 - Depois disto, tivestes de vos aproximar do altar. Começastes a avançar, os anjos olharam e viram-vos aproximar, e aquela condição humana, que antes estava escondida pelo negrume dos pecados, viram-na eles resplandecer de repente. Por isso perguntaram: «Quem é esta que sobre embranquecida do deserto»? Os anjos estão admirados: Queres saber até que ponto se admiram?

Escuta então o Apóstolo Pedro dizer que nos foi dado aquilo que os anjos desejam ver. Escuta ainda: «O que o olho não viu, nem o ouvido ouviu, é o que Deus preparou para aqueles que O amam».

6 - Reconhece então aquilo que recebeste. O santo profeta David viu esta graça em figura e desejou-a. Queres saber até que ponto ele a desejou? Escuta-o de novo: «Aspergi-me com o hissope e ficarei puro; lavai-me e ficarei mais branco do que a neve». Porquê? Porque a neve, apesar de ser branca, depressa enegrece com qualquer poeira e corrompe-se; a graça que recebeste, desde que guardes o que recebeste, é perpétua.

7 - Vinhas então até ao altar, cheio de desejo de receber os sacramentos celestes. Que a tua alma diga: «Irei ao altar de Deus, de Deus que alegra a minha juventude». Depuseste a velhice dos pecados, revestiste-te da juventude da graça. É o que te foi concedido pelos sacramentos celestes. Ouve agora David dizer: «A tua juventude renovar-se-á como a da águia». Tornaste-te uma boa águia que se lança para o céu, desprezando o que é terreno. As boas águias rodeiam o altar: «Onde estiver o corpo, aí estão as águias». O altar representa o corpo, e o Corpo de Cristo está sobre o altar. Vós sois águias, rejuvenescidas pelo apagar das vossas faltas.

 

III, 8 - Aproximaste-te do altar, fixaste o teu olhar sobre os sacramentos colocados sobre ele, e maravilhaste-te diante desta criatura, que não é, contudo, senão uma criatura comum e vulgar.

9 - Alguém poderá ter dito: «Deus fez um tão grande favor aos judeus, ao fazer-lhes chover o maná do céu... O que mais deu Ele àqueles a quem tinha prometido antecipadamente»?

10 - Escuta o que digo: os mistérios dos cristãos são mais antigos que os dos judeus e os sacramentos dos cristãos são mais divinos que os dos judeus. Como? Escuta: quando começaram os judeus a existir? Depois de Judá, naturalmente, neto de Abraão ou, se o queres compreender assim, depois da Lei, no momento em que os judeus mereceram recebê-la. É então por causa do neto de Abraão que são chamados judeus, no tempo do santo Moisés. E se Deus fez então chover o maná do céu para os judeus que murmuravam, para ti, no entanto, a figura destes sacramentos veio mais cedo, no tempo de Abraão. Quando reuniu 318 servos e foi perseguir os inimigos, tirando o seu sobrinho do cativeiro, voltando vitorioso, o sacerdote Melquisedec veio ao seu encontro e ofereceu pão e vinho. Quem tinha o pão e o vinho? Não é Abraão: é Melquisedec. É ele então o autor dos sacramentos. Quem é Melquisedec, que significa «rei de justiça», «rei de paz»? Quem é este rei de justiça? Será que um homem pode ser rei de justiça? Quem é então rei de justiça senão a justiça de Deus? Quem é a paz de Deus, a sabedoria de Deus? Aquele que pôde dizer: «Dou-vos a Minha paz, deixo-vos a Minha paz».

11 - Compreende então que estes sacramentos que recebes são mais antigos que os sacramentos de Moisés, que os judeus dizem ter, e também que o povo cristão começou antes de ter começado o povo dos judeus. Connosco foi pela predestinação, com os judeus pelo nome.

12 - Melquisedec ofereceu então o pão e o vinho. Quem é Melquisedec? «Sem pai, nem mãe, sem genealogia, sem início de dias nem fim de vida». É o que diz a Epístola aos Hebreus. Sem pai, nem mãe, semelhante a quem? Ao Filho de Deus. O Filho de Deus nasceu sem mãe pela geração celeste, porque nasceu somente de Deus Pai; por outro lado, Ele nasceu sem pai quando nasceu da Virgem, pois não foi gerado por semente viril, mas nasceu do Espírito Santo e da Virgem Maria, de um seio virginal. Semelhante em tudo ao Filho de Deus, Melquisedec era também sacerdote, porque Cristo também é sacerdote, e de Quem é dito: «Tu és sacerdote para sempre, segundo a ordem de Melquisedec».

 

IV, 13 - Quem é então o autor dos sacramentos senão o Senhor Jesus? É do céu que vieram estes sacramentos, pois o desígnio de Deus é todo do céu. É, contudo, um grande milagre divino que Deus tenha feito chover maná do céu para o povo, e que o povo o comia sem trabalhar.

14 - Dirás talvez: «É o meu pão comum». Mas este pão é pão antes das palavras sacramentais; depois de se dar a consagração, o pão muda-se na Carne de Cristo. Provemos isto, então. Como pode o que é pão ser o Corpo de Cristo? Por que palavras se faz a consagração, e de quem são essas palavras? Do Senhor Jesus. Com efeito, tudo o resto que é dito antes é dito pelo sacerdote: oferecem-se a Deus louvores, pede-se pelo povo, pelos reis, por todos os outros. Depois, quando se deve produzir o venerável sacramento, o sacerdote não se serve mais das suas próprias palavras, mas sim das palavras de Cristo. É então a palavra de Cristo que produz o sacramento.

15 - Que palavra de Cristo? Bem, é aquela pela qual tudo foi feito. O Senhor ordenou, e o céu foi feito. O Senhor ordenou e aterra foi feita. O Senhor ordenou, e os mares foram feitos. O Senhor ordenou, e todas as criaturas foram geradas. Vês como é eficaz a palavra de Cristo. Se há então na palavra do Senhor uma tão grande força que fez com que aquilo que não era começasse a existir, quanto mais será eficaz para fazer com que aquilo que é exista e seja mudado noutra coisa. Não havia céu, não havia mar, não havia terra, mas escuta David, que diz: «Ele disse, e foi feito, Ele ordenou, e foi criado».

16 - Então, para te responder, antes da consagração não era o Corpo de Cristo, mas depois da consagração, digo-te que já é o Corpo de Cristo. Ele disse e foi feito, Ele ordenou e foi criado. Tu próprio existias, mas eras uma velha criatura; depois de teres sido consagrado, começaste a ser uma nova criatura. Queres saber até que ponto és nova criatura? «Quem está em Cristo é uma nova criatura».

17 - Escuta, pois, como a palavra de Cristo costuma mudar todas as criaturas, e muda - quando Ele quer - as leis da natureza. Perguntas como? Escuta: em primeiro lugar, tomemos o exemplo do Seu nascimento. Comummente, um homem não é gerado senão por um homem e uma mulher, no seguimento de relações conjugais. Mas porque o Senhor quis, porque escolheu este mistério, é do Espírito Santo e da Virgem que nasceu Cristo, o mediador entre Deus e os homens, o homem Jesus Cristo. Vês, pois, que contrariamente às leis e à ordem da natureza, um homem nasceu duma Virgem.

18 - Escuta um outro exemplo: o povo judeu era acossado pelos egípcios, e era detido pelo mar. Segundo a ordem de Deus, Moisés tocou as águas com a sua vara e as águas dividiram-se, não certamente segundo o seu natural hábito, mas segundo a graça de uma ordem do céu. Escuta outro exemplo: o povo tinha sede e chegou a uma fonte. A fonte era amarga, mas o santo Moisés colocou um lenho na fonte, e este tornou doce a fonte, que era amarga, isto é, mudando o seu hábito natural, recebendo a doçura da graça. Escuta um quarto exemplo: um ferro de machado tinha caído à água e, como era feito de ferro, afundou-se segundo o seu natural. Eliseu colocou um lenho nas águas e logo o ferro veio à superfície, evidentemente contra o que é hábito do ferro, pois é uma matéria mais pesada que o elemento que é a água.

19 - Não te faz isto compreender tudo o que produz a palavra celeste? Se ela agiu numa fonte terrena, se a palavra do céu operou nas outras coisas, não age ela nos sacramentos celestes? Sabes assim que o pão se muda no Corpo de Cristo e que colocamos vinho e água no cálice, mas que a consagração operada pela palavra celeste tudo mudou em Sangue.

20 - Mas talvez digas: «Não vejo a aparência do Sangue». Mas há aqui uma similitude. Da mesma forma, com efeito, que tomaste a similitude da morte, assim bebes também a similitude do precioso Sangue, para que não haja nenhum horror provocado pelo Sangue que jorra, e para que, apesar disso, o preço da redenção produza o seu efeito. Sabes então que o que tu recebes é o Corpo de Cristo.

 

V, 21 - Queres ser convencido de que se consagra por meio das palavras celestes? Eis essas palavras, ditas pelo sacerdote: «Concede-nos que esta oferta seja aceite, espiritual, agradável, porque é figura do Corpo e do Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo, que na véspera da Sua Paixão, tomou o pão nas Suas santas mãos, elevou os olhos ao céu para Ti, Pai Santo, Deus Omnipotente e Eterno, e dando graças, abençoou-o, partiu-o e deu-o partido aos Seus Apóstolos e discípulos, dizendo: "Tomai e comei dele todos: Isto é o Meu Corpo que será partido por muitos"».

22 - Presta atenção: «Da mesma forma, tomou também o cálice depois da ceia, na véspera da Sua Paixão, elevou os olhos ao céu para Ti, Pai Santo, Deus Omnipotente e Eterno, e dando graças abençoou-o, deu-o aos Seus Apóstolos e

aos Seus discípulos, dizendo: "Tomai e bebei todos dele: Isto é o Meu Sangue"». Nota que são palavras do Evangelista até «Tomai o Corpo ou o Sangue», mas a partir daí são palavras de Cristo: «Tomai e bebei todos dele: Isto é o Meu Sangue». Nota bem cada pormenor.

23 - Na véspera da Sua Paixão - é-nos dito - Ele tomou pão nas Suas santas mãos. Antes de ser consagrado é pão, mas desde que são pronunciadas as palavras de Cristo, é o Corpo de Cristo. Escuta-o ainda a dizer: «Tomai e comei todos dele: Isto é o Meu Corpo». E antes das palavras de Cristo, o cálice está cheio de vinho e água, mas desde o momento em que as palavras de Cristo agiram, ele torna-se no Sangue que redimiu o povo. Vê então por que formas a palavra de Cristo é capaz de transformar tudo, pois o próprio Senhor Jesus nos afirma que recebemos o Seu Corpo e o Seu Sangue. Devemos nós duvidar da autoridade do Seu testemunho?

24 - Volta agora então comigo ao assunto que tenho em vista. É, sem dúvida, algo grandioso e digno de respeito que o maná tenha caído do céu como uma chuva para os judeus. Mas reflecte: o que é maior? O maná do céu ou o Corpo de Cristo? Seguramente é o Corpo de Cristo, que é o Autor do céu, pois quem comeu o maná está morto, mas quem tiver comido o Corpo obterá a remissão dos seus pecados e não morrerá eternamente.

25 - Não é, pois, sem razão que dizes «amen», reconhecendo no teu espírito que recebes o Corpo de Cristo. Quando te apresentas, o sacerdote diz-te: «Corpo de Cristo», e tu respondes «amen», isto é, «é verdade». O que a língua confessa, guarde o coração.

 

VI, 26 - Entretanto, para que tu saibas que é um sacramento, a sua figura precedeu-o Reconhece por isso qual a grandeza deste sacramento. Nota o que Ele diz: «Cada vez que fizerdes isto, fareis minha Memória até que Eu venha».

27 - E o sacerdote diz: «Nós, lembrando agora a Sua gloriosíssima Paixão, a Sua Ressurreição dos infernos e a Sua Ascensão ao céu, Te oferecemos esta hóstia imaculada, esta hóstia espiritual, esta hóstia incruenta, esta Pão santo e o cálice da vida eterna, e Te pedimos e rezamos para que aceites esta oblação no Teu sublime altar pelas mãos dos Teus anjos, como te dignaste aceitar os dons do Teu servo, o Justo Abel, o sacrifício do nosso pai Abraão e o que Te ofereceu o sumo-sacerdote Melquisedec».

28 - Cada vez que tu o recebes [ao sacramento] que te diz o Apóstolo? «Cada vez que o recebemos, anunciamos a Morte do Senhor». Se cada vez que o Seu Sangue é derramado, é derramado pela remissão dos pecados, devo sempre recebê-Lo, para que Ele sempre redima os meus pecados. Eu, que peco sempre, devo ter sempre um remédio.

29 - Até ao presente, e hoje ainda, démo-vos os esclarecimentos que pudémos, mas amanhã, Sábado e Domingo, falaremos da ordem da oração, do modo que nos for possível. Que o Senhor osso Deus vos conserve a graça que vos concedeu, e que Se digne esclarecer mais completamente os olhos que abriu, pelo Seu Filho único, Rei e Salvador, o Senhor nosso Deus, por Quem e com Quem Ele possui o louvor, a honra, a glória, a majestade, o poder, com o Espírito Santo, desde todos os séculos, agora e para sempre, e por todos os séculos dos séculos.

 

 Livro quinto 

I, 1 - A instrução que vos dei ontem avançou até aos sacramentos do santo altar, e reconhecemos que uma figura desse sacramentos os tinha precedido, na época de Abraão, quando o santo Melquisedec, que não tinha início nem fim de seus dias, ofereceu o seu sacrifício. Ouve, oh homem, o que diz o Apóstolo Paulo aos Hebreus. Onde estão aqueles que dizem que o Filho de Deus é temporal? É dito que Melquisedec não tinha nem início nem fim dos seus dias. Se Melquisedec não tem início de dias, será que Cristo podia ter um? A figura não é mais que a realidade. Vês então que Ele é o Primeiro e o Último: o Primeiro porque é o Autor de tudo, o Último não porque virá a Ter um fim, mas porque cumpre tudo.

2 - Dissémos que são colocados sobre o altar o cálice e o pão. Que colocamos no cálice? Vinho. e que mais? Água. Mas dizes-me: «Então como? Melquisedec ofereceu pão e vinho. Que significa a mistura de água»? Eis a razão.

3 - Em primeiro lugar, que contém a figura que precedeu no tempo de Moisés? Como o povo judeu tinha sede e murmurava porque não podia encontrar água, Deus ordenou a Moisés que tocasse no rochedo com a sua vara. Ele tocou no rochedo, e o rochedo fez brotar um jorro muito abundante. Como diz o Apóstolo: «Beberam do Rochedo que os seguia. Esse Rochedo era Cristo». Não é um rochedo imóvel, visto que seguia o povo. Tu também, bebe para que Cristo te siga. Vê o mistério: Moisés, isto é, um profeta, com a sua vara, isto é, com a Palavra de Deus; o sacerdote toca o rochedo com a Palavra de Deus, a água jorra e o povo de Deus bebe. O sacerdote toca o cálice, a água cai no cálice, jorrando para vida eterna, e o povo de Deus, que obteve a graça, bebe. Estás, pois, instruído no que se refere a isto.

4 - Eis outra coisa. No altura da Paixão do Senhor, porque se aproximava o grande Sábado, e porque Nosso Senhor Jesus Cristo ou os ladrões estavam ainda vivos, enviaram gente para os trespassar. À sua chegada, encontraram o Senhor Jesus Cristo morto. Então um dos soldados perfurou o Seu lado com uma lança, e do Seu lado jorrou Sangue e Água. Porquê água? Porquê Sangue? Água para purificar, Sangue para remir. Porquê do lado? Porque a graça vem de onde veio a culpa. A culpa veio pela mulher, a graça pelo Senhor Jesus Cristo.

II, 5 - Aproximaste-te do altar. O Senhor Jesus chama-te, ou chama à tua alma ou à Igreja, e diz: «Que me beije com um beijo da sua boca». Queres aplicar isto a Cristo? Nada de mais agradável. Queres aplicá-lo à tua alma? Nada de mais doce.

6 - «Que ele me beije». Ele vê que tu estás puro de todo o pecado, porque as tuas faltas foram lavadas. É por isso que Ele te julga digno dos sacramentos celestes e te convida para o banquete celeste: «Que ele me beije com um beijo da sua boca».

7 - Entretanto, pelo que se segue, a tua alma ou a humanidade ou a Igreja, vendo-se purificada de todos os seus pecados e digna de poder aproximar-se do altar (que é o altar, de facto, senão a imagem do Corpo de Cristo?), vê os sacramentos admiráveis e diz: «Que Ele me beije com um beijo da Sua boca», isto é «que Cristo me beije».

8 - Porquê? «Porque os teus seios valem mais que o vinho», isto é, os teus pensamentos, os teus sacramentos, valem mais que o vinho, que este vinho: apesar de haver nele uma suavidade, uma alegria, um gosto agradável, nele não há mais que uma alegria deste mundo, enquanto que em Ti há uma alegria espiritual. Vemos que já então Salomão apresentava as núpcias de Cristo e da Igreja, ou do espírito e da carne, ou do espírito e da alma.

9 - E Ele acrescenta: «O teu nome é um perfume exalado; é por isso que as jovens te amaram». Quem são estas jovens senão todas as almas que depuseram a velhice do corpo, rejuvenescidas que estão pelo Espírito Santo?

10 - «Atrai-nos, que nós correremos atrás do odor dos Teus perfumes». Tu não podes seguir a Cristo a menos que Ele te atraia. E digo-te ainda mais, para que te convenças: «Quando Eu for elevado, atrairei tudo a Mim».

11 - «O rei introduziu-me no seu quarto». O grego tem: «No seu celeiro, na sua adega», onde há boas bebidas, mel doce perfumado, frutos diversos, iguarias várias, para que o teu repasto seja constituído por numerosos manjares.

 

III, 12 - Aproximaste-te do altar, recebeste o Corpo de Cristo. Ouve ainda que sacramentos recebeste. Escuta o que diz o santo David. Também ele, sob a acção do Espírito, previu estes mistérios, alegrou-se e disse que nada lhe faltava. Porquê? Porque Aquele que tiver recebido o Corpo de Cristo não terá mais fome.

13 - Quantas vezes ouviste tu o Salmo 22 e não o compreendeste? Vê como ele se aplica bem aos sacramentos celestes. «O Senhor é meu pastor, e nada me faltará. Colocou-me no local da pastagem. Conduziu-me até junto da água que me reconforta, converteu a minha alma. Conduziu-me no caminho da justiça por causa do Seu Nome. Porque mesmo se caminhar no meio da sombra da morte, não temerei nenhum mal, porque Tu estás comigo. O Teu próprio ceptro e o Teu

próprio cajado me sustentaram». O ceptro é o poder soberano, o cajado a Paixão, isto é, a eterna Divindade de Cristo, mas também a Sua Paixão corporal: a primeira criou, a segunda remiu. «Preparaste diante de mim uma mesa à face dos adversários que me afligem. Ungiste-me de óleo a cabeça, e o teu cálice transborda, e é excelente».

14 - Aproximastes-vos, pois, do altar, recebestes a graça de Cristo, os sacramentos celestes. A Igreja alegra-se com a redenção de muitos, e é para ela uma alegria espiritual ver junto a si a sua família espiritual vestida de branco.Encontras isto no Cântico dos Cânticos. Na sua alegria, ela invoca Cristo, preparando um banquete tal que é quase um festim celeste. É por isso que ela diz: «Que o meu irmão desça ao Seu jardim e colha o fruto das Suas árvores». O que são estas árvores frutíferas? Tinhas-te tornado um lenho seco em Adão, mas agora, pela graça de Cristo, abundas em rebentos como árvore de fruto.

15 - De boa vontade o Senhor Jesus aceitou e respondeu à Igreja com uma bondade celeste: «Desci ao Meu jardim. Vindimei a mirra com os Meus perfumes, comi o Meu pão com o Meu mel e bebi o Meu vinho com o Meu leite. Comei, irmãos Meus, e inebriai-vos».

16 - «Vindimei a Minha mirra com os Meus perfumes». O que é esta vindima? Procurai conhecer a vinha e reconhecereis a vindima. «Tu transplantaste a Tua vinha do Egipto», isto é, o povo de Deus. Vós sois a vinha, vós sois a vindima: plantados como uma vinha, destes fruto como uma vindima. «Vindimei a mirra com os Meus perfumes», isto é, em vista do odor que recebestes.

17 - «Comi o Meu pão com o Meu mel». Vês que não há nenhum amargor neste pão, mas que é todo doçura. «Bebi o Meu vinho com o Meu leite». Vês que é um tipo de alegria que não é ensombrada por nenhum traço de pecado. Com efeito, cada vez que bebes, recebes a remissão dos pecados, e és inebriado pelo Espírito. É por isso que o Apóstolo diz ainda: «Não vos inebrieis com vinho, mas enchei-vos do Espírito». Porque aquele que se inebria de vinho vacila e titubeia; aquele que se inebria do Espírito está enraizado em Cristo. É então uma excelente embriaguês que produz a sobriedade da alma. Este é o breve percurso que fizemos dos sacramentos.

 

IV, 18 - De que resta ainda falar senão da oração? E não penseis que saber como deveis rezar tem pouca importância. Os santos Apóstolos disseram ao Senhor Jesus: «Senhor, ensina-nos a orar, como João ensinou os seus discípulos». Então o Senhor disse esta oração: «Pai nosso, que estás nos céus, santificado seja o Teu Nome, venha o Teu Reino, seja feita a Tua vontade assim na terra como no céu. Dá-nos hoje o pão nosso de cada dia, perdoa-nos as nossas dívidas assim como nós perdoamos aos nossos devedores, e não nos deixes cair em tentação, mas livra-nos do mal». Vê como é breve [a oração], mas plena de todas as virtudes.

19 - Como está cheia de graça a primeira palavra! Oh homem, não ousavas voltar o teu rosto para o céu, baixavas os olhos para a terra, e de repente recebeste a graça de Cristo, e todos os teus pecados foram remidos. De mau servidor tornaste-te um bom filho. Não presumas ser isto devido à tua acção: «É pela graça que fostes salvos», diz o Apóstolo. Não é pela presunção, mas pela fé. Proclamar o que recebeste não é orgulho, mas devoção. Eleva então os teus olhos para o Pai, que te gerou pelo banho, para o Pai que te remiu pelo Filho e diz: «Pai Nosso». É uma justa pretensão, mas é moderada. Como um filho tu, tu amas o Pai, mas não reivindiques um privilégio. Ele é pai de uma maneira. Ele é Pai de uma maneira especial, somente de Cristo; para nós ele é o Pai comum, porque Ele gerou só a Ele [Cristo], ao passo que a nós nos criou. Diz então também tu pela graça: «Pai nosso», e isto para mereceres ser seu filho. Recomenda-te a ti mesmo ao favor e consideração da Igreja.

20 - «Pai Nosso que estás nos céus». Que significa nos céus? Escuta a Escritura, que diz: «O Senhor está elevado acima de todos os céus», e encontrarás [escrito] em todo o lado que o Senhor está acima dos céus dos céus, como se os anjos e as Dominações não estivessem também nos céus; mas [o Senhor está] naqueles céus dos quais é dito: «Os céus proclamam a glória de Deus». O Céu está onde cessou a culpa, o céu está onde os crimes são punidos, o céu está onde não há nenhuma ferida da morte.

21 - «Pai Nosso que estás nos céus, santificado seja o Teu Nome». Que significa «santificado seja»? Como se pudéssemos imaginar que possa ser santificado Aquele que disse: «Sede santos porque Eu sou Santo», como se a nossa palavra pudesse acrescentar a Sua santidade. Não, mas que Ele seja santificado em nós, para que a Sua acção santificante possa chegar até nós.

22 - «Pai Nosso, que estás nos céus, santificado seja o teu Nome, venha o teu Reino». Como se o Reino de Deus não fosse eterno... Jesus disse: «Aí nasci Eu», e tu dizes: «Que venha o Teu Reino», como se não tivesse vindo. Mas o Reino de Deus chegou quando vós obtivestes a Graça, pois Ele próprio diz: «O Reino de Deus está em vós».

23 - «Que venha o Teu Reino, seja feita a Tua vontade, assim na terra como no céu; o pão nosso de cada dia dá-nos hoje». Tudo foi pacificado pelo Sangue de Cristo, tanto na terra como no céu: o céu foi santificado, o diabo foi expulso. Ele está onde se encontra o homem que enganou. «Que a tua vontade seja feita», isto é, que haja paz tanto na terra como no céu.

24 - «O pão nosso de cada dia dá-nos hoje». Lembro-me do que vos disse quando expliquei os sacramentos. Disse-vos que antes das palavras de Cristo, o que se oferece chama-se pão; depois de as palavras de Cristo terem sido pronunciadas, já não lhe chamamos pão, mas sim Corpo. Porque é que então, na Oração Dominical, que se segue imediatamente [à consagração], é dito «pão nosso»? Dizemos pão, mas e)piou/sioj, isto é, «substancial». Não se refere ao pão que entra no corpo, mas àquele pão da vida eterna que reconforta a substância da nossa alma. É por isso que o grego lhe chama e)piou/sioj. O latim chamou «quotidiano» a

esse pão que os gregos chamam «de amanhã», porque os gregos dizem «amanhã» com a expressão: th\n e)piou=san h(me/ran. Desta forma, tanto o que diz o latim como o que diz o grego é igualmente útil: o grego exprimiu os dois sentidos numa só palavra, o latim disse «quotidiano».

25 - Se é quotidiano este pão, porque esperas tu um ano para o receber, como os gregos têm o costume de fazer no Oriente? Recebe cada dia o que te deve aproveitar cada dia. Vive de maneira tal que mereças recebê-lo todos os dias. Aquele que não merece recebê-lo cada dia não merece recebê-lo depois de um ano. Assim, o santo Job oferecia cada dia um sacrifício pelos seus filhos, com medo que tivessem cometido qualquer pecado no seu coração ou em palavras. Ouviste dizer que cada vez que oferecemos o sacrifício, significamos a Morte do Senhor, a Ressurreição do Senhor, a Ascensão do Senhor, e também a remissão dos pecados, e mesmo assim não recebes cada dia o pão da vida? Aquele que tem uma ferida procura um remédio. É para nós uma ferida estarmos submetidos ao pecado; o remédio celeste é o venerável sacramento.

26 - «O pão nosso de cada dia dá-nos hoje». Se o recebes todos os dias, cada dia para ti é hoje. Se Cristo está em ti hoje, ressuscita para ti hoje. Como? «Tu és Meu Filho, Eu hoje Te gerei». Hoje é quando Cristo ressuscita. «Ele era ontem e é hoje», diz o Apóstolo. E diz noutro lado: «A noite passou, o dia chegou». A noite de ontem passou, o dia de hoje chegou.

27 - Eis o que se segue: «Perdoa-nos as nossas dívidas, assim como nós as perdoamos aos nossos devedores». Que é a dívida senão o pecado? Se não tivesses aceite dinheiro de um credor estranho, não estarias endividado, e por isso é que te é atribuído o pecado. Possuíste o dinheiro com o qual devias nascer rico. Eras rico, feito à imagem e semelhança de Deus. Perdeste o que possuías, isto é, a humildade, quando desejaste vingar-te da arrogância; perdeste o teu dinheiro, ficaste nu como Adão, aceitaste do diabo uma dívida que não era necessária. E por isso tu, que eras livre em Cristo, fizeste-te devedor do diabo. O inimigo tinha a tua caução, mas o Senhor crucificou-a e apagou-a pelo Seu Sangue. Ele suprimiu a tua dívida e devolveu-te a tua liberdade.

28 - É, pois, com razão que Ele diz: «Perdoa-nos as nossas dívidas como nós as perdoamos aos nossos devedores». Presta atenção ao que dizes: «Perdoa-me como eu lhes perdoo». Se perdoas, fazes um justo acordo para seres perdoado; se não perdoas, como pretendes que Ele te perdoe?

29 - «E não nos deixes cair em tentação, mas livra-nos do mal». Vê o que Ele diz: «E não nos deixes cair[induzir]em tentação a que não possamos resistir». Não diz: «Não nos induzas em tentação», mas como um atleta, Ele deseja uma prova tal que a humanidade possa suportar, e que cada um seja livre do mal, isto é, do inimigo, do pecado.

30 - Mas o Senhor, que destruiu o vosso pecado e perdoou as vossas faltas, é capaz de vos proteger e de vos guardar contra as insídias do diabo, que vos combate, para que o inimigo, que costuma gerar a falta, não vos surpreenda.

Mas quem se confia a Deus não teme o diabo, porque «se Deus é por nós, quem contra nós»? É a Ele que pertencem o louvor e a glória desde o início, agora e sempre, e pelos séculos dos séculos. Amen.

  

Livro sexto 

I, 1 - Assim como Nosso Senhor Jesus Cristo é o verdadeiro Filho de Deus, não por graça, como os homens, mas enquanto Filho nascido da substância do Pai, assim também é a Sua verdadeira Carne que recebemos, como Ele disse, e é o Seu verdadeiro Sangue que é para nós bebida.

2 - No entanto, poderás talvez dizer o que disseram naquele tempo os discípulos de Cristo, que O ouviram dizer: «Quem não comer da Minha Carne e não beber do Meu Sangue não permanecerá em Mim e não terá a vida eterna»; e dirás talvez: «Como é isto a Sua Carne? Vejo claramente a similitude, mas não vejo a verdade do sangue».

3 - Antes de tudo, disse-te, a propósito da palavra de Cristo que age, como ela pode mudar e transformar as leis gerais da natureza. Quando os discípulos não suportaram as palavras de Cristo, ao ouvi-lo dizer que lhes daria a Sua Carne a comer e o Seu Sangue a beber, retiraram-se. Só Pedro disse: «Só Tu tens palavras de vida eterna; como Te deixaria eu»? Com receio de que um maior número não tivesse as mesmas palavras, sob pretexto de uma certa repugnância ao sangue que jorra, mas para que permaneça a graça da redenção, recebes o sacramento em similitude, mas recebes a graça e a virtude daquilo que Ele é realmente.

4 - «Eu sou o Pão Vivo que desci do céu».Mas a Carne não desceu do céu, isto é, Ele tomou Carne de uma Virgem sobre a terra. Então como desceu o Pão do céu, e o Pão Vivo? É que Nosso Senhor Jesus Cristo tem parte tanto na Divindade como no Corpo, e porque tu, quando recebes o Seu Corpo, participas da Sua natureza Divina por este alimento.

 

II, 5 - Tomaste, pois, parte nos sacramentos, tiveste um pleno conhecimento de tudo, visto que foste baptizado no nome da Trindade. Em tudo encontras o Pai, o Filho e o Espírito Santo, uma só operação, uma só santificação, apesar de existirem, parece, alguns traços distintivos.

6 - Como? É Deus que te ungiu e o Senhor que te marcou com um sinal e colocou o Espírito Santo no teu coração. Recebeste então o Espírito Santo no teu coração. Eis outro ponto: da mesma forma que o Espírito Santo está no teu

coração, também Cristo está no teu coração. Como? Encontras o modo no Cântico dos Cânticos, em que Cristo diz à Igreja: «Coloca-me como um sinal no teu coração, como um sinal nos teus braços».

7 - Deus ungiu-te, Cristo marcou-te com um sinal. Como? Foste marcado com o sinal da Sua cruz, com o sinal da Sua Paixão. Recebeste este sinal para te assemelhares a Ele, para que ressuscites à Sua imagem, para que vivas segundo o exemplo d'Aquele que foi crucificado para o pecado e viveu para Deus. E o homem velho que tu eras, mergulhado na fonte, foi crucificado para o pecado, mas ressuscitou para Deus.

8 - Encontras seguidamente noutro lado este pormenor: foi Deus que te chamou, enquanto que no Baptismo é com Cristo que foste crucificado de uma maneira especial; e em seguida, quando recebes de uma maneira especial o sinal espiritual, vês que há distinção de Pessoas [da Santíssima Trindade], mas que todo o mistério da Trindade aí se liga.

9 - Que te disse a seguir o Apóstolo, como lemos anteontem? «Há diversidade de graças, mas é o mesmo Espírito; há diversidade de serviços, mas é o mesmo Senhor; há diversidade de operações, mas é o mesmo Deus que opera tudo em todos». É Deus que opera tudo, diz ele. Mas lemos também a propósito do Espírito de Deus: «É um só e o mesmo Espírito que dá a cada um conforme quer». Escuta a Escritura, que diz que o Espírito dá voluntariamente e não por obediência. O Espírito deu-vos então a graça segundo o que Ele quis, e não como se tivesse recebido ordem para isso. E, sobretudo, o Espírito de Deus é o Espírito de Cristo. Retei isto: Ele é o Espírito Santo, Ele é o Espírito de Deus, Ele é o Espírito de Cristo, Ele é o Espírito Paráclito.

10 - Os arianos acreditavam rebaixar o Espírito Santo ao chamar-Lhe Espírito Paráclito. O que é o Paráclito senão o Consolador. Como se houvéssemos lido acerca do Pai que Ele é também o Deus da consolação! Vês, pois, que eles querem rebaixar o Espírito Santo com aquilo que serve para proclamar, com um sentido de ternura, o poder do Pai Eterno.

 

III, 11 - Escutai agora como devemos orar. A oração tem muitas virtudes. Não é sem importância saber onde deves orar, e isto não é uma questão menos relevante. O Apóstolo diz: «Quero que os homens rezem em todo o lugar elevando as mãos puras, sem iras e contendas». Mas o Senhor diz no Evangelho: «Tu, quando rezares, entra no teu quarto e, fechada a porta, ora a teu Pai». Não te parece que há aqui contradição? É que o Apóstolo diz: «Ora em todo o lugar», mas o Senhor tinha dito: «Reza no interior do teu quarto». Mas não há aqui contradição alguma. Abordemos então este assunto, e depois o como deves começar a oração, em que ordem a deves dividir, o que deves expôr, o que deves alegar, como concluir a oração, e seguidamente por quem deves rezar. Aprendamos tudo isto.

12 - Em primeiro lugar, onde deves rezar? Parece que Paulo diz uma coisa e o Senhor outra. Será que Paulo pode dar um ensinamento contrário aos preceitos de Cristo? Não, por certo. Porque razão? Porque ele não é o adversário, mas o intérprete de Cristo: «Sede meus imitadores, como eu o sou de Cristo», diz ele. O que pensamos, então? Podes orar em todo o lado e rezar sempre no teu quarto. Tens em todo o lado o teu quarto. Mesmo se vives entre os pagãos, entre os judeus, tens em todo o lado o teu segredo. O teu quarto é o teu espírito. Mesmo se estás no meio da multidão, conservas no homem interior o teu quarto fechado e secreto.

13 - «Tu, quando rezares, entra no teu quarto». Ele tem razão em dizer «entra» para que não rezes como os judeus, dos quais é dito: «Este povo honra-me com os lábios, mas o seu coração está longe de mim». Que a tua oração não saia, pois, só dos teus lábios. Coloca nela toda a tua atenção, entra no retiro do teu peito, entra todo nela. Que Aquele a Quem desejas agradar não te encontre negligente. Que Ele veja que tu rezas de todo o teu coração, para que ele Se digne escutar-te quando rezas de todo o coração.

14 - «Tu quando rezares, entra no teu quarto». Encontras isto ainda noutro lado: «Anda, povo Meu, e entra no teu recesso, fecha a porta, esconde-te um pouco, até que passe a cólera do Senhor». Eis o que o Senhor disse pelo profeta. Mas no Evangelho, Ele disse: «Tu, quando rezares, entra no teu quarto e, fechada a porta, ora a teu Pai».

15 - Que é esta «porta fechada»? Escuta: tens uma porta que deves fechar quando rezas. Quisera Deus que as mulheres o ouvissem! Tu já o ouvistes, quando o santo David te ensinou, dizendo: «Coloca, Senhor, uma guarda à minha boca e uma porta para fechar os meus lábios». Há ainda noutro lado uma porta, da qual fala o Apóstolo Paulo, quando diz: «Para que se abra para mim a porta da palavra, para falar dos mistérios de Cristo». Isto quer dizer que, quando rezares, não eleves a voz em altos brados, não divulgues a tua oração e não te mostres no meio do povo. Reza secretamente em ti mesmo, seguro de que Aquele que vê e ouve tudo pode ouvir-te em segredo, e reza oculto ao teu Pai. Porque Aquele que vê o que está escondido ouve a tua prece.

 

IV, 16 - Apesar disso, perguntamos de que nos serve isto, por que razão devemos rezar em segredo, mais do que elevando a voz. Escuta, tomemos como exemplo o costume dos homens. Se falas a alguém que tem o ouvido pronto, não crês ser necessário gritares, mas falas-lhe com um tom moderado; se falas a um surdo não começas a elevar a voz para que ele te possa ouvir? Então, aquele que grita crê que Deus não o pode ouvir se não gritar, e ao falar-Lhe assim, rebaixa o Seu poder. Aquele que, pelo contrário, ora em silêncio faz prova de fé e reconhece que Deus perscruta os rins e os corações, e que Ele ouve a tua oração antes que ela saia da tua boca.

17 - Vejamos então: «Quero que os homens rezem em todo o lugar». Porque falou ele dos homens? Evidentemente, a oração é comum às mulheres e aos homens. Não encontro razão, senão talvez que o santo Apóstolo tenha falado dos homens com receio que as mulheres não oiçam, que compreendessem mal o «em todo o lugar», e se pusessem a bradar em todo o lado, não podendo nós depois suportá-las na Igreja.

18 - «Quero que os homens», isto é, aqueles que são capazes de guardar este preceito, «rezem em todo o lugar, elevando as mãos puras». Que significa «elevando as mãos puras»? Será que deves, durante a oração, mostrar aos pagãos a cruz do Senhor? É ele, sem dúvida, um sinal que deve produzir a coragem e não a vergonha. Há, no entanto, maneiras para rezares sem fazer gestos, mas elevando os teus actos. Se queres fazer o que tens para fazer, elevas as mãos puras pela inocência. Não as elevas todos os dias: elevaste-as uma vez, não é necessário elevá-las de novo.

19 - «Quero que os homens rezem em todo o lugar, elevando as mãos puras, sem iras ou contendas». Nada de mais verdadeiro. «A cólera perde até os sábios», está escrito. Assim, e em todas as circunstâncias, e enquanto possa, o homem cristão deve moderar a sua cólera, e sobretudo quando se dispõe a rezar, para que a indignação na perturbe a tua alma, para que o furor da ira não impeça a tua oração. Dispõe-te mais a rezar quando o teu coração está apaziguado. Porque te irritas? O teu servo pecou? Dispões-te a rezar para que os teus próprios delitos sejam perdoados e indignas-te contra outro? Aqui está a razão do «sem cólera»...

 

V, 20 - Agora vejamos o que diz respeito às querelas. A maior parte das vezes é um negociante aquele que vai orar: o avaro pensa no seu dinheiro, um outro no seu lucro, outro nas honras, outro na sua cupidez, e cada um deles pensa que Deus o pode ouvir. Assim, quando rezares, convém que faças passar à frente dos negócios humanos o que é divino.

21 - «Quero que as mulheres rezem também, sem se orgulharem dos seus ornamentos e das suas jóias», diz o Apóstolo Paulo; mas diz também o Apóstolo Pedro: «A graça da mulher tem muita importância, para que a boa conduta da mulher faça mudar os sentimentos do marido, e para que o descrente se submeta à graça de Cristo». Eis o que vale a influência da seriedade da mulher, da sua pureza e boa conduta: chama assim o seu marido à fé e ao fervor, efeito produzido frequentemente pela palavra de um homem prudente. E diz ainda: «Assim, que a mulher não coloque a sua vaidade no cabelo, nem nos penteados, mas na oração que sai dum coração puro, onde está escondido o coração do homem, que é sempre rico perto de Deus». Tens, portanto, de que seres rico. as tuas riquezas em Cristo são o pudor e a castidade, os teus ornamentos a fé, o fervor e a misericórdia. Estes são os tesouros da justiça, como lembrou o profeta.

22 - Em seguida, por onde deves começar? Diz-me se, quando queres falar a um homem, começas assim: «Dá-me isto, eis o que quero». Não será que a tua forma de falar é arrogante? Assim, a oração deve começar pelo louvor de Deus, para que rogues ao Deus Omnipotente, a Quem tudo é possível, e que tem vontade de aceder. Depois vem a súplica, como ensinou o Apóstolo, dizendo: «Rogo-vos que façais em primeiro lugar orações, súplicas, pedidos, acções de graças». A primeira parte da oração deve, pois, conter o louvor de Deus, a segunda a súplica, a terceira o pedido, a quarta a acção de graças. Não deves começar como um esfomeado, que fala de alimento para o ter, mas antes de tudo para louvares a Deus.

23 - Eis porque os hábeis oradores têm este método para lhes tornar favorável o juíz: começam por o louvar, para o fazer um árbitro benevolente. Depois, pouco a pouco, começam a pedir ao juíz que se digne ouvir com paciência. Em terceiro lugar, ousam exprimir o objecto do seu pedido, o que desejam requerer. Em quarto, da mesma forma que começaram pelos louvores de Deus, devem terminar pelos louvores de Deus.

24 - Encontras isto na Oração Dominical: «Pai Nosso, que estás nos céus». É um louvor a Deus que Ele seja proclamado Pai; n'Ele está a glória do amor paternal. É um louvor dizer que habita nos céus, não sobre a terra. «Pai Nosso, que estás nos céus, santificado seja o Teu Nome», isto é, que Ele santifique os Seus servos, porque o Seu Nome é santificado em nós quando os homens são proclamados cristãos. «Santificado seja o Teu Nome» é então uma expressão de um anseio. «Venha o Teu Reino». É o pedido: que o Reino de Cristo esteja em nós. Se Deus reina em nós, o inimigo não pode aí ter lugar. A culpa não reina, o pecado não reina, mas reina a virtude, reina o pudor, reina o fervor. A seguir, diz-se: «Seja feita a Tua vontade assim na terra como no céu. O pão nosso de cada dia dá-nos hoje». Este pedido é o maior daqueles que nós fazemos: que seguindo a vontade de Deus, os homens mereçam receber cada dia o pão dos anjos. «Perdoa-nos as nossas dívidas, assim como nós as perdoamos aos nossos devedores». Recebe cada dia, para que possas pedir cada dia perdão para a tua dívida. «E não nos deixes cair em tentação, mas livra-nos do mal». Que vem a seguir? Escuta o que diz o sacerdote: «Por Nosso Senhor Jesus Cristo, com o Qual reinas, e com Quem possuis a honra, louvor, glória, majestade e poder, com o Espírito Santo, desde todos os séculos, agora e para sempre, e por todos os séculos dos séculos. Amen».

25 - Outro ponto. Se bem que não haja senão um livro dos Salmos, que tem todas as qualidades da oração que vos indicámos antes, no entanto, na maior parte das vezes, todas estas partes da oração se encontram num só salmo, como encontramos no Salmo 8. Com efeito, ele começa assim: «Senhor, Nosso Senhor, como é admirável o Teu Nome em toda a terra». É a primeira parte da oração. Vem depois a súplica: «Verei os céus, obra dos teus dedos», isto é, verei os céus, a lua e as estrelas que fixaste. Não se diz: «Verei o céu», mas «verei os céus», nos quais a graça começa a alvorecer sob o esplendor celeste. Estes céus, prometeu o profeta que seriam dados àqueles que merecessem do Senhor a graça celeste. «A lua e as estrelas que fixaste». A lua é a Igreja, as estrelas as

almas que brilham com a luz da graça celeste. Vê em seguida o pedido: «Que é o homem para que Te lembres dele, ou o filho do homem para o visitares? Colocaste-o um pouco abaixo dos anjos, coroaste-o de glória e de honra, e o estabeleceste sobre as obras das Tuas mãos». De seguida, uma outra acção de graças: «Tudo colocaste debaixo dos seus pés, as ovelhas e todos os bois, e também todos os animais selvagens».

26 - Ensinámo-vos, na medida em que nós próprios o compreendemos, o que nós não tínhamos talvez ainda aprendido, e expusémo-lo conforme pudémos. Que a vossa santidade, instruída pelos ensinamentos sacerdotais, se esforce por reter aquilo que recebeu, para que a vossa oração seja aceite por Deus, para que a vossa oblação seja como uma hóstia pura, e que Ele reconheça sempre em vós o Seu sinal, para que possais vós também chegar à graça e à recompensa das virtudes, por Nosso Senhor Jesus Cristo, que possui a glória, a honra, o louvor, a eternidade, desde sempre, agora e para sempre, e por todos os séculos dos séculos. Amen.