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DISCURSOS DE SATANIZAÇÃO, MECANISMOS DE EXTERMÍNIO 1 : Estigma, apagamento histórico e etnocídio das religiões afro- brasileiras Bárbara Altivo 2 RESUMO É alarmante o quadro contemporâneo de crimes de ódio contra os adeptos das religiões afro-brasileiras, os seus espaços sagrados e símbolos de devoção. A proposta do artigo é pensar as práticas discursivas de satanização das religiões de matriz afro, sondando as suas eficácias de estigmatização e estereotipia, apagamento histórico e etnocídio, o extermínio cultural dos sujeitos “diferentes”, e o genocídio, seu aniquilamento racial. Para isso, nos detemos a um acontecimento recente pouco visibilizado pela grande mídia. A Ialorixá baiana Mãe Dedé de Iansã, sacerdotisa de candomblé há 45 anos, morreu de infarto ao ter o seu terreiro hostilizado por religiosos fundamentalistas de orientação evangélica. O caso nos diz acerca dos processos atuais de deslegitimação, agressão e rancor coletivo contra as religões de matriz africana através das práticas discursivas demonizadoras que atuam nos níveis da representação hegemônica, do achatamento histórico e da aniquilação ou englobamento da alteridade. PALAVRAS-CHAVE: Discurso de satanização 1. Religiões afro- brasileiras 2. Estereótipo 3. Apagamento histórico 4. Etnocídio 5. Genocídio 1 Trabalho apresentado no GT Estéticas, Imagens e Mediações 2 Universidade Federal de Minas Gerais, PPGCOM-UFMG. VIII Encontro dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação de Minas Gerais https://ecomig2015.wordpress.com/ | [email protected]

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DISCURSOS DE SATANIZAÇÃO, MECANISMOS DE EXTERMÍNIO1:Estigma, apagamento histórico e etnocídio das religiões afro-brasileiras

Bárbara Altivo2

RESUMO

É alarmante o quadro contemporâneo de crimes de ódio contra os adeptos das religiões afro-brasileiras, os seus espaços sagrados e símbolos de devoção. A proposta do artigo é pensar as práticas discursivas de satanização das religiões de matriz afro, sondando as suas eficácias de estigmatização e estereotipia, apagamento histórico e etnocídio, o extermínio cultural dos sujeitos “diferentes”, e o genocídio, seu aniquilamento racial. Para isso, nos detemos a um acontecimento recente pouco visibilizado pela grande mídia. A Ialorixá baiana Mãe Dedé de Iansã, sacerdotisa de candomblé há 45 anos, morreu de infarto ao ter o seu terreiro hostilizado por religiosos fundamentalistas de orientação evangélica. O caso nos diz acerca dos processos atuais de deslegitimação, agressão e rancor coletivo contra as religões de matriz africana através das práticas discursivas demonizadoras que atuam nos níveis da representação hegemônica, do achatamento histórico e da aniquilação ou englobamento da alteridade.

PALAVRAS-CHAVE: Discurso de satanização 1. Religiões afro-brasileiras 2. Estereótipo 3. Apagamento histórico 4. Etnocídio 5. Genocídio

DEMONIZING SPEECHES, MECHANISMS OF EXTERMINATION:Stigma, historical erasure ans ethnocide os african-brazilian religions

ABSTRACT

It is alarming the contemporary context of hate crimes against the african-Brazilian religions, their sacred and devotional symbols. The purpose of the article is to think the discursive practices of demonization of african based religions, probing their efficacy of stigmatization and stereotyping, historical erasure and ethnocide (cultural extermination of the 'different' subjects), and genocide, its racial annihilation. For this, we stop at a recent event little visualized by the mainstream media. The Bahian Ialorixá Mother Dede of Iansa, Candomblé priestess for 45 years, died of a heart attack while having her yard harassed by religious fundamentalist. This case tells us about the current processes of delegitimization,

1 Trabalho apresentado no GT Estéticas, Imagens e Mediações2 Universidade Federal de Minas Gerais, PPGCOM-UFMG.

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aggression and collective grudge against african roots religions through discursive practices that operate in the levels of hegemonic representation, historical flattening and annihilation or supperation of otherness.

PALAVRAS-CHAVE: Demonization Speech 1. African-brazilian religions 2. Stereotype 3. Historical erasure 4. Ethnocide 5. Genocide

Introdução

Em diferentes instâncias de interação social, midiatizadas ou em co-presença,

mobiliza-se atualmente diversas manobras de condenação pública, desqualificação e ataque

frontal de cunho simbólico e físico às religiosidades afro-brasileiras. Múltiplas e

diversificadas práticas de intolerância religiosa vicejam nas convivências cotidianas,

constituindo sociabilidades impregnadas de ódio. A presença de pessoas, símbolos e rituais

vinculados à umbanda e ao candomblé nos espaços públicos – e mesmo privados, como

pode ocorrer na vida doméstica - é cerceada por diferentes mecanismos de exclusão,

sustentados por ameaças explícitas ou implícitas de violência simbólica e física. Como

explica Vagner Gonçalves da Silva (2007), há diferentes entradas de vilipêndio às devoções

afro-brasileiras no cenário contemporâneo:

1) ataques feitos no âmbito dos cultos das igrejas neopentecostais e em seus meios de divulgação e proselitismo; 2) agressões físicas in loco contra terreiros e seus membros; 3) ataques às cerimônias religiosas afro-brasileiras realizadas em locais públicos ou aos símbolos dessas religiões existentes em tais espaços; 4) ataques a outros símbolos da herança africana no Brasil que tenham alguma relação com as religiões afro-brasileiras; 5) ataques decorrentes das alianças entre igrejas e políticos evangélicos. (SILVA, 2007, p. 10).

Episódios de afronta direta às essas expressões religiosas, como incêndios e

depredações de terreiros, além das cada vez mais recorrentes ofensivas de grupos

criminosos do tráfico – associados a lideranças neopentecostais de comunidades periféricas

- contra as casas e adeptos da umbanda e dos candomblés, têm se proliferado em todo o

Brasil3. Segundo pesquisa do IBGE, o preconceito e as conversões religiosas fizeram com

que o número absoluto de praticantes declarados das religiões de matriz africana caísse no

país, saindo de um total de 575 mil, para 407 mil, em 2010. Nos últimos nove anos, vinte e 3 Ganharam notoriedade, somente no mês de junho de 2015, os casos de apedrejamento da menina Kayllane Campos, que foi agredida ao sair de uma festa de candomblé, e a morte da ialorixá Mãe Dedé, cujo caso analisaremos a seguir, que sofreu um infarto ao ter o seu terreiro hostilizado por um grupo de evangélicos.

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dois sacerdotes de matriz afro-brasileira foram assassinados, mais de 600% no total de

denúncias de intolerância religiosa no país aumentaram4. Tais agressões preconceituosas

muitas vezes vêm acompanhadas por gestos homofóbicos, racistas e machistas, o que

configura um quadro preocupante de afronta aos direitos humanos no país5.

Neste espectro, crescem os ataques forjados por estratégias evangélicas proselitistas,

cuja produção de discursos sobre outrem corresponde a processos maniqueístas de

demonização (SILVA, 2007). Compreendemos que a expansão dos discursos religiosos de

hostilização da alteridade é hoje inegável, sendo que as instituições religiosas incitadoras

do ódio apoderam-se cada vez mais dos espaços públicos e políticos, o que entra em atrito

com as premissas de laicidade do Estado democrático brasileiro6. São ideias

fundamentalistas que ganham cada vez mais visibilidade nos meios de comunicação,

ocasionando sérios conflitos danosos à diversidade de modos de vida e religiosidade que

constituem o compósito cenário cultural brasileiro.

O diagnóstico do qual parte este artigo diz respeito, assim, à urgência do campo

problemático referente à intolerância religiosa no Brasil. Campo atualizado por uma série

de eventos de violência que geram debates localizados e, na maioria das vezes, não ganham

visibilidade nas agendas midiáticas de ampla circulação pública. Neste campo entrecruzam-

se assimetricamente forças, sentidos e sujeitos, com destaque para as ações de agressão

simbólica contra os saberes vinculados às culturas afro-brasileiras através de discursos

globalizantes de vocação colonial (BHABHA, 1998; FANON, 1980).

Ao mesmo tempo, no embate com o regime de verdade e visibilidade historicamente

formulado (FOUCAULT, 1987), articulam-se respostas inventivas, produções discursivas

elaboradas no seio das próprias cosmologias afro-brasileiras, que incitam reconfigurações

nos debates constituidores do campo problemático da intolerância (GOLDMAN, 2009).

4 AGÊNCIA BRASIL. “Denúncia de intolerância religiosa cresce mais de 600% em 2012” <http://memoria.ebc.com.br/agenciabrasil/noticia/2013-01-21/denuncia-de-intolerancia-religiosa-cresce-mais-de-600-em-2012>. Acesso em 4 de agosto de 2014.5 BLOG DE ORDEP SERRA. “Manifesto contra a intolerância religiosa e o racismo, em defesa do candomblé e dos cultos afro-brasileiros em geral”. <http://ordepserra.wordpress.com/2012/01/20/manifesto-contra-a-intolerancia-religiosa-e-o-racismo-em-defesa-do-candomble-e-dos-cultos-afro-brasileiros-em-geral/ >Acesso em 4 de agosto de 2014.6 Destaca-se como fenômeno emblemático deste crescimento, o avanço das pautas conservadoras empreendidas pela bancada evangélica no Congresso brasileiro em torno de temas considerados controversos no debate público, como a instituição familiar, o aborto, o casamento entre pessoas do mesmo sexo, dentre outros.

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Leva-se aqui em consideração tal panorama comunicacional controverso que resvala na

continuidade direta com processos históricos de marginalização das culturas de matriz

africana no Brasil, e que, simultaneamente, faz-se produzir por vozes heterogêneas e

dizeres subversivos, desestabilizadores, que geram estranhamentos e problematizações.

Neste sentido, a fé e os rituais afro-brasileiros foram fonte de resistência e criatividade ao

longo dos séculos de escravidão e ainda o são hoje, após a abolição, quando persistem e se

transformam as formas de racismo e desigualdade social. Preservando e produzindo

conhecimentos diretamente vinculados à natureza, elaborando suas próprias filosofias,

narrativas e práticas de cura e manutenção da vida, as religiões afro-brasileiras hoje existem

e resistem vigorosamente (ibidem).

Temos em vista que tal campo de forças da intolerância contra religiões de matriz

africana no Brasil não se constitui apenas através das ações preconceituosas, mas também

mobiliza uma série de agenciamentos subversivos de ordem política e cultural que escapam

aos discursos de ódio. Contudo, estamos lidando com relações de poder historicamente

produzidas e reiteradas, nas quais as práticas hegemônicas de aniquilação ou englobamento

da alteridade deflagram um cenário de violência, exclusão e exploração dos povos negros

no Brasil. No presente âmbito, nos voltaremos para as operações discursivas que

demonizam as religiões afro-brasileiras, buscando compreender alguns de seus mecanismos

à luz de um caso de intolerância.

A proposta do artigo é pensar as práticas discursivas de satanização das religiões de

matriz afro, sondando as suas eficácias históricas de estigmatização e estereotipia

(BHABHA, 1998; FANON, 1980), apagamento histórico (CHAKRABARTY, 1997;

FABIAN, 2013; PIERUCCI, 2006); etnocídio e genocídio, extermínio dos sujeitos

“diferentes”, demarcados cultural e racialmente (CLASTRES, 1982; COX, 2006). Para

isso, nos detemos a um acontecimento recente pouco visibilizado pela grande mídia. A

Ialorixá baiana Mãe Dedé de Iansã, sacerdotisa de candomblé há 45 anos, morreu de infarto

ao ter o seu terreiro hostilizado por religiosos de orientação evangélica. O grupo de

fanáticos promoveu uma madrugada de insultos à mãe-de-santo de 90 anos, exigindo o

‘exorcismo’ dos demônios que estariam presentes na sua tradicional casa de candomblé. O

artigo se debruça sobre duas reportagens acerca do acontecimento, as únicas produzidas em

grandes portais de notícias (Terra e O Globo), e os comentários dos leitores.

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Após apresentar o enquadramento jornalístico majoritário elaborado pelos referidos

textos, analisaremos o discurso de satanização que transpassa boa parte das falas a respeito

da morte de Mãe Dedé a partir de três eixos analíticos: 1) o imaginário sobre as religiões de

matriz africana dentro de um quadro de valores (atentando para os estigmas e estereótipos

historicamente elaborados que caracterizam tais arcabouços simbólicos sobre o mal e o

maligno); 2) o apagamento da temporalidade dos povos de santo (como são negligenciados

e suprimidos as memórias, narrativas e vínculos ancestrais que conformam a religiosidade

afro); 3) o etnocídio, quando não se aceita a existência do diferente e parte-se para a sua

execução cosmológica, ontológica e mesmo física, no caso das práticas de genocídio.

Notaremos, assim, como o caso de Mãe Dedé pode nos dizer acerca dos processos atuais de

deslegitimação, agressão e rancor coletivo contra a umbanda e o candomblé através das

práticas discursivas demonizadoras, que atuam nos níveis da representação hegemônica, do

achatamento histórico e da aniquilação ou englobamento da alteridade.

A construção histórica do Inimigo: forjando imaginários

Entendemos que o panorama contemporâneo de intolerância religiosa no Brasil não

surge espontaneamente das interações sociais, mas atualiza uma série de investidas

históricas sistemáticas de controle da diferença, cujas operações de satanização dos

antagonistas políticos mostra-se presente em diferentes momentos históricos, encontrando

raízes na própria constituição do cristianismo no mundo ocidental. O historiador Alfredo

dos Santos Oliva (2007), em seu livro A História do Diabo no Brasil, associa o perfil bélico

contemporâneo de grupos cistãos fundamentalistas a processos históricos formadores de

conflitos sociais, políticos e religiosos. No cristianismo antigo, tomando como referência o

olhar cristão da época, o embate social era pensado em proporções cósmicas de uma luta

acirrada entre o Bem (cristianismo) e o Mal (judaísmo, império romano e paganismos),

sendo muito comum dentre os cristão “a prática de associar adversidade social, política e

doutrinária a adesão ao Diabo” (OLIVA, 2007, p. 33).

Já no período medieval, evidenciou-se a apropriação católica de elementos das

religiões politeístas na construção iconográfica do Diabo: tudo o que o cristianismo

considerou “demasiadamente pagão, como contrário a seus dogmas, como impuro e ímpio,

refugiou-se no reino do Mal” (NOGUEIRA apud OLIVA, 2007, p. 51). A assimilação entre

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deuses pagãos com demônios marca o cristianismo e caracteriza a sua política relacional

para com as religiões que com ele concorrem. Tal postura é marcante nas articulações que a

poderosa igreja medieval operou para perseguir os seus inimigos dissidentes através dos

processos inquisitoriais de caça às bruxas. Esta experiência, por sua vez, “treinou o olhar

demonológico sobre a América”, demonizando as populações autóctones e outras que lá

foram escravizadas (OLIVA, 2007, p. 70). Assim, o historiador considera, através de seu

apanhado das diferentes noções do Diabo no Brasil, que a intolerância religiosa

quanto à sua visão demonizante da cultura religiosa do “outro”, pertence a uma

tradição que remete ao cristianismo antigo, passa pela “caça às bruxas” no

período medieval e desemboca em uma concepção que finca as suas raízes no

Brasil Colonial, ocasião em que as culturas indígena e africana foram

identificadas pelos conquistadores, religiosos e seculares, como expressão

demoníaca inferior à sua. (ibidem, p. 76-77).

A elaboração de um imaginário europeu sobre os povos negros e indígenas ao longo

da colonização foi marcada pela afirmação da boa religiosidade cristã por meio de uma

“Pedagogia do Medo”, que “consolidou no discurso teológico uma demonologia

sistemática” calcada no dualismo Bem versus Mal (NOGUEIRA, 1984, p. 90). A ortodoxia

oficial pôde então determinar comportamentos desviantes e incitar o reconhecimento e

repúdio coletivo pelos mesmos. Em uma progressiva “infernalização da colônia” (SOUZA,

1986), as consideradas humanidades monstruosas das terras americanas foram demarcadas

como obscenas, ligadas ao mundo do sexo - em contraposição virtual a uma moral divina

correta -, e bestificadas, animalizadas. Os poderes femininos, relacionados à vida e à morte,

à fertilidade e ao erotismo, empregados em manipulações mágicas altamente subversivas,

foram satanizados pelo cristianismo, “marginalizados e expurgados para os territórios do

que se entendia por demoníaco e prostituição” (BARROS, 2013, p. 530). Os estereótipos

dos negros demoníacos e da feiticeira, mulher perigosa, são forjados então numa arena de

controle político.

Certamente, as forças de condenação da herança africana no Brasil remontam à

escravidão dos povos negros e a todas as vertentes perversas desta exploração, como a

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catequização forçada, o controle punitivo dos corpos escravizados e a consequente

segregação social das pessoas afrodescendentes

O escravismo contribuíra decisivamente para conferir ao Novo Mundo o seu caráter negativo, danado, infernal: não só pela má consciência do europeu que vivia às expensas da exploração ultramarina (...), como pelo perigo iminente que o número superior de escravos negros acarretava à ordem estabelecida, à continuidade da dominação colonial (SOUZA, 1986, p. 373).

O potencial insurgente dos negros escravizados era considerado, assim,

eminentemente demoníaco.

Tempo e poder

As operações de controle se inscrevem nos mais diferentes níveis, desde as

subjetividades, as práticas de si que conformam os sujeitos, até a dimensão mais alargada

da vida coletiva e das instituições (FOUCAULT, 1987). Assim, além de incidir sobre as

subjetividades “colonizadas”, para demonizar o Outro, desumanizá-lo e docilizar seu corpo,

é fundamental planificar a sua própria historicidade7, o tempo, e apagar as memórias

coletivas e vínculos ancestrais que são os pilares da cosmovisão afro-brasileira. Neste

sentido, destacam-se três gestos estratégicos de achatamento da temporalidade com vistas à

negação da alteridade, no caso das religiões de matriz afro. Podemos entrever nessas

investidas como os mecanismos temporais têm sido ideologicamente mediados (FABIAN,

2013).

De um lado, observamos a subsunção de uma temporalidade pagã, circular, que faz

conviver entes vivos e ancestrais, por uma temporalidade cristã com vistas à salvação, que

quer transformar o diferente em si mesmo pelo processo de conversão (ibidem, p. 62). Este

Tempo da Salvação, frequentemente acionado por missionários e grupos proselitistas em

suas empreitadas evangelizadoras, funciona como um grande referencial que se quer

universal, englobando todas as experiências religiosas em uma mesma narrativa.

Associadas a essa temporalidade estão as acusações demonizadoras que classificam uma

miríade de cultos, com destaque para aqueles de descendência africana, dentro do registro

7 Como afirma Dipesh Chakrabarty (1992) a respeito da produção de “passados indianos” pela colonização britânica, a “Europa continua sendo o sujeito soberano, teórico, de todas as histórias”, que tendem a ser “uma variação de uma narração mestra que poderia se chamar a história da Europa.” (1992, p. 327)

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do mal, do maligno, que deve ser combatido a todo custo. Afinal, a intenção de converter os

outros seria a benevolência de salvar as suas almas.

Em outro sentido, o tempo das vivências religiosas afro-brasileiras é subordinado a

uma temporalidade desencantada, a cronologia histórica naturalista que torna o tempo uma

categoria objetiva, supostamente neutra e vazia de divindades (FABIAN, 2013;

CHAKRABARTY, 1997). A tradução do tempo encantado – povoado de espíritos, deuses e

forças da natureza – pelo tempo secular, vazio de agências não-humanas, segundo

Chakrabarty, é um dos mecanismos de produção da subalternidade, de exploração e

opressão (ibidem, p. 37). A História ocidental se constitui ao passo que ignora essas

presenças, faz calar a sua agência e a compreende em termos de “superstição”,

“primitivismo” e “selvageria”, noções que fazem parte de um “quadro categórico do tempo

naturalizado” (FABIAN, 2013, p. 54). As narrativas historiográficas participam desse

regime de saber-poder como instância legitimada que pode dizer sobre o encadeamento

universal dos grandes acontecimentos (FOUCALT, 1987). No caso das religiões afro,

fortemente incorporadas na religiosidade popular brasileira, são muitas vezes consideradas

crendices incivilizadas e barbarismos vinculados a uma inferioridade intelectual e moral.

Ambas as temporalidades de salvação e naturalista atuam produzindo

desligamentos, rupturas com as tradicionais “linhagens de fé” que sustentam os cultos afro

e a religiosidade popular brasileira (PIERUCCI, 2006). No primeiro caso, ao considerar os

ancestrais como demoníacos, uma vez que ligados a matrizes pagãs indígenas e/ou

africanas, o Tempo da Salvação afrouxa laços de parentesco e apaga memórias dessas

ancestralidades, os seus conhecimentos e práticas sociais. Tal seara deve ser esquecida, pois

representa um passado anterior à conversão cristã, tempo ahistórico repleto de

monstruosidades, como vimos com a infernalização da colônia (SOUZA, 1986). Já o tempo

naturalizado, apropriado pelo conhecimento científico, rejeita o passado enquanto estágio

atrasado, numa forte ligação com as premissas evolucionistas que linearizam

hierarquicamente o tempo (FABIAN, 2013). “Crendices”, “superstições” e

“curandeirismos”, as religiões de matriz africana (bem como indígenas e populares), são

relegadas a um estágio anterior de ignorância, a ser aperfeiçoado pelo conhecimento

científico.

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Vemos, portanto, um duplo mecanismo de subordinação temporal sobre as religiões

afro-brasileiras: pela via cristã da salvação e pela via secular da naturalização, podendo esta

última ser operacionalizada também contra as próprias religiões cristãs nos contextos

contemporâneos de disputa religiosa, como veremos mais à frente.

Culturas e corpos eliminados

A demonização da outridade, como dissemos, funciona através de processos

históricos de estereotipia, estigma e subordinação temporal. De forma mais ampla, no que

se refere a sua atuação no nível cultural, podemos pensar em um etnocídio das tradições de

matriz africana no Brasil, assim como das culturas ameríndias. Segundo Pierre Clastres, “o

etnocídio é a destruição sistemática dos modos de vida e pensamento de povos diferentes

daqueles que empreendem essa destruição” (CLASTRES, 1982, p. 56). Ele explica que o

conceito advém da experiência de etnólogos com o massacre indígena nas Américas, em

sua dimensão cultural. Como prática colonial por excelência, o etnocídio – opressão

cultural com efeitos ao longo da história - é muitas vezes acompanhado do genocídio, a

eliminação física imediata de grupos raciais. “Em suma, o genocídio assassina os povos em

seu corpo, o etnocídio os mata em espírito” (idem, ibidem).

Ambos, o etnocídio e o genocídio, pensam o Outro como uma má diferença, mas

atuam de formas diferentes. O genocida simplesmente nega a diferença e parte para a sua

aniquilação física. São exemplos, além dos assassinados de indígenas em grande escala nos

períodos de colonização, o nazismo, guerras étnicas e demais práticas violentas cuja raiz

está no racismo. O etnocídio, por sua vez, compreende a relatividade do mal na diferença,

ou seja, entende que os outros são maus, mas podem ser melhorados, tornados idênticos ao

modelo imposto. É o caso, como já vimos, dos missionários, etnocidas atrelados ao

processo de colonização cuja atividade implica duas certezas: 1) a de que a diferença do

paganismo é inaceitável e deve ser recusada, e 2) de que o mal que está na diferença pode

ser atenuado ou mesmo abolido pela conversão, o que remete ao mencionado Tempo da

Salvação. Assim, são axiomas do etnocídio a hierarquia das culturas e a convicção na

superioridade absoluta da cultura ocidental. O otimismo do etnocida, segundo Clastres,

acredita que pode salvar o outro, ajudá-lo a superar a sua condição inferior. O que aponta

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para a compreensão de que “a espiritualidade do etnocídio é a ética do humanismo”

(CLASTRES, 1982, p. 57).

A prática etnocida é entendida por Clastres como modo de operação do Estado de

dissolver o múltiplo no um. O funcionamento da máquina estatal revela a “vontade de

redução da diferença e da alteridade, o sentido e o gosto do idêntico do Um”, acionando

“uma força centrípeta que tende a esmagar as forças centrífugas inversas, quando as

circunstâncias o exigem”. O Estado “se quer e se proclama o centro da sociedade, o todo do

corpo social, o mestre absoluto dos diversos órgãos desse corpo.” (ibidem, p. 60). A

especificidade etnocida do Ocidente está não só em sua afeição pelo modelo político do

Estado-Nação, o que ocorre em outras sociedades não-ocidentais, mas advém também e

principalmente de seu regime de produção capitalista, que torna tudo útil e produtivo.

“Produzi ou morrer, é a divisa do Ocidente” (ibidem, p. 63).

Para os propósitos deste texto, não vamos adentrar mais no pensamento de Clastres

sobre as sociedades contra o Estado. Queremos apenas deter as suas reflexões em torno das

práticas genocidas e etnocidas, isto é, os processos de aniquilamento físico e

englobamento/conversão cultural que historicamente se entrecruzam nas investidas de

intolerância contra as religiões de matriz africana.

O caso Mãe Dedé de Iansã

De modo geral, vamos apresentar as principais informações sobre o acontecimento

noticiado nos portais Terra8, “Família de ialorixá atribui morte a intolerância religiosa”, e

no O Globo9, “Parentes de ialorixá morta dizem que ela teve infarto causado por

perseguição religiosa”, os únicos portais de grande visibilidade que publicaram sobre o

fato.

A Ialorixá Mildreles Dias Ferreira de 90 anos, conhecida como Mãe Dedé de Iansã,

morreu no dia 1º de junho de 2015 vítima de um infarto. Ela comandava o terreiro de

candomblé Oyá Denã há 45 anos na cidade baiana de Camaçuri e passou mal quando um

grupo de evangélicos ligados à denominação Casa de Oração Ministério de Cristo fazia

uma vigília noturna na porta de seu terreiro. Os conflitos com o grupo aconteciam há cerca 8http://noticias.terra.com.br/brasil/policia/familia-atribui-morte-de-ialorixa-a-intolerancia-religiosa-na- bahia,b4f7246b0e612bb8a8163014c331da66sx0cRCRD.html Último acesso em 13 de outubro de 2015.9http://oglobo.globo.com/sociedade/religiao/parentes-de-ialorixa-morta-dizem-que-ela-teve-infarto-causado- por-perseguicao-religiosa-16396381 Último acesso em 13 de outubro de 2015.

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de um ano e a comunidade de Santo já havia feito queixas na polícia denunciando a

perseguição religiosa que vinha sofrendo.

Em ambas as notícias publicadas, vemos que a família de Mãe Dedé é identificada

como a porta voz da denúncia de intolerância, a fonte que associa diretamente a morte da

Ialorixá à madrugada de vigília em frente ao terreiro. Além de familiares, aparecem como

fontes algumas lideranças do movimento negro e autoridades políticas da cidade e do

âmbito nacional vinculadas às questões raciais, lamentando a morte da célebre Mãe de

Santo e apontando para o perigo da intolerância religiosa (entidades como o Coletivo de

Entidades Negras, Coordenadoria de Promoção da Igualdade Racial de Camaçari, Centro

de Referência de Combate ao Racismo e à Intolerância Religiosa Nelson Mandela e a A

Comissão de Combate à Intolerância do Rio). A reportagem do OGlobo foi a única a

consultar um representante das religiões evangélicas, o diretor da Associação dos Pastores e

Ministros Evangélicos do Brasil. Para ele, tratata-se de um caso isolado, sendo raros os

ataques de intolerância executados por grupos evangélicos.

O enquadramento majoritário do acontecimento apresentado nas duas reportagens

prima por classificá-lo enquanto uma questão de intolerância religiosa, tendo como centro

descritivo do fato a fala dos familiares de Mãe Dedé 10. Somente o portal Terra abriu espaço

para comentários. A seguir, vamos apresentar a ambiência do debate que se formou na

página da notícia, destacando os principais argumentos que surgiram. Descreveremos e

examinaremos o discurso de demonização que atravessa os comentários a partir de três

eixos de análise mencionados anteriormente: a estereotipia pelo mal, a subordinação

temporal e as investidas de etnocídio das religiões de matriz africana. Observaremos, por

fim, os argumentos que condenam a ação do grupo fundamentalista.

Do total de 148 comentários, 83 são abertamente críticos ao candomblé, à Mãe

Dedé de Iansã, e discordam de que o seu infarto teve como causa a noite de ofensas. Além

10Mais recentemente, no dia 7 de outubro de 2015, a Defensoria Pública do Estado da Bahia (DPE/BA) determinou uma liminar com ação indenizatória por danos morais aos integrantes do Terreiro Oyá Denã. A Justiça decidiu que cada réu deverá pagar a partir de R$2 mil de multa caso cometa atos de intolerância religiosa ou façam qualquer tipo de ofensa ao terreiro. Além disso, caso a igreja não faça revestimento acústico em sua sede em até 30 dias e se abstenha de realizar culto fora das normas deverá pagar multa a partir de R$5 mil por dia de atraso. As práticas foram então consideradas ofensivas pela Justiça, indicando também a violação à liberdade de culto, assegurada pela Constituição Federal. Cf. http://www.correio24horas.com.br/detalhe/noticia/justica-obriga-igreja-a-indenizar-terreiro-apos-morte-de-yalorixa-em-camacari/?cHash=349d3f7414191280e5d54d8a23d773b5. Último acesso em 13 de outubro de 2015.

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desses, 48 comentários consideram que a Ialorixá foi vítima de uma agressão criminosa

causada pelo preconceito do grupo evangélico da Casa de Oração Ministério de Cristo de

Camaçuru. Os demais comentários, por serem muito breves ou vagos, não se enquadram

em nenhuma dessas duas posições.

Limpando o mundo de “macumbeiros sujos”

O tom que predomina nos comentários contra o candomblé, que figuram como a

maioria na página, veem a morte de Mãe Dedé como algo natural, pela idade da

sacerdotisa, e determinado por Deus. Muitos elogiam a atitude do grupo fundamentalista,

que teria feito uma “limpeza”, ao exorcizar os espíritos demoníacos que seriam cultuados

na casa de candomblé. O tema da sujeira pagã versus a pureza cristã é recorrente, e se

relaciona ao estereótipo do negro como fonte de impureza, que se associa à concepção do

demoníaco como força que “contamina” e deve ser “expurgada” e “purificada”.

“Quem se envolve com a feitiçaria se contamina.”

“Tu és um macumbeiro sujo demais... só isso que tu tens a dar, é? Deve levar uma vida miserável debaixo do jugo das entidades, né? Sabe porque tu não vais a uma Igreja? Porque lá tu vais cair, junto com as entidades que usam teu corpo.”

“‘limpa esse território do satanás e das forças malignas’. eu acho que deu certo o objetivo deles”

“quem vive borrado não aceita os limpos kkkk”

Conjuntamente à premissa de higienização, vemos comentários que vinculam a

figura da Mãe de Santo a práticas consideradas monstruosas e cruéis, como o sacrifício

humano e de animais, incesto, canibalismo e exumação de corpos nos cemitérios, repertório

que integra o imaginário popular sobre a “magia negra” – cujo adjetivo deixa evidente o

comprometimento com o racismo – e se atualiza nas acusações de teor moralizador que se

multiplicam pela página.

“Mais dinheiro que estes feiticeiros cobram p/matar cabrito e galinha, mexer em tumba e arranjar papa pro tinhosos IMPOSSIVEL!”

“E por que essa gente não acusa as entidades, que os criam feito galinhas para matar nas festas? Ora, os que escolhem o Mal devem se responsabilizar por seus atos e não ficar culpando os demais... E a pergunta que não quer calar: quantas

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pessoas já foram prejudicadas pelos "trabalhos" da falecida? Quantos lares não foram desfeitos? Quantas criancinhas sacrificadas, para que "famosos" tenham mais fama e dinheiro? Pura hipocrisia, gente!”

“Essa não sacrifica mais animais pra enganar os otários”

“Considerando:1. de onde veio as feitiçarias de candomblé, nego de mina, quimbanda, Vodu e Batuque até hoje mutilam menina e matam filho que fizeram nas próprias filhas2.estão sempre em guerras de gangues, entre eles mesmos3.além de que de lá é que veio o EI e o Boko HAran dá pra afirmar sem erro que a Africa é o berço da morte e da violência.”

Como vemos no último comentário mencionado acima, as referências à origem

africana do mal se repetem, sendo incorporadas ainda à figura emblemática da velha

feiticeira negra que fez pacto com Satã, esterótipo acionado no senso comum em relação às

Mães de Santo. Observamos então o aspecto de gênero que perpassa a construção

estereotípica da feitiçaria, que remete ao poder maligno das bruxas, mulheres perigosas que

promovem a “destruição de lares”, “matam criancinhas” e tem uma conduta sexual

considerada impura e obsena.

“Esta gente se aproveita da maldade que outros tem dentro de si e o culpam outros de seus azares. Abaixo de muito dinheiro o e mortes eles pagam espiritos negros - as mesmas pessoas criminosas que um dia morrem por e outros errantes humanos e não humanos, p/ prejudicar outras pessoas. Mas o dia de acertar as contas chega para até p/velhas feiticeiras, muito crentes que Satã as salvará. Bastou chamarem Deus na porta do covil que FEDEU LÁ DENTRO!” (Grifos nossos).

Os estereótipo e estigmas construídos no seio dos embates culturais marcados pelas

investidas coloniais, como apontam autores dos chamados estudos pós-coloniais como

Homi Bhabha (1998) e Fraz Fanon (1980), são muito presentes no discurso de satanização

das religiões afro-brasileiras, o que nos mostra o caso em questão. Nessa perspectiva, são

traços marcantes da malignidade de Mãe Dedé, como velha feiticeira negra, e do

candomblé, como o culto dos demônios, o seu aspecto sujo, nauseabundo, animalesco,

africano, obseno e monstruoso.

“De volta aos braços do cão”

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No quesito temporal, notamos a presença daqueles três operadores contra-

relacionais: o Tempo da Salvação (FABIAN, 2013), o tempo naturalizado

(CHAKRABARTY, 1997; FABIAN, 2013), e o apagamento dos ancestrais e da memória

coletiva (PIERUCCI, 2006). São vários os comentários que abordam a condenação de Mãe

Dedé ao inferno. Sua vida de pecado e abominações a levaria “de volta aos braços do pai da

mentira”, onde “há de pagar” por todos os seus erros. Seu destino é passar a eternidade

junto ao Diabo, uma vez que seu envolvimento com a feitiçaria impossibilita a sua

salvação. Nesses termos, estamos lidando com uma temporalidade avassaladora, que

homogeniza a experiência religiosa de Mãe Dedé sob o chave do mal e a condena a integrar

um destino dual para toda a humanidade: a salvação ou o inferno.

“a mulher já era 90 anos ta bom de mais . ninguem é culpado se serviu a Deus ele receberá se serviu ao cão ele a receberá é simples assim.”

“A véia morreu porque chegou a hora dela. E como passou a vida entregando sua alma a entidades malignas, vai ver agora onde escolheu para passar a eternidade.”

“A mulher era uma anciã de 90 anos, 90 anos, o que a família vindo de uma crença e prática profana, diz, a julgar pela mentira da crença, não tem credibilidade alguma. É palavra de gente que usa a imagem de "guias" invocações de demônios mesmo, porque estes espíritos nada mais são que demônios (anjos ruins) se passando por quem querem para enganar estes trouxas que eles fazem de trouxas outros trouxas e tem uma vida miserável, pois todos os êxitos são momentâneos e logo logrados. Em nome do Senhor que vive, vocês hão de pagar. A senhora, de quase um século um dia iria morrer como todo mundo, e não ficar pra semente.”

“Agora eles que querem perseguir a igreja... Deus acima de tudo e eles adorando o inimigo. Quem sou eu para julgar, mas será que sua alma está salva? Será que está descansando nos braços do Senhor? Ai a igreja faz a sua parte em pregar a palavra, salvar almas, é culpada pelo infarto de uma pessoa de 90 anos. Fala serio né!”

Por outro lado, temos comentários que deslegitimam a denúncia de intolerância por

um viés que se coloca como não-crente, racional e desvinculado a “imbelicidades da

religião”, e chegam a equiparar a “burrice” e a “bagunça” das religiosidades cristãs e afro-

brasileiras. A cronologia figura então como grande referencial do tempo.

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“Pra quem gosta de bagunça tanto o terreiro como essas vigílias é um bom prato, niguem merece! A diferença é muito pouca, o terreiro é um batuque infernal as vigílias um som q sacode até as panelas e sempre um quer gritar mas q o outro terrível”

“Isso é uma lenda amigo, não posso acreditar que hoje em dia haja imbecis que acreditem em religiões”

Essas leituras consideram a idade biológica de Mãe Dedé a verdadeira causa do

infarto que sofreu. A “véia”, que estaria fazendo “hora extra na terra”, é inserida numa

temporalidade naturalizada, cronológica, inescapável. A velhice aparece então como fase

doentia da vida, inútil e indigna de respeito, em contraste com o alto reconhecimento que a

figura dos anciões ocupam no candomblé, como grandes líderes, fonte de poder espiritual

(axé) e orientadores dos mais novos. Ao banalizar a morte da sacerdotiza, a temporalidade

secular planifica uma série de relações ancestrais, sem se preocupar com os registros da

memória tradicional difundida pelos mais velhos. A sucessão do tempo funciona, nesta

perspectiva, através da superação progressiva dos fatores primitivos, das ignorâncias de um

pensamento mágico que deve ser substituído pelo verdadeiro conhecimento. Apagar o

passado - e com ele as pessoas mais velhas, as histórias e tradições – é a própria operação

do tempo naturalizado.

“Caramba... Será que não perceberam que dona tinha 90 ANOS!!! Já tava fazendo hora extra aqui. Morreu pq tava na hora poxa... kkk”

“conversa para boi dormir já estava fazendo hora extra na terra caramba !” “gente, vcs estão falando de uma véia de 90 anos!!! Mais que normal morrer de infarto, afinal ela já estava muito velha!!! Pare de implicar com essa ou aquela religião!”

A derrota da velha feiticeira negra

Já vimos como a tônica higienista integra boa parte dos comentários demonizadores.

Pelas várias menções aos “espíritos negros”, “à magia negra”, à África como “berço do

mal”, não fica difícil perceber o teor racista que emana desses dizeres. Neste sentido,

compreendendo o genocídio como prática de aniquilamento físico de corpos a partir de sua

demarcação racial (CLASTRES, 1982), podemos perceber um tom discursivo apologético

às ações genocidas movidas contra grupos negros considerados satânicos. A morte de Mãe

Dedé é entendida, por vezes, como a própria derrota do demônio, que teria saído do seu

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corpo. “O Diabo não aguentou a pressão e a abandonou”. O infarto é interpretado em

alguns momentos como “a vitória do povo de Deus”, e celebrado: “tudo que pedires em

oração crendo recebereis eita povo abençoado”. O corpo de Mãe Dedé, desumanizado, é

rebaixado à condição de matéria inerte e inútil: “Minhocas terão pouca coisa pra se

alimentar.” Eis o ápice da inspiração genocida.

Sendo o genocídio a aniquilação corporal do Outro, observamos que no caso de

Mãe Dedé ele se alterna com uma investida etnocida (ibidem), de cunho cultural, que visa

eliminar ou converter a devoção do candomblé, transformando a diferença em identidade.

O etnocídio lida com a má diferença de modo apaziguador: não é necessário matar

fisicamente os Outros, basta transformar “eles” em “nós” culturalmente, “ensinar a palavra

de amor”. Esse otimismo aparece em diversos comentários que se posicionam contrários à

violência física, mas que apoiam a evangelização como forma de “salvar as almas”

pecadoras. Trata-se de um processo que engendra, ao mesmo tempo, uma série de ações

embranquecedoras, purificadoras e moralizadoras, referentes a uma adequação de conduta

que se estende às práticas sexuais e afetivas.

“João 8:32 e conhecerei a verdade e a verdade vos libertara,vamos orar por eles e pelo mundo e contra a violência,de nada adianta se não tiver amor ao próximo irmãos”

“Quem vai até terreiro de macumba, xingar, brigar por esses motivos tb será penalizado, agora não venham generalizar que evangélico é louco, agressivo ou sei lá o que!! Quem generaliza é gente sem conhecimento, gente ignorante!! Seria primordial que deixassem seus Pré conceitos de lado e aprendem um pouco sobre o que a BIBLIA, palavra de Deus ensina!!! Jamais dentro da palavra de Deus diz para agredirmos, xingar, quem está fazendo isso faz, contra a palavra, contra a vontade de Deus, quanto ao que dizem que evangélico é homofóbico! Isso não é verdade, pelo menos não no sentido que se expõe a palavra! Deus é bem claro em um dos seus mandamentos, amai a teu próximo como a tí mesmo! Ou seja, Deus não manda que xinguemos os gays ou que os ataquemos, mas sim, se possível ensinar da palavra de Deus e se assim o consentir, que mude seus atos por amor a Deus!” 

A maioria dos comentários que criticam a intolerância religiosa se enquadram

dentro da premissa cristã de “amor ao próximo”, demarcando uma postura de benevolência

que contorna a aspereza da relação na medida em que sustenta que “todos somos irmãos…

mas eu não concordo com o candomblé”. Não há sequer um único comentário que se VIII Encontro dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação de Minas Gerais

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identifique abertamente vinculado às religiões afro-brasileiras. Citações bíblicas

acompanhadas de reflexões teológicas aparecem como lócus privilegiado de acolhida da

alteridade, um posicionamento que relativiza as práticas religiosas sem sair do lugar de fala

cristão.

E se a religião dela estiver correta e a sua errada? Os cristãos perseguiam e sacrificavam humanos sendo chamados de bruxos. Não justifico o candomblé e também não concordo com ele. Mas admitir uma religião como verdadeira absoluta a ponto de as outras serem práticas demoníacas?

Além da crítica cristã à violência, o outro principal argumento apresentado contra a

ação do grupo de fundamentalistas tem como base um discurso de ódio voltado contra os

evangélicos, os “crentes burros” que pagam dízimo e são enganados por pastores ladrões.

Figuram, dessa forma, considerações também intolerantes e movidas por ódio e preconceito

voltadas contra alguns segmentos desse grupo religiosos.

Que me desculpem os evangélicos sérios, que são das igrejas Batista, Luterana e talvez mais uma ou duas que me falha a memória agora, mas os bispos, pastores e as pragas dos crentes das comedoras de dinheiro são um câncer, pior que qualquer outra praga existente. Se metem na vida de todo mundo e querem que todos engulam suas verdades. Quem acredita muito bem, mas quem não, muito bem também. E o pior é que como 90% da nossa população só tem cabeça para separar as orelhas, estas pragas estão cada vez mais na política e em breve todos os principais cargos do país serão destas pragas. Crentes são impossíveis. Ninguém gosta deles. Nem eles. Um morre de inveja do outro.

Apresentam-se, portanto, como principais linhas de sentido que animam os

comentários contra a vigília noturna em frente ao terreiro de Mãe Dede: a) dentro das

premissas cristãs, é preciso amar e respeitar o outro, e b) os evangélicos são todos

fundamentalistas, ignorantes e representam um perigo para a sociedade democrática

brasileira.

Considerações finais

Ao analisar o discurso de satanização que nutre os comentários a respeito da morte

de Mãe Dedé, pudemos delinear três mecanismos nele engendrados: 1) a representação do

Outro – a Mãe de Santo e o candomblé - como algo maligno (sujo, desumano, bestial,

obseno); 2) a predominância de temporalidades homogeneizadoras da experiência religiosa

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(o Tempo da Salvação que condena Mãe Dedé ao inferno e o tempo cronológico

desencantado que a vê como uma velha que morreria de qualquer modo), bem como o

consequente apagamento dos vínculos de ancestralidade e memórias da tradição afro-

brasileira; e 3) considerações ora genocidas (a favor da eliminação física da sacerdotiza),

ora etnocidas (englobamento da diferença em prol da conversão).

Os comentários que defendem a comunidade de terreiro lançam mão de argumentos

retirados da Bíblia, por um lado, afirmando o compromisso cristão em acolher o próximo

para então salvá-lo, imputando um processo de evangelização com vistas à ensinar as

condutas corretas. Por outro, há comentários que atacam as religiões evangélicas e seus

adeptos, invertendo o alvo do discurso de ódio a partir de uma inclinação livre da “burrice

religiosa”. No debate não encontramos abertura para trocas, ruptura com estereótipos ou

deslocamentos de lugar de fala.

Satanizar o outro nos parece, então, um gesto contra-relacional de fechamento à

diferença, de incomunicabilidade, que bloqueia processos de mútua-afetação e parasita

narrativas, cosmologias e modos de vida para submetê-los à categoria do maligno. Fica

evidente, no caso da Mãe Dedé de Iansã, como os discursos de ódio são práticas concretas

de violência que, atravessando subjetividades e corpos, têm o poder de matar.

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